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DUNKER, C. I. L. - A Ética do Acompanhamento Terapêutico. Psiconews - Boletim do AT.

São
Paulo, v.1, p.13 - 13, 1996.

Notas sobre a Ética do Acompanhamento Terapêutico

Christian Ingo Lenz Dunker

O acompanhamento terapêutico surge a partir de uma demanda institucional


precisa. Ele nasce de uma suspeita progressiva em relação aos aparelhos e procedimentos
psiquiátricos. Suspeita cujos marcos políticos vão de Laing a Basaglia e cujo impacto
teórico se fez notar a partir de Foucault. Trata-se portanto de uma demanda que não se
localiza naquele que supostamente será atendido, mas numa instituição.
No campo das práticas psicológicas este tipo de constituição não é absoluta
novidade. Resta saber se de fato o A.T. é uma prática psicológica, o que aqui tomaremos
por hipótese. Históricamente este tipo de demanda, enraizada na instituição, produz uma
psicologia conservadora. Se pensarmos nas práticas que surgem desde a escola, o
hospital, o exército, a empresa vemos que o que elas tem em comum, na sua origem, é a
disciplinarização do sujeito. Em outras palavras, ao responder à demanda isntituída não
se tratava apenas do desenvolvimento de técnicas, perfis e estratégias mas da absorção
de uma ética que tende a considerar os problemas psicológicos no âmbito do tratamento
de populações. A expansão das chamadas "terapias de grupo" por um lado e a valorização
das "equipes multidisciplinares" por outro podem ser entendidas neste contexto. Assim a
exigência de planejamento, controle e administração de populações, acompanhada do
raciocínio demográfico que lhe é próprio associou-se a uma ética utilitarista e
pragmática.
Na última década, no entanto, o campo de referência teórico do A.T. vem
migrando, pelo menos em São Paulo, de teorias mais impregnadas de disciplinarização
como o comportamentalismo, o cognitivismo e a psicologia social argentina (Pichon
Riviére, por exemplo), para teorias que supostamente se opõe à disciplinarização da
subjetividade, como a psicanálise "à francesa" e a esquizoanálise. De fato é bastante
improvável o surgimento de uma teoria específica e própria ao acompanhamento
terapêutico. Isto porque teorias psicológicas não são integralmente "fruto do meio" nos

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termos do naturalismo. O lugar de instalação é um propiciador de problemas e
contradições mas ele, por si só, não pode produzir um método ou um caminho de
reflexão. Não há, nesse sentido, psicologia hospitalar, assim como não há a subjetividade
dO drogadito, dO aidético, dA grávida, etc.
Nesse sentido o desejo de unidade teórica na prática do acompanhamento corre o
risco de converter a ação do A.T. numa burocracia funcional. Procurar tal segurança ou
garantia é incluir-se na demanda de roteirização e alienação própria das tecnologias
psicológicas. Postulamos, portanto, que se trata de encontrar a ética que diferencie e
especifique o A.T. nas diversas formas de absorção teóricas que podem acompanhá-lo.
Falar em equipe multidisciplinar (note-se o disciplinar), a partir da procura de
uma base vocabular comum à psicologia e psiquiatria ou entre psicanálise e psicologia
ou ainda dentro de cada um destes campos e tentar resolver no plano prático o que se
mostra contraditório no plano teórico, geralmente em prejuízo de ambos.
Isto significa considerar o espaço do A.T. como um espaço de tensão,
discordância e concorrência onde a posição do acompanhado não seja entificada nem
devastada pelas éticas institucionais do Bem Estar. Mas note-se que dizer isto já é por si
só uma tomada de posição que mereceria justificativa.
Escutando acompanhantes terapêuticos e pensando em minha breve experiência
com esta prática duas posições parecem rodear o tema: uma que encampa o saber sobre o
Bem que cabe ao paciente, geralmente associado ao endosso da perspectiva clínica
predominante. Outra posição que parecia denunciar uma certa opressão a que o paciente
era submetido e realizava uma espécie de aliança contra a família, o corpo clínico, a
instituição, etc., significados indiretamente como agências produtoras do mal estar no
sujeito.
As duas perspectivas mantém em comum a idéia de que a direção do tratamento
tende à homogenização, quer triunfante, quer lamuriosa a situação teria por horizonte o
estabelecimento de um único discurso e de uma única ética.
É paradoxal que aqueles supostamente treinados para lidar com a diferença se
mostrem tão perturbados pelo seu aparecimento cotidiano. O livre engajamento e a ética
relativista do respeito à diferença, pela diferença, parece nos ter conduzido a uma
falência do debate teórico e pior do debate clínico. É nesse sentido que o A.T. está às
DUNKER, C. I. L. - A Ética do Acompanhamento Terapêutico. Psiconews - Boletim do AT. São
Paulo, v.1, p.13 - 13, 1996.

voltas com um novo tipo de disciplinarização. De aspecto liberal e tolerante, o


engajamento na demanda disciplinar de "face humana" pode ratificar, de forma sutil, o
sileciamento do paciente.
Esbocemos uma proposta clínica que seria possível a partir de certos
desdobramentos da psicanálise pensada por Lacan.
Suponhamos que a ética que oriente o A.T. seja uma espécie de éticva parasita,
que promova, invente ou produza qualquer outro disurso que não o de mestre. Seria uma
forma de subverter a demanda que como vimos atravessa históricamente a prática do
A.T. Identificamos discurso disciplinar a discurso de mestre, o que seria um problema
teórico a resolver. Mas continuemos. Se esta posição "parasita" pudesse se separar quer
da adesão quer da disputa pela mestria estaria lançada a base para uma ética específica do
A.T.. Por outro lado a escuta de engendramento de outros modos discursivos (Lacan
nomeia o histérico, o universitário e o analítico, mas por que não pensar em outros ?) se
ajustaria à ambiguidade do fazer do A.T. sempre oscilante entre a escuta clínica (mas não
muito) e aquilo que teóricamente não seria "terapêutico".
Trataria se de refletir sobre as incidências desse discurso de mestre, de descrevê-
lo, localizá-lo para além do seu enraizamento em instituições e pessoas. De captar suas
incidências e reverberações sobre o acompanhado de modo a configurar alternativas.
Talvez estivéssemos nesta vertente, numa corruptela do diagnóstico. Um diagóstico
discursivo ?
Um exemplo do compromisso que o discurso de mestre pode encontrar com
formações teóricamente opostas a ele, pode ser extraído da seguinte descrição:
"O mestre não diz mais: você pensará como eu ou morrerá. Ele diz: você é livre
de não pensar como eu: sua vida, seus bens, tudo você há de conservar, mas de hoje em
diante você será um estrangeiro entre nós." (Tocqueville, comentado por Adorno em
Dialética do Esclarecimento, p. 115)
Essa diferença silenciante, se a podemos associar à disciplinarização que
perpassa a demanda pelo A.T., se encontra não apenas no acompanhamento rpópriamente
dito mas nas circustâncias que o envolvem. Não nos parece desproposital que muitas das
maneiras de penar o A.T. enfatizem a socialização ou integração do paciente ao contexto

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urbano ou familiar. De fato, é como se se tratasse de acolher um estrangeiro, de lhe
fornecer continência, de introfuzir familiaridade. O que fica menos explícito é a atenção
com o discurso produtor deste "estrangeiro". Neste sentido a ética que visnumbramos não
termina na relação com o acompanhado.

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