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Universidade Federal de Uberlândia

Curso de Pedagogia a Distância


METODOLOGIA DO ENSINO DA LÍNGUA PORTUGUESA I

Adriana Pastorello Buim Arena


Valéria Aparecida Dias Lacerda de Resende

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 1


METODOLOGIA DO ENSINO DA LÍNGUA
PORTUGUESA I

ARENA, Adriana Pastorello Buim, RESENDE, Valéria Aparecida Dias Lacerda de. Metodologia do Ensino da
Língua Portuguesa I. Coleção Pedagogia a Distância UFU/UAB. Uberlândia-MG: Universidade Federal de
Uberlândia, Universidade Aberta do Brasil, 2018. 62 p.

Sobre as Autoras

Adriana Pastorello Buim Arena

Professor Associado da Faculdade de Educação - FACED e do Programa de Pós-Graduação em Educação da


Universidade Federal de Uberlândia. Possui graduação em Filosofia (1995), graduação em Pedagogia (2002),
Mestrado em Educação (2005) e Doutorado em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de
Mesquita Filho (2008). Bolsa de doutorado-sanduíche financiada pela CAPES na Faculdade de Psicologia e
Ciência da Educação da Universidade de Lisboa, sob orientação do Dr. Justino Pereira de Magalhães. Estágio
pós-doutoral financiado pela CAPES (2013/2014) na Université Paris-Sorbonne (Paris IV -CELSA). Estágio de
formação (2015) na Université de Strasbourg na Faculté des Lettres, sob supervisão de Jean-Paul Meyer. Tem
experiência na área de Educação, com ênfase em Métodos e Técnicas de Ensino, atuando principalmente nos
seguintes temas: processos de leitura e de escrita no ensino fundamental.

Valéria Aparecida Dias Lacerda de Resende

Possui Graduação em Pedagogia(1990) e em Psicologia(1992), ambas pela Universidade Federal de Uberlândia.


Mestre em Educação: Supervisão e Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1996).
Doutorado em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (2015). Atualmente é
professora Associado I na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Uberlândia. Tem atuado nas
áreas de Educação Infantil, Alfabetização, Didática e Metodologia da Língua Portuguesa, Literatura Infantil e
Imaginário da Criança, Políticas Educacionais e Formação Docente.

CAPA

http://www.sxc.hu/

2 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Michel Miguel Elias Temer

MINISTRO DA EDUCAÇÃO
José Mendonça Bezerra Filho

UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL


DIRETORIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA/CAPES
Carlos Cezar Modernel Lenuzza

UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA - UFU


REITOR
Valder Steffen Júnior

VICE-REITOR
Orlando César Mantese

CENTRO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA


DIRETORA E REPRESENTANTE UAB/UFU
Maria Teresa Menezes Freitas

SUPLENTE UAB/UFU
Aléxia Pádua Franco

FACULDADE DE EDUCAÇÃO - FACED - UFU


DIRETORA
Rafael Duarte Oliveira Venâncio

CURSO DE PEDAGOGIA A DISTÂNCIA


COORDENADOR GERAL
Maria Irene Miranda

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EQUIPE DO CENTRO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA DA UFU - CEaD/UFU

ASSESSORA DA DIRETORIA
Sarah Mendonça de Araújo

EQUIPE MULTIDISCIPLINAR
Alberto Dumont Alves Oliveira
Darcius Ferreira Lisboa Oliveira
Dirceu Nogueira de Sales Duarte Júnior
Gustavo Bruno do Vale
Otaviano Ferreira Guimarães

ESTAGIÁRIOS
Ana Cecília Ferreira Goulart
Gabrieli Mazzola
Guilherme Alves da Silva
Gustavo Araújo Rodrigues
Ilana Luzia A. dos Reis
Iuri Claro Ribeiro
Lívia de Souza Blondin
Ludmila Cruz Rezende Senna e Silva
Matheus Bessas Ribeiro
Matheus Martins Ananias Xavier
Miriã Vânia Andrade Lemos
Pablo Henrique M. F. Nunes
Thiago Fernandes Pereira e Freitas

4 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


SUMÁRIO

SUMÁRIO5
FIGURAS 6
INFORMAÇÕES 7
INTRODUÇÃO 8
PLANO GERAL DA DISCIPLINA 9


Módulo 1 – Linguagem e Oralidade  11
I – TEXTO BÁSICO 12
II - SÍNTESE DO MÓDULO 18
III - REFERÊNCIAS 18


Módulo 2 – Desenvolvimento da Linguagem Oral e Escrita 19
I – TEXTO BÁSICO 20
II - SÍNTESE DO MÓDULO 24
III - REFERÊNCIAS 25


Módulo 3 – Leitura: Concepções e Práticas  27
I – TEXTO BÁSICO 28
II - SÍNTESE DO MÓDULO 36
III - REFERÊNCIAS 36


Módulo 4 - Gêneros Textuais 37
I – TEXTO BÁSICO 38
II - SÍNTESE DO MÓDULO 51
III - REFERÊNCIAS 52

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 5


FIGURAS

Figura 1 - Pinturas rupestres. 15

Figura 2 - Capas de cartilhas. 15

Figura 3 - Imagem do filme “Guerra do fogo”. 19

Figura 4 - Interações entre alunos em sala de aula. 26

Figura 5 - Ilusão de ótica: jovem e bruxa. 31

Figura 6 - Texto com palavras trocadas. 33

Figura 7 - Letras trocadas por números. 34

Figura 8 - Cena de bebê folheando um livro infantil. 37

Figura 9 - Capa do livro “Felpo Filva”. 43

Figura 10 - Exemplos de literatura de cordel. 44


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INFORMAÇÕES

Prezado(a) aluno(a),

Ao longo deste guia impresso você encontrará alguns “ícones” que lhe ajudará a identificar as atividades.

Fique atento ao significado de cada um deles, isso facilitará a sua leitura e seus estudos.

Destacamos alguns termos no texto do Guia cujos sentidos serão importantes para sua compreensão. Para
permitir sua iniciativa e pesquisa não criamos um glossário, mas se houver dificuldade interaja no Fórum de
Dúvidas.

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 7


INTRODUÇÃO

Prezado aluno,

A disciplina Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I tem como propósito promover a reflexão
sobre a natureza da leitura e da escrita para que, a partir desse estudo, o professor possa pensar como
agir metodologicamente durante a prática do ensino da língua materna na Educação Infantil e nos cinco
primeiros anos do Ensino Fundamental.

A importância dessa área de estudo no curso de Pedagogia centra-se nos objetivos que o curso visa: formação
de pedagogos(gestores e professores), que devem possuir domínios teórico-metodológicos de saberes e
práticas de leitura, literatura infanto-juvenil, linguagem oral, produção escrita e conhecimentos lingüísticos
para atuarem na educação infantil e nos cinco primeiros anos do Ensino Fundamental. Justifica-se também
por propiciar análises e produção de materiais didáticos e/ou de propostas didático-metodológicas para o
ensino da Língua Materna. Sendo assim, espera-se que, ao final da disciplina, os alunos adquiram informações
suficientes em relação à natureza da linguagem que lhes possibilitem promover situações em sala de aula
que favoreçam às crianças acesso aos bens culturais e participação plena no mundo letrado. Alguns temas
norteiam nossos estudos. São eles:
• Linguagem e Oralidade
• O discurso e suas particularidades
• Desenvolvimento da linguagem oral e escrita
• Concepções de leitura
• Contribuições da sociolinguística para compreensão da leitura
• Dinâmica discursiva dos gêneros textuais
• Especificidades do texto literário
• Produção de texto
• Concepção de texto como espaço de interação leitor-autor
• Organização do texto: coerência e coesão
• Aquisição da ortografia

Com a intenção de que esses objetivos sejam atingidos, os conteúdos da disciplina foram divididos em
módulos, havendo quatro semanas de aula para sua aprendizagem.

Nesse caderno de estudos, vocês terão textos que introduzem o tema que será estudado durante a semana
os quais poderão ajudá-los na construção de sua aprendizagem. Vale lembrar que os assuntos tratados
pela disciplina são amplos e complexos e, por isso, vocês poderão procurar informações em estudos
complementares e referências como apoio e sustentação para a aprendizagem efetiva dos conteúdos.

Não acumulem leituras! Elas são fundamentais para a compreensão da matéria. Em caso de dúvidas, busquem
a ajuda dos tutores e esclareçam suas dúvidas e inquietações. Temos a certeza de que essa disciplina será um
momento rico para sua formação.

Um bom trabalho a todos!

8 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


PLANO GERAL DA DISCIPLINA

Objetivos
Essa disciplina tem como objetivos de aprendizagem: desenvolver os conceitos e princípios básicos para o
ensino da língua portuguesa na educação infantil e nos cinco primeiros anos do Ensino Fundamental sob a
perspectiva da teoria e da prática. Além disso, trabalhar intensamente com textos e diferentes mídias, com
a finalidade de levar o aluno a conhecer os fundamentos e questões emergentes no contexto do ensino
da língua portuguesa. Despertar no aluno o espírito crítico em face às múltiplas concepções teóricas e
metodológicas em que constantemente se verá envolvido na prática diária enquanto professor.

Principais materiais
Como você irá aprender ao longo desse curso, a incorporação de diferentes mídias no material didático da
EaD, além de torná-lo mais atraente, incorpora diferentes linguagens/formas de comunicação no processo
de ensino e aprendizagem. Nessa unidade, além do texto impresso (em suas mãos), você assistirá a alguns
filmes e vídeos (disponíveis na Internet), fará leituras de hipertextos e verá algumas animações, além de
desenvolver atividades práticas de investigação.

Tempo de dedicação nesta disciplina


Para desenvolver as atividades da disciplina, recomendamos uma dedicação de, ao menos, 10 horas semanais,
distribuídas entre: leitura do material didático e atividades avaliativas.

Principais formas de avaliação


Participação em fóruns, chats, produção de textos, elaboração e registro de questões bem como a prova final
da disciplina.

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 9


ANOTAÇÕES

10 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


Módulo 1 – Linguagem e Oralidade

Conteúdos básicos do Módulo 1

1 - O nascimento da linguagem

2 - O efeito da linguagem no aparato cerebral humano e o desenvolvimento da Linguagem oral e


escrita

Objetivos do Módulo 1

Ao final do módulo o estudante deverá ser capaz de:

• Discutir a natureza da linguagem

Breve Introdução

É com muito prazer que iniciamos esse módulo, em que discutiremos a natureza da linguagem, sua importância
para o desenvolvimento humano e seu processo contínuo e dialético na prática cotidiana.

Como você sabe, esse curso é direcionado à prática do ensino da língua materna na Educação Básica. Para
tanto, se faz necessária uma breve introdução às discussões sobre a temática acima exposta, o que ajudará
vocês a compreenderem melhor as especificidades do ensino da língua na Educação Básica.

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 11


I – TEXTO BÁSICO

Linguagem e Oralidade

Prezado(a) aluno (a),

Antes de iniciar a leitura do manual pense e registre o que você entende por linguagem e estabeleça
sua relação com a constituição do homem.

Após a realização dos estudos propostos ao longo deste Módulo, volte a este registro e compare
o que escreveu com a sua aprendizagem. Com isso, você poderá acompanhar as mudanças de
conceitos e de informações que a disciplina proporcionará a você.

Nesse item, será discutida a importância da linguagem na história do desenvolvimento humano e,


posteriormente, no desenvolvimento da tecnologia da escrita. Para isto, será feito um percurso de leitura
na obra de Ernest Fischer A necessidade da Arte, publicado em 1971, absolutamente pertinente à discussão
introdutória a que se propõe a disciplina. O ensino da língua materna sempre parte de um conceito de
linguagem e, dependendo desse conceito, o processo de ensino e de aprendizagem se efetiva realmente
com eficácia ou não. É preciso conhecer a origem da linguagem e sua natureza para se ter critérios claros ao
escolher uma metodologia de ensino , subsidiada pelo conceito de linguagem.

À medida que a vida do homem se torna mais complexa e organizada em sociedade, as instituições que a
compõe também mudam. A escola não está fora desse contexto. Desde que o homem sentiu necessidade de
organizar uma instituição responsável por ensinar a tecnologia da escrita às novas gerações, a escola tem-se
apropriado de diferentes conceitos de linguagem e diferentes métodos de ensino da língua escrita.

Nesse percurso histórico, podemos reconhecer o esforço do homem para construir sua humanidade. O
homem anseia por ampliar, desenvolver e completar suas capacidades individuais. Segundo Fischer (1971,
p.12-13),
É claro que o homem quer ser mais do que ele mesmo. Quer ser um homem total. Não
basta ser um indivíduo separado; além da parcialidade da sua vida individual, anseia
uma “plenitude” que sente e tenta alcançar, uma plenitude de vida que lhe é fraudada
pela individualidade e todas as suas limitações; uma plenitude na direção da qual se
orienta quando busca um mundo mais compreensível e mais justo, um mundo que tenha
significação. Rebela-se contra o ter de ser consumir no quadro da sua vida pessoal, dentro
das possibilidades transitórias e limitadas da sua exclusiva personalidade. Quer relacionar-
se a alguma coisa mais do que o “Eu”, alguma coisa que, sendo exterior a ele mesmo, não
deixe de ser-lhe essencial. O homem anseia por absorver o mundo circundante, integrá-lo a
si; anseia por estender pela ciência e pela tecnologia o seu “Eu” curioso e faminto de mundo
até as mais remotas constelações e até os mais profundos segredos do átomo; anseia por
unir na arte o seu “Eu” limitado com uma existência humana coletiva e por tornar social a
sua individualidade.

Esse desejo do homem em alcançar a plenitude é fruto de sua própria essência humana, em sua individualidade
é capaz de potencialmente incluir em si tudo aquilo que a humanidade foi e ainda é capaz de produzir. O
homem é um ser essencialmente social e se faz como homem no convívio com outros homens. A apropriação
da tecnologia da escrita contribui para que o homem chegue cada vez mais próximo de alcançar seu desejo
intrínseco. O “Eu curioso e faminto” que existe em cada criança que ocupa os bancos escolares está pronto
para apropriar-se do conhecimento produzido pela humanidade. É preciso saber se o conceito de linguagem
e os métodos de ensino da língua correspondem ao caráter essencialmente social do homem.

12 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


A “infância da humanidade” deveria encantar-se com o belo registro de uma informação. Era preciso
desvendar o teor das inscrições. Como as crianças pré-históricas olhavam para as inscrições em rochas? Qual
o efeito produzido no aparato cerebral daquele que se esforçava para entender a mensagem? Quem poderia
fazer a mediação entre o indivíduo e aquela representação de linguagem? Por que entender o sentido da
comunicação era importante para a vida social?

Estas indagações atravessam a curiosidade humana e há possíveis respostas, que podem ser compreendidas
de acordo com as áreas de conhecimento (Linguística, Antropologia, Sociolinguística, Arqueologia, dentre
outras). Assim essas perguntas e suas relativas respostas constituem apenas uma provocação reflexiva para
nos ajudar a compreender a natureza histórica da linguagem.

Figura 1: pinturas rupestres

Fonte: http://images.google.com.br/images?hl=pt-
BR&source=hp&q=desenhos+rupestre+cavernas+pr%C3%A9hist%C3%B3ricas&gbv=2&aq=f&oq=

Hoje, a humanidade já não está mais na infância, mas poderíamos dizer na “pré- adolescência” e, ainda
assim, o homem continua a sentir necessidade de apropriar-se do conhecimento construído historicamente
para ampliar seu Eu individual e coletivo.
Como acontece com a evolução do próprio mundo, a história da humanidade não é apenas
uma contraditória descontinuidade, mas também uma continuidade. Coisas antigas,
aparentemente há muito esquecidas, são preservadas dentro de nós, continuam a agir
dentro de nós [...] (FISCHER, 1971, p.17).

A “pré-adolescência da humanidade” encanta-se com os registros feitos diariamente nas lousas e cartilhas
de tantas escolas? Será mesmo necessário que a criança precise desvendar essas informações para ampliar
seu “Eu curioso e faminto” para integrar sua finitude na totalidade desejada? Quais as condições de sócio-
comunicabilidade, coerência e coesão que apresentam os textos ensinados em cartilhas programadas para
transmitir o conhecimento historicamente acumulado.

Figura 2: Capas de cartilhas

CARTILHA CAMINHO SUAVE

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 13


CARTILHA MÉTODO FÔNICO CARTILHA VAMOS SORRIR

Fonte: www.cori.unicamp.br/foruns/magis/evento12/CAGLIARI.

Será que estas propostas de aprendizagem da linguagem escrita presentes nestes exemplos de cartilhas
contemplam a natureza da linguagem? Para esta questão podemos responder claramente que NÃO.

Essas reflexões nos levam a pensar sobre a origem da linguagem, conseqüentemente na origem do homem
e sobre a função da escrita na sociedade. Por que o homem sentiu necessidade de se comunicar? Quando
o homem tornou-se homem? “Coisas antigas, aparentemente há muito esquecidas, são preservadas dentro
de nós, continuam a agir dentro de nós [...]” (FISCHER, 1971, p. 17).

O homem não é um ser acabado, mas está em constante processo de evolução como tudo o que é da
natureza. Entretanto, sua evolução e seu processo de humanização estão intimamente ligados à sua relação
com a natureza e com outros homens.

Como você deve ter percebido no decorrer do texto temos a intenção de discutir o nascimento da
linguagem humana, porque é a linguagem escrita o principal conteúdo a ser ensinado na disciplina
Língua Portuguesa. Entretanto, antes de prosseguir a leitura, assista aos vídeos indicados a seguir.
Ao assisti-lo, você fará uma breve recordação de tudo que já estudou sobre a evolução da espécie
humana. O conhecimento adquirido possibilitará um maior diálogo com as ideias de Fischer.

History Channel - Do Macaco ao Homem

Parte 1

http://www.youtube.com/watch?v=KjBZ9f-ix_8&feature=related

Parte 2

http://www.youtube.com/watch?v=ff6iGPFyGRs&feature=related

Parte 3

http://www.youtube.com/watch?v=4zfne4VdTZc&feature=related

Parte 4

http://www.youtube.com/watch?v=UA1IbnmkcXY&feature=related

14 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


Parte 5

http://www.youtube.com/watch?v=z-waPZ_-HjE&feature=related

Parte 6

http://www.youtube.com/watch?v=1EZw97NT9ok&feature=related

O ser pré-humano que se desenvolveu e se tornou humano só foi capaz de tal desenvolvimento porque possuía
um órgão especial, a mão, com a qual podia apanhar e segurar objetos. A mão é o órgão essencial da cultura,
o iniciador da humanização. Isso não quer dizer que tenha sido a mão sozinha que fez o homem: a natureza
(particularmente a natureza orgânica) não admite semelhantes simplificações, semelhantes seqüências
unilaterais de causa efeito. Um sistema de complexas relações – uma nova qualidade – resulta sempre do
estabelecimento de diversos efeitos recíprocos. O desenvolvimento de certos organismos biológicos trepados
nas árvores, em condições que favoreciam o aperfeiçoamento da visão em detrimento do sentido do olfato;
o encolhimento do focinho, facilitando uma mudança na disposição dos olhos; a emergência em que se
via essa criatura (então equipada com um senso de visão mais agudo e mais preciso) de olhar em todas as
direções, como também a postura ereta condicionada por tal situação; a libertação dos membros dianteiros
e o crescimento do cérebro, devidos a postura ereta do corpo; as mudanças na alimentação e diversas outras
circunstâncias, em conjunto, contribuíram para a criação das condições necessárias para que o homem se
tornasse homem. Porém, o órgão diretamente decisivo foi a mão. Já S. Tomás de Aquino estava ciente dessa
significação única da mão, esse organum organorum (órgãos dos órgãos) e expressou-o na sua definição do
homem: Habet homo ration em et manum (O homem possui razão e mão). E é verdade que foi a mão que
libertou a razão humana e produziu a consciência própria do homem. (FISCHER, 1971, p. 22-23).

O homem não nasce com a capacidade inata de fabricar ferramentas e usá-las, ele precisa aprender com
outros homens e por tentativas de ensaio e erro. Entretanto, o fabrico de ferramentas interfere nas relações
que se estabelecem no grupo social que as usam, podendo se estender para toda a humanidade, como a
tecnologia da escrita, o foco de atenção deste texto.

O processo de criação de uma ferramenta acontece inicialmente motivado por uma relação com a natureza.
O homem necessita realizar determinada tarefa que apenas com o potencial de seu próprio corpo não seria
possível. Sua imaginação passa a criar uma forma ideal para atingir o resultado desejado, e esse projeto
ideal toma forma na manipulação dos objetos da natureza para a criação da ferramenta que expressará
não apenas a habilidade manual do homem, mas seu desejo realizado. A natureza tem existência própria,
mas subordina-se ao desejo humano. O homem percebe que o objeto não precisa ser somente retirado da
natureza, mas produzido a partir dela.

Pensemos num exemplo já bastante utilizado por vários autores e também por Fischer: o animal que está
com fome, a fruta que está no alto e uma vara próxima ao local. Quando o animal fizer a dedução de que a
vara poderá ajudá-lo a obter a fruta, ou seja, que o instrumento vara fará cair o fruto da árvore “um novo
contato entre diferentes centros cerebrais se acha estabelecido” (FISCHER, 1971, p. 26). Na verdade, a vara
não faz surgir o propósito de pegar a fruta, é apenas um instrumento usado circunstancialmente para fazer o
alimento cair e saciar a fome do animal. Segundo o autor, os processos mentais vão se refinando quando o
movimento do pensamento for outro:

[...] aqui está a vara; onde estará a fruta que posso apanhar com ela?
Desse modo, a vara – o instrumento – torna-se o ponto de partida do processo; o meio serve
ao fim, que é colher a fruta. A vara já não é uma mera vara: algo de novo lhe foi magicamente
acionado: uma função. A função torna-se conteúdo essencial da vara. Assim, o instrumento

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 15


passa a ser examinado em função da sua maior ou menor eficiência no servir a um
determinado propósito e aparece a questão de se ele não pode ser melhorado, modificado,
para tornar-se mais útil mais eficiente. A experimentação espontânea – o “pensar com as
mãos” – que precede todo pensamento como tal, começa a ser gradualmente substituída
pela reflexão com um propósito. (FISCHER, 1971, p. 27).

Ao usar uma vez o instrumento para apanhar a fruta, o animal faz daquele objeto um “instrumento ocasional”,
mas deixa-o de lado após realizar a ação. Após repetições passa a perceber sua utilidade e assim armazena o
objeto para exercer a mesma função ou função parecida em outra ocasião.

Ao criar outro objeto parecido com o primeiro encontrado, o homem pré-histórico, não criava, imitava.
Só muito gradualmente o homem veio a se afastar do modelo natural. Usando o
instrumento, experimentando-o constantemente, começou muito vagarosamente torná-
lo eficiente. A eficiência é mais antiga do que o propósito; a mão é uma descoberta há
mais tempo que o cérebro. (Basta observar uma criança desfazendo um nó: ela não pensa,
limita-se a experimentar. Só paulatinamente, a partir da experiência das mãos, é que vem a
compreensão de como se fez o nó e do melhor modo de desfazê-lo.) (FISCHER, 1971, p. 29).

É na interação com o instrumento, que por sua vez possui uma carga histórico-cultural, que o homem
modifica seu pensamento e o próprio instrumento em uma ação dialética. Para esclarecer um pouco
mais o conceito de instrumento e sua importância no desenvolvimento do pensamento humano,
reflita sobre o processo de transformação que sofreu a máquina de escrever até surgimento do
computador. Só foi possível ao homem pensar no computador, porque antes pode manipular a
máquina de escrever. Ao utilizar-se dela é que o homem pensou na criação de um instrumento que
oferecesse recursos para além daqueles que esta última oferecia. Podemos dizer que o computador
é uma máquina de escrever superada, ou seja, nele ainda há resquícios e funções que havia no
instrumento anterior. Ao manipular o instrumento deixado pelas gerações anteriores o homem
“pensa com as mãos”.

O criar depende de olhar para experiências anteriores, o processo de criação não parte do nada. O homem
foi percebendo que não era preciso esperar apenas da natureza, ele poderia forçá-la a lhe oferecer o que
desejava e assim criar as condições para expressar aquilo que desejava. Essa nova realidade criada pelo
próprio homem exigia um sistema de comunicação muito mais amplo que os poucos sinais conhecidos pelo
mundo primitivo.
Os animais têm muito pouco a comunicar uns com os outros. A linguagem deles é primitiva:
um sistema rudimentar de sinais para o perigo, a atração sexual, etc. Somente no trabalho e
através do trabalho é que seres vivos passam a ter muito a dizer uns aos outros. A linguagem
surgiu juntamente com os instrumentos. (FISCHER, 1971, p.30).

Para o autor, quanto mais o homem acumula experiências, mais aprende a conhecer diferentes coisas em
seus diferentes aspectos, mais rica vai se tornando sua linguagem.

A linguagem, escrita ou oral, também será considerada um instrumento importantíssimo que surgiu pela
necessidade de comunicação que um grupo de homens tinha porque aprendiam a transformar a natureza
em instrumentos que os ajudavam em sua sobrevivência. No trabalho e pelo trabalho é que os homens
passaram a ter muito o que dizer uns para os outros. Com o acúmulo de experiências e conhecimento de
muitas coisas diferentes com aspectos diferentes, a linguagem devia tornar-se cada vez mais complexa para
expressar um conhecimento mais complexo. E assim, dialeticamente, foi “o homem tornando-se homem
juntamente com o trabalho e a linguagem, de modo que nem o homem, por seu lado, nem o trabalho ou
linguagem, por sua vez, vieram primeiro” (FISCHER, 1987, p.34).

16 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


Caso você tenha tempo e deseja ampliar seus conhecimentos assista ao filme Guerra do Fogo de
Jean-Jacques Annaud. Este filme mostra de forma muito interessante o aparecimento da linguagem
entre homens primitivos como também a relação da linguagem com os instrumentos.

Figura 3: Imagem do filme “Guerra do fogo”

Fonte: <http://espacoememoria.blogspot.com.br/2011/06/ha-dois-milhoes-de-anos-so-as-femeas.html>.

Assim, sem o trabalho, sem a experimentação dos instrumentos, jamais o homem poderia ter se desenvolvido
plenamente como homem, e a este conceito de homem, estão adicionados, como características humanas, a
abstração e a linguagem. A necessidade de comunicação é vital ao homem por sua própria natureza que está
em constante desenvolvimento. O homem continua criando instrumentos para satisfazer suas necessidades
que, ao mesmo tempo, impulsionam o desenvolvimento da linguagem e seus suportes de comunicação que
se refratam no próprio pensamento humano.

A ação de imitar um dado objeto repetidas vezes fez com que o homem pré-histórico abstraísse dos muitos
objetivos confeccionados a qualidade que era comum a todos eles. Ao copiar um machado, o homem estava
centrado na função que aquele objeto fabricado poderia ter. Era possível produzir um novo instrumento
igualmente ao primeiro. Nesse momento da história, o homem estava criando o conceito. Foi, então, possível
nomear as coisas da natureza, como por exemplo, uma cobra poderia ter o nome genérico de cobra, embora
nem todas as cobras tivessem a mesma aparência.
Avançando de uma semelhança a outra, o homem chegou a uma riqueza crescente
de abstrações. Começou a dar um nome singular a grupos inteiros de objetos conexos.
Era da natureza de tais abstrações que elas frequentemente (se bem que nem sempre)
exprimissem uma conexão ou relação real. Todos os instrumentos das diversas espécies
particulares – convém lembrar - provinham de um determinado instrumento do qual eram
cópias. O mesmo é verdadeiro para diversas outras abstrações: o lobo, a maçã, etc. A
natureza se reflete na descoberta de novas conexões. O cérebro já não reflete mais cada
instrumento como qualquer coisa única, já não reflete cada concha isoladamente, de vez e
que um signo se desenvolveu e abarca todos os instrumentos, todas as conchas, todos os
objetos e seres vivos da mesma espécie. Esse processo de concentração e classificação na
linguagem torna possível uma comunicação mais livre e mais eficiente no que concerne ao
mundo exterior, que cada homem partilha com os demais. (FISCHER, 1971, p. 38).

A criação dos signos tem grande importância para a forma de organização da uma comunidade primitiva,
porque tem a função específica de organizar a vida cotidiana. A coletividade compartilhava dos mesmos
signos que a remetiam às mesmas coisas.

Esclarecidos de que a linguagem nasce como um instrumento com uma função específica e determinada a
serviço das relações da vida em comunidade é necessário voltar à reflexão exposta no início desse item. O
conceito de linguagem utilizado na escola considera sua natureza histórico-cultural? O aluno aprende a se
comunicar na e para participar da vida social em sua comunidade? Compartilha o significado dos mesmos
signos que seu grupo social? O aluno interage plenamente com a linguagem escrita na sua integridade dos
usos sociais?

Ao adotar materiais didáticos, como livros-texto com os princípios das antigas cartilhas, que criam textos
artificiais para ensinar à criança a língua materna, a escola está caminhando na contramão do sucesso da
aprendizagem. O aluno poderá memorizar o código lingüístico, fazer transcrições de textos escritos, escrever
palavras, mas não terá de fato se apropriado do instrumento que a sociedade usa para efetivamente se
comunicar: os gêneros textuais.

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 17


II - SÍNTESE DO MÓDULO

Neste Módulo você estudou:

- Uma visão teórica sobre nascimento da linguagem

- O efeito da linguagem no aparato cerebral humano

III - REFERÊNCIAS

FISCHER, E. A necessidade da arte. Rio de Janeiro: Editora Guanabara, 1987.

A guerra do fogo (Le Guerre Du Feu). França/Canadá. Direção: Jean-Jacques Annaud, 1981. 100min.

Do macaco ao homem. The history channel. United States of America, 90min.

LEITURA COMPLEMENTAR

JOBIM E SOUZA. S. Infância e Linguagem – Bakhtin, Vigotsky e Benjamim. Campinas: São Paulo, 1995

18 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


Módulo 2 – Desenvolvimento da Linguagem Oral e Escrita

Conteúdos básicos do Módulo 2

1 - Concepção de linguagem e oralidade

2 - Natureza do discurso

3 - Desenvolvimento da linguagem oral e escrita

4 - Diferenças entre a linguagem oral e a escrita

Objetivos do módulo 2

Ao final do módulo o estudante deverá ser capaz de:

• Desenvolver conceitos e princípios básicos da linguagem


• Analisar particularidades da linguagem oral e escrita

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 19


I – TEXTO BÁSICO

Desenvolvimento da Linguagem Oral e Escrita

A linguagem possibilitou a realização da atividade humana de maneira inteligente. Descrições, transmissão


de informações, eficiência no trabalho contribuíram para que o homem pudesse exercer controle sobre a
natureza, mas também modificou radicalmente sua forma de pensar. Nesse item, vamos discutir sobre a
natureza do pensamento e da palavra e suas implicações para o desenvolvimento do homem, tomando como
base o capítulo 7 Pensamento e Palavra do livro “A construção do pensamento e da linguagem” escrito por Lev
S. Vigotski, pesquisador e psicólogo russo. Vale uma observação quanto à grafia do nome deste pesquisador:
não há uma padronização no Brasil. Assim, vamos adotar a grafia Vigotski e, nas citações, vamos respeitar a
forma apresentada na obra da citação.

O autor se contrapõe a algumas correntes da psicologia que afirmavam ser pensamento e palavra dois
elementos autônomos. O pensamento independe da palavra, porque, nessa visão, a palavra é só expressão
do pensamento. Ou seja, a palavra seria a tradução do pensamento para o mundo exterior. Questionando
a validade dessa teoria, Vigotski tentou argumentar o contrário: pensamento e palavra são elementos
diferentes, com propriedades diferentes, mas que se relacionam dialeticamente entre si, interferindo no
processo de significação de um e de outro.

Caro(a) aluno(a),

Vamos fazer um exercício de memória? Procure lembrar-se de situações em que construiu um dado
discurso falado ou escrito e que a forma como as palavras se agrupou não representou exatamente
aquilo que você pensou ou mesmo que queria dizer. Exemplos como este estão acontecendo a todo
o momento da vida de um falante.

Na escola isso aparece com maior freqüência. O estudante entrega para a professora um texto
escrito e recebe o texto com marcas de correções que demonstram a irregularidade na escrita, que
denotam que o pensamento e a escrita são processos distintos, e não, uma transposição linerar
entre o pensar e o escrever/falar. Continuemos a leitura do texto, atentos às diferenças existentes
entre pensamento e palavra.
Na tentativa de comprovar sua tese, Vigotski desenvolveu um estudo sobre o aspecto interior da palavra
e do pensamento, mesmo sabendo que a tarefa não seria fácil, porque a relação dialética entre palavra e
pensamento não se apresenta objetivamente. Então, recorreu a uma metodologia em que considera como
base de estudos o fluxo do movimento histórico, gerando assim um novo conceito para a psicologia: a
psicologia histórica. Ainda para explicar sua hipótese de que o pensamento e a palavra seriam “um processo
vivo de nascimento do pensamento na palavra” (VIGOTSKI, 2000, p. 384), e por esse caminho compreender
a natureza da consciência do homem, optou pelo recurso metodológico de desmembrar a unidade complexa
do pensamento em três outras unidades: a linguagem social, a linguagem egocêntrica e a linguagem interior.
Dessa forma, não estuda o pensamento e a palavra separadamente, decompondo-os em dois elementos
distintos como se fosse possível, mas em três modalidades pelas quais passam o pensamento e a palavra no
processo de desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Esse recurso é usado apenas para facilitar a
exposição de sua argumentação, porque para ele, pensamento e palavra apresentam raízes genéticas distintas
e interdependentes e se constituem no processo histórico de desenvolvimento da consciência humana.

Para exposição de sua teoria, destacou as relações entre as diferentes modalidades de linguagem e as
relações entre palavra, sentido e significado. Partiu de algumas premissas a respeito da relação pensamento
e palavra. Defendeu a tese de que a relação entre pensamento e palavra não é uma coisa “mas um processo,
é um movimento do pensamento à palavra e da palavra ao pensamento” (VIGOTSKI 2000, p. 409) e que
o “pensamento não se exprime na palavra, mas nela se realiza” (VIGOTSKI, 2000, p. 409). Afirmou que a
linguagem não espelha a estrutura do pensamento, nem serve como expressão de um pensamento acabado,
porque “ao transformar-se em linguagem, o pensamento se reestrutura e se modifica. O pensamento não se
expressa, mas se realiza na palavra” (VIGOTSKI, 2000, p. 412).

20 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


Vigotski destaca o valor que a palavra tem para o desenvolvimento do pensamento. Também
podemos lembrar-nos das discussões apresentadas no módulo I, em que destacamos a importância
da interação com outros indivíduos para a constituição da linguagem. Tomando este dois aspectos
como relevantes, vamos assistir a um fragmento do filme O enigma de Kaspar Hauser para refletir
quais seriam as implicações para o desenvolvimento do ser humana quando este é privado das
relações de interação social. Se puder, assista ao filme na integra, pois seu conteúdo ampliará sua
reflexão a cerca do tema que estamos discutindo neste módulo.

O enigma de Kasper Hauser: Momentos de comunicação. Disponível em: http://www.youtube.


com/watch?v=ys-9kynNDDM

Vigotski exemplifica essas afirmações dizendo que inicialmente a criança não faz a diferenciação entre
significado verbal e objeto ou entre a forma sonora, mas essa capacidade acaba ocorrendo com o
desenvolvimento e o passar dos anos. Tomou a criança como sujeito para investigar essa relação entre
pensamento e palavra, considerando como referência a linguagem egocêntrica, como Piaget já havia
feito. Baseando-se em estudos piagetianos assumiu a mesma denominação da categoria a ser estudada,
linguagem egocêntrica, mas se contrapôs à descrição da estrutura, da função e do percurso dessa linguagem
apresentados por Piaget.

Para ele, a linguagem egocêntrica seria uma linguagem de transição entre a linguagem social e a constituição
da linguagem interior. Assim, a linguagem egocêntrica não desapareceria na idade escolar, como pensava
Piaget, mas se transformaria em linguagem interior, que para Vigotski seria “uma formação particular por sua
natureza psicológica, uma modalidade específica de linguagem dotada de particularidades absolutamente
específicas e situada numa relação complexa com as outras modalidades de linguagem” (VIGOTSKI, 2000, p.
425).

Para Vigotski, a linguagem egocêntrica seria uma linguagem interior por sua função psicológica e linguagem
exterior, por sua estrutura. A linguagem interior constituída pela linguagem egocêntrica tem algumas
peculiaridades, em razão de sua função, como a de ser fragmentada, abreviada e predicativa, isto é, constituída
basicamente por predicados e não por sujeitos em enunciações sintáticas, diferentemente do que ocorre
com a linguagem escrita. A linguagem da fala é expandida e a linguagem do pensamento é entrecortada.
Há uma interação entre palavra e pensamento e não é possível o pensamento se exprimir em palavras. O
pensamento se constitui por uma sintaxe diferente da palavra. A linguagem interior opera com a semântica
da fala.

As relações entre palavra, sentido e significado discutidas por Vigotski têm apoio nas ideias de um estudioso
citado por Vigotski: Paulham. As categorias sentido e significado não seriam a mesma coisa, porque
o sentido de uma palavra é a soma de todos os fatos psicológicos que ela desperta em nossa
consciência. Assim o sentido é sempre uma formação dinâmica, fluida, complexa, que tem
várias zonas de estabilidade variada. O significado é apenas uma dessas zonas do sentido
que a palavra adquire no contexto de algum discurso, e ademais, uma zona mais estável,
uniforme e exata (VIGOTSKI, 2000, p. 465).

Para o pesquisador russo, o pensamento é recriado em palavras; não coincide com a palavra, nem com seu
significado, mas a transição do pensamento para a palavra passa pelo significado e por trás do pensamento
haveria sempre necessidades pendores, interesses, afetos e emoções, porque “por trás do pensamento
existe uma tendência afetiva e volitiva” (VIGOTSKI, 2000, p. 479). Os motivos fazem nascer pensamentos e a
apropriação do conhecimento é subjetiva.

Para o autor, existe uma distinção, uma dissociação entre a palavra e o sentido que esta exprime. “O sentido
da palavra é inesgotável. A palavra só adquire sentido na frase, e a própria frase só adquire sentido no
contexto do parágrafo, o parágrafo no livro, o livro no contexto de toda a obra de um autor” (VIGOTSKYI
2000, p.466).

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 21


Por isso, para a inserção no mundo da razão gráfica é preciso muito mais que associar a fala à escrita. É
preciso desenvolver um raciocínio abstrato de alto grau intelectual para participar da comunidade leitora e
escritora. É desenvolvendo as capacidades superiores que nos humanizamos cada vez mais.

Não existe uma condição mental ideal para a aprendizagem da leitura e da escrita. É preciso que os alunos
tenham espaços durante a aula para estabelecerem a relação dialógica do conhecimento, e que o professor,
por sua vez, conduza a troca de experiências entre eles , e, fundamentalmente, que a escrita e a leitura sejam
ferramentas para a ampliação das experiências da cultura da escrita pelas crianças.

O desenvolvimento das funções psíquicas superiores está diretamente ligado ao desenvolvimento da


linguagem que, por sua, vez sofre processos de transição: de uma linguagem social para uma linguagem
interior. Funções psíquicas superiores e linguagem se influenciam mutuamente numa relação dialética. É no
fluxo desse movimento que o indivíduo constrói o discurso oral e escrito. Para essa discussão, tomaremos
como referência os capítulos 5,6 e 7 de Vigotski encontrados nas “Obras Escogidas” , volume II.

Neste momento do texto, vamos fazer uma pausa longa, mas muito importante para o entendimento
amplo do texto. Você assistirá seis partes de um vídeo apresentado pela pesquisadora Marta Khol
de Oliveira, para compreender os principais conceitos tratados neste texto. Voltaremos a eles ao
longo da semana para aprofundarmos algumas questões.

Parte 1

http://www.youtube.com/watch?v=2qnBE_8A6Fk

Parte 2

http://www.youtube.com/watch?v=TpFLOsoyKTA&feature=related

Parte 3

http://www.youtube.com/watch?v=apDADNFTUQA&feature=related

Parte 4

http://www.youtube.com/watch?v=QSOBXfcHbHI&feature=related

Parte 5

http://www.youtube.com/watch?v=mj2XBkwTVDw&feature=related

Parte 6

http://www.youtube.com/watch?v=EapR3rNTkAs&feature=related

Ao falar sobre o desenvolvimento das funções psíquicas superiores, Vigotski (1995) refuta duas teorias que
circulavam no meio acadêmico sobre a gênese das funções psíquicas superiores. Uma delas, o preformismo,
cujo biológico determina todo tipo de desenvolvimento; e a outra, o evolucionismo que pensa existir um
processo cumulativo de ações no desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Ambas as teorias, para
este pensador, não descrevem o que realmente acontece no desenvolvimento humano.

Para Vigotski (1995), o processo significativo na formação dessas funções e que explica sua gênese é o que
chamou de revolução. Esse processo implica a ideia de saltos, rupturas entre a fase natural e a social. Para

22 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


o autor, a capacidade da espécie humana em realizar transformações em diferentes contextos culturais
e históricos é possível graças ao desenvolvimento das funções superiores. Para ele, o funcionamento do
cérebro humano e sua plasticidade definem limites e possibilidades para o desenvolvimento humano.
Podemos dizer, então, a partir dessa ideia, que a criança nasce dotada de funções psicológicas elementares,
como os reflexos e a atenção involuntária, presentes em todos os animais mais desenvolvidos. No entanto,
com o aprendizado cultural, parte dessas funções básicas transforma-se em funções superiores, como a
consciência, o planejamento e a tomada de decisão, características exclusivas do homem. Com as próprias
palavras do autor, esse processo ocorre “não porque a etapa velha desaparece quando nasce uma nova, mas
é superada pela nova, é dialeticamente negada por ela, se transfere a ela e existe nela.” (VIGOTSKI, 1995,
p.145)

As funções psicológicas superiores são construídas ao longo da história social do homem, em sua relação
com o mundo. Desse modo, as funções psicológicas superiores referem-se a processos voluntários, como
a relação que o bebê estabelece com sua mãe (o outro) desde seus primeiros dias de vida. Toda função
psíquica superior passa por uma etapa externa de desenvolvimento porque a função, em princípio, é social.
O elemento que possibilita o aparecimento das funções psíquicas superiores, o elo entre o individual e o
social é a linguagem. Segundo esse autor,
Cabe dizer, em geral, que as relações entre as funções psíquicas superiores foram, no tempo,
relações reais entre os homens. Relaciono-me comigo como as pessoas se relacionam
comigo. Da mesma maneira que o pensamento verbal equivale a transferir a linguagem para
o interior do indivíduo, da mesma maneira que a reflexão é a internalização da discussão,
assim também psiquicamente a função da palavra, segundo Janet, somente pode explicar-
se se recorrermos a um sistema mais amplo que o próprio homem. A psicologia primária
das funções da palavra é uma função social e se quisermos saber como funciona a palavra
na conduta do indivíduo, devemos analisar, antes de tudo, qual terá sido sua função anterior
no comportamento social dos homens. (VYGOTSKI, 1995, p.147).

A linguagem, como sistema de símbolos, tem uma função inicialmente comunicativa, sendo um meio de
expressão, compreensão e comunicação social. Essa linguagem sofre uma transição: de uma linguagem social
passa para uma linguagem interior. O sujeito internaliza aquilo que ouve e reorganiza através de uma função
psíquica interpessoal (processo social - para o outro) para o plano intrapessoal, (processo individual - para
si). Mas essa transição de signos verbais da comunicação não é uma simples transferência do signo externo
para o interno, porque o externo é reconstruído interiormente, originando um processo de significação novo
em relação ao significado inicialmente dado para interlocutor. Para Vigotski (1995), a internalização é um
processo importantíssimo, porque é nela que ocorre o processo de reconstrução daquilo que vem do externo.
Ou seja, através da internalização o indivíduo cria características particulares de existência social humana,
compartilhando com outros membros de seu grupo social o conhecimento que nasce da experiência comum
do grupo.

Segundo o autor, durante a pré-história da linguagem escrita, as crianças constroem os pressupostos que
permitirão o seu acesso à escrita, em três campos: a simulação de papéis (os jogos infantis), o desenho e as
formas primitivas não convencionais de escrita. O pensamento infantil evoluiria de uma etapa pré-linguística,
na qual a representação do conteúdo é global e não diferenciada, até a etapa linguística. A criança vai
desenvolvendo progressivamente sua fala egocêntrica (despreocupada com o outro) tornando-a apropriada
para planejar situações e resolver problemas. Isso acontece quando as atividades que a criança desenvolve se
tornam mais complexas. Ao lidar com objetos, representam a realidade e vão desenvolvendo seus processos
mentais. O desenvolvimento da linguagem na criança também ocorre em três etapas: a natural, quando a
criança atribui à palavra as propriedades do objeto; a externa, quando relaciona o objeto com uma abstração
e a interna, quando existir um nexo entre a palavra e o objeto. A última etapa é o pensamento propriamente
dito. A criança, ao falar consigo mesma, esboça as operações mais importantes que deve realizar. Finalmente,
passa da linguagem egocêntrica para a etapa seguinte: a linguagem interior, no autêntico sentido da palavra.

Diante dessas afirmações, um gesto indicativo de uma criança pode ser entendido apenas como um gesto
por si mesmo, mas quando a mãe interpreta esse gesto, ele passa ser para os outros e ao perceber que
seu gesto gerou a atenção da mãe para determinada situação, o gesto passa a ser para si, é o momento da
tomada de consciência, ou melhor, “passamos a ser nós mesmos pelos outros.” (VIGOTSKI, 1995, p.149)
Esse processo dialético é a síntese das três etapas. Tanto a linguagem oral como a escrita são compostas de
símbolos utilizados na comunicação humana e, ao serem internalizadas, criam novas formas de pensamento.
A linguagem escrita seria uma função psíquica superior, produto social, que tem uma história que é

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 23


reconstruída do ponto de vista psicológico. Apenas respeitando essas etapas é que o professor conseguirá
ter uma relação dialógica de comunicação com a criança.

Para Vigotski (1995) são essenciais para a atividade linguística as necessidades, as emoções e os interesses
do sujeito. O aluno terá dificuldades na aprendizagem da escrita quando não compreende o motivo dela. O
aluno deve compreender o objetivo da escrita, e as situações de aprendizagem deverão proporcionar isso a
ele para que a escrita seja encarada como uma atividade indispensável no meio social.

A função do professor como mediador do processo de aquisição do conhecimento da escrita é criar situações
que favoreçam o diálogo entre as crianças, é trabalhar com a escrita e a leitura na plenitude dos seus usos
sociais para que a criança aprenda a escrita como uma linguagem rica e complexa, fundamental para uma
visão crítica da vida social.

Figura 4: interações entre alunos em sala de aula.

Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:GYSD_5th_Training_Day2_Interaction.jpg

A contribuição da aprendizagem consiste, portanto, no fato de colocar à disposição do indivíduo um poderoso


instrumento: a língua. No processo de aquisição desse instrumento acontece a própria evolução da linguagem
e do indivíduo que, ao relacionar-se com a linguagem, ao mesmo tempo, opera com outras funções psíquicas,
ampliando sua cosmovisão e sua participação na sociedade de uma forma mais crítica e reflexiva.

II - SÍNTESE DO MÓDULO

Nesse Módulo você estudou:

O desenvolvimento da linguagem oral e escrita.

As diferenças entre a linguagem oral e a escrita.

24 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


III - REFERÊNCIAS

VIGOTSKI, L. S. A Construção do pensamento e da linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

__________. Obras escolhidas. V.II. Madrid: Visor, 1995.

LEITURAS COMPLEMENTARES

BONINI, A. Metodologias do ensino de produção textual: a perspectiva da enunciação e o papel da


Psicolinguística. Perspectiva – Revista do Centro de Ciências da Educação da UFSC, Florianópolis, v. 20, n.1,
p. 23-46, jan/jun. 2002.

CASTILHO, A. T. A língua falada no ensino de português. São Paulo: Contexto, 2000.

CHERVEL, A. História das disciplinas escolares: reflexões sobre um campo de pesquisa. In: Teoria & Educação,
2, 1990.

FREGONEZI, D. E. Ensino de língua portuguesa: reflexões. Londrina: Ed. UEL, 1996.

FURLANETTO, M. M. Produzindo textos: gêneros ou tipos? Perspectiva – Revista do Centro de Ciências da


Educação da UFSC, Florianópolis, v. 20, n.1, p. 77-104, jan/jun. 2002.

KATO, M. A. No Mundo da Escrita: uma perspectiva psicolinguística. São Paulo: Ática, 2ª ed. 1987.

KOCH, I. G.V. Interferência da oralidade na aquisição da escrita. In: Trabalhos em Linguística Aplicada.
Departamento de Linguística Aplicada do Instituto de Estudos da Linguagem da UNICAMP, 30, Campinas:
Editora da UNICAMP, 1997(a). p. 31-8.

MARCUSCHI, L. A. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. São Paulo: Cortez, 2001.

VIGOTSKY, L. S. A formação Social da Mente, Trad. José Cipolla Neto. 6 ed. S Paulo, Martins Fontes, 1998.

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 25


ANOTAÇÕES

26 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


Módulo 3 – Leitura: Concepções e Práticas

Conteúdos básicos do Módulo 3

1 - Natureza da leitura

2 - Informação visual e não visual

3 - Conhecimentos prévios e lingüísticos

4 - Maneiras de ensinar a ler

Objetivos do Módulo 3

Ao final do módulo o estudante deverá ser capaz de:

• Compreender a fundamentação teórica que norteará o desenvolvimento de situações de ensino


e de aprendizagem da leitura.

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 27


I – TEXTO BÁSICO

Leitura: concepções e práticas

Durante os anos de escolaridade pelos quais passamos no Ensino Fundamental, a maioria de nós não discutiu
as diferenças que existem entre os processos de ler e escrever. Se fizermos uma enquete com diversas pessoas
sobre as diferenças entre ler e escrever, teremos respostas diferentes e nelas poderemos perceber uma
crença muito comum “quem sabe escrever necessariamente sabe ler”. Acreditamos que esta crença surgiu
da ênfase dada apenas aos métodos de ensino da escrita,visto que dificilmente encontramos um professor
alfabetizador que pergunte, em um curso de formação continuada, sobre um método de ensino da leitura.
O foco de discussão está sempre voltado ao ensino da escrita, porque existe a suposição de que se a criança
aprender bem a escrever também aprenderá a ler.

Em muitas reuniões de pais e mestres, diante de queixas de que os alunos cometem muitos erros ortográficos
ao escrever, o professor sugere como atividade extra que os pais incentivem os filhos à leitura. Tomemos um
exemplo bastante bizarro, mas que nos fará pensar sobre o assunto: se uma criança passa anos de sua vida
aprendendo a andar de bicicleta, ao cair em uma piscina saberá nadar?

Vamos aqui neste módulo discutir exatamente a natureza do processo de ler, bastante diferente da natureza
do processo de escrever. Para cumprir esse propósito, a discussão será baseada em autores conceituados que
abordam o tema.

Ao utilizar a palavra leitura imediatamente pensamos no termo compreensão. Não há como falar de leitura
sem pensar na compreensão. Entretanto, é comum no momento da alfabetização que o professor trabalhe
a sonoridade das letras com os alunos para que ele produza a palavra escrita, distanciando da possibilidade
de compreensão da palavra.

Caro(a) aluno (a),

Comumente, a escola cria situações didáticas para o ensino da língua escrita que não representam
a prática social da linguagem, conforme chamamos atenção no Módulo 1.

A maioria dos livros para a alfabetização seguem os princípios das antigas cartilhas, trabalhando
com textos que apresentam um grande número de palavras de uma mesma família silábica. As
crianças não encontram sentido nessa proposta de atividade de ler e escrever e, em consequência,
não se apropriam do saber transmitido.

Perante essa metodologia reducionista, os alunos podem até pronunciar bem as palavras escritas, mas ao
terminarem a leitura não compreendem o que leram isto ocorre porque apenas oralizaram o texto que
estava diante dos olhos. Processo parecido acontece em relação à locução, o momento em que o leitor faz a
leitura para o outro, em voz alta, mas que ao fazer isso emprega todos os seus esforços em pronunciar bem
as palavras com a devida entonação centrando o foco de sua atenção nas informações visuais do texto. E, ao
término da leitura em voz alta, não consegue dizer o que leu, ou seja, o aluno decodificou o texto, mas não
o compreendeu.

Segundo Smith (1989), é preciso tomar como premissa que antes de tudo temos muita informação em
nossa mente que nos permite atribuir sentidos ao mundo. E sendo assim, considera que para o ato de ler
precisamos de duas informações a visual e a não-visual.

Uma vez que

28 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


O cérebro não é como uma biblioteca, onde fatos e procedimentos úteis estão guardados
sob títulos apropriados para possível futura utilização. E, certamente, o cérebro humano não
é como um banco, onde guardamos pedaços de informações depositadas por professores
e livros. Em vez disso, o sistema de conhecimento, em nossas cabeças, é organizado em um
modelo de trabalho intricado e internamente consistente do mundo, construído através de
nossas interações com o mundo e integrado em um todo coerente. Sabemos bem mais do
que jamais nos ensinaram. (SMITH, 1989, p.22).

Para Smith (1989), a compreensão é o modo pelo qual aprendemos. Aprender a ler é primeiramente
“compreender a leitura”. Cabe ao professor ampliar os conhecimentos de mundo e enciclopédicos do aluno
para que ele possa, em contato com as informações visuais do texto, ou melhor, as marcas impressas no
papel ou os pontos de luz na tela, estabelecer relações com aquilo que já existe em sua memória para
conseguir atribuir sentido àquilo que está lendo.

Sempre damos demasiado crédito aos olhos por enxergarem. Seu papel na leitura é frequentemente
supervalorizado. Os olhos não veem, absolutamente, nada, em um sentido literal. Os olhos veem a partir de
um contexto orientado pelas experiências e aprendizagens do indivíduo.

Caro(a) aluno (a),

Observe a imagem abaixo. O que você percebeu? A moça ou a velha? Ou nenhuma das duas imagens?
Olhe novamente! Você verá a moça ou a velha. Isto mostra que a partir de uma informação prévia,
seu olhar consegue ver o que foi indicado. E é assim com a leitura: é necessário recorrermos as
informações que temos na mente para ler o texto. Agora, tente ver ao mesmo tempo o perfil da
moça e da velha. Não conseguiu? A verruga do nariz da velha é a ponta do nariz da moça! Você não
conseguirá visualizar as duas imagens ao mesmo tempo, pois seu cérebro precisa, ao menos, de
uma fração de segundo para focar a atenção em uma imagem e outra.

Figura 5: ilusão de ótica: jovem e bruxa.

Fonte: http://www.ophtasurf.com/en/illusionartp1.htm

A partir desse exercício com a imagem acima, podemos dizer que os olhos observam, são dispositivos para a
coleta de informações para o cérebro, amplamente sobre direção deste; o cérebro determina o que e como
vemos. As decisões perceptivas do cérebro estão baseadas apenas em uma parte na informação colhida
pelos olhos, imensamente aumentadas pelo conhecimento que o cérebro possui. Há algumas características
do funcionamento olhos-cérebro que exercem uma importância crítica para a leitura.

Para ser específico, três aspectos do sistema visual que devem ser considerados:

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 29


1. O cérebro não vê tudo o que está na frente dos olhos.

2. O cérebro não vê qualquer coisa que esteja na frente dos olhos imediatamente.

3. O cérebro não recebe informações continuamente.

Essas três considerações em interação levam a três importantes implicações para a leitura, e, assim, para o
aprendizado desta:

1. A leitura deve ser rápida.

2. A leitura deve ser seletiva.

3. A leitura depende daquilo que o leitor já sabe. (SMITH, 1989, p.84).

Você começa a perceber que falamos em dois lados da leitura. É claro que não podemos ler no escuro,
precisamos de luz para enxergar. Essa informação que o cérebro recebe pelos olhos é o que Smith (1989)
chama de informação visual, simples de entender, ao apagarmos as luzes ela desaparece. Pois bem, essa
informação é necessária para a realização da leitura, mas é apenas parte dela e, portanto, não é suficiente.
Isso também pode ser simples de entender. Seus olhos podem estar em perfeitas condições, o ambiente
poderá oferecer claridade suficiente para que você visualize as marcas gráficas do texto, e ainda assim, você
pode não compreender o que leu se o texto fala sobre um assunto do qual não tenha nenhuma informação
prévia, como, por exemplo, calculo diferencial ou física quântica, se nunca recebeu informações a respeito
desses assuntos. Já o outro lado da leitura é chamado por Smith (1989) de informação não-visual, ou seja,
o conhecimento prévio, construído pelas múltiplas experiências e informações aprendidas pelo indivíduo, a
partir dos ensinamentos sociais, e no caso da escola, pelo ensino do professor. A leitura é fruto da relação
entre informação visual e informação não-visual. Segundo Smith (1989, p.86), “a leitura sempre envolve uma
combinação de informação visual e não-visual”.

A visão tradicional da escola, ao longo do tempo, tem valorizado a fonologia e a visualização das letras com
a crença de que a percepção disso garantiria a aprendizagem da leitura. No entanto, segundo Smith (1999),
a excessiva atenção voltada a esses aspectos formaria apenas alunos decodificadores, mas não leitores.
A concentração oferecida à sonoridade dos símbolos impediria uma visão mais profunda, a do contexto.
Para ele, muitas das práticas utilizadas pelos professores em sala de aula são limitadoras e produtoras
de uma visão túnel que, segundo Smith (1999), corresponde a uma visão restrita a uma pequena área
do texto, desvinculada do sentido. Também encontramos questões semelhantes apontadas por Vigotski
(1995), quando faz referência a dois tipos de leitura: a silenciosa e a em voz alta. Para ele, o estudo sobre
como ocorre o processo de leitura é importante, porque, ao se apropriar da linguagem escrita, as crianças
elevam o desenvolvimento cultural. Por isso, a forma de ler um material escrito pode fazer diferença no
desenvolvimento do raciocínio das crianças. Segundo esse autor russo,
O estudo da leitura demonstra que a diferença do ensino antigo que cultivava a leitura em
voz alta, a silenciosa é socialmente a forma mais importante da linguagem escrita e possui,
além disso, duas vantagens importantes. Já ao final do primeiro ano de aprendizagem, a
leitura silenciosa supera a que se faz em voz alta no número de fixações dinâmicas dos olhos
nas linhas. Por conseguinte, o próprio processo de movimento dos olhos e a percepção das
letras se aligeiram durante a leitura silenciosa, o caráter do movimento se faz mais ritmado
e são menos freqüentes os movimentos de retorno dos olhos. A vocalização dos símbolos
visuais dificulta a leitura, as reações verbais atrasam a percepção, a travam, fracionam a
atenção. Por estranho que possa parecer, não somente o próprio processo da leitura, mas
também a compreensão é superior quando se lê silenciosamente. [...] Durante a leitura em
voz alta tem lugar um intervalo visual, no qual os olhos se antecipam à voz e se sincronizam
com ela. Se durante a leitura fixamos o lugar onde se pousam os olhos e o som que se
emite em um momento dado, obteremos esse intervalo sonoro visual. As investigações
demonstram que o intervalo se incrementa gradualmente, que um bom leitor tem um
intervalo sonoro-visual maior, que a velocidade da leitura e o intervalo crescem juntos.
Vemos, portanto, que o símbolo visual se vai liberando cada vez mais do símbolo verbal.
(VYGOTSKI, 1995, p. 198).

Normalmente, os professores esperam um domínio precoce da relação grafia-som por parte do aluno para
considerá-lo leitor. Reforçam a leitura perfeita de cada palavra, garantindo que a fonologia seja aprendida.

30 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


Quando o aluno apresenta erros de pronúncia durante a leitura, são corrigidos imediatamente. Segundo
Smith (1999), ao promoverem a leitura, os professores, ao contrário das atitudes acima citadas, deveriam
estimular a adivinhação, as previsões; deveriam fomentar conhecimentos sobre a linguagem escrita, levantar
hipóteses que gerem constantes reflexões, fazer comparações a partir do conhecimento prévio dos alunos,
dando-lhes assim, a chance de aprenderem, visto que, para Smith (1999), a ênfase deve ser dada ao significado
da linguagem escrita que não se encontra em símbolos impressos, mas no conjunto de informações prévias
que cada leitor possui. A informação visual não garante a leitura, apenas acessa conexões cerebrais que
constituem a compreensão, portanto, a leitura.

Fixar atenção na oralidade ou no sentido? Como entender o processo da compreensão durante a leitura?
Vigotski (1995, p.199) responderia,
Para nós está claro que a compreensão não consiste em que se formem imagens em nossas
mentes de todos os objetos mencionados em cada frase lida. A compreensão não se reduz
à reprodução figurativa do objeto e nem sequer à do nome que corresponde à palavra
fônica; consiste sim no manejo do próprio signo, em referi-lo ao significado, ao rápido
deslocamento da atenção e a separação organizada de vários pontos que passam a ocupar
o centro de nossa atenção. [...] o processo que se define como compreensão habitual
consiste em estabelecer relações, em saber destacar o importante e passar dos elementos
isolados para o sentido do todo. (VYGOTSKI, 1995, p. 199).

Caro(a) aluno (a),

Leia os dois textos a seguir. Em um deles você encontrará números no lugar de letras e no outro
letras invertidas, mesmo assim você fará tranquilamente a leitura dos textos. Por que isso acontece?
Porque o foco não está somente nas marcas gráficas, nas letras, mas no contexto, no sentido do
discurso, portanto, ler é compreender e não decodificar letras, sílabas, palavras.

Figura 6: Texto com palavras trocadas.

Fonte: http://fabioduarte.com.br/desafios.html

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 31


Figura 7: Letras trocadas por números

Fonte: http://fabioduarte.com.br/desafios.html

Para o autor russo, a leitura é um processo dialógico de atribuição de sentidos. O leitor se apropria do texto
quando toma consciência do significado das palavras do autor. Mas,
para compreender a linguagem do outro (representada também pelo texto escrito) nunca
é suficiente compreender as palavras, é necessário compreender o pensamento do
interlocutor. Inclusive se a compreensão do pensamento, se não alcança o motivo, a causa
da expressão do pensamento, é uma compreensão incompleta (VYGOTSKI, 1991, p. 343).

Como garantir uma compreensão completa? Quais atitudes conduziriam o aluno a efetivamente compreender
a razão gráfica? Segundo Smith (1989), os leitores mais fluentes usam algumas estratégias de leitura
diferentes daquelas ensinadas na escola. Ao encontrarem uma palavra que não reconhecem, saltam por
cima dela. Saltar uma palavra é uma estratégia razoável, já que não é necessário compreendermos cada
palavra para entendermos o contexto. Outra estratégia comumente usada pelos bons leitores é a de acionar
o conhecimento prévio antes de ler o material em questão, e ainda percorrendo um caminho próprio como,
por exemplo, ler o último capítulo antes de ter chegado ao final do livro. Essas estratégias parecem ser tudo
aquilo que a escola não permite que os alunos façam, porque reconhecem essa prática como prejudicial à
compreensão.

Quando falamos em estratégias de leitura, não estamos nos referindo a procedimentos estabelecidos com
regras específicas a conteúdos concretos. Segundo Solé (1998), a estratégia, assim como o procedimento, que
também denominamos como regra, destreza, técnica, método ou habilidade, ajudam a “regular a atividade
das pessoas, à medida que sua aplicação permite selecionar, avaliar, persistir ou abandonar determinadas
ações para conseguir a meta a que nos propomos” (VALLS apud SOLÉ, 1998, p.69), quando envolvidos com a
leitura. O que a diferencia dos procedimentos
é o fato de que não detalham ou prescrevem totalmente o curso de uma ação; o mesmo autor
indica acertadamente que as estratégias são suspeitas, inteligentes, embora arriscadas,
sobre o caminho mais adequado que devemos seguir. Sua potencialidade reside justamente
nisso, no fato de serem independentes de um âmbito particular e poderem se generalizar
[...] Um componente essencial das estratégias é o fato de que envolvem autodireção – a
existência de um objetivo e a consciência de que este objetivo existe – e autocontrole,
isto é, a supervisão e avaliação do próprio comportamento em função dos objetivos que o
guiam e da responsabilidade de modificá-lo em caso de necessidade [...] As estratégias de
compreensão leitora são procedimentos de caráter elevado, que envolvem a presença de
objetivos a serem realizados, o planejamento das ações que desencadeiam para atingi-los,
assim como sua avaliação e possível mudança (SOLÉ, 1998, p.69-70).

A estratégia é utilizada de forma inconsciente pelo leitor. Ao entrarmos em contato com informações visuais e

32 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


essas conectarem informações não visuais, que nos apropriamos ao longo do tempo, então compreendemos
aquilo que lemos à medida que necessitamos aprender ou resolver dúvidas. Segundo Arena (2003), não
lemos por hábito, gosto ou prazer, mas por necessidades que são geradas a partir das relações sociais entre
os indivíduos. Para que a compreensão aconteça, o leitor deve se fazer perguntas e ter respostas como
condições necessárias para o entendimento. Teberosky (2003, p.28-29) aponta a necessidade de o leitor
adotar um pensamento estratégico como necessário para a elaboração do significado durante o processo
de leitura. Atitudes como compreender o propósito de leitura; colocar na leitura seus interesses e suas
motivações, assim como seus conhecimentos prévios; focalizar aquilo que é importante; avaliar a consistência
interna do texto, sua adequação ao conhecimento prévio e o grau em que responde às expectativas geradas;
comprovar em que medida vai compreendendo o texto mediante a recapitulação, a revisão e a indagação;
elaborar e tentar inferências de diferentes tipos, como interpretações, hipótese, antecipações e conclusões
são possíveis de serem aprendidas. O aluno, na relação com o parceiro mais experiente, age testando essas
estratégias e alcançando cada vez mais sua autonomia de leitor. Na leitura,
não existe uma correlação clara e definida para o ensino tão identificável como acontecia
com os modelos anteriores. As propostas desse modelo que podem ser consideradas
tributárias partem de uma visão de aproximação da leitura mediante a combinação de
análise e síntese, que inclui o ensino explícito da decifração em contextos significativos,
e admitem que é preciso continuar ensinando estratégias de leitura mesmo depois que o
estudante aprendeu a ler (TEBEROSKY, 2003, p.24-25).

Nessa perspectiva, não formamos o leitor pronto no final da escolaridade exigida, mas sim um leitor com
uma atividade cognitiva complexa capaz de se posicionar de forma ativa diante de um novo texto. Durante a
leitura se estabelece uma relação dialógica com o outro, o autor.
Caro (a) aluno (a),

Algumas estratégias que empregamos ao ler nos foram ensinadas pela escola. Entretanto,
elas não correspondem aos conceitos que estamos estudando aqui neste Módulo. Muitos de nós,
aprendemos na escola, que temos que parar a leitura de um texto para procurar, no dicionário, o
significado de uma palavra desconhecida. Entretanto, este procedimento é inadequado por quebrar
o fluxo da busca de compreensão da leitura, pois precisamos conhecer o texto em sua totalidade
e no processo i r atribuíndo sentido a qualquer que seja a palavra (conhecida ou não). A melhor
estratégia seria marcar com o lápis a palavra desconhecida e ao final da leitura, se ainda for preciso,
recorrer ao dicionário.

Veja os 10 direitos do leitor apresentados por Daniel Pennac, escritor francês:

1. O direito de não ler.


2. O direito de saltar páginas.
3. O direito de não acabar um livro.
4. O direito de reler.
5. O direito de ler não importa o quê.
6. O direito de amar os “heróis” dos romances.
7. O direito de ler não importa onde.
8. O direito de saltar de livro em livro.
9. O direito de ler em voz alta.
10. O direito de não falar do que se leu.

• Será que nossos antigos professores permitiriam essa ousadia de saltar páginas de um livro?
• E você, concorda com Daniel Pennac? Com Smith?
• Você nunca saltou páginas?
• Nunca leu o final de um livro quando ainda estava em sua metade?

Pense e reflita sobre isso!

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 33


Entendemos, a partir de Bakhtin/Volochínov, que linguagem ocorre pela dialogicidade da interação verbal
seja ela oral ou escrita, e deve-se ressaltar que a natureza dessas duas modalidades é diferente. Na fala, há
uma relação direta com o outro, possibilitando uma troca imediata, pela qual os sujeitos constroem juntos a
interação verbal. Como afirma Bakhtin, “só me torno consciente de mim, só me torno eu mesmo ao me revelar
ao outro, através do outro e com a ajuda dele. Os atos mais importantes, constitutivos da consciência em si,
determinam-se por meio da relação com a outra consciência (com um ‘tu’)” (BAKHTIN, apud FOUCAMBERT,
1998, p. 46). Mas, essa relação de comunicação pela fala tem caráter efêmero, existente apenas no momento
em que as palavras tornam o pensamento realidade. Já o diálogo pela escrita permite outras operações,
porque está fora da experiência direta. Segundo Foucambert (1998, p. 46-47),
ao contrário do oral, a escrita não é permutada no instante efêmero, mas na permanência do
espaço. Dá-se tudo de uma vez, portanto tudo deve ser concebido para ser apresentado de
uma só vez. Ou, melhor dizendo, se o que se escreve no instante coloca em questão aquilo
que o procede, então aquilo que o procede deve ser transformado para estabelecer uma
coerência. A escrita não é o terreno do pensamento que se cria, mas do pensamento que
experimenta a si mesmo em sua unidade. E essa diferença nasce das restrições inerentes ao
instrumento no que ele tem de mais material: o oral dá-se no tempo; a escrita, no espaço.

A escrita não é correspondência da fala, ela possui outra dimensão. Portanto, a concepção de leitura que
valoriza a fonologia não está apontando a trilha certa para se chegar à compreensão. A nossa proposta segue
outra direção, ou seja, ler não é sonorizar a palavra e sim compreendê-la na interação do discurso.

“ PORTUGUÊS É FÁCIL DE APRENDER PORQUE É UMA LÍNGUA QUE SE ESCREVE EXATAMENTE


COMO SE FALA.”

Pois é. U purtuguêis é muinto fáciu di aprender, purqui é uma língua qui a genti iscrevi ixatamenti cumu
si fala. Num é cumu inglêis qui dá até vontadi di ri quandu a genti discobri cumu é qui si iscrevi algumas
palavras. Im purtuguêis não. É só prestátenção. U alemão pur exemplu. Qué coisa mais doida? Num
bate nada cum nada. Até nu espanhol qui é parecidu, si iscrevi muito diferenti. Qui bom qui a minha
língua é u purtuguêis. Quem soube fala sabi iscrevê.

Agora, falando sério, a nossa língua até que pode ser das mais incongruentes. Basta observar.

Comentário de Jô Soares para a revista Veja em 28/nov./1990. p.19.

Podemos observar a partir do texto de Jô Soares, representando a fala, que é um equívoco a ideia que a
escrita representa diretamente a fala.

Para trilhar uma proposta de leitura condizente aos princípios já apresentados, podemos adotar algumas
medidas pedagógicas que favorecem o contato do aluno com o mundo gráfico por meio dos diversos gêneros
textuais, tomando o cuidado de garantir que a criança, o futuro leitor, tenha conhecimento prévio daquilo que
está sendo oferecido para leitura, pois a pouca familiaridade com o assunto pode acarretar a incompreensão.
Segundo Kleiman (2002), essa incompreensão, muitas vezes, deve- se às falhas em nosso conhecimento do
mundo ou no conhecimento formal que adquirimos ao longo da escolaridade. Para que a leitura aconteça, é
necessário que seja ativado em nossa mente todo o conhecimento relevante para o entendimento do texto a
ser lido. Muitas vezes, não temos as informações prévias, e ainda outras podem estar perdidas no fundo de
nossa memória. O problema se agrava quando os professores não as fornecem, nem ajudam a recuperá-las.

Para que se entenda melhor como o conhecimento de mundo facilita a compreensão, o texto citado abaixo,
por Kleiman, leva um leitor a experienciar a veracidade dessa tese:
[...] como gemas para financiá-lo, nosso herói desafiou valentemente todos os risos
desdenhosos que tentaram dissuadi-lo de seu plano. “Os olhos enganam” disse ele, “um ovo
e não uma mesa tipificam corretamente esse planeta inexplorado”. Então as três irmãs fortes
e resolutas saíram à procura de provas, abrindo caminho, às vezes através de imensidões
tranqüilas, mas amiúde através de picos e vales turbulentos. Os dias se tornaram semanas,
enquanto os indecisos espalhavam rumores apavorantes a respeito da beira. Finalmente,
sem saber de onde, criaturas aladas e bem vindas apareceram anunciando um sucesso
prodigioso. (KLEIMAN (2002, p. 21).

34 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


Durante a leitura desse pequeno texto podem ter surgido dúvidas para as quais não há elementos que ajudem
a ter certeza de que sua interpretação está correta. No entanto, se você, leitor, tiver a informação prévia do
título: A descoberta da América por Colombo, antes de lê-lo, dissipar-se-iam dúvidas porque, a partir dessa
informação as palavras do texto, que antes
apenas deixavam impressões, passam a ter significados precisos, porque os referentes
foram identificados: o herói é Colombo, o seu plano é viajar para o oeste tentando achar
uma rota para as Índias; trata-se do planeta Terra; as irmãs são as três caravelas de Colombo,
e os caminhos são aqueles da travessia marítima: os indecisos eram os marujos com medo
da beira do abismo que encontrariam no fim da viagem; as criaturas aladas eram pássaros
vindos da costa (KLEIMAN, 2002, p. 22).

Por meio desse exemplo dado por Kleiman (2002), vemo-nos forçados a deixar de lado a prática de leitura
que condiciona o aluno a valorizar a pronúncia dos sons como garantia de compreensão, pois as referências
necessárias à compreensão não estavam no próprio texto, mas fora dele. Nesse caso, no conhecimento
prévio formal do leitor sobre a História do Descobrimento da América.

Portanto, ensinar leitura a partir da abordagem aqui discutida, é criar oportunidades variadas que permitam
o desenvolvimento cognitivo dos alunos, ampliação de sua visão de mundo, abertura de novos horizontes, ou
seja, que permitam sua inserção no mundo da leitura. Tais condutas permitirão realmente que o aluno cresça
como um verdadeiro leitor, porque
as crianças se tornam leitores quando são engajadas em situações nas quais a linguagem
escrita é usada de maneira significativa, assim como elas aprendem a linguagem falada
quando estão em contato com pessoas que usam a fala de maneira significativa (SMITH,
1999, p. 6).

Nascemos em um mundo gráfico. Por isso, a iniciação à leitura deve começar no nascimento
atravessar toda a Vida.

Figura 8: Cena de bebê folheando um livro infantil.

Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Baby_with_book.jpg

É necessário que todo leitor tenha alguns recursos para garantir sua tarefa de leitura e inserir-se num mundo
gráfico. Aqui, apontamos três deles: 1) o conhecimento do sistema lingüístico, ou seja, saber codificar e
decodificar palavras dentro de uma convenção socialmente estabelecida; 2) apropriação do formato ou
dispositivo em que se encontram os diversos textos escritos, ou melhor, saber como um determinado gênero
é formatado no espaço da tela ou do papel, onde quer que esse ganhe vida. 3) O aspecto mais abrangente
seria o conhecimento de mundo que, na verdade, abrange os outros dois já citados, pois, simultaneamente,
no momento da leitura há que se ter elementos da vivência de mundo que é particular de cada leitor.

Estes apontamentos teóricos nos permitem compreender porque a leitura pode ser difícil para algumas
crianças, independentemente de sua capacidade real para a leitura. Isto significa que alguns alunos podem
não ter a informação não visual necessária ( conhecimento prévio) para a realização da leitura. Cabe, portanto,
ao professor, criar condições de aprendizagem relativa aos assuntos pertinentes aos gêneros textuais em
estudo, oferecendo assim, elementos fundamentais para a construção de conhecimento prévio pela criança,
forjando um leitor ativo, que intervêm no seu ato de ler, o que possibilitará a leitura em sua totalidade, a
partir das estratégias de ensino promovidas pelo professor.

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 35


II - SÍNTESE DO MÓDULO
Nesse Módulo você estudou:
• Natureza da leitura
• Informação visual e não visual
• Conhecimentos prévios e linguísticos
• Maneiras de se ensinar a ler

III - REFERÊNCIAS

ARENA, D. B. Nem hábito, nem gosto, nem prazer. In: MORTATTI, M. R. L. (Org.). Atuação de professores:
propostas para ação reflexiva no ensino fundamental. Araraquara: JM, 2003. p.53-61.

FOUCAMBERT, J. A criança, o professor e a leitura. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 2002.

SMITH, F. Leitura significativa. Porto Alegre: Artes Médicas, 1999.

__________. Compreendendo a leitura: uma análise psicolinguística da leitura e do aprender a ler. Porto
Alegre: Artes Médicas, 1989.

SOLÉ, I. Estratégias de leitura. 6ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.

TEBEROSKY, A. (Org.). Compreensão de leitura: a língua como procedimento. Porto Alegre: Artes Médicas,
2003.

VYGOTSKI, L.S. Obras escogidas II. Madrid: Visor, 1991.

__________. Obras escogidas III. Madrid: Visor, 1995.

36 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


Módulo 4 – Gêneros Textuais

Conteúdos básicos do Módulo 4

1 - Natureza discursiva dos gêneros textuais

2 - Implicações para a prática pedagógica

3 - Produção e organização do texto

Objetivos do Módulo 4

Ao final do módulo o estudante deverá ser capaz de:

• Compreender a natureza discursiva dos gêneros textuais e suas implicações para a prática
pedagógica
• Analisar o texto como espaço de interação entre leitor-autor a partir dos elementos articuladores
- gramática, ortografia, coerência e coesão textual.

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 37


I – TEXTO BÁSICO
Gêneros Textuais

Atualmente, podemos dizer que a grande maioria dos professores já não questiona mais a importância dos
gêneros textuais no processo de ensino da língua materna. Muitos registram em seus planejamentos anuais
esse conteúdo com o devido destaque que merece, entretanto, permanece a dificuldade em saber como
trabalhar com gêneros textuais em sala de aula. Segundo o nosso entendimento, isso acontece porque
ainda temos como conceito de língua aquela apresentada pelos manuais de ensino, como as cartilhas de
alfabetização que focam o ensino da língua na gramática, na fonologia. A proposta de levar os gêneros
textuais para aula com o objetivo de ensinar a escrita parte de outro conceito de língua e linguagem. Assim,
faremos um breve comentário sobre o gêneros textuais a partir de Bakhtin/Volochínov e outros autores que
compartilham a abordagem teórica dialógica do discurso, ou seja, que privilegia a linguagem (oral e escrita)
como interação verbal, num movimento dialógico continuo.

Bakhtin/Volochínov (1988) elaboram uma concepção dialógica da linguagem a partir de uma crítica radical
à outra corrente também de sua época, a concepção de língua de Saussure. Traz enorme contribuição para
pensar a Linguística sob uma perspectiva diferente daquela apresentada no tempo em que viveu. Insatisfeito
com os conceitos reinantes, principalmente os saussurianos, Bakhtin/Volochínov (1988) constroem sua
concepção de linguagem a partir de uma crítica radical às grandes correntes da Linguística, por considerar
que essas teorias não entendem a língua como um fenômeno social. As teorias linguísticas conhecidas até
então são agrupadas por ele em duas grandes correntes: o objetivismo abstrato, representado principalmente
pela obra de Saussure que reduz a linguagem a um sistema abstrato de formas, e o subjetivismo idealista
que a considera enunciação monológica isolada, representado em especial pelo pensamento de Humboldt.
Bakhtin/Volochínov (1988) submetem essas duas correntes a uma rigorosa crítica, por considerar que a
redução da linguagem a um sistema abstrato de formas ou à enunciação monológica isolada constitui um
obstáculo à apreensão da natureza real da linguagem como código ideológico. Esses autores priorizam que
na prática viva da língua, a consciência linguística do locutor e do receptor nada tem a ver
com o sistema abstrato de formas normativas, mas apenas com a linguagem no sentido de
conjunto dos contextos possíveis de uso de cada forma particular. [...] Na realidade, não
são palavras o que pronunciamos ou escutamos, mas verdades ou mentiras, coisas boas ou
más, importantes ou triviais, agradáveis ou desagradáveis etc. A palavra está carregada de
um conteúdo ou de um sentido ideológico ou vivencial. (BAKHTIN/VOLOCHÍNOV 1988,p.
95).

Caro(a) aluno(a),

Como foi o ensino da produção de texto quando você era criança? Hoje você se considera um
bom produtor de textos? Você considera que essa eficiência ou ineficiência foi desenvolvida pela
metodologia usada para lhe ensinar a escrever?

Faça uma breve pausa na leitura do texto e assista ao vídeo indicado abaixo para pensar sobre a
prática da produção de texto na escola que considera “a palavra carregada de um conteúdo ou de
um sentido ideológico ou vivencial”.
Este vídeo poderá trazer ideias para sua própria prática de futuro professor.
Projeto carta: http://www.youtube.com/watch?v=OJxMP_uvNzI

38 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


Segundo o autor, não se pode separar a linguagem de seu conteúdo ideológico ou vivencial, já que ela se
constitui pelo fenômeno social da interação verbal, realizada pela enunciação, resultante do diálogo, seja
esse de caráter oral ou escrito. O sentido do enunciado se dá pela compreensão ativa entre os sujeitos, ou
seja, é o efeito da interação dos interlocutores. Para Bakhtin/Volochínov (1988), todo enunciado tem um
destinatário, entendido como a segunda pessoa do diálogo. A atividade mental do sujeito e sua expressão
exterior se constituem tendo o social como referência, portanto, toda enunciação é socialmente dirigida. É
no fluxo da interação verbal que a palavra se transforma e ganha diferentes significados, de acordo com o
contexto em que surge. O conceito-chave da concepção de linguagem é a interação verbal, cuja realidade
fundamental é o seu caráter dialógico. A linguagem não pode ser vista como um sistema fechado, construído,
acabado, porque se assim fosse não haveria espaço para as pessoas desenvolverem a si próprias e ao mundo,
porque
os indivíduos não recebem a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente
da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que
sua consciência desperta e começa operar [...] Os sujeitos não “adquirem” a língua
materna; é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência.
(BAKHTIN/VOLOCHÍNOV, 1988, p. 108).

Por isso, a reflexão linguística bakhtiniana/Volochínova é uma abordagem histórica e viva da língua,
incompatível com a reflexão feita pela gramática tradicional que desconsidera a enunciação e o contexto em
que a linguagem ocorre para apoiar-se somente na enunciação isolada, fechada e monológica.

Encontramos, em levantamentos bibliográficos, muitos autores que se fundamentam em Bakhtin/Volochínov,


que revolucionou a forma de entender a língua e a linguagem. Um deles, Geraldi (1993) faz uma aproximação
da concepção de linguagem em Bakhtin/Volochínov. Para ele, a interação verbal é o lugar da produção da
linguagem e da evolução dos sujeitos porque se apropriam da linguagem ao usá-la “segundo suas necessidades
específicas do momento de interação, mas que o próprio processo interlocutivo, na atividade de linguagem
a cada vez a (re)constrói” (GERALDI, 1993, p.6). Na verdade, o sujeito se completa e se constrói em falas
inseridas em um contexto social e histórico. Sendo assim, não poderia ser a prática do ensino da leitura e da
escrita desvinculada do contexto real em que a criança vive, mas, segundo esse autor, é preciso considerar
três eixos importantes em relação a sua própria natureza: a historicidade da linguagem, o sujeito e suas
atividades linguísticas e o contexto social. Para ele, “é exercendo a linguagem que o aluno se prepara para
deduzir ele mesmo a teoria de suas leis”. (GERALDI, 1993, p.120).

Isso é mais comum do que imaginamos e acontece naturalmente no processo de aquisição da


linguagem. Pensemos na criança pequena que escuta em seu cotidiano frases como:

Eu brinquei... Eu comi.... Eu bebi.... Eu vendi....

Logo, ela deduz que deveria também dizer: Eu trazi.

Quando a criança faz este tipo de associação ela demonstra estar atenta a terminação dos verbos.
Ela percebe que existe certa regularidade para a construção das palavras e do discurso, mas isso só
é possível se ela estiver inserida no fluxo da linguagem.

Os autores da abordagem dialógica compreendem que a aprendizagem da criança no período escolar está
fundamentalmente ligada ao seu conhecimento de mundo, às suas experiências com a leitura e escrita,
desenvolvidas ao longo da Educação Infantil e das práticas sociais. Assim, pensar a leitura e a escrita como
processos de decodificação e codificação do código linguístico, implica um ensino voltado para as questões
de gramática normativa da língua, fortemente ainda presentes nas escolas, gerando apatia nos alunos, e até
mesmo rejeição pelo objeto de estudo – que é a língua portuguesa em seus múltiplos usos.

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 39


Ao contrário disso, Geraldi (1993) discute o ensino da língua como interação imediata e acessível de significados
e sentidos, pois sem essa interação haveria acesso restrito ao conhecimento, caminhando-se para o fracasso
na aprendizagem escolar. Segundo Geraldi (1993) uma das causas que levam a essa prática talvez seja a
concepção de ensino como um rol de tarefas estáticas com receitas pré-fabricadas e que se adequam a
diversas situações. Seguir as instruções de um manual do professor, dar aulas lidas, distribuir e corrigir folhas
de exercício e fazer planos rotineiros que sirvam de um ano para outro parece muito fácil e menos arriscado
do que elaborar propostas de trabalho que envolvam estimulação para a efetiva compreensão de textos. Essa
visão estreita de ensino implica práticas simplificadoras que não trazem bom resultado e, o que é pior, não
gera situações de leitura e escrita para o aluno. O aluno não se apropria da linguagem e não entra no fluxo
de transformação da linguagem e ao mesmo tempo do seu próprio processo de evolução intelectual.

Para Geraldi (1993), cada pessoa tem certo horizonte social definido que orienta a sua compreensão e a
coloca diante de seu interlocutor como uma forma de relacionamento. A função do professor é possibilitar
ao aluno esse relacionamento.

Sendo assim, quais atitudes conduziriam o aluno a efetivamente compreender a razão gráfica?

Como o professor poderia sistematizar o ensino da língua, sem que a tirasse de seu lugar natural, o fluxo das
interações verbais?

A pesquisadora francesa, Josette Jolibert (1994), organizou um livro publicado em dois volumes a partir
de uma pesquisa-ação realizada na França cujo foco está na formação de alunos leitores e produtores de
textos. Esse trabalho contribui para a reflexão a respeito das concepções do que é a leitura, a escrita e o seu
ensino na escola. A pesquisa-ação desenvolveu-se a partir de propostas de projetos de trabalho que fossem
significativos para as crianças. Com as próprias palavras da autora, o projeto é “pra valer”, as crianças são
envolvidas em situações que precisam ler e escrever para que o objetivo seja alcançado. Assim, para ter
um ratinho como mascote da turma será preciso antes conhecer as particularidades dessa espécie. Para a
autora, essa seria uma boa oportunidade para realizar a leitura de um texto informativo científico.

Voltemos às questões já estudadas, no Módulo 3, sobre a natureza da leitura que é um processo dialógico de
atribuição de sentidos. O leitor se apropria do texto quando toma consciência do significado das palavras do
autor, dialogando com ele. O mesmo acontece quando produzem textos para uma dada comunicação social
significativa utilizando a língua de uma maneira específica diferente do enunciador oral.

O projeto realizado por Jolibert (1994) e seus colaboradores mostrou que ao se ensinar a língua escrita a
partir de gêneros textuais diversos, vinculados à necessidade de buscar informações para uma situação real
de produção quer seja ela de leitura ou de escrita é possível e absolutamente eficaz.

Caro(a) aluno(a),

Sugerimos a leitura do livro Felpo Filva de Eva Funari para ampliarem a reflexão sobre gêneros
textuais.

É um livro para criança que conta a história do Felpo, um coelho poeta um pouco neurótico. Certo
dia, ele recebe uma carta de Charlô, uma fã que não concorda com seus poemas. Ele fica muito
indignado, por este motivo inicia-se uma troca de correspondências entre eles. Para contar essa
história o autor usa vários gêneros textuais como poema, fábula, carta, manual, receita e até
autobiografia. Essa variedade de discursos possibilita a reflexão sobre as várias funções da escrita.

40 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


Figura 9: Capa do livro “Felpo Filva”

Existem algumas medidas pedagógicas que favorecem esse contato do aluno com o mundo gráfico. Os projetos
de Jolibert (1994) apontam algumas sugestões. Nesse processo, há uma preocupação em se determinar os
objetivos de aprendizagem, durante a escolaridade obrigatória, para situarmos o que cada um construiu e o
que está sendo construído, abrangendo as competências do saber-fazer, os comportamentos relacionados
ao saber ser e os conhecimentos dos saberes, todos de grande importância quando se trabalha a produção
de texto.

Jolibert (1994) apresenta o fato da criança ter que construir experiências como leitora e produtora, utilizando
a escrita em suas diferentes funções e como uma atividade prazerosa. Que haja interação da criança em
relação ao que escreve, em relação a si mesmo como escritor e com precisão do que escreve. Confirma em
sua pesquisa a necessidade de competências para produzir de maneira específica, relevando a importância
de quem escreve, por que escreve e para que e para quem escreve, além das preocupações que deve haver
com os tipos de textos a serem produzidos.

Para autora, é preciso que a criança aprenda a trabalhar, ultrapassando a produção, preparando a criança para
saber elaborar um projeto, com estratégias de busca de tarefas a serem executadas, chegando ao final de seu
projeto com o mesmo entusiasmo de seu início. Somente se aprende a escrever produzindo um enunciado
através de uma intenção real, fora disso a criança escreve porque o professor pede ou para apresentar as
produções esperadas pela escola. Assim, não se forma um verdadeiro produtor de textos.

É abrangente o processo de colocar em textos suas ideias, seus pensamentos, com um planejamento textual,
uma textualização com significados de informações, de conexão e segmentação textual, além de releitura
do texto, para aperfeiçoá-lo e fazer correções necessárias. É nesse aspecto que Jolibert resgata modelos de
processos redacionais para uma pedagogia da escrita, desde que haja orientação por parte do educador, mas
o controle da situação pelo escritor.

Segundo a autora, é relevante conhecer a superestrutura do texto, ou melhor, o esquema referente ao tipo de
texto, a sua estratégia de produção que deve levar em conta a realidade da criança e a didática do professor.
Já as considerações sobre gramática serão compreendidas pela criança quando essas se referirem ao texto já
elaborado por ela, porque ele possui um sentido especial.

Nessa proposta de ensino, o professor precisa entender que estará sempre em processo de busca de novos
conhecimentos.Toda experiência de um educador deve estar embasada em uma teoria, e esse, como o

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 41


seu educando, só estará produzindo melhor se for um autêntico leitor, pois o trabalho de produção está
interligado com o da leitura. Há necessidade de ler cada vez mais para a busca de informações e essa leitura
é que abrirá caminhos para a produção daquilo que já se conhece, exercitando a escrita, desde que seja
significativa e em relação ao que foi lido, ao que já se conhece, aquilo que já faz parte das experiências de
vida, podendo também ser levado pela imaginação, pela fantasia, pela magia, quando houver necessidade.
Só assim estaremos preparando leitores e produtores no ambiente escolar, não deixando de lado sua
convivência social.

Para conquistarmos em nosso ambiente escolar os produtores de textos e leitores dignos de assim serem
chamados, há necessidade de se questionar o sentido do que se expõe para a criança para o momento em
que se aprende e não só para mais tarde, e ainda, de considerar que a criança se torna mais ativa, mais
dinâmica, no ambiente em que ela participa integralmente dos atos sociais da leitura e da escrita. Nesse
ambiente podemos levá-la a discutir, decidir, realizar e avaliar suas produções textuais ( oral e escrita).

A metodologia de projetos é de suma importância para a prática pedagógica porque permiti que os educandos
vivam a realidade, reforcem seus interesses através dessa realidade, decidam pelas suas escolhas, se tornem
independentes em relação a escolha dos adultos, assumam responsabilidades e produzam algo que tenha
sentido e utilidade.

Vamos conhecer um pouco mais sobre os projetos!

Assista ao vídeo: Literatura de cordel na escola

http://www.youtube.com/watch?v=DvxzxcEbv2o

Figura 10: Exemplos de literatura de cordel

Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Literatura_de_cordel.jpg

Para Jolibert (1994), trabalhar com projetos significa, num primeiro momento, considerar quais são os
diferentes tipos de projetos, podendo ser referentes ao cotidiano do educando, aos empreendimentos que
desejam fazer envolvendo a sociedade e a escrita funcional, e os de aprendizado que envolvem não só o

42 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


professor na busca por mais informações, mas juntos, professor e aluno, devem programar suas atividades
e desenvolvê-las de forma a garantir que estejam sempre cientes do que já foi aprendido e do que falta para
aprender.

Essa pesquisadora não poderia deixar de nos apresentar os enfoques de aprendizagem na elaboração dos
projetos, quando afirma que a criança ao elaborar um projeto não está apenas aprendendo a produzir um
texto, mas “O texto” que vai mobilizar suas competências de forma autônoma e com significado, pois a
criança transporá o que aprendeu em outras novas situações.

Para os educadores, a autora dá uma “dica” bastante especial em relação ao tipo de texto a ser trabalhado, a
ser produzido dependendo do projeto em questão. Para o projeto referente à vida cotidiana, ela propõe que
se trabalhe com cartaz apelando para que todos tenham responsabilidades, por exemplo. Com relatórios das
tarefas direcionadas, com poemas para dizer aos outros o que sentem, e com carta para que haja trocas de
experiências.

Já, para projetos de empreendimentos, ela propõe que se trabalhe com cartaz para divulgar o que será
feito, com relatórios para direcionar as ações ao longo do projeto, com poemas para a apresentação de um
espetáculo especial e com a carta para pedidos, convites e agradecimentos a serem feitos.

Além desses apontamentos, a autora reafirma o que todo e qualquer educador consciente sente em relação
às ações pedagógicas e ao sucesso de uma aprendizagem com qualidade: que é fazendo que se aprende.
Sendo assim, só se aprende a escrever escrevendo, e esse aprender envolve professor e aluno numa tarefa a
ser realizada como estratégia para o desenvolvimento da criança escritora.

Para a realização dessa tarefa, o professor deve criar situações e com as crianças definir objetivos, etapas,
aspectos interativos e critérios de avaliações do trabalho a ser desenvolvido e organizado, para dar importância
ao seu aluno como ser humano pessoal e social levando-o assim a querer produzir para conquistar um espaço
próprio e sentir-se adaptado ao meio em que vive.

Todo e qualquer educador que seguir essas propostas de Josette se sentirá um educador de sucesso, um
motivador do aluno produtor, pois oferecerá chances ao aluno de criar de forma significativa, de expor suas
ideias, não como se lhe fosse imposto o ato de produzir um texto escrito, mas como forma de se comunicar
com os demais, relatando de forma escrita a organização de suas ideias, a clareza de seu pensamento, para
que suas ações sejam avaliadas e reestruturadas quando houver necessidade.

Convidamos você, caro(a) aluno/ leitor (a), a fazer a leitura integral da obra de Josette Jolibert (1994) e seus
colaboradores por ser uma leitura agradável e indispensável a todo professor. A pesquisadora nos alerta
sobre a necessidade da escola ser não só formadora de conteúdo, mas também incentivadora de formação de
opiniões para que cada vez mais possamos ter leitores e produtores de textos mais aperfeiçoados, preocupados
com a formação de opiniões, partindo de informações recebidas e transformadas em conhecimentos. Se
assim for, facilitaremos o desenvolvimento do processo de aprendizagem para a aquisição de uma educação
com qualidade. As teorias psicológicas, sociais e pedagógicas devem se entrelaçar para dar significado a tudo
o que for aprendido na escola e relacionado ao ambiente, ao contexto social do qual participamos no nosso
dia-a-dia.

Formar leitores e produtores com criatividade, opinião própria e capacidade redacional é uma das funções e
responsabilidade de uma escola comprometida com a aprendizagem de todos alunos, e assim, possibilitaria
a cada criança, jovem ou adulto uma grande conquista de se tornar leitor e produtor de textos de sua língua
materna.

Vamos agora discutir o processo de produção e de organização do texto e isso nos permite, a partir do
referencial teórico estudado, apresentar a seguinte premissa:

Assim como a aprendizagem da língua materna, da leitura e da escrita é forjada na interação social ativa de
situações reais de oralidade, de leitura e de escrita, a organização do texto implica fundamentalmente na
interação entre leitor-autor numa produção conjunta do texto enquanto uma atividade comunicativa global,
complexa e significativa para os envolvidos nessa situação dialógica.

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 43


Caro (a) aluno (a),

Leia a poesia de João Cabral de Melo Neto: O ferrageiro de Carmona


Disponível:http://www.usinadeletras.com.br/exibelotexto.php?cod=125078&cat=Poesias&vinda=S)

Em seguida, procure estabelecer uma relação com as reflexões acerca da linguagem, desenvolvidas
até aqui.

Quantas cópias sem sentido as crianças já fizeram! Ou nós mesmos, ao longo das nossas experiências
escolares!

Produzir texto é como forjar o ferro:

Só trabalho em ferro forjado

que é quando se trabalha ferro.;

então corpo a corpo com ele.;

domo-o, dobro-o, até onde quero.( João Cabral de Melo Neto).

Pense e reflita sobre isso!

Nesse sentido, o ponto de partida e de chegada do trabalho para o ensino da Língua Portuguesa nos cinco
anos iniciais do Ensino Fundamental é o uso social da linguagem, materializado na produção e organização
de texto, posto que o que as pessoas dizem umas às outras não são palavras nem frases isoladas, soltas, sem
sentido e significado, são textos com intencionalidade comunicacional.

Diante dessa premissa, torna-se necessário compreendermos o que caracteriza o texto, seja escrito ou oral, é
a ocorrência linguística, de qualquer extensão (pode ser uma palavra ou um longo texto) que tenha unidade
sociocomunicativa, semântica e formal básica dentro de um contexto cultural partilhado pelos interlocutores.

Segundo Costa Val (1994, p.3) um texto é uma unidade de linguagem em uso, cumprindo uma função
identificável num dado jogo de atuação sociocomunicativa. Um texto oral ou escrito será bem compreendido
ao respeitar três aspectos: o pragmático (atuação informacional e comunicativa), o semântico-conceitual
(um todo significativo) e o aspecto formal (um todo coeso, com seus constituintes linguísticos integrados) da
língua.

Nesse sentido, para que um texto, escrito ou oral, seja um texto e não apenas um amontoado de frases,
palavras ou sons são necessários de acordo com Beaugrande e Dressler (1983 apud Costa Val,1994) observar
sete fatores responsáveis pela materialidade de um texto. A saber: a coerência e a coesão ( de natureza
linguística e conceitual); a intencionalidade, a aceitabilidade, a situacionalidade, a informatividade e
intextualidade ( de natureza social e pragmática).

44 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


Caro(a) aluno (a),

Leia atentamente e pense nos exemplos abaixo:

Exemplo 1:
O burro puxa a carroça.
A carroça é de Paulo.
Paulo foi à cidade ver o palhaço. O
palhaço faz piadas engraçadas. O
nome do palhaço é Pipoca.
De volta para casa Paulo levou a carroça cheia de bagaço.

O que podemos observar é um amontoado de frases, ou seja, não há um tema em foco, apenas a
preocupação em reforçar a escrita de palavras com RR, e, portanto, não é um texto.

Exemplo 2:
Onde vais, elefantinho
Correndo pelo caminho
Assim tão desconsolado?
Andas perdido, bichinho
Espetaste o pé no espinho
Que sentes, pobre coitado?
— Estou com um medo danado
Encontrei um passarinho! ( Vinicius de Moraes)

Neste exemplo, podemos observar um texto com sentido, há um tema em foco: a pressa do
elefantinho. O que implica dizer que trata de um texto e não um amontoado de frases.

A partir desses dois exemplos, podemos compreender os fatores responsáveis pela materialidade de um
texto. Assim, vamos explicar cada um: a coerência enquanto um fator fundamental, responsável pelo sentido
do texto, resulta da configuração e encadeamento de elementos lógicos, semânticos e cognitivos (explícitos
e/ou implícitos) e também resulta dos conhecimentos prévios compartilhados entre os interlocutores
(produtor e recebedor do texto). Esse fator é muito importante para o desenvolvimento cognitivo e linguístico
dos falantes de uma língua e produtores de sentidos na construção de um texto lógico, coerente e claro no
desencadear de ideias, as quais formam uma unidade de sentido para o todo da sequência textual, que se
pretende partilhar com os envolvidos na interação dialógica.

Segundo Koch e Travaglia (2009, p.21), a coerência relaciona diretamente


com a possibilidade de estabelecer um sentido para o texto, ou seja, ela é o que faz
com o que o texto faça sentido para os usuários, devendo, portanto, ser entendida como
um princípio de interpretabilidade, ligada à inteligibilidade do texto numa situação de
comunicação e à capacidade que o receptor tem para calcular o sentido deste texto.

Outro fator de organização e produção do texto é a coesão, que são mecanismos gramaticais e lexicais
voltados para a promoção da eficiência do discurso. A coesão é responsável pela unidade formal do texto
por meio dos mecanismos, nexos e recursos presentes na superfície textual. Esses recursos são importantes
e úteis, mas nem sempre obrigatórios, no entanto, se manifestos devem ser usados de acordo com regras
específicas e padrões prévios sob pena de se tornar infração textual. Podemos, entre outras, destacar a
coesão gramatical e a lexical

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 45


A coesão gramatical materializa no uso dos pronomes anafóricos, os artigos, a elipse, a concordância,
a correlação entre os tempos verbais, as conjunções, dentre outros elementos gramaticais. Já a
coesão lexical se faz pela reiteração, pela substituição e pela associação. A importância, portanto,
da coesão na organização textual está no modo como os elementos da superfície do texto se
encontram conectados entre si, contribuindo para uma maior legibilidade do texto.

Você poderá compreender melhor os conceitos de coerência e coesão ao acessar:

Palavra puxa palavra – coerência

http://www.youtube.com/watch?v=ugmt14CDwYU&feature=related

Palavra puxa palavra - coesão

http://www.youtube.com/watch?v=MRpKi9BaL18&feature=related

O terceiro e quarto fatores responsáveis pela textualidade de um discurso são a intencionalidade e a


aceitabilidade. O primeiro diz respeito ao objetivo, à intenção, ao empenho do produtor na elaboração
do texto e a aceitabilidade refere-se à expectativa, ao conhecimento prévio e à disponibilidade cognitiva
do recebedor ao se defrontar com um texto coerente, coeso e interativo. Estes dois fatores implicam uma
‘cumplicidade’ e uma ‘disponibilidade’ dos interlocutores.

O quinto fator, segundo Beaugrande e Dressler (1983 apud Costa Val, 1994) é a situacionalidade que
significa a pertinência do texto e o respeito às regras sociais da interação comunicativa. Esta adequação está
relacionada à variação de registros, de tom de voz, de postura ao uso dos recursos gramaticais e lexicais no
jogo comunicativo de produção, de organização e de recepção do texto.

O fator de informatividade trata-se do nível e da quantidade de informações necessárias e desejáveis


contidas no texto para que a comunicação, a ideia, o diálogo seja compreendido pelo recebedor com o
sentido proposto pelo produtor.

Por último, o fator de intertextualidade que implica na rede de relações de textos, ou seja, um texto depende
do conhecimento de outros textos para a efetiva atividade comunicativa.

A compreensão desses fatores apontados por Beaugrande e Dressler (1983 apud Costa Val, 1994) é necessária
para o entendimento da dinamicidade discursiva do texto e que o falante da língua materna já apropriou
desses fatores em maior ou menor grau de consciência metalinguística no seu processo de aquisição da
linguagem oral. Esses elementos devem estar a serviço da melhor compreensão e expressão dos usuários
e que devem ser trabalhados ao longo da escolaridade na profundidade em que os aprendizes (crianças,
jovens e adultos) possam assimilá-los na produção de textos.

Dessa forma, pensar em produção e organização textual na escola implica analisar o texto como espaço
de interação entre leitor-autor, produtor e recebedor num continuum da atividade sociocomunicativa real,
respeitando e trabalhando com os fatores responsáveis pela textualidade de maneira contextualizada e no
fluxo do discurso e não como conteúdo a ser ensinado separadamente do uso e contexto lingüístico. Essa
ideia do ensino separado dos elementos da língua é usualmente visto em inúmeros exercícios de gramática,
ortografia dentre outros presentes nos livros-texto dos primeiros anos do Ensino Fundamental e também
nas explicações dos professores sobre a importância da aprendizagem pelos alunos das regras e normas
gramaticais junto aos aspectos responsáveis pela materialidade de um texto para depois os alunos tornarem

46 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


produtores de bons textos. Entretanto, essa visão separada dos aspectos constituintes da produção e
organização textual é incoerente com os princípios do funcionamento real da linguagem no cotidiano dos
falantes da língua materna, o que implica dizer que se ensina os aspectos de conteúdo e os formais do texto,
a gramática, a ortografia ao longo do escrever e ler textos e não em atividades isoladas e repetitivas de regras
e normas da língua.

Acreditamos que uma metodologia do ensino da língua portuguesa consistente teoricamente é aquela que
transforma a sala de aula num espaço privilegiado para a aprendizagem e a reflexão dos aspectos responsáveis
pela materialidade do texto e dos aspectos formais: a gramática e a ortografia encontra-se nos momentos da
elaboração do texto (ocasião de ordenar ideias, organizar o texto, enfatizar os aspectos e recursos semânticos,
considerar a intenção e a natureza da comunicação, o receptor, dentre outros elementos), nos momentos da
revisão do texto (reescrita, reordenação das ideias no texto oral, auto-correção da fala, revisão e correção da
escrita) e também nos momentos de discussão da própria língua (reflexão metalinguística). Isto é, o espaço
fecundo para a aprendizagem e elaboração de textos (escrito e oral) na escola está no uso cotidiano da
escrita de textos efetivos, reais e diversos que compõem as nossas situações linguísticas e discursivas. É ao
escrever textos que o aluno perceberá dificuldades com a língua e consequentemente exigirá do professor
esclarecimentos para compreender os aspectos gramaticais e constituintes da produção textual.

Caro(a) aluno(a),

Para iniciarmos algumas reflexões sobre o ensino da gramática, vamos ler o texto abaixo
que trata de um trecho de uma correspondência de Monteiro Lobato ao amigo Godofredo
Rangel, incluída na coletânea de cartas A Barca de Gleyre (1944).

Lombrigas de Minerva

Se por «saber português» entendes conhecer por miúdo os bastidores da Gramática e a intrigalhada
toda dos pronomes que vem antes ou depois, concordo com o que dizes na carta: um burro bem
arreado de regras será eminente. Mas para mim «saber português» é outra coisa: é ter aquele
doigté do Camilo, ou a magnificente allure processional do Ramalho, ou a sublime gagueira do
Machado de Assis. Aqui em S. Paulo o brontosauro da gramática chama-se Álvaro Guerra, um
homem que anda pela rua derrubando regrinhas como os fumantes derrubam pontas de cigarro.
As regras desse homem tremendo, quando vêm ao bico da pena dos escritores, matam, como
unhas matam pulgas, tudo o que é beleza e novidade de expressão - tudo que é lindo mas a
Gramática não quer. Outro gramaticão daqui escreveu um enorme tratado sobre a Crase; e consta
que o Silvio de Almeida tem 900 páginas inéditas sobre o Til. O livro vai chamar-se: «Do Til»...
A esta gente o Camilo chamava lombrigas do intestino reto de Minerva.(São Paulo, 28/12/1917)

Disponível em: http://revistalingua.uol.com.br/textos.asp?codigo=11454

No tocante ao ensino da gramática na escola, Possenti (1996) defende algumas teses básicas em relação ao
ensino de língua materna. A saber:

O papel da escola é ensinar língua padrão: significa dizer que o objetivo da escola é criar condições para que
o português padrão seja aprendido por todos os falantes, ou seja, todas as crianças e jovens independentes
dos seus dialetos e condições sociais aprendam a escrever e a ler fluente e produtivamente diversos tipos de
texto (narrativas, textos argumentativos, textos informativos, atas, cartas de vários tipos, textos jornalísticos,
textos de divulgação científica, textos técnicos, textos literários etc.).
Uma das medidas para que esse grau de utilização efetiva da língua escrita possa ser atingido
é escrever e ler constantemente, inclusive nas próprias aulas de português. Ler e escrever
não são tarefas extras que possam ser sugeridas aos alunos como lição de casa e atitude
de vida, mas atividades essenciais ao ensino da língua. Portanto, seu lugar privilegiado,
embora não exclusivo, é a própria sala de aula (POSSENTI, 1996, p.20).

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 47


De acordo com Possenti (1996, p.17) qualquer outra orientação e/ou justificativa é um equívoco político e
pedagógico.

Não há línguas fáceis ou difíceis: existem línguas diferentes, isto é, não há línguas simples e línguas complexas,
primitivas e desenvolvidas. O que implica dizer que não há dialetos mais simples do que outros, há diferenças
ligadas à avaliação social que determinada comunidade de falantes faz dos dialetos do que diferenças ligadas
à variação dos recursos gramaticais.

Todos os que falam sabem falar: saber falar significa saber uma língua que implica saber uma gramática
internalizada (conhecimento (intuitivo ou inconsciente) necessário para falar efetivamente a língua). Saber
uma gramática não significa saber de cor algumas regras que se aprendem na escola, ou saber algumas
análises morfológicas e sintáticas (POSSENTI,1996, p.30), significa saber dizer e saber entender frases no
contexto comunicativo.

Não existem línguas uniformes: não há nenhuma sociedade na qual todos falem da mesma maneira, pois,
todas as línguas variam no tempo e no espaço histórico.

Não existem línguas imutáveis: todas as línguas mudam, o que implica pensar que há formas da língua que
não são mais usadas e, portanto, não fazem sentido serem ensinadas.

Falamos mais corretamente do que pensamos: essa tese defendida por Possenti (1996) busca mostrar que os
tipos de erro são bem menores do que a quantidade de erro e que os acertos são sempre mais numerosos
do que os erros (p.45).

Língua não se ensina, aprende-se: implica dizer que aprendemos uma língua em situações práticas efetivas,
significativas, contextualizadas (p.47), nas quais se concretiza a interlocução. Nesse sentido, aprende-se a
língua ouvindo, falando e sendo corrigido quando não utiliza a forma que o outro aceita. E aprende-se a
escrever, escrevendo, lendo, reescrevendo, corrigindo e não por exercícios repetitivos e descontextualizados
dos elementos da língua.

Sabemos o que os alunos ainda não sabem? De acordo com Possenti (1996), de todas as teses sobre o
ensino da língua, esta, em forma de pergunta, é a mais evidente e, talvez, a menos praticada (p.50), pois não
levamos em consideração as experiências e usos da língua dos alunos para o planejamento do português
padrão. Ficamos presos aos programas anuais sem nos ater sobre o óbvio que o já é sabido não precisa
ser ensinado (p. 50) e buscar ensinar o que os alunos ainda não sabem em relação à língua padrão e seus
elementos constituintes.

A partir das teses apresentadas por Possenti (1996), entendemos que o ensino da gramática na escola deve
partir do conjunto de regras que o aluno domina, ou seja, do repertório lingüístico construído e internalizado
pelo aluno nos atos de fala para vir a compreender que há um conjunto de regras gramaticais que devem ser
seguidas e outras que são seguidas, isto é, espera que o aluno possa vir a dominar o maior número de regras,
que se torne capaz de expressar-se nas mais diversas circunstâncias, segundo as exigências e
convenções dessas circunstâncias. Nesse sentido, o papel da escola não é o de ensinar uma
variedade no lugar da outra, mas de criar condições para que os alunos aprendam também
as variedades que não conhecem, ou com as quais não têm familiaridade, aí incluída, claro
a que é peculiar de uma cultura mais ”elaborada”. É um direito elementar do aluno ter
acesso aos bens culturais da sociedade, e é bom não esquecer que para muitos esse acesso
só é possível através do que lhes for ensinado nos poucos anos de escola (POSSENTI, 1996,
p.83).

Nessa perspectiva, a escola deve priorizar a leitura frequente, a produção de textos escritos, a narrativa oral,
o debate de todas as variedades linguísticas e não apenas a língua padrão, pois
(...) é no momento em que o aluno começa a reconhecer sua variedade linguística como
uma variedade entre outras que ele ganha consciência de sua identidade linguística e se
dispõe à observação das variedades que não domina (POSSENTI, 1996,p.85-6).

A pertinência das propostas desse autor sobre o ensino da gramática e da língua nos faz pensar também
sobre o ensino da ortografia que normalmente apresenta segundo Ilari e Basso (2006) alguns equívocos tais
como: pensa-se que escrever corretamente resolveria os problemas da língua, ou seja, escrever corretamente

48 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


implicaria em um bom produtor de texto. Tal premissa não é válida, pois a língua e a produção textual não se
restringem a ortografia. Um outro equívoco recorrente nas escolas é pensar que a ortografia é um fenômeno
absolutamente fiel à pronúncia, o que implicaria uma grafia fonética que comprometeria a unidade que a
língua escrita apresenta e incorreria em diversas ortografias de acordo com os dialetos e com o modo de
pronunciar cada palavra por cada falante.

De acordo com Bagno (2006, p.131) conhecer ortografia não está relacionado com saber a língua. São dois
tipos diferentes de conhecimento. A ortografia não faz parte da gramática da língua, isto é, das regras de
funcionamento da língua.

A ortografia é uma decisão política, é imposta por decreto, por isso muda de tempos em tempos por
convenções internacionais, portanto, a ortografia é artificial, sujeita às interpretações e aos acordos de
filólogos que definem o correto e incorreto no fenômeno lingüístico.

Assim, a ortografia, fruto de uma convenção social, cujo objetivo é padronizar a escrita, deve-se ser aprendida
no exercício da reflexão sobre a língua, na busca das regularidades e irregularidades da escrita das palavras
dentro de um contexto discursivo.

Para se aprender ortografia é, portanto, necessário criar situações de análise e reflexão das possibilidades
de registro da palavra dentro de uma produção textual significativa e real, favorecendo a apropriação do
sistema ortográfico de nossa língua. E não um conjunto de regras ortográficas a ser decoradas sem uma
análise e apreensão do sentido e da possível lógica e convenção da escrita da palavra. Isto implica repensar as
estratégias de ensino de ortografia na dinâmica linguística e social da produção dos diversos tipos de textos.

Nessa perspectiva, Maruny Curto, Morillo e Teixidó (2000, p.197-8) sugerem alguns encaminhamentos
pedagógicos para o ensino da ortografia junto às crianças de três a oito anos, como:
• O reconhecimento e o uso de diferentes critérios para estabelecer hipóteses
ortográficas: critérios fonológicos, morfológicos, sintáticos e semânticos;
• A atitude de identificação de dúvidas, de reflexão e de busca de possíveis alternativas;
• A consulta de modelos e fontes de informação;
• A aquisição de normas ortográficas mais regulares:
• Uso das maiúsculas;
• Separação de palavra;.
• Uso de alguns tempos verbais (imperfeitos, etc);
• Alguns termos mais usuais, como nomes, sobrenomes, datas, meses e estações,
topônimos, fórmulas de cortesia, fórmulas tradicionais de início e final do conto, etc.
• Correspondências fonográficas regulares, estáveis:[r-], [-rr- entre vogais], [-r-
entre vogais], [mb], [mp], etc.
• Iniciar-se no uso dos sinais de pontuação.

Acreditamos que atividades isoladas e específicas de ortografia como de gramática não promovem a
apropriação e compreensão desses aspectos constituintes do texto, entendemos sim que a gramática e a
ortografia devem ser ensinadas e aprendidas em todas as atividades de produção textual que respeitem
primordialmente a intencionalidade comunicacional e discursiva do autor.

Estes apontamentos a respeito dos aspectos constituintes da produção e organização de um texto no que
se refere ao ensino da gramática, ortografia, coerência e coesão textual, dentre outros fatores responsáveis
pela textualidade não visaram ao esgotamento do assunto e nem algo inteiramente original, preferimos
apresentá-los de forma sucinta e provocar você, futuro professor, para aprofundar as questões assinaladas
ao longo deste texto básico, construindo uma possível interlocução entre os pressupostos e princípios do uso
da linguagem e as opções metodológicas a serem adotadas no ensino da língua portuguesa.

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 49


Apresentamos no final deste Módulo, referências bibliográficas fundamentais para o estudo e a apropriação
de conhecimentos necessários para instrumentalizar essas primeiras informações e garantir uma prática
pedagógica condizente e coerente com os usos sociais da língua portuguesa.

Esperamos, assim, que esta provocação possibilite novos olhares e interesses sobre a linguagem como forma
de interação comunicativa entre interlocutores situados histórica e culturalmente numa perspectiva de
inclusão linguística e discursiva de nossos alunos, rompendo a visão preconceituosa que temos dos diversos
dialetos que constituem a nossa língua materna.

Por fim, gostaríamos que todos os professores também tivessem orelhas bem verdinhas para
ouvir o que as crianças têm a dizer, estabelecendo uma verdadeira interação verbal entre crianças,
professores e o conhecimento, como nos ensina Gianni Rodari:

O HOMEM DA ORELHA VERDE


Um dia num campo de ovelhas
Vi um homem de verdes orelhas
Ele era bem velho, bastante idade tinha.
Só sua orelha ficava verdinha
Sentei-me então a seu lado
A fim de ver melhor, com cuidado.
Senhor, desculpe minha ousadia, mas na sua idade.
de uma orelha tão verde, qual a utilidade?
Ele me disse, já sou velho, mas veja que coisa linda.
De um menininho tenho a orelha ainda
É uma orelha-criança que me ajuda a compreender
O que os grandes não querem mais entender
Ouço a voz de pedras e passarinhos
Nuvens passando, cascatas e riachinhos
Das conversas de crianças, obscuras ao adulto.
Compreendo sem dificuldade o sentido oculto
Foi o que disse o homem de verdes orelhas
Me disse no campo de ovelhas.

(Gianni Rodari)

50 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I


II - SÍNTESE DO MÓDULO

Nesse Módulo você estudou:


• Natureza discursiva e as especificidades dos gêneros textuais Implicações e sugestões para a prática
pedagógica.
• Concepção de texto
• Fatores responsáveis pela textualidade
• Ensino da Gramática
• Ensino da Ortografia

Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I 51


III - REFERÊNCIAS

BAKHTIN, M.; VOLOCHÍNOV, V.N. Marxismo e filosofia da linguagem.4ª ed.São Paulo: Hucitec, 1988.

BAGNO, Marcos. Preconceito linguístico: o que é, como se faz. São Paulo: Loyola, 2006, 46. e 47. edições.

COSTA VAL, Maria da Graça. Redação e textualidade. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

GERALDI, J. W. Portos de passagem. São Paulo: Martins fontes, 1993.

ILARI, Rodolfo e BASSO, Renato. O português da gente: a língua que estudamos, a língua que falamos. São
Paulo: Contexto, 2006.

KOCK, Ingedore V. A coesão textual. 6. ed. São Paulo: Contexto, 1993.

______ e TRAVAGLIA, Luis Carlos. A coerência textual. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2009.

JOLIBERT, J. (Org.) Formando crianças produtoras de texto. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994.

MARUNY CURTO, Lluís, MORILLO, Maribel M. e TEIXIDÓ, Manuel M. Escrever e ler: como as crianças aprendem
e como o professor pode ensiná-las a escrever e a ler. Porto Alegre: Artmed Editora, 2000. V.1.

POSSENTI, Sírio. Por que (não) ensinar gramática na escola. Campinas, SP: Mercado de letras: Associação de
leitura do Brasil, 1996.

LEITURA COMPLEMENTAR

BAGNO, Marcos. A norma oculta: língua & poder na sociedade brasileira. São Paulo: Parábola Editorial, 2003.

BOLTELHO, J. M. Entre a oralidade e a escrita um contínuo tipológico. Disponível em: http://www.filologia.


org.br/viiicnlf/anais/caderno07-05.html Acesso em: 16/09/2009.

CASTILHO, Ataliba T. A língua falada no ensino de português. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2004.

FRANCHI, Carlos e outros. Mas o que é mesmo “gramática”? São Paulo: Parábola Editorial, 2006.

MESSIAS, R. A. L. A Linguagem Oral e o Ensino de Língua Portuguesa Disponível em: http://www.ichs.ufop.


br/conifes/anais/EDU/edu1006.htm. Acesso em: 16/09/2009.

SMOLKA, A. L. B. O (im)próprio e o (im)pertinente na apropriação das práticas sociais. Disponível em http://


www.scielo.br/pdf/ccedes/v20n50/a03v2050.pdf Acesso em: 16/09/2009.

SUASSUNA, Lívia. Ensaios de pedagogia da língua portuguesa. Recife/ PE: Editora Universitária da UFPE,2006.

52 Metodologia do Ensino da Língua Portuguesa I

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