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Universidade Federal de Uberlândia

Curso de Pedagogia a Distância

Sociologia da Educação II

João Batista Domingues Filho

Segunda Edição
Revista e Atualizada

Sociologia da Educação II 1
CONSELHO EDITORIAL

Aléxia Pádua Franco – UFU
Carlos Rinaldi – UFTM
Carmem Lúcia Brancaglion Passos – UFScar
Célia Zorzo Barcelos – UFU
Diva Souza Silva – UFU
Eucidio Arruda Pimenta – UFMG
Ivete Martins Pinto – FURG
João Frederico Costa Azevedo Meyer – UNICAMP
Maria Irene Miranda – UFU
Marisa Pinheiro Mourão – UFU

EQUIPE DO CENTRO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA DA UFU - CEaD/UFU


ASSESSORA DA DIRETORIA
Sarah Mendonça de Araújo

EQUIPE MULTIDISCIPLINAR
Alberto Dumont Alves Oliveira
Darcius Ferreira Lisboa Oliveira
Dirceu Nogueira de Sales Duarte Júnior
Gustavo Bruno do Vale
Otaviano Ferreira Guimarães

REVISORA
Carina Diniz Nascimento

Sociologia da Educação II 3
PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Michel Miguel Elias Temer

MINISTRO DA EDUCAÇÃO
José Mendonça Bezerra Filho

UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL


DIRETORIA DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA/CAPES

Carlos Cezar Modernel Lenuzza

REITOR DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA - UFU

Valder Steffen Junior

VICE-REITOR
Orlando César Mantese

CENTRO DE EDUCAÇÃO A DISTÂNCIA


DIRETORA E REPRESENTANTE UAB/UFU

Maria Teresa Menezes Freitas

SUPLENTE UAB/UFU
Aléxia Pádua Franco

DIRETORA DA FACULDADE DE EDUCAÇÃO - FACED - UFU

Geovana Ferreira Melo

CURSO DE PEDAGOGIA A DISTÂNCIA


COORDENADORA DO CURSO

Maria Irene Miranda

“O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de


Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001 - (Portaria
CAPES 206/2018)

Universidade Federal de
Uberlândia

4 Sociologia da Educação II
SUMÁRIO

INFORMAÇÕES6

INTRODUÇÃO7

PLANO DE ESTUDO 8

MÓDULO 1 9
As Teorias Pós-estruturalista : Os conceitos de representação, identidade e de diferença
1.1. Giddens e a Teoria da Estruturação  10
1.2. Elias e a Sociologia Figuracional  13
1.3. A Figuração da Estruturação   15

MÓDULO 2 27
Questões teórico-metodológicas: problematização da explicação sociológica

MÓDULO 3 45
Sociedade, Sociabilidade e Sociação: cultura

MÓDULO 4 53
Sociação: Educação e Gênero

REFERÊNCIAS61

Sociologia da Educação II 5
INFORMAÇÕES

Prezado(a) aluno(a),

Ao longo deste guia impresso você encontrará alguns “ícones” que lhe ajudará a identificar as atividades.

Fique atento ao significado de cada um deles, isso facilitará a sua leitura e seus estudos.

Você usará, também, o espaço ao lado de cada página para fazer suas anotações.

6 Sociologia da Educação II
INTRODUÇÃO

Prezado (a) aluno (a),

Eu sou o professor João Batista Domingues Filho.

Sejam bem vindos à disciplina Sociologia da Educação II. É a continuidade, obviamente, da Sociologia da
Educação I. É preciso lembrar a importância de ter estudado de maneira adequada o conteúdo anterior para
poder aprender as teorias agora apresentadas.

Conteúdo básico

As teorias pós-estruturalistas. Aqui aprenderemos as teorias que explicam a lógica da ação coletiva, fora da
dicotomia sociedade e indivíduo.

Problematização da explicação sociológica. Refletir sobre a autonomia da sociologia como campo de pesquisa
científico. Demonstrar, metodologicamente, que é possível a explicação científica do fenômeno social.

A cultura enquanto campo de estudo sociológico. Aprender os conceitos de sociedade, sociabilidade e


sociação. Cultura é um fenômeno social. Sociação enquanto formas de estar e de ser para o outro.

Estudar, a partir da teoria da sociação, como a sociedade contemporânea produz os sentidos de educação e
gênero.

Nossos objetivos são:

Dar continuidade ao estudo das teorias sociológicas denominadas pós-estruturalistas. Aprender que a
abordagem teórica que utiliza da dicotomia indivíduo e sociedade não é suficiente, teoricamente, para uma
explicação sociológica dos fenômenos sociais.

Expor a reflexão metodológica contida no desenvolvimento teórico da sociologia. A problematização da


explicação sociológica é necessária para eliminar a falácia de que quando o objeto de pesquisa científica é
a ação humana a explicação é impossível, restando apenas a compreensão e a interpretação do fenômeno
social.

Instrumentalizar as (os) alunas (os), teoricamente, para dar tratamento analítico aos fenômenos sociais.
Serão apresentadas as principais reflexões teóricas para tanto.

Por meio da teoria da sociação apreender analiticamente porque a sociedade e a sociabilidade desenvolvem
padrões em termos da cultura, gênero e educação.

Sociologia da Educação II 7
PLANO DE ESTUDO

DESENVOLVIMENTO DO
MÓDULO AVALIAÇÕES
ESTUDO

Atividade 1 – Videoaula

Módulo 1 – As Teorias Atividade 2 – Texto básico –


Pós estruturalistas: guia impresso
os conceitos de Atividade 5 – Questionário (10 pontos)
representação, Atividade 3 – Texto
identidade de diferença Complementar

Atividade 4 – Fórum

Atividade 6 – Videoaula
Módulo 2 – Questões
Atividade 7 – Texto básico –
teórico-metodológicas:
guia impresso Atividade 9 – Questionário (10 pontos)
problematização da
explicação sociológica Atividade 8 – Texto
Complementar

Módulo 3 – Sociedade, Atividade 10 – Videoaula Atividade 12 – Questão dissertativa (2 pontos)


sociabilidade e
Atividade 11 – Texto básico – Atividade 13 – Questionário (8 pontos)
sociação: cultura
guia impresso

Atividade 14 – Videoaula

Atividade 15 – Texto básico – Atividade 17 – Questão dissertativa (5 pontos)


Módulo 4 – Sociação:
guia impresso
educação e gênero
Atividade 18 – Questionário (5 pontos)
Atividade 16 – Texto
complementar

8 Sociologia da Educação II
MÓDULO 1

As Teorias Pós-estruturalista

A sociologia não consegue gerar em seu desenvolvimento


teórico um consenso explicati vo em relação ao campo
teórico-metodológico, diante do permanente desafi o cientí fi co:
qual a hipótese é verdadeira dentre as seguintes? (a) A sociedade
(fenômenos sociais) compreendida como produto, como resultado
das decisões e ações dos indivíduos; e (b): os indivíduos sociais não
agem “sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que
se defrontam diretamente, legadas e transmiti das pelo passado”
(MARX1, 1995, p. 329).

A sociologia, ao
longo de sua
história teórica,
vem tentando
se apossar da
“lógica da ação
coleti va”, tanto
pela perspecti va
do indivíduo,
quanto pela
abordagem
da sociedade.
A disciplina
Sociologia I
Figura 1 - foto cedida por Luiz Felipe Netto de Andrade e a p r e s e n t o u
Silva Sahd
as teorias
explicati vas dessas abordagens (Indivíduo e Sociedade). Piaget (1973, Reveja a defi nição de Max Weber em
p.11) defende que a “missão essencial da ciência é ao mesmo tempo Sociologia I “ A sociologia é a ciência do
compreender e explicar”. social”.

Piaget2 (1973, p.14) pondera que a sociologia tem o seguinte objeto


teórico-metodológico:

em todos os lugares em que se apresentem as


relações do sujeito e objeto – e é o caso da sociologia,
como em outros campos, mesmo e principalmente
se o sujeito é um ‘nós’ e que o objeto é o de vários
sujeitos ao mesmo tempo, o conhecimento não parte
nem do sujeito nem do objeto, mas da interação
indissociável entre eles, para avançar daí na dupla
direção de uma exteriorização objetivante e de uma
interiorização reflexiva.

1 MARX, K. O 18 Brumário. São Paulo: Abril Cultural, 1985. (Os Pensadores).


2 PIAGET, J. Estudos Sociológicos. São Paulo: Forense, 1973.

Sociologia da Educação II 9
Para a explicação sociológica, entende Piaget (1973, p.14), “o
aparecimento do ‘nós’ consti tui um problema epistemológico
novo”, dado que “o observador faz geralmente parte da totalidade
Conheça um pouco da vida e do trabalho
que ele estuda ou de uma totalidade análoga ou adversa”. Esta é a
de Giddens questão que Piaget (1973, p.113) procura elucidar em seus Estudos
Sociológicos. Os modelos teórico-metodológicos para a Sociologia,
Anthony Giddens (18 de janeiro de sufi cientemente sofi sti cados, que serão instrumentalizados para
1938, Londres) é um sociólogo britâni- explicar a relação, necessariamente complexa, entre as “funções
co, renomado por sua Teoria da estru-
turação. Considerado por muitos como individuais” ( ou “ interiorização refl exiva”) e as “funções coleti vas”
o mais importante fi lósofo social inglês (ou “exteriorização objeti vantes”), na confi guração dos fenômenos
contemporâneo, fi gura de proa do novo sociais, podem ser apresentados, inicialmente pelas teorias de
trabalhismo britânico e teórico pioneiro Giddens (1989) e Elias3 (1980; 1994; 2001).
da Terceira via, tem mais de vinte livros
publicados ao longo de duas décadas.

Do ponto de vista acadêmico, o seu in-


teresse centra-se em reformular a teoria 1.1. Giddens e a Teoria da Estruturação
social e reexaminar a compreensão do
desenvolvimento e da modernidade.

É
As suas ideias ti veram uma enorme in-
fl uência quer na teoria quer no ensino preciso expor as idéias do sociólogo Giddens, como condição
da sociologia e da teoria social em todo necessária à conti nuidade desta refl exão. A teoria da
o mundo. A sua obra abarca diversas te- estruturação de Giddens deve ser trazida ao debate, como exemplar
máti cas, entre as quais a história do pen- da tentati va de reconceituação do dualismo recorrente em Sociologia
samento social, a estrutura de classes,
elites e poder, nações e nacionalismos, entre Indivíduo e Sociedade, em razão de outro par de conceitos:
identi dade pessoal e social, a família, re- Agência e Estrutura. “Estruturação” deve ser entendida como uma
lações e sexualidade. categoria dinâmica para a descrição da conduta coleti va
humana. Nesta teoria, o substrato ontológico são as
Foi um dos primeiros autores a trabalhar ações e interações dos sujeitos humanos.
o conceito de globalização.
A pretensão em jogo aqui diz respeito à
Mais recentemente tem estado na van- possibilidade de contemplar, ao mesmo
guarda do desenvolvimento de ideias tempo, os aspectos do indivíduo e da
políti cas de centro-esquerda, tendo aju- estrutura, de maneira a superar o
dado a popularizar a ideia de Terceira
via, com que pretende contribuir para a dualismo Indivíduo e Estrutura.
renovação da social-democracia.
A teoria da estruturação
Foi Director da London School of Eco- proporciona à Sociologia
nomics and Politi cal Science (LSE) entre uma “ontologia
1997 e 2003. Anteriormente foi profes-
sor de Sociologia em Cambridge. Muitos de potenciais”:
livros foram publicados sobre este autor sujeito agente é
e a sua obra. Foram-lhe concedidos di- complementar
versos tí tulos honorífi cos. e vinculado à
centralidade
Foi co-fundador, em 1985, de uma edi-
tora de livros cientí fi cos, a Polity Press. da Práxis. A
reprodução
Fonte: htt p://pt.wikipedia.org/wiki/An- das relações
thony_Giddens sociais, ao
longo do tempo
e do espaço,
pode ocorrer
através das
Substrato ontológico: o que sustenta, o conseqüências
senti do de “ser” das ações e interações não intencionais da
humanas. práxis ou, ao mesmo
tempo, através Figura 2 - foto cedida por Luiz Felipe Netto de
da administração Andrade e Silva Sahd
intencional (dos
agentes) através do
ONTOLOGIA: O que as teorias cientí fi cas
postulam ou pressupõem. Ontologia
pressupõe do que o mundo deve parecer,
ou seja, o que é descrito pela teoria. 3 ELIAS, N. Introdução à Sociologia, Lisboa: Edições 70, 1980.
ELIAS, N. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Zahar, 1994.
ELIAS, N. Nobert Elias Por Ele Mesmo. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

10 Sociologia da Educação II
tempo e do espaço. É a postulação de uma dialéti ca entre agente e
estrutura, como conteúdo de qualquer estruturação do social.

Giddens troca o dualismo Indivíduo e Estrutura por dois novos


conceitos: Agência e Estrutura. O conteúdo dessa agência é um
ser humano (agente intencional) refl exivo, num contexto espaço- Praxis (do grego πράξις) é o processo pelo
temporal e a estrutura possui, em si, as seguintes propriedades qual uma teoria, lição ou habilidade é
executada ou prati cada, se convertendo
simultâneas: coercivas e facilitadoras. Há um fl uxo contí nuo entre em parte da experiência vivida. Na
agente e estrutura, de maneira tal que os agentes são competentes Sociologia pode ser resumida como
para viverem as roti nas (não param a cada ação social para refl eti r as ati vidades materiais e intelectuais
sobre os moti vos) da vida social, ao mesmo tempo em que recriam exercidas pelo homem que contribuem
à transformação da realidade social.
essas mesmas estruturas (regras e recursos). Nas palavras de Giddens
(1989, p.138): “a teoria da estruturação baseia-se na proposição de Fonte: htt p://pt.wikipedia.org/wiki/
que a estrutura é sempre tanto facilitadora quanto coerciva, em Pr%C3%A1xis
virtude da relação inerente entre estrutura e agência”. A dimensão
facilitadora é deduzida da compreensão de Giddens (1989, p.139),
segundo a qual “a ‘coerção’ não pode ser considerada a única
qualidade defi nidora de ‘estrutura’”. Em seguida, Giddens defi ne
estruturas:

como uma propriedade dos sistemas sociais,


‘contidas’ em práticas reprodutivas e inseridas
no tempo e no espaço. Os sistemas sociais estão
organizados hierárquica e lateralmente dentro
de totalidades sociais, cujas instituições formam
‘conjuntos articulados.

O esquema de Giddens é o seguinte: Totalidades Sociais [TS]


contornam/moldam os Sistemas Sociais [SS], no interior dos quais,
a Estrutura [E] interage, dialeti camente: (+/-), com a Insti tuição
Social [15]. Nesta “estruturação” da vida social, o modelo teórico:
[TS] +/- [SS1 +/- [E] +/- [IS]) representa a possibilidade teórica de
explicar, adequadamente, a manifestação empírica da produção da
“socialização” humana, a qual funde, de maneira contí nua, coerção
com facilitação.

Giddens (1989, p.140) pondera que “as sociedades humanas, ou


os sistemas sociais, não existi riam, em absoluto, sem a agência
humana. Mas não se trata de que os agentes, ou atores, criem
sistemas sociais: eles os reproduzem ou transformam, refazendo o
que já está feito na conti nuidade da práxis”. É assim que a existência
da estrutura social não produz apenas coerção, mas também produz
o “espaço” necessário à criati vidade humana, “na conti nuidade da
práxis”. A teoria da estruturação de Giddens (1989, p.142) “sustenta
estar a estrutura implícita nessa mesma ‘liberdade de ação’”. Daí que
Giddens (1989, p.144) compreenda a coerção estrutural como “a
fi xação de limites à gama de opções a que um ator, ou pluralidade de
atores, tem acesso numa dada circunstância ou ti po de circunstância”.

Neste senti do, como fi ca a explicação sociológica sobre o


funcionamento das insti tuições sociais? A teoria de Giddens (1989,
p.146) sobre a explicação estrutural em sociologia é a de que não
existe

uma entidade que constitua um tipo distinto de


‘explicação estrutural’ nas ciências sociais; todas
as explicações envolverão, pelo menos, referência

Sociologia da Educação II 11
implícita ao comportamento deliberado, racional,
dos agentes e à sua interseção com aspectos
facilitadores e coercivos dos contextos social e
material desse comportamento.

A explicação estrutural para Giddens (1989,


p.147) é compreendida como “reifi cação”
de três ti pos: animista, coisas e conceitos.
“O ‘modo reifi cado’ deve ser considerado
uma forma ou o esti lo de discurso. As
propriedades dos sistemas sociais são vistas
como tendo a mesma fi xidez pressuposta nas
leis da natureza.

Explicações estruturais - releia Marx e Giddens (1989:148) uti liza no lugar da


Durkheim - Sociologia I “explicação estrutural”, o conceito de “princípios
estruturais”: (1): “as coerções estruturais não
operam independentemente dos moti vos e
razões dos agentes para o que fazem”; (2):
“os únicos objetos moventes em relações
sociais humanas são os agentes individuais,
que empregam recursos para fazer as coisas
acontecerem, intencionalmente ou não”; e (3):
“as propriedades estruturais de sistemas sociais
não atuam ou ‘agem sobre’ alguém como as
forças da natureza, para ‘compelir’ o indivíduo a
comportar-se de um modo parti cular”. Estes
“princípios estruturais” permitem a análise
Auto regulação refl exiva: Para Giddens o insti tucional das totalidades sociais, enquanto
indivíduo da teoria estrutural não pode
ser reduzido ao simples resultado da estruturas (regras e recursos), e propriedades
estrutura social. Este mesmo indivíduo estruturais (sistemas sociais insti tucionalizados).
para Giddenss é capaz de auto regulação
refl exiva: fez escolhas de maneira Para Giddens (1989, p.162), a existência
refl exiva para agir em sociedade. Agência Figura 3 - foto cedida por Luiz
é ser humano refl exivo. Felipe Netto de Andrade e Silva humana é compreendida na forma das
Sahd contradições que “expressam esti los de
vida e distribuição de oportunidade de vida
divergente em relação aos possíveis mundos
que o mundo real revela como imanente”.
Giddens (1989, p.166) localiza a Sociologia no contexto da “auto-
regulação refl exiva” que opera “num mundo social em que a reti rada
dos deuses e dissolução da tradição criam as condições” para seu
IMANENTE: Adjeti vo que denomina que nascimento como ciência moderna. Isto é possível, segundo Giddens
os princípios são limitados, quanto à
sua aplicação, aos limites da experiência (1989, p.165), dado que “se ‘história’, na frase ‘os seres humanos
possível, contrapostos aos princípios fazem História’, signifi ca a conjunção de uma concepção linear de
“transcendentes”. Diz respeito à tempo com a idéia de que, através da expansão do conhecimento de
limitação do emprego dos princípios ao seu passado, os agentes podem mudar seu futuro”.
domínio da experiência possível. Além
dessa restrição, experiência possível, não
há entendimento da ação orientada por
princípios. Este signifi cado é empregado
por Kant.

12 Sociologia da Educação II
1.2. Elias e a Sociologia Figuracional
Norbert Elias (Breslau, 22 de junho de
1897 — Amsterdã, 1 de agosto de 1990)
foi um sociólogo alemão.

A refl exão conti nua com a teoria social de Elias: a Sociologia


Figuracional. Este sociólogo examina o surgimento de
confi gurações sociais (Figurações) como conseqüências não-
De família judaica, teve de fugir da
Alemanha nazista exilando-se em 1933
na França antes de se estabelecer na
premeditadas da interação social. Concebe a sociedade como uma Inglaterra onde passará grande parte de
sua carreira. Todavia, seus trabalhos em
formação do conjunto dos seres humanos, numa pluralidade não alemão tardaram a ser reconhecidos e
planejada, muito menos pretendida por nenhum indivíduo ou pelo ele viveu de forma precária em Londres
conjunto desses indivíduos. A sociologia, para Elias, é um esforço antes de obter em 1954 um posto de
teórico na representação das sociedades como teias de indivíduos professor na Universidade de Leicester.
interdependentes (fi gurações), cujos senti mentos, decisões, Suas obras focaram a relação entre
ações, ati tudes e relações dos indivíduos mudam em resposta a poder, comportamento, emoção e
conhecimento na História. Devido
desenvolvimentos “civilizadores” e “descivilizadores”. Elias (2001, a circunstâncias históricas, Elias
p.149) esclarece: permaneceu durante um longo período
como um autor marginal, tendo sido
o que distingue o conceito de figuração dos redescoberto por uma nova geração
conceitos mais antigos com os quais se pode de teóricos nos anos setenta, quando
se tornou um dos mais infl uentes
compará-lo é precisamente que ele constitui um sociólogos de todos os tempos.
olhar sobre os homens. Ele ajuda a escapar de Sua tardia popularidade pode ser
armadilhas tradicionais, as das polarizações, como atribuída à sua concepção de grandes
a do ‘indivíduo’ e da ‘sociedade’, do atomismo e do redes sociais, que encontrou aplicação
coletivismo sociológico. Os meros termos ‘indivíduo’ nas sociedades ocidentais pós-
e ‘sociedade’ já bloqueiam freqüentemente as modernas, onde a presença da ação
individual não pode ser negligenciada.
percepções. (...)Eis um objetivo tão fácil como De fato, a demasiada ênfase na estrutura
ovo-de-colombo e tão difícil como a revolução sobre o indivíduo em vigor até então
copernicana. começava a ser duramente criti cada.
A obra mais importante de Elias
A Sociologia de Elias classifi ca as teorias sociológicas clássicas como foram os dois volumes de O Processo
prisioneiras da oposição tradicional entre indivíduo e sociedade. Civilizatório (Über den Prozess der
Zivilisati on). Originalmente publicado
Nestas teorias, Elias (1980, p.141) diz que a concepção de indivíduo em 1939, foi virtualmente ignorado
aparece em termos de “idéias do eu como ‘estando numa caixa até sua republicação em 1969, quando
fechada’ e do homem como “Homo Clausus”. Elias (1980, p.33) o primeiro volume foi traduzido ao
entende que a “sociedade dos indivíduos” é “o objeto de investi gação inglês. Este primeiro volume traça os
acontecimentos históricos do habitus
menos conhecido”. europeu, ou “segunda natureza”, ou seja,
a estrutura psíquica individual moldada
Elias (1994, p.23) vai defi nir a sociedade como representação de pelas ati tudes sociais. Elias demonstrou
“um ti po especial de esfera. Suas estruturas são o que denominamos como os padrões europeus pós-
medievais de violência, comportamento
‘estruturas sociais’. E, ao falarmos em ‘leis sociais’ ou ‘regularidades sexual, funções corporais, eti queta
sociais’, não nos referimos a outra coisa senão esta: às leis autônomas à mesa e formas de discurso foram
das relações entre as pessoas individualmente consideradas”. Elias gradualmente transformados pelo
(1994, p.30) afi rma, nesse senti do, que “o indivíduo sempre existe, crescente domínio da vergonha e do
nojo, atuando para fora de um núcleo
no nível mais fundamental, na relação com os outros, e essa relação cortesão eti queta. O autocontrole
tem uma estrutura parti cular que é específi ca de sua sociedade”. era cada vez mais imposto por uma
Esse “processo de individualização” impele o indivíduo, através rede complexa de conexões sociais
da estrutura social (rede humana), a um alto grau de controle desenvolvidas por uma autopercepção
psicológica que Freud cunhou como
e transformação dos seus insti ntos. Elias (1994, p.35) defi ne o “super-ego.” O segundo volume de O
processo de individualização “como um tecer e destecer ininterrupto processo civilizatório abordas as causas
das ligações”, dos seres humanos com os seres humanos. É assim destes processos e os reconhece nas cada
que Elias procura eliminar a desconti nuidade entre sociedade e vez mais centralizadas e diferenciadas
interconexões na sociedade.
indivíduo. Elias (1994, p.43) afi rma que, na realidade, o que existe é
uma “sociedade de indivíduos”, cuja descrição é a seguinte: Quando a obra de Elias foi acolhida
por grandes setores da intelectulidade,
inicialmente sua análise do processo
os seres humanos criam um cosmo especial próprio social foi mal compreendida e tomada
dentro do cosmo natural e o fazer em virtude de um como uma forma de darwinismo social.
relaxamento dos mecanismos naturais automáticos Com leituras posteriores, está idéia foi
deixada e sua obra foi entendida a parti r
de uma outra chave de pensamento
sobre o processo social.
Fonte: htt p://pt.wikipedia.org/wiki/
Norbert_Elias

Sociologia da Educação II 13
na administração de sua vida em comum. Juntos,
eles compõem um continuam sócio-histórico em que
cada pessoa cresce - como participante - a partir de
determinado ponto. O que molda e compromete
o indivíduo dentro desse cosmo humano, e lhe
confere todo o alcance de sua vida (...) em suma,
sua dependência dos outros e a dependência que os
outros têm dele, as funções dos outros para ele e
suas funções para os outros.

Portanto, esse “continuum de seres humanos” interdependentes é


o objeto de estudo da Sociologia Figuracional, pois tem movimento
próprio, uma regularidade e ritmo de mudança, passíveis de
explicação científica. Evidentemente, para Elias (1994, p.48)
“nenhuma pessoa isolada, por maior que seja sua estatura, poderosa
sua vontade, penetrante sua inteligência, consegue transgredir as
leis autônomas da rede humana da qual provêm seus atos e para
qual eles são dirigidos” (...) Na realidade, para Elias (1994, p.55), “a
sociedade não apenas produz o semelhante e o típico, mas também
o individual”. E mais, diz Elias (1994, p.57):

essas idéias podem ser fáceis ou difíceis de aprender,


mas os fatos a que se referem são bastante simples:
cada pessoa só é capaz de dizer ‘eu’ se e porque
pode, ao mesmo tempo, dizer ‘nós’. Até mesmo a
idéia ‘eu sou’, e mais a idéia ‘eu penso’, pressupõe a
existência de outras pessoas e um convívio com elas
- em suma, um grupo, uma sociedade.

Figura 4 - foto cedida por Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd

A sociedade não é externa aos indivíduos, muito menos, algo contrário


ao indivíduo. Na realidade, é a coisa que existe quando todo indivíduo
diz “nós”, porque o “eu” está contido no “nós”. É por isso que Elias
(1994, p.59) afirma que “a sociedade humana avança como um todo;
é dessa maneira que toda a história da humanidade perfaz seu trajeto:
de planos emergidos, mas não planejada, movida por propósitos,

14 Sociologia da Educação II
mas sem fi nalidade”. A Sociologia Figuracional é uma abordagem
sociológico-processual, numa busca constante de explicação da
“sociedade dos indivíduos”, em seu contí nuo desenvolvimento das Sociedade dos indivíduos: Registre-se
estruturas sociais e da extensão da individualização, concretamente, que Elias elabora sua teoria a parti r da
“sem fi nalidade” pré-estabelecida fora desse processo social. Elias diferença entre sociedade e indivíduo
(1994, p.150), para escapar da polarização “ou isto/ou aquilo”, na para a compreensão da Sociologia Figu-
racional em termos de sociedade dos
explicação da relação do indivíduo com a sociedade, vai fazer a indivíduos.
seguinte combinação conceitual: “habitus ou composição social dos
indivíduos” (contexto das característi cas pessoais) e o “conceito
de individualização”. O objeti vo teórico é o de “introduzir os
fenômenos sociais no campo da investi gação cientí fi ca, que antes
lhes era inacessível”, dada a dicotomia sociedade e indivíduo. Elias
(1994, p.151) explica, mais um pouco, essa associação conceitual: Balança nós-eu: a metáfora que enfati zar
“a identi dade eu-nós anteriormente discuti da é parte integrante a complexidade e a dinâmica da intera-
do habitus social de uma pessoa e, como tal, está aberta à ção entre a dimensão da sociedade e a
do indivíduo.
individualização. Essa identi dade representa a resposta à pergunta
‘Quem sou eu?’ como ser social e individual”. O habitus social
dos indivíduos é uma construção ‘conceitual, que, para ser úti l na
explicação da “sociedade dos indivíduos”, uti liza o conceito de uma
“balança nós-eu” como .instrumento de observação sociológica.

Elias (1980, p.143) chama atenção para o fato de a “análise sociológica


nunca poder usar justi fi cadamente substanti vos desumanizados (ex.:
capital, sociedade, sistema social) como instrumento de investi gação.
Conceitos como estrutura, função, papel ou organização, economia
ou cultura, não conseguem traduzir uma referência a determinadas
confi gurações de pessoas”. A sociologia Figuracional defi ne a sociedade
como “interdependência das pessoas” ou como “estruturas sociais
entrelaçadas”. Por fi m, Elias (1980, p.142), uti lizando a metáfora dos
jogos coleti vos, sinteti za sua teoria sociológica da seguinte maneira:

por configuração entendemos o padrão mutável


criado pelo conjunto dos jogadores - não só pelos
seus intelectos mas pelo que eles são no seu todo,
a totalidade das suas ações nas relações que
sustentam uns com os outros. Podemos ver que
esta configuração forma um entrançado flexível
de tensões. A interdependência dos jogadores, Sugerimos outras leituras sobre o tema:
que é uma condição prévia para que formem uma http://www.consciência.org/norbert-
elias-e-a-sociedade-dos-indivíduos .
configuração, pode ser uma interdependência de Você também pode procurar na rede
aliados ou de adversários. outras fontes.

1.3. A Figuração da Estruturação

A parti r do percurso refl exivo sobre as teorias sociológicas de


Weber, Elias e Giddens, deve-se buscar a exploração da seguinte
idéia ordenadora desse ensaio: a Sociologia da Figuração deve ser
Formatação: isto é, o desenho das
linhas gerais em termos conceituais do
que será desenvolvido pela teoria da
compreendida como a formatação da teoria da estruturação. estruturação.

Elias elaborou o contexto ontológico do social, no interior do qual, por


sua vez, Giddens criou e lapidou uma série de conceitos sociológicos
necessários à superação da antí tese clássica entre as teorias da
ação (Weber) com as da estrutura (Durkheim e Marx). Daí pode-se

Sociologia da Educação II 15
apreender o seguinte fato teórico: tanto a sociologia da figuração
(Elias), quanto a teoria da estruturação (Giddens) são construções
teóricas cujos conteúdos manifestam o padrão exigido por Weber
na criação dos tipos ideais, de uma síntese entre as teorias da ação
e as teorias da estrutura. Sendo assim, por conseqüência, é possível
deduzir do interior da Sociologia da Figuração, o desenvolvimento da
teoria da estruturação. A explicação dessa conjectura é o conteúdo
final dessa reflexão.

Figura 5 - foto cedida por Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd

Como disse Piaget: sempre está em jogo na explicação sociológica


a necessidade de uma síntese teórica da complexa polarização
antitética entre as “funções individuais” (ou “interiorização reflexiva”)
e as “funções coletivas” (ou “exteriorizações objetivantes”). Para
tanto, Elias, ao produzir seus conceitos dentro do modelo weberiano
para a criação dos tipos ideais, ofereceu o caminho das pedras para
Giddens avançar nessa mesma síntese teórica esperada no debate
teórico-metodológico em Sociologia. No espaço do continuum teórico
entre Elias e Giddens tal configuração sintética pode ser observada.
Realizou-se o que ensinou Weber (1993, p.208): “a fim de conhecer
os nexos causais reais, construímos nexos irreais”. A construção de
“tipos ideais” por Elias e Giddens permitiu a síntese das funções
individuais e coletivas, a partir da qual é possível, empiricamente,
“conhecer os nexos causais reais” da “sociedade dos indivíduos” ou
da sociedade em seu processo de “estruturação”, sem tê-los a priori.
As teorias sociológicas de Elias e Giddens geram a configuração
de sentidos à realidade dos fenômenos sociais ou à sociedade:
criaram-se tipos ideais que são os meios teóricos necessários para a
superação da dualidade indivíduo e sociedade, presente na maioria
das tentativas de explicação dos fenômenos sociais.

Elias define a “sociedade dos indivíduos”como “configurações”.


Giddens apreende a sociedade como um fluxo contínuo entre agente
e estrutura, geradores, ao mesmo tempo, das rotinas da vida social
e da recriação dessas estruturas sociais. Daí a ontologia da vida
social “configurações” sociais. Termos diferentes com o mesmo
conteúdo teórico-empírico. Assim, seria produtivo para a explicação
em Sociologia compreender e utilizar a teoria da estruturação

16 Sociologia da Educação II
de Giddens como um desenvolvimento necessário da teoria das
fi gurações de Elias. É comum a ambos a idéia de não desconti nuidade
entre sociedade e indivíduo. A teoria da estruturação busca explicar
o que Elias defi ne como sociedade: continuum de seres humanos
interdependentes. Elias e Giddens trabalham, em termos explicati vos,
os conceitos de indivíduos e sociedade vinculados, através da ação
social, às funções e relações, obviamente sociais, inseparáveis,
tanto em termos analíti cos, quanto reais, caracterizando os seres
humanos em suas existências dependentes uns dos outros, como
seres que criam a si próprios como humanos, resultantes dessa vida
de interdependência.

A teoria da estruturação tem início no mesmo pressuposto de Elias:


a sociedade dos indivíduos pode ser explicada por uma sociologia
processual, isto é, em seu continuum desenvolvimento das estruturas
sociais e de extensão da individualização. Elias trata do habitus
(composição social dos indivíduos) em relação constante com o
processo de individualização, quando trata da investi gação cientí fi ca
da sociedade. Giddens trata desse mesmo objeto sociológico, mas
expandindo esse par de conceitos em termos da rede conceitual:
Totalidade Social [TS] contorna/molda os Sistemas Sociais [SS],
no interior dos quais, a Estrutura[E] interage - dialeti camente(+/-)
-com a Insti tuição Social [IS]. O que Elias denomina de “continuum
de seres humanos interdependentes” torna-se o objeto da teoria
da estruturação. Em outras palavras, a formatação do que seja
sociedade é dada por Elias, a parti r da qual Giddens complexifi ca
e produz uma evolução conceitual em termos do modelo teórico:
([TS] +/-[SS] +/- [E] +/- [IS]). Desse modo, essa construção conceitual
torna acessíveis à explicação causal os fenômenos sociais, isto é, do
habitus social dos indivíduos no interior da “balança nós-eu” (Elias) à
“estruturação” da sociedade com o modelo teórico de Giddens. Veja,
assim, o esqueleto em pé da teoria da “fi guração da estruturação”.
Elias (1980, p.17)
defi ne “forças
sociais” como
“forças exercidas
pelas pessoas,
sobre outras
pessoas e sobre
elas próprias”.

G i d d e n s
compreende no
mesmo senti do
as forças sociais, Exploramos o senti do dessa afi rmação
pois sofi sti ca essa observando a fi gura 6
defi nição com
a concepção de
Figura 6 - foto cedida por Luiz Felipe Netto de Andrade
e Silva Sahd
estrutura social onipresente, cujo resultado (práxis) é consequência
da mediação humana intencional numa dialéti ca com essa mesma
estrutura. Eis a dialéti ca entre agência (ser humano refl exivo)
e estrutura (coerciti vas e facilitadoras) compreendida como
manifestação (práxis) contí nua das “forças sociais”. Giddens realiza,
certamente, uma exigência que Elias (1980, p.18) faz à Sociologia:

Sociologia da Educação II 17
“deverá produzir gradualmente outros conceitos, que sejam mais
adequados às particularidades das representações sociais do
homem”. Elias (1980, p.22) destaca um problema na construção
de teoria em sociologia, do qual Giddens não padece: “o risco de
perdermos o controle sobre nós mesmos, ou de nos perdermos em
especulações sem limites, em fantasias, brincando com as idéias”. A
teoria da estruturação não é “especulação sem limites (fantasias)”,
dado que fica nos limites teóricos configurados por Elias. Giddens
faz o “esqueleto teórico” de Elias caminhar, ganhar movimento
através da teoria da estruturação. É dessa maneira que se deve
compreender a relação teórica entre esses sociólogos, apesar de não
se encontrar, em suas obras de teoria sociológica, referências nesse
sentido. A teoria da estruturação possibilita a realização prática do
que Elias (1980, p.31) impõe como tarefa da sociologia: “investigação
sistemática da dinâmica das interconexões sociais”.

Estruturação é igual sociologia processual. Figuração é igual ao


continuum explicativo ao longo da linha teórica entre a totalidade
social e a instituição social, conforme elaborada por Giddens.
Totalidade social é definida por Elias (1980:78) como “estrutura
da unidade compósita” ou configuração de seres humanos
interdependentes. Isto é, através da apreensão da sociedade por
meio dos “modelos de jogos”, Elias (1980, p.81) busca explicar a
totalidade social. Esses modelos possibilitam a contextualização das
ações sociais em termos da totalidade dos resultados gerados por
tais “jogos sociais”. Quando essa apreensão do social é alcançada
dessa forma, podem-se alcançar os meios conceituais em termos de
“conceitos de equilíbrio”, os quais “são muito mais adequados ao
que pode ser realmente observado quando se investigam as relações
funcionais que os seres humanos interdependentes mantêm uns
com os outros”. Os modelos de jogos para Elias “demonstram de
um modo simplificado” o fato de que a questão do “equilíbrio”
(continuidade das relações funcionais) está sempre presente na
explicação da totalidade social (interdependência funcional entre as
pessoas).

Para tanto, Elias (1980, p.82) parte do seguinte pressuposto: “entre


os homens, tal como na natureza, não é possível o caos absoluto”.
Elias (1980, p.82) esclarece que

a palavra ‘ordem’ não está a ser usada no mesmo


sentido do que quando se fala de ‘ordem e lei’ ou,
de uma forma adjetiva, de uma pessoa ‘ordenada’
em oposição a uma pessoa ‘desordenada’. Fala-se
de ordem no mesmo sentido em que se fala de uma
ordem natural, na qual a decadência e a destruição
têm o seu lugar como processos estruturados lado
a lado com o crescimento e a síntese e a morte e
a desintegração lado a lado com o nascimento e a
integração.

O conceito de função em Elias (1980, p.84) deve ser entendido “como


um conceito de relação. Só podemos falar de funções sociais quando
nos referimos a interdependências que constrangem as pessoas,
com maior ou menor amplitude”. Por seu lado, Giddens (1989, p.138)
explica as funções sociais a partir da “proposição de que a estrutura
é sempre tanto facilitadora quanto coerciva”. O ponto em comum:

18 Sociologia da Educação II
funções sociais são manifestações de relações de interdependência
entre as pessoas. Tais funções ordenadoras (estrutura) das
possibilidades de ações sociais, existentes entre as
pessoas, são sempre tanto facilitadoras
quanto coerciti vas. Desse modo,
encaixa-se perfeitamente a
compreensão de estrutura
(facilitadora e coerciti va)
de Giddens na concepção
de Elias para funções e
relações sociais. Quando
Giddens chama atenção
para o aspecto facilitador
da estrutura, no mesmo
senti do, Elias (1980,
p.85) chama atenção
para a “reciprocidade,
a bipolaridade ou
a multi polaridade
de todas as
funções”, tanto
coercivas, quanto
facilitadoras.

Na verdade,
Elias (1980,
p.86) delimita
teoricamente
o que Giddens
Figura 7 - foto cedida por Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva
Sahd

defi ne como função facilitadora da estrutura social, em termos


de que “as pessoas (...) são capazes de regular algumas das suas Regular: ter em conta o outro nas
interdependências”. escolhas individuais.

Mais à frente será apresentado de forma mais elaborada o avanço


que Giddens alcançou a parti r dessa idéia de Elias. Os modelos
conceituais de Elias (1980, p.87) devem ser “interpretados como
representações de seres humanos ligados uns aos outros no tempo e
no espaço”. De qualquer maneira, fi ca evidente que toda a teoria da
estruturação de Giddens tem como meta explicar, empiricamente,
o que Elias (1980, p.93) defi niu como “uma confi guração altamente
complexa”.

Veja como parece que é de Giddens a afi rmação seguinte, mas é


Elias (1980, p.105) afi rmando: “os processos de interpenetração são
auto-reguladores e relati vamente autônomos em relação às pessoas
que formam a trama”. Por sua vez, Giddens (1989, p.144) afi rma,
paralelamente, que compreende a coerção estrutural como “a fi xação
de limites à gama de opções a que um ator, ou pluralidade de atores,
tem acesso numa dada circunstância ou ti po de circunstância”. Para
Elias, a estrutura é relati vamente autônoma, enquanto para Giddens,
a estrutura é a responsável pela fi xação de limites dessa mesma
autonomia do ator ou pluralidade de atores.

As construções conceituais de Elias e Giddens encaixam-se como

Sociologia da Educação II 19
num quebra cabeça complexo: a idéia denominada de figuração da
estruturação. A imagem resultante dessa montagem analítica (Elias
+ Giddens) é uma conjectura explicativa da rede de dependência
e interdependência entre as pessoas. Todavia, Elias (1980, p.109)
afirma que a teoria sociológica deve permitir:

compreender mais facilmente o fato desta trama de


relações influenciar constantemente o seu próprio
desenvolvimento, de um modo relativamente
independente das intenções e metas subjacentes às
ações dos indivíduos que a constituem.

Elias (1980, p.112) afirma, ainda, que “a tarefa da Sociologia” é


“tornar [as] teias mais transparentes”, ou seja, explicar as “teias
entrecruzadas de relações, formadas pelas pessoas(...), uma relação
funcional que se estende pelo mundo e que, embora seja composta
por pessoas, é muito pouco controlável e compreensível”. Elias (1980,
p.112) resume o campo de pesquisa da sociologia aos “processos e
estruturas de interpenetração, às configurações formadas pelas
ações de pessoas interdependentes”. É assim que as sociedades
humanas se constituem em problema para Sociologia.

Nesse mesmo sentido, Giddens (1989:XIV) define como tarefa da


Sociologia a “compreensão da ‘agência’ humana e das instituições
sociais”, isto é, “a elucidação de processos concretos da vida social”.
Giddens (1989:XVII) parte do pressuposto de que “a sociedade não é
criação de sujeitos individuais; está distante de qualquer concepção
de Sociologia Estrutural”. Esse distanciamento teórico coloca-o
no interior da Sociologia da Figuração, objetivamente. Giddens
(1989:XVII) descreve as configurações sociais como “estruturação de
instituições”. As atividades sociais vão se configurando em função de
suas “extensões de espaço-tempo”. Tanto para a sociologia eliasiana,
quanto para Giddens (1989:XVIII): “as capacidades reflexivas do
ator humano estão caracteristicamente envolvidas, de um modo
contínuo, no fluxo da conduta cotidiana, nos contextos da atividade
social”.

Não pode haver dúvida: “fluxo da conduta cotidiana” é igual às


“configurações formadas pelas ações de pessoas interdependentes”.
A figuração da rotinização social, no entender de Giddens (1989:XIX)
é a maneira pela qual é produzida a “segurança ontológica”, a qual é
sustentada, por sua vez, pelas “atividades cotidianas da vida social”.
A esfera do cotidiano rotinizado é o campo a ser explicado pela
Sociologia. Elias (1980, p.112) percebe que configuração da rotina
é um objeto sociológico com alto nível de complexidade, fazendo
com que os “assuntos cotidianos surjam como algo de estranho”.
Giddens (1989.-XIX) enfatiza, com outras palavras, que “a rotina
introduz uma cunha entre o conteúdo potencialmente explosivo
do inconsciente e a monitoração reflexiva da ação que os agentes
exigem”. É essa natureza repetitiva da vida social o foco privilegiado
de análise sociológica. Giddens (1989:XX) conclui que “cada pessoa
está posicionada, de um modo ‘múltiplo’, nas relações sociais
conferidas por identidades sociais específicas” (Elias - “ações de
pessoas interdependentes”).

20 Sociologia da Educação II
Observe como na fi gura 8 o que é
visível são as construções sem que nos
apresentem as pessoas que nelas estão.
Em síntese é a vida social que dá senti do
às construções

Figura 8 - foto cedida por Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd

Na verdade, Giddens (1989:XXII) apresenta “um conjunto de outros


conceitos que gravitam em torno da estrutura” (fi gurações). O
conceito de “princípios estruturais” é fundamental e deve ser
compreendido como “característi cas estruturais de sociedades
globais ou totalidades sociais”. A idéia de fi guração da estruturação,
como conjectura teórica, depende da explicitação desses “princípios
estruturais”(=confi gurações). Segundo Giddens (1989:XXIV), “a
teoria da estruturação não será de muito valor se não ajudar a
esclarecer problemas de pesquisa empírica”. Em outras palavras,
é o mesmo que Weber (1993, p.208) exige da uti lização dos “ti pos
ideais”: permiti r estabelecer nexos causais entre os eventos sociais
analisados. Giddens (1989:XXV), enfi m, elabora seu ti po ideal nos
seguintes termos:

na teoria da estruturação, considera-se ‘estrutura’


o conjunto de regras e recursos implicados,
de modo recursivo, na reprodução social; as
características institucionalizadas de sistemas
sociais têm propriedades estruturais no sentido
de que as relações estão estabilizadas através do
tempo e espaço. A ‘estrutura’ pode ser conceituada
abstratamente como dois aspectos de regras:
elementos normativos e códigos de significação.
Os recursos também são de duas espécies:
recursos impositivos, que derivam da coordenação
da atividade dos agentes humanos, e recursos
alocativos, que procedem do controle de produtos
materiais ou de aspectos do mundo material.

Para tanto, Giddens (1989:XXV) busca as tais conexões causais


concretas da estruturação nos “’pontos de transformação’ nas Inerentemente instáveis: Isto é, quando
estruturas sociais; e, segundo, nos modos como as práti cas a Sociologia oferece uma explicação da
insti tucionalizadas estabelecem a “conexão entre a integração social conduta social, ao mesmo tempo, os
e a integração de sistema”. Todavia, Giddens (1989:XXVI) é realista indivíduos estão (re)signifi cando as suas
próprias condutas.

Sociologia da Educação II 21
quanto ao alcance de sua teoria, ao afi rmar que “generalizações
sobre a conduta social humana são inerentemente instáveis com
relação ao próprio conhecimento (ou crenças) que os atores têm
sobre as circunstâncias de sua própria ação”.

Figura 9 - foto cedida por Luiz Felipe Netto de Andrade e Silva Sahd

Giddens (1989:XXVII) ainda afi rma “que a refl exão sobre processos
sociais (teorias e observações sobre eles) conti nuamente penetra,
solta-se e torna a penetrar no universo de acontecimentos que eles
descrevem”. Isto é a defi nição da complexidade do estudo dos “fatos
sociais” ou, como deseja Giddens (1989:XXX): “a cognosciti vidade de
Imperialismo do sujeito - teoria da ação atores sociais, enquanto consti tuti va, em parte, de práti cas sociais”.
social
Giddens (1989, p.2) afi rma que uma de suas “principais ambições na
formulação da teoria da estruturação é pôr um fi m a cada um desses
esforços de estabelecimento de impérios”, isto é, exterminar as
“sociologias interpretati vas que se assentam (...) num imperialismo
do sujeito, o funcionalismo e o estruturalismo, por seu lado, propõem
um imperialismo do objeto social”. Para Elias (1980:14): “padrão
básico de uma visão egocêntrica da sociedade”.

Ainda no entender de Elias (1980, p.15): “reti fi cação (...) idéia de que
a sociedade é consti tuída por estruturas que nos são exteriores”. A
idéia dominante em toda obra de Giddens(1989, p.2) e que sustenta
sua teoria da estruturação é a de que “ as práti cas sociais ordenadas
os espaço e no tempo” devem dominar a explicação em ciências
sociais, substi tuindo, assim, a “experiência do ator individual” e
a “existência de qualquer forma de totalidade social”, enquanto
objetos da análise sociológica. Giddens descreve, detalhadamente,
como ocorrem essas “práti cas sociais ordenadas no espaço e no
tempo”, as quais são denominadas de “racionalização da ação” (para
Elias é a existência de “indivíduos interdependentes”).

Dessa maneira, Giddens(1989, p.4) entende que “os atores não


só controlam e regulam conti nuamente o fl uxo de suas ati vidades
e esperam que outros façam o mesmo por sua própria conta, mas
também monitoram roti neiramente aspectos, sociais e fí sicos, dos
contextos em que se movem”.

22 Sociologia da Educação II
Gráfico 1 - Representações do modelo de estratificação do agente -
Fonte: Giddens (1989, p.4)

Figura 10 - Representação de indivíduos interdependentes (“família” “estado”,


“grupo”, “sociedade” etc.

condições monitoração reflexiva da ação conseqüências


não-reconhecidas racionalização da ação impremeditadas
da ação motivação da ação da ação

Figura 11 - foto cedida por Luiz Felipe Netto de Andrade e


Silva Sahd

Há uma equivalência entre os sentidos das ações sociais para Elias e


Giddens. A sociedade, para Giddens, deduzida a partir do “modelo
de estratificação do agente”, parte de um ponto chave para Elias:
“indivíduos interdependentes”, os quais são denominados por
Giddens: “monitoração reflexiva da ação”.

Sociologia da Educação II 23
Giddens sofistica o diagrama de Elias, da seguinte forma: no lugar das
“valências abertas”, representação da “ação cotidiana” do indivíduo
(Ego, Eu), num “equilíbrio de poder mais ou menos instável” (Elias),
encontramos em Giddens, na realidade, em termos dos conteúdos
(função e relação) das “valências abertas” (Elias), os seguintes
ingredientes das ações cotidianas dos indivíduos: “motivação da
ação”, “racionalização da ação” e “monitoração reflexiva da ação”.

A circularidade demonstrada por Giddens entre as “condições não-


reconhecidas da ação” para as “conseqüências não premeditadas
da ação”, produzem o que Elias denomina de “representação de
indivíduos interdependentes (família, estado, grupo, sociedade etc)”.

De todo modo, deve-se entender o conceito de “agência” para


Giddens como sendo o mesmo que “unidades semi-autônomas” de
Elias (1980, p.193). A diferença ocorre sobre a capacidade explicativa
de ambos. O conceito
de padrão eliasiano
delimita o que Giddens,
apropriadamente,
aprofunda e
desenvolve. Giddens
(1989, p.7) define
“agência” de maneira
que caracterize
amplamente “eventos
dos quais um indivíduo
é o perpetrador, no
sentido de que ele
poderia, em qualquer
fase de uma dada
seqüência de conduta,
ter atuado de modo
diferente”. De maneira
análoga à compreensão
de “agência”, Elias
(1994, p.18) diz que
numa “existência não-
finalista dos indivíduos
em sociedade (...) as
pessoas entremeiam
as imagens variáveis de Figura 12 - foto cedida por Luiz Felipe Netto de An-
seus objetivos”. drade e Silva Sahd

Giddens torna visível, com sua teoria da estruturação, o que, para


Elias (1994, p.21), é denominado de “ordem invisível dessa vida em
comum, que não pode ser diretamente percebida (...) isto é, uma
gama mais ou menos restrita de funções e modos de comportamentos
possíveis”. Para Giddens (1989, p.9), a “ordem invisível da vida em
comum” (Elias) se expressa como atos sociais, os quais “quanto
mais as conseqüências (...) se distanciam no tempo e no espaço (...)
menos provável é que essas conseqüências sejam intencionais”.
Elias (1994, p.20), numa linguagem mais figurada, diz que “a cada
momento presente, as pessoas estão num movimento mais ou menos
perceptível”. Eis o que Giddens (1989, p.4) denomina de “condições
não-reconhecidas da ação”. Nesses termos, encontra-se em

24 Sociologia da Educação II
Giddens (1989, p.11) uma operacionalização conceitual adequada da
problemática relação parte (indivíduo) e todo (sociedade) da seguinte
maneira: “as conseqüências não intencionais são regularmente
‘distribuídas’ como um subproduto do comportamento regularizado
reflexivamente sustentado como tal por seus participantes”. Para
EIias (l994:22), de maneira mais restrita, esse “subproduto” é definido
como um “tecido de relações móveis”, o qual é percebido como um
“contexto funcional que tem uma estrutura muito específica”. A
singularidade da relação entre indivíduos e a sociedade é explicitada
pela teoria da estruturação. Giddens (1989, p.13) reconhece, nesse
sentido, ao estudar as relações sociais: “tanto uma dimensão
sintagmática, a padronização de relações sociais no tempo-espaço
envolvendo a reprodução de práticas localizadas, quanto uma
dimensão paradigmática, envolvendo uma ordem virtual de modos
de estruturação’ recursivamente implicados em tal reprodução”.

Elias (1994, p.28), do mesmo modo, afirma que a individualidade


de cada ser humano em sociedade, ou seja, “todo o processo de
individualização (...) depende da estrutura da sociedade: (...). Seu
destino (...) específico de cada sociedade. A individualidade (...) é
também específica de cada sociedade”. Por seu lado, Giddens (1989,
p.17) especifica como é gerada essa mudança a partir do indivíduo,
no interior do “contexto de relações sociais, da seguinte maneira:

a consciência de regras sociais, expressa sobretudo


na consciência prática, é o próprio âmago daquela
‘cognoscitividade” que caracteriza especificamente
os agentes humanos. Como agentes sociais, todos
os seres humanos são altamente ‘instruídos’ no
que diz respeito ao conhecimento que possuem e
aplicam na produção e reprodução de encontros
sociais cotidianos.

Nas palavras de Elias (1994, p.32), a “cognoscitividade” dos “agentes


sociais” produz uma “auto-imagem” no indivíduo que “constitui
a roupagem externa de suas relações com as outras pessoas. (...)
Ela constitui a expressão de uma singular conformação histórica
do indivíduo pela rede de relações”. Para Giddens (1989, p.17), as
pessoas em sociedade possuem a “capacidade genérica de reagir a
uma gama indeterminada de circunstâncias sociais e de influenciá-
las”. Elias (1994:32) delimita (formata) essa “capacidade genérica”
dos indivíduos de reagir e influenciar a produção e reprodução da
sociedade como um “tipo de autoconsciência que corresponde à
estrutura psicológica estabelecida em certos estágios de um processo
civilizador”.

Encontra-se em Giddens (1989, p.20) um quadro-esquema que


resume sua teoria sobre como a “reprodução social” é possível, numa
relação de dependência do que seja a “dualidade da estrutura”:

A teoria da estruturação pode ser entendida como um esforço teórico


conjuntural (hipotético) de enfrentamento dos desafios explicativos
inaugurado por Elias. Contudo, Giddens (1989, p.21) é realista, pois
toma como fato que “a cognoscitividade humana é sempre limitada”.

Nesse ponto, é possível concluir essa reflexão sobre a figuração


da estruturação. No mais, entender Giddens no interior de Elias é

Sociologia da Educação II 25
realizar um processo de especulação teórica: cada vez que se atinge
uma equivalência entre eles, surge uma nova idéia, no interior de
Elias que, necessariamente, em Giddens pode-se encontrar uma nova
explicação, por meio de sua criação constante de novos conceitos,
assim por diante, sem fim. De fato, existem vários outros conceitos
da teoria da estruturação, não apresentados aqui, que permitiriam
continuar com essa conjectura teórica. Enfim, há muito espaço
para a geração de avanços na capacidade de a sociologia explicar
o fenômeno social denominado por EIias(1994, p.59) de “sociedade
dos indivíduos” e por Giddens de “a constituição da sociedade.

26 Sociologia da Educação II
MÓDULO 2

Questões teórico-metodológicas:
problematização da explicação sociológica

E lias (1994, p.4-5) ao refl eti r sobre a autonomia da Sociologia,


chama atenção para o fato de que o conhecimento sobre a
sociedade não é uma questão que tem existência a priori, isto é, não
pode ser separada do mundo social. A sociologia percorreu um longo
trajeto para alcançar a autonomia em relação à fi losofi a, enquanto
concepção “metafí sica” do social. A autonomia foi possível quando a
sociologia delimitou seu campo de pesquisa cientí fi ca através de “três
coordenadas básicas da vida humana: a formação e o posicionamento
do indivíduo na estrutura social, a própria estrutura social e a relação
dos seres humanos sociais com os acontecimentos do mundo não-
humano”. Para Elias, tais coordenadas anunciaram “outra ‘revolução
copernicana”. Assim, as pessoas podem ser consideradas como
indivíduos, sociedade e formações naturais, em termos de fenômenos
acessíveis à verifi cação empírica. (ELIAS, 1980, p.47)

Portanto, afi rma Elias (1994, p.89), “os homens têm condição de saber
que sabem; são capazes de pensar sobre seu próprio pensamento
e de se observar observando”. Esses são os problemas básicos da
epistemologia no campo das ciências sociais. Elias (1994:94) oferece
uma síntese desse problema epistemológico, da seguinte maneira:

a prolongada discussão sobre o conhecimento girou,


basicamente, em torno desta questão: será que os
sinais que o indivíduo recebe através dos sentidos são
inter-relacionados e processados por uma espécie Estátua pensante: ELIAS (1994:97)
descreve como o olhar fi losófi co através
de mecanismo inato, chamado ‘inteligência’ ou dessa parábola: “cada estátua forma sua
‘razão’, de acordo com leis mentais comuns a todas própria opinião. Tudo o que ela sabe
as pessoas, eternas e preexistentes à experiência, ou provém de sua própria experiência.
será que as idéias formadas pelo indivíduo com base Sempre foi tal corno é agora. Não se
modifi ca. Enxerga algo acontecendo
nesses sinais simplesmente refletem as coisas e as do outro lado. Ela pensa nisso. Mas
pessoas tais como são, independentemente de suas conti nua em aberto a questão de que
idéias? Houve posições intermediárias, soluções se o que ela pensa corresponde ao que
conciliatórias e sínteses, mas todas elas se situam está sucedendo. Ela não tem meios
de se convencer. É imóvel e está só. O
em algum ponto do continuum entre esses dois abismo é profundo demais. O golfo é
pólos. intransponível”.

As fi losofi as metafí sicas da atualidade se situam em algum ponto do


continuum descrito por Elias, mas as Ciências Sociais se livraram desse
continuum, como referência aos seus problemas epistemológicos,
isto é, não se perde mais como o fi lósofo (“estátua pensante”), entre
as idéias sobre a existência supra-individual ou individual do ser
humano.

Sociologia da Educação II 27
As “coordenadas” da vida humana são percebidas pelo
desenvolvimento da dimensão social. A autonomia da Sociologia da
filosofia ocorreu quando o sociólogo atravessou o “fosso” entre o
individual e o social, por meio, como foi descrito anteriormente, da
construção dos “tipos ideais”.

Lakatos4, por sua vez, consolidou a possibilidade da compreensão da


explicação científica, através de mecanismos racionais, ao descrever
o processo de criação científica como “programas de pesquisa”.

Figura 13 - Era dos Répteis do Museu de Ciências


Naturais da PUC Minas – Roberto Murta

Todavia, as Ciências Sociais continuam separadas das ciências naturais.


A sua autonomia da filosofia foi seguida de seu distanciamento
das ciências naturais. Se foi útil no período de sua consolidação
como área de conhecimento particular, será que continua sendo
válida, metodologicamente, tal separação? Por que não explorar
positivamente a aproximação em razão da “simbiose competitiva”,
já em andamento? Wilson(1999, p.173)5 faz, nesse sentido, uma
ponderação pertinente:

as pessoas esperam das Ciências Sociais -


antropologia, sociologia, economia e ciência
política -o conhecimento para compreender suas
vidas e controlar seu futuro. Elas querem o poder de
prever, não o desenrolar preordenado dos eventos,
que não existe, mas o que acontecerá se a sociedade
selecionar uma linha de ação de preferência a outra.

Mais adiante, Wilson (1999, p.174) indaga por que as Ciências Sociais
não realizam de maneira recorrente o que as “pessoas esperam”?
Mesmo havendo progresso nas ciências sociais, a cooperação entre
as áreas que compõem as Ciências Sociais é lenta, pois “mesmo
descobertas genuínas são, muitas vezes, obscurecidas por certas
discussões ideológicas”. A desunião entre os cientistas sociais

4 LAKATOS, Imre. O falseamento e a Metodologia dos Programas de


Pesquisa Científica. In: LAKATOS, Imre; MUSGRAVE, Alan (orgs) A crítica do
desenvolvimento do Conhecimento. São Paulo: Cultrix/EDUSP 1979.
5 WILSON, Edward Osborne. A Unidade do Conhecimento: consiliência. Rio
de Janeiro: Campus, 1999.

28 Sociologia da Educação II
impedem o avanço mais rápido das Ciências Sociais no sentido do
que é esperado delas: “o conhecimento para (...) controlar o (...)
futuro”.

No interior das ciências sociais, atualmente, “diferentes facções


favorecem posições ideológicas que vão do capitalismo laissez-faire
ao socialismo radical, enquanto uns poucos promovem versões
do relativismo pós-modernista que questiona a própria noção de
conhecimento objetivo”. Assim, a “lealdade tribal” colabora para
o atraso no desenvolvimento científico das ciências sociais. Os
cientistas sociais, perdidos nestas lutas tribais, não encaixam em suas
teorias as ciências naturais, como as realidades físicas da Biologia e
Psicologia humanas, nos estudos da cultura. Wilson (1999, p.l75) por
outro lado, reconhecem que:

as Ciências Sociais são hipercomplexas. Elas são


inerentemente bem mais difíceis do que a física e
química e, por isso, elas - não a física nem a química
- deveriam ser chamadas de ciências exatas. Elas
apenas parecem mais fáceis porque podemos
conversar com outros seres humanos, mas não com
fótons, glútens e radicais de sulfeto. Por conseguinte,
livros-textos das Ciências Sociais são um escândalo
de banalidade.

A razão para tanta “banalidade” nas Ciências Sociais se deve à


pouca “atenção aos fundamentos da natureza humana” (Wilson,
1999,p.176). Assim, nada de Biologia nas pesquisas em ciências
sociais. “Os sociólogos acadêmicos têm-se concentrado perto da
extremidade não-biológica do espectro dos estudos da cultura”
(Wilson, 1999, p.178). A sociologia, portanto, está distante das
ciências naturais. Não há razão científica para tal distanciamento, ao
não ser ideológica. Aqui se reproduz o “behaviorismo epistemológico”
rortyano, com certeza. Da mesma maneira que a sociologia se
libertou do “continuum” filosófico, apresentado anteriormente,
veja como se prende em outro “continuum” em sua relação com as
ciências naturais, nas palavras de Wilson (1999, p.179-80)

o modelo padrão de Ciência Social vira de cabeça


para baixo a seqüência de causação intuitivamente
óbvia. As mentes humanas não criam cultura, mas
são elas próprias o produto da cultura. Esse raciocínio
baseia-se, de novo, no desprezo ou na negação
direta de uma natureza humana de base biológica.
Seu oposto polar é a doutrina do determinismo
genético, a crença de que o comportamento humano
está fixado nos genes e que suas propriedades mais
destrutivas, como o racismo, a guerra e a divisão
de classes, são conseqüentemente inevitáveis. O
determinismo genético, segundo os proponentes
da forma forte do MPCS, deve ser combatido não
apenas por ser factualmente incorreto, mas porque
é moralmente errado.

A maneira de fugir desses extremos, negação da natureza humana


e determinismo genético, seria a percepção de um amplo espaço
intermediário, no qual se compreenderia que as “Ciências Sociais são

Sociologia da Educação II 29
intrinsecamente
compatíveis
com as ciências
naturais”
(Wilson, 1999,
p.180). A
compatibilidade
se daria da
m a n e i r a
que Lakatos
denomina de
“programas de
pesquisa”, isto
é, compatibilizar
os modos de
explicação causal
entre Ciências
Sociais e Ciências
Naturais. A
ausência de uma
teoria social que
realize a união
entre Ciências
Sociais e Ciências
N a t u r a i s
alimenta os
discursos
que pregam Figura 14 - Espaço Cultural Frans Krajcberg – Curitiba por
Cristiane Sousa
a morte da
epistemologia,
ou seja, a
“conversação” entre os estudiosos pode continuar sem preocupação
com tal união.

Na realidade, na percepção de Wilson (1999, p.183), “uma


convergência de fato começou. As Ciências Naturais, por sua
própria e rápida expansão de objeto nas últimas décadas, estão
se aproximando das Ciências Sociais”. Quatro pontes unem as
ciências (naturais e sociais): (1): neurociência cognitiva, (2) genética
comportamental humana, (3): biologia evolucionária (sociobiologia)
e (4): as ciências ambientais. Eis um exemplo do que Lakatos chamou
de “simbiose competitiva”. Ciências Sociais sendo enxertadas de
Ciências Naturais, dando origem a um novo “programa de pesquisa”.
Nesse “programa de pesquisa” o padrão de explicação causal é
único. Eis a maneira suficiente das Ciências Sociais libertarem de
suas fidelidades “tribais” e ideológicas, as quais são negadoras das
explicações causais dos fenômenos sociais, gerando, ainda, um
ambiente favorável à reprodução do “behaviorismo epistemológico”
(discurso da impossibilidade da união entre as Ciências Sociais
e Naturais). Wilson (1999, p.185) conclui que, dessa união, o
produto mais valioso para as Ciências Sociais é que elas “adquirirem
poder de previsão”. Uma teoria social advinda dessa união teria
quatro qualidades, no entendimento de Wilson (1999, p.189): (1):
parcimônia, (2): a generalidade, (3): consciliência (adaptacão de uma
disciplina aos conhecimentos verificados em outras disciplinas), e (4):
capacidade de previsão. Enfim, o “programa de pesquisa” descrito
por Wilson (1999, p.195) pode ser resumido, em suas palavras como

30 Sociologia da Educação II
infundir a psicologia e biologia na economia e
em outras teorias sociais, o que só lhes pode
ser vantajoso, significa trazer à tona e examinar
microscopicamente os conceitos delicados de
utilidade, perguntando por que as pessoas em
última análise tendem para certas escolhas e ,
estando assim predispostas, por que e sob que
circunstâncias agem de acordo com elas. Além
desta tarefa está o problema do micro para o macro,
o conjunto de processos pelo qual a massa de
decisões individuais é traduzida em padrões sociais.
E, além disso, enquadrado em uma escala de espaço
e tempo ainda mais ampla, está o problema da co-
evolução, o meio pelo qual a evolução biológica
influencia a cultura, e vice-versa. Conjuntamente,
esses domínios – natureza humana, transição do
micro para o macro e co-evolução gene-cultura –
exigem a plena passagem das Ciências Sociais para
a psicologia e, dali, para as ciências do cérebro e a
genética.

O desenho dessa nova teoria social já está em andamento nos


trabalhos cientí fi cos que procuram viabilizar tal “programa de
pesquisa”. As Ciências Sociais, até hoje, são consideradas efi cientes
na defesa de sua autonomia metodológica, frente às ciências
naturais e à fi losofi a. O desafi o, contudo, agora, se põe, na direção
contrária, isto é, na sua capacidade de gerar um “novo” programa
de pesquisa, conjuntamente com as ciências naturais. O progresso
cientí fi co das Ciências Sociais depende do sucesso dessa união,
epistemologicamente, viável e factí vel, certamente. Os problemas
técnicos, por outro lado, também aí envolvidos, são complicadíssimos,
realmente. Como diz Wilson (1999, p.199), “alguns fi lósofos da
ciência desisti ram, declarando que as fronteiras entre as ciências
naturais e sociais são complexas demais para serem dominadas pela
imaginação contemporânea e poderão permanecer para sempre
inati ngíveis”. Esses fi lósofos, na realidade, só são úteis aos adeptos
do “behaviorismo epistemológico”, ou seja, oferecem argumentos
aos “céti cos epistemológicos”. Wilson (1999, p.200) tem razão,
enfi m, de constatar que “é uma sorte que os próprios cienti stas
não tenham essas limitações” dos fi lósofos “tribo” “behaviorismo Procure relacionar as próximas idéias ao
epistemológico”. Finalizando essa discussão, pode-se repeti r com vídeo sobre Método cientí fi co proposto
Wilson (1999, p.200): “não se esqueça de que o Iluminismo original pela disciplina PIPE.
morreu na fi losofi a, mas não na ciência”.

Foi no mundo europeu-ocidental que surgiu a ciência moderna


em meados do século XVII. Essa nova óti ca sobre a realidade
natural trouxe como fundamento da ciência a investi gação sobre a
causalidade fí sica em negação à investi gação das causas metafí sicas.
Metodologicamente, a observação (experimentação) e o estudo do
fenômeno (empirismo racional e críti co) contra o estudo da coisa
em si e juízo de substância. Desse modo, a “verdade cientí fi ca” é
possível. A ciência moderna criou a explicação do fenômeno fí sico,
exterior ao mundo humano-subjeti vo. Nasce, assim, a nova idéia de
ciência juntamente com a história moderna. Tudo isso é conhecido
como a Revolução Cientí fi ca. Efeti vamente: é o surgimento do
paradigma teórico-metodológico da Ciência Moderna. No século

Sociologia da Educação II 31
XIX, esse modelo de racionalidade científica (como funciona as
coisas) se estende às ciências sociais, não sem grandes dificuldades
epistemológicas que serão explicitadas mais adiante.

Se esse paradigma legitima cientificamente a explicação do fenômeno


físico, o que pensar das condições epistêmicas do fenômeno social?
Há distinção entre ciências naturais e ciências sociais? Qual estatuto
epistemológico e metodológico da ciência moderna do social? Existe
o monopólio do conhecimento científico restrito à natureza? Para
responder essas perguntas a imaginação sociológica é desafiada
a apresentar-se como o meio para tanto. Ou melhor: o sujeito
epistêmico humano frente ao fenômeno humano, como objeto
empírico, pode realizar o conhecimento objetivo? Para a resposta
ser sim, não dever existir a separação epistêmica entre ciência
natural e ciência social, o que dependeria da imaginação sociológica
ter sucesso em termos de fazer funcionar uma metodologia científica
necessária à pesquisa social. O suposto aqui delineado é o seguinte:
é possível uma metodologia científica para produzir explicação dos
fenômenos sociais.

Sendo assim, o truísmo realidade social é uma construção social,


os cientistas sociais fazem emergir a teoria social, a qual busca o
conhecimento possível sobre nós mesmos na sociedade. A relação
dos seres humanos com seres humanos é o telos do entendimento
objetivo do social. A realidade social é o objeto do conhecimento
científico. Todavia, não há consenso epistemológico sobre a natureza
e os objetivos da pesquisa social, quando se pretende localizar
esse empreendimento científico no plano da ciência moderna.
Para o desenvolvimento dessa reflexão, realizar-se-á um esforço
analítico no sentido de oferecer, adequadamente, algumas idéias
sobre os problemas epistemológicos e metodológicos suscitados
na relação conflituosa: pesquisa da realidade social e atendimento
das exigências científicas da explicação. Essa problemática pode ser
traduzida em uma pergunta prática orientadora deste estudo: o
entendimento do fenômeno social, quando realizado pelos estudos
comparativos, survey e estudo de caso realizam as exigências
cientificas da explicação? Vejamos!

A explicação científica do social é possível quando não há uma


especialização progressiva, isto é, o relativismo cognitivo como
caracterização da especificidade epistemológica das ciências
sociais. Essa é a discussão epistemológica que modela a reflexão
em curso. Toma-se como pressuposto de que não existirá ciência
social desenvolvida sem consenso epistemológico. Assim, toda
essa problemática em tela exige conhecimento existente em
outro ambiente analítico, no debate moderno contido na área de
conhecimento denominada epistemologia. Entre as várias questões
que a epistemologia trata está a oposição entre doxa (não ciência) e
episteme (ciência) que se torna útil aqui para a compreensão sobre a
evolução e produção de conhecimento científico na área social.

Para tanto, o ponto de partida reflexivo são os problemas difíceis:


natureza do conhecimento e objetividade da pesquisa social na
esfera das ciências sociais. É assim que se manifesta objetivamente
a polêmica, isto é, o entendimento objetivo do social ocuparia,
estritamente, o reino da doxa? Nesse campo de discussão, ainda
sobrevive a tese de que a explicação científica da esfera social só é

32 Sociologia da Educação II
alcançada em termos de descrições dos juízos teóricos, em debates
sobre a natureza epistemológica da pesquisa científica do social. Um
resultado negativo desse debate epistemológico é a proliferação de
tradições teóricas que sustentam as especializações progressivas,
livres das exigências de uma matriz disciplinar forte, ou seja,
científica, oriunda do reino da episteme. Desse foco, pode-se partir
para o desenvolvimento da reflexão epistemológica sobre o lócus do
entendimento objetivo do social no interior mesmo dessa discussão
teórica.

O questionamento da natureza científica da pesquisa social impõe-se


como ponto de partida dessa discussão, desde sempre. A explicação
da esfera social pressupõe um empreendimento científico muito
complexo. A controvérsia teórica, envolta nesse contexto analítico,
depende da produção de consenso teórico na área da metodologia
de pesquisa, o que, necessariamente, implica o enfrentamento das
seguintes questões: é
possível a explicação
científica do fenômeno
social? Por que os
pesquisadores do
social não respondem,
de maneira unânime,
com um sonoro sim,
a pergunta anterior?
Por que a primeira
pergunta determina
os parâmetros da
discussão teórica na
arena social? De toda
maneira, para explicar
o social, desde a sua
origem, permanece o
seguinte imbróglio: se
o fenômeno é social,
a explicação científica
é problemática. A
procura de solução
para essa confusão
teórica e metodológica
vem alimentando
o mercado teórico
nas ciências sociais,
muito mais no lado Figura 15 - O Xigumandzeni - Adarqmz
da oferta pulverizada Etmologicamente, é das variantes linguisticas do Sul
de teorias, do que de Moçambique e tem como significado “o último a
da capacidade de ser nascido”.
produção científica.

O produto mais evidente desse processo de desenvolvimento


científico, nas ciências da cultura, adveio da geração de um conjunto
de disciplinas que tentam, de forma objetiva, estudar os sistemas e
estruturas sociais, os processos políticos e econômicos, as interações
de grupos ou indivíduos. Para simplificar a confusão descrita, os livros
e manuais que tratam desses assuntos traduzem tudo isso, em termos
de problemas metodológicos das ciências sociais. Quando não há

Sociologia da Educação II 33
acordo metodológico, reina o relativismo epistêmico: a veracidade
ou a falsidade da explicação do fenômeno social é deduzida da
interpretação proposta por um indivíduo ou deduzida de um grupo
social. Isto gera uma atitude relativista em conflito permanente
com a própria prática científica - metodologia - utilizada. Não há
consenso metodológico, não há explicação científica do social: cada
cientista social fica com a defesa de sua conjectura, agarrado a “sua”
metodologia. Eis o domínio do solipsista epistemológico, quando
o objeto do conhecimento é o mundo social. Se predominar essa
compreensão epistemológica, não há ciência possível do social.

Nesse contexto analítico, qual a compreensão recorrente do


fenômeno social que induz à guerra entre os vários modelos teóricos,
ao invés de acordo científico, quanto ao modo de explicação dos
fenômenos sociais e políticos? Quatro proposições dogmáticas
são as bases que sustentam as quizilas metodológicas no plano da
pesquisa sobre o social: (1): o comportamento humano se modifica
ao longo do tempo, impedindo previsões científicas exatas; (2):
o comportamento humano é complexo e sutil de tal maneira que
impossibilita caracterizações pela ciência; (3): o comportamento
humano só é estudado por outro ser humano, não permitindo
objetividade da observação de forma a alcançar a verdade; e (4):
os seres humanos têm liberdade e habilidade deliberada de alterar
qualquer previsão científica. Essas são as proposições metodológicas
repetidas na maioria dos tratados de sociologia, com posições
diferenciadas, em graus variados de desenvolvimento e complexidade
analíticos. Todavia, numa primeira aproximação dessas proposições,
o cientista social pode comprar a idéia de que, se forem verdadeiras,
a base científica das Ciências Sociais é muito frágil, ou melhor, não
possui uma matriz disciplinar forte.

O tratamento científico do fenômeno social percorre uma história


sinuosa em termos metodológicos. Essas quatro proposições nascem
com as ciências do social e continuam alimentando as querelas teórica-
metodológicas no presente, conforme resumida anteriormente. Dada
a complexidade envolvida nessas proposições, de maneira seletiva e
adequada ao limite desse estudo, será explorada uma questão que,
de alguma maneira, envolve todas as proposições acima, ou seja,
a zanga epistemológica entre compreensão e explicação do social.
Nesse sentido, pode se armar a seguinte ideia: a autonomia das
ciências do social é dada pelos procedimentos compreensivos e, de
outro lado, na ciência natural predomina a explicação causal.

Apesar do longo combate dos cientistas sociais para resolver essa


questão, em termos de buscar a eliminação dessa separação entre
o estudo da natureza e do social, com a tese de que na ciência o
método é único, podendo mudar as técnicas e objetos de estudos,
essa problemática permanece nas mentes e corações de todo
cientista social, minimamente informado sobre o debate teórico-
metodológico presente na arena da pesquisa científica do social.

Como a questão orientadora dessa reflexão sugere a separação


entre compreensão interpretativa do social e explicação forte,
científica, possibilita também a defesa da idéia de que o objeto de
pesquisa das ciências do social impede a explicação científica, isto é,
a especificidade do humano, como objeto de estudo, afeta, no limite,
negativamente a possibilidade da explicação científica: dificuldades

34 Sociologia da Educação II
lógicas relacionadas à sua observação e mensuração, as quais são
contaminadas pelo próprio cientista social, isto é, a explicação é
dominada por valores da cultura particular do cientista. Desse modo,
as teorias filosóficas da ciência, tendo como referência científica
as ciências físico-químicas, perpetuam o estatuto científico da
sociologia, nos limites da compreensão interpretativa do fenômeno
social. A sociedade humana, no limite, pode ser interpretada
(conjunto de questionamentos especializados distintos), mas não
pode ser explicada cientificamente. Eis a lógica de compreensão
sobre a produção do entendimento objetivo do social que permite
a especialização progressiva, por ausência de uma matriz disciplinar
forte. Essa idéia será criticada e buscar-se-á a sua refutação teórica.

Se for verdade que a metodologia científica é única, não definida


pela caracterização do objeto de estudo, por que continua válido
o esforço analítico empreendido em responder a questão sobre a
possibilidade de entendimento objetivo do social? Possivelmente,
a reflexão em curso deve levar em conta o ponto de vista, no
geral, dos próprios cientistas sociais, os quais, talvez, reproduzam,
cotidianamente, as seguintes idéias: (1): a teoria social estuda eventos
que são determinados por inúmeros fatores. A complexidade é tal
que é impossível a mensuração científica; (2): os objetos de estudos
das ciências do social têm consciência de si, podendo frustrar,
deliberadamente, qualquer possibilidade de impor um sentido à
ação social; (3): não é possível construir modelos para realizar um
experimento controlado com sujeitos humanos; e (4): não acontece a
repetitividade, isto é, numa sociedade humana não é possível repetir
situações passadas, com experimentos análogos a um experimento
em física.

Portanto, será que todos esses argumentos, verdadeiros ou não


para os cientistas sociais, comprovam que a pesquisa do social não
realiza atividade científica? As ciências do social devem se resignar
ao relativismo metodológico - conjunto de questionamentos
especializados distintos? Para o enfrentamento adequado desses
questionamentos, é necessário explorar algumas teses oriundas
da esfera analítica da teoria do conhecimento ou da epistemologia
moderna. Na realidade, todas as questões listadas, anteriormente,
trazem, de maneira implícita, diferentes concepções de ciência.
Eis, na verdade, o “tutano” da problemática geral que orienta esse
estudo. Todavia, passa-se, desse ponto, a defender a possibilidade
de uma concepção de ciência, no âmbito da epistemologia, cuja
compreensão permitiria o entendimento objetivo do social libertar-
se, pelo menos teoricamente, da caracterização genérica de um
conjunto de questionamentos especializados irrelevantes, por falta
de uma matriz disciplinar forte.

Nesse sentido, Elias ao refletir sobre a autonomia da pesquisa social,


chama atenção para o fato de que o conhecimento sobre a sociedade
não é uma questão que tem existência a priori, isto é, não pode
ser separada do mundo social. A pesquisa do social percorreu um
longo trajeto para alcançar a autonomia em relação, por exemplo, à
filosofia, enquanto concepção metafísica do social. A autonomia foi
possível quando a pesquisa social delimitou seu campo de pesquisa
científica através de “três coordenadas básicas da vida humana: a
formação e o posicionamento do indivíduo dentro da estrutura social,

Sociologia da Educação II 35
a própria estrutura social e a relação dos seres humanos sociais com
os acontecimentos do mundo não-humano”.

ELIAS, N. Introdução à Sociologia. Lis-


boa: Edições: 70, 1980, p.47.

Figura 16 - tamborileiros nas festas de Boiro, Galicia


Luis Miguel Bugallo Sánchez

Para Elias, tais coordenadas, no interior das ciências sociais,


anunciaram “outra ‘revolução copernicana’”. Dessa maneira, as
pessoas podem ser consideradas como indivíduos, sociedade e
formações naturais, em termos de fenômenos acessíveis à verifi cação
empírica.

Nesse senti do, Elias afi rma que “os homens têm condição de saber
que sabem; são capazes de pensar sobre seu próprio pensamento e
de se observar observando”6.

Esses são os problemas básicos da epistemologia, no campo


da sociologia. Elias oferece uma síntese dessa problemáti ca
epistemológica, da seguinte maneira:

a prolongada discussão sobre o conhecimento girou,


basicamente, em torno desta questão: será que os
sinais que o indivíduo recebe através dos sentidos são
inter-relacionados e processados por uma espécie
de mecanismo inato, chamado ‘inteligência’ ou
‘razão1, de acordo com leis mentais comuns a todas
as pessoas, eternas e preexistentes à experiência, ou
será que as idéias formadas pelo indivíduo com base
nesses sinais simplesmente refletem as coisas e as
pessoas tais como são, independentemente de suas
idéias? Houve posições intermediárias, soluções
conciliatórias e sínteses, mas todas elas se situam
em algum ponto do continuum entre esses pólos.7

A esfera social, para Elias, se livrou desse “continuum entre esses


pólos”, isto é, não se perde entre as idéias sobre a existência supra-
individual ou individual do ser humano. As “três coordenadas
básicas”, citadas anteriormente, da vida humana são apreendidas

6 ELIAS, N. (1994). Op.cit, 89.


7 ELIAS, N. (1994) Op.cit., p.94.

36 Sociologia da Educação II
pela dimensão social, a qual é passível de tratamento científico, ou
melhor, a pesquisa social, ao ser compreendida como ciência, passa a
merecer esse status, pois de maneira esclarecedora afirma Popper8:

como em todas as outras ciências, estamos, nas


ciências sociais, sendo bem ou mal sucedidos,
interessantes ou maçantes, frutíferos ou infrutíferos,
na exata proporção à significância ou interesse dos
problemas a que estamos ligados; e também, é
claro, na exata proporção à honestidade, retidão e
simplicidade com que atacamos estes problemas.
(...) Contudo, estes problemas práticos conduzem à
especulação, à teorização, e, portanto, a problemas
teóricos.

Desse modo, a criação de teorias explicativas do social, como em todas


as ciências, obviamente, enfrenta os mesmos desafios metodológicos.
Eis uma perspectiva teórica que permite questionar, negativamente,
a compreensão da ciência do social como uma designação genérica
para um conjunto de questionamentos especializados. O problema
científico em jogo para nas Ciências Sociais não seria a “especialização
progressiva”, mas sua capacidade de atribuir causalidade lógica aos
“problemas práticos” gerados pelos “problemas teóricos”, criados
no âmbito da teoria social. Ou melhor, “a ausência de uma matriz
disciplinar forte” deve ser substituída pela ausência de “problemas
teóricos”. Nesse sentido, Popper9 pondera que:

nas ciências, trabalhamos com teorias, isto é, com


sistemas dedutivos. Há duas razões para isso. Em
primeiro lugar, uma teoria ou um sistema dedutivo é
uma tentativa de explicação e, conseqüentemente,
uma tentativa de solução de um problema científico
- um problema de explicação. Em segundo lugar,
uma teoria, um sistema dedutivo, pode ser criticado
racionalmente através de suas conseqüências. É,
então, uma solução experimental, o objeto da crítica
racional. Tanto quanto o sistema de crítica o é para
a lógica formal.

Dessa forma, a obtenção de explicação causal de um “fato social”,


“como em todas as outras ciências”, implica, fundamentalmente
o tratamento de um problema puramente teórico (premissas:
“explicans”), isto é, encontrar uma regularidade do que se deseja
explicar, o “explicandum”. A explicação (solução de um problema)
envolve sempre uma teoria (conjunto de proposições, relações entre
conceitos e afirmações sobre a realidade social), um sistema dedutivo
capaz ou não de explicar o “explicandum”. Isto ocorre por meio de
uma inferência (lógica) dedutiva, cuja conclusão é o “explicandum”.

Se o trabalho científico é assim para o entendimento do social, como


fica a afirmação de que o entendimento objetivo social é “conjunto de
questionamentos especializados irrelevantes uns para os outros”? Na
realidade, essa definição da esfera social, essencialmente, pretende
sustentar uma perspectiva teórica relativista sobre o trabalho
científico, isto é, a defesa da impossibilidade, principalmente, para
as Ciências Sociais de ser capaz de oferecer explicação científica
para qualquer fenômeno social. A pesquisa do social, ao contrário

8 POPPER, K. A Lógica da Pesquisa Científica. Rio de Janeiro: Tempo


Brasileiro; Edunb, 1978, p. 15.
9 A Lógica das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p. 27.

Sociologia da Educação II 37
do que demonstrou Popper, não seria ciência, pois não possui
“uma matriz disciplinar forte”, suficientemente desenvolvida para
encontrar a causalidade entre “fatos sociais”. Nessa abordagem
relativista, a ciência do social, distinta de outras ciências, ao buscar
a causalidade entre fatores, supondo que exista, ao longo do
processo explicativo, não seria capaz de operacionalizar o seguinte
tratamento teórico-metodológico: nexo (teoria), o mecanismo que
causa o efeito: regularidade, em termos de representação empírica,
o que supõe análise comparativa; seqüência temporal, em que a
variável independente da causa dependente; diferença qualitativa
entre a variável que “causa” e o fenômeno a ser explicado;
contigüidade temporal entre os fatores da relação causal . Quanto
ao nexo apreendido em termos lógico-teórico, em si, não é suficiente
para sustentar a relação de causalidade, pois só teoricamente não
se alcança a explicação causai, é necessário o teste empírico. O
importante, além do já dito, é fixar que a relação de causalidade diz
respeito à implicação lógica para qualquer explicação, seja diacrônica
ou sincrônica.

Para Popper10 esse esquema básico tem como resultado, entre outros,
o entendimento de que “a famosa distinção entre ciências teóricas
ou nomotéticas e históricas ou idiográficas pode ser justificada
logicamente - contando que se entenda aqui, sob o termo ‘ciência’,
(...) qualquer tentativa para solucionar um conjunto de problemas
definidos e logicamente diferenciáveis”.

Desse modo, a indagação se a ciência do social é “um conjunto


de questionamentos especializados” receberia uma resposta
afirmativa, somente se compreender a pesquisa social como uma
“ciência” desenvolvida o suficiente para “solucionar um conjunto de
problemas definidos e logicamente diferenciáveis”. Aí não haveria
consenso sobre os critérios utilizados para avaliar uma solução e que
procedimentos experimentais seriam aceitáveis.

Por outro lado, a pesquisa social como uma ciência explicativa,


nomotética, nega a perspectiva relativista que advoga a
impossibilidade de desenvolvimento de uma explicação científica
do social, a partir da argumentação espúria que procura associar
“especialização progressiva” com “ausência de uma matriz disciplinar
forte”, como demonstração de que a pesquisa social não é ciência,
“como todas as outras ciências”, pois não passa de “um conjunto de
questionamentos especializados distintos e irrelevantes”.

Na verdade, pode-se aceitar a pesquisa do social como uma ciência


capaz de obedecer ao seguinte esquema: de maneira circular Teoria
(segue-se) Hipótese (segue-se) Generalização Empírica (segue-se)
Teoria. No meio, relacionando com todas essas relações encontram-
se os Métodos e Técnicas que propiciam na passagem da Teoria para
Hipóteses (formação de conceitos): das Hipóteses para a Observação
(operacionalização); da Observação para Generalização Empírica
(codificação e análise) e da Generalização Empírica para Teoria
(inferência causai). Eis um quadro sintético que a sociologia realiza
ao buscar a explicação científica.

De outra maneira, seguindo Popper, a lógica da pesquisa científica


contida na explicação do fenômeno social, “como todas as ciências”,
alcançar a explicação científica, encontra-se resumida no seguinte

10 POPPER, K. A Lógica das Ciências Sociais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,


1978, p. 29.

38 Sociologia da Educação II
esquema epistemológico: [PI + TT + EE = P2]. É assim que Popper
“expõe a “solução de problemas e descoberta - a descoberta de
novos fatos, de novas possibilidades, por meio de experimentar as
possibilidades concebidas em nossa imaginação”. Nesse esquema
evolucionário: “PI” se refere à situação inicial do problema enfrentado
pelo cientista; “TT” à teoria tentativa proposta como solução ao
problema; “EE” ao processo de eliminação de erro aplicado à teoria
tentativa; e “P2” à situação-problema revista que resulta desse
processo de ensaio e erro.

Repetindo o enfoque crítico geral popperiano sobre ciência, ou


melhor, sua compreensão do desenvolvimento da ciência é a
seguinte: (A): crítica e a resolução de problemas; (B): ciência como
aprendizado com os erros; e (C): todas as teorias são tentativas
(“conjecturas e refutações”). É assim para Popper11: “a vida, como a
descoberta científica, passa de velhos problemas para a descoberta
de problemas novos e imaginados”.

Se for assim, objetivamente, a “lógica da pesquisa científica” para


todas as ciências, como é possível enquadrar a sociologia numa
“designação genérica para um conjunto de questionamentos
especializados distintos e provavelmente irrelevantes uns para os
outros”? Só é possível, de qualquer maneira, essa tese relativista
sobre a produção de conhecimento pela sociologia (“irrelevantes
uns para os outros”), quando a lógica da pesquisa adotada pela
sociológica não realizar “descobertas científicas” e não passar
de “velhos problemas para a descoberta de novos e imaginados”
problemas sociológicos.

No geral, expor a sociologia como exemplo da impossibilidade de


explicação científica dos “fatos sociais” é uma posição equivocada,
em termos epistemológicos, na tradição popperiana defendida aqui,
a qual se manifesta como a mais adequada na descrição da lógica
da pesquisa social. A explicação do mundo social, como ciência, no
fundo, seguindo Popper, não se difere da ciência natural. É verossímil
essa ponderação, todavia, a confusão teórica suscitada ao longo
dessa reflexão, talvez, permaneça entre a maioria dos pesquisadores.
A partir da perspectiva popperiana, não há razão para que existam
duas lógicas de validação do conhecimento científico.

Figura 17 - Festa em homenagem a Nossa Senhora do Rosário - Centaurokiron

11 POPPER, K. Conhecimento Objetivo. Belo Horizonte: Itatiaia, 1999, pp.


144 e 146.

Sociologia da Educação II 39
É possível afirmar, portanto, que o método é, rigorosamente, o
mesmo para o fenômeno social e para a ciência natural. Todavia, a
Técnica de Pesquisa, por sua vez, pode ser diferente de uma área
para a outra do conhecimento científico: da matemática à química,
da física à biologia, da sociologia à semiótica etc. É aceitável que
disciplinas tão diferentes se valham de técnicas distintas em seus
trabalhos de pesquisa. Por exemplo: as ciências naturais podem
usar a experimentação e a Sociologia utilizar o survey. Na realidade,
a complexidade do mundo social não deve ser interpretada como
fator inibidor ou limitador das possibilidades objetivas de se fazer
sociologia segundo a “lógica da pesquisa científica”. A complexidade
do social como objeto de pesquisa científica, ao contrário da teoria
do conhecimento implícita na discussão em foco, não impossibilita o
fazer teoria científica do social. Não deixa de ser um grande desafio,
pela dificuldade da empreitada, como também um grande atrativo
no que diz respeito à riqueza e ao dinamismo que a explicação do
mundo social envolve.

Em outras palavras, Boudon12 descreve a distinção fundamental


entre essas abordagens sociológicas da seguinte maneira:

certas teorias sociológicas utilizam uma linguagem


tal que o fenômeno social que elas explicam é
descrito como o resultado da justaposição ou da
composição de um conjunto de ações. No que se
segue, entenderemos por ação um comportamento
orientado para a busca de um fim. Nesse caso,
diremos que uma teoria sociológica pertence à
família dos paradigmas interacionistas. Outras
teorias utilizam uma linguagem tal que o fenômeno
social que explicam é o resultado de comportamentos
que não são descritos como orientados para fins que
os sujeitos, de maneira mais ou menos consciente, se
esforçariam para atingir. Ao contrário, são descritos
como resultando exclusivamente de elementos
anteriores aos comportamentos em questão.
(...) Chamaremos de paradigmas deterministas
aqueles caracterizados pelo fato de um fenômeno
social ser explicados como o resultado exclusivo de
comportamentos no sentido definido.

A divisão entre essas disciplinas é um exemplo clássico da situação


que vem impedindo o desenvolvimento de certo grau de unificação
teórico-metodológico entre as dimensões micro e macro, nas
ciências sociais, apesar da “chave unificadora” da racionalidade. A
resistência a esse caminho unificador persiste ao longo do tempo
na história das ciências sociais, impedindo-a de apresentar-se em
termos de uma disciplina científica. Todavia, essas duas abordagens
teóricas alimentam a si próprias com a ambição teórica de formular
princípios de uma ciência do social, isto é, uma disciplina possuidora
de uma “matriz científica forte”. Negar essa “chave unificadora”
distorce e prejudica a capacidade explicativa das ciências sociais.

Contudo, quais são as questões que fazem parte desse embate


litigioso? Do lado da ciência do social, podem-se destacar três
questões: (1): estrutura social e vida social (sociedade é produto
da ação dos indivíduos ou a ação dos indivíduos é produto da

12 BOUDON, R. Efeitos Peversos e Ordem Social. Rio de janeiro: Zahar, 1979,


p. 179.

40 Sociologia da Educação II
sociedade); (2): a relação entre estrutura social e mudança histórica;
e (3): natureza da explicação social (causal, funcional e intencional).

Essas questões geram, na verdade, contínuas divisões


(“especializações”) e fragmentações no interior das
ciências sociais, intensificando, desse modo, a disputa
e o distanciamento entre esses “questionamentos
especializados e distintos”. Contudo, é possível ter
um ponto de saída teórico para que a pesquisa social
não se transforme, simplesmente, nesse “conjunto
de questionamentos”. Nesse sentido, pode-se seguir
Olson quando pondera que “os mesmos processos
e instituições que dão ao indivíduo os seus valores
sociais também lhe inculcam atitudes sobre a vida
econômica e política e influenciam toda a sua
personalidade”. Antes de nos aprofundarmos nessas
possibilidades de existência das ciências sociais, em
termos de uma “matriz teórica forte”, ainda vale
apresentar os fatores que geraram esse tipo de
“indagação”.13

Todavia, a produção científica na área social pode ser separada, em


linhas gerais, entre a abordagem da escolha racional e a perspectiva
macro-sociológica, com todas as diferenças (“especializações”)
teóricas internas a cada “distinto” questionamento sobre o social.
A diferença central entre essas perspectivas, como já salientadas
anteriormente, diz respeito ao modo de realizar a explicação
(“conjunto de questionamentos especializados”): escolha racional
circunscrita à dimensão micro (explicação intencional) e a dimensão
macro (explicação causal).

Historicamente, as Ciências Sociais enraizaram essas duas abordagens


científicas, em movimentos antitéticos, garantindo uma autonomia
relativa entre elas. Nessa realidade analítica (“questionamentos
distintos”) estão contidas, também, idéias complexas, na verdade,
projetos de integração, na forma de uma disciplina “forte”. Por
enquanto, vale ainda explorar as diferenças teórico-metodológicas
envolvidas. O modelo analítico da escolha racional, por seu lado,
possui um aspecto característico: a vida social deve ser explicada
como a forma de maximizar a satisfação das preferências do indivíduo.
Parte do suposto de que os indivíduos são racionais e executam
ações intencionalmente orientadas no sentido da realização de seus
interesses particulares. A pretensão explicativa envolta nesse modelo
analítico é a seguinte: dado um contexto de alternativas de ações
disponíveis aos atores sociais é possível explicar o comportamento
desses atores, como também compreender os fenômenos macro:
estrutura social, fenômenos culturais, instituições e normas. Essa
maneira de propor a explicação dos fenômenos sociais parte da
idéia de que é possível reduzir os fatores estruturais aos resultados
das decisões individuais. Interesses e preferências direcionam
a conduta dos atores sociais. Aqui está manifesto o suposto da
intencionalidade, ou seja, são os indivíduos que definem os objetivos
a serem perseguidos e agem de modo a realizá-los. Reis14 sintetiza:
“a perspectiva da public choice tem como ponto de partida uma
postura na qual o recurso à noção de racionalidade é fundamental e

13 OLSON Jr, Mancur. “As Relações entre a Economia e as Outras Ciências


Sociais- A Esfera de um ‘Relatório Social’”. In: LIPSET, Seymour M. Política e Ciências
Sociais. Rio de janeiro: Zahar, 1972.
14 REIS, Fábio Wanderley. Política e Racionalidade. Belo Horizonte: UFMG,
1984, p. 104.

Sociologia da Educação II 41
em que se procura dar um sentido preciso a esta noção, tomada em
termos que remetem diretamente à eficácia ou ‘instrumentalidade1
de uma ação ‘intencional’”.

No postulado estruturalista, por sua vez, o indivíduo é produto das


estruturas sociais. Desse modo, negligencia os microfundamentos
das ações individuais, como fatores chaves na explicação sociológica.
A ação individual, no limite, está sujeita a coerções sociais. Essas
coerções circunscrevem a dimensão do possível da ação social,
não o campo do real. A coerção social, na verdade, só tem sentido
em correlação com a ação e a intenção dos indivíduos, ou melhor,
a possibilidade de se ter uma significação da estrutura social,
analiticamente orientada, advém, necessariamente, das intenções e
projetos dos atores.

Assim, de maneira unificadora, a existência da estrutura social


só tem sentido teórico-metodológico a partir da ação individual.
Dessa maneira, pode-se aceitar uma ciência do social unificada,
isto é, contrária à perspectiva que pressupõe como sendo a “sina”
da pesquisa científica do social a sua existência como mais uma
disciplina, mais uma “especialização irrelevante”. A teoria da escolha
racional não é mais uma “especialização” no interior das ciências
sociais, pode ser tomada como uma teoria que busca explicar a
ação social, não como negação da existência da estrutura social. O
desafio metodológico embutido aqui diz respeito à capacidade da
explicação do fenômeno social encontrar, empiricamente, a lógica
dos microfundamentos responsáveis por um fenômeno social global.
Reis15, nesse sentido, afirma:

o individualismo metodológico tem o mérito


inegável de recusar-se a resolver por hipótese, em
qualquer nível (vale dizer, ao nível de grupos parciais
de qualquer tipo, bem como da sociedade global),
aquilo que é precisamente o problema crucial de
quais vêm a ser os sujeitos coletivos do processo
sócio-político.

Contudo, em termos teórico-metodológicos, no contexto da reflexão


sobre as perspectivas micro e macro de explicação nas Ciências Sociais
(“especializações distintas”), interessa particularmente destacar
que a explicação intencional (micro), para o desenvolvimento
teórico unificado da esfera social, necessita admitir a existência
das conseqüências não intencionais das ações intencionais. Esse
“fato social” impõe-se como uma tarefa para a ciência do social,
isto é, torna-se seu objeto principal de pesquisa científica, desde
sua origem como ciência. Essa é uma maneira teórica de abordar a
problemática relação entre micro versus macro, a qual possibilita a
união entre essas “especializações” litigiosas entre si. Do contrário, é
a constatação da prevalência de todos os “frutos perversos da árvore
do conhecimento sociológico”, implícitos na pergunta orientadora
dessa resposta. Seria a prova, enfim, de que as teses que negam à
sociologia o status de ciência “forte” são verdadeiras.

Nesse sentido, Boudon16 esclarece que

15 REIS, Fábio Wanderley. Política e Racionalidade. Belo Horizonte: UFMG,


1984, p. 123.
16 BOUDON, R. Efeitos Peversos e Ordem Social. Rio de janeiro: Zahar, 1979,
Pp. 07-12.

42 Sociologia da Educação II
esse tipo de efeitos muitas vezes qualificados de efeitos perversos,
ou de efeitos de composição, não aparece apenas na esfera da vida
econômica. Não vemos, aliás, por que motivo eles deveriam ser
limitados a essa esfera. Na realidade, podemos afirmar sem exageros
que são onipresentes na vida social e que representam uma das
causas fundamentais dos desequilíbrios sociais e da mudança social.

Portanto, para finalizar essa parte da reflexão, pode-se compreender


que ao se buscar a explicação científica dos “efeitos perversos”
desaparece, objetivamente, o monopólio explicativo seja da
“especialização” micro, seja da dimensão macro. Vejam bem. O
próprio objeto de estudo das ciências sociais exige, pressupõe,
necessita de uma “matriz disciplinar forte”, a qual, por sua vez,
tem como desafio, teórico-metodológico, oferecer uma explicação
científica, como qualquer ciência, para a seguinte cadeia padrão de
eventos (fenômenos) sociais: {macro [contexto]+micro [ação]+macro
[contexto]}. Para tanto, a significação dos “efeitos perversos”, para
Boudon, como “efeitos individuais ou coletivos que resultam da
justaposição de comportamentos individuais sem estarem incluídos
nos objetivos procurados pelos atores”, além de ser frutífero em
termos da demonstração da existência de uma sociologia com
capacidade teórico-metodológica para operacionalizar os conceitos
de Boudon, gera, ainda, no interior das ciências sociais, a possibilidade
concreta da explicação científica dos fenômenos sociais.

Sociologia da Educação II 43
MÓDULO 3

Sociedade, Sociabilidade e Sociação: cultura

Figura 18 - Marcha-obrera-Argentina-2005

S ão questões fundamentais para os estudos sociológicos: cultura,


gênero e educação. Como foi apresentada a reflexão sobre as
teorias pós-estruturalistas na primeira unidade, é necessário que o
estudante tenha em mente a conceituação expostas nas sociologias
da estruturação de Giddens e na da figuração de Elias para a
compreensão adequada dos temas desse módulo.

O conjunto de problemas da Sociologia abrange todo o campo da


existência humana. Nessa disciplina, as teorizações sobre cultura,
gênero e educação serão expostas. Como fixado anteriormente, os
seres humanos são socialmente determinados – e é essa faceta que
importa à sociologia -, além das demais possibilidades de teorização
sobre nós mesmos. São muitos os aspectos fora das preocupações
sociológicas, tais como: econômico, espiritual, político, jurídico,
religioso e biológico. A sociologia se responsabiliza teoricamente,
como é sabido, por todas essas dimensões, quando são atravessadas
pelo social. Esse conceito, social é o objeto de estudo da Sociologia,
vale lembrar.

Daí que cultura, gênero e educação podem ser apreendidos

Sociologia da Educação II 45
como produtos e desenvolvimentos da sociedade, dado que seus
significados objetivos produzem a Sociologia. É uma particularidade
do ser humano a capacidade de construir a sociedade, a qual pode
ser explicada conceitualmente. A abordagem sociológica pode
ser aplicada para estudar os fenômenos sociais: cultura, gênero e
educação.

A pergunta que deve ser feita para o enquadramento teórico desses


fenômenos é a seguinte: qual a correspondência possível de sentidos
entre o comportamento, ação e representação coletivos, do ponto
de vista dos valores, com os valores expressos pelos indivíduos?
Lembram-se da teorização sobre indivíduo e sociedade da primeira
unidade?: Releia o texto. A totalidade social é o produto das ações
humanas, com sentidos que a sociologia impõe à realidade social:
conceitos de cultura, gênero e educação. Sociedade é sempre uma
relação recíproca entre indivíduo e a sociedade. Aqui há um conceito
para ser fixado que foi elaborado por Simmel17 (2006, p.60):

Defino assim, simultaneamente, como conteúdo e


matéria da sociação, tudo o que existe nos indivíduos
e nos lugares concretos de toda realidade histórica
como impulso, interesse, finalidade, tendência,
condicionamento psíquico e movimento nos
indivíduos ou mediatizar os efeitos sobre os outros,
ou a receber esses efeitos dos outros.

Cultura, Gênero e Educação são manifestações que produzem no plano


social o que Simmel (2006) denomina de “sociação”: “determinadas
formas de estar” e “de ser” para o outro. Os interesses dos indivíduos
(“sensoriais, ideais, momentâneos, duradouras, conscientes,
inconscientes, movidos pela causalidade ou teleologicamente
determinados,” conforme Simmel (2006) são, portanto, a estrutura
que sustenta a sociedade. Educação, por exemplo, é fundamentai
para a existência da vida social. Conhecimento é uma ferramenta
na luta pela existência dos indivíduos, tanto para sua preservação,
quanto ao seu aprimoramento frente às oportunidades do ambiente
social.

O fenômeno da sociabilidade ocorre, assim, através de processo


complexo de interação entre “conteúdo” e “forma” da existência
social. Essas “formas” adquirem “uma vida própria” Simmel (2006,
p.64)

Eis os fenômenos da sociabilidade: gênero, cultura e educação.


Necessidade e interesses específicos determinam as opções de ações
dos indivíduos no interior dessa “sociação”. Quando isso ocorre,
os indivíduos têm o sentimento de que estão “socializados” pela
sociedade. Sociabilidade é definida por Simmel (2006, p.64) “em sua
pura efetividade, (...) como valor e como felicidade”. Para Simmel
(2006, p.65-66):

Somente o sociável é exatamente uma ‘sociedade’,


sem qualquer outro atributo, porque representa
a forma pura, acima de todo conteúdo específico
de todas as ‘sociedades’ unilateralmente
caracterizadas”. (...) As qualidades pessoais de
amabilidade, educação, cordialidade e carisma

17 Simmel, G. Questões Fundamentais da Sociologia: Indivíduo e Sociedade.


Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

46 Sociologia da Educação II
de todo tipo decidem sobre o caráter de ser em
comunidade.

O ser humano, fora da sociação, sem os atributos da sociabilidade


torna-se um ser sem conteúdo, formas e possibilidades de interação
com o outro humano. Sociação é interação, via educação, cultura
e gênero. Essas são as formas que a sociedade vai encontrar para
existir “dentro” ou “fora” dos indivíduos. É dessa maneira que cada
um dos seres humanos vai sendo “modelado” e se expressa através
da cultura, do gênero e da educação. Simmel (2006, p.114) sintetiza
de maneira adequada essa tensão real e analítica entre o indivíduo e
a sociedade da seguinte maneira:

Se cada indivíduo é um ‘compêndio’ de toda a


humanidade, e, olhando-se para mais adiante,
uma síntese das forças que formam o universo, no
entanto, cada um dá forma a todo esse material
comum em uma figura totalmente única, e aqui,
tanto como na concepção anterior, a realidade é ao
mesmo tempo uma prescrição do dever fazer: o ser
humano não é incompatível somente como um ser
que já existe, posto em uma moldura que só pode
ser preenchida por ele, mas, visto por outro lado, é
a efetivação dessa incomparabilidade, e preencher
seu próprio limite é a sua tarefa ética, e cada um
tem vocação para realizar sua própria e exclusiva
imagem originária.

Se a sociedade é a condição universal da vida humana, em afirmação


certeira de Viveiros de Castro18 (2002, p.297), a cultura é parte
fundamental da
sociedade.

O ser humano não


vive, obviamente,
fora da sociedade,
dado que sua
constituição como
humano se faz
exclusivamente
na sociedade.
Para a pesquisa
sociológica, o
significado de
cultura são modos
apropriados e
necessários de
pensar, agir e
sentir. Isso inclui Figura 19 - Culturas Huaxitita - ENCUENTRO DESENCUENTRO
conhecimento,
crença, arte,
moral, lei, costume
dos seres humanos como membros da sociedade. Resumidamente:
cultura refere-se aos padrões, às crenças e às atitudes que fazem
as pessoas agirem como agem. Cultura tem o dom da ubiqüidade e
da significação variada, as quais são aprendidas e partilhadas. Dessa
maneira, o comportamento universal não aprendido, os reflexos

18 Viveiros de Castro, Eduardo. A inconstância da Alma Selvagem. São Paulo:


Cosac Naif, 2002.

Sociologia da Educação II 47
e as idiossincrasias pessoais do indivíduo não são manifestações
sociais da cultura. A cultura é um conceito que possui os seguintes
componentes: as insti tuições (padrões normati vos que governam o
comportamento social), idéias (crenças, conhecimento e valores);
e os produtos materiais criados e usados na vida coleti va (dos
instrumentos primiti vos às máquinas contemporâneas). Vejamos a
seguir algumas das principais concepções de cultura.

Os seres humanos frente à natureza, socialmente, transformam a


natureza, isto é: humanizando-a, ao transformarem a si próprios, sem
produzirem o mundo natural. Produção e reprodução da sociedade
pertencem ao domínio da ação humana. As escolhas humanas
ocorrem em situações historicamente dadas. Essa discussão já
foi realizada em Sociologia I. Sociedade e Cultura apresentam-se
na refl exão sociológica como duas anti nomias. Viveiros de Castro
19
(2002, p.302), de maneira esclarecedora, oferece um resumo das
idéias sobre cultura:

Sociedade’ e ‘cultura’ vieram ainda dividir o campo


estruturado pela oposição jusnaturalista entre
‘(estado de) natureza’ e ‘sociedade (civil)’, com a
diferenciação das duas antinomias centrais das
ciências humanas: natureza/cultura/ e indivíduo/
sociedade. Ambas conotam o mesmo dilema
teórico, o de decidir se as relações entre os termos
opostos são de continuidade (solução reducionista)
ou de descontinuidade (solução autonomia ou
emergente). A cultura é um prolongamento da
natureza humana, exaustivamente analisável em
termos da biologia da espécie, ou ela é uma ordem
suprabiológica que ultrapassa dialeticamente seu
substrato orgânico? A sociedade é a soma das
interações e representações dos indivíduos que a
compõem, ou ela é sua condição supraindividual, e
como tal um ‘nível’ específico da realidade?

Viveiros de Castro oferece a síntese da complexidade quando


propõe o tratamento sociológico dos termos “natureza”, “cultura”,
“indivíduo” e “sociedade”. Se for verdade que o indivíduo isolado
é uma fi cção, os seres humanos vivem juntos, parti lhando formas
de vida em comum; uma cultura. Esse mecanismo social – cultura
– regula a existência coleti va e cria as maneiras de adaptação ao
Rever a primeira parte: as teorias pós- mundo natural que rodeia cada indivíduo no interior dessa vida
estruturalistas.
humana em grupo. A sociologia acentua os traços coleti vos da vida
social, buscando destacar os aspectos parti lhados e padronizados do
comportamento. Estudar a sociedade e a cultura: relações, normas
sociais, crenças comparti lhadas que conformam as normas sociais
e são internalizadas em estruturas sociais. Tudo isso é tangível nos
indivíduos: a sociedade dos indivíduos.

De quaisquer que sejam as maneiras de abordagens do que sejam


“sociedade” e “cultura”, o que deve ser fi xado, teoricamente, é o
seguinte: tanto a cultura, quanto a sociedade são estruturas sociais,
criadas pelos indivíduos, que possuem “conti nuidade” e “persistem”
para além da existência dos seus criadores humanos, os quais são
substi tuídos de tempos em tempos, dado a obviedade de que o ser
humano ainda não alcançou a imortalidade. Cultura e sociedade são

19 Viveiros de Castro, Eduardo. A inconstância da Alma Selvagem. São Paulo:


Cosac Naif, 2002.p. 302.

48 Sociologia da Educação II
criadas, possuídas e utilizadas, existindo num tempo além da vida de
cada um que compõe esse universo social.

Outro dualismo conceitual a ser lembrado: cultura e civilização.


Horkheimer & Adorno20 (1973, p.93) afirmam que “’Cultura’ sempre
teve a conotação de ‘cultura espiritual’, enquanto ‘civilização’
subentende um ‘progresso material’”. De fato, civilização deve ser
entendida como “o âmbito geral da humanidade”. Desse modo não
há oposição teórica entre esses conceitos. Não são antitéticas entre
si. Horkheimer & Adorno (1973, p.97-98) oferecem o estado da arte
dessa confusão teórica entre civilização e cultura no mundo moderno
capitalista em que vivemos da seguinte maneira:

O que não se pode desconhecer é que as duas coisas


que o espírito iluminista, desde Kant até Freud, quis
ver estreitamente ligadas, vêm agora, de fato, se
separando. Não está certo invocar a cultura contra
a civilização. O gesto de exorcismo, a exaltação da
Cultura à custa da sociedade de massa, o diligente
consumo de bens culturais como manifestação do
próprio gosto superior na formação da alma, tudo
isto é, justamente, inseparável do que a civilização
tem de desarticulado e desagregador. A evocação da
Cultura é importante. Contudo, é igualmente certo
que a atividade civilizatória, como produção e uso
cultural de meros recursos instrumentais que, aliás,
são frequentemente supérfluos, já se tornou, hoje
em dia, intolerável a si própria; e que os homens já
quase não são (ou não são de todo) senhores desse
equipamento mas seus servidores ou consumidores
forçados do que a civilização produz.

A visão crítica do capitalismo moderno de Horkheimer e Adorno é


muito útil para o entendimento do conceito de cultura. Se a civilização
hoje em dia se manifesta, objetivamente, como “civilização técnica”,
a sociedade moderna, dado o domínio da dimensão da “técnica”,
não atende mais às necessidades humanas contidas nas esferas da
civilização e da cultura, são mercadorias para quem pode consumir

Figura 20 - Festival de las tres culturas, Frigiliana, Málaga, Spain – Miguel Frutos

20 Horkheimer, Max e Adorno, Theodor W. (Orgs.). Temas Básicos da Sociolo-


gia. São Paulo: Cultrix; EDUSP, 1973.

Sociologia da Educação II 49
“cultura”, não mais uma dimensão da vida na sociedade. O progresso
técnico é compreendido por esses sociólogos como a maior ameaça
sobre o “Espírito” e a sobrevivência “fí sica” da humanidade. Quanto
maior o progresso técnico, maior a “idioti a” cultural e da civilizacão,
dado que “os homens estão sendo marginalizados do processo de
produção de bens.
Rever a teoria da confi guração de Elias Cultura é um conceito ambíguo, pois possui inúmeras defi nições. As
na parte inicial. principais estão sendo expostas. Entre elas deve-se fi xar que cultura
exprime uma confi guração simbólica.

BOUDON21 (1995, p.503) oferece uma possibilidade de diminuição


da complexidade do tratamento teórico do conceito de cultura, ao
abordar como Claude Lévi-Strauss enfrentou esse problema:

as razões que levaram Claude Lévi-Strauss a


acrescentar à sua definição de cultura (‘fragmento
de humanidade que, do ponto de vista do estudo em
curso e da escala a que é conduzido, apresenta em
relação ao resto da humanidade descontinuidades
significativas’): que ‘parecem que a realidade e
a autonomia do conceito de cultura poderiam
ser simultaneamente validados se a cultura fosse
tratada, de um ponto de vista operacional, como o
geneticista e o demógrafo tratam o conceito afim
de isolat que introduz a noção de descontinuidade.

A sociologia estuda, entre


várias coisas, as práti cas e as
representações. Se observarmos
as sociedades que consomem
cultura, pode-se deduzir que
grupos sociais atribuem funções e
senti dos diferentes e a cultura pode
ser parti lhada por todos. Defi nir
cultura é olhar um caleidoscópio:
concepções diversas para todos
os gostos e usos. Boudon (1995,
p.516) conclui que “a cultura
visa à libertação das pressões, a
realização do eu, a valorização
do imediati smo, da sensação, da
simultaneidade, em suma um
prazer de que é a justi fi cação.”
Isto signifi ca que a diversidade
cultural humana é excepcional.
Os comportamentos sociais de
Figura 21 - Adolescente Pataxó - José sociedade para sociedade são
Cruz/Abr os mais variados e diversos em
signifi cados culturais. Vejam os
exemplos expostos por GIDDENS
(2000, p.42):

No ocidente, comemos ostras, mas não comemos


gatinhos e cachorros, e tanto uns como outros
são considerados, em algumas partes do mundo,
iguarias gastronômicas. Os Judeus não comem carne

21 Boudon, Raymond. Tratado de Sociologia. Rio de janeiro: Jorge Zahar ed.,


1995.)

50 Sociologia da Educação II
de porco, enquanto Hindus, embora comam porcos,
evitam a carne de vaca. Os ocidentais consideram a
ato de beijar uma parte natural do comportamento
sexual, mas em muitas outras culturas esse ato é
ou desconhecido ou considerado de mau-gosto.
Todos esses diferentes tipos de comportamento
são aspectos das grandes diferenças culturais que
distinguem as sociedades umas das outras.

Padrões de comportamento identificam as diferenças culturais entre


as sociedades. Os sociólogos estudam os padrões e sentidos culturais
produzidos por essas sociedades. Cada cultura deve ser estudada por
seus próprios significados e valores. As culturas humanas são de uma
diversidade extraordinária. Aceitar ou não essa realidade do mundo
social no planeta terra vai depender da sofisticação sociológica do
estudioso, caso contrário, ficará preso aos valores de sua cultura,
significando de modo etnocêntrico os seres humanos das outras
culturas que não é a sua. Esse é um erro teórico e humanitário, dado
que não irá tolerar e respeitar o que é diferente de sua própria vida
social.

Sociologia da Educação II 51
MÓDULO 4

Sociação: Educação e Gênero

4.1. Educação

Figura 22 - School – Liége

A sociedade contemporânea exige a educação formal para o


aprendizado dos conhecimentos e habilidades para fazer parte
dos valores e perspectivas de sua sociedade. As normas sociais, as
crenças e costumes e padrões morais não advêm mais da imitação
dos mais velhos e da absorção ao longo do curso da vida cotidiana.
A educação é composta da sala de aula e do complexo processo de
socialização responsável pela transformação da criança em ser social.

A escola torna-se uma característica marcante da sociedade


contemporânea, apesar de ser apenas uma das instituições que
socializam o indivíduo. Daí a importância da educação para o
desenvolvimento da sociedade e do indivíduo. A educação passou
a ser um direito de todos que compõem a sociedade. O acesso com
mais ou menos qualidade, quanto à oferta para todos, vai depender
do mundo econômico. Países mais ou menos desenvolvidos sócio-
economicamente vão atender mais ou menos a demanda por
educação em todos os níveis. O grau educacional de uma nação
será utilizado para classificação de seu nível de desenvolvimento em
todos os sentidos. Daí que por necessidades econômicas, políticas e
de governo, a expansão da educação, como expressão da cidadania,
estimulou a oferta da educação como meio de progresso econômico
e social. Eis um consenso analítico sobre a importância da educação
para a modernização e diminuição das desigualdades, de maneira

Sociologia da Educação II 53
permanente, existentes na maioria das sociedades, quanto à
necessidade da educação como o mecanismo mais eficiente para a
solução desses problemas.

Além de tudo isso, o ensino superior cumpre a função de conservação


e desenvolvimento do capital intelectual do gênero humano. A
universidade é fonte de novas idéias e, ao mesmo tempo, conserva e
ensina o já acumulado. É o lugar da pesquisa para expandir as fronteiras
do conhecimento. Desse modo, a educação vai influenciando outras
instituições, valores e a estrutura social, de maneiras variadas.
A educação incentiva a valorização da diversidade em todos os
sentidos, eliminando lentamente as velhas opiniões sobre o viver em
sociedade. Cria, ainda, a confiança de que a educação é o caminho
para aumentar as oportunidades de emprego, rendimento e status.
É evidente que o acesso à educação torna-se a porta de entrada para
a ascensão econômica e social, isto é, mobilidade social, para todos
que conseguem obter essa educação com qualidade.

GIDDENS22 (2000, p.483) ensina que “o termo ‘escola’ tem a sua


origem numa palavra grega que significa tempo livre ou recreio”.
Que beleza, mas não é isso que a escola se tornou na modernidade.
A industrialização e a expansão das cidades, sob o sistema capitalista,
fizeram da escola um meio de marcar socialmente o lugar que os
indivíduos ocupam nas classes sociais. Tempo livre e lazer não é
para todos, muito menos o acesso à educação. Educar-se envolve:
ler, escrever, calcular, conhecimento geral do meio físico, social e
econômico, basicamente. Além dessas obviedades, exige-se, ainda,
do indivíduo que saiba aprender para dominar as novas informações
técnicas. Torna-se cada vez mais complexo viver em sociedade, e
sem as possibilidades da educação fica mais difícil ainda. Daí que sem
a educação não há cidadania ou capacidade de ser cidadão portador
de direitos e deveres para com a sociedade. O moderno sistema de
educação nas sociedades ocidentais surgiu no início do século XIX.

As desigualdades sociais na sociedade em geral e os padrões


educacionais fazem parte da luta política. Educação e desigualdade
relacionam-se aos ideais da democracia de massas. Aí a educação
é vista como um meio de igualização. Para colocar um fim a esse
“senso comum”, deve-se perguntar se há maior igualdade com mais
acesso à educação. Muita pesquisa foi realizada para responder a
essa questão. GIDDENS (2000, p.505) afirma: “os resultados são
claros: a educação tende a expressar e a reafirmar as desigualdades
existentes muito mais do que a atuar para mudar”. De fato, a
origem social e a familiar são as influências determinantes para o
desempenho escolar e os rendimentos subseqüentes. GIDDENS
(2000, p.506) cita as palavras do relatório de David Coleman: “as
desigualdades impostas às crianças pelos seus lares, bairros e grupos
são transportadas para a vida adulta, depois de saírem da escola”.

Essa é uma hipótese que deve ser tratada com seriedade pelo
governo brasileiro, dado que a vinculação entre educação e igualdade
entre os brasileiros, de fato, possa avançar, conjuntamente com os
investimentos em equipamentos e salários para o ensino em todos
os níveis. GIDDENS (2000, p.498-504) apresenta as principais teorias
da escolarização, em complementação à variável sócio-econômica,
para avançarmos sobre a natureza da educação moderna e
suas implicações na desigualdade. Elas serão citadas, mas não

22 Giddens, Anthony. Sociologia. Lisboa: Colouste Gulbenkian, 2000. p.483.

54 Sociologia da Educação II
desenvolvidas, pois serão objeto de reflexões de outras disciplinas
nesse curso de Pedagogia:

a) Bernestein – cujo foco está nos códigos lingüísticos. Para ele


– crianças classes trabalhadoras possuem código restrito e crianças
da classe média, código elaborado.

b) Bowles e Gintis: mantêm o foco nas escolas e no capitalismo


industrial. Segundo eles, as escolas reproduzem a falta de poder dos
indivíduos que vivem em outros contextos.

c) IIIich: analisa o currículo oculto. Ou seja, o que se aprende na


escola não é o conteúdo formal das lições, mas o aprendizado formal
do conhecimento como consumo passivo: aceitação acrítica da
ordem social. Isso não ocorre conscientemente, mas estão implícitas
nos procedimentos e organização do ensino: é o currículo oculto.

Giddens relaciona as três perspectivas sob o conceito de reprodução


cultural. Esse conceito foi levado à pesquisa de campo e gerou
o relatório de um estudo denominado WILLIS: uma análise da
reprodução cultural.

E o futuro da educação? GIDDENS (2000, p.513) arrola as seguintes


idéias: há permanente influência da tecnologia da informação.
Mudam-se as tecnologias, alteram-se as capacidades exigidas e
ensinadas nas escolas em todos os níveis. A educação vai fazer parte
do decorrer da vida útil de todos, não mais uma fase de preparação
para o mercado de trabalho. A educação será responsável pela
educação pessoal, autônoma, servindo ao desenvolvimento e à
autocompreensão, dado que as sociedades ficarão “sem trabalho”,
de acordo com os padrões atuais.

Figura 23 - Reading an Old Norse text in the classroom. - By: Pål


Berge

GUIDDENS (2000, p. 516) oferece um sumário que é útil à organização


das idéias, sob a perspectiva da sociologia, sobre educação:

Sociologia da Educação II 55
1. A educação moderna percorreu o seguinte caminho: começou
com documentos impressos e o crescimento da alfabetização, esse
conhecimento passou a ser retido e consumido em variados lugares.
Com a industrialização, as aptidões para ler, escrever e calcular
tornaram-se necessárias para um trabalho mais especializado.

2. A educação foi expandida no século XX pela necessidade de


trabalhadores alfabetizados e disciplinados. A educação tende a
expressar e reforçar as desigualdades.

3. As escolas particulares são marcadores sociais do lugar


do privilegiado e desempenham papel na continuidade das
desigualdades sociais, apesar do ensino público gratuito.

4. As escolas públicas não alcançam os padrões educacionais


esperados para se igualarem às privadas.

5. O ensino é organizado de maneira, assim como o conteúdo, a


sustentar as desigualdades de gênero.

6. As teorias sociológicas sobre educação e escolarização


separam as capacidades de aprendizado das crianças entre as que
possuem códigos elaborados de fala e as de códigos restritos.

7. O currículo formal escolar é parte do processo generalizado


de reprodução cultural, e o currículo escondido tem a função de
reprodução cultural.

8. A inteligência é difícil de definir. As evidências empíricas


demonstram que as influências sociais e culturais determinam a
inteligência.

9. Daniel Goleman defende que a inteligência emocional é mais


importante do que o QI

10. A educação e ensino são alterados profundamente pelas


tecnologias de informação – computadores e multimídia. A escola
pode perder sua importância, pois os alunos poderão aprender por
outros meios.

4.1. Gênero

BEAUVOIR, Simone em seu livro “O Segundo


Sexo”, de 1949, marco do feminismo, ofereceu
uma idéia que marcaria os estudos sociológicos
sobre gênero, ao concluir que: “ninguém
nasce mulher: torna-se”. Esse livro é um
marco na pesquisa sobre o lugar das mulheres
na sociedade moderna, daí reduzir os gêneros
a dois. Hoje isso é um equívoco sociológico
ou se mantém nos estudos das feministas
radicais que reduzem o gênero às
quizilas de poder dos homens. De fato, a
Figura 24 - William Blake, Europe tese de Beauvoir também é verdadeira
Supported By Africa and America,
1796 para as demais manifestações de

56 Sociologia da Educação II
identidade de gênero. Isto é: “torna-se”, também, – socialmente -
homem, homossexual, transexual, travestis, transgênero e demais
identidades de gênero, socialmente referenciadas que venham
surgir do processo sem fim que é a sociedade. Gênero representa o
aspecto social das relações entre sexos, distinguindo-se do conceito
biológico de sexo, apesar da forte influência que as diferenças
sexuais cumprem em nossas vidas. Isso decorre do caráter complexo
da sexualidade, socialmente configurado. Compreensão da relação
entre gênero e sexo continua controvertida na reflexão geral. Nas
Ciências Sociais, a questão está equacionada de maneira analítica:
a organização social é a variável explicativa da problemática
envolvida nos estudo sobre gênero. As várias áreas da vida social
são transversalmente perpassadas pela questão do gênero: cultura,
ideologia, divisão do trabalho, no lar, organização do Estado, a
sexualidade, a estruturação da violência. Todavia, o mais comum
quanto à diferenciação de gênero são as perguntas: o que é ser
um homem? E o que é ser uma mulher? Por outro lado, há uma
imensa variedade de construções sociais envolvendo as discussões
sobre gênero. Sociedades diferentes, períodos históricos distintos,
grupos étnicos, classes sociais e gerações podem manifestar formas
diferentes de compreensão e interpretação do problema gênero
para a sociologia.

De quaisquer maneiras que se queira abordar a questão de gênero,


é possível, sinteticamente, apresentar pela teoria social as seguintes
perspectivas, entre as manifestações do feminismo:

a) Feminismo radical: é a expressão da idéia da desigualdade


entre os gêneros (homem versus mulher), com o masculino sendo o
dominador;

b) Feminismo socialista: também parte da desigualdade entre os


gêneros, mas ligado às relações de classe, de maneira que o capital e
o homem são os beneficiários;

c) Liberalismo: destaca as instituições como a educação e a


representação política;

d) Conservadorismo da sociobiologia

e) Feminismo negro

f) O pós-modernismo

g) Feminismo materialista.

Tudo isso expõe as divergências teóricas a respeito das relações


de gênero. Ainda, a problemática teórica das relações de gênero,
sob o ponto de vista das estruturas sociais, o patriarcado explicita
seis estruturas sociais: o lar familiar (diferenciação e desigualdade
de gênero); emprego (mulheres recebem salários inferiores aos
dos homens); sexualidade (área de dominação das mulheres pelos
homens); violência (masculina contra as mulheres); cultura (ênfase
na diferença: mulher problematiza o conceito de “mulher” como
categoria unitária); e Estado (reforça a desigualdade de gênero e
reproduz o lar tradicional).

Sociologia da Educação II 57
Pensar sociologicamente sobre as relações entre sexo, gênero e
biologia depende de algumas defi nições necessárias para não se
fazer confusões. GIDDENS23 (2000, p. 121) ensina que:

Por uma questão de clareza, deve-se distinguir sexo


– ou seja, diferenças biológicas e anatômicas entre
homens e mulheres – de atividade sexual. É necessário
igualmente fazer outra distinção importante
entre sexo e gênero. Enquanto ‘sexo’ se refere às
diferenças físicas corporais, ‘gênero’ diz respeito
às diferenças culturais entre homens e mulheres.
A distinção entre sexo e gênero é fundamental, na
medida em que muitas das diferenças entre homens
e mulheres não têm origem biológica.

A socialização do gênero: aprendizado das funções e relações sociais;


interações entre mães e fi lhos; relações entre rapazes e moças;
adultos e bebês; aprendizado das crianças para se auto-rotularem
‘menino’ ou ‘menina’: homens e mulheres tratam de maneira
diferente (sociedade) as crianças: cosméti cos, vestuário, penteado e
A socialização do gênero: aprendizado brinquedos. Isso tudo indica que é muito difí cil uma educação infanti l
das funções e relações sociais; não sexista.
interações entre mães e fi lhos; relações
entre rapazes e moças; adultos e bebês;
aprendizado das crianças para se auto- A socialização do gênero é um fato social poderoso. A sociedade
rotularem ‘menino’ ou ‘menina’: atribui o gênero e espera que os indivíduos tenham o comportamento
de ‘homem’ ou de ‘mulher’. Fora dessa confi guração social, tudo o
Homens e mulheres tratam de maneira mais será “anormal”, desprezando os manuais da medicina que
diferente (sociedade) as crianças: não classifi cam como doença ou problema biológico, mas uma
cosméti cos, vestuário, penteado e
brinquedos. Isto tudo indica que é muito manifestação – normal – da mesma maneira que são os gêneros
difí cil uma educação infanti l não sexista masculino e feminino. As diferenças de gênero são experiências
sociais que vivenciamos no dia-a-dia. É uma relação social, não existe
por si só. Gênero, como categoria sociológica, é constantemente
aprendido e reaprendido: fazemos e refazemos o gênero.

Ao estudar as diferenças de gênero, normalmente, os pesquisadores


adotam em suas refl exões a polarização “infl uência biológica” versus
confi guração social e cultural, como ponto de parti da. As infl uências
Rever a parte inicial sobre Elias e sociais, em relação ao comportamento sexual demonstram que existe
Giddens: fi guração da estruturação.
uma enorme diversidade de manifestações da sexualidade humana.
Os que estão fazendo esse curso – mesmo não sendo sociólogos por
profi ssão - podem olhar para o lado e comprovarem essa afi rmação.
Mas mesmo assim, dado o preconceito social – ausência de teoria
social – só são “vistos” homem e mulher, como papai e mamãe. Se a
sexualidade tem base biológica, anatomia e orgasmos são diferentes
para o feminino e o masculino, obviamente. Essa conclusão não é
tão evidente assim, dada a inconsistência teórica conti da na idéia
de reduzir a sexualidade à determinação biológica. Como fi cam as
infl uências sociais no comportamento sexual?

Se a heterossexualidade é o padrão social que molda o casamento e


a família, o que pensar sobre a variedade de preferências e práti cas
sexuais que fi cam em segundo plano nas análises sociológicas de
gênero? Vejamos! GIDDENS (2000, p.132), que, ao seguir Judite
Lorber, disti ngue entre os seres humanos, dez identi dades sexuais:

mulher heterossexual, homem heterossexual, mulher


lésbica, homem homossexual, mulher bissexual,
homem bissexual, travesti mulher (uma mulher

23 GIDDENS, Anthony. Sociologia. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2000.

58 Sociologia da Educação II
que se veste regularmente como homem), travesti
homem (um homem que se veste regularmente
como mulher), mulher transexual (um homem que
se tornou mulher) e homem transexual (uma mulher
que se tornou homem).

O que isso nos esclarece sobre o problema das relações de


gênero? Pelo menos uma idéia pode ser fixada como verdadeira,
sociologicamente: de sociedade para sociedade as formas
socialmente aceitas de comportamento sexual mudam, o que nos
ajuda a descobrir que a maior parte de nossas relações de gênero são
socialmente aprendidas e não inatas. Gênero separado do biológico,
quanto à sua manifestação social, deve levar em conta, no mundo
ocidental, que sua compreensão foi moldada pelo Cristianismo.
GIDDENS (2000, p.133) diz que “no século XIX, as concepções religiosas
sobre sexualidade foram parcialmente substituídas pelas de ordem
médica”. Contudo, mesmo hoje, muitos médicos reproduzem as
opiniões da Igreja sobre sexualidade. Nos dias atuais, convivem, de
maneira conflituosa, as atitudes tradicionais e as liberais, a respeito
da sexualidade. Isto é, qual comportamento “social” seria mais
adequado, numa manifestação pública da sexualidade, sabendo-
se da diversidade descrita acima? Daí a separação entre os valores
públicos contidos na categoria “gênero” e as práticas privadas que
os gêneros criam e recriam ao capricho dos desejos humanos não
inatos. GIDDENS (2000, p.135) resume essas idéias ao ponderar que:

nos anos 60, os movimentos sociais que desafiaram


a ordem existente, como os associados a estilos
de vida ‘hippies’ ou da contracultura, romperam
também com as normas sexuais existentes. Estes
movimentos pregavam a liberdade sexual, e a
invenção da pílula anticoncepcional feminina
permitiu que o prazer sexual fosse claramente
separado da reprodução. Grupos de mulheres
começaram também a fazer pressão em favor de
uma maior independência em relação aos valores
sexuais masculinos, da rejeição da dupla moral e
da necessidade de as mulheres alcançarem maior
satisfação sexual nas suas relações.

O que pode ser destacado sobre a análise sociológica sobre o problema


das relações de gênero, do que foi apresentado até aqui: sexualidade
e desigualdade serão categorias ou problemas sociais recorrentes,
quando se pergunta e se avança na tentativa de compreensão da
problemática do gênero, da perspectiva social. O estudo sobre as
relações de gênero, relativamente, emergiu ocupando um lugar
central na agenda de pesquisa, recentemente. Isso se deve à própria
mudança da vida social que todos experimentam cotidianamente.
Como diz GIDDENS (2000, p.145) “diferenças pré-estabelecidas entre
as identidades, perspectivas e padrões típicos de comportamento
masculino e feminino começam hoje em dia a ser vistos de uma
maneira diferente”.

A relação gênero e sociedade é ainda um desfio analítico – criação


de teorias – para a sociologia. É possível uma sociedade sem
a diferenciação de gênero? Uma especulação é possível: só os
andróginos realizariam a igualdade e a liberdade, dada a diversidade

Sociologia da Educação II 59
e variações de gênero vivenciadas por quaisquer sociedades! E
a sexualidade com toda a sua complexidade? A socialização do
gênero começa quando nascemos, daí que as sociedades podem
“criar” e “recriar” as mais diversas formas de manifestações de
relações de gênero. Enfim, gênero não é um “fato da natureza”,
mas sim uma configuração social. Todos nós somos a sociedade que
fazemos cotidianamente: as relações de gênero e as possibilidades
de mudanças e experimentações das relações gênero existentes
ou outras mais disponíveis à criatividade humana, em sociedades
democráticas.

De quaisquer maneiras permanece o problema das diferenças de


gênero. O legado feminista impede o avanço do reconhecimento de
traços psicológicos inatos, conforme expõe a psicóloga PINKER (2010).
O olhar sobre as diferenças biológicas entre os sexos descortina um
fato: as distinções de gênero não são todas socialmente construídas.
Entender a mente humana no contexto da evolução permite sair
desse axioma do feminismo: tudo é socialmente determinado. No
ocidente as mulheres devem trabalhar e ter filhos, mas se tivessem
escolhas vão trabalhar menos, enquanto seus filhos são novos,
pondera PINKER. Para a psicóloga a angústia dessas mulheres, mães
e trabalhadoras tem razões biológicas. Para as mulheres a vida não é
só trabalho. Cada pessoa é um indivíduo que experimenta o processo
de sociação. Este perfil de homens e mulheres diz respeito ao geral,
à maioria, não às exceções. No geral, há aversão à idéia da diferença
natural, biológica. Pense e tente discutir essa idéia com as pessoas ao
seu redor. A resistência é o fato social que foi ensinado na disciplina
Sociologia da Educação I.

Se se aceita as diferenças biológicas naturais, as mulheres e


homens ficaram menos isolados com seus sentimentos. Ao contrário,
haverá a imposição às mulheres de trabalhos que causaram sofrimento.
Se a maioria das mulheres, segundo PINKER, prefere trabalhos como
“assistência social”, “pedagogia”, “profissões na área de saúde”, qual
é o problema? Os salários, comparativamente às outras profissões,
são menores. Daí o óbvio: é preciso remunerar melhor as áreas de
preferência de trabalho das mulheres. Por que não pagar o mesmo
salário para professores e engenheiros? Deste modo, homens e
mulheres não são idênticos no mundo do trabalho. Se é assim, “O
Segundo Sexo” de BEAUVOIR, para PINKER, foi refutado pela ciência:
mapeamento do genoma humano e como hormônios configuram os
comportamento humano. Estes conhecimentos são tratados pela
biologia e antropologia evolutiva para buscar explicações sobre os
gêneros de maneira mais científica que o determinismo social.

60 Sociologia da Educação II
REFERÊNCIAS

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Paulo: Cosac Naify, 2002.

DUPUY, Jean-Pierre. Introdução às ciências Sociais: Lógica dos


Fenômenos Coletivos. Lisboa: Instituto Piaget, 1992. (Coleção
Epistemologia e sociedade/165)

ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar Ed., 1994.

GIDDENS, Anthony. Sociologia. Lisboa: Fundação Calouste


Gulbenkian, 2000.

GIDDENS, Anthony & TURNER, Jonathan. Teoria Social Hoje. São


Paulo: Ed. UNESP, 1999. – (Biblioteca Básica)

GIDDENS, Anthony. Em Defesa da Sociologia. São Paulo: E. UNESP,


2001.

LEVINE, Donald N. Visões da Tradição Sociológica. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar Ed., 1997.

MLODINOW, Leonard. O Andar de Bêbado: Como o Acaso Determina


Nossas Vidas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2009.

SIMMEL, Georg. Questões Fundamentais da Sociologia. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006.

WAAL, Frans. Eu, Primata. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

PINKER, Susan. O Paradoxo Sexual. São Paulo: Best Seller, 2010.

IMAGENS

Figuras 1 a 9, 11 e 12 - acervo pessoal de Luiz Felipe Netto de Andrade


e Silva Sahd

Figura 10 - Representação de indivíduos interdependentes 

Figura 13 - Era dos Répteis do Museu de Ciências Naturais da PUC


Minas – Roberto Murta
Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/
File:Dinossauromcnpucminas.jpg

Sociologia da Educação II 61
Figura 14 - Espaço Cultural Frans Krajcberg – Curitiba por Cristiane
Sousa
Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Espa_o_Cultural_
Frans_Krajcberg_-_Curitiba_(40833438).jpg

Figura 15 - O Xigumandzeni - Adarqmz


Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:O_Xigumandzeni.
jpg

Figura 16 - tamborileiros nas festas de Boiro, Galicia


Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Boiro_Festas_2006_
tamborileiros.jpg

Figura 17 - Festa em homenagem a Nossa Senhora do Rosário -


Centaurokiron
Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Festa_do_
Ros%C3%A1rio.JPG

Figura 18 - Marcha-obrera-Argentina-2005
Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Marcha-obrera-
Argentina-2005.JPG

Figura 19 - Culturas Huaxitita - ENCUENTRO DESENCUENTRO


Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:CULTURAS_
HUAIXTITA.JPG

Figura 20 - Festival de las tres culturas, Frigiliana, Málaga, Spain –


Miguel Frutos
Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Festival_3_culturas.
jpg

Figura 21 - Adolescente Pataxó - José Cruz/Abr


Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:%C3%8Dndio_
patax%C3%B3.jpg

Figura 22 - School – Liége


Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Li%C3%A8ge_(14).
JPG#file

Figura 23 - Reading an Old Norse text in the classroom. - By: Pål Berge
Fonte: http://es.wikipedia.org/wiki/Archivo:Reading_old_Norse.jpg

Figura 24 - William Blake, Europe Supported By Africa and America


Fonte: http://commons.wikimedia.org/wiki/File:William_Blake-
Europe_Supported_By_Africa_and_America_1796.png

62 Sociologia da Educação II

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