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HISTÓRIA DA CIÊNCIA DA COMPUTAÇÃO

Leibniz

“A  verdadeira  filosofia  é  reaprender  a  ver  o  mundo.”  


Merlau  Ponty

Gottfried Wilhelm von Leibniz (1646-1716), filho temporão de um professor


de filosofia moral na Universidade de Leipzig, na Alemanha, nasceu em 1º. de
julho de 1646, na cidade em que seu pai lecionava, quando o término da Guerra
dos Trinta Anos (1618 – 1648) parecia já próximo. Sua mãe, Catharina Schmuck,
terceira esposa de Friedrich Leibniz, o pai de Leibniz, se encarregaria de educá-lo
após a morte do marido, em 1652. Filósofo e matemático por formação, Leibniz
brindou o mundo com inúmeras idéias que estavam bem à frente de seu tempo.
Autodidata, foi admitido na universidade de sua cidade natal aos 15 anos de
idade, graduando-se dois anos mais tarde. Aos vinte, já havia se preparado para
receber o título de doutor em direito na Universidade de Leipzig, porém este lhe
foi negado, aparentemente, por ser considerado muito jovem. Apresentou, então,
sua tese de doutorado, previamente redigida e intitulada De Casibus Perplexis in
Jure (Sobre Casos Intrigantes), na Universidade de Altdorf, em Nuremberg, sendo
agraciado com o respectivo título apenas quatro meses após ter se registrado no
curso.* (328)

Senhor de variados interesses, Leibniz tem na matemática a sua maior


influência, sendo considerado, entre outras coisas, o pai do cálculo diferencial e
integral, importante ramo da matemática derivado da Álgebra e da Geometria,
que tinha por objetivo original facilitar o cálculo de áreas e volumes.† O
desenvolvimento desta disciplina, como uma longa corrida de bastão, recebeu a
contribuição de inúmeras civilizações e matemáticos desde os tempos do Antigo
Egito, passando pela Grécia, com a participação de Arquimedes, pela Índia, com
Aryabhata e Bhāskara II, e por vários matemáticos da Idade Moderna até chegar
em Leibniz e Sir Isaac Newton (1643 – 1727), que tiveram o mérito de recolher
todas as idéias anteriores, acumuladas por mais de dois mil anos,
complementando-as com uma nova forma de notação e de reuni-las de forma
organizada em um corpo teórico unificado. Batizada de ”Cálculo” por Leibniz e de
“ciência dos fluxos” por Newton, a invenção desta nova ferramenta é
legitimamente atribuída a ambos pela maioria dos historiadores da ciência, que

*
Uma outra versão deste episódio, conta que o grau do doutorado lhe foi negado pelo Deão da universidade para
satisfazer a própria esposa, que nutria certo desafeto por Leibniz. (Nota do Autor)

O cálculo diferencial e integral, também conhecido como cálculo infinitesimal ou simplesmente Cálculo, é
utilizado para a resolução de uma grande variedade de problemas que estejam relacionados com o cálculo de
taxas de variação de grandezas, sendo empregado em disciplinas tão abrangentes como física clássica, física
moderna, química, astronomia e economia, entre muitas outras aplicações. (Nota do Autor)

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acreditam no desenvolvimento de trabalhos simultâneos e independentes. No


século 20, a utilização do Cálculo seria fundamental para o desenvolvimento da
física quântica e da engenharia eletrônica, molas mestras na criação dos
dispositivos semicondutores que permitiriam o surgimento e rápida evolução dos
computadores eletrônicos.

Aproximados talvez pelos vários interesses em comum, Leibniz e Newton


passaram a se corresponder, mantendo de início um cordial relacionamento,
sendo comum elogiarem-se mutuamente e referirem-se aos trabalhos um do
outro como distintos e admiráveis, conforme comprovado por cartas trocadas com
amigos em comum. Porém, motivada por um surpreendente mal entendido, esta
dupla paternidade do Cálculo se tornaria motivo de uma célebre e infeliz
controvérsia entre estes dois renomados matemáticos, conhecida como Disputa
sobre a Primazia no Cálculo.

Segundo a versão mais aceita, contratempos e atrasos absurdos na troca


da correspondência entre ambos, problema do qual nós ainda não estamos
totalmente livres, fariam Newton crer que estivesse sendo ludibriado pelo alemão,
conclusão a que chegou devido à publicação por Leibniz de seu trabalho sobre o
Cálculo, aparentemente contendo métodos e informações descritos pelo inglês em
carta enviada a Leibniz algum tempo antes de tal publicação. Possivelmente, por
estar se mudando para a cidade de Hanover, onde assumiria o posto de
bibliotecário, Leibniz somente tomaria ciência desta carta meses após ter
publicado sua obra.

Enfurecido, Newton apelou à Royal Society, instituição londrina da qual os


dois eram membros, além de utilizar-se de métodos duvidosos e quiçá
inescrupulosos para forjar acusações de plágio contra Leibniz. A verdade,
entretanto, é que Leibniz havia completado seu trabalho sobre o cálculo
infinitesimal em 1676, durante uma visita de quatro dias ao filósofo Bento de
Espinosa (1632 – 1677), em sua passagem por Amsterdam quando estava a
caminho de Hanover.

De temperamento instável e vingativo, Newton atacaria Leibniz com tal


agressividade que terminaria por arruiná-lo financeiramente e isolá-lo da
comunidade intelectual. Esta disputa somente terminaria em 1716, com a morte
de Leibniz. Anteriormente, Newton já havia se envolvido em outra contenda com o
cientista experimental inglês Robert Hooke (1635 – 1703), por causa de suas
posturas antagônicas sobre a natureza da luz. Conforme observa Stephen
Hawking, este tipo de atitude costumeira de Newton lhe cobraria um alto preço:
(419)

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[...]   os   ataques   corrosivos   de   Newton   contra   Leibniz   também   lhe  


impuseram  pesado  tributo  físico  e  emocional.  Ele  logo  se  viu  envolvido  
em   outra   batalha,   dessa   vez   sobre   a   teoria   da   cor,   contra   os   jesuítas  
ingleses.   Por   fim,   em   1678,   ele   sofreu   grave   colapso   mental.   No   ano  
seguinte,   sua   mãe   Hannah,   faleceu   e   Newton   começou   a   afastar-­‐se  
dos  outros.  
Sua  série  de  experimentos  complexos  e  precisos  para  comprovar  que  a  
luz   era   composta   de   partículas   minúsculas   atraiu   a   ira   de   alguns  
cientistas,   como   Hooke,   para   quem   a   luz   viajava   em   ondas,   que   o  
desafiou  a  fornecer  mais  provas  de  suas  teorias  ópticas  excêntricas.  A  
maneira   como   Newton   reagiu   à   provocação   de   Hooke   tornou-­‐se   típica  
em   situações   semelhantes   e   perseguiu-­‐o   pelo   resto   da   vida.   Ele  
recuou,   disposto   a   humilhar   Hooke   em   todas   as   oportunidades,   e   se  
recusou  a  publicar  seu  livro,  Óptica,  até  depois  da  morte  de  Hooke,  em  
1703.  
[...]  O  ódio  de  Newton  por  Hooke  consumiu-­‐o  durante  anos...  [...]  Em  
1693,  ele  sofreu  outro  colapso  nervoso  e  se  afastou  de  suas  pesquisas.  
[...]   A   mais   leve   crítica   à   sua   obra,   mesmo   sob   o   disfarce   de   elogio  
pródigo,   não   raro   o   fazia   mergulhar   em   recolhimento   obscuro   durante  
meses  ou  anos.  Esse  traço  revelou-­‐se  desde  cedo  na  vida  de  Newton  e  
levou   algumas   pessoas   a   indagar   a   que   outras   perguntas   Newton  
poderia   ter   respondido   se   não   estivesse   tão   obcecado   em   resolver  
suas   pendengas   pessoais.   No   entanto,   também   há   quem   especule   que  
as  descobertas  e  realizações  científicas  de  Newton  foram  o  resultado  
de   suas   obsessões   vingativas   e   talvez   não   tivessem   ocorrido   se   ele  
fosse  menos  arrogante.  (420)  
O sistema de notações do cálculo infinitesimal de Leibniz, considerado
superior ao de Newton, tornaria-se o preferido pelos matemáticos continentais, e
seria disseminado por todo o mundo e adotado até os dias atuais. A discórdia
entre Newton e Leibniz, pelo reconhecimento da autoria do Cálculo, tomaria
proporções de uma questão de Estado, ferindo o orgulho nacional e provocando a
ruptura entre a ciência britânica e a do resto do continente europeu. Esta cisão,
que somente seria apaziguada mais de um século depois, traria prejuízos maiores
à Inglaterra, mantendo estagnado o desenvolvimento local da matemática por um
longo período. Somente no início do século XIX Charles Babage e um pequeno
grupo de matemáticos tomariam para si a incumbência de superar esta rixa,
promovendo a adoção no Reino Unido da notação desenvolvida por Leibiniz.
(5,
Descansem em paz ilustres senhores, esta honra tão disputada, cabe a ambos.
202, 324 e 326)

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Como filósofo, Leibniz inquietava-se com a vida e com o modo como se


deveria vivê-la. Porém, sua influência nesta área do conhecimento foi bem menos
direta que na matemática, atuando de forma mais destacada como mentor. Seu
principal discípulo, Johann Christian Wolff (1679 – 1754), matemático, físico e
filósofo alemão, assumiria importante papel no desenvolvimento da filosofia
dominante na Alemanha durante grande parte do século 18, exercendo forte
(325)
influência sobre o também filósofo alemão Immanuel Kant (1724 – 1804).

Em sua vida pessoal, contrastando com a caricatura do pensador solitário


que jamais se casaria*, Leibniz, possuidor de uma personalidade carismática e
enamorado pelo poder, preocupava-se em cultivar e manter extenso círculo social
e intelectual, conhecendo desde príncipes e reis da Europa até os grandes
pensadores de sua época.

Em suas atividades intelectuais, representou com


maestria os papéis de cientista, inventor, engenheiro,
jurista, historiador, diplomata, acadêmico, lógico,
bibliotecário, linguista e teólogo, ignorando com
deliberada elegância as fronteiras entre estas
diferentes áreas do conhecimento. Um de seus traços
mais marcantes diz respeito à sua visão otimista do
mundo, independentemente do contexto de guerras e
disputas religiosas que assolaram a Europa durante o
Gottfried Leibniz século 17.

Apesar de ter-se envolvido durante toda sua vida com discussões e


correspondências filosóficas, talvez por prudência, tenha publicado tão pouco,
estando a maior parte de seus pensamentos disponíveis apenas nas cartas que
escreveu. Por outro lado, é de sua autoria o livro sobre a China mais prestigiado
de seu tempo, sendo também o escritor responsável pela introdução da noção de
inconsciente, afirmando, em sua peculiar lucidez, que podemos perceber algo sem
que tenhamos tal percepção no exato momento de sua ocorrência.

Uma das mais surpreendentes sugestões de Leibniz, idéia que lhe custou
significativa dedicação, centrava-se no desenvolvimento de uma linguagem e de
uma lógica universais, definidas em conjunto como a “Característica Universal”.
Esta que pretendia ser uma forma de conciliar a lógica, a retórica e a matemática,
teria como objetivo reduzir a resolução de qualquer problema à tarefa bem mais
simples de se efetuar cálculos racionais. Deste modo, uma eventual discordância
entre cientistas de temperamento educado, qualquer que fosse o tema, poderia
ser resolvida por meio destes cálculos, evitando-se intermináveis discussões

*
Leibniz chegou a pedir a mão de uma mulher em casamento, quando já contava com mais de 50 anos de idade,
porém voltou atrás, “antes que fosse tarde”. (Nota do Autor)

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estéreis. Caso esta sua idéia pudesse ser realizada, possivelmente seria comum
que discussões intelectuais fossem encerradas com o seguinte chavão: ok, então
vamos nos sentar e calcular quem está com a razão! (322 e 323)

Para que possamos melhor situar Leibniz no campo da filosofia é preciso


retratar os cursos de história da filosofia moderna, que por tradição costumam
organizar o seu conteúdo tendo como base sete grandes filósofos, organizados
segundo linhas de pensamento e correntes filosóficas definidas por Kant:

- O racionalismo continental, defendido por René Descartes (1596 –


1650), Bento de Espinosa e Leibniz, que restringiria o conhecimento genuíno
somente àquele que pode ser alcançado pelo raciocínio dedutivo, por meio de
operações mentais ou discursivas e do uso da lógica, sendo esta a corrente
(312 a 315)
central do pensamento liberal;

- O empirismo britânico, escola que historicamente se opõe ao


racionalismo e valoriza a indução, postulando que todo conhecimento é
constituído apenas a partir da percepção de experiências captadas por
nossos sentidos físicos, é representada pelos filósofos John Locke (1632 –
(316 a
1704), George Berkeley (1685 – 1753) e David Hume (1711 – 1776);
319)

- A terceira corrente filosófica, criada e representada pelo próprio Kant,


propunha uma síntese do que haveria de correto tanto no racionalismo como
no empirismo. (311)

Locke, principal expoente do empirismo, defendia a idéia de que a mente


seria um quadro (tabula rasa*), originalmente vazio, no qual todas as impressões
advindas dos sentidos seriam gravadas, criando a base de todo conhecimento.
Nesta corrente filosófica, todas as pessoas nasceriam com suas mentes
absolutamente vazias e todo processo de aprendizado e aquisição de
conhecimento seria conduzido pela experiência sensorial, por meio do método de
tentativa e erro. Por outro lado, o racionalismo pregava que o ser humano já
nasceria com certas idéias inatas a cerca das verdades universais e que, à medida
que fosse amadurecendo, tomaria consciência destas idéias que aflorariam à sua
mente, podendo então compreender os fenômenos percebidos por meio dos
sentidos. Assim, por esta escola filosófica, o conhecimento independeria dos
sentidos físicos.

O enquadramento de Leibniz no modelo kantiano sempre apresentou


dificuldades aos historiadores da filosofia devido às características de sua
abordagem filosófica, notadamente menos racionalista que as de Descartes ou

*
Do latim, folha em branco. (Nota do Autor)

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Espinosa. Tal constatação tem alimentado uma tendência crescente por


considerar-se a lógica formal como o foco do pensamento de Leibniz, chegando-se
ao ponto de interpretar-se que sua filosofia seja derivada de sua lógica, apesar de
eventuais peculiaridades da obra filosófica de Leibniz não ter qualquer relação
com a lógica.

Estas aparentes contradições, são esclarecidas pelo escritor inglês e


professor de filosofia, George MacDonald Ross, reconhecido por seu domínio sobre
o tema:

Na  verdade,  Leibniz  ocupava  uma  posição  na  interface  entre  a  visão  de  
mundo  holística  e  vitalista  da  Renascença  e  o  materialismo  atomista  e  
mecanicista   que   iria   dominar   os   séculos   XVIII   e   XIX...   muitas   de   suas  
idéias   eram   demasiado   radicais   para   sua   época,   só   tendo   sido  
adotadas   bem   mais   tarde   –   à   vezes,   só   em   nosso   século.   Seria  
demasiado  rigoroso  julgá-­‐lo  simplesmente  pelas  idéias  que  mais  tarde  
se   tornaram   parte   de   nossa   visão   de   mundo.   Tal   como   ocorre   com  
todos  os  grandes  filósofos,  sua  obra  sem  dúvida  contém  um  potencial  
até  agora  não  reconhecido.  
Outra   distorção   comum   é   ver   Leibniz   como   primordialmente   um  
filósofo,   como   se   seu   papel   na   vida   fosse   o   mesmo   de   um   filósofo  
profissional  do  século  XX.  Não  somente  ele  nunca  teve  um  emprego  de  
professor   de   filosofia   como   a   gama   de   seus   interesses   tinha   tal  
amplitude  que  sua  obra  filosófica  não  passava  de  uma  atividade  entre  
muitas.   Ele   foi,   como   bem   o   denominam   os   alemães,   um  
Universalgenie,   um   “gênio   universal”.   Um   relato   justo   de   sua  
realização   tem   de   situar   sua   filosofia   no   contexto   de   todas   as   outras  
coisas  que  ele  fez.  Só  então  é  possível  verificar  até  que  ponto  Leibniz,  
longe   de   ser   o   racionalista   extremo   que   Kant   o   fez   ser,   na   realidade  
procurava  criar  uma  nova  síntese  a  partir  dos  conflitos  aparentemente  
irreconciliáveis   entre   tradições   anteriores   em   várias   esferas   de  
atividade  intelectual.(320)
Como base de sua filosofia, Leibniz defendeu o que chamou de “princípio da
razão suficiente”, afirmando que nada acontece sem uma razão. Esta tese
pregava que, dada uma infinidade de escolhas possíveis a Deus, ele somente
escolheria o melhor de todos os mundos possíveis. Significativa também foi a
influência de sua lógica, destacando-se a “lei dos indiscerníveis”, que estabelecia
que se duas coisas forem idênticas, então tudo o que se aplica a uma deve
necessariamente se aplicar a outra. (106)

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Em janeiro de 1673, cruzando a ponte entre o mundo das idéias e o mundo


da experimentação, Leibniz apresentou em uma exposição na cidade de Londres,
uma máquina de calcular mecanizada, por ele projetada e chamada de "Stepped
Reckoner" (Calculador por Etapas), que além de somar e subtrair, suportava
operações de multiplicação e divisão com algarismos de até 12 dígitos, fornecendo
resultados com até 16 posições numéricas.

Naquela época, mesmo as pessoas consideradas instruídas apresentavam


sérias dificuldades no trato com a matemática, raramente sendo capazes de
efetuar, ou sequer compreender, simples operações de multiplicação e muito
menos de divisão. Tal situação atribuiria ao equipamento de Leibniz uma
importância maior do que hoje se poderia avaliar, despertando a atenção de
ilustres membros da Royal Society, instituição para a qual Leibniz viria a ser eleito
membro, em abril de 1673, antes mesmo que o projeto estivesse completado.
Este instrumento, na verdade um aperfeiçoamento da Pascaline, teve sua
construção motivada pela determinação de Leibniz em simplificar os infindáveis
cálculos de astronomia realizados pelo astrônomo holandês Christian Huygens
(1629 – 1695), por ocasião do encontro que tiveram em Paris, no ano anterior,
conforme registro do próprio Leibniz:

Não   é   digno   de   homens   notáveis   desperdiçar   seu   tempo   com   um  


trabalho  de  escravos,  o  cálculo,  que  poderia  ser  designado  a  qualquer  
um,  ajudado  por  uma  máquina. (326)  
 

A calculadora de Leibniz, expandindo


a capacidade de somar da máquina de
Pascal, realizava operações de
multiplicação executando repetidas
operações de soma. Assim, para calcular
a operação doze vezes seis, sua máquina
Calculadora de Leibniz, 1673
somava seis vezes o número doze.

Esta técnica de subdividir operações aritméticas em outras de menor


complexidade*, associada aos princípios mecânicos utilizados por Leibniz, serviriam
de inspiração para as futuras gerações de máquinas de calcular, por mais de 250
anos, sendo empregados tanto nas máquinas manuais à manivela dos séculos 18 e
19, como nas calculadoras elétricas da primeira metade do século 20.

*
Técnica ainda hoje utilizada por estudantes de programação, para implementar simples funções de multiplicação
em assembler (designação para a linguagem de programação de baixo nível, diretamente associada ao código de
máquina, formada por mnemônicos que representam cada instrução do conjunto de instruções de um determinado
processador). (Nota do Autor)

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Motivo de orgulho para seu inventor,


o Stepped Reckoner adquiriria um certo
status de nobreza. Leibniz construiu uma
unidade deste equipamento
especialmente para o imperador russo
Pedro, O Grande (1672 – 1725), que
posteriormente viria a ser presenteada
ao imperador da China, como
Reconstrução do Stepped Reckoner
demonstração de superioridade da
(321)
tecnologia ocidental.

Sem dúvida o Stepped Reckoner deve ser considerado um projeto bem


sucedido em diversos sentidos, destacando-se o longo tempo necessário para que
fossem superadas as inovações tecnológicas nele embarcadas. Esta questão, que
se torna mais evidente quando comparada à rápida obsolescência dos atuais
computadores pessoais, demonstra inequivocamente o quanto Leibniz estava a
frente de seu tempo. Entretanto, mirando em um futuro ainda mais distante de
seu próprio tempo, Leibniz nutria planos ousados em relação à evolução deste
equipamento, pretendendo a longo prazo que uma versão mais poderosa de sua
máquina de calcular pudesse ser construída e utilizada para mecanizar todos os
processos do raciocínio, sustentando tecnologicamente o seu acalentado projeto
da Característica Universal. Diante de tantas e surpreendentes descobertas
científicas que surgem a todo momento, quem poderá dizer que um dia o sonho
de Leibniz não alcançará a realidade, ultrapassando os limites da ficção? Nesse
caso, é possível que o enquadramento da filosofia de Leibniz, segundo a visão de
Kant, tenha de ser revisto pelos historiadores e filósofos do porvir com a
conseqüente criação de uma nova categoria de pensadores... na qual, por favor,
não se esqueçam de incluir Newton!

De forma, talvez, nem tão surpreendente, os princípios desenvolvidos por


Pascal e Leibniz permaneceram relativamente desconhecidos por cerca de cem
anos, até que, em 1775, Charles Mahon, terceiro Conde de Stanhope (1753 -
1816), construísse na Inglaterra um dispositivo de multiplicação similar ao de
Leibniz e, entre 1774 e 1776, Philip Mathieus Hahn, na Alemanha, também
montasse com sucesso um equipamento com as mesmas funcionalidades.

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Finalmente, em 1820, o matemático e


inventor francês Charles Xavier Thomas de
Colmar (1785-1870) criaria o Arithmometer,
a primeira calculadora produzida em série,
capaz de realizar operações de multiplicação
utilizando os mesmos princípios da máquina
de calcular de Leibniz. O Arithmometer, que
ocupava o espaço de quase uma mesa
inteira, também podia executar operações
de divisão, com a devida assistência do
usuário. Máquinas deste tipo foram
Arithmometer produzidas e comercializadas por quase
(3 e 5)
noventa anos.

Assim como no caso de sua máquina de calcular, o pleno reconhecimento


das contribuições de Leibniz à área da lógica somente ocorreram depois que suas
idéias foram redescobertas por George Boole (1815 – 1864), e após ele ter sido
equiparado a um companheiro espiritual pelos principais idealizadores da lógica
moderna, Gottlob Frege (1848 – 1925) e Bertrand Russel (1872 – 1970). Sob
alguns aspectos, conforme o avalia G. MacDonald Ross, Leibniz permanece
insuperável:

...em   termos   de   estilo   e   de   espírito,   ele   muito   se   assemelhava   a   um  


Sócrates.   Estava   sempre   em   diálogo   com   os   outros,   tentando  
simpatizar   com   uma   variedade   de   pontos   de   vista   diferentes,   mas  
pronto  a  se  transformar  em  alguém  filosoficamente  incômodo  diante  
de   profissionais,   especialistas   e   eruditos   que   suponham   ter   toda   a  
verdade   a   cerca   de   toda   questão.   É   fácil   defender   o   seguimento   da  
tradição   socrática,   mas   poucos   o   fizeram   com   tanto   sucesso   quanto  
Leibniz.  

Gottfried von Leibniz, homem de erudição e de saber universal,


considerado, juntamente com Newton, uma das maiores inteligências dos séculos
17 e 18, morreu na Alemanha em 14 de novembro de 1716, contando então com
70 anos, perseguido politicamente, solitário e, possivelmente, sentindo-se não
realizado. Mas seus pensamentos e palavras continuarão ressoando, tanto para
racionalistas como para empíricos, iluminando sua busca pela verdade.

Entendo   por   razão,   não   a   faculdade   de   raciocinar,   que   pode   ser   bem  
ou   mal   utilizada,   mas   o   encadeamento   das   verdades   que   só   pode  
produzir  verdades,  e  uma  verdade  não  pode  ser  contrária  a  outra.  
Leibniz  

Gilberto L. Fernandes e-mail: gilberto.fernand@uol.com.br 13/01/2014 Page 147 of 485

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