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4ª prova - Vívian

ANTROPOLÍTICA
Nº 8 1º semestre 2000

ISSN 1414-7378
Antropolítica Niterói n. 8 p. 134 1-100 1. sem. 2000

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4ª prova - Vívian

© 2001 Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da UFF


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A636 Antropolítica : revista contemporânea de Antropologia e Ciência Política. — n. 1


(2. sem. 95) - — Niterói : EdUFF, 1995.
v. : il. ; 23 cm.
Semestral.
Publicação do Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política da
Universidade Federal Fluminense.
ISSN 1414-7378
1. Antropologia Social. 2. Ciência Política. I. Universidade Federal Fluminense.
Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Política.
CDD 300

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4ª prova - Vívian

SUMÁRIO

ARTIGOS

PROLEGÔMENOS SOBRE A VIOLÊNCIA, A POLÍCIA E O ESTADO NA


ERA DA GLOBALIZAÇÃO ................................................................... 7
Daniel dos Santos
GABRIEL TARDE: LE MONDE COMME FEERIE ................................................ 23
Isaac Joseph
ESTRATÉGIAS COLETIVAS E LÓGICAS DE CONSTRUÇÃO DAS ORGANI-
ZAÇÕES DE AGRICULTORES NO NORDESTE SEMI-ÁRIDO ............. 41
Eric Sabourini
CARTÓRIOS: ONDE A TRADIÇÃO TEM REGISTRO PÚBLICO ................ 59
Ana Paula Mendes de Miranda

DO PEQUI À SOJA: EXPANSÃO DA AGRICULTURA E INCORPORAÇÃO DO


BRASIL CENTRAL ................................................................................... 77
Antônio José Escobar Brussi
RESENHA
TERRA SOB ÁGUA – SOCIEDADE E NATUREZA
NAS VÁRZEAS AMAZÔNICAS ........................................................ 107
José Augusto Drummond

DISSERTAÇÕES (INFORMAÇÕES PARA ATUALIZAÇÃO)........................................... 113

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ARTIGOS

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ECONOMI
A 7

EPROLEGÔMENOS SOBRE A VIOLÊNCIA, 1

POAL
POLÍCIA
ÍT IC EA
O ESTADO NA ERA DA
NA GLOBALIZAÇÃO*
DANIEL DOS SANTOS**
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TOR
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IGR
AF A
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BRASI
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R A
A relação entre o Estado e a sociedade é uma questão central,
sobretudo quando o absolutismo do primeiro, sob o manto da de-
mocracia parlamentar representativa, tende a revelar-se uma das
características da sua ação no contexto da globalização (passagem
do “Estado Social ao Estado penal”). O que, em termos de repre-
sentações sociais, é definido como contrapartida ao recurso cada
vez maior de estratégias públicas disciplinares e repressivas, ao uso
e abuso de instituições como a polícia e a prisão, a formalização
dos direitos humanos, do Estado de Direito e do mercado. Este
artigo tem como objetivo elaborar alguns dos elementos prelimina-
res necessários para aprofundar e alargar uma análise possível
desta questão.
Palavras-chave: violência; polícia; Estado; democracia; sociedade

[...] a coação e, em última instância, a violên-


cia são instrumentos específicos do Estado.
Existe uma relação orgânica entre o Estado e
a violência. Esta ligação é irredutível; é
constitutiva do Estado. [...] O Estado, afirma
Nietzsche, é a espécie mais fria dos monstros
frios. Ele mente friamente; e eis a mentira que
escapa da sua boca: “Eu, o Estado, sou o Povo”
(MULLER, 1995, p. 138).

A VIOLÊNCIA
Agir sobre alguém ou fazê-lo agir con- dos cidadãos como uma violência. Esta per-
tra a própria vontade, pouco importan- cepção, mesmo de “senso comum”, é
do os meios utilizados para tanto – a reveladora das ambigüidades que envolvem
coação, a intimidação ou a força –, não a noção de violência, nos campos da ciência
é sempre percebido pela maior parte e do político.

* Tradução: Cecília Campello do Amaral Mello B camello@momentus.com.br.


** Universidade de Ottawa.
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Confunde-se freqüentemente a violência jeto de estudo é, concreta e globalmente,
com o ato pelo qual ela se exerce, mas tam- antes de tudo, algo árduo. Nessas circuns-
bém com as “disposições naturais” dos in- tâncias, referimo-nos constantemente ao
divíduos em exprimir brutalmente seus direito e às normas objetivas e positivas,
sentimentos e convicções, a atração pelas para deduzir um conjunto de valores
coisas e, até mesmo, a impossibilidade de mensuráveis e mais facilmente aceitos
resistir a elas. Constata-se, assim, que a vio- como universais.
lência dificilmente pode ser reduzida a
uma única fonte ou forma, pois ela é sem- No cerne da nossa percepção sobre a vio-
pre plural quanto aos contornos ou ao con- lência, está o fato de que nós a entende-
teúdo. Conseqüentemente, é difícil abor- mos, no sentido durkheimiano
dar este fenômeno que persegue a huma- (DURKHEIM, 1897), como um poder
nidade desde suas origens, ainda que os “normal” que pode ser exercido contra
resultados e as conseqüências sejam de alguém, inclusive nós mesmos, ou
uma amplitude e de uma gravidade assus- contra alguma coisa. Apenas definimos
tadoras, nos planos individual e coletivo. este poder como uma forma de violência
quando ele ultrapassa certos limites defi-
Podemos caracterizar a violência pela for- nidos pelo Estado e seu poder legislativo,
ça impetuosa que ela exerce, por exem- quando ele perturba uma ordem determi-
plo, a violência do vento, ou pelos impul- nada da vida e das relações sociais, a or-
sos que não controlamos. Podemos tam- dem jurídica estatal. Ele é, segundo
bém designá-la como o que é próprio da Jankelevitch (1960, p. 1991), “contempo-
fraqueza, que “não tem freqüentemente râneo da desordem e mesmo posterior a
outro sintoma que não seja a violência; fra- ela, criatura da desordem, filho da desor-
ca e brutal, e brutal justamente porque dem, da qual ele próprio é expressão...” e
fraca” (JANKELEVITCH, 1960, p.190). oposto à força “fundadora e regeneradora
Desde Freud (1963, 1968a, 1968b), a vio- da ordem legal”:
lência também está associada à
agressividade e à saúde mental dos indiví- A força, que está a meio caminho entre
duos. Quando recalcamos nossos instintos o direito e a violência, é violência em
relação ao direito, mas direito em rela-
agressivos, na falta de saídas social e mo- ção à violência; é capaz a fortiori, de fun-
ralmente “aceitáveis” à sua energia, nós os dar o direito, de estabelecer as normas,
dirigimos contra nós mesmos com mais de criar o valor e o ideal [...]
freqüência do que pensamos. (JANKELEVITCH, 1960, p. 186).
Dito isto, deve-se acrescentar que este
As contribuições de diferentes disciplinas mesmo poder pode adquirir valores con-
científicas chegaram freqüentemente a traditórios, quando é entendido fora do
resultados semelhantes. As explicações quadro jurídico estatal. Assim, deve-se con-
dadas a este estado de coisas, ainda que siderar a possibilidade de duas percepções
variadas, desembocam na constatação e de julgamentos múltiplos e plurais. Se a
desconcertante de que apreender tal ob- percepção estatal tende a se apresentar

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como uniforme e única, a das sociedades luta, mesmo num regime ditatorial, mas
civis não pode pretender a homoge- por uma “encruzilhada” aberta na qual se
neidade e a universalidade. Ela é, por na- cruzam ordens múltiplas de condições, si-
tureza, múltipla e plural, por conseqüên- tuações, interesses e aspirações diferentes
cia, contraditória. As sociedades civis não e diversas.
são definidas por uma ordem social abso-

AS VIOLÊNCIAS
Segundo o momento e o ponto de vista É preciso notar que as sociedades civis
pode-se desvendar duas lógicas que orien- constroem também definições da violên-
tam o discurso sobre a violência. Encon- cia e colocam limites que lhes são próprios.
tramos aí a lógica do Estado, cujo discurso Contudo, estas definições e limites se dis-
se apresenta como resultado da razão uni- tinguem, por sua natureza e aplicação,
versal e do saber/conhecimento do “bem daqueles que emanam da ordem jurídica
supremo”. Este discurso “resolve” a ques- do Estado. Facilitando o trabalho dos pes-
tão da legitimidade confundindo-a, ao quisadores, o Estado e seu direito reduzi-
menos em aparência, com a questão da le- ram seu campo de estudo. Do lado das so-
galidade. A segunda lógica é a das socieda- ciedades civis, o domínio da violência
des civis. Seu discurso é antes de tudo rela- aumenta e torna-se mais complexo e cer-
tivo, daí necessariamente múltiplo. Ele se tamente mais complicado, isto é, mais di-
apresenta sem homogeneidade, seja como fícil de se apreender, medir e explicar.
um discurso fragmentado, seja como o re-
sultado do compromisso da pluralidade de Num dos casos, a qualificação da violência
razões e de saberes. Ainda que este dis- é função da definição dada, em particular,
curso não resolva a questão da legalidade pelas leis penais. Seu conteúdo indica ge-
que é da ordem da lógica do Estado, ele ralmente uma diversidade de comporta-
consegue, às vezes, distinguir a legalida- mentos e ações físicas, e leva desigualmente
de da legitimidade, que também é plural. rumo a soluções possíveis, dentro dos qua-
Assim, é preciso fazer um esforço suple- dros do direito estatal (direito penal, di-
mentar para articular as realidades frag- reito civil, direito administrativo etc.). Em
mentadas que coabitam as sociedades civis. relação a este último, é importante circuns-
crever sua intervenção a partir de uma res-
As duas lógicas estão interligadas, já que não ponsabilidade jurídica e não moral, interven-
cobrem realidades separadas nem funcio- ção que se dirige antes aos indivíduos do
nam sem comunicação com o exterior. que às instituições. A violência é, então,
Ainda que sejam complementares, a lógi- uma questão de agressão física: assaltos,
ca do Estado busca freqüentemente im- pancada, ferimentos, golpes e maus-tra-
por-se àquela das sociedades civis, o que tos. São fatos que deixam traços materiais
pode provocar oposições e enfren- quando vem o momento de destacar, ob-
tamentos. servar e analisar as ações e os comporta-
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mentos em questão. Trata-se, em primei- poder político e as relações tecidas nas so-
ra instância, da sua qualificação e identifi- ciedades civis. Nós nos referimos aqui às
cação. Esses traços constituem os hard facts,² relações entre os agentes do Estado – prin-
evidências empíricas e provas utilizáveis e cipalmente as forças da polícia – e os cida-
demonstráveis, segundo os gabaritos for- dãos, que os primeiros devem servir e pro-
mais do direito e da ciência, frente aos tri- teger. Esta situação, por um lado marcada
bunais e quando da apresentação das pes- pelo poder da arrogância, e, por outro,
quisas científicas. pela fraqueza da humilhação, obriga-nos
a reexaminar a noção de Estado de direi-
No outro caso, as definições e os limites to nos quadros da democracia represen-
variam segundo a interação entre os indi- tativa. Encontramo-nos, então, frente a
víduos, os grupos e as classes sociais, o grau uma forma insidiosa de violência, que não
de heterogeneidade das sociedades civis e deixa quase nenhum traço, mas que é fre-
as relações de força entre seus componen- qüente, diríamos até mesmo quase gene-
tes. As soluções dadas a este problema so- ralizada. A violência física atinge os espíri-
cial – a violência – dependem da tos e choca os olhares, incita os cidadãos a
pluralidade das definições e dos limites que conceberem posições extremas, isto é, a
aí encontramos. Nas sociedades civis, as in- vingança, que está longe de constituir uma
tervenções que visam a comportamentos solução satisfatória. O risco e o perigo as-
violentos não estão unicamente circunscri- sim desencadeados ameaçam a fragilida-
tas por uma responsabilidade normativa de das democracias, em particular o seu
positiva e objetiva, comparável ao direito desenvolvimento para além da esfera po-
estatal: acrescenta-se aí uma dose de lítica, pois:
normatividade subjetiva, acompanhada de
uma responsabilidade moral, cujo caráter A calma dos indivíduos e das socieda-
normativo é, às vezes, mais vago ou me- des se obtém pelas forças coercitivas
(políticas, mas também civis) de uma
nos claro. Portanto, podemos dizer que violência tal, que ela deixa de ser ne-
cessária e passa despercebida. Para
há violência quando, numa situação de obrigar as paixões a se exprimirem so-
interação, um ou mais atores agem de mente nos quartos, na intimidade ou
maneira direta ou indireta, concentra- nas catástrofes [...] para jugular os gri-
da ou distribuída, atentando contra um tos de sofrimento (ou de amor), as quei-
ou mais outros (atores) em graus variá- xas da miséria, os gemidos dos velhos,
veis, seja contra sua integridade física, a cólera dos pobres; para adormecer os
seja contra sua integridade moral, seja que são assassinados durante suas vi-
contra suas posses, seja contra suas par- das; […] para dissimular que “o infer-
ticipações simbólicas e culturais no está vazio, todos os demônios estão
(MICHAUD, 1978, p. 20). aqui” – que longa, terrivelmente lon-
ga, tradição de leis clandestinas!
Neste contexto, emerge uma situação par- (FORRESTER, 1980, p. 11-12).
ticular, porém freqüente, ainda no senti-
do durkheimiano de normalidade: ela diz As definições jurídicas mais divulgadas
respeito às relações entre o exercício do aplicam-se, em princípio, a todos os cida-

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dãos. Mas as leis, elas próprias, criam ex- sentido mais amplo, ultrapassa o simples
ceções, tais como nas áreas do esporte, exercício do poder político. Ele multiplica
medicina, mercado de trabalho e polícia, as estratégias, os mecanismos e as táticas
em diferentes níveis. Essas exceções são disciplinares, coercitivas e repressivas, que
criadas também na área da violência, as- visam mais à segurança do Estado do que à
sim como em todas as que se reportam às segurança dos cidadãos. Estes últimos deixam
formas de apreensão da violência, às re- de ser membros de uma nação, vivendo
gras processuais para tratá-la e às sanções. entre eles e formando uma comunidade,
Certos Estados acrescentam limites às ex- para se tornarem sujeitos do Estado, subme-
ceções, outros não. Esta situação nos re- tidos a um “interesse superior” que os do-
mete à questão dos direitos da pessoa hu- mina. Assim, obtém-se a tranqüilidade do
mana, ao levantar problemas importantes, poder político e não a da sociedade.
sendo os mais significativos aqueles que
dizem respeito à fronteira da legitimida- Esta emancipação do poder político tem
de dos atos assim tratados e ao confronto conseqüências graves, na medida em que
das duas lógicas (a lógica estatal em oposi- a maior intervenção do Estado conduz a
ção à lógica social). uma maior uniformidade e a uma “seme-
lhança, não somente dos meios que ele utiliza
A ética do poder político está mais preo- para agir, mas de tudo o que realiza”. O Esta-
cupada em ajustar a sociedade e a nação a do opõe-se, assim, às aspirações das socie-
seus interesses e objetivos específicos do dades civis, à pluralidade de suas ativida-
que em preservar e desenvolver o bem- des e à sua variedade (HUMBOLDT,
estar físico e moral de seus cidadãos. O 1792/1990).
espírito da governamentalidade, em seu

O MUNDO GLOBAL

Os direitos da pessoa humana ficam, as- vamos somente que nossa vida cotidiana
sim, reduzidos a um formalismo jurídico contemporânea traz a marca da violência.
monístico: estão inscritos nas declarações Ela adotou certamente formas e conteú-
nacionais e universais e são regulados por dos diferentes, como conseqüência do de-
tribunais nacionais e internacionais, dos senvolvimento tecnológico sem preceden-
quais estão excluídas as sociedades civis. tes que caracteriza o nosso século. Da Pri-
O século XX parece terrivelmente marca- meira Guerra Mundial à Guerra do Gol-
do pela violência, ainda que, ao longo dos fo, passando por Angola, pela Iugoslávia
diferentes períodos históricos, a humani- e por Ruanda, o potencial destruidor da
dade tenha percorrido momentos igual- violência coletiva e individual é sem para-
mente violentos. Não entraremos aqui lelos.
numa polêmica quantitativa estéril, obser-

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Esta situação é por vezes interpretada e teses, pela ditadura, sobretudo das armas,
analisada de maneira resignada, das forças armadas, da polícia do Estado
enfatizando o derrotismo e a irrespon- ou de grupos sociais que representam in-
sabilidade: de um lado nós, do outro, eles. teresses diversos e específicos (comprado-
Segundo John Keane (1996), o mundo res, especuladores, warlords, exército, po-
global se divide em dois campos. O pri- lícia, crime organizado etc.). Quanto mais
meiro deles seria a zona democrática, o mun- fracas são as sociedades civis, mais instável
do “próspero” das democracias parlamen- é o “poder político” e menos paz social
tares, uma comunidade onde o desfrute existe.
relativo da paz e da segurança está asse-
gurado. Esta comunidade possui Estados Esta perspectiva não é totalmente falsa,
fortes e um poder militar e policial apa- mas enganadora. Os “portos de paz” que
rentemente bem organizado, a tal pon- a zona democrática constitui são também
to que esses aparelhos do Estado não são habitados por situações de conflito violen-
mais alvos dos debates democráticos nacio- tas e inquietantes, pelo menos no plano
nais. A segurança nacional é área reserva- do discurso e da lógica do Estado. A
da ao Estado. Este poder deixa de ser um globalização tem um conteúdo econômi-
“instrumento político” e torna-se a garan- co, mas também social, político, cultural,
tia da paz social e da ausência de guerra, comunicacional e jurídico. Ela implica “por
ainda que por vezes se assemelhe a uma um lado, a difusão social e, por outro, a
ilusão. Esta zona contém apenas 1/7 da partilha de direcção” (DELMAS-MARTY,
população mundial. 1998, p. 14). A atitude tradicional dos Es-
tados desta zona em relação ao comporta-
O restante do planeta, logo, 6/7 da popu- mento desviante, particularmente, aquele
lação do globo, compõe a zona do outro. definido pelo direito penal como próprio
Aqui encaramos uma realidade provavel- das “classes perigosas”, ressurge atualmen-
mente sem igual na história humana. Eles te com força: a guerra contra o crime tem to-
se caracterizam por uma violência cotidia- mado ares de uma guerra contra os pobres (Actes
na anárquica vinda de todas as direções, de la recherche en sciences sociales, 1998;
pela guerra – e seu conjunto de desgra- Wacquant, 1999). Ainda que traduza um
ças, dentre as quais não se deve ignorar o certo “pânico” frente à “contaminação”
warlordism³ – pela ausência concreta de possível de suas sociedades, esta atitude
normas que existem apenas no papel, pela coloca os Estados da zona democrática em
ausência de esperança... Esta zona é, as- face da contradição mundial do trabalho:4
sim, mais vulnerável às catástrofes natu- a produção de armas, o controle do tráfi-
rais e às perturbações políticas e econômi- co de drogas e de órgãos, a corrupção dos
cas, tais como, inundações, seca, fome, poderes etc. derivam dos seus domínios.
corrupção, golpes de Estado. Em poucas
palavras, a zona do outro define-se, na me- A pauperização das populações da zona
lhor das hipóteses, por uma democracia do outro, o saque de suas riquezas pela
de fachada e simbólica; na pior das hipó- aliança entre as elites dirigentes, os

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warlords, os grupos do crime organizado, Ela também é indizível porque, apesar da
suas redes e os conglomerados econômi- manifestação midiática dos especialistas
cos mundiais, a pilhagem da nação pela (cientistas, policiais, políticos etc.), justifi-
classe política local e a instrumentalização cam-se mal tais acontecimentos e perma-
quase ilimitada do Estado, ocasionam mo- nece-se sem novas soluções, a não ser as
vimentos populacionais em direção à zona fórmulas já esgotadas. Entretanto, assiste-
democrática, cujas conseqüências, suficien- se ao crescimento fulgurante do mercado
temente conhecidas, tornam-se cada vez privado da segurança, do qual as polícias
mais difíceis de serem resolvidas. O au- estatais também participam.
mento dos preconceitos raciais, os proble-
mas de identidade e de enraizamento en- A violência se desloca e se aproxima cada
gendram um crescimento generalizado vez mais dos “portos da paz”, ela atravessa
das tensões sociais, das possibilidades de as sociedades de uma ponta a outra. A comu-
conflitos e de violência e, por conseguin- nicação é um aspecto interessante e pri-
te, de políticas repressivas facilmente mordial da mundialização. Da imprensa
antidemocráticas (Actes de la recherche en escrita à televisão, passando pela auto-es-
sciences sociales, 1999). trada da informação (Internet), todas as
redes de comunicação participam desta
Esta situação da zona democrática asseme- percepção sobre o crescimento e a proxi-
lha-se cada vez mais a uma entropia social midade da violência. Um outro aspecto da
com um caráter anômico resolutamente mundialização diz respeito à tendência a
pronunciado. Do ponto de vista das repre- suprimir as fronteiras e, sobretudo, a co-
sentações sociais, uma tal imagem leva as locar em causa a noção tradicional de
sociedades civis desta zona a se preocupa- territorialidade. Notemos, porém, que esta
rem com a violência, mais do que aquelas tendência é atualmente sobretudo econô-
sociedades civis da zona do outro, onde é mica (o mercado). No nível político,
necessária e visivelmente mais instável. encontramo-nos em face de uma situação
Este fenômeno deve-se, em parte, à retó- de impasse (em vias de tornar-se caótica),
rica estatal, às campanhas das forças poli- cujos indícios descobrimos na ausência
ciais, das instituições sociais e dos políti- crescente de autoridade moral e política.
cos, mas também, à realidade de todos os Os únicos valores que contam são os do
dias e à maneira como a mídia a represen- aumento do lucro a todo custo. É o reino
ta. Enquanto as empresas de seguro au- dos deal makers.5 Todos os meios são bons e
mentam barbaramente seus prêmios para úteis, pouco importa se os resultados agra-
a segurança, assistimos a um recrudesci- vam as condições de existência e de bem-
mento de uma violência indizível, porque estar das sociedades civis e, dentre estas,
contraditória, extrema e gratuita: assassi- as condições dos mais desprovidos, tanto
natos em série, crimes contra crianças, vio- numa zona quanto na outra.
lência nas escolas dirigidas contra jovens e
professores, violência familiar e conjugal, A Comunidade européia produz leis
violência do “crime organizado” etc. regrando o espaço econômico e jurídico

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dos Estados membros. Este processo é mais sivo, punitivo, estigmatizante e disciplinar
lento no domínio do direito penal e sem dos seus aparelhos, pois não mais pos-
nenhuma legitimidade, já que ela não res- suem base real na sociedade. Há, aqui,
peita a soberania dos seus povos. Estes es- um problema sério de legitimidade, de
tão de fora de todo processo verdadeiro autoridade e de moralidade; um deslize
de tomada de decisões. Quando as demo- em direção a um absolutismo político cego,
cracias parlamentares agem desta forma, que leva à oposição e possivelmente ao
a legalidade das decisões por elas toma- enfrentamento entre as duas lógicas da
das tem somente a força do poder repres- violência.

A POLÍCIA E O ESTADO
A polícia e o Estado precedem historica- to das lutas políticas. Contudo, ela apre-
mente a criação dos regimes democráti- senta-se também como uma instituição que
cos modernos. O desenvolvimento e a evo- cria e desenvolve valores, regras, interes-
lução destes últimos raramente questiona- ses e objetivos, isto é, uma cultura própria.
ram a existência de uma ou de outro. Ao Ela mantém relações ambíguas, contradi-
contrário. À beira do século XXI, tem-se a tórias e complexas com o poder político e
impressão de que os regimes democráti- com as sociedades civis.
cos reforçaram a idéia e a presença cotidi-
ana de ambos, o que, à primeira vista, pode A polícia, como aparelho do Estado demo-
parecer contraditório frente ao movimen- crático, não deve ser “política”, isto é, ser-
to em direção à globalização. Inicialmen- vir a interesses particulares, mas sim, pro-
te, a polícia e sua institucionalização eram teger o bem comum e o bem-estar de todos os
percebidas e encaradas como um bem co- cidadãos, respeitando os direitos da pessoa
mum, parte do patrimônio social, cujo ob- e a justiça social. Somente no sentido do
jetivo era a “proteção da sociedade” (cida- respeito dos direitos da pessoa humana é
dãos e propriedade). No final do que a polícia exerceria uma função políti-
século XX, a representação que se faz da ca. Hélas,6 quem define o mandato da polícia,
polícia é a de um serviço burocrático esta- suas tarefas, seus regulamentos? Quem avalia
tal ou de uma força repressiva e coerciti- seu trabalho, seus êxitos e seus insucessos? Quem
va, mesmo se esta função representa me- controla a polícia? A quem ela presta contas?...
nos de 30% das tarefas policiais. Seu prin- O Estado e as sociedades civis vivem obce-
cipal objetivo deixou de ser a proteção da cados por estas questões, em particular as
sociedade, para ser, sobretudo, a proteção que dizem respeito à definição das funções
do Estado e de interesses políticos e econômicos da polícia e suas responsabilidades. Con-
particulares. tudo, enquanto instituição estatal, a polí-
cia freqüentemente soube jogar com essas
A polícia tornou-se um elemento essencial questões e com as posições dos diferentes
da gestão do Estado e do exercício da au- tendência está condicionada pela divisão
toridade, ao mesmo tempo em que é obje- mundial do trabalho);
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atores sociais, para daí tirar partido. En- 5 Não existe uma forma única de organi-
tre outros fatores, a globalização conduz, zação das forças de polícia, mas várias (ex.: cen-
com mais ou menos felicidade, a uma cer- tralização x descentralização, em cada país
ta normalização – entendida como uma e entre os países e segundo os tipos e fun-
tendência para a homogeneidade e uni- ções de polícia);
formidade – da cultura, dos hábitos, das
normas e das instituições (estrutura men- 6 Não existe um só e único objeto (de ação)
tal dominante). A polícia não escapa a esse da polícia bem como sua função não visa unica-
fenômeno. Porém, tal movimento parece mente a um só objetivo (a pluralidade quase si-
criar, ao mesmo tempo, um certo número multânea de objetivos, funções e objetos ca-
de dificuldades resultantes do estado atu- racteriza a polícia como uma instituição cada
al das relações entre o global e o local, pois: vez mais multifacetada e não ultra-especializa-
da – ela é militar, política, profissional e civil;
1 Não existe uma polícia, mas diferentes po- comunitária; coercitiva; preventiva e repres-
lícias (no interior de cada país e entre os paí- siva; de vigilância; de informação e do risco;
ses; polícia estatal e polícia privada etc.); de segurança pública, do Estado, das empre-
sas, etc. Tal situação conduz, freqüentemente,
2 Existem instituições policiais exercendo à concorrência e à competição, ou à ausência
funções não-policiais e vice-versa (agentes da al- de colaboração entre forças policiais tanto
fândega, agentes fiscais, assistentes sociais, em termos nacionais quanto internacionais).
guardas de prisão, guarda-costas, segurança
privada etc.) ou instituições policiais idênticas mas Some-se a isto o fato de que a democracia
com atribuições distintas; moderna tornou-se formal e processual, a
ponto de confundir os meios com os fins,
3 Na América do Norte, atualmente, as polí- criando, assim, muito freqüentemente, um
cias privadas são dez vezes mais numerosas que a mundo quase abstrato e normativo
polícia do Estado (no reino da globalização, tra- (BÉNÉTON, 1997). Ela se afasta do mundo
ta-se de uma tendência que se alastra por to- concreto da sociedade existente, das relações
dos os lugares, mas que assume muitas vezes sociais reais, um mundo que é preciso cobrir
uma “cor” local); com um véu denso e obscuro, um mundo
que não se deve expor à luz. Devido a isto,
4 Há um aumento na utilização de novas seremos acusados, na melhor das hipóteses,
tecnologias como instrumento de trabalho das polí- de utópicos ou de irrealistas e, na pior, de
cias estatais e privadas e como meio de vigilância e estraga-prazeres ou subversivos. Os atores so-
controle (utilizados tanto pela polícia, quanto ciais deixam de existir em movimento para se
por cidadãos privados, sobretudo aqueles em transformarem em estatuetas. Acelera-se a
situação hierárquica superior; por empresas entrada num mundo cada vez mais reificado
e por instituições públicas e privadas; pelas onde o ser vivo torna-se uma coisa, uma
diferentes instâncias do poder político, desde mercadoria.
os municípios ao Estado central: no en- Nesse mundo, o Estado e a polícia são nor-
tanto, esta tendência está condicionada malmente responsáveis perante si mesmos,
pela divisão do trabalho);
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mas raramente perante as sociedades ci- constituam como organização criminal –,
vis, a não ser que estas consigam assegu- e de assegurar que “todo cidadão é igual
rar para si a criação de regras processuais perante a lei”. As forças da polícia devem-
e formais e instituições que garantam a se submeter a um controle severo de suas
aparência de controle civil. ações e à imposição de limites claros à uti-
lização da violência ou aos abusos de po-
Quais são as diferenças, então, entre um der.
regime democrático e um regime ditato-
rial? No primeiro, a função da polícia é con- Apesar desta profissionalização, o dilema
trolar, vigiar e reprimir certos grupos que ainda permanece: como assegurar o res-
podem parecer suspeitos ou ameaçadores peito aos direitos dos cidadãos e, ao mes-
para a ordem normativa formal democrá- mo tempo, a estabilidade do Estado? As
tica. No segundo, assiste-se à utilização to- sociedades civis exigem serem protegidas
tal das forças policiais como um instrumen- tanto das ações dos criminosos, quanto dos
to político e de busca de um conformismo abusos e da violência da polícia e do Esta-
“físico”. Numa democracia, ilegalidades, do. Este último impõe à polícia o estabele-
abusos de poder e violências policiais po- cimento de uma ordem pública que ele
dem ser entendidos como um crime (ra- define e a manutenção da sua proteção a
ramente), um delito (raramente), uma in- qualquer preço, mesmo em detrimento
fração moral, ética ou disciplinar (mais dos cidadãos. Isto ocorre no mesmo mo-
freqüentemente) e, finalmente, como um mento em que a globalização exige dos
Estados nacionais e de suas polícias uma
“acidente” (muito mais freqüentemente).
atitude claramente dirigida de “flexibili-
Porém, se o trabalho policial é considera-
dade” (em relação às grandes empresas) e
do, sobretudo, como undercover,7 a polícia de repressão (em relação aos indivíduos e
e o Estado reagem por um covering up.8 É aos grupos sociais marginalizados).
preciso, portanto, que às queixas dos ci-
dadãos, some-se o trabalho da mídia, para Levando-se em conta as representações so-
que estas diferentes situações sejam expos- ciais que as sociedades civis fazem da polí-
tas e possam ultrapassar o “acidente”. cia e de suas funções, suas demandas cons-
Num regime ditatorial, os diferentes ro- tituem um paradoxo: por um lado, uma
teiros considerados frente à “utilização de polícia mais severa, mais repressiva e mais
uma força despropositada” (violência po- violenta e, por outro, mais humana, mais
licial) raramente ultrapassam o estado da próxima dos cidadãos e mais respeitosa dos
categoria de acidente. Quando isto ocor- direitos da pessoa. Essas demandas das
re, é algo excepcional. sociedades civis estão relacionadas, em cer-
A profissionalização da polícia represen- ta medida, com o sentimento de insegu-
ta, em teoria, a submissão desta às regras rança, real ou abstrato, que se manifesta,
do direito, aos direitos dos cidadãos e às de forma confusa e tumultuada pela
regras que regem o ato de prestação de explosão de emoções, de percepções e de
contas e de responsabilidade. O objetivo representações de crimes e de perdas de
da repressão policial deve ser impedir a valores concretos, traduzidos pelas incivi-
ação dos indivíduos criminosos – e não de lidades e pelo “medo”, segundo um
grupos sociais, a não ser quando estes se desenvolvimento particular:
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Pode-se situar no período de 1965 a 1975 A estratégia de luta contra o crime, fun-
as tentativas modernas de reforma da po- dada sobre o modelo tradicional de polí-
lícia na América do Norte. Elas foram o cia, foi extremamente ineficaz. A guerra
resultado das lutas de grupos minoritários, contra o crime aparece como algo utópico e
sobretudo os afro-americanos (negros) e sem resultados, deixando de lado o que
os latinos. A polícia revelou-se incapaz de normalmente afeta mais os cidadãos: a
respeitar os direitos constitucionais destes manutenção da ordem cotidiana e outros
grupos e, menos ainda, de estabelecer re- problemas, tais como desordens urbanas
lações democráticas com eles. Segundo a e incivilidades, critérios da avaliação que
maioria dos observadores e dos pesquisa- os cidadãos fazem sobre sua qualidade de
dores deste período da história da polícia vida cotidiana. A crise financeira do Estado
norte-americana, esta demonstrou, naque- revela também uma outra incapacidade,
la época, toda a sua incompetência profissio- verdadeira ou falsa: o Estado-nação pa-
nal, seu caráter violento e antidemocrático. Esta rece incapaz de continuar a financiar –
situação também revelou uma crise aguda num nível em que as sociedades civis pos-
da função policial, ligada a fatores estru- sam considerar justo, eqüitativo e aceitá-
turais, isto é, uma crise de legitimidade e vel – os serviços que deve à sua popula-
uma crise de eficiência. ção.
• identificação de um “crime” e construção do “mêdo/pânico” (cidadãos, mídia de massa)
• ligação entre o crime identificado e a realidade (representações, “peritos”, grupos sociais)
• construção conceitual (intelectuais e pesquisadores)
• responsabilização (atores políticos, institucionais a mídia de massa)
• manifestações no espaço público (movimentos sociais, grupos de pressão e partidos políticos)
• políticas criminais mais repressivas, visando a alvos precisos, principalmente jovens, drogados, “vagabundos”,
pobres, minorias, imigrantes, assistidos sociais, etc. (programas eleitorais, partidos políticos, governo e agentes
políticos do Estado)

Finalmente, como já indicamos, o cresci- anos, assiste-se a uma nova tentativa de


mento real ou imaginário do sentimento reforma, tendo em vista criar uma polícia
de insegurança que parece acompanhar a “próxima do público” (a polícia comuni-
globalização pode ser compreendido como tária, para os norte-americanos, a polícia
decorrente de uma política do Estado cujo de proximidade, para os europeus), visan-
objetivo é o controle social, ou como um do a responder principalmente a duas
conjunto de percepções, sentimentos, questões problemáticas da polícia, a saber,
emoções e representações, na maior parte sua eficácia e sua imagem, e não necessa-
dos casos contraditórias, mas próprias às riamente uma atuação visando à promo-
sociedades civis. ção da democracia.
Essas tentativas de reforma são, antes de Uma refere-se à qualidade profissional da
tudo, uma questão pragmática e, caso ne- polícia; a outra, à legitimidade do seu tra-
cessário, técnica e profissional. Elas nun- balho. Lembremo-nos que a função re-
ca serão reconhecidas pelos principais ato- pressiva ocupa, com freqüência, menos de
res como uma questão política. Porém, os 30% das tarefas policiais! Nesse meio-tem-
pilares da globalização da economia deri- po, seu trabalho de vigilância
vam do político: democracia, Estado de e de construção de bancos
direito e direitos da pessoa. Nesses últimos
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de dados (arquivos de informação) cresce E, no entanto, o “direito” e a violência nas
paralelamente ao mercado privado da se- mãos dos policiais são “legais”, enquanto que
gurança, da vigilância eletrônica e da in- nas mãos dos cidadãos eles tornam-se ilegais...
formação sobre o risco. É esta dimensão Esta questão da legitimidade/legalidade se
crescente, somando-se ao trabalho da po- refere, entre outros, ao debate sobre o
lícia estatal, que as novas tecnologias da monopólio da violência legítima, que, desde
informação e da vigilância vêm reforçan- Max Weber, desenrola-se nas ciências so-
do. Ela se refere à coleta de informações e ciais, em particular no campo da sociolo-
à constituição de arquivos que permitam gia do Estado e da sociologia da polícia.
a vigilância e a gestão do risco (“perigo”) Aliás, tratando-se da sociologia da polícia,
por agências de polícia públicas e priva- tanto os pesquisadores quanto os cidadãos
das, com o objetivo de informar os clien- mostram-se incapazes de atacar frontal-
tes do mercado da segurança (ERICSON;
mente este monopólio, sobretudo quan-
HAGERTY, 1997). A função da polícia não
do trata-se de pôr em questão os poderes
se especializou; ela se expandiu.
discricionários da polícia, em particular as
inúmeras, porém vagas, referências à quan-
O caso hoje célebre da cidade de Nova tidade de força que os policiais estão autoriza-
Iorque, com suas políticas repressivas, uti- dos a usar durante o exercício de suas funções.
lizando a polícia como principal instru-
mento, provocou “estatisticamente” uma O enfraquecimento do Estado-nação no
queda substancial das taxas de crimi- nível econômico como conseqüência da
nalidade, mas também registrou um cres-
globalização parece ter tido, como primeiro
cimento comparável de queixas dos cida-
efeito, o fortalecimento da sua função re-
dãos contra a cidade e sua polícia, por abu-
pressiva e coercitiva, isto é, o uso excessivo
so de poder e, sobretudo, por violência.
Alguns casos foram amplamente divulga- do direito e da justiça penal em geral e o
dos na imprensa, como o estupro de um monopólio da violência “legítima” em par-
cidadão negro haitiano por um grupo de ticular. Numa economia “flexível”, isto é, que
policiais da cidade, seguido de uma falsa outorga às empresas um direito excessivo de
acusação, e o de um imigrante malinês, demissão de trabalhadores, e repressiva –
também negro, morto a tiros na saída do produção de riqueza e de pobreza sem igual
seu edifício. “Parece” que os policiais ati- na história moderna – o que o Estado
raram 41 vezes; o imigrante foi atingido “globalizado” (ou inserido no contexto da
por duas dezenas de tiros. Havia sido fal- globalização) retira com uma mão – a justiça e a
samente acusado de estupro. Tudo isso proteção sociais – ele dá com a outra – a violência
parece indicar, como em centenas de ou- da polícia e da prisão, em particular, e a exclusão
tros casos, que os negros, considerados social, em geral. Tudo isso em nome do mer-
como um grupo de risco, são um dos al- cado livre, dos direitos formais da pessoa
vos preferidos da repressão e da violência e do Estado de direito, como fundamen-
policial de Nova Iorque! O direito à vio- tos de uma democracia e de uma felicida-
lência se caracteriza, portanto, por um de globais.
movimento em espiral que não parece ter
mais fim.
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NOTAS
1 Trata-se de construir um esboço sobre esta ques- 4 Observar o jogo de palavras – o autor refere-se
tão com base numa série de elementos, noções e ironicamente à divisão mundial do trabalho como
princípios preliminares, que nos permitirão, mais “contradição mundial do trabalho”. [N. da T.]
tarde, aprofundar nossa análise.
5 Em inglês, no original. Deal makers, fazedores de
2 “Hard facts”: fatos concretos.
negócios. [N. da T.]
3 “Warlordism”, em inglês no original. O termo é
6 “Hélas” é uma interjeição intraduzível, que expri-
uma forma geralmente pejorativa de se desig-
me queixa, dor ou lamentação. [N. da T.]
nar comandantes ou generais que comandam
grupos de pessoas lutando contra outros grupos 7 Em inglês, no original: undercover, secreto.
dentro de um país. A tradução aproximada seria [N. da T.]
algo como “mandonismo”. [N. da T.]
8 Em inglês, no original. Covering up, encobrimento.
[N. da T.]

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GABRIEL TARDE: LE MONDE COMME FEERIE *

ISAAC JOSEPH* *

On tente de montrer, dans ce texte, l’originalité de l’oeuvre de Gabriel


Tarde, sociologue français méconnu du fait de l’influence
durkheimienne dans la discipline. La pensée de Tarde s’organise
autour de trois concepts qui sont au centre de trois ouvrages majeurs:
l’imitation, l’opposition et l’adaptation. La logique sociale que ces
trois concepts mettent en lumière est une logique de la
communication. Elle considère non pas les faits sociaux comme des
choses (comme le proposait Durkheim) mais toute chose comme une
société, c’est-à-dire comme une construction sociale faite de croyances
et de désirs. Loin des métaphores mécanistes ou organicistes du
social à l’oeuvre dans la sociologie dominante de son temps, Tarde
est moderne parce qu’il comprend le social à partir de la conversation
et des phénomènes publics, comme une féérie de la différenciation
et de la diversité.
MOTS CLÉF: public, association, croyance.

Il y a deux grandes erreurs l’erreur des sociologies “panoramiques” et


sociologiques, dit Tarde : deux grands des sociologies du développement il faut
leurres. Le leurre panoramique qui nous accepter que la logique sociale n’est pas une
fait croire que l’ordre des faits n’est logique de la totalisation. Le rite spécial dont
perceptible que si l’on sort de leur détail parle Tarde n’est pas un phénomène social
essentiellement irrégulier pour “s’élever total parce que la logique qui l’anime est une
très haut jusqu’à embrasser d’une vue logique de l’adaptation c’est-à-dire, dans son
panoramique de grands ensembles”; et langage, une logique de l’invention et de la
le leurre historique qui consiste à enfermer coproduction du sens. La logique d’un fait
les faits sociaux dans des formules de social, c’est la modalité selon laquelle il est
développement. Ce sont des leurres producteur de liens. Voilà pourquoi les faits
parce qu’il y a, dit Tarde, plus de logique sociaux n’ont rien de naturel. Au contraire
dans une phrase que dans un discours, ils sont parfaitement énigmatiques, ce sont
dans un “rite spécial que dans tout un des adaptations toujours inventives. Un
credo”. Mais pour bien comprendre rapport social n’est jamais le rapport d’une
*
Une première version de ce texte est parue dans le numéro spécial de la revue Critique, n° 445-446, Juin-
Juillet 1984, intitulé: «Aux sources de la sociologie». On y reconnaîtra sans peine l’influence de Gilles
Deleuze et de sa découverte, dans l’oeuvre de Tarde, d’un programme de recherche pour la microsociologie.
Outre quelques corrections, la dernière partie du texte a été légèrement remaniée.

Antropolítica Niterói, n. 8, p. 23–40, 1. sem. 2000

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copie à son modèle, c’est la réponse à une phénomène de socialité par excellence, et
question et au fond de toute association de l’espace-journal, l’espace social de notre
entre les hommes il y a une association modernité.
d’idées.
Pour commencer “mettons nous en
Si on ne voit dans Tarde que le présence d’un grand objet, le ciel étoilé, la
contemporain de Le Bon, on risque donc mer, une forêt, une foule, une ville” (TAR-
de passer à côté de ce qui fait son actualité: DE, 1898). Et, ne confondons pas: le ciel
Tarde ne s’intéresse pas à la psychologie étoilé de Tarde n’est pas celui de Kant. Ce
des foules mais au social en tant qu’il est qui est premier, “ce dont les faits sont faits”,
affranchi de la proximité, en tant qu’il ce n’est pas le spectacle du firmament ni
relève d’une physique ondulatoire. La un “faisceau de formules explicatives”.
formation des opinions n’a rien à voir avec C’est une “féerie d’idées”. Et une féerie
les stratégies de la suggestion. Un public n’est pas une scène, c’est l’enchantement
est un fait social tout à fait étranger aux devant deux séries de phénomènes: les
métaphores de la foule. Tout le monde est grandes révolutions comme les
assis, “chacun chez soi, lisant le même promenades circulaires du soleil et de la
journal et dispersé sur un vaste territoire”. lune et quelques exceptions: étoiles erran-
tes, planètes capricieuses, dont les
Quel est donc le lien social entre ces déplacement sont variés et inégaux.
hommes qui se sont détachés des foules ? Le seul a priori est donc celui de
Quelle est la nature du lien social qui fait l’indétermination du réel et les êtres qui
les publics ? Voilà la question de Tarde. nous entourent sont des émergences. De
Anticipons la réponse : “Ce lien, c’est avec sorte que le réel n’est pas la synthèse du
la simultanéité de leur conviction ou de leur divers et qu’il n’est marqué du signe
passion, la conscience possédée par chacun d’aucune nécessité.
d’eux que cette idée ou cette volonté est
partagée au même moment par un grand La différence est le seul côté substantiel
nombre d’hommes.” (TARDE, 1989, p. 32) des choses et c’est le deuxième principe
Le lien social n’est donc pas organique ou de la métaphysique de Tarde qui veut
panoramique, il est cérébral et micro- qu’exister, ce soit différer ou, et c’est la
physique. Ce n’est pas la reproduction même chose, qui affirme le caractère
d’une histoire, c’est la réflexion d’une infinitésimal du réel. A titre de
actualité. conséquence pour une philosophie des
sciences sociales, cela signifie que la bonne
Si Tarde a eu plus de succès dan la question n’est pas : “l’individu est-il libre
sociologie américaine qu’en France, c’est ou non ?”, mais “l’individu est-il réel ou
sans doute parce qu’il pressentait cette non?” (TARDE, 1890, p. 17). A supposer
pensée du social qui s’est épanouie autour donc que l’on veuille, pour des raisons
de R. Park (1972) et de l’école de Chica- diverses, aller à contre-courant de ceux qui
go; 1 pensée qui fait du journal le entendent “désenchanter le monde”, on

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ne pourra pas dire que le monde est un Le principe de discontinuité opposera Tarde
spectacle ordonné dans l’infiniment petit. à l’évolutionnisme darwinien qui refuse de
Mauvaise piste de l’atomisme. Ou alors il concevoir la différenciation au sein des
faudrait penser une merveille, le clinamen; organismes. (Les variations spécifiques,
importer le féerique. Pourtant l’atomisme chez Darwin, sont pour Tarde “des
est tout de même le point de départ divergences sans but, des rebellions sans
commode d’une physique du réel programme, des fantaisies désordonnées”).
(psychologique ou sociale, peu importe: il Il permet également de dégager la
s’agit d’une physique ontologique). Il faut méthode e xplicative des mythes qui
d’abord se convaincre de la richesse du l’encombrent: mythes des “tendances
réel, de l’infinité de ses formes, de la générales” ou de la “force des choses” en
démultiplication des ressources ; Tarde fait politique, mythe du progrès perpétuel.
partie de ces philosophes qui conçoivent Le principe d’intégration de l’infini dans le
le réel comme devenir toujours en excès.² fini est l’opérateur d’une rupture avec
Voilà pourquoi il faut considérer la forêt toutes les théories qui tendent à donner
comme le paradigme du réel. La forêt, une image divisible de la réalité – individu,
c’est d’abord l’opposé de l’arbre et c’est cellule, atome. Il interdit par conséquent
aussi le règne de l’infiniment petit. La
de cantonner l’analyse des phénomènes
richesse du réel doit d’abord être conçue
microsociologiques à un “domaine” de la
à partir des phénomènes de contiguïté, de
sociologie. Les concepts de la micro-
rencontres aléatoires et innombrables.
sociologie ont un “territoire”, dirait Kant;
C’est-à-dire à partir de rapports. Voilà
ce sont des concepts régulateurs, mais ils
aussipourquoi la théorie de la croyance et
du désir qui entend fonder une ne sont constitutifs d’aucun domaine
microsociologie originale ne correspond particulier. Il n’y a pas de domaine propre
qu’à une psychologie pauvre. Ce qui à la microsociologie. Tout dans le réel va
intéresse Tarde, le niveau d’analyse auquel du petit au grand, alors que “dans le mon-
il s’arrête est toujours un rapport; la de des idées, miroir restreint du premier,
répétition, l’opposition et l’adaptation ou tout va du grand au petit et, par les progrès
leurs formes sociologiques – l’imitation, de l’analyse, n’atteint qu’en dernier lieu
l’hésitation et l’invention – sont des les faits élémentaires véritablement
principes d’organisation du réel qui explicatifs” (TARDE, 1898, p. 88-89) La
conjuguent d’une part, une priorité du microphysique du réel se définit comme
discontinu sur le continu – c’est la diversité théorie des phénomènes en tant qu’ils sont
et non l’uniformité qui est au coeur des infinitésimaux.
choses – et, d’autre part, une intégration
de l’infini dans le fini.

1 IMITATION: “TOUTE CHOSE EST UNE SOCIETE”


Ce qui compte dans cette physique, encore l’élément différentiel qui peut se produire
une fois, ce n’est pas l’individu mais entre deux individus (interpsychologie) ou
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dans l’individu (la petite idée comme vue sociologique universel”. Tout se
invention infinitésimale; l’hésitation ramène dans le monde physique à
comme opposition infinitésimale). Dans les l’ondulation, tout se ramène dans le mon-
deux cas, la question n’est pas seulement de social à l’imitation. On peut donc
de savoir comment naissent ces renverser la proposition selon laquelle les
phénomènes, mais de savoir comment ils faits sociaux subissent les lois d’un système
se propagent, interfèrent, se conjuguent. mécanique ou organique et affirmer que
La physique du réel est une physique les faits mécaniques sont sociaux.
ondulatoire et l’ondulation est l’équivalent Sociomorphisme: tout phénomène de la
dans le monde physique de la génération nature est un fait d’association, la socialité
dans le monde vivant et de l’imitation dans est la réalité universelle et la socialité
le monde humain. absolue se définit par la transmission
instantanée (et non par la transparence
Donc, contrairement à Durkheim, on ne totale). “Pour bien entendre la socialité
se donnera pas une société toute faite. Il relative, la seule qui nous soit présentée à
faut décomposer les grands objets suivant des degrés divers par les faits sociaux, il
les trois catégories de la répétition, de faut imaginer par hypothèse la socialité
l’opposition, de l’adaptation. Il faut absolue, parfaite. Elle consisterait en une
retrouver “les actes individuels dont les vie urbaine si intense que la transmission
faits sont faits” (TARDE, 1979, p. 1). Et à à tous les cerveaux de la cité d’une bonne
titre de principe corollaire, on ne idée apparue quelque part au sein de l’un
confondra pas amplification et homogé- d’eux y serait instantanée” (TARDE, 1979,
néisation. L’amplification est le passage p. 75). On peut penser bien sûr aux foules
d’un ordre de différences à un autre. et aux phénomènes de contagion, mais il
faudra aussi analyser ces formes sociales
Multiplicité et hétérogénéité des formes moins pauvres, les publics qui intègrent
donc, mais aussi continuité et simplicité des l’harmonie des différences et qui ne
processus ondulatoires. De ce point de vue, fonctionnent pas à l’unisson. Les formes
l’épistémologie sur laquelle se fonde Tar- sociales sur lesquelles il faut réfléchir ne
de est encore classique; les lois de l’univers sont pas celles qui sont liées à la fusion des
renvoient à un principe unique. Tout substances, mais celles qui naissent de la
phénomène est d’abord propagation et réduction du temps à l’instant : associations
association. Et l’association elle-même unilatérales à ondulation rapide et
procède d’une propagation. associations contractuelles à ondulation
convergente.
Au commencement était la propagation.
“Toute chose est une société et tout Considérer donc les faits comme des
phénomène est un fait social” (TARDE, sociétés et la socialité comme association.
1998b). Tarde fonde en effet sa Ce privilège de l’association se retrouve
cosmogonie sur un associationnisme dans la hiérarchie des catégories où
généralisé, c’est-à-dire sur “un point de l’opposition est subordonnée à la

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répétition. C’est en effet parce que les for- sa négation, mais, un peu moins rarement,
ces physiques se propagent par répétition elle la rencontre, chose bien différente”
ondulatoire qu’elles interfèrent. Et “leurs (TARDE, 1897, p. 398). L’attrait du drame,
interférences-chocs ne semblent servir qu’à comme le propre d’un événement
leurs interférences-alliances, leurs historique, tient seulement à “l’irrégularité
combinaisons” (TARDE, 1898, p. 105): Les expressive” qui fait la singularité et le
guerres, les concurrences, les polémiques pittoresque d’une situation. L’opposition,
se nourrissent des entrecroisements de dans le drame, n’est là que pour accentuer
rayonnements imitatifs. A son tour donc, esthétiquement une réalité associative.
la répétition est subordonnée à l’invention L’opposition, dans l’histoire, n’est là que
qui n’est jamais qu’une adaptation à un pour stimuler une adaptation, c’est-à-dire
milieu lui-même constitué d’autres ondes une invention militaire, industrielle ou
ou rayonnements imitatifs. Toute scientifique. Enfin, l’adaptation ne se
invention est une “co-adaptation”, une fonde pas sur le seul intérêt. Adaptation
interférence-combinaison et les de luxe, pour “la beauté du monde”. Qu’il
adaptations sont des rapports de s’agisse de vie quotidienne ou d’histoire,
coproduction créatrice. Ce sont donc ne pas réduire donc le socius à un rapport
toujours de petites variations (inventions) de forces et l’association à la soumission.
qui se propagent, de petites différences Au contraire, tout porte à croire, dit Tar-
inventives. de, qu’il y a eu “des dépenses inouïes
d’amour et d’amour malheureux à
Si l’on tient compte des interactions en tant l’origine de toutes les grandes civilisations”.
qu’elles produisent des unanimités ou des En effet, ce ne sont pas des modèles de
conspirations, on s’apercevra que le drame comportements qui se propagent dans le
est le miroir esthétique de la logique sociale rayonnement imitatif, ce sont des
en oeuvre. L’intérêt que nous prenons convictions. Ce sont les impulsions les plus
dans le drame à la lutte des désirs ou des intérieures et les plus spirituelles qui
idées opposées consiste à “voir mettre en suscitent le plus d’imitation. Le croyant
relief, moins par des combats acharnés que communique sa foi avant de communiquer
par des situations singulières, son dogme ou encore l’imitation des idées
l’individualité réaliste de caractères précède celle de leur expression. Bref,
profondément originaux” (TARDE, 1897, l’imitation va du dedans au dehors.
p. 420). Le drame accentue des variations
et des différences. Il ne s’agit donc pas de Dans la mesure où ce ne sont pas des for-
dogmatiser la concurrence ou la guerre en mes comportementales qui se propagent
les proclamant raison supérieure, comme le mieux sur les rayons imitatifs, on
le fait la dialectique hégélienne. Il faut, au comprend que la proximité spatiale ait peu
contraire, se défaire des mythologies du d’importance – elle ne caractérise que les
combat et de la concurrence. “Une foules – par rapport à la simultanéité des
affirmation suscite habituellement sa convictions. De ce côté-ci, on peut songer
répétition, elle ne suscite que très rarement en effet à une expansion indéfinie des

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processus imitatifs, à condition d’accepter appelait économistes et qui étaient à nos
une alternance entre les moments sociologues actuels ce que les alchimistes
d’imitation et les moments d’invention. ont été jadis aux chimistes ou les
Ainsi, les interférences ne doivent pas être astrologues aux astronomes, avaient
considérées comme des obstacles au accrédité, il est vrai, cette erreur que la
rayonnement. Au contraire, l’imitativité société consiste essentiellement dans un
complète “implique la faculté de résister à échange de services ; à ce point de vue,
un e xemple isolé, à une influence tout à fait démodé du reste, le lien social
particulière” (TARDE, 1890b). C’est ce qui ne serait jamais plus étroit qu’entre l’âne
fait la différence entre les effets de et l’ânier, le boeuf et le bouvier, le mouton
conviction et les états hypnotiques et c’est et la bergère. La société, nous le savons
ce qui explique que l’imitation, loin maintenant, consiste dans un échange de
d’étouffer l’individu, tende à l’exalter: reflets” (TARDE, 1980b, p. 77-78).
l’individu est un être d’emprunt et de
combinaison alors que l’homme des foules Toute mémoire sociale s’inscrit dans un
est pris dans rapport d’identification. C’est espace d’échange de reflets. La sociologie,
d’ailleurs parce que les effets de conviction celle de l’anticipation féerique ou de la
interfèrent que l’amplification d’un fiction théorique, sera l’étude des effets de
processus ne conduit pas à son communication. Elle devra étudier
homogénéisation. “l’action de contact ou à distance – et à des
distances croissantes ou décroissantes
On se retrouve, alors, à l’opposé d’une suivant les temps” (TARDE, 1895b,
théorie de la manipulation. L a p. 134), science de la circulation des
caractéristique du fait social n’est pas d’être opinions dans les publics ou les foules, et,
imposée du dehors par la contrainte. Ni fondamentalement, sciences des conversa-
même par l’obligation ou l’identification : tions comparées. Après la catastrophe
“ce serait ne reconnaître en fait de liens glaciaire du XXVe siècle, c’est-à-dire après
sociaux que les rapports du maître au sujet, “l’apoplexie solaire”, l’échange de reflets
du professeur à l’élève, des parents aux sera réduit à la portion congrue; il ne sera
enfants, sans avoir nul égard aux libres plus qu’échange de singeries, mais pour
relations des égaux entre eux” (TARDE, le moment et tant que certains s’évertuent
1893, p. xi). Dans un essai de sociologie- encore à distribuer la rareté comme
fiction, Fragment d’histoire future (TARDE, principe d’analyse, il faut défendre l’idée
1980b), Tarde imagine un historien que la société est plutôt “une mutuelle
s’interrogeant sur le sens de ces fossiles de détermination d’engagements et de
la vie sociale que sont le paysan et l’ouvrier. consentements, de droits et de devoirs”
“Le rapport de l’ouvrier à son patron, de (TARDE, 1979, p. 66).
la classe ouvrière aux autres classes de la
population, et de ces classes entre elles, Il n’y a aucun principe structurant
était-ce un rapport vraiment social ? Pas immanent à l’univers de la répétition, il
le moins du monde. Des sophistes qu’on n’y a que cette “idole métaphysique” (TAR-

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DE, 1979, p. 66) que l’on appelle génie exemples ou, de manière plus imagée, le
d’un peuple ou d’une race, génie d’une principe du château d’eau. Ce principe
langue ou d’une religion. “Le génie veut qu’au moment où il hésite entre deux
sémitique, par exemple, était réputé séries d’exemples – deux manières de
absolument réfractaire au polythéisme, au parler, deux idées, deux croyances, deux
système analytique des langues modernes, façons d’agir – un individu peut surmonter
au gouvernement parlementaire” son embarras (c’est-à-dire passer d’une
(TARDE, 1898, p. 43-45). A partir de là, opposition sociale infinitésimale à une
dit Tarde, on n’est pas loin de soutenir la invention-adaptation infinitésimale aussi),
thèse d’une distinction entre les races en s’appuyant sur une “présomption de
inventives et les races serviles, mais de plus, supériorité”. Supériorité du patricien sur le
on conteste la possibilité d’un prosélytisme plébéien, du citadin sur le rural, du
conquérant, on nie le processus par lequel parisien sur le provincial, selon “une
un “génie populaire franchit ses limites et cascade de l’imitation” qui va de haut en
se montre capable notamment bas de l’échelle sociale (TARDE, 1898,
d’européaniser la Chine et le Japon”. On p. 53).
refuse ainsi de voir que le génie d’un
peuple n’est que la synthèse anonyme de Simplement il y a, à toute époque, une
ses originalités personnelles, “qu’il est supériorité reconnue, parfois à tort, et un
fonction et non facteur des génies échange inégal des exemples qui a pour
individuels, infiniment nombreux; il en est effet “d’acheminer le monde social vers un
la photographie composite, il ne doit en état de nivellement comparable à cette
être le masque”. On ne peut donc pas uniformité universelle de température que
solidifier ou substantifier les interactions la loi du rayonnement calorifique des corps
élémentaires, les faits de communication tend à établir”. Toute hiérarchie sociale
que le sociologue se donne pour objets. On obéit à un principe thermodynamique de
ne peut pas rendre compactes les fonctions circulation des flux du chaud vers le froid
de répétition ou d’imitation en les et elle a pour métaphore le château d’eau
rabattant sur un territoire. Le privilège parce qu’elle assure une fonction
explicatif de la conscience collective, d’expansion du système et qu’elle lutte
comme le privilège du local, du contre les forces de nivellement. Telle est
morphologique, sont tributaires d’une la fonction des noblesses d’ancien régime
métaphysique de l’identité et de la et des capitales d’aujourd’hui. “Ainsi le
substance. Ils ne peuvent donc convenir à moraliste d’aujourd’hui, pour prédire
une logique de la communication fondée quelle sera la moralité de demain, doit
sur la différence et l’interaction. avoir l’oeil sur les exemples donnés par
Autrement dit, les faits sociaux ne sont pas les grandes villes, comme le moraliste
des choses mais des emprunts. d’hier se préoccupait avec raison de ce qui
se passait au sein des cours, des salons ou
Deuxième principe structurant des châteaux” (TARDE, 1890a, p. 324-
extralogique, l’échange inégal des 328).

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2 OPPOSITION: LA BIFURCATION ANTHROPOLIGIQUE

Le principe de l’échange inégal des interprétations ultra-militaires de la vie


exemples est incapable de faire qu’une universelle” (TARDE, 1897, p. 423).
société prenne corps. A peine parvient-il
à assurer, de l’extérieur, l’expansion des Reste que jusqu’ici les faits sociaux (et les
rayonnements imitatifs. A vrai dire, il n’y sociétés) ne sont que des associations ou,
a peut-être pas de principe immanent ce qui revient au même, des mémoires. A
d’organisation du social chez Tarde. C’est son tour, la mémoire sociale demande à
que la société n’est ni un organisme, ni être structurée suivant deux axes : la
même une organisation. croyance et le désir seront l’équivalent des
formes a priori de la sensibilité chez Kant,
Il faut d’abord cesser de comparer les l’espace comme domaine de la crédibilité,
sociétés à des organismes pour commencer le temps comme champ du désir et de la
à les comparer entre elles (TARDE, 1898, volonté, comme “optatif catégorique”.
p. 51). On s’apercevra alors que ce sont Enfin, on découvrira ainsi que le vrai
des cerveaux. Plus une société se civilise, rythme de l’univers, comme celui de la
plus elle s’apparente à un cerveau, c’est-à- “ritournelle initiale” qui monte et
dire à un organe capable de mémoire redescend une gamme de notes, n’est que
(imitation) et d’opinion (interférence et “la tendance alternative du néant à l’infini
adaptation). D’autre part, à mesure qu’une (expansion) ou de l’infini au néant
société se civilise, elle se désorganise. Ce (concentration), plutôt que le passage... du
sont les sociétés animales qui, en effet, oui au non ou du non au oui” (TARDE,
méritent le mieux d’être appelées des 1897, p. 172, 188, 293).
organismes sociaux. Dans une société
d’abeilles ou de fourmis, l’individu est un La véritable opposition sociale est un duel
simple organe ou cellule qui s’immole au logique. Elle se laisse appréhender dans
tout. Les cités antiques où règne l’esclavage l’expérience de l’indécision pratique et
leur sont comparables. Par contre, dans les dans celle du jugement hésitant. Qu’est-
nations modernes, ce n’est qu’en temps de ce qui se passe dans l’esprit d’un soldat
guerre que les sociétés ont un caractère hésitant entre l’obéissance et
organique marqué (TARDE, 1893, p. 127- l’insoumission? Ou chez tous ceux qui
133). hésitent entre adapter ou répéter une
nouvelle locution, un nouveau rite, une
Mauvaise triade donc : celle de la solidarité nouvelle école d’art? Ces hésitations qui
organique, de l’opposition antagonique et donnent toute leur intensité au remords
de l’affirmation identitaire. Triade de la et au regret ou qui, plus généralement,
dialectique hégélienne ou des philosophies marquent la résistance aux emprises d’un
s’inspirant du darwinisme social, et en rayonnement imitatif et à l’orientation de
règle générale, de toutes “les son expansion ultérieure, sont les vraies

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oppositions sociales élémentaires. Les Il faut donc admettre la dualité de la
vraies oppositions ne sont pas des croyance et du désir, leur indépendance
contradictions mais des rencontres. “Cette réciproque, leur nature “magnétique” et
hésitation, cette petite bataille interne, qui le fait que cette “bifurcation” interne est à
se reproduit à des millions d’exemplaires la fois la source de toute innovation et une
à chaque moment de la vie d’un peuple, forme de résistance proprement
est l’opposition infinitésimale et infiniment anthropologique. C’est elle, “et nullement
féconde de l’histoire; elle introduit en quelque fiction politique telle que la
sociologie une révolution tranquille et prétendue séparation des pouvoirs, ou les
profonde” (TARDE, 1898, p. 68). soi-disant garanties constitutionnelles, qui
explique pourquoi il y a des limites à
Si l’on ne prend en compte que les l’oppression des esclaves par les maîtres,
représentations qui s’affrontent dans ces des peuples par les gouvernements, des
moments d’hésitation, on risque de revenir minorités par les majorités, dans le cas
au couple de l’affirmation et de la négation même où le pouvoir des oppresseurs est
et négliger ainsi les “degrés de conviction”. sans borne et où leur désir, conforme à leur
Or, ce qui se propage encore une fois, ce intérêt, est de l’e xercer en entier”
ne sont ni des sensations ni des (TARDE, 1890a, p. 28). Par conséquent,
représentations qui n’ont pas d’intensité les équilibres les plus stables dans les jeux
par elles-mêmes, contrairement à ce que de domination sont ceux qui sont fondés
prétend la psychophysique ; ce sont des sur la prédominance des forces les plus
forces, quantifiables en principe. subjectives. Autrement dit, ce ne sont pas
Autrement dit, les représentations ne les servitudes qui sont volontaires mais les
tirent leur intensité que de leur crédibilité assujettissements, les allégeances. Par
et de leur désidérabilité et il peut se faire exemple, l’une des formes les plus subtiles
par exemple que les convictions qui se et “civilisées” de la vie sociale, la
propagent soient à la fois fortes et conversation, doit beaucoup histori-
aveugles. Servant de support à des quement aux visites rituelles que l’on
représentations qualitativemen thétéro- rendait à son suzerain ou à son supérieur
gènes, il y a donc des croyances et des pour porter des présents. Il fallait alors
désirs dont seule la quantité varie. Dans échanger des remerciements protecteurs
l’instant pratique, dans l’instant de la et des compliments. Derrière la
décision, ces quantités sont jusqu’à un conversation, institution obligatoire, il y a
certain point mesurables et la conclusion donc la prière, forme très subjective
victorieuse dans “ces combats singuliers puisqu’elle n’est qu’une succession de
dont nous sommes à la fois les champs de monologues. Faiblesse de l’ondulation,
bataille et souvent les victimes est celle qui désert de la conversation rituelle. Aucune
s’appuie sur les désirs et les croyances les bifurcation ici entre croyance et désir
plus énergétiques” (TARDE, 1890a, p. 27- puisqu’il n’y a même pas interférence. Au
28). contraire, les conversations attentives, les
conversations duels, celles dont la vitesse

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est un signe de civilisation, se nourrissent Cette opposition est sociale et non
d’ondulations fortes, ou suffisamment psychologique, elle ne concerne pas deux
variables et irrégulières dans l’expression perceptions ou deux jugements sensitifs
pour s’apparenter au chant. La contradictoires, mais deux rayons d’exemples.
conversation devient alors l’art des Les moments d’hésitation sont des noeuds,
bifurcations et des harmonies et, pour faire des points de suture du rayonnement
l’histoire de cet art, il faut tenir compte imitatif. Ou bien ces noeuds cèdent sans
aussi bien de la diplomatie italienne, de la lutte interne, ou bien ils se renforcent pour
cour française, de la sophistique repousser le rayon d’exemple et ils sont
athénienne, des débats romains. A chaque alors les points de départ d’une nouvelle
fois, on suppose des égaux, ou des pairs contagion, d’un nouveau dogmatisme
(pares aut facit aut invenit), comme l’amitié. devenu plus intolérant et plus intense à
Mais il ne s’agit pas du tout de s’interroger mesure qu’il se répand. Rivalité de
sur la vérité de cette supposition ou de langues, rivalité de religions. Rivalités de
cette comparaison puisqu’il ne s’agit que courants de croyance.
de caractériser des flux. Par contre, on
peut déduire de cette présomption d’égalité Qu’y a-t-il de pire pour une société, se
que les bonnes propagations ou les bonnes demande Tarde : être divisée en partis et
assimilations supposent ce moment où la en sectes qui se combattent à coup de
bifurcation de la croyance et du désir est dogmes et de programmes, ou “être
vécue comme hésitation, intimidation. Ce composée d’individus en paix les uns avec
sont des moments de désubjectivation, de les autres, mais individuellement en lutte
suspens subjectif qui rappellent que tout chacun avec soi, en proie au scepticisme, à
fait réel de communication sociale compor- l’irrésolution, au découragement ?” (TAR-
te une part d’opacité intrinsèque (TARDE, DE, 1989, p. 85-86). La paix de surface
1989, p. 86-111). ou les guerres de religion, “l’arène de la
concurrence industrielle ou de la
La sociologie, qu’elle se donne pour objet compétition politique” ou “le malaise
des phénomènes interindividuels profond des âmes anxieuses, indécises,
(interpsychologie) ou des phénomènes découragées?” “Ce serait le dilemme offert
intra-individuels (intra-cérébraux), sera aux derniers rêveurs – dont je suis – de
non pas l’analyse des systèmes de repré- paix perpétuelle.” Dilemme qui se résout
sentations sociales comme le voulait par le mouvement propre du
Durkheim, mais l’étude des courants de rayonnement imitatif auquel les guerres,
croyances (Logique sociale) dans les elles aussi, sont soumises. Même les crises
langues, les mythes, les religions, les vont s’élargissant et aboutissent à des
sciences et la philosophie, et l’étude des “conflits grandioses mais sans férocité
courants de désirs (Téléologie sociale) dans aucune, entre des colosses nationaux que
les lois, les moeurs, les institutions et les leur grandeur même rend pacifiques”.³
industries. Tarde emprunte à la thermodynamique
le principe d’irréversibilité pour soutenir

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une thèse de philosophie de l’Histoire mondanité donc, comme morale
selon laquelle les guerres et les crises sont provisoire, du juste milieu, dans une
orientées vers la paix. Comme pour le évolution historique travaillée par les effets
passage de l’unilatéral au réciproque (du pervers de la mondialisation.
décret au contrat; du dogme à la libre
pensée; de la cour à l’urbanité) ou de Au-delà de ce point, la béatitude
l’expansion imitative à la mutualité, qui esthétique, la cérébralisation radicale de
caractérisent l’évolution de la société, il y la vie sociale, la capacité de dépasser une
a, de manière aussi irréversible, un misanthropie générale et de ré-enchanter
mouvement équivalent qui caractérise les le monde en étant attentif à “ce principe
organisations et les guerres et qui va du essentiel si volatile, la singularité profonde
“petit au grand, du petit très nombreux et fugitive des personnes, leur manière
au grand très rare”. C’est même parce que d’être, de penser, de sentir, qui n’est qu’une
tel est le sens historique de cette fois et n’est qu’un instant” (TARDE, 1979,
irréversibilité – la “mondialisation” des p. 424).
conflits – que Tarde tient à la microso-
ciologie, qui elle va du grand au petit, dans On retrouve ce même aboutissement, ce
“le monde des idées, miroir inversé du même lien esthétique de l’individualisation
premier”. et de la socialisation dans la critique que
fait Tarde des thèses durkheimiennes sur
Il y a pourtant un point où cette la division du travail. Premièrement, il ne
mondialisation s’arrête, avec le “retour de faut pas opposer solidarité organique et
l’esprit de nationalité” (étroitement lié au solidarité mécanique; la division du travail
militarisme). Ce point est aussi celui où le n’est rien sans la communauté des
flux de l’imitation a ses rivages, et où le croyances et des sentiments. “L’assimilation
besoin de sociabilité diminue (TARDE, des individus par contagion imitative et
1979, p. 423-424). En ce point, leur différenciation par coopération
s’équilibrent deux mouvements: celui où laborieuse – leur assimilation comme
la communication est en défaut et celui où consommateurs de livres et de journaux,
elle est en excès. Le penchant à imiter de vêtements, d’aliments, de plaisirs même
l’étranger, dit Tarde, “ne va pas croissant et de satisfactions quelconques, et leur
à mesure que les relations avec lui vont se différenciation comme producteurs –, vont
multipliant [...] Quand on le connaît trop, progressant parallèlement et non pas l’une
pour pouvoir continuer à l’admirer ou à aux dépens de l’autre”. Il arrive même que
l’envier, on cesse de prendre modèle sur la solidarité organique précède la solidarité
lui.” Le point au-delà duquel la mécanique, dans le cas des échanges
communication risque de faire elle-même internationaux. Tout lien social se fortifie
interférence, de devenir bruit, est donc donc des similitudes et en produit toujours
celui “où l’on est assez rapproché pour de nouvelles. Deuxièmement, il faut, à titre
avoir toute l’illusion du décor et pas assez de postulat théorique, accorder aux
pour apercevoir les coulisses”. L a différences la primauté sur les similitudes.

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Elles en sont l’origine de fait et le raison, et le savant a tort [...] En consacrant
fondement esthétique et scientifique. La de la sorte une portion de notre temps et
curiosité scientifique et le monde de la vie de notre pensée toujours moindre aux
s’attachent à “l’étincelante fantaisie” plus occupations qui nous spécialisent
qu’aux routines héréditaires. Contre “les professionnellement et une proportion
empiétements d’un socialisme mal toujours plus grande à celles qui nous
compris”, il faut donc répéter qu’exister, humanisent, qui tout en nous assimilant,
c’est différer et que la différenciation nous diversifient chacun dans notre sens
sociale a une histoire bien plus ancienne individuel, nous mettons la division du
que celle que Durkheim lui prête. Par travail à son véritable rang, nous affirmons
exemple, dans l’Antiquité, la grande sa subordination nécessaire à notre
division du travail était religieuse et surtout socialisation et à notre individualisation
linguistique: elle séparait les parleurs et les simultanément croissantes. Qu’on me
auditeurs, le scribe et les lecteurs. En ce pardonne ces deux barbarismes”.
sens, la première corporation sociale a été (TARDE, 1998a, p. 191-192).
le corps oratoire. Or, quel est le destin de
ces premières versions de la division du On voit le fossé qui sépare Tarde de ses
travail? Elles s’atténuent progressivement contemporains darwiniens ou
par un passage de l’unilatéral au durkheimiens. Le monde qu’il décrit, non
réciproque. Dans le cas de la langue et de seulement ne laisse à l’opposition que la
son usage, on peut parler d’un “passage portion congrue - c’est l’adaptation qui
de la division à l’uniformisation du travail”, donne son sens à la crise et le contrat qui
selon un processus inverse de celui que succède logiquement à la domination –
décrit Durkheim puisque tout le monde mais de plus, c’est un monde qui a une
finit par être tour à tour producteur et courbure particulière, proprement
consommateur de la parole. Troisiè- féerique, puisqu’elle va de la diversité
mement enfin, cette victoire de la empirique à la singularité esthétique. C’est
cela l’originalité de Tarde: penser le
réciprocité va de pair avec une multiplica-
mouvement qui va de la différence à la
tion des modèles, “de sorte que plus ils
singularité comme un mouvement à la fois
s’imitent socialement, plus ils se
socio-historique et microsociologique. On
différencient individuellement. Différen- peut estimer que cette pensée est tributaire
ciation de luxe celle-là, bien différente de de sa position qui lui permet de maintenir
la différenciation utile qui produit et entière l’illusion du décor. Mais on peut
requiert la division du travail. Mais celle- songer aussi aux tentatives actuelles pour
ci n’aura été que l’instrument inconscient fonder une “sociologie des circonstances”
et nécessaire de celle-là, qui est sa raison ou pour substituer à la notion d’intérêt
d’être. Toute évolution est suspendue à celle de face ou de visage, pour
l’attrait de ce cachet unique qui spécialise comprendre que le discours de Tarde
tout être vivant non pour le travail, mais parvient à éviter les apories d’une science
pour le plaisir, non pour l’utilité, mais pour de l’individu tout en n’étant pas un simple
la beauté du monde. L’artiste a donc “wishful thinking”.

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3 ADAPTATION: LA SIMULTANEITE DES CONVICTIONS

Il faut se garder de tout malentendu sur compositions qui, à leur tour s’ajustent au
la notion d’adaptation. C’est à la fois la plus milieu. S’il faut remonter de l’adaptation
importante des trois catégories à la fois du vivant à la formation d’agrégats, c’est
physiques et sociales que distingue Tarde que ce procès de composition nous
et c’est le troisième moment de sa logique. rapproche du creuset du chimiste. C’est
L’adaptation n’est rien d’autre que le là, par ailleurs que les “cause-finaliers”
moment de l’invention, c’est-à-dire de la (TARDE, 1898, p. 121) doivent chercher
coproduction. C’est toujours cette idée la sagesse du monde et non plus dans
d’une simultanéité créatrice, créatrice de flux, l’immense coupole des cieux et c’est ainsi
de liens, de publics. L’espace social de qu’ils admettront qu’il n’y a pas une fin
l’invention, marqué par la circulation des dans la nature, mais “une multitude infinie
croyances et des désirs, ne saurait être de fins qui cherchent à s’utiliser les unes
désaffecté: il est magnétisé. Dans le les autres” (TARDE, 1898, p. 122). Dans
vocabulaire des ondes et des flux, l’univers du vivant, la forme première de
l’adaptation est d’abord une conjonction; cette composition des fins, c’est “l’ovule
mais cette conjonction est particulière. Si fécondé, l’intersection vivante de lignées
l’imitativité était complète, dit Tarde, les qui se sont rencontrées là, en un
figures sociales prépondérantes seraient croisement parfois heureux”. Dans le
les figures de la fascination et relèveraient domaine social, les adaptations
de ce qu’il appelle une théorie de élémentaires – réponses (en paroles ou en
l’irresponsabilité. Or les courants de fait) à des questions (verbales ou tacites) –
croyance de la logique sociale qui se ma- sont des phénomènes interactionnels ou
nifeste dans les mythes, les religions, les intra-individuels. A la limite (micro), et à
langues, les sciences et la philosophie, ou l’opposé d’une philosophie de l’histoire,
les courants de désirs qui construisent la les adaptations sociales élémentaires, dit
téléologie sociale des lois, des moeurs et Tarde, sont à chercher “dans le cerveau
des institutions, sont des rencontres. même” (TARDE, 1898, p. 129) dans le
Accouplements logiques ou interférences génie individuel de l’inventeur. Non pas
heureuses, bonheurs d’expression ou qu’il faille prendre le contrepied de ceux
petites révoltes individuelles contre la qui s’opposent à la théorie des causes
morale courante, ces courants s’inscrivent individuelles en histoire pour rappeller le
dans des flux particuliers qui ne sont pas rôle des grands hommes. Ce n’est pas
imitatifs et uniformisants mais inventifs et d’eux qu’il s’agit, mais des grandes idées,
systématisants. “souvent apparues en de très petits
hommes, et même de petites idées,
Dans l’univers physique, les adaptations d’infinitésimales innovations apportées par
sont des équilibres mobiles (le bassin d’un chacun de nous à l’oeuvre commune”
fleuve ou le mouvement des nuages). Ces (TARDE, 1898, p. 145-146). Inventions
équilibres forment des agrégats ou des ordinaires donc, à chercher par exemple
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dans le parler ordinaire de telle ou telle ou formules démocratiques. Avec ce type
province pour comprendre les mutations de lien, ce n’est pas la division du travail
d’une langue. Adaptations multiples et des économistes qui progresse, c’est la
précises, nullement arbitraires ou coordination de différents cercles sociaux
totalisantes. Contre Durkheim qui voit qui se propage. “Ce que veut la chose
dans l’imposition le ressort de la chose sociale avant tout, comme la chose vitale,
sociale, Tarde (1898, p. 150) veut remonter c’est se propager et non s’organiser”
de “l’impériosité actuelle” à la “persuasivité (TARDE, 1979, p. 80).
antérieure”. Ceci a plusieurs
conséquences: méthodologique d’abord,
Puisque le public est la forme la plus haute
puisque le sociologue devra procéder par
de la socialité, la plus complexe et la plus
“monographies narratives” (à distinguer
différenciée, on peut reconstituer la
des “monographies descriptives”), les
logique de l’adaptation comme une
seules qui lui permettront de saisir le
phénoménologie clinique de l’esprit qui
travail des adaptations. “Ce sont les
s’articulerait autour de trois figures :
changements sociaux qu’il s’agit de suspendre
l’idiot, le somnambule et le timide.
sur le vif et par le menu pour comprendre
Phénoménologie de l’adaptation que l’on
les états sociaux et l’inverse n’est pas vrai”
peut lire comme une série d’agencements
(TARDE, 1898, p. 153, nota 1).
d’énonciations individuelles et
Conséquences cliniques aussi, si l’on veut
d’énonciations collectives (la foule, la
comprendre la nature des inadaptations.
relation spéculaire, l’expérience du
C’est parce que les adaptations sont
public).
multiples et précises, parce qu’à une
question donnée, mille réponses sont
Première figure, la plus pauvre: l’homme
possibles, que “les inadaptations sociales
des foules. Figure primaire de la
se révèlent douloureuses, énigmatiques, communication des esprits puisqu’elle as-
justification de tant de plaintes” (TARDE, simile celle-ci à la contagion. L’homme des
1898, p. 150). Aux multiples inventions foules est mutilé. Il ne dispose pas de cette
ordinaires constitutives du changement bifurcation anthropologique qui lui
systématique, correspondent donc des permettrait de ne pas être le pur et simple
inadaptations singulières, toujours jouet des rayonnements imitatifs. Il subit
émergentes et circonstanciées. Consé- la loi de la répétition, sa manière
quences enfin sur le lien social et sa d’intégrer l’infini dans le fini est
dynamique. La conformité des croyances précisément infinitive. Foules
se produit toujours “peu à peu et de intolérantes, mono-idéiques; individus
proche en proche”, par contagion plus que fonctionnant au courant continu, n’ayant
par coopération mutuelle. C’est une guère de croyances et énormément de
coproduction plus qu’un réel rapport de convictions, se nourrissant de contacts
réciprocité. A titre d’exemple: le lien so- physiques, de répétition du semblable sans
cial “entre Européens de diverses complication. L’idiotie de l’homme des
nationalités”: il s’appuie sur des procédures foules est au fondement de toutes les for-
de toutes sortes, formalités de la politesse mes sociales proches de l’unisson. S’il faut
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donc diagnostiquer l’ère des foules, on imitatif, mais la fixation ne s’obtient que
peut rappeler le principe selon lequel le par procuration. Le somnambule est
procès de civilisation diffère d’une irresponsable par lui-même; seule
contagion (intuition équivalente chez Park l’emprise qu’il subit et qui est de type
qui se réfère aux “catastrophes” hypnotique peut faire qu’il soit plus qu’un
migratoires comme élément de automate, “une personne qui a son
discontinuité du procès) et en conclure que caractère, ses aversions, ses préférences”.
la foule est un groupe social primaire. Les On est là, dit Tarde, au point de jonction
courants d’opinion ne naissent pas dans expérimental de la psychologie et de la
les rassemblements de rue. Ils sont créés, sociologie. D’une psychologie simplifiée,
au contraire, par des gens qui ne se mais non mécaniste, et d’une sociologie
coudoient pas, ne se voient ni ne également élémentaire des associations
s’entendent. Notre âge n’est pas “l’ère des unilatérales. Etat social naissant tout de
foules”. Un rapport social implique dans même. “N’avoir que des idées suggérées
son concept la répétition du différent ; c’est et les croire spontanées: telle est l’illusion
une assimilation compliquée qui renvoie propre au somnambule et aussi bien à
non à un unisson mais à un accord. Certes, l’homme social” (TARDE, 1979, p. 83).
travaillé par les lois de l’opposition, l’esprit Forme d’adaptation si l’on veut qui
des foules engendre l’esprit de secte. Mais n’aboutit qu’au transitivisme. Forme
il s’agit là de son semblable, objectivement d’adaptation spéculaire par “échange de
et théoriquement subordonné, une forme reflets”. Au contraire, “l’imitativité
sociale qui cumule des désirs semblables complète, la faculté de subir des influences
et des croyances semblables. Pareillement de tous genres et de toutes parts, impli-
nulles dans le cas de la foule, pareillement que la faculté de résister à un exemple
sophistiquées dans celui de la secte. On isolé, à une influence particulière”.
peut donc faire l’aller retour du grand au
petit et du petit au grand avec la même Mais la figure la plus importante, celle qui
carte, les mêmes formes de mobilisation convient à l’analyse des publics, c’est le
identitaires (unilatérales et non timide., celui qui est momentanément
réciproques). Ce sont des formes démagnétisé et qui fait l’expérience de la
d’identification, mais elles ne sont ni dépossession de soi: “paralysie momentanée
socialisantes ni individualisantes. Elles
de l’esprit, de la langue et des bras,
n’inventent rien (TARDE, 1890a, p. 319).
perturbation profonde de tout l’être”.
Deuxième figure: le somnambule. L’esprit L’intimidé s’échappe à lui-même et tend à
du somnambule est “un firmament éteint devenir maniable et malléable par autrui.
à une étoile près”, ou alors, selon une autre “Mais au contraire de l’homme des foules ou
métaphore c’est l’état mental du citadin, du somnambule, il nage à contre-courant. Du
engourdi et surexcité tout à la fois, c’est coup, il s’immobilise gauchement, assez fort
l’être social lui-même comme être de pour neutraliser l’impulsion externe, mais non
fascination. Premier ancrage dans le flux pour reconquérir son impulsion propre”

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(TARDE, 1979, p. 93). C’est de cet équilibre regard d’autrui et de son action. De plus, dans
précaire et gauche que peuvent surgir les la formation des publics, la fonction
véritables adaptations, celles qui tentent de d’amplification ne recouvre pas
conjuguer activement les interférences parce nécessairement la fonction d’homo-
qu’elles se trouvent au point de rencontre de généisation. Au contraire, le premier
deux rayons d’exemples. La timidité est “un public, celui des lecteurs de la Bible après
état social naissant, qui se produit toutes les l’invention de l’imprimerie, a eu la
fois qu’on passe d’une société à une autre, ou sensation de former un corps social
qu’on entre dans la vie sociale extérieure au nouveau, détaché de l’Eglise. Ainsi, et parce
sortir de la famille”. La timidité, c’est donc la que l’on peut appartenir à plusieurs
figure même de la transition, qui convient publics alors qu’on ne peut appartenir
particulièrement à une socialisation conçue qu’à une seule foule, le public est une for-
comme désorganisation progressive. Notre me sociale qui conjugue socialisation et
âge, dans la mesure où il multiplie les occasions
différenciation. Conformément au
de croisements et d’interférences des publics,
principe de la cascade, il relance le
serait ainsi l’âge des tyrannies de
l’intimidation. rayonnement imitatif en le démultipliant
toujours plus, comme une “force à la fois
Mais, en même temps, l’expérience de la dissolvante et régénératrice” (TARDE,
timidité est l’expérience publique par 1989, p. 46).
excellence et, à ce titre, elle est la marque des
adaptations les plus fécondes, c’est-à-dire des Le programme que propose la sociologie
seules adaptations qui soient inventives. Le de Tarde est explicite: monographies
public lui-même, comme forme dispersée de narrative ou conversations comparées sont
la foule, est contemporain de l’invention de là pour rappeler que la socialisation est
la presse qui rend possible la lecture toujours un drame, et que la forme dramatique
quotidienne et simultanée d’un même est celle qui correspond le mieux à cette
ensemble d’informations, d’une même série résolution adaptative telle qu’elle est vécue dans
de rayonnements imitatifs. Cette simultanéité l’intimidation. On comprend pourquoi il ne
de conviction qui caractérise une opinion peut pas y avoir de bonne méthode des
publique telle qu’elle est constituée par la récits de vie. Le récit est une forme pauvre,
presse, explique que “la formation d’un public qui néglige ce “temps d’individualisme
suppose une évolution mentale et sociale bien momentané, de dissolution sociale en
plus avancée que la formation d’une foule” attendant une réorganisation sociale”.
(TARDE, 1989, p. 38-39). En effet, un public L’évolution sociale se traduit donc par une
suppose l’action d’une suggestion à distance évolution parallèle en littérature: du récit
qui n’est possible que chez des individus qui au drame, ce qui est pris en compte, c’est
ont déjà l’habitude de la vie sociale intense, de le concours et le conflit de deux croyances
la vie urbaine. Les citadins disposent, en ou de deux désirs. Le drame met en scène
quelque sorte, d’une pré-connaissance du cette bifurcation essentielle dans la théorie
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microsociologique et qui se manifeste dans dans l’unité de temps la forme structurante de
un moment d’hésitation, dans l’expérience la communication sociale comme
de la timidité en public. Ainsi se confirme coproduction (ou co-adaptation) simultanée
finalement la rigueur d’un regard de désirs et de croyances. Affranchis de
sociologique qui, fasciné par la féerie du divers, l’espace, délocalisés, les publics demeurent
tente de retrouver dans l’unité de situation et attachés au temps de l’irrésolution et de
l’invention, c’est-à-dire à l’actualité.
ABSTRACT
There are two big sociological mistakes, says Tarde: two big lures. The
panoramic lure that makes us believe that the order of the facts is only
audible if one comes out of their essentially irregular detail” to rise very
loud as far as kissing a panoramic view of big wholes”; and the historic
lure that consists in locking the social facts in formulas of development
in. These are lures because there is, says Tarde, more of logic in a sentence
that in a speech, in a” special ritual that in a whole creed”. But to really
understand the mistake of the “panoramic” sociologies and the sociologies
of the development it is necessary to accept that the social logic is not a
logic of the addition. The special ritual of which speaks Tarde is not a
total social phenomenon because the logic that enlivens it is a logic of the
adaptation that wants to say, in his/her/its language, a logic of the
invention and the coproduction of the sense. The logic of a social
fact, it is the mode according to which he/it is producer of ties. Here
is why the social facts don’t have anything natural. On the contrary
they are perfectly enigmatic, these are always adaptations inventive.
A social report is never the report of a copy to his/her/its model, it is
the answer to a question and there is an association of ideas in the
bottom of all association between the men.
If one doesn’t see in Tarde that the contemporary of The Good, one
risks to pass next to what makes his/her/its actuality therefore: Tar-
de is not interested to the psychology of the crowds but proximity is
freed to the social as it, of an undulatory physics raises as it. The
formation of the opinions doesn’t have anything to see with the
strategies of the suggestion. A public is quite a social fact foreign to
the metaphors of the crowd. Everybody is seated”, each at home,
reading the same newspaper and dispersed on a vast territory“.

NOTES
1
Dans sa thèse publiée en allemand, Masse und Hume et Smith et s’inspire largement de Tarde
Publikum (1972), Robert Park compare la théorie dans son analyse de la foule et du public comme
de l’imitation à la théorie de la sympathie chez formes de socialité émergente. Rappelons
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également que Tarde est, avec Simmel et strictement proportionnés à leurs causes, la
Durkheim, un des auteurs de référence nature, qui est prodigue, met dans la cause
majeurs du fameux manuel de sociologie de bien plus qu’il n’est requis pour produire l’effet.
Robert Park et Ernest Burgess, Introduction to Tandis que notre devise à nous est Juste ce qu’il
the Science of Sociology, Chicago University Press faut, celle de la nature est Plus qu’il ne faut, trop
(1921), qui sera la bible de la discipline pour de ceci, trop de cela, trop de tout, la réalité,
deux générations d’étudiants américains des telle que la voit James, est redondante et
années 20-40. surabondante.” (“H. Bergson sur le
2
“Tandis que notre intelligence avec ses habitudes pragmatisme de William James”, in La Pensée
d’économie se représente les effets comme et le mouvant, Paris, P.U.F., p. 240).
3
Ibid., p. 88-89

REFERENCES
PARK, Robert. The crowd and the public. Chicago: University of Chicago Press, 1972.
______; BURGESS, Ernest. Introduction to the science of sociology. Chicago: Chicago
University Press, 1921.
TARDE, Gabriel. Archives d’Anthropologie criminelle. Paris: Alcan, 1904a.
________. Genive: Slatkine, 1980a.
TARDE, Gabriel. Essais et mélanges sociologignes. Lyon: Storck et Maloine, 1895a.
________. Paris: Synthélabo, 1998a. (Les empêcheurs de penser en rand).
TARDE, Gabriel. Fragment d’histoire future. In: ______. Archives d’anthropologie
criminelle. Paris, Alcan, 1904c.
________. Genive: Slatkine, 1980b.
TARDE, Gabriel. La logigue sociale. Paris: Alcan, 1893a.
________. Les lois de l’imitation. Paris: Alcan, 1890b.
________. Genive: Slatkine, 1979.
________. Les lois sociales. Paris: Alcan, 1898.
TARDE, Gabriel. Monodologie et sociologie. In: ______. Essais et mélanges sociologigues.
Lyon: Storck et Maloine, 1895b.
______.______. Paris: Synthélabo, 1998b. (Les empêcheurs de penser em rond).
TARDE, Gabriel. L’opinion et la foule. Paris, Alcan, 1904b.
______.______. Paris: PUF, 1989.
TARDE, Gabriel. L’opposition universelle. Paris: Alcan, 1897.
________. La pensée et le mouvemant. Paris: PUF,¿
________. La philosophie pénale. Lyon: Storck et Moloine, 1890a.
TARDE, Gabriel. Préface. In: ______. La ligogue sociale. Paris: Alcan, 1893b, p. xi.

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ESTRATÉGIAS COLETIVAS E LÓGICAS


DE CONSTRUÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES DE
AGRICULTORES NO NORDESTE SEMI-ÁRIDO
ERIC SABOURIN*
Este trabalho procura sistematizar as dinâmicas de organização
dos agricultores familiares do Nordeste brasileiro, a partir de exem-
plos em vários municípios do Sertão nordestino. A primeira parte
trata da origem e das lógicas das diferentes formas de organização
dos produtores existindo hoje. Na segunda parte, são identificadas
as transformações dessas organizações nas duas últimas décadas.
São analisadas, em particular, três principais tendências de estra-
tégia coletiva em matéria de coordenação e organização dos agri-
cultores familiares da região. O texto conclui com observações so-
bre a institucionalização do processo de organização dos produto-
res e sobre a necessidade de reconhecer os fundamentos
socioeconômicos da reciprocidade, junto com os paradigmas mais
clássicos do interesse individual e do holismo.
Palavras-chave: agricultura familiar, ação coletiva, reciprocidade
camponesa, organização de produtores, associações, Nordeste.

INTRODUÇÃO
No Sertão nordestino, a criação de asso- criação de organizações que deviam facili-
ciações de agricultores familiares é recen- tar o acesso dos “pequenos produtores” à
te. Teve início nos anos 80, com a inter- inovação, ao crédito e aos investimentos
venção do Estado, nas trilhas das comuni- comunitários. Novas estruturas de organi-
dades de base da Igreja Católica, por inter- zação voluntária foram-se agregando às
médio dos programas especiais de luta formas preexistentes de organização rural
contra a seca (Pólo-Nordeste, Projeto Ser- nordestina. Essa superposição coloca a
tanejo, Programa de Apoio ao Pequeno questão das lógicas de coordenação da ação
Produtor Rural – o PAPP, ou Projeto São coletiva e dos instrumentos teóricos dispo-
José). Tratava-se de promover a “partici- níveis para abordá-la.
pação” da população rural por meio da

*
Engenheiro agrônomo e doutor em Antropologia, pesquisador do CIRAD Tera (Centro de Cooperação
Internacional em Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento); professor visitante na Universidade
Federal da Paraíba, Campina Grande-PB (Programa de Pós-graduação em Sociologia). Consultor do
Programa Nacional de Pesquisa sobre Agricultura Familiar da Embrapa e da AS-PTA Nordeste (Assesso-
ria, Serviços a Projetos de Agricultura Alternativa).

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Crozier e Friedberg (1977, p. 13-30) lem- O individualismo (metodológico) pre-
bram que a ação coletiva ou “ação organi- tende que todas as ações, regras ou ins-
tituições provêm dos cálculos mais ou
zada” não é um fenômeno natural, mas menos conscientes e racionais efetuados
“uma construção social cuja existência co- pelos indivíduos. O holismo [...] colo-
loca diversos problemas, a começar pela ca, ao contrário, que a ação dos indiví-
explicação das suas condições de emergên- duos (ou dos grupos, das classes, das
ordens) não passa da expressão de uma
cia e de permanência”.1 Em outros termos, totalidade preexistente e determinante
a ação coletiva trata de elaborações sociais [...] que coloca uma série de obrigações,
como as regras, as normas ou as conven- constrangimentos ou dívidas.
ções. Segundo os mesmos autores, a orga-
nização constitui um instrumento da ação O terceiro paradigma, o da reciprocidade
coletiva que pode ser definida em relação ou da dádiva, é, segundo Caillé (1998,
a um conjunto de ações; mas cabe distin- p. 76),
guir os principais motores dessa ação co-
letiva. incompreensível para os dois preceden-
tes [...]. O primeiro dissolve a dádiva
no interesse – individual ou coletivo –
Na visão inspirada do individualismo e o segundo na obrigação[...]. O
metodológico de Olson (1978, p. 22) ou paradigma da dádiva não nega a exis-
de Reynaud (1993), a ação coletiva (defesa tência desses dois momentos, da indi-
dos interesses comuns de um grupo, promoção vidualidade ou da totalidade, mas não
aceita considerá-los como os únicos da-
de um objetivo coletivo) apenas é realizada dos de base.
por obrigação imperativa ou quando as-
sociada a benefícios (ou interesses) indivi- Caille prossegue: “O paradigma da reci-
duais dos membros do grupo. Para os eco- procidade faz da dádiva (e do seu símbolo
nomistas, como Livet e Thevenot (1994, político), o operador privilegiado, especí-
p. 139), a noção de ação coletiva é amplia- fico da criação dos laços sociais.”
da à “atuação de várias pessoas [...] quan-
do a conjunção dos seus atos permite cons- Para caracterizar os diversas modos de
tatar uma certa ordem, uma certa coorde- construção das organizações de produto-
nação”, o que qualifica pouco a natureza res na realidade nordestina, recorrer-se-
das dinâmicas consideradas que vão do á, portanto, à identificação das formas de
utilitarismo radical até as abordagens combinação ou de oposição entre as lógi-
convencionalistas. cas associadas a esses três paradigmas: in-
teresse individual, obrigações sociais e re-
Caillé (1998, p. 76) sintetiza a controvér- ciprocidade. As análises são ilustradas por
sia entre as diversas teorias pretendendo diversos casos de organização de agricul-
explicar as lógicas que regem o compor- tores nos municípios de Pintadas e
tamento dos indivíduos e dos grupos. Se- Massaroca (BA), Petrolina, (PE) e Tauá
gundo Caille, elas se repartem no seio de (CE). Com a exceção dos pequenos colo-
três paradigmas, dois deles amplamente
nos dos perímetros irrigados públicos de
reconhecidos, mas redutores, e um tercei-
Juazeiro (BA) e Petrolina (PE), trata-se de
ro de entendimento mais complexo.
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pequenos criadores e agricultores familia- ferências públicas (frentes de emergência,
res do Sertão, reunidos em comunidades. créditos subsidiados, aposentadoria) e pri-
Parcialmente ou totalmente integrados ao vadas (remessas de familiares assalariados
mercado, vivem principalmente da pecu- ou migrantes). A primeira parte do texto
ária mista (caprinos e ovinos ou pequenas trata da diversidade das formas de orga-
unidades de bovinos leiteiros) e da nização desses pequenos produtores do
policultura de sequeiro (consórcios milho- Sertão. Optou-se por tratar o tema a par-
feijão-mandioca e cultivos forrageiros). tir de um ponto de vista comparativo mais
Durante os períodos de seca prolongada, geral, considerando as várias formas de
a renda familiar é complementada pela organização possíveis, em vez de exami-
pluriatividade (migração temporária, nar alguns poucos casos em maior profun-
assalariamento diarista, empregos nas pre- didade. A segunda parte analisa as princi-
feituras locais, mineração, pequeno comér- pais estratégias coletivas de coordenação
cio de produtos caseiros etc.) ou por trans- no seio dessas organizações e entre elas.

1 A DIVERSIDADE DA ORGANIZAÇÃO DOS PRODUTOS

No Sertão nordestino, mudança técnica e Entende-se por reciprocidade a dinâmica


mudança social são estreitamente associa- de dádiva e de redistribuição criadora de
das ao processo de organização dos atores sociabilidade (lien social), identificada por
locais e, no caso que nos interessa, dos agri- Mauss (1950/1977, p. 145-279) como pres-
cultores familiares. Se a criação das coo- tação total e verificada em todas as socieda-
perativas e associações de produtores no des humanas desde que Levi-Strauss
Nordeste é recente, esse é também o caso (1960/1977, p. xlvi-lii), mostrou que as es-
das comunidades (AMMAN, 1985, p. 27). truturas elementares do parentesco são
De fato, as mudanças sociais não depen- ordenadas pelo princípio de reciprocida-
dem unicamente das organizações formais, de. Segundo Caille (1998, p. 76), o
mas também da estruturação de relações paradigma da reciprocidade ou da dádi-
interpessoais que asseguram um papel de va aplica-se “a toda ação ou prestação efe-
interface entre a sociedade local e a socie- tuada sem expectativa imediata ou sem
dade global (BERTHOMÉ;MERCOIRET, certeza de retorno, com vista a criar, man-
1997, p. 11). Existe, portanto, uma rela- ter ou reproduzir a sociabilidade (lien soci-
ção entre as formas da ação coletiva e as al) e comportando, portanto, uma dimen-
instituições ou relações onde essas ações são de gratuidade” (tradução nossa).
são definidas e implementadas. No Sertão
do Nordeste, a família, o sítio, a comuni- Temple (1999, p. 3) distingue, assim, o in-
dade rural, as redes de proximidade já tercâmbio ou a troca da reciprocidade: “A
existiam antes da criação das organizações operação de intercâmbio corresponde a
formais e continuam sendo, em grande uma permutação de objetos, enquanto a
parte, regidos pela reciprocidade campo- estrutura de reciprocidade constitui uma
nesa. relação reversível entre sujeitos.”
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O sindicato, a cooperativa ou a associação dos, pertencem à categoria das organiza-
de produtores, formalizados num quadro ções profissionais de agricultores, geral-
jurídico reconhecido pela sociedade nacio- mente regida pelas lógicas do interesse in-
nal e regulados por estatutos padroniza- dividual ou coletivo.

1.1 ESTRUTURAS INFORMAIS E PERMANÊNCIA


DA RECIPROCIDADE CAMPONESA
Na zona rural do Sertão, as comunidades, O uso do termo comunidade é recente,
as redes de proximidade, as relações fami- tendo sido introduzido pela ação pasto-
liares e interfamiliares, as prestações de ral da Igreja Católica durante os anos
ajuda mútua constituem formas de relacio- 1960-70, através das Comunidades Eclesiás-
namento e de organização reguladas pela ticas de Base. A comunidade reúne ainda
reciprocidade camponesa (SABOURIN, “as famílias que rezam juntas” e não ape-
2000). O funcionamento das organizações nas as da religião católica. A comunidade
informais vem do reconhecimento pelo de Caldeirão do Tibério, por exemplo, só
grupo local de regras transmitidas de uma tem famílias evangélicas. Permaneceu o
geração a outra e garantidas pela autori- termo comunidade, mais “moderno” que
dade dos chefes de família. Desenvolvem- sítio, na medida em que foi reutilizado pe-
se, a partir delas, os exemplos da organi- los programas de “ação comunitária”
zação em sítios ou comunidades, das pres- implementados pelo Estado durante os
tações de ajuda mútua, o “mutirão”, e das anos 70-80 (AMMAN, 1985).
redes de proximidade.
A comunidade, tradicionalmente dirigida
· As comunidades: O exemplo do distrito de por um conselho informal de chefes de
Massaroca - Juazeiro (BA) família, gerencia o acesso à terra (pasta-
gens comunitárias, práticas de meia), a
Os sítios ou comunidades reúnem, geral- redistribuição ou o intercâmbio de traba-
mente, produtores e moradores ocupan- lho (o mutirão, a troca de dias) e a solida-
do as terras de uma antiga fazenda dividi- riedade interfamiliar. Esta manifesta-se
da por heranças sucessivas ou por transa- por meio da doação de alimentos ou aju-
ções. Muitas vezes, a comunidade mante- da sem retorno automático, nos casos de
ve o nome da fazenda de origem. Os mem- má colheita, acidente ou doença numa das
bros do sítio ou da comunidade são então famílias. Essas práticas foram limitadas pe-
descendentes de um antepassado comum, las secas repetidas dos últimos anos e se
fundador ou ex-proprietário da fazenda. reproduzem nos momentos de relativa
Na comunidade de Lagoinha, em 1991, so- abundância. É quando são pagas as pro-
bre 110 habitantes, apenas sete pessoas não messas feitas ao santo padroeiro da comu-
eram descendentes do fundador da Fazen- nidade ou a um dos santos populares no
da Lagoinha (TONNEAU, 1994, p. 164). Nordeste (São Gonçalo, São Cristóvão),

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pelas danças ou “rodas” para as quais são A regulação das diversas formas de mutirão
convidados vizinhos, amigos e parentes da é característica da lógica de reciprocida-
família que organiza a festa (LANNA, de. Trata-se de solidariedade na produ-
1995, p. 187-190). A lógica do sistema de ção e de redistribuição da força de traba-
reciprocidade não considera a produção lho no seio da comunidade. Esta não é
exclusiva de valores de uso ou de bens co- obrigatoriamente igualitária, já que o re-
letivos, mas a criação do ser, da sociabili- torno não é imediato e não tem nem uma
dade. Se para “ser socialmente” precisa dar; contagem nem uma necessária simetria das
para dar, precisa produzir. Assim, a reci- prestações. Até pode existir certa concor-
procidade é marcada e respeitada de ma- rência na redistribuição de alimentos ou
neira privilegiada entre aqueles que par- bebidas entre as famílias, já que a prodi-
galidade confere prestígio e fama que são
ticipam das mesmas estruturas de produ-
fontes de autoridade ou de poder nos sis-
ção ou de parentesco.
temas regidos pela reciprocidade
(TEMPLE ; CHABAL, 1995, p. 17-30).
· O mutirão Temple (1983, p. 27-28), a partir de ob-
servações entre comunidades camponesas
O termo mutirão2 pode designar dois ti- da América do Sul, já propunha conside-
pos de ajuda mútua: uma tem a ver com rar a reciprocidade não como uma “con-
os bens comuns e coletivos (construção ou tra-dádiva” igualitária (a dualidade da tro-
manutenção de estradas, escolas, barra- ca, segundo Polanyi, 1957), mas como “a
gens, cisternas); a outra com os convites obrigação para cada um de reproduzir a
de trabalho em benefício de uma família, dádiva, como forma de organização da
geralmente, para trabalhos pesados redistribuição econômica”.
(desmatar uma parcela, fazer uma cerca,
construir uma casa etc.). O mutirão é tam- · As redes sociotécnicas de proximidade
bém chamado batalhão em Massaroca, bo-
léia ou balaio3 em outras zonas da Bahia. Os estudos conduzidos em Pintadas e
Em Pintadas (BA), utiliza-se o termo boi Massaroca confirmam tanto a existência de
roubado. Antes, o produtor beneficiado cos- produção e de intercâmbio de conheci-
tumava matar um boi. Hoje, ele fornece, mentos entre produtores quanto a impor-
sobretudo, cachaça ou cerveja. Esta práti- tância da observação mútua e do diálogo
ca é associada à festa para motivar uma técnico em matéria de inovação agrícola e
ajuda recíproca. A participação de todas organizacional (SABOURIN et al., 1999,
as famílias da comunidade é desejada: os p. 148-150). As relações interpessoais con-
homens jovens e adultos para os trabalhos tribuem, entre outras coisas, para a comu-
mais duros, as crianças e as jovens para a nicação de idéias, informações, práticas e
limpeza das fontes de água e caldeirões, técnicas. Essas relações privilegiadas de
as mulheres para a raspa da mandioca na diálogo técnico ou de ajuda mútua entre
“farinhada”. produtores desenham estruturas chama-
das de redes sociotécnicas (CALLON,
1989).

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As redes de diálogo técnico passam, geral- criança desde o nascimento. A dádiva é
mente, por agricultores “experimen- também associada às relações afetivas pri-
tadores”, considerados como competentes vilegiadas como o compadrio. O apadri-
pelos seus vizinhos (DARRE, 1996, p. 85- nhamento recíproco das crianças entre
90). Em Massaroca, os produtores marcam duas famílias sem laço de parentesco é uma
uma diferença entre competência em ma- forma de aliança extremamente forte, que
téria de criação e de agricultura (plantação, permite multiplicar as redes interpessoais
roça). As referências tradicionalmente “vei- além da esfera local, das classes sociais e
culadas” pelos vaqueiros e diaristas são das categorias profissionais (LANNA,
hoje transportadas pelos que mais viajam: 1995, p. 197). A dádiva generalizada (ofe-
dirigentes associativos, comerciantes, agri- recida a todos) é verificada nos convites
cultores pluriativos e agentes externos (téc- para as festas locais e religiosas (pagamento
nicos, padres e vereadores). As idéias, as de promessas, celebração dos santos pa-
informações e os fatos e objetos técnicos droeiros), para as festas familiares (batis-
circulam com relativa facilidade por esses mo, matrimônio, funerais) ou domésticas
canais. Inovações como a palma forrageira (matança de um animal).
(Opuntia sp.) e a algaroba (Prosopis juliflora),
introduzidas na região por grandes cria- A lógica da reciprocidade motiva uma par-
dores, tiveram em Massaroca-BA uma di- te importante da produção, da sua trans-
fusão rápida, via relações interpessoais missão, mas também, do manejo dos re-
entre agricultores, conformando uma rede cursos e dos fatores de produção. O aces-
supracomunitária. so gratuito à água dos açudes, às terras de
vazante, às pastagens comuns do “fundo
· Organização dos produtores e reciprocida- de pasto”, à mão-de-obra da comunidade
de camponesa ou do grupo local (por meio do convite de
trabalho ou do mutirão), constitui uma
Diversos autores brasileiros evidenciaram redistribuição dos fatores de produção. A
a permanência ou a modernização das es- constituição dos dotes (animais, terras ou
truturas de reciprocidade em comunida- dinheiro), a realização das festas familia-
des de agricultores e de pescadores do Sul res e religiosas, a hospitalidade (estendida
e do Nordeste (WOORTMAN, 1995; aos rebanhos dos vizinhos em caso de seca)
LANNA, 1995; NOGUEIRA, 1999, NO- representam tantas formas de dádiva que
GUEIRA ; MENDES, 2000). No Sertão levam ao crescimento da produção, na
nordestino, observa-se a permanência de medida das possibilidades das famílias e
relações de reciprocidade através dos me- das condições do clima. Esses custos, bem
canismos de dádiva, de ajuda mútua e de superiores ao nível médio de consumo de
convites. A dádiva interfamiliar é simétri- uma família, explicam também, em parte,
ca. Manifesta-se pelo dote das filhas e pe- as dinâmicas de extensão patrimonial, de
las dotações para a instalação dos jovens, procura de novas terras para cultivar, de
essencialmente constituídas por animais adoção dos cultivos comerciais ou também
acompanhados da sua descendência as estratégias de pluriatividade e de mi-
(crias), reservados e atribuídos a cada grações. Além das formas de
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complementaridade (ajuda mútua) ou de mentares), correspondendo a lógicas es-
interesse coletivo (solidariedade, festa co- pecíficas de motivação da produção e da
letiva) que motivam a permanência des- inovação. Por exemplo: no caso do
sas práticas de origem camponesa, eviden- mutirão, os dias não são contados. Na tro-
cia-se a força da dádiva4 e da redistribuição ca de dias, eles são contados e devolvidos
como motor da economia. Essa produção para a outra família, às vezes, para efetu-
socialmente motivada constitui um fator ar o mesmo tipo de trabalho. Alguns agri-
de desenvolvimento econômico que vai cultores pagam um diarista, em vez de as-
além da satisfação das necessidades ele- sumir diretamente a prestação.
mentares da população (subsistência) ou
da aquisição de bens materiais via troca. A A integração ao mercado e à sociedade
motivação social da produção pode ser tão global (administração, escola, igrejas, ser-
potente como o interesse pelo lucro e a viços técnicos) levou a sociedade rural nor-
acumulação por meio do intercâmbio destina, dos sítios e das comunidades, a
“mercantil” (TEMPLE ; CHABAL, 1995, dotar-se de novas estruturas de represen-
p. 41-50). Pode-se, assim, distinguir redes tação e de cooperação, sem, portanto,
de reciprocidade e redes de intercâmbio abandonar (pelo menos completamente)
(algumas podendo ser mistas ou comple- os valores e formas de organização cam-
ponesa fundadas pela reciprocidade.

1.2 AS ORGANIZAÇÕES PROFISSIONAIS DOS AGRICULTORES

As organizações formais dos produtores cato, a cooperativa e a associação de pro-


correspondem a novas estruturas dutores.
socioprofissionais de caráter econômico
(produtivo ou classista). Ninguém torna- · O sindicato de agricultores familiares
se membro da associação por essência ou
por nascimento, como no caso do sítio Os primeiros Sindicatos dos Trabalhado-
ou da comunidade, mas por escolha livre res Rurais (STR) do Nordeste apareceram
e voluntária e através de uma relação nos 50 e no início dos anos 60 na zona da
contratual de intercâmbio (pagamento da Mata. Na região semi-árida, a maioria foi
cota). Sua regulação é, portanto, domina- criada durante o regime militar e emanci-
da pela lógica utilitarista do interesse (in- pada nos anos 80. Para desviar os sindica-
dividual ou coletivo) ou pela lógica da obri- tos de sua função de reivindicação, sem ter
gação social ou política (constrangimento, de proibi-los, o Estado transferiu para eles
dívida). Por exemplo, nos perímetros irri- a gestão da assistência médica no meio
gados, a adesão dos colonos à cooperativa rural. A nova Constituição (1988) não mu-
é, muitas vezes, obrigatória. No Sertão, dou esta prática, confiando de novo aos
encontram-se as três formas clássicas de STRs a administração local da aposenta-
organização profissional agrícola: o sindi- doria rural. Onde os conflitos fundiários e

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trabalhistas dos anos 70-80 provocaram o terceiro tipo de tutela. No distrito de
lutas coletivas, os STRs adquiriram uma Marruás, em Tauá (CE), a Cooperativa dos
capacidade de mobilização e a legitimida- Pequenos Produtores dos Inhamuns
de da representação dos produtores fami- (Coopepi) foi financiada e administrada
liares. Conseguiram, assim, promover pro- durante anos por uma ONG suíça.
jetos, planos ou conselhos de desenvolvi-
mento rural, ou participar da administra- Em tais condições, quando os camponeses
ção municipal, como em Pintadas (BA) e são afastados da administração, a coope-
Tauá (CE). rativa torna-se uma nova autoridade
gestionária dos bens comuns (água, perí-
· As cooperativas agrícolas metro irrigado), um novo intermediário
para o acesso ao mercado (leite, frutas, al-
godão). Ela pode até ser percebida como
As primeiras cooperativas de produtores
um novo patrão.
criadas no Sertão reuniram grandes ou
médios proprietários. Foi o caso dos pro-
dutores de algodão no Ceará e na Paraíba, · As associações de produtores
dos produtores de leite do Agreste da
Bahia, Pernambuco ou Sergipe. Os agri- Dada a sua flexibilidade, a associação de
cultores familiares conservam amargas produtores constitui o modelo de organi-
lembranças das cooperativas. Elas são, ge- zação local que foi mais desenvolvido nos
ralmente, associadas a interesses políticos últimos 20 anos. Trata-se, também, para o
ou clientelistas, a sistemas de gestão pro- Estado ou para a prefeitura municipal, de
pícios ao desvio de fundos, cujo controle um meio de redistribuição clientelista via
sempre escapou aos pequenos produtores. políticos locais. As associações foram cria-
A cooperativa leiteira de Tauá (CE), por das essencialmente para captar recursos e/
exemplo, quase sempre fechada por falta ou para assegurar a defesa de interesses
de leite, foi financiada em 1987 pelo mi- comuns ou a gestão de bens coletivos.
nistro da Irrigação que era oriundo deste A maioria das associações nasceu da con-
município. Os agricultores costumam di-
junção de três fatores: a) a necessidade
zer que “cada cooperativa tem dono”.
para as comunidades de dotar-se de re-
Nas regiões estudadas, todas as coopera- presentações jurídicas; b) a intervenção de
tivas encontradas são associadas a uma tu- atores externos: Igreja, ONGs, extensão,
tela externa. Nos perímetros irrigados de projetos públicos; c) a existência de aju-
Petrolina e Juazeiro, as cooperativas foram das e financiamentos reservados a proje-
criadas diretamente pelo Estado. Nos pro- tos associativos ou comunitários, geral-
jetos de reforma agrária, como Lagoa do mente com finalidade produtiva.
Angico, em Petrolina, ou no Assentamen-
to 2 de Maio, em Madalena (CE), prevale- A associação é uma sociedade civil sem fim
ceu o modelo cooperativo do Movimento de lucro, baseada na adesão voluntária.
dos Trabalhadores Sem-Terra. O gerente Reúne, muitas vezes, o conjunto dos mem-
é geralmente um quadro do MST envia- bros de uma comunidade (ou só os chefes
do do Sul do Brasil. As ONGs conformam de família), mas em torno de um objetivo
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específico, de um projeto econômico: aces- nidade) e a sociedade externa: o merca-
so ao financiamento de equipamentos co- do, a administração, a cidade. Às vezes, a
letivos (escola, água, eletricidade, posto de mudança de sistema de organização leva
saúde), comercialização ou processamento a uma confusão de valores e à adoção de
dos produtos, apropriação fundiária. As lógicas e estratégias de natureza diferen-
associações devem redigir e publicar seus te, ou até oposta. Foi o caso com a instala-
estatutos no Diário Oficial, eleger e reno- ção de camponeses criadores nos períme-
var uma diretoria e um conselho fiscal. Na tros irrigados do Vale do São Francisco.
realidade, as regras são readaptadas pela Confrontados com a lógica da integração
comunidade ou pelos líderes. As eleições ao mercado pela produção intensiva de
são arranjadas anteriormente. As decisões frutas ou verduras, eles devem realizar
importantes são tomadas antes das reu-
uma mutação, não só do seu sistema pro-
niões formais e públicas no quadro das re-
dutivo, mas do seu sistema de valores e de
lações de proximidade e de poder entre
referências, ou abandonar a irrigação
os grupos familiares e as comunidades lo-
(SABOURIN et al., 1998, p. 13). No pri-
cais.
meiro perímetro irrigado da região, Be-
· Complementaridade e contradição entre bedouro (Petrolina-PE), houve um confli-
lógicas to entre a lógica da concorrência no mer-
cado e aquela do desenvolvimento da re-
Observa-se uma grande diversidade das ciprocidade. Uma parte dos produtores
formas de cooperação e de organização instalados pelo Estado continua
devida à permanência de práticas campo- privilegiando uma lógica camponesa. Sa-
nesas e à adaptação permanente de novas tisfeitos com um sistema de criação e um
formas de coordenação da ação coletiva. negócio familiar de gado, sustentado por
A criação de organizações de produtores forragens irrigadas, procuram prestígio
pode corresponder à modernização da local via prêmios nas vaquejadas. Esta si-
reciprocidade camponesa ou, ao contrá- tuação manteve-se provocando a maior
rio, privilegiar o desenvolvimento do in- preocupação dos poderes públicos que de-
tercâmbio mercantil, via constituição de sejavam impor a produção de mangas e
cooperativas, por exemplo. uvas, considerada mais lucrativa, de ma-
O primeiro caso é verificado com as asso- neira a assegurar o funcionamento da co-
ciações comunitárias de Massaroca-BA, operativa que comercializa frutas, mas não
criadas para garantir o manejo dos “fun- gado ou troféus.
dos de pasto”, num contexto de especula-
ção fundiária; o segundo, com as coope- Portanto, às vezes, longe de trazer só solu-
rativas dos perímetros irrigados de ções, as novas formas de organização
Petrolina e Juazeiro. criam, também, novos problemas, na me-
dida em que ignoram ou desrespeitam as
Em todo caso, as novas organizações são regras da reciprocidade ou funcionam se-
destinadas a manejar a interface entre o gundo os princípios contraditórios da
mundo doméstico local (a família, a comu- concorrência e do intercâmbio.

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2 TRANSFORMAÇÃO DAS FORMAS DE ORGANIZAÇÃO


E TENDÊNCIAS DE EVOLUÇÃO

Paralelamente ao desenvolvimento da a organização é um processo de cria-


agricultura familiar, podem ser evidencia- ção coletiva por meio do qual os mem-
bros de uma coletividade aprendem
das transformações permanentes das ins- juntos, ou seja, inventam e fixam jun-
tituições de produtores, associadas às for- tos novas maneiras de jogar os jogos
mas de recomposição das referidas lógi- sociais da cooperação e do conflito e
cas. As principais tendências de evolução [...] adquirem as capacidades de conhe-
cimento, de relacionamento e de orga-
observadas são marcadas por estratégias nização correspondentes (traduzido do
específicas em termos de coordenação co- francês pelo autor).
letiva. Correspondem a processos de
formalização das organizações, de diversi- Os “motores” dessas evoluções são exami-
ficação das atividades, de representação nados de maneira a identificar as princi-
pública e de conquista de autonomia por pais estratégias que caracterizam as for-
parte das comunidades rurais. Como afir- mas de coordenação entre produtores e
mam Crozier e Friedberg (1977, p. 79): entre suas organizações.

2.1 A FORMALIZAÇÃO DAS ORGANIZAÇÕES

A formalização das organizações de pro- Massaroca, por exemplo, foram criadas


dutores, além da dinâmica associativa des- para administrar os “fundos de pasto”, no
crita anteriormente, tem a ver com dois contexto da especulação fundiária e da
principais fatores. Primeiro, as comunida- invasão de terras (grilhagem).
des rurais passam por uma necessidade
crescente de interfaces jurídicas com a so- As funções de reivindicação ou de negocia-
ciedade nacional (acesso aos financiamen- ção das instituições camponesas não desa-
tos e ao apoio institucional, escola etc.). Por parecem durante essas evoluções, mas
outra parte, em um contexto novo e, mui- podem ser desvirtuadas ou alteradas. A
tas vezes, conflituoso de acesso aos recur- habilidade dos responsáveis do Comitê de
sos produtivos (terra, água etc.), tais arti- Massaroca, por exemplo, é saber jogar
culações tornam-se necessárias, inclusive entre “moderno e tradicional”, isto é, “as-
para legitimar práticas camponesas de re- sociação formal/comunidade camponesa”
ciprocidade ou normas sociais ancestrais para captar apoios diversificados. Da co-
como o mutirão, o uso comunitário de pas- munidade e das relações de proximidade,
tagens (o fundo de pasto) ou o manejo co- das alianças individuais, dos apadrin-
letivo da água (açudes, cisternas, poços hamentos políticos e das redes familiares
etc.). As associações comunitárias de nasce o acesso às redistribuições políticas

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estaduais e federais, por exemplo, duran- gerenciadas por tutelas (SABOURIN et al.,
te as grandes secas. Por outro lado, a asso- 1998, p. 13). De fato, independentemen-
ciação de produtores facilita o acesso a cré- te da influência externa ou do uso de mo-
ditos subsidiados via relações com as insti- delos fixados pela legislação (associação ci-
tuições técnicas de apoio ao desenvolvi- vil, cooperativa etc.), precisa-se de novas
mento (SABOURIN et al., 1996, regras, na medida em que troca-se de
p. 104). “mundo” ou de princípio de justificação
(BOLTANSKI; THÉVENOT, 1991). O
O segundo tipo de interface tem a ver com mutirão é uma instituição camponesa do
o acesso a mercados diversificados e com mundo doméstico marcada pela divisão
as novas exigências em termos de quali- entre sexos, a gerontocracia e a reciproci-
dade dos produtos. Nos perímetros irri- dade ampliada. As suas regras não têm
gados de Petrolina e Juazeiro, a má admi- nada a ver com o sistema de contabilidade
nistração das cooperativas levou à desva- das prestações de trabalho do motorista do
lorização da produção de uva e de melão. caminhão ou de serviços do trator, dita-
Houve, portanto, uma rejeição do mode- das pela necessidade de amortização do
lo cooperativo pelos “colonos”. Observou- equipamento e pela legislação trabalhista,
se a recomposição de estruturas de ajuda isto é, por regulações industriais e mer-
mútua para a comercialização ou o cantis. Ocorre, assim, uma criação e vali-
processamento das frutas por pequenos dação de novos estatutos fixados pela
grupos de proximidade. Isto constitui, em institucionalização progressiva das formas
face do fracasso da lógica “mercantil” da de ação coletiva. É essencial reconhecer as
cooperativa, uma reorganização a partir diferenças entre associação e comunidade,
da lógica de confiança e dos valores do entre cooperativa e mutirão, entre presi-
mundo “doméstico”. Mas, para perenizar dente eleito e líder comunitário, entre se-
essas experiências, ter acesso aos financia- cretário do conselho de vigilância e patriar-
mentos bancários e aos mercados nacio- ca do sítio. A mudança de estruturas e de
nais (Ceasa), os colonos são obrigados a modos de regulação pode levar a uma con-
criar de novo associações ou cooperativas. fusão dos valores de reciprocidade cam-
Porém, diferentemente do modelo ante- ponesa e à adoção não-controlada de ló-
rior, essas não são mais impostas ou gicas e estratégias de natureza diferente
(mercantis, industriais etc.).

2.2 DIVERSIFICAÇÃO DAS ATIVIDADES E ESPECIALIZAÇÃO DAS


FUNÇÕES

A profissão de agricultor ou de criador se mente em torno da redistribuição do aces-


transforma, o contexto socioeconômico e so aos fatores de produção (terras, traba-
as instituições também. Assim, as institui- lho e técnicas), não mais permitem respon-
ções camponesas, estabelecidas essencial- der ao conjunto das exigências da ativida-
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de agropecuária e aos processos de inter- Rural de Massaroca (SABOURIN et al.,
venção dos poderes públicos. As organi- 1996, p. 144). A diversificação das ativi-
zações devem, portanto, assumir novas dades é assim associada à multiplicação das
funções: defesa dos interesses profissionais instituições e, portanto, dos centros de
e gestão da aposentadoria pelos sindica- poder. A responsável por uma escola pri-
tos, abastecimento em insumos e mária isolada não tem muito peso em face
comercialização de produtos pelas coope- do Presidente do Comitê, porém o mes-
rativas, acesso aos financiamentos e admi- mo não ocorre com o diretor do Centro
nistração de equipamentos coletivos, no de Formação Rural.
caso das associações.
Da mesma maneira, durante o período
As nove associações e o Comitê de militar, o Sindicato dos Trabalhadores
Massaroca sustentam, desde 1990, um pro- Rurais constituía, geralmente, a única for-
jeto de desenvolvimento local que, depois ma de representação dos produtores.
de priorizar o apoio à pecuária e à A partir dos anos 1980, a tendência foi
implementação de recursos hídricos, inves- criar associações específicas para o apoio
tiu nos setores da educação, da saúde de à produção agropecuária. Paralelamente
base e interessa-se, hoje, pela transforma- à diversificação das necessidades, obser-
ção da produção. A diretoria do Comitê va-se um processo de especialização das
que dirigia o conjunto do projeto local teve funções das organizações de produtores.
de aceitar progressivamente a criação de É também o caso das cooperativas de co-
novas estruturas para administrar áreas lonos do Vale do São Francisco, centradas
específicas. Certos grupos de interesse em funções de abastecimento e de
temáticos transformaram-se em comissões comercialização e dos Distritos de Irriga-
permanentes para a educação, a gestão dos ção, criados para assumir o manejo da
equipamentos coletivos, o crédito e o pro- água e a administração dos perímetros ir-
jeto de irrigação. Em Lagoinha, a implan- rigados públicos. Um segundo patamar,
tação do ciclo complementar e de ativida- associado à diversificação, seria aquele da
des de educação permanente levou, final- “divisão” ou do desdobramento das orga-
mente, à criação do Centro de Formação nizações, gerando novas estruturas mais
especializadas e novos “estatutos”.

2.3 A AUTONOMIA E OS PROCESSOS DE REPRESENTAÇÃO DOS


PRODUTORES

Uma das novas funções do processo de mento local e regional. O fenômeno de-
organização dos produtores familiares tem termina a polarização das suas relações
a ver com seu posicionamento político e com o exterior. Encontra-se associado à
institucional em matéria de desenvolvi- necessidade de uma representação

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socioprofissional dos agricultores familia- mento. Num município grande e polari-
res e das comunidades, já que não existe zado por uma cidade de porte médio como
escala administrativa abaixo do município. Juazeiro, as associações somente conse-
Uma das estratégias passa pela dinâmica guem tratar do desenvolvimento do dis-
de união das associações comunitárias para trito ou da pequena região. Em Pintadas
mobilizar mais forças políticas. É traduzida e Tauá, as lideranças das organizações de
pela reunião de grupos de base em fede- produtores nasceram diretamente, na es-
rações: Comitê na escala do distrito em cala municipal, com o sindicato. Após vá-
Massaroca, Conselho ou Central a nível rias derrotas eleitorais na conquista da
municipal em Tauá e Pintadas. Prefeitura, conseguiram finalmente a ges-
tão do poder municipal, graças a alianças
O Comitê de Massaroca jamais aceitou negociadas na base de projetos de desen-
aumentar o números de associações volvimento da agricultura e da pecuária.
federadas, para não ter de partilhar re- Essas evoluções mostram uma real con-
cursos duramente conquistados. Durante quista de autonomia por meio das organi-
vários anos, não se preocupou em nego- zações de produtores.
ciar alianças ou cooperações com outras
organizações de produtores na escala do O conjunto das características observadas
município de Juazeiro (SABOURIN et al., permite formular a configuração de um
1996, p. 109). Entretanto, examinando o modelo de organização associando uma
processo desde os anos 1970, verifica-se estrutura federativa do tipo “planejadora”
uma evolução clara: a gestão comum do e estruturas de gestão descentralizadas. É
“fundo de pasto” dá lugar à criação da as- o papel do Comitê de Massaroca e dos seus
sociação comunitária (1983-1985); nove dirigentes manter uma visão ampla e po-
associações locais federam-se e criam o lítica da situação, captar informações, ar-
Comitê (1989); este integra a Unidade de ranjar recursos e referências novas e
Planejamento Agropecuário do Município intermediar alianças. Às comissões
de Juazeiro, organizada em 1990. A par- setoriais, às associações locais, aos grupos
tir de 1997, o Comitê negocia projetos de de interesse e de produção competem as
processamento dos produtos locais com as funções de manejo das ações coletivas, de
federações dos municípios vizinhos de gestão dos bens comuns e a articulação
Jaguarari e Uauá. com as ações individuais. Em Pintadas, o
Centro Comunitário de Serviços coorde-
Estas organizações federativas posicionam- na na escala municipal de 20 a 30 grupos
se em matéria de política de desenvolvi- de base.

CONCLUSÕES
O quadro de análise da construção da ação texto econômico e institucional. As trans-
coletiva permite articular mudanças so- formações organizativas observadas no
ciais, mudanças técnicas e evolução do con- Sertão nordestino são características de vá-
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rias dinâmicas de mudança. Traduzem di- Primeiro, desmintam o discurso dominan-
versas formas de manejo da transição de te das instituições de assistência quanto à
uma economia camponesa regulada pela ausência, à fraqueza ou à incapacidade de
reciprocidade para sistemas mistos, inte- organização dos agricultores do Nordes-
grados ao mercado regional e marcados te, habitual contraponto da seca para ex-
pelas regras da sociedade nacional. Além plicar o fracasso das políticas públicas.
da oposição clássica entre “comunidade”
e “sociedade” ou de esquemas redutores As formas de organização têm evoluído
do tipo subsistência x integração ao mer- rapidamente, procurando aproveitar,
cado ou pré-capitalista/capitalista, encon- quando aparecem, as novas possibilidades
tra-se uma diversidade de situações de de apoio externo, ou tentando trazer so-
convivência e de negociação entre valores luções a problemas vividos coletivamente.
e “mundos” diferentes, segundo a imagem A emergência rápida de uma nova forma
das “cidades” (doméstica, mercantil, industrial, de organização – a associação – e os suces-
cívica e inspirada) proposta por Boltanski e sos reais que encontrou não devem escon-
Thévenot (1991). der, também, desvios possíveis, quando
existe abuso da barganha por parte dos
Existe uma permanência, e até uma mo- agricultores como dos poderes públicos.
dernização, das relações de reciprocidade,
de maneira a garantir formas de coesão Observa-se, portanto, a convivência simul-
social ou de proximidade praticáveis em tânea e a recombinação permanente de
um contexto novo de modo a aproveitar várias lógicas organizativas num contexto
novas oportunidades. Tal aprendizagem social em mutação. Assim, a realização e a
não se realiza sem tensões e conflitos que combinação diversificada das três lógicas
limitam a coordenação. Os mesmos po- de construção da ação coletiva, inicialmen-
dem, também, encontrar soluções me- te identificadas, dão lugar a várias formas
diante a construção de novas regras: de estruturação dos produtores,
implementação de novas formas de orga- correspondendo a diversas funções e a di-
nização, definição de ações locais ou ferentes níveis de organização. Pode-se
territoriais. Este tipo de dispositivo permi- atribuir a cada uma dessas formas uma
te uma abertura para projetos maiores, capacidade de coordenação e de regulação
para uma escala de organização mais am- fundada nos comportamentos dos atores
pla (federação), assim como para alianças e nas externalidades que produzem. As-
específicas, técnicas e políticas (via redes sim, integração ao mercado e à sociedade
comerciais ou sociotécnicas). Neste senti- global (administração, escola, igrejas, ser-
do, existe uma atualização da dinâmica de viços técnicos) tem levado as comunida-
reciprocidade camponesa. des rurais a dotar-se de novas estruturas
de representação, de cooperação e de in-
Os casos e estratégias apresentados per- tercâmbio monetário, sem abandonar,
mitem orientar a intervenção das institui- portanto, as formas de organização e, so-
ções de pesquisa e de desenvolvimento. bretudo, os valores e as práticas da reci-
procidade camponesa.
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Os exemplos citados confirmam uma na- Não se trata de negar esta realidade e de
tureza diferente e até contraditória entre reivindicar a exclusividade de uma
a lógica econômica da reciprocidade e dialética ou de outra em termos de desen-
aquelas do livre-câmbio. Cada uma pode volvimento local ou regional; mas sim, de
ser verificada na realidade; portanto, as chamar para uma dupla referência, entre
duas podem se prevalecer de vantagens a reciprocidade e os paradigmas do inter-
respetivas e, sobretudo, de precedentes, câmbio (individualismo ou holismo).
alguns sendo, provavelmente irreversíveis.

NOTAS
1
Traduzido do original em francês pelo autor. 4
CAILLE (1998, p. 77) escreve: a dádiva, de certa
maneira, não é desinteressada. Simplesmente,
2
A palavra vem do tupi mutirum ou do Guarani, privilegia os interesses de amizade (aliança,
potyrom, que quer dizer colocar a mão na massa afetividade, solidariedade) e deprazer e/ou de
(BEAUREPAIRE, 1956). criatividade sobre o interesses instrumentais e so-
3
O balaio é uma unidade de medida de produtos bre a obrigação ou compulsão. A obstinação das
agrícolas numa cesta ou num lençol. religiões ou de numeroso filósofos em pocurar
uma dádiva plenamente desinteressada é, por-
tanto, sem objeto.

ABSTRACT
This paper aims to systematise smallholder’s organisation dynamics
in the semiarid region of Brazilian Northeast. The first part analyses
the origin and the logic’s of different forms of producer’s
organisation, based on examples in diverse situations of the
Northeast Sertão. In the second part, are identified and characterised
the main transformation of these organisations in the last twenty
years. Three main collective strategies trends are analysed in terms
of family farmers co-ordination and organisation. In conclusion,
the text evidences the institutionalisation of the organisation process
among the smallholders of the semiarid region. It also calls to
recognise the socio-economic importance of reciprocity beside the
two more classical paradigms of individualism (individual interest)
and holism.
Keywords: family agriculture, collective action, smallholder’s
organisation, peasant reciprocity, associations, Northeast.

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CARTÓRIOS: ONDE A TRADIÇÃO


TEM REGISTRO PÚBLICO1
ANA PAULA MENDES DE MIRANDA*

Buscou-se analisar o funcionamento de cartórios a partir do tra-


balho de campo realizado em Niterói e no Rio de Janeiro. Como
hipótese, considerou-se que frente a uma aparente desorganização
se sobrepunha um tipo de lógica, à qual só teriam acesso os funci-
onários, que desenvolveram uma tradição própria da escrita, or-
ganização e preservação de documentos públicos, consolidando-se
como uma espécie de poder paralelo. Conclui-se que esse processo
transforma a prestação do serviço numa dádiva, onde dar, receber
e retribuir são as regras que asseguram a qualidade do serviço
prestado.
Palavras-chave: cartórios, documentos públicos, informação, dá-
diva

Este artigo é o resultado das reflexões de- uma tradição3 ibérica/mediterrânea (BRAUDEL,
senvolvidas durante a pesquisa de Inicia- 1988; PERISTIANY, 1988), cuja caracte-
ção Científica acerca das práticas rística, destacada por Roberto Kant de
cartoriais, sob orientação do professor Lima (1991), é a existência de dois códigos
Roberto Kant de Lima e financiada pelo opostos mas complementares, onde um
CNPq durante o período de 1991-1993. sistema público de organização burocráti-
O material etnográfico que serve de base ca convive com um sistema privado basea-
para a análise foi coletado no 11o Cartó- do nas relações pessoais de amizade e pa-
rio de Registro de Imóveis do Rio de Ja- rentesco, e o sistema de produção de ver-
neiro, 10o Ofício de Niterói, 4o Ofício da dades possui características inquisitoriais e
3a Vara Cível, e na 1a Vara de Família do interpretativas.
Fórum de Niterói.2
Sendo o cartório uma instituição voltada
O objetivo desta pesquisa era explicitar a ao atendimento público, deveria garantir
lógica que rege os procedimentos de pro- que o direito de acesso às informações ar-
dução, guarda e circulação de documen- mazenadas fosse pleno. No entanto, pude
tos, e compreender a relação que man- constatar que este acesso é limitado e mo-
têm com o acesso à informação na socie- dificado por critérios implícitos às práticas
dade brasileira. Partiu-se da hipótese de de funcionamento da instituição, que alte-
que o cartório é uma instituição onde esse ram o caráter impessoal das regras públi-
processo se dá segundo a influência de cas, introduzindo elementos personalistas
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e particularizantes ao funcionamento do percebi que o meu trabalho seria desven-
serviço. dar quais eram os elementos que permiti-
riam ter acesso a essa lógica. O recurso uti-
O trabalho de campo baseou-se em entre- lizado, seguindo a metodologia emprega-
vistas e conversas informais com titulares da por Malinowski (1976), visava a coletar
de cartórios, advogados (principais usuá- dados concretos, isto é, experiências vivi-
rios de cartórios), funcionários da ativa e das durante o trabalho em cartório, para,
aposentados. As dificuldades encontradas posteriormente, analisá-los. Após o relato
durante a pesquisa foram várias. As entre- dos casos, os funcionários faziam comen-
vistas traziam uma limitação: era preciso tários que deixavam transparecer os ele-
romper a desconfiança inicial para então mentos que compunham esse código. Des-
possibilitar a aproximação entre se modo, foi possível inferir a existência
entrevistador e entrevistado, pois havia de um mecanismo comum que regia essas
sempre uma tentativa de “fuga” aos assun- práticas.
tos mais polêmicos, e uma preocupação
É importante ressaltar que para realizar o
com a não-divulgação do que era dito, que
trabalho de campo foi necessário que eu
diminuía um pouco quando lhes garantia
fosse apresentada a cada entrevistado sem-
o anonimato. As conversas informais, sem-
pre por uma terceira pessoa, um interme-
pre sem a utilização do gravador, eram
diário4 que já os conhecia, e que, às vezes,
mais proveitosas, as pessoas ficavam mais também já tinha sido entrevistado, crian-
tranqüilas, pois o que diziam não estava
do, assim, uma rede de relações. Isto foi
sendo registrado, assim falavam mais aber-
necessário, pois somente deste modo os en-
tamente sobre suas rotinas. Realizei tam-
trevistados sentiram que poderiam confiar
bém a observação da organização do es-
em mim. Após a apresentação, sempre in-
paço e da rotina do serviço, registradas em
dagavam se eu era jornalista ou estudante
um caderno de campo. Paralelamente efe-
de Direito. Quando explicava que estuda-
tuei pesquisa bibliográfica sobre o tema
va Ciências Sociais, que estava fazendo
deste trabalho.
uma pesquisa para a faculdade e queria
entender como funcionava o cartório, per-
Ao tentar analisar as práticas dos funcio-
cebia um certo alívio das pessoas ao ve-
nários dos cartórios, defrontei-me com um
rem que não iria denunciar nada. Só en-
problema básico: a não-existência de uma tão elas falavam abertamente sobre suas
percepção dos funcionários acerca das re-
práticas e sobre a estrutura do cartório.
presentações sobre suas práticas. Só então

A LEGALIZAÇÃO DOS DIREITOS – O DOCUMENTO CARTORIAL E


O ESTABELECIMENTO DA ORDEM

Historicamente, os cartórios surgiram para sos, que lhes garantiriam, formalmente, os


dar autenticidade aos contratos entre as seus respectivos direitos.
partes, nos quais se firmavam compromis-
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Nos livros de Direito, o surgimento do car- mônias e no registro escrito de documen-
tório está relacionado ao aparecimento da tos.
escrita enquanto instrumento fundamen-
tal ao registro dos atos sociais, em oposi- A utilização da escrita por parte do Esta-
ção aos acordos firmados oralmente. A es- do trouxe uma série de implicações para
crita se consolidou juridicamente, pois foi a vida social, representando um instru-
capaz de tornar explícito o que nem sem- mento de controle das relações espaciais e
pre era claro na comunicação oral, de temporais. Lawrence Rosen (1980-1981)
modo que a existência do registro escrito ressalta que os cartórios são capazes de
era entendida como a garantia de uma transformar acontecimentos em “fatos” à
única interpretação do pacto estabelecido. medida que os registram, pois ao registrar
determinadas coisas, tal como a proprie-
O processo da escrita foi fundamental para dade, o cartório passa a ter o poder de ins-
o estabelecimento de um Estado burocrá- taurar e controlar a ordem social.
tico,5 que se caracteriza por uma adminis-
tração especializada, onde as relações im- O uso da escrita também serviu para for-
pessoais devem prevalecer. malizar a relação da sociedade com a lei,
dando-lhe uma autonomia própria, tal
Esta burocracia se opõe à “administração como aos seus órgãos. Assim, a ordem ju-
patrimonial” (FREUND, 1975) – que se rídica organizou-se, especializou-se e se
define pela fusão entre as esferas privadas distanciou da sociedade.
e públicas, onde a honra6 das pessoas é
considerada um critério importante na As normas jurídicas já não residem na
escolha dos funcionários, e a administra- memória de qualquer indivíduo […]
mas podem ser literalmente enterradas
ção é baseada nas relações pessoalizadas. em documentos a ser exumados ape-
nas por especialistas na palavra escrita
Segundo Stuart Schwartz (1979), a buro- (GOODY, 1987, p. 165).
cracia, tanto em Portugal quanto na
Espanha, era caracterizada, no perío- O surgimento dos “especialistas na pala-
do colonial, pela presença de dois sis- vra escrita” diz respeito, no campo jurídi-
temas: o burocrático e o patrimonialista, o co, ao aparecimento daqueles que elabo-
que também ocorreu na América Latina ram os códigos, dos que os interpretam,
devido ao processo colonizador. dos que os aplicam e dos que utilizam os
“escritos jurídicos” para a regulamentação
A presença de uma “burocracia letrada” das ações e transações da sociedade. É o
(RAMA, 1985) serviu ainda como fator caso dos tabeliães e escrivães.
consolidativo na construção do Estado nos
processos de dominação colonial, pois aju- Ao analisar a organização do cartório,
dou a suplantar a diversidade das línguas pude perceber que há o desenvolvimento
nativas através da adoção de uma língua de meios próprios de proceder, o
pública oficial, que era utilizada em ceri- surgimento de especialistas com uma

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tradição própria da escrita, e, principal- reproduzi-los. A observação do funciona-
mente, um poder paralelo, que é o mono- mento do cartório é fundamental para o
pólio da gestão do patrimônio. Um exem- entendimento do sistema de resolução de
plo muito significativo, que representa a conflitos da sociedade brasileira, pois, mes-
exacerbação do poder que o registro es- mo sendo considerado órgão auxiliar do
crito possui em nossa sociedade, foi publi- Poder Judiciário, desempenha um gran-
cado no Jornal do Brasil (11/4/92), numa de papel no controle social através de seus
reportagem que contava o caso de um ar- métodos próprios, que produzem uma
tista que se tornara dono do Sistema Solar determinada ordem social em público, ao
ao registrá-lo em seu nome no 1o Cartório dirimir conflitos que teoricamente cabe-
de Notas de São José dos Campos. Apesar riam ao Poder Judiciário resolver.
de achar engraçado, o tabelião substituto
disse que não poderia deixar de registrá- A construção de uma classificação para os
lo, mesmo não acreditando que o docu- cartórios foi necessária para uma melhor
mento fosse reconhecido pelas autorida- compreensão de seu funcionamento, e,
des, pois sua função era apenas a de regis- inclusive, de suas contradições. Para isso,
trar o documento, e não garantir a veraci- utilizei como referência sua relação com o
dade de seu conteúdo. Mesmo sendo con- Estado e com “particulares”. Deste modo,
siderado absurdo, o registro foi realizado tratarei dos cartórios de registros públicos
de acordo com os trâmites legais. que pertencem ao Estado e têm como fun-
ção “fiscalizar” os atos dos cartórios não-
Para Angel Rama (1985), a palavra escrita oficializados ou cartórios “particulares”
é sempre acatada, mesmo que na realida- (que são uma concessão de serviço públi-
de não seja cumprida, o que expressa que co), e também dos cartórios que acumu-
a palavra escrita não emana da vida so- lam funções. 8 Devo ressaltar que essa
cial, mas lhe é imposta buscando seu tipologia foi “construída” ao longo do tra-
enquadramento em um molde que nem balho de campo, segundo as informações
sempre se adequava à realidade, é a ten- dadas pelos entrevistados, e a comparação
tativa de organizar a sociedade a partir dos entre o que era dito, o que se dizia que era
documentos escritos (códigos,7 contratos feito, e o que efetivamente era feito nos
etc.). cartórios.

O mundo do direito não equivale, pois, O Cartório de registros públicos9 é uma


ao mundo dos fatos sociais. Para entrar instituição criada pelo Estado para servir
no mundo do direito, os “fatos” têm que
ser submetidos a um tratamento lógi- de arquivo dos negócios realizados entre
co-formal, característico e próprio da particulares, ou entre particulares e o Es-
cultura jurídica e daqueles que a de- tado. O registro é a forma de perpetuar um
têm (KANT DE LIMA, 1991, p. 24). acordo e oficializar a sua existência atra-
Ao realizar as suas atribuições, o cartório vés de um documento. Deste modo, regis-
se utiliza dos mecanismos do “mundo do trar em cartório significa dar publicidade aos
direito”, mas não se restringe apenas a atos praticados. Esta publicidade é a garan-

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tia fundamental para assegurar a valida- co, isto é, uma forma de gestão indireta
de de um documento contra terceiros, pois dos serviços públicos, visto que o Estado
no caso da existência de dois contratos tem continua a ser o titular do serviço, mas o
validade aquele que tiver sido registrado entrega a um particular que arca com “os
primeiro, não sendo considerada a anti- riscos econômicos” da instituição. No car-
güidade do documento. tório “particular”, o recolhimento é feito
na conta do titular, que administra o di-
Para esclarecer, vejamos um exemplo dado nheiro para manter o cartório. Ao contrá-
por um entrevistado: uma pessoa “A” pro- rio, nos cartórios oficializados, o recolhi-
mete a venda de um imóvel a outra “B”, mento das custas é feito diretamente ao
posteriormente, “A” faz uma promessa de Estado, e seus funcionários são funcioná-
compra e venda com a terceira pessoa “C”. rios públicos.
“A” e “B”, e “A” e “C” lavram estas pro-
messas em tabeliães diferentes, asseguran- Para a concessão, é necessário um acordo
do a posse da coisa, mas apenas “C” foi prévio entre o Governo e o concessioná-
imediatamente registrá-lo no Cartório de rio, para estabelecer as condições do fun-
Registro de Imóveis, o que assegurou o do- cionamento da instituição. Estes regula-
mínio da propriedade. Quando “B” foi re- mentos visam garantir que os serviços se-
gistrar o imóvel, constatou que “C” era seu
jam prestados conforme as condições im-
novo proprietário, e que ele havia sido le-
postas pelo Governo, que pode consentir
sado por “A”.
que o concessionário os altere, e também
Neste caso, “B” poderia mover uma ação pode fazê-lo, unilateralmente, se o dese-
contra “A” para ressarcir-se do dano, mas jar. O Governo possui também o poder de
não recuperaria o domínio da coisa, já vale sancionar ou corrigir atos do concessioná-
o que foi registrado. Poderia também ga- rio, e até de anular a concessão, se este não
rantir que foi o outorgante (aquele que agir conforme o estabelecido no contrato.
prometeu um direito) quem lesou uma das
partes. Nesse sistema, o tabelião não teria Tradicionalmente, segundo o direito ad-
nenhuma responsabilidade, pois sua fun- ministrativo, a concessão de serviços pú-
ção é apenas legalizar o acordo, e não ve- blicos é usada como uma forma típica de
rificar a autenticidade de informações. exploração de serviços nos estados liberais,
A ação fiscalizadora do Cartório de Regis- contrários à interferência direta do Esta-
tros Públicos ocorre quando não é uma do na organização da sociedade e da eco-
mesma pessoa que ocupa as funções de nomia. No Brasil, entretanto, este tipo de
tabelião e titular do cartório. Muito embo- negociação está atrelado à necessidade do
ra isto ocorra com alguma freqüência, Estado em criar ou manter esta interferên-
principalmente em cidades do interior,10 cia, quando já existem relações mais “cor-
esta é uma das grandes causas de fraudes. diais” entre o Estado e a “sociedade”, ou
melhor, entre os governantes e uma fra-
O cartório “particular” ou não-oficializa- ção da sociedade, a quem sempre os
do é uma concessão de um serviço públi- governantes devem favores.

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De acordo com a tradição, narrada pelos sem ser o melhor colocado. Ele não res-
entrevistados, como forma de agradeci- peitou. E isso é feito de uma maneira
em que sempre favorece determinadas
mento, presenteava-se com uma conces- coisas. Eles sacramentam a ilegalidade.
são de cartório. Deste modo, assegurava-
se lealdade e gratificavam-se os bons ser- Na realidade, o “modelo liberal” não é ri-
viços. Isso sempre constituiu um eficaz gorosamente seguido, pois não se respei-
modo de controle político, pois quem con- ta o primado da impessoalidade. Ao con-
cede direitos de exploração como se esti- trário, o discurso liberal sofre um proces-
vesse dando um presente quer defender so de transformação e é usado para camu-
seus próprios interesses. flar os favores pessoais, sempre utilizando
subterfúgios para parecer dentro do dis-
Um entrevistado ressaltou que, no princí- curso legal e universal. O exemplo relata-
pio, a concessão era uma espécie de título do acima exemplifica o quanto a socieda-
hereditário, que com a morte do titular de brasileira é marcada por redes de rela-
passava para seus herdeiros. Com o tem- ções pessoais, que são instrumentos utili-
po, esse processo foi sendo criticado por zados muitas vezes para se chegar ao po-
um discurso moralizador do serviço pú- der.
blico, o que fez com que a hereditarieda-
de fosse substituída pela ascensão profissio- A tentativa de conciliação de interesses
nal. Porém isso não alterou totalmente a opostos pode também ser demonstrada
tradição, pois os titulares começaram a pela existência de cartórios que possuem
empregar seus parentes como escreven- mais de uma função, como é o caso do car-
tes, e estes, pela progressão funcional, che- tório do 10o Ofício de Niterói, que acumula
gavam ao posto de titular, assim sendo, a as funções de tabelionato e escrivania. É
hereditariedade no cartório estava assegu- necessário, portanto, fazer uma diferencia-
rada. ção entre as funções do tabelião e do es-
crivão.11 Segundo os entrevistados, tabe-
O cartório particular encerra uma contra- lião é aquele que lavra escritura, procura-
dição entre a concepção do que represen- ção, testamento; escrivão é aquele que es-
ta a concessão de serviços num discurso creve processo. Devo ressaltar as categori-
liberal e a sua efetiva prática, como as utilizadas por um entrevistado ao esta-
demostra-nos o exemplo dado por um belecer a diferenciação entre as funções:
entrevistado:
Existe uma diferença entre os cartórios
O titular do cartório particular é uma judiciais e não-judiciais. Os judiciais li-
escolha do governador. Então vão três dam com processos, e os não-judiciais
nomes: o mais antigo, o mais graduado cuidam de atividades que não precisam
e o que tem mais pontuação. Quando do judiciário, por exemplo, as escritu-
o governador […] fez a reclassificação, ras, procurações, testamentos.
eu tinha mais pontos do que o tabelião
e o substituto. Mas daquela lista o go-
vernador escolheu simplesmente um No direito brasileiro, a instituição do
outro qualquer, sem ser o mais antigo, tabelionato é, ainda hoje, com apenas

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algumas modificações, como era no perí- Os inventários ficam quase sempre no
odo colonial, no que se refere à definição nome do tabelião, ele não distribui para
ninguém, afinal os inventários rendem
do ofício e suas atribuições.12 muito porque têm muitas certidões,
essas coisas...
O tabelião é um titular do ofício de justi-
ça, que dá fé pública13 aos atos que lhe com- Já na escrivania, a distribuição dos proces-
petem, segundo a lei. Ele declara o que sos é, teoricamente, feita pela ordem de
aconteceu perante sua presença e das tes- entrada, mas, conforme nos disse um en-
temunhas, não garantindo que o conteú- trevistado, isso pode ser alterado, depen-
do das informações é verdadeiro, mas sim, dendo da situação, para beneficiar o fun-
que estas ocorreram conforme o estabele- cionário, ou para beneficiar o advogado.
cido pela lei. Vejamos os exemplos dados a respeito:

As funções do tabelião não se limitam a Há uma distribuição dentro do cartó-


ouvir as declarações das partes, redu- rio então nós somos cinco, você fica com
zi-las a escrito e colher as assinaturas o processo de final 1, o outro com 2 e
dos pactuantes e das testemunhas. 3, assim por diante. Quando você faz a
Exerce ele verdadeiro poder de polícia,14 autuação, o processo recebe um núme-
ao indagar da capacidade das pessoas ro na ordem, então todo aquele final vai
que o procuram para esses atos, ao que- ficar com fulano, que fica tomando con-
rer saber dos aspectos legais das cláu- ta do processo. Mas, às vezes, vem pela
sulas ou condições contratuais, ao per- ordem e o camarada só pega justiça
quirir da licitude do objeto […], e alta gratuita, e o outro pegou vários in-
responsabilidade, uma vez que é depo-
sitário da confiança do Estado e do público, ventários. Então, a gente conversa
não que fiquem envolvidas por e troca os processos para que o ou-
artiman1has ou ilegalidades (OLIVEI- tro possa ganhar um pouquinho.
RA, 1962, p. 87, grifos nossos). Na 3a Vara Cível, tem uma juíza du-
Segundo um entrevistado, o tabelionato rona, então todo advogado quer que
o processo vá para lá. A distribui-
funciona como um comércio como outro ção entre varas é por sorteio, mas
qualquer onde se tem de lutar pelos clien- nem sempre é assim, pois o advo-
tes. gado pede, dá um dinheiro, então é
o “dez por onde”.
No tabelionato você tem que ter boas A idéia de que o tabelionato é um comér-
relações. Veja, eu tenho um amigo cio como outro qualquer nos dá a impres-
que tem uma empresa imobiliária,
uma empresa construtora que vai são de que tudo é permitido, não há re-
botar um edifício para vender. O gras na distribuição do trabalho. Já em
edifício tem 80 apartamentos, são relação à escrivania, percebemos clara-
80 escrituras. Então eu trabalho mente que existe uma regra explícita, que
aquilo para mim.
é a ordem de entrada do processo, mas
Mas, segundo os funcionários, neste co- que essa regra pode ser flexível, depen-
mércio só quem ganha é o tabelião e o subs- dendo da situação e da pessoa. Nos casos
tituto, pois eles ficam com todos os traba- relatados, podemos observar que as regras
lhos que dão lucro. Por exemplo: foram ignoradas para beneficiar tanto aos

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próprios funcionários, quanto para aten- Este aspecto merece especial atenção por-
der à vontade de clientes. que, segundo os advogados, principais
usuários de cartórios, esta dupla função é
Esta diferenciação é fundamental, pois responsável por uma série de problemas,
permite explicitar que uma mesma ins- pois uma mesma pessoa lida ao mesmo
tituição lida, ao mesmo tempo, com tempo com interesses distintos, isto é, o ti-
dois tipos de relações sociais distintas tular do cartório, ao exercer o papel de
uma dentro da própria sociedade, ou- tabelião, é responsável pela “tutela admi-
tra entre a sociedade e o Estado, re- nistrativa dos interesses privados” (RIBEI-
presentado aqui pelo Judiciário. E cabe RO, 1955) e, ao assumir as atribuições de
ao cartório “resolver” os conflitos que escrivão, responsabiliza-se pelo andamento
advêm dessa dupla função. de processos judiciais. O risco dessa
dualidade é a não-garantia da observân-
cia dos sigilos processuais, o que coloca em
risco a “neutralidade” da Justiça.

AS PRÁTICAS CARTORIAIS – A RECIPROCIDADE E O PODER NA


BUROCRACIA

Um velho escrivão, aqueles livros cesso constam, ou deveriam constar, das


empoeirados, grandes volumes de pa- fichas. Entretanto, por erro ou esqueci-
péis amontoados e toda uma burocra-
cia, pronta a complicar a vida do usuá-
mento,15 às vezes, as informações não es-
rio (SIVIERO, 1983, p. 9). tão à disposição. Por isso, é prática comum
dos advogados “pedirem para ver o pro-
Qualquer pessoa que já tenha ido a um cesso”, para conferir se os dados do pro-
cartório pôde verificar que o estereóti- cesso coincidem com os dados da ficha.
po apresentado na epígrafe acima se asse- Como isso representa uma “perda de tem-
melha bastante à realidade. Dentro deste po”, os cartórios são caracterizados pelos
quadro, pode-se imaginar o caos que re- advogados como uma “burocracia de bal-
presenta “pedir uma informação sobre um cão”, pois são “obrigados” a verificar o
processo”. A confusão é tanta, que não é processo encostados ao balcão, apenas aos
raro não se encontrar o processo. que são “conhecidos” é permitida a rega-
lia de fazê-lo em seus escritórios.
Quando um advogado, ou uma pessoa A observação do funcionamento do cartó-
qualquer, deseja informações sobre um rio permite supor que a esta aparente de-
processo em andamento vai ao cartó- sorganização se sobrepõe algum tipo de
rio. Com o número do processo, pede lógica, à qual só tem acesso os funcionári-
ao funcionário para verificar o que os. Isto os torna absolutamente indispen-
consta na ficha. A ficha é o controle do car- sáveis, pois, sem eles, a burocracia simples-
tório, todas as informações sobre o pro- mente não funciona.
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O funcionamento do cartório, portanto, só nimato e o início de uma alteração da hie-
é possível quando algum tipo de vínculo rarquia social.
não-oficial se estabelece entre o usuário e
o funcionário, criando-se uma relação de O nome de quem pede o serviço, quando
intimidade. Somente assim ocorre a cir- envolvido por um certo prestígio familiar,
culação da informação. É preciso saber a pode significar um caminho aberto sem a
quem se dirigir para se obter as informa- intermediação explícita do tradicional Q.I.
ções desejadas, é preciso saber com quem (quem indica) que, entretanto, em outros
se está falando. casos, é extremamente necessário e útil.

O cartório, cuja função seria dar publici- Conforme o prestígio, essa aproximação
dade aos documentos que mantém sob sua pode representar um adiamento no pra-
guarda, acaba por se transformar, devido zo ou um desconto significativo nos custos
a este processo, em uma instituição pos- adicionais ou, usando a linguagem
suidora e manipuladora de informações, cartorial, nos custos por fora, CPF.18 O
sendo necessária uma “informação espe- prestígio do usuário não está necessaria-
cial”, isto é, uma relação personalizada, mente relacionado a sua situação econô-
para se obter uma informação ou um ser- mica, mas sim ao valor moral que a amiza-
viço que, a rigor, deveria ser público. de possui na sociedade brasileira. Esta é
tão importante que supera o postulado da
Este processo define o tipo de troca,16 pois, igualdade dos homens perante a lei, con-
se o funcionário do cartório não presta um forme expressa o dito popular: “Aos ami-
gos tudo, aos inimigos a lei.”
serviço, mas sim, faz um favor, isto implica
uma forma de agradecimento: No caso, realmente aos amigos tudo é pos-
sível, até burlar os mecanismos legais de
que pode ser um presente, um convite um serviço, o cumprimento dos prazos ofi-
para uma cerveja e, também, o paga- ciais, tudo é esquecido em função da ami-
mento em espécie. Isso ocorre quando
o funcionário diz que será necessário o zade. Mas quando não se é um inimigo
pagamento de uma taxa adicional, ele (pois, segundo este critério, certamente
sempre alega que é para outra pessoa, não se conseguiria o que deseja), porém
mas quase sempre o dinheiro é para ele apenas um desconhecido, um cidadão co-
mesmo.
mum, sem um prestígio pessoal e sem ami-
A primeira aproximação do usuário e do gos no cartório, só resta “penar” sob o juízo
funcionário pode ser mediada por indica- da lei, e esperar que os prazos e taxas ofi-
ção de terceiros, o que sempre é uma boa ciais sejam respeitados. Ou, então, apelar
referência, pois o usuário deixa de ser um para o “bom senso” e tentar o tradicional
“anônimo” para ser “o conhecido de fula- “jeitinho”.
no”, o que já garante um melhor atendi-
mento.17 Este fato é importante, porque A forma como se pede o favor é fundamen-
representa a diferenciação da pessoa no tal. Segundo depoimentos, é necessário
meio social, o que significa o fim do ano- muito tato, demonstrando interesse pelo

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serviço e pela pessoa a quem se vai pedir o O escrevente tem na mão o “poder de
favor. Nunca se deve oferecer diretamen- agilizar” e o “poder de retardar” o anda-
te dinheiro, mas sim, alguma coisa que mento do processo, na realidade, ele lida
possa ser trocada por esse serviço. O favor com duas coisas preciosas em nossa socie-
é fundamental em nossa sociedade, pois é dade: a informação e o tempo. Segundo
o meio de burlar as normas burocráticas um entrevistado, o grande poder do es-
impessoais que caracterizam o serviço pú- crevente é que ele conhece os dois advo-
blico, a fim de se conseguir aquilo que se gados:
deseja.
O escrevente leva uma vantagem, ele
A burocracia é vista em nossa sociedade conhece os dois advogados. Eles comen-
tam com você aquilo que pretendem
como um aspecto negativo do serviço pú- fazer. Há um segredo, mas é um segre-
blico, que só existe para atrapalhar ou, do muito vago. Você pode não fazer uso
como se diz em linguagem cartorária, “cri- dele, mas pode fazer19 (grifos nossos).
am-se dificuldades para vender facilida-
des”. Deste modo, as brechas existentes na Dentre as formas de “atrasar” um proces-
legislação são sempre utilizadas para bur- so, é interessante destacarmos o embargo
lar a mesma. Como afirmou um entrevis- de gaveta. Para defini-lo, vejamos um exem-
tado: plo:

O sistema cartorário é cheio de regras, Tem advogado que pega uma ação de
mas há o jogo de interesses dos advo- despejo e diz para o cara dar para ele
gados. Eles aplicam todos os golpes, mas um tanto por mês. O camarada paga a
às vezes é dentro do direito dele. Por metade do aluguel, e ele não avança
exemplo: a organização permite que ele com o processo. Daquele dinheiro que
leve o processo para “vista”, mas ele tem ele recebe, ele dá para o escrevente a
o prazo para devolver, e ele simples- metade, e o escrevente faz o embargo de
mente não devolve. Então você entra gaveta. É o embargo mais perigoso que
com um mandado de busca e apreen- existe, porque o camarada guarda o
são, mas isso leva um ano, e ele fica com processo e ninguém mais bota os olhos
o processo esse tempo todo. Tem advo- em cima.
gado que só trabalha em cima dessas
coisas.
Uma outra forma citada de atrasar o pro-
Na verdade, os “jeitinhos” ou “favores” cesso é provocar a perda dos prazos:
podem servir tanto para adiantar
quanto para atrasar o andamento do O cara não tem cuidado, ele marca a
processo, isso depende, apenas, da audiência para o dia 25 de dezembro,
quando chega o dia é feriado, então tem
relação existente entre o funcionário e que marcar outra data, aí ele vai mar-
o advogado, ou até do funcionário e da car em junho do ano seguinte. Isso não
“parte”. Essa relação pode ser basea- é preguiça de procurar não, há inte-
da apenas na amizade, mas também resse de você fazer do processo um
pode ser originada pelo dinheiro. pula-pula. O juiz também tem interes-
se em que o cartório demore, se não
acumula muito trabalho para ele.

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Dei um destaque maior à forma como se construído por ambas as partes, através do
atrasam os processos, porque acredito que qual uma pessoa passa a se distinguir das
esses mecanismos possam ajudar a enten- demais, em função de uma atenção espe-
der um pouco melhor o porquê de a Jus- cial que ela destina a um funcionário e dos
tiça ser considerada lenta. privilégios que recebe quando necessita de
algum serviço.
A transformação da prestação de um ser-
viço em uma dádiva estabelece a “legali- A clientela dos cartórios é, basicamente, for-
zação” do princípio da troca: dar, receber mada por advogados, que utilizam mais
e retribuir se tornam, assim, obrigações constantemente estes serviços e, por isto,
sociais. O entendimento deste mecanismo merecem um tratamento diferenciado,
é fundamental para a interpretação dos desigual.21
códigos estabelecidos pela sociedade bra-
sileira, em que a hierarquia é dissimulada A personalização das relações chega ao
pelos valores de amizade, confiança gene- ponto de em alguns cartórios existirem
rosidade, em que o “conhecimento”20 se funcionários responsáveis por determina-
transforma em um critério classificatório dos processos. Dizem os funcionários que
da sociedade. a distribuição é feita pelo número de en-
trada do processo. Por exemplo, o primei-
Numa relação de troca, a dádiva não re- ro processo fica com o funcionário “A”, o
presenta apenas um agradecimento segundo, com o funcionário “B”, e assim
descompromissado, ao contrário, re- sucessivamente. A rigor, esse procedimento
presenta a oficialização do compromis- serviria para evitar o “tráfico de influên-
so entre quem dá e quem recebe, sig- cia” nos cartórios o que, na opinião de um
nificando a continuidade do vínculo entrevistado, nem sempre acontece:
estabelecido, pois o presente nunca
“paga” um favor prestado. É possível se dar um jeito e conseguir
que o processo fique com aquele funcio-
nário que já se conhece, que já é ami-
No fundo, da mesma forma como
essas dádivas são livres, elas não go. Mas também acontece de cair com
alguém que não goste de você, aí é ter-
são desinteressadas. São já contra-
rível, porque a gente sabe que vai ser
prestações, em sua maioria, e feitas ten-
difícil de conseguir alguma coisa.
do em vista não somente o pagamento
de serviços e coisas, mas também a ma- No cartório, o acesso às informações só se
nutenção de uma aliança proveitosa e concretiza após a identificação das pessoas
que não pode ser recusada (MAUSS,
1974, p. 173). que devem, de alguma forma, ter acesso a
elas, apesar de, teoricamente, esta insti-
O estabelecimento do vínculo, a partir da tuição ter como função dar publicidade
dádiva, e a idéia da contraprestação como àquilo que mantém sob domínio.22
base da aliança remetem ao surgimento de
uma outra categoria. A idéia de cliente A diferenciação de tratamento surge a par-
aparece como resultado de um processo, tir da diferenciação entre as “pessoas”:

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aquelas que, por laços de amizade e soli- damental para que sejam discutidos os
dariedade, merecem uma atenção especial, problemas causados pelos sistemas de va-
e os “indivíduos” que, por serem entida- lores sociais.
des anônimas, são merecedoras das regras,
também abstratas e impessoais. Tudo leva a crer, então, que as relações
entre a nossa “modernidade” – que se
faz certamente dentro da égide da ide-
Esta dicotomia entre pessoa e indivíduo23 ologia igualitária e individualista – e a
representa a existência de dois sistemas nossa moralidade (que parece
sociais distintos, a que cada uma dessas hierarquizante, complementar e
categorias corresponde: holismo – pessoa/ ‘holística’) são complexas e tendem a
individualismo – indivíduo. operar num jogo circular. Reforçando-
se o eixo da igualdade, nosso esqueleto
hierarquizante não desaparece automa-
Estes dois sistemas, embora bastante dis- ticamente, mas reforça-se e reage, in-
tintos, estão presentes na sociedade brasi- ventando e descobrindo novas formas
de manter-se (DA MATTA, 1983,
leira: o primeiro é expresso pela estrutu- p. 156).
ra hierárquica da sociedade; o segundo
está presente nos mecanismos universa- A explicitação deste conflito não significa
lizantes da legislação e da economia de a destruição do princípio da hierarquia,
mercado. ao contrário, representa a forma encon-
trada pela sociedade para a manutenção
Como resultado dessa característica dual da coexistência dos dois sistemas de valor.
da sociedade brasileira, o conflito entre Isto representa um problema para a An-
modernidade e moralidade se torna mais tropologia, pois a construção da “identi-
explícito, e a explicitação do confronto dade brasileira” está relacionada ao modo
entre modernidade e moralidade é fun- como a sociedade resolve e representa esta
contradição.

CONCLUSÃO
Com esta pesquisa, tentei compreender a organização cartorária é fundamentada
como uma determinada instituição, o car- no tratamento diferenciado dos casos, no
tório, cuja função é dar publicidade aos privilégio concedido a alguns de serem
documentos que mantêm sob o seu domí- atendidos de modo distinto dos demais.
nio, o faz na prática. O sistema judiciário brasileiro, assim como
outros setores da administração pública,
Conforme pude observar durante o tra- são caracterizados pela coexistência das
balho de campo, a organização burocráti- formas patrimonial e burocrática de orga-
ca do cartório nada tem a ver com a buro- nização.24 Este tipo de procedimento tem
cracia de que Weber (1979) trata, pois em a ver, segundo a nossa hipótese, com uma
vez de baseada na igualdade perante a lei, tradição ibérica, onde os domínios públi-

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co e privado se confundem, onde o “pes- para a compreensão da circulação das in-
soal e o individual estão presentes de for- formações: a apropriação privada da
ma implícita na produção, guarda e colo- informação que transforma as pessoas em
cação em circulação do saber e de seus “donos do saber”.
objetos (livros, documentos públicos, re-
gistros de propriedade etc.)” (KANT DE A idéia de que o uso dos computadores
LIMA, 1991a). Assim sendo, as relações de acabaria com essa apropriação do saber
favor não significam uma negação da ci- não é adequada, pois não considera que a
dadania, mas sim uma outra forma atra- lógica do sistema permite que as pessoas
vés da qual ela se constrói em nossa socie- se tornem as únicas detentoras do conhe-
dade, visto que “não há indicação de que cimento, que a circulação do saber seja
as relações contratuais sejam liberadoras dependente da “boa vontade” dos que o
da cidadania” (MOURA, 1988, p. 202) detém. De modo que a informação só en-
Por esses motivos, as práticas cartoriais de trará no arquivo do computador se o fun-
manipulação de informações não são ape- cionário quiser, já que, como disse um en-
nas uma mera técnica de armazenamento de trevistado: “nem tudo pode ser digitado
dados, mas sim constituem um poderoso senão todo mundo vai ter acesso”.
mecanismo de controle, à medida que não
tornam universalmente público o que Esta afirmação pode ser a síntese da idéia
mantém sob sua guarda. Durante o levan- que permeia este trabalho: a circulação da
tamento bibliográfico para esta pesquisa, informação não depende, apenas, da téc-
constatei que esta estrutura não era exclu- nica de armazenamento ou do modo como
siva do cartório. Considerei, então, que ela se organizam os dados, ela depende, prin-
poderia estar presente em outras instân- cipalmente, das tradições culturais envol-
cias de produção e consagração da verda- vidas. Assim, não basta apenas
de em nossa sociedade, podendo ser tam- informatizar os dados para que essa lógi-
bém estendida às bibliotecas e aos arqui- ca seja alterada, é preciso que essas práti-
vos públicos, locais mediadores ao acesso cas “privatizadoras” sejam explicitadas e
às informações,25 visto que as suas respec- discutidas.
tivas práticas de armazenamento de infor-
mações em muito se assemelham às dos A utilização de atos “fora-da-lei” (os jeitin-
cartórios. hos, os custos por fora) pelos funcionários
dos cartórios é interpretada por uns como
Com relação à técnica de armazenamento desvio da moral, originada pelas más con-
das informações, existe atualmente um dições de trabalho e os baixos salários.
discurso favorável à modernização do sis- Porém, outros acreditam que o que fazem
tema. A informatização surge como o ins- é bom, pois eles têm boa vontade em aju-
trumento capaz de resolver todos os pro- dar a quem precisa.
blemas relativos à circulação da informa-
ção. Porém, na sociedade brasileira, é pre- Este tipo de análise, fundada no senso co-
ciso se destacar um aspecto, fundamental mum da sociedade, remete a causa das

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ações sociais ao caráter individual (atribu- O aspecto individual pode contribuir mui-
to pessoal), não permitindo perceber que to como elemento onde se materializam
a lógica dessas ações transcende os limites (mas não surgem) as estruturas e as repre-
destas transações, pois está implícita na sentações da sociedade. Porém, ele não
própria organização da sociedade, na di- pode ser utilizado como instrumento para
ficuldade da alteração de uma estrutura a explicação de fatos sociais, pois, certa-
fortemente hierarquizante, mas que cons- mente, provocará uma visão limitada da
trói uma representação igualitária de si complexidade deste sistema simbólico.27
mesma.26

NOTAS
1
Agradeço à professora Laura Graziela F. F. Gomes
8
Sobre a história dos Cartórios ver Oliveira (s.d.),
e ao professor-orientador Roberto Kant de Lima, Ribeiro (1955), Serpa Lopes (1947) e Siviero
que muito contribuíram para este trabalho com (1983).
seus comentários e críticas, isentando-os, no en- 9
O Cartório de Registros Públicos se divide em Re-
tanto, de quaisquer erros que porventura perma- gistro Civil das Pessoas Naturais, Registro de Imó-
neçam no texto. Agradeço também aos funcioná- veis, Registro Civil das Pessoas Jurídicas e Regis-
rios dos Cartórios do 10o Ofício de Niterói, do 4o tro de Títulos e Documento.
Ofício da 3a Vara Cível, da 1a Vara de Família do
Fórum de Niterói e 11o Cartório de Registro de 10
É o caso do Cartório do 10o Ofício de Niterói.
Imóveis do Rio de Janeiro, bem como aos demais 11
Sobre tabelionato ver Oliveira (s.d.) e Ribeiro
entrevistados pela atenção dispensada.
(1955).
2
Uma primeira versão deste trabalho foi apresenta- 12
Sobre tabelionato no período colonial ver Schwartz
da no Concurso Vasconcellos Torres de Iniciação
(1979).
Científica da UFF, no ano de 1992, tendo obtido
o 3o lugar (MIRANDA, 1993). 13
A fé pública representa a autoridade de uma ates-
tação. Através de uma assinatura com fé pública, o
3
A categoria tradição é entendida aqui como “siste-
Estado impõe a certeza de que um determinado
ma de significação que empresta sentido às práti-
documento possui valor. A assinatura com fé pú-
cas e representações de um determinado grupo”
blica representa um compromisso com a honra,
(KANT DE LIMA, 1989, p. 65).
posto que a escrita de um documento é
4
É interessante destacar o papel que os intermediá- declaratória, ou seja, tem um caráter pessoal, ver
rios exercem na sociedade brasileira, ver Da Matta Lefebvre (1992).
(1987). 14
Sobre a comparação entre cartório e polícia, ver
5
Sobre a relação da escrita e burocracia, ver Goody Kant de Lima (1989).
(1987). 15
O “esquecimento” nem sempre é apenas uma fa-
6
A honra (PITT-RIVERS, 1992) está ligada por de- lha de memória, muitas vezes está comprometi-
finição ao exercício de um poder pessoal que con- do com outros fatores. Segundo os funcionários,
tribui para a diferenciação e compartimentação as informações não constam da ficha devido ao
da sociedade. excesso de trabalho. Porém, segundo os advoga-
dos, a ausência das informações pode represen-
7
A idéia de código remete à noção de um conheci- tar um “boicote”, pois, em alguns casos, isso pode
mento privativo, que ao ser decifrado torna-se representar a perda de prazos e a paralisação do
público (KANT DE LIMA, 1991). processo, ver Le Goff (1984) e Leroi-Gourhan
(1986).

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16
Sobre as relações de troca, ver Mauss (1974, v. 2). ções das bibliotecas, onde as dificuldades de ob-
tenção de informações sobre bibliografias e aces-
17
É o aparecimento do nome como elemento
so aos livros só são superadas, na maioria das
diferenciador no meio social, tal com se refere
vezes, com o estabelecimento de um vínculo pes-
Mauss (1974).
soal entre o bibliotecário e o pesquisador. Isto
18
É interessante observar a utilização da sigla pôde ser verificado durante o levantamento
CPF, que é um documento necessário à identi- bibliográfico para esta pesquisa em diversas ins-
ficação da pessoa física na sociedade brasilei- tituições: Biblioteca Nacional, Biblioteca Euclides
ra, para a denominação da cobrança de um da Cunha, Biblioteca da Fundação Casa de Rui
serviço. Isto representa a dissimulação de uma Barbosa, Biblioteca do Fórum do Rio de Janei-
atitude que é comum na prática cartorária, mas ro, Biblioteca Municipal de Niterói, Biblioteca
que não pode ser explicitada. Por isso, a utili- da Faculdade de Direito da UFF.
zação de um código que só é conhecido pelas 23
Para a diferença entre indivíduo e pessoa, ver
pessoas envolvidas na transação.
Da Matta (1983) e Dumont (1985).
19
Segundo Lefebvre (1992), o segredo profissio- 24
Sobre a coexistência do patrimonialismo e da
nal está vinculado à honra da corporação e,
burocracia no Brasil, ver Schwartz (1979).
então, sua violação pode acarretar a descren-
ça na instituição. 25
Sobre etnografia das bibliotecas, ver Rocha Pin-
to (1991).
20
A categoria “conhecimento” é usada, aqui, no
sentido do estabelecimento de relações pessoais, na 26
A igualdade tem significados distintos em socie-
utilização da intimidade como atenuante, ou não, dades hierárquicas e em sociedades individua-
das diferenças sociais. listas. Na primeira, ela se fundamenta na seme-
lhança, ou seja, os indivíduos são iguais porque
21
Um funcionário entrevistado se recusou a usar a
são semelhantes; na segunda, é fundamentada
categoria cliente, dizendo que o cartório não os tem.
na diferença, deste modo, os indivíduos são
Porém, verificamos que normalmente esta catego-
iguais, porque são diferentes. (KANT DE LIMA,
ria é usada tanto por funcionários, quanto pelos
1991)
usuários, que se identificam como clientes do car-
tório. 27
Sobre os sistemas simbólicos, ver Bourdieu
(1989).
22
A necessidade de personalização também foi ob-
servada nas práticas de manipulação das informa-

A BSTRACT
Based on the ethnography of the Registry’s functions realized in
two cities, Niterói and Rio de Janeiro, this article discuss how an
apparent disorder can disclose a private tradition, which only the
notaries can perceive. The ways of writing and the document’s
preservation solidifies a parallel power. This process changes the
service into a gift, which to give, to receive and to reward are the
rules that guarantees the service’s quality.
Keywords: Registry, public’s documents, information, gift

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DO PEQUI À SOJA: EXPANSÃO


DA AGRICULTURA E INCORPORAÇÃO
DO BRASIL CENTRAL
ANTÔNIO JOSÉ ESCOBAR BRUSSI*

O artigo discute a incorporação da região Centro-Oeste do Brasil,


a partir da evolução e transformação da forma de interação que
desenvolveu com o ambiente econômico brasileiro. O estudo mos-
tra que a incorporação da região não seguiu uma trajetória linear.
Ela ocorreu a partir de saltos, induzidos pelo tipo particular de
conexão que o Brasil desenvolvia com a economia-mundo capita-
lista. É possível identificar três desses momentos particulares. Fo-
ram eles: 1) a crise de 1913 e a Primeira Grande Guerra; 2) a
crise dos anos 1930 e a Segunda Guerra Mundial, e 3) a crise
dos anos 1960 e as dificuldades nas contas externas do país a
partir do início dos anos 1970. Em todos esses momentos o Cen-
tro-Oeste estreitou seus laços com a economia-mundo através da
expansão da produção agrícola. A integração econômica da re-
gião funcionou como uma reação do país às dificuldades econômi-
cas. Desse modo, o Brasil tem utilizado seu território inexplorado,
sua reserva de natureza, para enfrentar e tentar superar dificul-
dades econômicas.
Palavras-chave: ocupação, colonização, economia-mundo.
“Visitei Goiânia em 1937. Uma planície sem fim, que tinha algo de terreno baldio e campo de
batalha... de boa vontade chamaríamos bastião da civilização... não num sentido figurativo mas
direto, que adquiria assim um valor singularmente irônico. Pois nada podia ser tão bárbaro, tão
desumano, como essa iniciativa no deserto.”

C. Lévi-Strauss – Tristes trópicos

“Porque não há mais florestas em Minas.” (Migrantes mineiros, no início dos anos 1940, respon-
dendo por que haviam mudado para as mediações de Goiânia).

Luís Estevam – O tempo das transformações

* Professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de Brasília.


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INTRODUÇÃO
Os estudos que tratam dos movimentos de ras à órbita do capitalismo em operação
ocupação das novas terras da região Cen- em São Paulo.
tro Oeste (CO)1 invariavelmente têm pro-
curado vincular as primeiras etapas daque- O propósito do presente trabalho é o de
la expansão aos estímulos que se dinami- demonstrar que a expansão da economia
zavam para além das fronteiras do estado paulista – expansão e diversificação da ca-
de São Paulo, emanados pelo crescimento feicultura e da industrialização durante a
da economia cafeeira e por seus desdobra- primeira metade do século XX – e o cres-
mentos industrializantes, a partir do final cimento de uma economia “nacional” pro-
do século XIX. Com isso, o desenvolvi- gressivamente integrada a partir da Se-
mento dos primeiros encadeamentos mer- gunda Guerra Mundial tiveram menos im-
cantis, das primeiras regularidades produ- portância do que convencionalmente se
tivas e comerciais organizadas no CO (es- atribui para o processo de incorporação
pecialmente naquelas regiões fronteiriças do CO brasileiro.
mais próximas do sul de Mato Grosso e de
Goiás) se teria organizado para satisfazer As peculiaridades de origem da produção
necessidades da expansão da “economia” cafeeira, dirigida exclusivamente para o
paulista, nessa época fortemente compro- mercado mundial, e o mosaico de “mer-
metida com a produção, beneficiamento, cados” locais e regionais de que era com-
comercialização, transporte e exportação posto o território brasileiro constituíam a
de café.2 Essa interpretação em nada se contrapartida doméstica das manifestações
altera caso se inclua uma intermediação
da economia-mundo capitalista, desde o
de atividades mercantis localizadas no Tri-
início de nossa história presentes em nos-
ângulo Mineiro (Uberaba, Uberlândia e
sa ambiência econômica. A partir dessa
Araguari), pois também o que ali ocorria
visão, a inclusão do CO ao circuito da pro-
se dava como conseqüência de impulsos
dução de mercadorias e da valorização do
provindos de São Paulo. Desse modo, o
capital representaria a continuação de um
que está sendo afirmado nessas argumen-
processo cujos determinantes proviriam
tações é que o dinamismo e a crescente
dos ritmos cíclicos da economia-mundo,
diversificação e complexidade da econo-
porém com as peculiaridades da presença
mia cafeeira atuavam como indutores de
e, a partir de certo momento, da interven-
um processo de especialização regional em
ção do Estado brasileiro e dos interesses
sua periferia mais imediata, ao mesmo
tempo em que traziam aquelas novas ter- hegemônicos em nosso cenário político e
econômico.

REFERENCIAL TEÓRICO BÁSICO


Na teoria do sistema-mundo,3 referências possíveis cenários, ambos enfatizando re-
a arenas externas mencionam um de dois giões ainda não submetidas à lógica (e to-
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das as suas conseqüências) do sistema- limitada, regional, da economia-mundo
mundo capitalista. O primeiro cenário re- capitalista.
fere-se a entidades políticas estabelecidas
e reconhecidas, situadas fora da economia- Tal comércio tem sido denominado de
mundo capitalista, como os impérios comércio de luxo, e é sua dimensão quali-
Otomano e Chinês nos séculos XVI e tativa que ressalta a especificidade do co-
XVII. A segunda possibilidade aponta mércio que uma arena externa desenvol-
para regiões ainda não subordinadas a via com a economia-mundo capitalista
uma dada organização política estatal ou (WALLERSTEIN, 1982, p. 99-199; 1989,
que, caso hajam sido, ainda não se torna- p. 131-33). Esse tipo particular de comér-
ram reconhecidas pelo sistema interestatal, cio poderia ser exemplificado por penas
como a Sibéria no século XVI ou a África de pássaros, peles exóticas, seda, ou outro
no XVIII. item desejado porém não indispensável à
reprodução das condições de produção e/
A questão mais importante presente na ou de vida tanto dos produtores como dos
noção de arena externa encontra-se na consumidores. Um aspecto decisivo desse
tipologia das conexões que um dado ter- tipo de produção e de troca é a irregulari-
ritório pode estabelecer com a economia- dade congênita que se manifesta em ativi-
mundo capitalista. No entanto, em ambos dades coletoras, ou naquelas cuja produ-
os caso, as arenas externas ainda não de- ção ocorre de modo sazonal ou, ainda, nos
senvolveram “a regular flow of products interstícios de importantes atividades re-
from the area to other areas of the axial gulares de subsistência. Um tipo relativa-
division of labor of the capitalist world- mente freqüente dessa atividade produti-
economy” (HOPKINS ; WALLERSTEIN, va provém de atividades rituais, cujo pro-
1982, p. 129). Desse modo, identificar o duto excedente pode eventualmente ser
tipo de interação que essas áreas estabele- comercializado. Com isso, temos que os
cem com a economia-mundo torna-se vínculos comerciais com as arenas exter-
crucial para a análise, porque é a partir nas eram, no mais das vezes, irregulares,
dele que se pode ou não conectar regiões marcados pela não-essencialidade daque-
a um ou mais eixos da divisão mundial do la atividade, até porque o produto
trabalho. Essa questão assume especial re- comercializado não raro revestia-se de
levância porque alguns tipos de trocas não menor interesse para seus produtores,
se integram ao processo regular de pro- devido ao escasso valor que a ele atribuí-
dução e reprodução da economia-mundo am. É necessário ainda acrescentar a to-
capitalista e, conseqüentemente, acabam das essas limitações uma última, qual seja,
por não afetar o movimento geral de acu- a quantidade pouco expressiva de produ-
mulação de capital. Aqui, variações de pre- tos envolvidos nesse tipo de troca.
ço, escassez ou abundância relativa não
induzem ou disparam reações em cadeia Entretanto, além dos tipos mais comuns
que possam interferir no fluxo regular da de arenas externas apontados acima, deve-
vida econômica, mesmo em extensão mais se acrescentar um terceiro tipo, qual seja,

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o daquelas regiões ou redutos internos ao Entretanto, em uma segunda passagem,
território de um estado nacional que, no Hopkins e Wallerstein comentam a respei-
entanto, continuam apartados do fluxo to da existência de redutos (redoubt areas)
continuado de mercadorias, mesmo per- que, apesar de estarem dentro dos limites
tencendo a entidades políticas reconheci- da economia-mundo, ainda não se encon-
damente participantes do sistema tram incorporadas. Afirmam que:
interestatal. É verdade que esses
interstícios em áreas incorporadas são des- [...] The literature on agricultural
tacadas exceções na tendência secular de history has indicated a clear pattern
over time of “inner” expansions, in the
expansão da economia-mundo capitalista, sense that not all the areas physically
especialmente a partir do início do século located inside the outer boundaries of
XX, quando praticamente todo o globo the world-economy had necessarily
terrestre foi entranhado em suas redes. been from the outset involved in the
social economy. There were
“subsistence redoubts”. It is clear that,
A despeito da pouca atenção que geral- as a process, the incorporation of areas
mente os estudiosos do sistema-mundo at the outer edges and areas that were
atribuem ao tema, em pelo menos duas redoubt inside was essentially the same
phenomenon economically, even if it
ocasiões Hopkins e Wallerstein demons- had a different definition juridically
tram preocupação sobre como tratar aque- and perhaps different prerequisites
les redutos ainda não incorporados. politically. Whereas “outer” expansion
has undoubtedly reached its limits, it
may be that “inner” expansion has still
Em um artigo, “Theoretical and
some small distance to go (HOPKINS ;
Interpretative Issues”, Wallerstein afirma: WALLERSTEIN, 1982, p. 56).

We are going to have to worry about Além de reconhecerem a existência de ni-


inner boundaries, because, if we look chos apartados da economia-mundo capi-
at it in the very early stages, there exists
a set of outer boundaries, but there are talista, apesar de fisicamente localizados
also inner areas that are not involved. dentro de seus limites, os autores apon-
The political processes of incorporating tam ainda duas questões de importância
inner areas into larger economic areas para o tema aqui discutido. Primeiro, que
are obscure and we have to worry about
how we will define them em sua dimensão econômica, a incorpo-
(WALLERSTEIN, 1982, p. 100). ração desses tipos de arenas externas
(aquelas fisicamente localizadas fora dos
Há dois problemas nessa citação que de- limites da economia-mundo capitalista e
mandam referência: em primeiro lugar, os aquelas que, por qualquer razão, foram
espaços internos não incorporados são vis- mantidas isoladas, porém dentro dos limi-
tos como traços dos primeiros momentos, tes da economia-mundo) apresenta-se es-
dos períodos mais primitivos da economia- sencialmente como um mesmo fenômeno
mundo capitalista e, em segundo, o reco- e, segundo, que esses redutos seriam “de
nhecimento da dificuldade para clarificar subsistência”. Nesse último ponto, a ênfa-
os processos políticos da incorporação. se a uma “economia de subsistência” apre-

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senta-se como um traço diferenciador en- Tendo sido demonstrado ser adequado
tre estes redutos e as áreas circundantes utilizar o conceito de arena externa àque-
incorporadas. O que as aproximaria seria las partes de um território nacional que
a similitude do processo de trazê-las à continuaram apartadas dos processos
ambiência da economia-mundo capitalis- centrípetos da economia-mundo capitalis-
ta, embora cada ponto de partida e seus ta, torna-se agora necessária uma breve
respectivos conteúdos políticos e sociais apresentação do conceito de incorporação,
possam apresentar peculiaridades e dife- com o intuito de evidenciar a pertinência
renças. de sua aplicação ao processo de ocupação
do CO brasileiro.
Por outro lado, os estudos sobre incorpo-
ração reforçam, em parte, o entendimen- Na teoria do sistema-mundo, o conceito
to acima, pois insistem no processo e na de incorporação pertence ao quadro ge-
qualidade dos laços que vinculam um dado ral das tendências seculares da economia-
território à dinâmica da economia-mun- mundo capitalista, isto é, da direção bási-
do capitalista (ARRIGHI, 1979; SO, 1984; ca de desenvolvimento do conjunto do sis-
ÇIZAKÇA, 1985; KASABA, 1987; tema, processo portador de desigualdades
PHILLIPS, 1987; MARTIN, 1987). Os e de descontinuidades. Nesse sentido, in-
mesmos autores indicam ainda que a in- corporação está inscrita no movimento
corporação das arenas externas apresen- geral de expansão de um sistema que as-
ta-se não apenas como um prolongado sumiu traços peculiares a partir do alar-
processo, mas também como um movi-
gamento e aprofundamento sem fim das
mento descontínuo, de avanços irregula-
relações de produção capitalista e de seu
res. Nesse sentido, a partir do reconheci-
corolário, o infinito processo de acumula-
mento de uma não-linearidade no proces-
so de incorporação, torna-se teoricamen- ção de capital.
te concebível que uma dada região possa
estar fora dos limites da economia-mun- Como um conceito histórico, incorporação
do, mesmo sendo parte de um Estado per- é o processo de expansão física do capita-
tencente ao sistema interestatal. Assim, se lismo, a partir de seu núcleo europeu, des-
impérios muito bem estruturados como o de seu impreciso início no final do perío-
Chinês (SO, 1984) ou o Otomano do medieval. Pelo início do século XX, a
(ÇIZAKÇA, 1985; KASABA, 1987) foram economia-mundo capitalista tinha atingi-
incorporados por partes no longo proces- do seus limites de expansão: cobria a tota-
so de trazê-los ao encadeamento mundial lidade do planeta, com alguns interstícios
da produção capitalista, é teoricamente sem importância deixados de lado.
possível utilizar o conceito de arena exter-
na e, conseqüentemente, o de incorpora- A precaução a ser tomada quando se utili-
ção, em contextos sociais onde partes do za o conceito de incorporação para expli-
território de um Estado nacional são pro- car a absorção daquelas áreas intersticiais
gressivamente trazidas à órbita da mesma à economia-mundo é a de não utilizá-lo
economia-mundo. para qualquer expansão ou realocação de

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capital, porque a economia-mundo está WALLERSTEIN, 1987, p. 763-769;
contínua e ciclicamente experimentando WALLERSTEIN, 1989, p. 130-131). Se
esses tipos de mudanças. Em primeiro lu- esses pré-requisitos estiverem presentes na
gar, o que realmente importa considerar vinculação de uma área intersticial à eco-
é a condição econômica prévia da região nomia-mundo, então poderemos dizer
em estudo, as características de suas cone- que é de incorporação que estamos tra-
xões sistêmicas anteriores ao início do tando.
movimento centrípeto que a trouxe até a
economia-mundo e sob quais bases aque- Conforme demonstrado a partir das con-
la interação sistêmica particular foi siderações acima, o processo de incorpo-
construída. Em segundo lugar, deve-se ração não significa simplesmente trazer
avaliar como os principais traços do pro- algumas áreas à ambiência da economia-
cesso desenvolveram-se em relação ao que mundo capitalista. Ela traz importantes
foi identificado como a diferentia specifica transformações na estrutura econômica da
do conceito de incorporação através da região em incorporação, tais como, novos
história da economia-mundo capitalista. processos de produção, novas relações de
Em outras palavras, para ser chamado in- trabalho, novos produtos e novos merca-
corporação, um processo histórico não dos. Entretanto, o conjunto dos interesses
pode apresentar semelhanças aleatórias envolvidos necessita de forte interferên-
com o conceito. Deve-se, de algum modo, cia e suporte do Estado para realizar seus
demonstrar que uma região passou (ou objetivos naquela parte prospectiva da eco-
estaria passando) por mudanças qualitati- nomia-mundo. A presença do Estado tor-
vas em seu modo de interação com a eco- na-se indispensável especialmente porque
nomia-mundo; que o processo construiu a incorporação acontece como parte da
(ou estaria construindo) laços profundos busca por condições de produção mais fa-
e permanentes com as correntes de mer- voráveis (força de trabalho, recursos na-
cadorias em funcionamento na economia- turais, novos mercados) para compensar
mundo capitalista; que o processo de acu- as pressões que obstruíam ou poderiam
mulação de capital foi (ou estaria sendo) obstruir o movimento sem fim de acumu-
maximizado na área em incorporação; que lação de capital no Estado incorporador
um novo padrão de produção para expor- (WALLERSTEIN, 1989, p. 131).
tação foi (ou estaria sendo) organizado,
freqüentemente sob controle de grandes Nesse sentido, a intervenção das institui-
empreendimentos; que o processo de in- ções e dos recursos do Estado torna-se in-
corporação foi garantido e estimulado por variavelmente necessária para domesticar
efetiva intervenção estatal; que tenha sido as condições e os recursos prevalecentes
uma resposta a pressões sistêmicas além na região incorporada. Para tal, são ne-
de ter implantado uma coerção ainda mais cessários substanciais aportes de capital e
intensa sobre a força de trabalho de poder à disposição do Estado nacional
(HOPKINS ; WALLERSTEIN, 1982, envolvido. A vasta quantidade de capital
p. 41-82, 91-103; 121-142; HOPKINS ; requerida para estimular o processo jun-

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tamente com a crescente dificuldade polí- hence one expanded first where it was
tica para canalizar uma cada vez maior easiest to expand.
quantidade de recursos para tal empreen- Do que foi dito acima e reforçado por esta
dimento impedem que a incorporação última citação, o processo de incorpora-
apresente um movimento linear exibindo, ção é sempre determinado pela entidade
em vez disso, um comportamento de sur- política e econômica incorporadora, com
tos, de saltos. Ou como afirmam Hopkins a participação, na melhor das hipóteses,
e Wallerstein (1987, p. 776): secundária, responsiva, dos interesses lo-
calizados nas zonas incorporadas. Neste e
[...] Expansion was neither an easy or em outros aspectos já comentados, o pro-
costless task. One did only as much as cesso que teve lugar na região CO não fu-
one had to do, to compensate for
current difficulties. Hence, expansion giu à regra. A próxima seção apresentará
occurred in spurts, a little at a time, and algumas evidências a esse respeito.

CENTRO-OESTE: SURTOS INCORPORADORES NO SÉCULO XX


No final do século XIX e começo do sécu- Por outro lado, as atividades rurais ou,
lo XX, as províncias de Mato Grosso e de mais genericamente, do setor primário, ao
Goiás continuavam apresentando aquele lado da generalizada produção agrícola de
tipo de existência tão duramente resumi- subsistência, apresentavam a atividade
do por Saint-Hillaire como de “triste coletora como a mais importante, tal como
décadence et de ruines” (1847, p. 308- o látex e o mate no Mato Grosso. Em am-
309). Os estados, apesar de ocuparem cer- bos os casos, qualquer expansão dependia
ca de 25% do território brasileiro, eram os exclusivamente dos avanços sobre novas
menos populosos do país e sequer apre- reservas naturais de Haevea brasiliensis e de
sentavam município com pelo menos um Ilex paraguaiensis. Por sua vez, a pecuária,
(1) habitante por quilômetro quadrado, atividade usualmente lembrada como a
mesmo considerando suas respectivas ca- mais importante, como a que estrategica-
pitais. Em tal quadro de dispersão mente iria posicionar o CO em um rudi-
populacional, os pequenos agrupamentos mento de divisão regional do trabalho a
urbanos eram completamente dependen- ser esboçada posteriormente, ainda era
tes dos estímulos espasmódicos proveni- uma atividade a rigor “extrativa”. O gado
entes do campo. Assim, existindo como se reproduzia em fazendas de extensões
reflexo da vida rural, as cidades da região tão vastas e a terra possuía tão pouco va-
desempenhavam funções que se asseme- lor que não se utilizavam cercas para se-
lhavam àquelas típicas das cidades das eco- parar as propriedades. Nessa época, nas
nomias pré-capitalistas, ou seja, funções fazendas goianas, apartavam-se as crias
administrativas, coercitivas e religiosas. jovens (novilhos, bezerros) do rebanho,

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perdidas na imensidão do cerrado, e as so, a necessidade de demarcação das pro-
encaminhavam para Barretos para cresci- priedades agrícolas, com a desagregação
mento, engorda e posterior abate em São de inúmeros latifúndios. As antigas posses
Paulo (ESTEVAM, 1998, p. 86). A partir eram tão imensamente grandes que, mes-
dessa forma tão irregular de produção, mo após várias divisões, era comum en-
não é difícil presumir quão errático era o contrar propriedades de 50.000ha.
vínculo do CO com a “economia paulista”. (CORRÊA FILHO, 1969, p. 622).

A chegada da estrada de ferro (1914) afe- Em Goiás, os poucos dados disponíveis


tou muito timidamente a vida local, ape- indicam que o estado se tornou exporta-
sar de já se notarem fluxos comerciais mais dor de arroz a partir da primeira década
regulares com outros estados, especial- do século XX. A inauguração da Estrada
mente de gado e de arroz. A conseqüên- de Ferro de Goiás (1914), um prolonga-
cia imediata, contemporânea ainda da fase mento, através do Triângulo Mineiro, da
de construção das ferrovias, foi a valoriza- Estrada de Ferro Mogiana, estendeu ao sul
ção das terras adjacentes ao traçado dos do estado a facilidade e a regularidade de
trilhos. transporte, antes só disponível a Uberaba
e Araguari, no Triângulo Mineiro.
Com a expansão dos trilhos, os sertões de
Mato Grosso e de Goiás foram pouco a No período anterior à ferrovia, Goiás se
pouco despertando da estagnação. A rede caracterizava por exportar produtos rela-
urbana de Mato Grosso, na época inferior tivamente caros e exóticos (com exceção
à de Goiás, tomou novo impulso, fazendo do gado) como peles da fauna nativa, pe-
progredir as cidades já existentes, como nas de pássaros, fumo e marmelada, por
Campo Grande, Aquidauana, Miranda, exemplo. Os altos custos dos transportes
entre outras. Ao mesmo tempo, novas ci- e a disseminada economia de subsistência
dades eram criadas, tanto ao lado da fer- eram responsáveis por essa especialização
rovia como em localidades razoavelmente (BORGES, 1990). Após a inauguração da
distantes da via férrea, como Dourados, ferrovia, a quantidade dos produtos ali-
Rio Brilhante e Bonito (CORRÊA FILHO, mentares mais populares havia superado
1969, p. 621). em muito aqueles produtos mais tradicio-
nais, sofisticados e/ou exóticos. Com isso,
O surgimento e desenvolvimento de cen- no período 1915-1920, o arroz assume a
tros urbanos intensificaram a utilização e, posição de principal produto agrícola de
conseqüentemente, a procura por novas exportação de Goiás, por via ferroviária,
terras. Esta se fazia tanto através da com- que embarcou, em 1918, quase 7.000 to-
pra como pela regulamentação de situa- neladas de arroz e 1.500 de feijão
ção de posse e, também, pela busca, a qual- (BORGES, 1990, p. 125).
quer custo, de terrenos não claramente
apropriados. Esse processo acabou intro- De fato, esses números demonstram que
duzindo, pela primeira vez em Mato Gros- no sul de Goiás, na região beneficiada pela

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ferrovia, estava em progresso a instalação inalterada. Esta afirmação refere-se espe-
de uma economia mercantil, embora as cificamente ao privilegiamento do setor
relações de produção estivessem relativa- externo no que diz respeito às políticas do
mente estabilizadas, com meeiros, possei- Estado, às preocupações dos grupos diri-
ros, camaradas e pequenos arrendatários gentes e, sobretudo, às origens dos estí-
constituindo o grosso dos produtores di- mulos produtivos para a economia brasi-
retos permanentemente em atividade. Ao leira. Deste modo, a preponderância eco-
lado deles e com velocidade crescente, co- nômica da monocultura em extensas re-
meçou a surgir a figura do trabalhador giões, aliada a certa desconsideração com
assalariado temporário, grupos o abastecimento interno – provavelmente
seminômades que se dirigiam ao sul de o efeito concreto da ideologia das vanta-
Goiás sazonalmente, nos tempos de plan- gens comparativas – exigiam permanen-
tio e colheita, quando a demanda de força temente a importação de ampla varieda-
de trabalho crescia extraordinariamente de de produtos alimentícios, sendo o ar-
(BORGES, 1990, p. 107-108). roz um dos principais produtos invariavel-
mente presentes nas pautas anuais de im-
Em breves palavras, era esse o cenário pre- portações, com quase 62.000 toneladas
valecente no CO nas primeiras décadas do importadas no período 1908 a 1912. Em-
século XX, época que convencionalmente bora declinantes, as importações de ali-
se costuma atribuir à região uma já efetiva mentos continuaram importantes até a
função complementar às atividades que se metade da Primeira Guerra Mundial
desenvolviam em São Paulo. A comple- (1916) (Annuário Estatístico do Brasil:
mentaridade se dava com a produção de 1908-1912, v. 2, p. 111).
alimentos naquelas áreas periféricas que
estariam suprindo a demanda alimentar No caso específico do arroz, produto que
da força de trabalho ocupada em São Pau- nos interessa por ser o principal item agrí-
lo e/ou no Sudeste (MARTINS, 1975, cola de exportação de Goiás, as importa-
p. 39; BORGES, 1990, p. 89-90;
ções cresceram continuamente até o perío-
ESTEVAM, 1998)
do 1901-1905, diminuindo até quase de-
Dois são os argumentos a indicarem fato- saparecer em 1920. Já as exportações
res de ordem sistêmica (ritmos cíclicos e apresentaram-se insignificantes até o iní-
tensões no sistema interestatal) como cio da guerra, quando atingiram 236.000
determinantes para a ocorrência daque- toneladas, entre 1916-1920. Em regra ge-
les impulsos incorporadores verificados no ral, esse é o comportamento observado
início do século XX. Em primeiro lugar, para todos os alimentos selecionados nas
devemos verificar o que ocorria com o tabelas consultadas, ou seja, ter apresen-
abastecimento doméstico de gêneros ali- tado significativa expansão das exporta-
mentícios de grande consumo popular. ções durante os últimos anos da Primeira
Durante toda a República Velha (1889- Grande Guerra. (VILLELA; SUZIGAN,
1930), a orientação para o exterior da 1975, p. 95; LINHARES; SILVA, 1979,
agricultura brasileira manteve-se p. 36)

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Por outro lado, é também digno de nota o ladas) ou mesmo quando confrontadas
comportamento declinante das importa- com as exportações (Censo de 1920 – Agri-
ções dos principais alimentos tradicional- cultura, 1924, p. 5).
mente importados (arroz, feijão, batata e
milho). Em todos os casos, a partir de 1917, A década de 1930 não trouxe mudança
fica evidente que o país havia se transfor- nesse quadro marginal da produção
mado em exportador de alimentos, certa- agropecuária do CO. Houve até retração
mente respondendo à demanda interna- em termos relativos na produção da re-
cional provocada pela guerra (VILLELA; gião. A produção de arroz, por exemplo,
SUZIGAN, 1975, p. 127). equivalia, em 1930, a 8,35% da produção
nacional, enquanto que em 1939 o
Não foi possível encontrar séries estatísti- percentual era de 7,13%. Em outras pala-
cas anuais que detalhassem a produção e/ vras, os estímulos autarquizantes que a
ou a exportação de grãos do CO durante crise de 1930 impôs ao Brasil foram me-
os primeiros trinta anos do século XX. nos fortes no CO que em outras regiões
Durante esse período, Goiás respondia por do país, como o Sul (RS), no caso do ar-
praticamente toda a produção da região, roz, estado que, de fato, produziu boa par-
de acordo com os dados do censo de 1920. te do aumento da oferta naquela década,
(Estatísticas da Agricultura Brasileira,
O mesmo censo de 1920 mostra também 1990).
que, àquela altura, Goiás ainda nem de
longe estava fornecendo alimentos para o Somente a partir do início da Segunda
Sudeste em quantidade suficiente para Guerra Mundial pôde-se notar avanços
cumprir uma propalada função na divi- importantes na produção de arroz do CO,
são regional do trabalho, ou seja, a de pro- fenômeno que ganharia impulso na déca-
duzir alimentos para São Paulo, segundo da seguinte.
a interpretação corrente que explica a co-
lonização do CO no século XX como de- Pode-se, portanto, afirmar que os estímu-
terminada pelos impulsos da economia los emanados a partir da economia cafeeira
cafeeira. Não poderia ser diferente pois, a e de seu desdobramento industrializante,
despeito de todo o estímulo gerado pela no período em que esta foi hegemônica
existência real de uma demanda não sa- no cenário econômico brasileiro, não fo-
tisfeita, comprovada pela necessidade ram suficientes para transformar o CO em
permanente de importação até 1916 e pelo importante produtor de grãos para o mer-
aumento das exportações durante a guer- cado doméstico paulista ou brasileiro. Ape-
ra, Goiás continuava a produzir apenas nas a partir de 1940 é que se percebe uma
4,5% do arroz (37.427,6 toneladas) e 1,5% tendência de crescimento da produção de
do feijão (10.947,8 toneladas) da produ- arroz no CO, determinada por razões bas-
ção nacional de 1920. Na verdade, as tante diferentes daquelas que associavam
quantidades que exportava eram residuais a dinâmica da agricultura da região (es-
quando comparadas com a produção to- pecialmente Goiás) à oferta de alimentos
tal de arroz daquele ano (831.495,1tone- para a economia cafeeira.
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As guerras mundiais, o desaparecimento cia de excedentes do produto de tal modo
da oferta internacional de alimentos pro- que permitiu sua inclusão entre aquelas
vocado pela desorganização da produção mercadorias exportáveis por estar o mer-
e do comércio internacional, as pressões cado doméstico plenamente abastecido.
da demanda internacional, estes foram os Isso, porém, não ocorreu. Em primeiro
verdadeiros estimuladores da agricultura lugar, devido à exígua quantidade produ-
do CO. zida pela região. Em segundo, e muito
mais importante que a pouca significância
O segundo argumento a demonstrar o da produção goiana, porque a decisão de
pequeno impacto da dinâmica econômica seguir aumentando a exportação de ali-
paulista sobre a região CO no período em mentos não levou nem minimamente em
análise (até 1930) fundamenta-se no com- conta o abastecimento interno. De fato, em
portamento do setor externo brasileiro 1917, a escassez de alimentos e seu conse-
naqueles anos. A citação que se segue des- qüente alto preço atingiram níveis tão dra-
taca resumidamente os tópicos mais rele- máticos, que já se ouvia no Congresso
vantes da questão. Nacional sérias criticas a tal situação. O
deputado Nicanor Nascimento afirmava
que “tornou-se intolerável a vida não só
A crise do comércio exterior que se
iniciara em 1913 foi agravada durante
das populações paupérrimas, mas até das
a I Guerra Mundial. Os preços dos pro- populações médias”. Mais adiante, acusa-
dutos de exportação caíram a níveis ex- va os exportadores de se aproveitarem da
tremamente baixos, causando forte re- situação dizendo: “Ao passo que a riqueza
dução em seu poder de compra, que se aumenta e, com ella, a exportação, o em-
refletiu em baixo volume de importa-
ções (também afetado pela diminuição pobrecimento nacional é cada vez maior”
da oferta externa, causada pela guer- (LINHARES; SILVA, 1979, p. 32).
ra), o que, por sua vez, implicou em
queda na receita federal, de vez que 2/ Foi a crise do comércio exterior do Brasil,
3 dela provinham do imposto de im-
portação (VILLELA; SUZIGAN, 1975, iniciada em 1913, a verdadeira causadora
p. 117). do início da incorporação do CO. Foi a
escassez de divisas que empurrou o Esta-
A citação aponta para outro decisivo do brasileiro em busca de novos produtos
estimulador da produção e da exportação exportáveis, para compensar a brutal di-
de alimentos pelo CO. A crise econômica minuição das receitas públicas necessárias
que se abateu sobre o Brasil em 1913 pro- para saldar compromissos externos. Oca-
vinha, em parte, da queda dos preços do sionalmente alguns daqueles produtos
café e da borracha. Os efeitos dessa queda eram produzidos em Goiás, no momento
e a guerra impuseram à economia brasi- em que o transporte ferroviário estava
leira a busca de produtos exportáveis não chegando à região. A forte pressão da de-
tradicionais, como foi o caso dos alimentos.4 manda para exportação acabou, então,
sendo responsável pela expansão da agri-
cultura e da pecuária goiana e pelo estí-
Poderia ser argumentado que a produção
mulo à pecuária mato-grossense. Os anos
goiana de arroz contribuiu para a existên-

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posteriores à Primeira Guerra Mundial, adensamento de interesses de maneira que
até o início da década de 1940, compro- os estímulos incorporadores internamen-
vam nossa afirmação quando identificamos te gerados começaram a se fazer sentir,
que a produção agrícola daqueles estados progressivamente, sobre a região CO. A
(no que respeita ao arroz) até regrediu em partir de 1940, portanto, o eixo
termos relativos. Esta afirmação coincide dinamizador da incorporação se desloca-
com a interpretação hoje corrente de que rá para incluir sistemática e permanente-
somente como conseqüência da crise de mente novos interesses (já agora internos,
1930 pôde-se verificar a existência de um locais e, por esse momento, nacionais),
dinamismo com alguma determinação in- gestados durante o período anterior e
terna na economia brasileira. É com esse crescentemente interessados naquela in-
dinamismo, em parte endógeno, que se corporação. Entretanto, a região terá de
inicia, a partir de 1940, com as reformas esperar um bom tempo para que trans-
estruturais do Estado e com o formações qualitativas na economia e na
aprofundamento da industrialização ha- agricultura brasileiras alterem o ritmo, a
vidos na década anterior, um processo de intensidade e o destino final da incorpo-
ração.

O GRANDE SURTO INCORPORADOR DOS ANOS 1970


O pesquisador Tamás Szmrecsányi iniciou tação absoluta para os estudos de desen-
um importante estudo a respeito do de- volvimento econômico.
senvolvimento da agropecuária no Brasil
afirmando que: Ao estudarmos o comportamento da agri-
cultura, especialmente da agricultura de
A maioria dos estudos sobre o desen- exportação, durante a década de 1960, fi-
volvimento recente da economia brasi- cam claros os limites e os equívocos implí-
leira identifica na industrialização do
País o seu principal fator dinâmico, re- citos na aceitação irrestrita daquela “lei”.
legando a um segundo plano o papel A necessidade de se introduzir variáveis
nele desempenhado pelas transforma- independentes especificamente ‘agrícolas’
ções do setor agropecuário – tal como a importância do café para as
(SZMRECSÁNYI, 1995, p. 109).
contas externas do país – acaba por impor
o reconhecimento não apenas dos exage-
Depois de sintetizar as razões “desta ma- ros da “lei do declínio secular da agricul-
neira de ver as coisas” em uma “lei do tura”, mas também permite que determi-
declínio secular da participação do setor nações fundamentais nas mudanças da tra-
agropecuário”, o autor progressivamente jetória da agropecuária brasileira sejam en-
busca demonstrar os equívocos implícitos contradas a partir da própria dinâmica do
na aceitação de tal tendência como orien- setor agrícola do país.

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Com o fim da guerra em 1945 e a pro- respeito às orientações da economia-mun-
gressiva reorganização dos mercados, a do ou, em outras palavras, a dependência
agricultura brasileira retomou rapidamen- que o país tinha na demanda agrícola da
te seu dinamismo produtivo apresentan- economia-mundo. Em tal redivisão geo-
do, porém, duas tendências que iriam tor- gráfica do trabalho, a região CO passou a
nar-se cruciais para o entendimento das desempenhar o papel de fornecedor de
direções futuras do setor: 1) o aumento da alimentos através da adição de novas ter-
produtividade por hectare dos produtos ras e de nova população rural reprodu-
cultivados para o mercado mundial, como zindo, assim, o “velho” e natural processo
o café e a cana-de-açúcar, e 2) a crescente de incorporação cujo início remontava ao
migração da produção de alimentos para princípio do século, porém com velocida-
regiões mais distantes dos centros consu-
de e solidez redobradas.
midores, como o CO e o Nordeste. É im-
portante ressaltar que, a despeito de a pro-
Resumidamente, então, pode-se afirmar
dução de alimentos ter se deslocado para
áreas mais periféricas, com baixa e estag- que a principal característica dos anos 1950
nada produtividade, aqueles anos foram foi fornecer divisas para o programa de
caracterizados como tendo produzido ali- industrialização substitutiva de importa-
mento suficiente para nutrir a crescente ções, ao mesmo tempo em que alimentava
população urbana, fato até então inédito a crescente população urbana através da
na história do país. ocupação de novas terras.

Nas áreas mais nobres, com melhores so- A década de 1960, deve-se dizer desde já,
los e de mais fácil acesso ao mercado mun- não foi particularmente diferente dos anos
dial, como o Sudeste e especialmente em 1950 no que diz respeito à produção para
São Paulo, a produção de alimentos foi o mercado interno. O crescimento da pro-
sendo progressivamente substituída por dução agrícola continuava a ocorrer me-
culturas para exportação, tendo a região diante a adição de novas terras, e o
recuperado uma característica que havia aprofundamento da especialização agríco-
sido parcialmente abandonada com a cri- la regional seguiria a mesma direção do
se econômica internacional dos anos 1930, após-guerra.
ou seja, a de ser uma região de agricultu-
ra preponderantemente exportadora. Por sua vez, o setor agrícola de exporta-
O deslocamento da produção de alimen- ção estava vivendo um momento de radi-
tos para regiões mais distantes, em pro- cais transformações. A despeito de a agri-
gresso durante os anos 1950, marcou o cultura ter respondido satisfatoriamente
início de uma divisão regional da produ- às necessidades do mercado doméstico e
ção agrícola, em que uma hierarquia de de ser a única fonte de recursos para sal-
lugares e de regiões foi associada a uma dar os compromissos da industrialização
hierarquia de produtos e de destinação. substitutiva de importações (ISI), a cres-
Como sempre na agricultura brasileira, o cente necessidade cambial para continuar
critério utilizado na montagem dessa hie- aquela particular política industrializante
rarquia foi a expectativa doméstica com
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tornou-se demasiado para uma agricultu- acreditasse na eficácia das políticas então
ra que havia sido mantida intocada em seus adotadas.
aspectos tradicionais de baixa produtivi-
dade e de pouca diversificação. Tão im- O problema era que havia muito pouco a
portante era a participação da agricultura fazer para estimular o comércio exterior a
para as exportações do Brasil que o valor não ser tentar diversificar as exportações
agrícola exportado, em média, na década agrícolas, além de promover algumas ma-
de 1950, foi de 94% do total das exporta- térias-primas como o minério de ferro. As
ções do país (INTERNATIONAL..., p. exportações brasileiras ainda eram
1981-1986). O final do período, no entan- pesadamente dependentes de bens primá-
to, apresentava claros sinais de esgotamen- rios, como evidenciado a partir do peso
to do modelo substitutivo que, entre ou- das exportações agrícolas em 1964 (83%).
tros problemas, indicava uma fragilidade Esse esforço conseguiu fazer ressurgir al-
no setor externo, situação que se tornou guns produtos agrícolas tradicionais, como
aguda no final da década. a cana-de-açúcar e o algodão, ao mesmo
tempo em que procurava adicionar outros
Uma discussão detalhada a respeito da produtos na pauta de exportações, como
crise do final dos anos 1950 e começo dos o milho, além das primeiras incursões no
1960 vai além dos limites deste trabalho. mundo da soja.
O que cabe enfatizar, no entanto, é que o
governo que tomou o poder em 1964, Nessa mesma época, enquanto o governo
apesar de introduzir uma série de mudan- estava tentando de todo o modo diversifi-
ças de diagnósticos e nas prioridades da car as exportações, o café estava vivendo
ação governamental, não apenas se viu sua crise final como o principal produto
obrigado a reconhecer as extraordinárias brasileiro de exportação. Devido a um con-
pressões sobre o setor externo brasileiro junto complexo de razões, cujo começo re-
como ainda incumbiu-o de novas tarefas. monta ao início do século XX, estava claro
que nenhum esforço reverteria o contínuo
As razões da urgência para aumentar as declínio que o produto brasileiro experi-
exportações eram a necessidade de saldar mentava no mercado mundial. A crise de
os débitos herdados do período superprodução não teria fácil solução.
substitutivo de importações e estabelecer Como já havia se tornado evidente para
as pré-condições para um novo surto de os tecnocratas do novo governo, as neces-
expansão industrial. O desenho deste novo sidades financeiras que o Brasil teria de
surto industrializante estava dirigido para enfrentar para restabelecer suas conexões
os estratos de mais altas rendas, o que ten- com a economia-mundo ou, como eles ra-
deria a aumentar as importações de pro- cionalizavam, para construir um novo
dutos e máquinas mais sofisticados, por- modelo de economia aberta, criariam de-
tanto, mais caros. Além disso, o aumento mandas muito superiores ao que a já
das exportações era indispensável para fa- danificada economia cafeeira seria capaz
zer com que a comunidade internacional de suportar. O desafio, portanto, não era

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apenas diversificar as exportações, mas do café brasileiro no mercado internacio-
também encontrar um conjunto de pro- nal e a conseqüente crise de superprodu-
dutos que pudesse se firmar de modo sig- ção – cujo resultado imediato foi a brutal
nificativo e duradouro na pauta de expor- retração comentada acima – se devem, pa-
tações do Brasil e que fosse fundado em radoxalmente, ao próprio sucesso das po-
sólidas vantagens comparativas. líticas que mantiveram o Brasil como o
grande produtor mundial de café duran-
Mesmo reconhecendo que um tratamen- te a primeira metade século XX.5 De fato,
to detalhado do longo processo que cul- após a supersafra de 1906, com a ameaça
minou com a devastadora crise que a ati- de quebra generalizada do setor e a pro-
vidade cafeeira sofreu no início dos anos vável desorganização da economia brasi-
leira, o Estado não encontrou opção se-
1960 vai além dos limites deste trabalho,
não intervir diretamente na oferta do pro-
um breve comentário a respeito dessa
duto, ao mesmo tempo em que procurou,
questão torna-se indispensável para o con-
com menos sucesso, controlar a expansão
junto da nossa argumentação. dos cafezais.
Durante a década de 1960, a economia A conseqüência dessa política foi, como
cafeeira sofreu a mais intensa retração de esperado, a recuperação do preço inter-
sua história, mesmo se a crise dos anos nacional do produto, estimulando, por
1930 for levada em consideração. A área razões políticas e econômicas, a continua-
plantada, a produção e o rendimento por ção dessa estreita intervenção do Estado
hectare sofreram quebras que foram par- nos assuntos do café. Essa convergência de
cialmente recuperadas apenas em 1981. interesses nas políticas de valorização do
A área plantada apresentou, em 1970, um café no Brasil (Estado, produtores,
recuo de quase 50%, quando comparados financiadores e exportadores) não apenas
com os números alcançados em 1961, en- reforçou as ingerências estatais no assun-
quanto que a produção total apresentou to café como também acabou por familia-
rizar os grupos dirigentes no Brasil com a
um declínio ainda mais drástico (a área
necessidade e, mesmo, eficiência, das in-
total caiu de 4.393.836ha em 1961, para
tervenções do Estado. A tradição mais
2.402.993 em 1970, enquanto que a pro-
intervencionista do Estado brasileiro, den-
dução declinou de 4.407.439 toneladas em tre todos os Estados latino-americanos,
1961 para 1.509.520 toneladas em 1970) observada na maior parte de nossa histó-
(Estatísticas da Agricultura Brasileira, ria republicana, em grande medida se de-
1990). Frente a um quadro dessa gravida- veu ao sucesso das intervenções no setor
de, restam duas perguntas: o que aconte- cafeeiro. A esse respeito é oportuno lem-
ceu com o café nos anos 1960 e qual foi o brar uma passagem muito ilustrativa de
destino dado às terras antes ocupadas com Hirschman:
cafezais?
The low price elasticity of short run
Uma resposta resumida à primeira ques- supply characteristic of coffee has
interesting further consequences for
tão poderia ser: o declínio da importância public policy making. Once the coffee-

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growing country is ripe for café, em um contexto diferente daquele
industrialization, that characteristic do início do século. Tornava-se agora fun-
makes it possible for the State to finance
the needed infrastructure and to
damental garantir os rendimentos do se-
subsidize the nascent industries by a tor cafeeiro, cujo produto alcançava bom
policy of squeezing the coffee sector by preço no mercado mundial, através do
direct or indirect taxation. Such a policy controle da oferta e da desvalorização cam-
would be far less successful if the to-be- bial, de modo a permitir as necessárias
squeezed primary product had a higher transferências para financiar o processo de
price elasticity of short-run supply, as
is for example the case for cattle or industrialização. Entretanto, a conseqüên-
wheat. [...] With respect to coffee, cia geral do processo acabava por ser uma
however, there appears the possibility continuidade do observado em época pre-
for a truly dialectical sequence: first the cedente. Estimulados pelos preços relati-
special production and market vamente altos no mercado mundial, com-
characteristics of coffee make for the
formation of strong pressure group of petidores africanos e latino-americanos
coffee growers which pushes the State continuavam a se aproveitar de um mer-
into assuming responsibility for cado favorável. Com isso, a participação
interference with market forces. As a do Brasil no mercado mundial de café con-
result, the State becomes aware of its tinuou a declinar, caindo de 63,5% do va-
capabilities and duties as the maker of
national economic policy for lor mundial exportado em 1950 para
development. At a later stage of growth, 37,3% em 1960.
such a policy will require that income
be redistributed away from the coffee Devido à importância do produto para o
growers and toward other sectors that comércio exterior do Brasil e às alianças
needed to be nurtured. And this do pacto político de dominação do perío-
redistribution can be carried out with do, os produtores, protegidos, continua-
success because of the very
characteristics of coffee that originally vam a aumentar a produção, e a oferta de
made for the vigorous and successful café no Brasil não parava de crescer. Anun-
pressures of the coffee planters on the ciada em 1959, a crise de superprodução
State (HIRSCHMAN, 1971, p. 11). e a liquidação do sistema de defesa do café
No entanto, o sucesso das políticas de va- ocorreram no início da década de 1960
lorização acabou por estimular outros pa- (DELFIM NETTO, 1981, p. 157).
íses a produzirem café, aproveitando-se
dos esforços do Brasil para manter os pre- A opção emergencial de diversificação da
ços altos no mercado mundial. O resulta- oferta de produtos agrícolas exportáveis,
do foi que, nos anos 1930, a participação produzidos nas terras antes ocupadas com
brasileira satisfazia 52% da demanda mun- café, em São Paulo e no Paraná, tentada
dial, enquanto no início do século essa pelos tecnocratas do regime instalado em
parcela girava entre 75% e 82%. 1964, não apresentava garantia segura de
constância e lucratividade tais como as que
O fim da Segunda Guerra Mundial e a a atividade cafeeira pudera fornecer até
regularização do comércio mundial trou- aquele momento. A pouca solidez da di-
xeram de volta o problema da defesa do versificação das exportações agrícolas dos

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anos 1960 pode ser demonstrada pelo brasileiro”. E foi nesse contexto que o CO
desempenho das exportações no decênio, finalmente teve sua chance.
que mostra que a participação relativa do
café no total das exportações agrícolas co- O que poderia estar reservado a uma re-
meçou a declinar de modo consistente so- gião que nos anos 1960 continuava a ser
mente a partir de 1968, ano em que, pela produtora de alimentos, embora sem o
última vez, as vendas de café representa- vigor de crescimento apresentado na dé-
ram mais da metade das exportações agrí- cada anterior?
colas (IMF-IFS, 1951-1985; IBGE, 1990).
O CO, de fato, apresentou crescimento
O declínio da participação do café a partir bem menos espetacular na produção de
de 1970 reforça o argumento que aponta alimentos, embora possa ser observado sig-
os últimos anos da década de 1960 como nificativo crescimento na área plantada da
um período em que começa a haver uma região. O problema foi o drástico declínio
maturação seletiva de novas opções. Os do rendimento por hectare, durante os
dados sobre o comércio exterior brasilei- anos 1960. O caso do arroz foi
ro (IBGE, 1990) não deixam dúvidas a emblemático para a agricultura da região.
respeito da importância e urgência de se O índice de rendimento recuou de 100 em
encontrar um substituto dinâmico para o 1950, para 79.3 em 1960 e para 65.5 em
café, para suportar um amplo programa 1970. Essa queda do rendimento, de ma-
neira geral, explica a perda de dinamis-
de modernização econômica, como o in-
mo da produção de alimentos da região,
troduzido no Brasil a partir de 1967. Os
fenômeno também verificado com a man-
dados mostram que nos anos 60 a partici-
dioca e o milho (Estatísticas da Agricultu-
pação da agricultura nas exportações bra- ra Brasileira, 1990).
sileiras representava pouco mais de 80%
do total das exportações do país. É bem As razões para a estagnação da produção,
verdade que tal proporção apresentava em uma região que já se apresentava como
um lento declínio, acelerado a partir de importante fornecedora de alimentos para
1970. Desse modo, a partir do referencial o país, provinham de duas vertentes de
avaliativo disponível em meados dos anos origem comum: de um lado, o caráter cam-
1960, a diversificação das exportações agrí- ponês e as condições tradicionais da pro-
colas seria sempre necessária, além de um dução, e, de outro, a queda dos preços dos
rápido aumento das exportações agríco- produtos agrícolas.
las ser essencial para garantir decisões re-
lativas às direções econômicas do país. Essa Lemos e Sevilha (1979, p. 48-49, Anexo
posição peculiar da agricultura no quadro vii) mostram que a produção de alimen-
das opções econômicas à disposição dos tos básicos no CO e no Brasil era uma ati-
governos militares reforça o argumento de vidade típica de unidades de produção
que o desenvolvimento da agricultura pequenas ou muito pequenas. Entretan-
apresentava-se como um dos temas estra- to, os dados não mostram quais os tipos
tégicos mais importantes para a moldagem de relações de produção que preponde-
do que viria a ser o “modelo econômico ravam, mesmo reconhecendo que a maio-
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ria da produção provinha de parceiros, sementes selecionadas em 1970), insumos
ocupantes ou pequenos arrendatários. Em que não requerem escala de produção
um aspecto, entretanto, aqueles dados não para se tornarem eficazes na agricultura.
deixam dúvida: não se tratava de produ- Esses números apresentam razoável expli-
ção capitalista. cação para o declínio do rendimento por
hectare da região durante a década, quan-
Tudo indica que, exatamente porque essa do se considera que novas terras não ne-
produção não era capitalista, é que foi cessariamente apresentam boa fertilidade
possível a expansão da área cultivada de e que aquelas supostamente mais antigas
arroz, mesmo considerando um contexto e mais férteis invariavelmente começam a
de preços decrescentes como aquele dos necessitar de cuidados especiais depois de
anos 1960, época em que o índice de pre- algumas colheitas.
ços do arroz caiu de 103 em 1958-1962
para 86 em 1968-1969 (1948-52=100) Deste modo, a necessidade de aumentar
(NICHOLLS, 1972, p. 150). De fato, o o tamanho da área cultivada para equili-
crescimento do tamanho médio da área brar as quedas de rendas devido à queda
cultivada no CO, mesmo com um drástico dos preços agrícolas parece ser reforçada
declínio no rendimento/ha e na taxa de quando os recursos naturais (terra) são os
crescimento das colheitas, significava que únicos insumos que poderiam ser levados
os produtores tentavam manter o montan- em consideração no processo de incorpo-
te total do rendimento proporcionado ração daquela época (década de 1960).
pelo arroz, procurando aumentar a área
plantada, em um contexto de queda no Se a expansão da área cultivada de arroz
preço do produto. Com essa associação da ocorreu devido à necessidade de compen-
produção de alimentos com pequenos pro- sar a queda dos preços agrícolas e do ren-
dutores tornou-se possível entender a ex- dimento da região, pode-se afirmar que
pansão física da área cultivada, um cresci- nos defrontamos com uma repetição da-
mento importante considerando a queda quele tipo tradicional de incorporação cujo
dos preços agrícolas. início remonta à virada do século. Se ha-
via diferença, esta estava na velocidade e
A necessidade da expansão física das áre- não na forma.
as de cultivo em um contexto de rendi-
mentos decrescentes, como os anos 1960, Entretanto, uma mudança qualitativa ra-
torna-se mais evidente quando se avalia a dical estava em gestação. Alguns autores
utilização de insumos agrícolas modernos acreditam ser possível identificar o mo-
(fertilizantes e sementes selecionadas). Le- mento em que o projeto agropecuário do
mos e Sevilha (1979) afirmam que as cul- regime militar foi finalmente concebido,
turas de arroz e de feijão quase não utili- aceito e passou a ser implantado. Ribeiro
zavam fertilizantes e sementes selecionadas (1988) afirma que em 1967 o regime mili-
(83% em Goiás e 99% no Mato Grosso e tar finalmente adotou a opção
85% em ambos os estados não utilizavam modernizante para estimular o crescimen-

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to da produção agrícola brasileira. A oca- de novos produtos (soja) e sementes ge-
sião foi o Primeiro Congresso Nacional da neticamente melhoradas e adaptadas foi
Agricultura, em Brasília, quando os gran- entendido como sendo um movimento de
des proprietários impuseram suas posições modernização conservadora porque intro-
políticas a respeito da direção a ser segui- duzia profundas transformações em uma
da pelas políticas agrícolas do governo. estrutura agrária deixada intocada com
Naquela oportunidade, os proprietários todas as suas seculares desigualdades.
de terras e a tecnocracia governamental Além disso, o processo de modernização
elaboraram um conjunto de sugestões e também pressupunha a consolidação de
demandas, aceitas pelos militares, que en- uma indústria de insumos agrícolas e a
terraram as tímidas propostas de reformar crescente associação das atividades agríco-
a estrutura agrária brasileira através de um
las com as industriais, fato que culminaria
programa de redistribuição de terras. Em
com a organização do Complexo Agro-in-
vez de uma orientação reformista, que in-
dustrial no Brasil.
tentava implementar as propostas conti-
das no Estatuto da Terra, várias medidas Respeitando os limites deste trabalho, se-
foram aprovadas para manter intocada a ria agora oportuno enumerar as principais
estrutura agrária e estimular uma “políti- políticas que estimularam esse último mo-
ca de modernização centrada no cresci- vimento do processo de incorporação da
mento e diversificação das exportações região CO do Brasil. Complementarmen-
agrícolas” (RIBEIRO, 1988, p. 91). te, alguns de seus principais efeitos devem
ser apontados para evidenciar as mudan-
As propostas modernizantes eram basea- ças qualitativas provocadas por esse movi-
das principalmente em programas de di- mento final do processo de incorporação
fusão de novas tecnologias, extenso apoio do Brasil central.
do Estado (créditos e subsídios) e genero-
sos incentivos para promover a pesquisa A primeira e mais importante das políti-
científica na agricultura, além de transfe- cas do Estado a fazer avançar a ocupação
rir a responsabilidade dos projetos de co- econômica do CO foi o acesso extrema-
lonização para mãos privadas. O objetivo mente fácil e atraente de financiamentos
óbvio daquelas mudanças era aumentar, para a agropecuária.6 Os dados dos cen-
no mais curto espaço de tempo, a produ- sos agropecuários do Brasil (1970-1985)
tividade agrícola e acelerar o aumento dos mostram que a maior parte dos investi-
excedentes externos do país através do mentos agropecuários feitos na região, no
crescimento e diversificação das exporta- período, foi financiada. Em 1970, a par-
ções. cela financiada dos investimentos foi de
81%, subindo para 91% em 1975. A partir
O processo de modernização do latifún- de então, ou seja, em 1980 e 1985, aquela
dio, que incluía modernização e irrestrita proporção recuou para 38% e 40% respec-
utilização de insumos industriais (fertili- tivamente. Essa diminuição também pôde
zantes, máquinas e pesticidas), a adoção ser observada no total dos financiamentos

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agropecuários do país. Entretanto, os mes- programa de incentivo para a expansão
mos censos mostram que o CO foi a re- agrícola do CO, aprovou, entre 1975 e
gião menos prejudicada pela diminuição 1982, 3.373 projetos de desenvolvimento
da oferta de dinheiro. A região manteve, rural, com um valor total de US$ 630 mi-
em termos proporcionais, a mesma posi- lhões. Como a área de atuação do progra-
ção na porcentagem de propriedades agrí- ma incluía parte de Minas Gerais (estado
colas, entre 5% e 5,5% do total do país, da região Sudeste), o autor afirma que
enquanto sua parcela no total dos financi- 71,3%, de fato, foi para o CO, ou US$ 450
amentos subiu de 13% para 19%! A partir milhões (MUELLER, 1990, p. 55).
desses números é possível afirmar que a
região foi a que menos sofreu com o enco- Além disso, como o crédito só era conce-
lhimento da oferta de crédito dos anos dido aos proprietários, especialmente os
1980. grandes, deixando de lado posseiros, ocu-
pantes e parceiros, a existência de crédito
Mesmo considerando que o principal estí- tão abundante acabou por provocar dois
mulo para esse último surto de incorpo- fenômenos interligados: um aumento da
ração tenha sido baseado em crédito sub- concentração da propriedade agrícola e
sidiado (SZMRECSÁNYI, 1983, p. 235), um aumento do preço da terra na região
outros incentivos também muito importan- (MUELLER, 1990, p. 19; CUNHA et al.,
tes precisam ser lembrados. Incentivos fis- 1994, p. 52; IANNI, 1977, p. 79).
cais e investimentos em infra-estrutura (es-
tradas, eletrificação, telefones, silos e ar- Outras duas políticas decisivas para a afir-
mazéns), pesquisa científica e extensão mação e garantia dos investimentos no CO
rural desempenharam papéis importantes foram: a política de preços mínimos
no pacote de gastos públicos (gastos fede- (REZENDE, 1990; CASTRO ; FONSECA,
rais, estaduais e de incontáveis municípios 1995; CUNHA et al., 1994) e a unificação
envolvidos na atração de novos investi- do preço dos combustíveis (SILVA, 1989).
mentos). A política de preços mínimos garantia um
retorno mínimo do capital investido, situ-
Devido à diversidade de agências públi- ação que minimizava a incerteza da renta-
cas envolvidas, pode-se imaginar as difi- bilidade do investimento, especialmente
culdades para estabelecer estimativas ra- nas regiões mais distantes, porque a defi-
zoáveis para uma avaliação precisa daque- nição do preço mínimo acompanhava a
les investimentos, em grande parte gene- rentabilidade mínima requerida para
rosamente transferidos para mãos priva- aquelas regiões onde os custos de produ-
das. Scheibe (1985, p. 67) avaliou os gas- ção eram mais altos. Por sua vez, a unifor-
tos unilaterais do Governo Federal em mização dos preços dos combustíveis foi
infra-estrutura, pesquisa e extensão rural concebida para manter nacionalmente
em US$ 250 milhões até 1983, um núme- uniforme o mais importante insumo de
ro que Mueller (1990, p. 55) julga supe- uma agricultura modernizada, o óleo die-
restimado. Entretanto, o Polocentro, um sel. Nesse caso, custos iguais para o diesel

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favoreciam as regiões mais afastadas, por- parceiros, tanto no que se refere ao nú-
que não tornavam proibitivos a produção mero total de estabelecimentos como no
e o transporte de grão para os centros con- tamanho médio desses estabelecimentos.
sumidores ou para os portos. Os dados dos censos agropecuários do
Brasil mostram que os ocupantes perde-
Esse pacote de incentivos diretos e indire- ram, entre 1970 e 1985, metade da área
tos, simultâneos ou sucessivos, fornecidos total que ocupavam enquanto que o tama-
pelo Estado para tornar possível a rápida nho médio dos estabelecimentos diminuiu
transformação do CO em uma área de es- em 16% no mesmo período. O número
pecial significância agrícola para a econo- total de parceiros diminuiu quase 60%
mia brasileira foi muito eficaz. No perío- entre aqueles anos (49.252 em 1970 e
21.293 em 1985).
do considerado (1970-1985), o CO foi
transformado na região agrícola mais pro- Inversamente, o crescimento dos assalaria-
missora do país, tornando-se uma das áre- dos foi de quase três vezes durante aque-
as de produção de soja mais importantes les anos, indo de 168.109 em 1970, para
do mundo. A região tornou-se cada vez 470.415, em 1985, quatro vezes mais que
mais comprometida com a produção de o crescimento total da população rural.
bens exportáveis, similarmente àquelas de Essa maciça adição de trabalhadores assa-
incorporação mais antiga. O CO começou lariados não proveio totalmente da
a seguir o padrão tradicional de incorpo- proletarização dos ocupantes e dos parcei-
ração regional que o país tem experimen- ros, dado que o incremento de assalaria-
tado desde há muito tempo, no sentido de dos foi muito maior que a soma daquelas
que a incorporação agrícola sempre signi- duas categorias. Esse crescimento tão ex-
pressivo baseou-se em trabalhadores imi-
ficou produzir diretamente para o merca-
grantes, itinerantes ou mais permanentes,
do mundial, quer a partir da organização
os bóias-frias.
originária de unidades produtivas de ex-
portação, quer a partir da substituição de Finalmente, o que deve ser ainda comen-
produção camponesa – esta sim produto- tado a respeito dessas observações sobre
ra de alimentos para o consumo domésti- as variações da importância relativa ou até
co – por produção exclusivamente dirigida absoluta – como a dramática diminuição
para o mercado mundial. dos ocupantes e dos parceiros ou o impres-
sionante crescimento dos trabalhadores
Esse processo intensivo de concentração assalariados – de algumas das principais
de terra e de investimentos ocorridos no categorias ocupacionais do meio rural do
CO produziu, como esperado, importan- CO é que o movimento de radical trans-
tes mudanças nas categorias sociais envol- formação das relações de produção trazi-
vidas com a agropecuária na região. No do pelo processo de incorporação a todo
entanto, dentre os vários movimentos ob- custo, tal como o implementado na região,
servados, dois podem ser apontados como sob o patrocínio do Estado, esteve longe
os mais importantes. Em primeiro lugar, a de ser pacífico. Os relatórios e denúncias
visível diminuição dos ocupantes e dos da Comissão Pastoral da Terra a respeito

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de incontáveis assassinatos e os 16.442 (A fazenda)... inspecionada de surpre-
casos de escravidão no Brasil em 1992 são sa em março de 1990 (e o administra-
dor ao ser perguntado) por que manti-
testemunhas eloqüentes da extraordiná- nha 150 homens, mulheres e crianças
ria violência embutida naquele processo em condições de cativeiro, vítimas de
(BRUSSI, 1996, p. 351). A propósito da maus tratos físicos e humilhações, de-
estreita relação entre violência e expan- clarou abertamente: “Se não for desse
jeito, não tem como abrir as fazendas
são capitalista na região, temos uma no sul do Pará para pastagem e de-
emblemática afirmação em entrevista con- senvolvimento da agropecuária”
cedida aos agentes da Pastoral da Terra (MERRICK, 1989, p. 47).
pelo administrador da fazenda Arizona, no
Pará.

CONCLUSÃO
Este trabalho discutiu o processo de incor- identificar nos dados da produção agríco-
poração da região CO do Brasil depois do la do CO três desses momentos particula-
longo período de subsistência e isolamen- res que estimularam o desenvolvimento de
to que se seguiu à exaustão dos depósitos laços entre a região e a economia-mundo.
auríferos da área. A motivação não Foram eles: 1) a crise de 1913 e a Primeira
povoadora da exploração colonial, pelo Guerra Mundial; 2) a crise dos anos 1930
menos no CO, produziu um movimento e a Segunda Guerra Mundial e 3) a crise
entrópico depois do “ciclo do ouro”, que dos anos 1960 e as dificuldades nas contas
isolou essa região das tênues conexões que externas que o Brasil começou a apresen-
outrora haviam sido estabelecidas com a tar por aquela época.
economia-mundo capitalista.
Esses três períodos da história brasileira
Depois de um longo interregno, o CO co- são similares na medida em que produzi-
meçou novamente a ser atado, ram sérias dificuldades econômicas para
sistemicamente, ao ininterrupto processo o país, ainda que também produziram a
de produção de mercadorias, especialmen- necessidade e a oportunidade para expan-
te no final do século XIX, com algumas dir as exportações para superá-las. Em
atividades extrativas como o látex e o mate. todos esses momentos, o CO apresentou
expansão em sua produção agrícola, es-
O primeiro ponto ressaltado por este tra- treitando os laços com a economia-mun-
balho é que o processo de incorporação do capitalista. Deste modo, os movimen-
não seguiu uma trajetória linear. Ocorreu tos da integração econômica da região fun-
em surtos, induzido pelo tipo particular de cionavam como uma reação do país às di-
conexões que o Brasil desenvolvia com a ficuldades externas, ao mesmo tempo em
economia-mundo capitalista. É possível que a adição de novas oportunidades de

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investimento aparentemente permitia au- giamento às grandes propriedades. O
mentar as opções econômicas para enfren- corolário dessa intervenção particular foi
tar aquelas dificuldades. uma mudança radical nas relações de pro-
dução, com os parceiros e ocupantes dei-
Entretanto, do mesmo modo que a incor- xando de ser importantes categorias so-
poração ocorria em surtos, também cada ciais na região. Foram substituídos por tra-
um desses movimentos apresentou inte- balhadores assalariados, permanentes ou
ressantes singularidades. As duas primei- temporários. Soma-se a isso o crescimen-
ras “ondas” incorporadoras foram to da violência contra camponeses e tra-
dirigidas para a produção de alimentos balhadores, com incontáveis relatos de-
básicos, por exemplo, o arroz. Foram avan- nunciando escravidão, intimidação e assas-
ços mais “espontâneos”, porque não se sinatos.
notou a presença do Estado suportando o
crescimento, além das garantias financei- O que pode ainda ser acrescentado é que
ras para a expansão dos trilhos àquelas pa- o modo como a expansão agrícola foi pro-
ragens. Talvez porque fossem espontâneos movida na região, especialmente caso se
é que aqueles movimentos simplesmente considerem as razões que motivaram aque-
reproduziram a estrutura social e econô-
le desenvolvimento (considerando que
mica da produção de alimentos, funda-
grande parte delas proveio da urgência em
mentalmente baseadas em atividades
enfrentar dificuldades externas), aponta
“camponesas” (parceiros e ocupantes),
para uma condição de fragilidade com
cujas unidades de produção eram muito
respeito ao seu desenvolvimento. O Brasil
pequenas.
precisa do seu território inexplorado, de
A diferença que se poderia apontar nesses sua reserva de natureza, para tentar superar
dois primeiros movimentos incor- dificuldades econômicas trazidas periodi-
poradores do CO foi sua intensidade. En- camente pelos movimentos cíclicos, quer
quanto o primeiro apresentou uma expan- de origem sistêmica quer de natureza mais
são mais curta e limitada, o segundo mos- doméstica. Esta interpretação é reforçada
trou um ímpeto mais longo. Foi durante quando se menciona a dinâmica das ex-
esse segundo movimento que Goiás tor- portações do país. Soja e seus derivados,
nou-se importante produtor de arroz para como ração e óleos, estão entre os muito
o país. poucos produtos com os quais o país ain-
da apresenta vantagem comparativa com
O terceiro surto incorporador, no entan- o restante da competição mundial. E o
to, teve uma história completamente dife- cultivo da soja está fortemente concentra-
rente. Foi intencionalmente organizado do no CO.
para produzir produtos exportáveis em
unidades produtivas muito grandes. Os Assim, se a trajetória do desenvolvimento
processos de aquisição de terras e produ- brasileiro neste século tem estado
ção agrícola foram financiados e promo- conectada ao avanço sobre novas terras,
vidos pelo Estado, com especial privile- se o padrão brasileiro de desenvolvimen-

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to está atado ao processo de incorporação, Se for assim, torna-se razoável afirmar que
então é possível afirmar que a incorpora- enquanto houver terras a serem ocupadas,
ção tem funcionado como um instrumen- a estrutura de poder e suas orientações
to para reforçar a estrutura de domina- políticas dificilmente serão mudadas.
ção do país.

NOTAS
1- A região CO é composta dos estados de Goiás, vo como em economia mundial, por exemplo). O
Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Distrito Fede- autor dessa terminologia, Immanuel Wallerstein,
ral. Até 1988, o atual estado de Tocantins, por ser pretende, com isso, diferenciar suas reflexões de
parte do estado de Goiás, fazia parte do CO. paradigmas mais recentes que utilizam termos
Neste estudo, como os dados são anteriores a sistema mundial e economia mundial. O autor
1988, Tocantins foi considerado como ainda fa- esforça-se por demonstrar a necessidade de se
zendo parte de Goiás. compreender o capitalismo não como um
somatório de entidades econômicas nacionais, mas
2- A respeito da importância dos estímulos da eco-
como um sistema único, supranacional, dividido
nomia cafeeira e de seus desdobramentos para
em múltiplas entidades jurídico-políticas nacio-
explicar a expansão econômica da região CO, ver
nais, porém com uma única economia submeten-
Estevam. (1996). Para uma análise a respeito da
do cada entidade nacional (estado) à dinâmica ge-
grande autonomia da “economia paulista”, ver
ral desse sistema. As distinções políticas, ideológi-
Cano (1981).
cas e metodológicas de tais avaliações são eviden-
3- Um sistema-mundo foi definido como: “...a spatio tes.
temporal whole, whose spatial scope is coextensive 4
“A partir de 1915 conseguiu-se diversificar as ex-
with a division of labor among its constituent parts
portações que haviam caído muito devido à forte
and whose temporal scope extends as long as the baixa dos preços dos produtos tradicionais, prin-
division of labor continually reproduces the cipalmente café e borracha, não só através das
‘world’ as the social whole. A world-economy was vendas dos produtos industrializados (tecidos de
defined as a world-system not encompassed by a algodão, açúcar e carnes frigorificadas), mas tam-
single political entity. Historically, it was bém de manganês, algodão madeira e produtos
maintained, world-economies tended towards agrícolas alimentícios como arroz, feijão, milho, frutos
disintegration or conquest by one group and oleaginosos, etc. A estabilidade dos preços desses
hence transformation into a world empire – a produtos possibilitou a recuperação da receita de
world-system encompassed by a single political exportações.” (VILLELA; SUZIGAN,1975, p.
entity. The world-economy that emerged in 118).
sixteenth century Europe, in contrast, displayed
no such tendency. Not only did it survive but it
5
A referência bibliográfica básica a respeito da tra-
became the only world-system – in Wallerstein’s jetória do café até os anos 1960 desta parte foi o
own words – ‘that has ever succeeded in trabalho de Antonio Delfim Netto, citado abaixo.
expanding its outer boundaries to encompass the 6
A participação do Estado, através de suas agências
entire world,’ thereby transforming itself ‘from de financiamento, nunca foi inferior a 70% (em
being a world to becoming the historical system 1985) do total do financiamento agrícola no CO,
of the world.’” (ARRIGHI, 1997, p. 2) As expres- no período 1979-1985. O percentual mais alto sob
sões sistema-mundo e economia-mundo foram responsabilidade estatal ocorreu em 1980, quan-
traduzidas literalmente de seus correspondentes do 90,0% do total dos financiamentos agrícolas
em inglês world-system e world-economy (dois subs- correram por conta do Estado (Censos
tantivos em vez do adjetivo seguindo o substanti- Agropecuários do Brasil – 1970-1985).
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7
Os programas de colonização da década de 1940 período. Por seu turno, a construção de Brasília,
foram de alcance muito limitado, sem conseqü- no decênio seguinte, acabaria por gerar importan-
ências para a expansão da produção no CO, no tes transformações, especialmente em Goiás, nos
decênios seguintes.

ABSTRACT
This study discusses the process of incorporation of the Brazilian
Center-West region through the evolution and later transformation
of the mode of interaction it developed with the overall Brazilian
economic environment. The study showed that the region’s
incorporation did not follow a linear trajectory. It happened in
spurts, induced by the particular kind of connection Brazil developed
with the world-economy. It was possible to identify three of these
particular moments. They were: 1) the crisis of 1913 and the First
World War; 2) the crisis of the 1930s and the Second World War,
and 3) the crisis of the 1960s and the external account difficulties
the country begun to experience in the early 1970s. In all these
moments, the Center-West tightened its bonds with the world-economy
through the expansion of its agricultural production. The region’s
economic integration worked as the country’s reaction against
economic constraints. Thus, Brazil needs to rely on its unexplored
territory, its reserve of nature to try to overcome economic difficulties.
Keywords: occupation, colonization, world-economy.

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RESENHA

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ECONOMI
A 107

TERRA
E SOB ÁGUA – SOCIEDADE E NATUREZA
POL NAS
ÍT VÁRZEAS
IC A AMAZÔNICAS
SMITH,
NA Nigel J. H. - The Amazon River Forest: a natural history of plants, animals
and people. New York: Oxford University Press, 1999. 208p.
H SIT O R O
IG R A F AI
JOSÉ AUGUSTO DRUMMOND*
B R A S I L E IR A
Nigel Smith, geógrafo da University of cifra. Na literatura contemporânea sobre a
Florida, experiente em pesquisas na Amazônia, as áreas de terra firme (não-
Amazônia, escreveu este excelente livro inundáveis) têm recebido atenção muito
sobre natureza e sociedade nas planícies maior, especialmente os locais onde existem
de inundação do rio Amazonas e de al- estradas de rodagem.
guns de seus principais afluentes em ter-
ritório brasileiro. Com menos de 170 Não conheço um livro analítico contempo-
páginas – bem escritas, fáceis de ler, ele- râneo que dê ao leitor uma sensação tão exa-
gantemente formatadas e ilustradas com ta das particularidades sociais, físicas e bio-
fotografias originais –, o texto é conciso, lógicas das várzeas amazônicas. O tom de
solidamente pesquisado e contém aná- Smith lembra o do clássico de Charles
lise equilibrada. Smith descreve o coti- Wagley, Uma comunidade amazônica, embora
diano dos ribeirinhos, discute a conser- haja grande diferença de conteúdo. Smith
vação da natureza e estuda o desenvol- se interessa muito mais pelos padrões de uso
vimento social e econômico na região. dos recursos naturais, enquanto Wagley fo-
A combinação desses níveis de aborda- calizou mais a cultura popular. Mas Smith
gem é feliz, e a execução é perfeita. chega tão perto da vida das pessoas quanto
Wagley, mostrando, por exemplo, como os
O texto tem três características notáveis. mesmos grupos – por vezes os mesmos indi-
Em primeiro lugar, Smith focaliza uma víduos – usam os recursos distintos das vár-
fatia especial da Amazônia – as várzeas, zeas e da terra firme.
sujeitas a inundações anuais, nas quais
os processos naturais e sociais têm de se Em segundo lugar, o texto de Smith se ba-
adaptar aos avanços e recuos periódi- seia em extenso trabalho de campo. Nas
cos de volumes torrenciais de água. As várzeas isso significa gastar muito tempo,
várzeas totalizam apenas cerca de 10% pois depende de viagens em barcos lentos,
das terras da Amazônia brasileira, mas sem horários fixos e inseguros. Smith reúne
o seu uso e a sua ocupação são muito muitos anos de observações sobre o uso de
mais significativos do que sugere essa recursos naturais, colhidas em vários pon-
*
Ph. D. Professor do Departamento de Ciência Política, UFF. Coordenador do Programa de Avaliação e
Monitoramento Ambiental, Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais no Brasil, Banco Mun-
dial
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tos do médio e baixo Amazonas e dos seus Isso permite que Smith observe as práticas
principais afluentes. Ele registra usos dos caboclos de forma equilibrada. Por isso,
“bons” e “maus” para a saúde do ambien- ele presta muita atenção a uma questão que
te natural, e mais ou menos eficazes em considero crucial: as adaptações dos cabo-
termos de subsistência e de atendimento clos a oportunidades de mercado. Embora
a demandas de mercado. As observações o autor seja favorável a esquemas de “ma-
e fotos se combinam com o seu bom diá- nejo comunitário de recursos”, geralmen-
logo com os caboclos e ribeirinhos e dão te com a ajuda de atores externos, Smith
ao seu texto um rico tom antropológico. destaca corretamente que muitos desses
O leitor aprende o que os ribeirinhos atores externos “[...] tendem a supor que
plantam e comem, e com que materiais as comunidades são anticapitalistas, quan-
constroem suas casas e canoas etc. Os do na verdade existe pouca evidência dis-
abrangentes conceitos de manejo so na Amazônia brasileira. Pelo contrário,
ecossistêmico e de desenvolvimento sus- ainda estou por conhecer uma família de
tentável são assim trazidos no nível bem fazendeiros ou de pescadores que não se
terreno (e aquático) do cotidiano das vár- interesse por ganhar dinheiro” (p. 159). Ao
zeas amazônicas. não idealizar os habitantes, Smith enxerga
mais e melhor que a maioria dos estudio-
Em terceiro lugar, Smith tem uma visão sos contemporâneos da Amazônia.
não-romantizada dos caboclos e dos
amazônidas em geral. Smith não os cons- No entanto, Smith não vai ao extremo opos-
trói como “bons selvagens”, uma rarida- to de se “desencantar” com os amazônidas.
de na literatura. É estimulante ver um Muito pelo contrário. Logo à página 4, ele
cientista que trata dos povos ribeirinhos diz que a sua “mensagem” é “[...] que a
da Amazônia como eles são, incluindo as biodiversidade é um recurso essencial para
maneiras pelas quais elas mudaram e con- a adaptação dos sistemas agrícolas às con-
tinuarão a mudar. Smith não pede que a dições em transformação da ecologia e da
“tradição” seja “defendida” contra “for- economia, e que o conhecimento local é um
ças externas”. Os caboclos retratados por recurso muitas vezes ignorado para o ma-
Smith aparecem como uma gente forte, nejo e conservação dos recursos biológicos
que tanto se aferra a “tradições” quanto [da região amazônica]”. A proposta básica
adota “modernidades”, como qualquer de Smith é a intensificação dos usos huma-
grupo social que queira sobreviver a mu- nos nas partes já ocupadas da Amazônia,
danças sociais aceleradas. Eles nada têm com base na biodiversidade e no conheci-
de vítimas. Embora Smith reconheça que mento local existentes. Com o mesmo rea-
os estilos de vida dos caboclos ajudam a lismo, Smith descarta a viabilidade de in-
preservar e até a enriquecer a terrupção total das atividades atuais e do
biodiversidade, ele não coloca nos seus estabelecimento de reservas que excluam
ombros a opressiva missão de se porta-
totalmente os ribeirinhos. O autor argu-
rem como “bons selvagens” para prote-
menta que a população das várzeas ama-
ger a natureza amazônica para o restan-
zônicas “[...] aprendeu não apenas a convi-
te da humanidade.
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ver com as variações sazonais dos níveis usados dúzias de produtos naturais encon-
das águas, mas a se adaptar às mudanças trados nas várzeas: frutas, nozes, semen-
constantes na configuração das terras” (p. tes, raízes, cascas, fibras, peixes, animais
7). Uma mistura de tradição e adaptações terrestres, aves. Ele destaca o contexto de
modernas a demandas de mercado per- alta variabilidade biológica e genética des-
mite que essas pessoas extraiam recursos ses recursos. O fruto da palmeira açaí, por
naturais e atinjam níveis de vida razoáveis. exemplo, é seguido por Smith, desde sua
Tanto a extração quanto os níveis de vida coleta em remotos terrenos inundados, seu
podem ser melhorados sem que se recor- transporte em pequenos barcos, sua ven-
ra à extensificacão das atividades atuais, e da a varejo e a atacado em feiras, seu
sem que se adotem receitas agronômicas processamento industrial em pequenas
inadequadas. oficinas, chegando até as pequenas lojas e
lanchonetes que oferecem bebidas, doces
Smith lembra que a maioria das políticas e e sobremesas feitas do açaí. Com menos
medidas recentes no sentido de desenvol- detalhes, Smith faz o mesmo com os fru-
ver a Amazônia se concentrou em áreas tos de outras palmeiras (buriti, caraná,
de terra firme, onde muitas vezes chegam tucumã, bacuri etc.), leguminosas, arroz,
multidões de migrantes atraídos pela faci- sementes de árvores e arbustos (usadas
lidade de acesso rodoviário e pela promes- como isca para a pesca ou como alimento
sa de terras fartas e baratas. As várzeas, para animais domésticos). Aprendemos
alcançáveis quase exclusivamente por via também como certas árvores são planta-
fluvial, têm recebido muito menos das ou protegidas para prover materiais
migrantes e muito menos atenção dos ana- de construção, lenha e fibras. Compare-
listas. Mesmo com a pressão demográfica cem também algumas plantas com usos
menor, Smith argumenta que chegou a medicinais. Para cada espécie, Smith for-
hora de olhar para o desenvolvimento das nece informações sobre origem, local de
várzeas, empregando uma “mistura de ocorrência natural, usos, técnicas de culti-
pesquisa científica e conhecimento indíge- vo e proteção contra incêndios e animais
na, para [aumentar] a produtividade herbívoros.
agrícola”(p. 9). Este é, digamos, o eixo
propositivo do livro. Smith trata também da mais famosa das
questões ambientais amazônicas – o
O Capítulo 3, “Uma cornucópia florestal”, desmatamento. Ele critica o ideal de vár-
é o mais marcante do livro. Nele Smith zeas desmatadas, defendido por alguns
faz uma rica etnografia sobre como os po- agrônomos, planejadores, governantes e
vos das várzeas usam os recursos naturais fazendeiros. O desmatamento ao longo das
locais. Ele produz algo como uma clássica estradas na terra firme chama muito mais
etnografia da “cultura material”, instru- a atenção, mas a verdade é que existem
mento ou gênero que infelizmente os an- trechos bem grandes de várzeas parcial ou
tropólogos parecem praticar cada vez inteiramente desmatados por operações
menos. Smith mostra como são obtidos e madeireiras que não dependem de estra-

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das. Smith mostra que a agropecuária de ticas de manejo terão que mudar de for-
várzea pode conviver com uma cobertura ma a reduzir a destruição de cultivos e do
florestal relativamente densa, mas admite ambiente natural”(p. 99). Na página 101,
que “em última instância pode-se ter lu- Smith defende também a adoção de ani-
cro de curto prazo cortando as florestas mais domésticos menores, “mais amigá-
[de várzea] de uma forma insustentável” veis” no tocante às florestas, como cabras,
(p. 81-82). Ao mesmo tempo, ele destaca porcos, perus e galinhas, e mesmo a cria-
que algumas propriedades praticam diver- ção de alguns animais nativos, como a
sas formas de manejo agroflorestal. As- capivara, patos e tartarugas, de forma a
sim, muitas propriedades exibem uma diversificar as fontes de proteína e redu-
colcha de retalho de remanescentes de zir a pressão dos pastos sobre as florestas.
mata nativa, árvores e arbustos plantados,
pastos, canteiros de culturas diversas e O Capítulo 5 examina várias formas de
hortas domésticas. agricultura, apesar do fato de que “no todo
a produção agrícola não é um fator signi-
O Capítulo 4 é também notável, pela for- ficativo no desmatamento das várzeas”
ma equilibrada com que Smith trata da (p. 112). Smith faz um breve histórico do
criação de gado, outro “vilão” comum nos não muito conhecido ciclo da juta, planta
estudos sobre a Amazônia contemporânea. asiática introduzida nas várzeas amazôni-
De há muito se cria gado nas várzeas ama- cas para fornecer matéria-prima para a sa-
zônicas, mas apenas nas últimas décadas caria de alimentos em granel. O ciclo,
os rebanhos aumentaram a ponto de exi- iniciado em 1931, teve o seu ponto alto na
gir grandes pastagens. Principalmente a década de 1960, chegando ao fim na dé-
partir da década de 1960, com a introdu- cada de 1980, por causa da concorrência
ção do gado bubalino (búfalos), mais e mais de fibras sintéticas. Smith registra muitas
várzeas foram desmatadas para abrigar os propriedades cujas hortas produzem to-
rebanhos crescentes. mates, melões, melancias, pepinos, cebo-
las etc. para consumidores de cidades pró-
Smith mantém seu realismo: a criação de ximas. Os produtores ganham um dinhei-
gado nas várzeas não vai desaparecer. Para ro rápido e seguro, mas freqüentemente
os criadores, bois e vacas representam “ati- há o custo do uso inadequado de pesticidas
vos líquidos”, dão prestígio social, servem e aditivos químicos.
como poupança em ambiente inflacioná-
rio, e dão pouco trabalho (p. 97). Alguns Essas culturas, juntamente com as de man-
criadores, mesmo pequenos, ganham di- dioca, arroz, abóboras e milho, são enca-
nheiro com laticínios. Outro fator nada radas por Smith como valiosos bancos de
desprezível é que os ribeirinhos apreciam diversidade biológica e genética e de téc-
a carne bovina. Smith conclui que “búfa- nicas de cultivo. Suas variedades rústicas
los e o gado bovino poderão continuar a devem ser estudadas por cientistas. Por
dar uma contribuição valiosa para a eco- exemplo, Smith registrou pessoalmente 79
nomia regional da Amazônia, mas as prá- variedades de mandioca brava cultivadas

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na várzea, algumas das quais sem sequer [um] esforço baseado em mecanismos
um nome popular preciso. Ele calcula que de comando e controle do governo cen-
tral para aplicar a legislação ambiental
na bacia amazônica como um todo devam se mostrou em grande parte ineficaz,
existir talvez mil variedades de mandioca pelo menos nas áreas rurais da Amazô-
brava e doce sob cultivo. nia. Ao invés de punir indivíduos e
empresas que cortem florestas nas suas
propriedades, deveria se oferecer in-
No Capítulo 6, Smith trata especificamen- centivos para estimulá-los a conservar
te da questão da biodiversidade presente as florestas.
nos cultivos de várzea. Ele registra núme-
ros altíssimos de espécies cultivadas ou Smith assim reconhece as limitações da-
protegidas em simples hortas domésticas. quele que ainda é o modo preferido de
Há até árvores nativas pouco conhecidas, abordar as questões ambientais entre os
indicando que a curiosidade e a opero- pesquisadores e ambientalistas, brasileiros
sidade dos ribeirinhos continua a selecio- ou não – “louve-se a comunidade e pu-
nar plantas para cultivo. Ele registra ain- nam-se os fazendeiros”. Essa fórmula tem
da os potenciais de atividades como a cria- de fato tido pouco sucesso na Amazônia.
ção de peixes e tartarugas em cativeiro, e
da criação de abelhas de várias espécies. Outras propostas polêmicas – embora eu
Na página 149, o autor faz um apelo por concorde com todas elas – de Smith são:
mais pesquisa agroflorestal nas várzeas, pesquisa aplicada sobre biodiversidade e
destacando que “nenhum modelo ou con- sua conservação; intensificação da agricul-
figuração única de manejo agroflorestal é tura de várzea; a introdução de culturas,
apropriada para toda a extensão do rio variedades e animais domésticos de outras
[Amazonas]. A heterogeneidade ambiental regiões; a garantia de direitos pelo desen-
e as variáveis condições culturais e de mer- volvimento e uso de recursos para as po-
cado impedem que se faça um único mo- pulações locais; democratização do crédi-
delo para o desenvolvimento”. to. O texto conclui com diversos apêndi-
ces contendo os nomes científicos e comuns
O Capítulo 7 conecta breve e agudamen- de plantas cultivadas em lotes e hortas. Há
te as informações dos capítulos anteriores ainda boas sugestões para leituras especí-
com as questões mais gerais da preserva- ficas.
ção da natureza e do desenvolvimento re-
gional. Smith de novo discorda das análi- Enfim, o livro é excelente. Contém exten-
ses convencionais ao propor que, além dos sa pesquisa original, é bem escrito e ilus-
programas de “manejo comunitário de trado, e situa bem o leitor na complexida-
recursos”, “[...] uma grande ênfase deve de das várzeas amazônicas. Pode ser lido
ser dada ao trabalho com o setor privado como um introdução a questões ambientais
para alcançar a meta de conservar e usar e desenvolvimentistas da Amazônia, ou de
melhor a biodiversidade da região” regiões tropicais em geral. No entanto, é
(p. 158). Na página 159, ele afirma corre- tão bem organizado que serve também
tamente que para discussões avançadas sobre questões

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amazônicas, e até para cursos intensivos e apresentam os amazônidas como “bons
workshops. Smith tem, acima de tudo, um selvagens” (a comunidade), ou como “des-
ponto de vista sóbrio sobre os amazônidas truidores da natureza” (empresários e fa-
das várzeas. É um alívio ler este livro de zendeiros), e que tentam nos convencer
Smith, no contexto de tantos textos que que os vastos ecossistemas da Amazônia
estão a um passo da destruição.

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RELAÇÃO DE DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS NO


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM
ANTROPOLOGIA E CIÊNCIA POLÍTICA

CURSO DE MESTRADO EM ANTROPOLOGIA

1 TÍTULO: Um abraço para todos os amigos


Autor: Antonio Carlos Rafael Barbosa
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues
Data da Defesa: 16/1/97

2 TÍTULO: A produção social da morte e morte simbólica em


pacientes hansenianos
Autor: Cristina Reis Maia
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues
Data da Defesa: 2/4/97

3 TÍTULO: Práticas acadêmicas e o ensino universitário: uma


etnografia das formas de consagração e transmissão do
saber na universidade.
Autor: Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da Defesa:16/6/97

4 TÍTULO: “Dom”, “iluminados” e “figurões”: um estudo sobre a


representação da oratória no Tribunal do júri do Rio de
Janeiro.
Autor: Alessandra de Andrade Rinaldi
Orientador: Prof. Dr. Luiz de Castro Faria
Data da Defesa: 3/1/97

5 TÍTULO: Mudança ideológica para a qualidade


Autor: Miguel Pedro Alves Cardoso
Orientador: Profª. Drª. Livia Neves Bragança
Data da Defesa: 7/10/97

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6 TÍTULO: Culto rock a Raul Seixas : sociedade alternativa entre
rebeldia e negociação
Autor: Monica Buarque
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues
Data da Defesa: 19/12/97

7 TÍTULO: A cavalgada do santo guerreiro: duas festas de São Jorge


em São Gonçalo/Rio de Janeiro
Autor: Ricardo Maciel da Costa
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da Defesa: 23/12/97
8 TÍTULO: A loucura no manicômio judiciário: a prisão como terapia,
o crime como sintoma, o perigo como verdade
Autor: Rosane Oliveira Carreteiro
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da Defesa: 6/2/98
9 TÍTULO: Articulação casa e trabalho: migrantes “nordestinos” nas
ocupações de empregada doméstica e empregados de
edifício.
Autor: Fernando Cordeiro Barbosa
Orientador: Profa Dra Delma Pessanha Neves
Data da Defesa: 4/3/98
10 TÍTULO: Entre “modernidade” e “tradição”: a comunidade
Islâmica de Maputo.
Autor: Fátima Nordine Mussa
Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello
Data da Defesa: 11/3/98
11 TÍTULO: Os interesses sociais e a sectarização da doença
mental
Autor: Cláudio Lyra Bastos
Orientador: Prof. Dr. Marco da Silva Mello
Data da Defesa: 21/5/98
12 TÍTULO: Programa médico de família: mediação e reciprocidade
Autor: Gláucia Maria Pontes Mouzinho
Orientador: Profa Dra Simoni Lahud Guedes
Data da Defesa: 24/5/99

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13 TÍTULO: O império e a rosa: estudo sobre a devoção do Espírito
Santo
Autor: Margareth da Luz Coelho
Orientador: Prof. Dr. Arno Vogel
Data da Defesa: 13/7/98
14 TÍTULO: Do malandro ao marginal: representações dos
personagens heróis no cinema brasileiro
Autor: Marcos Roberto Mazaro
Orientador: Profª. Drª. Livia Neves Barbosa
Data da Defesa: 30/10/98
15 TÍTULO: Prometer – cumprir: princípios morais da política :
um estudo de representações sobre a política construídas
por eleitores e políticos
Autor: Andréa Bayerl Mongim
Orientador: Profª. Drª. Delma Pessanha Neves
Data da Defesa: 21/1/99
16 TÍTULO: O simbólico e o irracional: estudo sobre sistemas de
pensamento e separação judicial
Autor: César Ramos Barreto
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Rodrigues
Data da Defesa: 10/5/99
17 TÍTULO: Em tempo de conciliação
Autor: Angela Maria Fernandes Moreira Leite
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da Defesa: 15/7/99
18 TÍTULO: Negros, parentes e herdeiros: um estudo da reelaboração
da identidade étnica na comunidade de Retiro, Santa
Leopoldina – ES
Autor: Osvaldo Marins de Oliveira
Orientador: Profa Dra Eliane Cantarino O’Dwyer
Data da Defesa: 13/8/99
19 TÍTULO: Sistema da sucessão e herança da posse habitacional
em favela
Autor: Alexandre de Vasconcellos Weber
Orientador: Profa Dra Delma Pessanha Neves
Data da Defesa: 25/10/99

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20 TÍTULO: E no samba fez escola: um estudo de construção social
de trabalhadores em escola de samba
Autor: Cristina Chatel Vasconcellos
Orientador: Profa Dra Simoni Lahud Guedes
Data da Defesa: 5/11/99
21 TÍTULO: Cidadãos e favelados: os paradoxos dos projetos de
(re)integração social
Autor: André Luiz Videira de Figueiredo
Orientador: Profa Dra Delma Pessanha Neves
Data da Defesa: 19/11/99

22 TÍTULO: Da anchova ao salário mínimo: uma etnografia sobre


injunções de mudança social em Arraial do Cabo/RJ
Autor: Simone Moutinho Prado
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da Defesa: 25/2/2000
23 TÍTULO: Pescadores e surfistas: uma disputa pelo uso do espaço
da Praia Grande
Autor: Delgado Goulart da Cunha
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da Defesa: 28/2/2000
24 TÍTULO: Produção corporal da mulher que dança
Autor: Sigrid Hoppe
Orientador: Prof. Dr. Marco Antonio da Silva Mello
Data da Defesa: 27/4/2000
25 TÍTULO: A produção da verdade nas práticas judiciárias
criminais brasileiras: uma perspectiva antropológica de
um processo criminal
Autor: Luiz Eduardo de Vasconcellos Figueira
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da Defesa: 21/9/2000
26 TÍTULO: Campo de força: sociabilidade numa torcida
organizada de futebol
Autor: Fernando Manuel Bessa Fernandes
Orientador: Profa Dra Simoni Lahud Guedes
Data da Defesa: 22/9/2000

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27 TÍTULO: Reservas extrativistas marinhas: uma reforma agrária
no mar? Uma discussão sobre o processo de
consolidação da reserva extrativista marinha de Arraial
do Cabo/RJ
Autor: Ronaldo Joaquim da Silveira Lobão
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da Defesa: 29/11/2000
28 TÍTULO: Patrulhando a cidade: o valor do trabalho e a
construção de esterótipos em um programa radiofônico
Autor: : Edilson Marcio Almeida da Silva
Orientador: Profa Dra Simoni Lahud Guedes
Data da Defesa: 8/12/2000
CURSO DE MESTRADO EM CIÊNCIA POLÍTICA
29 TÍTULO: Gestão da educação municipal: a administração do
Partido dos Trabalhadores no município de Angra dos Reis
Autor: Claudio Batista
Orientador: Prof. Dr. José Ribas Vieira
Data da Defesa: 17/10/97

30 TÍTULO: Utopia revolucionária versus realismo político: o dilema


dos partidos socialistas na ótica dos dirigentes do PT
fluminense
Autor: Gisele dos Reis Cruz
Orientador: Profa Dra Maria Celina D’Araujo
Data da Defesa: 7/11/97

31 TÍTULO: Relação ONG – Estado: o caso ABIA


Autor: Jacob Augusto Santos Portela
Orientador: Profa Dra Maria Celina D’Araujo
Data da Defesa:18/11/97

32 TÍTULO: Reforma do Estado e política de telecomunicações: o


impacto das mudanças recentes sobre a EMBRATEL
Autor: José Eduardo Pereira Filho
Orientador: Profª. Drª. Livia Neves Barbosa
Data da Defesa: 18/12/97

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33 TÍTULO: Entre a disciplina e a política: Clube Militar


(1890 – 1897)
Autor: Claudia Torres de Carvalho
Orientador: Prof. Dr. Celso Castro
Data da Defesa: 19/12/97

34 TÍTULO: Associativismo Militar no Brasil: 1890/1940


Autor: Tito Henrique Silva Queiroz
Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva
Data da Defesa: 22/12/97

35 TÍTULO: Escola de Guerra Naval na formação dos oficiais


superiores da Marinha de Guerra do Brasil
Autor: Sylvio dos Santos Val
Orientador: Profa Dra Maria Antonieta Parahyba Leopoldi
Data da Defesa: 6/2/98

36 TÍTULO: O Poder Legislativo reage : a importância das comissões


permanentes no processo legislativo brasileiro
Autor: Ygor Cervásio Gouvea da Silva
Orientador: Prof. Dr. Fabiano Guilherme Mendes dos Santos
Data da Defesa: 13/8/98

37 TÍTULO: A experiência do Itamaraty de 84 a 96 : entre a tradição


e a mudança
Autor: Joana D’Arc Fernandes Ferraz
Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva
Data da Defesa: 15/9/98

38 TÍTULO: Centrais Sindicais e Sindicatos


Autor: Fernando Cesar Coelho da Costa
Orientador: Profa Dra Maria Celina Soares D’Araujo
Data da Defesa: 16/11/98

39 TÍTULO: A dimensão política da família na sociedade brasileira:


o conflito de representações
Autor: Guiomar de Lemos Ferreira
Orientador: Prof. Dr. Gisalio Cerqueira Filho
Data da Defesa: 15/12/98

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40 TÍTULO: A OMS, o Estado e a Legislação contrária ao tabagismo:
os paradoxos de uma ação
Autor: Mauro Alves de Almeida
Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva
Data da Defesa: 21/12/98

41 TÍTULO: Violência e racismo no Rio de Janeiro


Autor: Jorge da Silva
Orientador: Prof. Dr. Roberto Kant de Lima
Data da Defesa: 23/12/98

42 TÍTULO: Novas democracias: as visões de Robert Dahl Guillermo


O’Donnel e Adam Przeworski
Autor: Jaime Baron
Orientador: Profa Dra Maria Antonieta Parahyba Leopoldi
Data da Defesa: 16/7/99

43 TÍTULO: Conselho Tutelar: a participação popular na construção


da cidadania da criança e do adolescente em Niterói – RJ
Autor: Maria das Graças Silva Raphael
Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva
Data da Defesa: 13/12/1999
44 TÍTULO: O Legislativo Municipal no contexto democrático
brasileiro: um estudo sobre a dinâmica legislativa da
Câmara Municipal de Nova Iguaçu
Autor: Otair Fernandes de Oliveira
Orientador: Prof. Dr. Ari de Abreu Silva
Data da Defesa: 20/12/1999
45 TÍTULO: A gerência do pensamento
Autor: Cláudio Roberto Marques Gurgel
Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho
Data da Defesa: 8/2/2000
46 TITULO: Violência no Rio de Janeiro: a produção racional do
mal – a produção legal sobre segurança pública na
Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro
Autor: Fabiano Costa Souza
Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho
Data da Defesa: 9/2/2000

Antropolítica Niterói, n. 8, p. 113–120, 1. sem. 2000

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47 TÍTULO: As idéias de direito no Brasil seiscentista e suas


repercussões no exercício e na justificativa do poder
político
Autor: Ana Patrícia Thedin Corrêa
Orientador: Prof. Dr. Gisálio Cerqueira Filho
Data da Defesa: 8/6/2000

48 TÍTULO: Agência brasileira de inteligência: gênese e


antecedentes históricos
Autor: Priscila Carlos Brandão Antunes
Orientador: Profa Dra Maria Celina Soares D’Araujo
Data da Defesa: 25/8/2000

49 TÍTULO: Dilemas da reforma da saúde no Brasil frente à


globalização financeira: implementando a
descentralização do sistema público e a regulação do
sistema privado de saúde
Autor: Ricardo Cesar Rocha da Costa
Orientador: Profa Dra Maria Antonieta Parahyba Leopoldi
Data da Defesa: 22/9/2000

50 TÍTULO: Entre o bem-estar e o lucro: histórico e análise da


responsabilidade social das empresas através de
algumas experiências selecionadas de balanço social
Autor: Ciro Valério Torres da Silva
Orientador: Prof. Dr. Eduardo Rodrigues Gomes
Data da Defesa: 23/10/2000

51 TÍTULO: Os empresários da educação e o sindicalismo


patronal: os sindicatos dos estabelecimentos privados
de ensino no estado do Rio de Janeiro
Autor: Marcos Marques de Oliveira
Orientador: Profa Dra Maria Celina Soares D’Araújo
Data da Defesa: 14/12/2000

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Revista Antropolítica /Artigos publicados
Revista no 1– 2o semestre de 1996
Artigos
Brasil: nações imaginadas
José Murilo de Carvalho
Brasileiros e argentinos em Kibbutz: a diferença continua
Sonia Bloomfield Ramagem
Mudança social: exorcizando fantasmas
Delma Pessanha Neves
Ostras e pastas de papel: meio ambiente e a mão invisível do mercado
José Drummond
Conferências
Algumas considerações sobre o estado atual da antropologia no Brasil
Otávio Velho
That deadly pyhrronic poison a tradição cética e seu legado para a teoria
política moderna
Renato Lessa
Resenha
Uma antropologia no plural: três experiências contemporâneas. Marisa
G. Peirano
Laura Graziela F. F. Gomes
Revista no 2 – 1o semestre de 1997
Artigos
Entre a escravidão e o trabalho livre: um estudo comparado de Brasil e
Cuba no século XIX
Maria Lúcia Lamounier
O arco do universo moral
Joshua Cohen
A posse de Goulart: emergência da esquerda e solução de compromisso
Alberto Carlos de Almeida

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In corpore sano: os militares e a introdução da educação física no Brasil


Celso Castro
Neoliberalismo, racionalidade e subjetividade coletiva
José Maurício Domingues
Do “retorno do sagrado” às “religiões de resultado”: para uma
caracterização das seitas neopentecostais
Muniz Gonçalves Ferreira
Resenhas
As noites das grandes fogueiras – uma história da coluna Prestes,
Domingos Meireles
José Augusto Drummond
Os sertões: da campanha de Canudos, Euclides da Cunha; o sertão
prometido: massacre de Canudos no nordeste brasileiro, Robert M.
Levine
Terezinha Maria Scher Pereira
Revista no 3 – 2o semestre de 1997
Artigos
Cultura, educação popular e escola pública
Alba Zaluar e Maria Cristina Leal
A política estratégica de integração econômica nas Américas
Gamaliel Perruci
O direito do trabalho e a proteção dos fracos
Miguel Pedro Cardoso
Elites profissionais: produzindo a escassez no mercado
Marli Diniz
A “Casa do Islã”: igualitarismo e holismo nas sociedades muçulmanas
Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto
Quando o amor vira ficção
Wilson Poliero
Resenha
Nós, cidadãos, aprendendo e ensinando a democracia, de Maria

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Conceição D’Incao e Gerard Roy, a narrativa de uma experiência de


pesquisa
Angela Maria Fernandes Moreira Leite
Revista no 4 – 1o semestre de 1998
Artigos
Comunicação de massa, cultura e poder
José Carlos Rodrigues
A sociologia diante da globalização: possibilidades e perspectivas da
sociologia da empresa
Ana Maria Kirschner
Tempo e conflito: um esboço das relações entre as cronosofias de
Maquiavel e Aristóteles
Raul Francisco Magalhães
O embate das interpretações: o conflito de 1858 e a lei de terras
Márcia Maria Menendes Motta
Os terapeutas alternativos nos anos 90: uma nova profissão?
Fátima Regina Gomes Tavares
Resenha
Auto-subversão
Gisálio Cerqueira Filho
Revista no 5 – 2o semestre de 1998
Artigos
Jornalistas: de românticos a profissionais
Alzira Alves de Abreu
Mudanças recentes no campo religioso brasileiro
Cecília Loreto Mariz e Maria das Dores Campos Machado
Pesquisa antropológica e comunicação intercultural: novas discussões
sobre antigos problemas.
José Sávio Leopoldi
Três pressupostos da facticidade dos problemas públicos ambientais
Marcelo Pereira de Mello

Antropolítica Niterói, n. 8, p. 121–124, 1. sem. 2000

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Duas visões acerca da obediência política: racionalidade e conservadorismo


Maria Celina D’Araujo
Revista no 6 – 1o semestre de 1999
Artigos
Palimpsestos estéticos y espacios urbanos: de la razón práctica a la razón
sensible
Jairo Montoya Gómez
Trajetórias e vulnerabilidade masculina
Ceres Víctora e Daniela Riva Knauth
O sujeito da “psiquiatria biológica” e a concepção moderna de pessoa
Jane Araújo Russo, Marta F. Henning
Os guardiães da história: a utilização da história na construção de uma
identidade batista brasileira
Fernando Costa
A escritura das relações sociais: o valor cultural dos “documentos” para
os trabalhadores
Simoni Lahud Guedes
A Interdisciplinaridade e suas (im)pertinências
Marcos Marques de Oliveira
Revista no 7 – 2o semestre de 1999
Artigos
Le geste pragmatique de la sociologie française. Autour des travaux de
luc boltanski et laurent thévenot
Marc Breviglieri e Joan Stavo-Debauge
Economia e política na historiografia brasileira
Sonia Regina de Mendonça
Os paradoxos das políticas de sustentabilidade
Luciana F. Florit
Risco tecnológico e tradição: notas para uma antropologia do sofrimento
Glaucia Oliveira da Silva
Trabalho agrícola: gênero e saúde
Delma Pessanha Neves

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Resumo das publicações recentes dos


professores do colegiado do PPGACP
Os fornecedores de cana e no setor sanitário, analisando os efeitos dos
o Estado intervencionista gastos definidos para a área. Consiste em
DELMA PESSANHA GOMES explicar por que o processo político brasi-
leiro caracteriza-se como altamente pre-
1997. 384 P. datório, dilapidador e ineficiente com re-
A autora apresenta contribuições ainda lação aos gastos públicos em geral.
pouco discutidas pelos antropólogos, ao
considerar a especificidade da experiên- Assentamento rural: reforma
cia social e política dos fornecedores de agrária em migalhas
cana. Apresenta, também, com incomum DELMA PESSANHA NEVES
riqueza de detalhes e sob uma instigante
1997. 440 P.
démache antropolítica, o processo de cons-
trução social e política dos fornecedores Analisa o processo de mudança de posi-
de cana. ção social de trabalhadores rurais assala-
riados para produtores mercantis, no qua-
Devastação e preservação dro de aplicação do PNRA – Plano Nacio-
ambiental no Rio de Janeiro nal de Reforma Agrária (1885) –, trans-
JOSÉ AUGUSTO DRUMMOND formação possível diante da falência e da
desapropriação da área agrícola de uma
1997. 306 P.
das usinas da região Açucareira de Cam-
Narra e avalia os diferentes usos que as pos, Estado do Rio de Janeiro.
terras florestadas fluminenses sofreram,
desde os anônimos povos indígenas cons- A antropologia da academia:
trutores dos sambaquis até a moderna ca- quando os índios somos nós
feicultura comercial. As características na- ROBERTO KANT DE LIMA
turais e sociais de cada um dos parques
nacionais fluminenses – Itatiaia, Serra dos 2. ED. 1997. 65 P.
Órgãos, Tijuca e Serra da Bocaina – tam-
bém são analisadas nesta obra. Pretende discutir algumas questões relati-
vas ao tema do colonialismo cultural, em
A predação do social particular no que se refere à possibilidade
ARI DE ABREU SILVA da produção de um conhecimento antro-
político capaz de descobertas esclare-
1997. 308 P. cedoras no âmbito da interpretação de
Focaliza conseqüências de decisões políti- países do Terceiro Mundo e, em especial,
cas na área social brasileira, em particular, do Brasil

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Jogo de corpo Pescadores de Itaipu – meio


SIMONI LAHUD GUEDES ambiente, conflito e ritual no
1997. 355 P. litoral do Estado do Rio de
Janeiro
Jogo de corpo é um livro que se inscreve na
ROBERTO KANT DE LIMA
temática da cultura da classe trabalhado-
ra. Procura articular, a partir de trabalho 1997. 333 P.
etnográfico, as concepções de homem e Inaugurando a série A Pesca no Estado do
trabalhador, enfocando o processo de Rio de Janeiro, Pescadores de Itaipu – meio
construção social de trabalhadores e, por ambiente, conflito e ritual no litoral do
essa via, de uma forma particular de cons- Estado do Rio de Janeiro retrata a praia
trução da pessoa. de Itaipu (Niterói, RJ) em um passado não
muito distante e faz uma breve avaliação
A qualidade de vida no das mudanças ocorridas.
Estado do Rio de Janeiro
ALBERTO CARLOS DE ALMEIDA Sendas da transição
SYLVIA FRANÇA SCHIAVO
1997. 128 P.
1997. 178 P
Define o que é qualidade de vida, escolhe
indicadores para quantificá-la e classifica Uma contribuição ao estudo do
os municípios do Estado do Rio de Janei- campesinato parcelar, tão a gosto de inú-
ro, bem como os bairros de Niterói e da meros antropólogos que, na década de 80,
capital do Estado de acordo com a buscaram o meio rural como lugar de re-
conceituação e a medição corresponden- flexão sobre as mudanças que muito rapi-
te. Um estudo útil para a implementação damente sacudiam o campo brasileiro.
de políticas sociais. Indicado para funcio-
nários da administração pública interessa- O pastor peregrino
dos em questões sociais, planejadores ur- ARNO VOGEL
banos e regionais, estudantes universitá-
1997. 300 P.
rios e cidadãos interessados na situação de
sua cidade. Trata-se de um trabalho pio- O autor analisa o ritual da primeira visita
neiro na utilização da metodologia quan- do Papa João Paulo II ao Brasil, revelan-
titativa para a medição da qualidade de do ao público acadêmico e ao leitor inte-
vida em municípios brasileiros. ressado na questão religiosa, no Brasil, as
implicações simbólicas e sociológicas des-
se acontecimento.

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Presidencialismo, parlamen- Antropologia-escritos


tarismo e crise política no exumados 1 : espaços cir-
Brasil cunscritos – tempos soltos
ALBERTO CARLOS DE ALMEIDA L. DE CASTRO FARIA
1998. 251 P. 1998. 286 P.
Trata-se de importante contribuição para Apresenta ao público leitor de Antropolo-
a compreensão de situações da crise polí- gia no Brasil o conjunto dos textos escri-
tica, bem como para o entendimento do tos e de programas de curso ministrados
golpe de 64. O autor faz uma análise da pelo autor.
história política brasileira, mais precisa-
mente, da história do período de 1946 a Professor Emérito da UFRJ e da UFF, ao
1964. longo de seus 85 anos, mais de 60 deles
dedicados à atividade acadêmica inin-
Um abraço para todos os terrupta, Castro Faria publica seu primei-
amigos: algumas conside- ro livro. Uma ótima leitura para aqueles
rações sobre o tráfico de que se propõem a pesquisar a história do
drogas no Rio de Janeiro pensamento social brasileiro e da Antro-
pologia.
ANTONIO RAFAEL
1998. 178 P. Violência e racismo no Rio de
Uma investigação acerca do tráfico de dro- Janeiro
gas no Rio de Janeiro, em especial aquele JORGE DA SILVA
que é implementado no interior das fave- 1998. 249 P.
las cariocas.
Produto de esforço teórico e acadêmico, é
Baseado em dados colhidos em trabalho sobretudo uma contribuição prática para
de campo realizado nos anos de 1995 e os estudiosos da questão racial e da vio-
1996, analisa as características infraccionais lência, bem como para os formuladores de
dos grupamentos que atuam no tráfico nas políticas públicas destinadas à melhoria da
comunidades. Um estudo corajoso sobre qualidade de vida da população, relacio-
um dos temas mais polêmicos da atualidade. nadas com a violência e a segurança pú-
blica e ao público de modo geral.

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Novela e sociedade no Brasil As redes do suor : a repro-


LAURA GRAZIELA FIGUEIREDO FERNANDES dução social dos traba-
GOMES lhadores da pesca em Juru-
1998. 137 P. juba
LUIZ FERNANDO DIAS DUARTE
Destaca o objeto das narrativas teleno-
velísticas e explicita o que elas de fato dra- 1999. 289 P.
matizam em relação às formas de controle As redes do suor resulta de pesquisa sobre
social e de resolução de conflitos existen- os processos de identificação implicados na
tes na sociedade brasileira diferenciação pelo trabalho na pesca em
Jurujuba. É um dos raros trabalhos a li-
O Brasil no campo de futebol dar com essa problemática no contexto
SIMONI LAHUD GUEDES urbano moderno brasileiro.
1998. 136 P.
A descrição etnográfica da vida de um bair-
Enfoca o futebol como operador da iden- ro popular e das diversas formas do tra-
tidade nacional brasileira, analisando a balho na pesca nos leva à discussão das
forma como ele se transforma em veículo questões centrais da mudança e moderni-
para o debate sobre características do povo zação em nosso país.
brasileiro. Discute também seu lugar no
processo de socialização masculina através Antropologia – escritos
de estudo realizado numa escolinha de exumados – 2 : dimensões do
futebol. conhecimento antropológico
L. DE CASTRO FARIA
Modernidade e tradição :
construção da identidade 1999. 424 P.
social dos pescadores de O segundo volume de Antropologia – escri-
Arraial do Cabo (RJ) tos exumados apresenta a produção de L.
ROSYAN CAMPOS DE CALDAS BRITTO de Castro Faria nas áreas de Antropologia
Biológica, Arqueologia, Etnologia e dos es-
1998. 265 P. tudos de cultura material.
Uma etnografia da vida social e econômi-
ca dos pescadores de Arraial do Cabo. Resgata dimensões da trajetória do autor
Instigante análise para a compreensão da pouco evidentes para aqueles que já o co-
pesca enquanto atividade econômica de nheceram envolvido com pós-graduação,
nosso país e de nosso Estado. Traz uma estudos de Antropologia Social e história
relevante contribuição teórica para de- da produção intelectual.
monstrar as transformações das sociedades
tradicionais frente à modernidade.

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Seringueiros da Amazônia: “Dom”, “Iluminados” e


dramas sociais e o olhar “Figurões”: um estudo sobre
antropológico a representação oratória no
ELIANE CANTARINO O’DWYER Tribunal do Júri do Rio de
1998. 231 P. Janeiro
ALESSANDRA DE ANDRADE RINALDI
O livro descreve uma viagem pericial ao
alto rio Juruá, no Estado do Acre, solicita- 1999. 107 P.
da pela Procuradoria Geral da República Busca compreender a representação da
para investigar denúncias sobre trabalho oratória do Tribunal do júri no Rio de Ja-
escravo. O levantamento antropológico é neiro. Segundo a autora, existe uma fór-
feito no contexto de ameaças contra os mula, cuja função, de um ponto de vista
membros do Conselho Nacional dos Se- externo ao campo jurídico, é persuadir
ringueiros, praticamente um ano depois aqueles a quem é dirigida; e, de um ponto
do assassinato de seu líder Chico Mendes. de vista interno, distinguir os profissionais
Através dos testemunhos dos seringueiros, deste ofício, atribuindo-lhes ou não pres-
pode-se constatar, in loco, formas de viola- tígio.
ção das liberdades pessoais e de constran-
gimento ilegal perpetradas contra as po- Angra I e a melancolia de uma
pulações seringueiras pelos chamados pa- era: um estudo sobre a
trões dos seringais. construção social do risco
GLÁUCIA OLIVEIRA DA SILVA
Práticas acadêmicas e o
ensino universitário: uma 199. 284 P.
etnografia das formas de A originalidade deste livro reside na etno-
consagração e transmissão grafia pioneira da única usina nuclear exis-
do saber na universidade tente no Brasil na época e na construção
PAULO GABRIEL HILU DA ROCHA PINTO de uma antropologia do trabalho em situa-
ção de risco.
1999, 244 P.
Instigante, dominando a literatura sobre
Um trabalho relevante, não só pela sua sin-
trabalho, comunidade, risco e meio am-
gularidade, como também pela abran-
biente, é uma das contribuições mais no-
gência e fôlego com que foi concebido e
táveis para uma sociologia do drama vivi-
realizado. Constitui-se em fonte segura de
do pelos trabalhadores e empregados do
subsídios para a compreensão de nossas
nuclear.
instituições universitárias e acadêmicas.

Antropolítica Niterói, n. 8, p. 125–129, 1. sem. 2000

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NORMAS DE APRESENTAÇÃO DE TRABALHOS
APRESENTAÇÃO

1. A Revista Antropolítica, do Programa de Pós-Graduação em Antro-


pologia e Ciência Política da UFF, aceita originais de artigos e rese-
nhas de interesse das Ciências Sociais e de Antropologia e Ciência
Política em particular.
2. Os textos serão submetidos aos membros do Conselho Editorial e/
ou a pareceristas externos, que poderão sugerir ao autor modifica-
ções de estutura ou conteúdo.
3. Os textos não deverão exceder 25 páginas, no caso dos artigos, e 8
páginas, no caso das resenhas. Eles devem ser apresentados em duas
cópias impressas em papel A4 (210 x 297mm), espaço duplo, em
uma só face do papel, bem como em disquete no programa Word
for Windows 6.0, em fontes Times New Roman (corpo 12), sem
qualquer tipo de formatação, a não ser:
• indicação de caracteres (negrito e itálico);
• margens de 3cm;
• recuo de 1cm no início do parágrafo;
• recuo de 2cm nas citações; e
• uso de itálico para termos estrangeiros e títulos de livros e perió-
dicos.
4. As citações bibliográficas serão indicadas no corpo do texto, entre
parênteses, com as seguintes informações: sobrenome do autor em
caixa alta; vírgula; data da publicação; vírgula; abreviatura de pági-
na (p.) e o número desta.
(Ex.: PEREIRA, 1996, p. 12-26).
5. As notas explicativas, restritas ao mínimo indispensável, deverão ser
apresentadas no final do texto.
6. As referências bibliográficas deverão ser apresentadas no final do
texto, obedecendo às normas da ABNT (NBR-6023).
Livro:
MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos e outros textos escolhidos. 2.
ed. São Paulo: Abril Cultural, 1978. 208 p. (Os pensadores, 6).
LÜDIKE, Menga, ANDRÉ, Marli E. D. A. Pesquisa em educação : abor-
dagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986.

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FRANÇA, Junia Lessa et al. Manual para normalização de publicações téc-
nico-científicas. 3. ed. rev. e aum. Belo Horizonte: Ed. da UFMG,
1996. 191 p.
Artigo:
ARRUDA, Mauro. Brasil : é essencial reverter o atraso. Panorama da
Tecnologia, Rio de Janeiro, v. 3, n. 8, p. 4-9, 1989.

Trabalhos apresentados em eventos:


AGUIAR, C. S. A. L. et al. Curso de técnica da pesquisa bibliográfica:
programa-padrão para a Universidade de São Paulo. In: CON-
GRESSO BRASILEIRO DE BIBLIOTECONOMIA E DO-
CUMENTAÇÃO, 9. 1977, Porto Alegre. Anais... Porto Alegre: As-
sociação Rio-Grandense de Bibliotecários, 1977. p. 367-385.

7. As ilustrações deverão ter a qualidade necessária para uma boa re-


produção gráfica. Elas deverão ser identificadas com título ou le-
genda e designadas, no texto, como figura (Figura 1, Figura 2 etc.).
8. Os textos deverão ser acompanhados de resumo em português e
inglês, que não ultrapasse 250 palavras, bem como de 3 a 5 pala-
vras-chave também em português e em inglês.
9. Os textos deverão ser precedidos de identificação do autor (nome,
instituição de vínculo, cargo, título, últimas publicações etc.), que
não ultrapasse 5 linhas.
10. Os colaboradores terão direito a cinco exemplares da revista.
11. Os originais não aprovados não serão devolvidos.
12. Os artigos, resenhas e demais correspondência editorial deverão
ser enviados para:
Comitê Editorial da Antropolítica
Programa de Pós-Graduação em Antropologia e Ciência Polí-
tica
Campus do Gragoatá, Bloco “O”
24210-350 – Niterói, RJ
Tels.: (21) 2620-5194 e 2719-8012

Antropolítica Niterói, n. 6, p. 119–121 , 1. sem. 1999

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Antropolítica

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Desejo adquirir a Revista Antropolítica nos 1 2 3 4 5 6 7 , ao preço de R$ 13,00 cada*.

Nome: _____________________________________________________ Deposite o valor da(s) obra(s) em


Profissão: ___________________________________________________ nome da Universidade Federal
Fluminense/Editora (Banco do
Especialidade: ______________________________________________ Brasil S.A., agência 3602-1, conta
Endereço: __________________________________________________ 170500-8), depósito identificado
nº 15305615227047-5.
____________________________________________________________ Envie-nos o comprovante de
Bairro: ______________________________ CEP: _____________-___ depósito, através de carta ou fax,
juntamente com este cupom, e
Cidade: _____________________________________ UF: ___________ receba, sem qualquer despesa
Telefone: ( ______ ) __________________________________________ adicional, a encomenda em sua
residência ou local de trabalho.

14/12/2007, 12:23
* Comprando oito números,
pague somente R$ 80,00
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Niterói, n. 6, p. 119–121, 1. sem. 1999


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