Você está na página 1de 45

1

André Bueno & Gustavo Durão

NOVOS OLHARES PARA OS ANTIGOS


Interpretações da Antiguidade
no Mundo Contemporâneo

Sobre Ontens
2018
2
Revista Sobre Ontens
Edição Especial

BUENO, André & DURÃO, Gustavo. Novos olhares para os


antigos: visões da antiguidade no mundo contemporâneo.
Rio de Janeiro: Edição Sobre Ontens, 2018.
ISBN: 978-85-65996-57-0
Disponível em: www.revistasobreontens.site

3
POR QUE PRECISAMOS DE
CHINA E ÍNDIA?
André Bueno118

Um começo

A verdade é que o Oriente chegou a dar considerável


substância, e não apenas alguns dos seus brilhos mais
vistosos de cor, à cultura que aqui se formou e à
paisagem que aqui se compôs dentro de condições,
predominantemente patriarcais de convivência
humana, em geral, e de exploração da terra pelo
homem e dos homens de uma raça pelos de outra, em
particular. E não só substância e cor à cultura: o
Oriente concorreu para avivar as formas senhoris e
servis dessa convivência entre nós: os modos
hierárquicos de viver o homem em família e em
sociedade. Modos de viver, de trajar e de transportar-se
que não podem ter deixado de afetar os modos de
pensar. Só o vigor do capitalismo industrial britânico
na sua necessidade às vezes sôfrega de mercados não só
coloniais como semicoloniais para sua produção, de
repente imensa, de artigos de vidro, ferro, carvão, lã,
louça e cutelaria – produção servida por um sistema
verdadeiramente revolucionário de transporte –
conseguiria acinzentar, em tempo relativamente curto,

118
Prof. Adjunto de História Oriental, UERJ.
223
a influência oriental sobre a vida, a paisagem e a
cultura brasileira. Pois o que parece é que, ao findar o
século XVIII e ao principiar o XIX, em nenhuma outra
área americana o palanquim, a esteira, a quitanda, o
chafariz, o fogo de vista, a telha côncava, o banguê, a
rótula ou gelosia de madeira, o xale e o turbante de
mulher, a casa caiada de branco ou pintada de cor viva
e em forma de pagode, as pontas de beiral de telhado
arrebitadas em cornos de lua, o azulejo, o coqueiro e a
mangueira da Índia, a elefantíase dos Árabes, o cuscuz,
o alfeolo, o alfenim, o arroz-doce com canela, o cravo
das Molucas, a canela de Ceilão, a pimenta de
Cochim, o chá da China, a cânfora de Bornéu, a
muscadeira de Bandu, a fazenda e a louça da China e
da Índia, os perfumes do Oriente, haviam se aclimado
com o mesmo à vontade que no Brasil; e formado com
valores indígenas, europeus e de outras procedências o
mesmo conjunto simbiótico de natureza e cultura que
chegou a formar no nosso País. É como se
ecologicamente nosso parentesco fosse antes com o
Oriente do que com o Ocidente que, em sua mística
de pureza etnocêntrica ou em sua intolerância
sistemática do exótico, só se manifestaria, entre nós,
através de alguns daqueles estilos e de algumas
daquelas substâncias inglesas e francesas de cultura
generalizadas no litoral brasileiro após a chegada de D.
João VI ao Rio de Janeiro. Ou por meio de um ou
outro arreganho de ocidentalismo ortodoxo da parte
de portugueses mais em desarmonia com o quase
instinto ou a quase política portuguesa de expansão,
que sempre se afirmou no sentido da conciliação dos
224
valores orientais com os ocidentais. (Gilberto Freyre
em Sobrados e Mucambos, 1936, cap.9)

Ao lermos esse fascinante trecho de Gilberto Freyre,


seria razoável que nos perguntássemos “mas então,
porque não estudamos a História do Oriente em nossas
escolas?”. A pergunta torna-se ainda mais complicada
quando a estendemos para o âmbito universitário, lugar
onde deveríamos aprender mais sobre os muitos
“Orientes”: O Oriente Médio, o Extremo Oriente, a
concepção Orientalista... E, no entanto, pouco se
aprende sobre isso. Alguns currículos acadêmicos
preveem o ensino de elementos básicos sobre Egito e
Mesopotâmia, repassados de forma rápida e superficial.
Israel surge, ocasionalmente, em função de preocupações
religiosas. Índia, China e Japão ainda se constituem uma
fantasia distante e exótica. Temos poucos especialistas
nesses campos. Para piorar esse quadro desolador, o
mundo acadêmico brasileiro, sobre qual paira uma
preocupante sombra de obscurantismo, tem revelado
docentes e pesquisadores que gostariam, realmente, de
excluir a História Antiga dos currículos de História.
Obviamente, tais posturas, fundamentadas em
argumentos fracos e imediatistas (o que deveria ser uma
vergonha para alguém que se considere historiador),
demonstram também que, de algum modo, o público

225
acadêmico está distante dessas preocupações. Sem um
conhecimento mais claro da longa trajetória das culturas
asiáticas, é praticamente impossível compreender a
importância de conhecê-las, e seu imenso legado para a
humanidade. Ou seja: nossos alunos (e futuros
professores) sabem pouco sobre Oriente porque pouco
aprenderam; e assim, num círculo vicioso, perdem de
vista as dimensões fundamentais desse fértil campo, sem
compreender sua valia decisiva para a construção de uma
História mundial.
Essa situação fica patente na medida em que nós,
brasileiros, revelamos o quão pouco sabemos sobre nós
mesmos. Estamos imersos numa cultura riquíssima,
referta da presença dos muitos Orientes, como nos
demonstrou Gilberto Freyre. Em seu China Tropical –
uma seleção de seus principais textos sobre a presença
asiática no Brasil – estamos próximos de constatar que o
ideal multicultural brasileiro não se assenta em falsas
premissas. Todavia, esse desconhecimento do “Oriente”
tem excluído de nosso imaginário que também temos
raízes e influências asiáticas.
Nesse espaço, gostaríamos de discutir algumas
razões pelas quais pensamos ser fundamental – e
absolutamente atual – renovarmos nossos estudos em
História Antiga, ampliando-os, inclusive, em direção ao
Extremo Oriente. Minha proposta se assenta em dois

226
elementos básicos: o primeiro provém de uma
conscientização sobre aquilo que se tem discutido e
desenvolvido, em termos de pesquisa, em outros
âmbitos universitários fora do contexto brasileiro. Isso
não deve ser encarado com estranheza; de fato, trata-se
simplesmente de observar e entender o que está sendo
feito, justamente, nos ambientes científicos nos quais o
público acadêmico brasileiro se inspira. Afinal, se
tomamos como base os modelos curriculares de outros
países para argumentarmos sobre o nosso, então,
estamos em sérios apuros. Faltam muitos temas,
conteúdos, pesquisas e mesmo, caminhos, nas várias
direções, perspectivas e contextos que a História permite
contemplar – e ainda assim, pretende-se que o nosso
currículo deve ser enxugando, tornando-nos um canto
do mundo, alienado da realidade circundante. A frase do
famoso sinólogo francês Marcel Granet (1929) continua
tão atual quanto antes: “Quem pretende ter o título de
humanista, não deve ignorar uma tradição de cultura tão
atraente e tão rica em valores duráveis.” (1929, p.5).
Colocando de outra maneira: quem se pretende
especialista em ciências humanas não pode sê-lo, de fato,
se continuar a ignorar dois terços da Humanidade – isto
é, Ásia e África. A reformulação para um currículo de
feições abrasileiradas corre o risco de nascer, já de
partida, excludente – embora proponha justamente o

227
contrário. Nesse sentido, a comparação com currículos
estrangeiros não visa desmerecer qualquer tentativa de
cunho nacional, mas sim, demonstrar que uma exigência
da contemporaneidade é a universalidade. Já de saída, é
preciso dizer que não precisamos apenas de História da
Ásia: precisamos de Ásia, de mais África, de muitos
Orientes, de América antiga e Latina, de Oceania... E se
o critério geográfico não for o mais apropriado, qualquer
tentativa de humanizar o currículo deve incluir,
inevitavelmente, a imensa plêiade de outros que
continuam a constituir os novos temas acadêmicos.
Assim, os apontamentos bibliográficos que se seguirão
não são exaustivos, mas pretendem dar uma mostra do
que se tem debatido sobre a História asiática.
O segundo ponto de minha proposta possui um
caráter pessoal, e advém de minhas experiências em
estudar e lecionar História da China e da Índia antigas.
Tendo já atuado mais de duas décadas nesse campo, me
permito incluir, aqui, algumas observações sobre as
dificuldades, necessidades e possibilidades no estudo
sobre o “Oriente” – palavra belíssima, mas que pouco
define um imenso e gigantesco mundo multifacetado,
cujas contribuições para a trajetória da Humanidade são
indiscutíveis, apesar de pouco conhecidas em suas
origens.

228
Prossigamos, pois, em tentar entender as razões pelas
quais deveria ser fundamental e indispensável para nós,
brasileiros, estudar as Histórias antigas dos asiáticos.

Liberdade acadêmica
Pode parecer estranho, mas, o primeiro de meus
argumentos para defender o estudo da História antiga
asiática em nosso currículo é, simplesmente, o de
liberdade acadêmica. Esse, talvez, devesse ser o último
dos argumentos, uma espécie de conclusão desse texto.
Todavia, a opção pelos temas historiográficos deveria ser
uma condição acadêmica, e não um processo de
encaminhamento. Embora estejamos a falar de modo
geral, a própria escolha por cursar uma faculdade de
História é uma opção individual. Muitos alunos, porém,
evadem do curso, pelas mais diversas razões. Uma dessas
razões, de certa maneira bastante significativa, é o caráter
restritivo de muitos cursos, que dão poucas alternativas,
em termos de pesquisa, ao desenvolvimento dos alunos.
Há uma tendência generalizada a reduzir os campos de
investigação disponíveis para a realização de
monografias, muitas vezes dirigidas a História regional.
Novamente, ressalto que o problema central não é
criticar outros campos historiográficos, mas sim, a
postura de docentes e pesquisadores que, ao restringirem
a diversidade temática, em nome de um suposto

229
pragmatismo político e científico, suprimem a liberdade
de escolha. Mais uma vez, surge o velho argumento –
falacioso e tautológico – de que “não há especialistas em
determinado tema para orientar”, e por isso, os
estudantes dificilmente podem escolher temas fora de
um elenco restrito e pré-determinado; assim, nunca se
formam, também, os especialistas que poderiam atender
as demandas diferentes do usual.
Por isso, a construção de um especialista em
História Oriental no Brasil depende, em muitos casos,
da visão de futuro e da boa vontade de uma parcela
reduzida de docentes e pesquisadores realmente abertos
a novos temas historiográficos. A reprodução infindável
de pesquisas sobre os mesmos temas pode fortalecer um
determinado grupo no âmbito burocrático, mas é
extremamente nociva à iniciativa científica. As pesquisas
têm-se repetido exaustivamente, sem inovações
significativas, e não circulam fora do ambiente
acadêmico, tendo pouca divulgação junto ao público.
Não se deve estranhar, por conseqüência, que poucos
historiadores têm conseguido alcançar parcelas mais
amplas de leitores, renovando o interesse pela História.
No caso da História asiática, principalmente de China e
Índia, esse espaço, no Brasil, é completamente ocupado
por publicações de especialistas estrangeiros e/ou de
outras áreas fora da História. Para termos uma ideia

230
dessa situação: até hoje não há um manual de História
geral da Índia escrito por brasileiros; sobre a História
chinesa, repete-se o comentário anterior – as obras, em
geral, são estrangeiras ou de escritores (não-
historiadores). Nesse sentido, a criação do Projeto
Orientalismo (atualmente em www.orientalismo.site)
em 2000 tentou, de alguma maneira, suprir essas
lacunas.
O critério estatístico aqui é uma demonstração do
quanto pode ser deletéria uma formação excludente na
universidade. Estamos despreparados para lidar com
essas civilizações, e não dispomos de especialistas a quem
possamos nos dirigir em questões relativas a elas.
Todavia, o problema central desse nosso primeiro
argumento é, ainda, a questão da liberdade acadêmica. A
universidade brasileira usa intensamente teorias,
métodos, técnicas e conceitos de pesquisas importados
do exterior. Muitos de nossos “autores preferidos” se
formaram em universidades europeias ou americanas,
construindo suas contribuições para a historiografia
nesses ambientes. A pergunta, pois, é simples e direta:
mas o que aconteceria, por exemplo, se um Jacques Le
Goff não pudesse estudar História medieval, e tivesse
que estudar outro tema qualquer, direcionado pelo seu
orientador? Quais seriam os desdobramentos dessa
mudança de curso em sua carreira acadêmica?

231
Obviamente, essa pergunta é meramente especulativa,
mas ela coloca em questão se não estamos podando os
futuros historiadores em suas habilidades de pesquisa e
mesmo, em sua paixão pelo campo da História.
Alguém poderia argumentar que o objetivo de
um curso de História é fornecer o instrumental
necessário para a realização da pesquisa e da docência, o
que pode ser bem feito em qualquer área do currículo
por um profissional qualificado. Assim, o estudante
aprenderia a estudar por conta própria, independente
dos temas que lhe foram direcionados na graduação. Ao
concordarmos com essa afirmativa, podemos continuar a
questionar, porém, porque estudantes e pesquisadores
não podem desenvolver seus trabalhos nos assuntos que
mais lhes interessam, já que o centro da argumentação
reside em supervisionar o desenvolvimento do trabalho
científico, e não determiná-lo a priori. Por essas razões,
muitos alunos desiludem-se com a universidade por se
sentirem tolhidos, não podendo escolher suas futuras
áreas de pesquisa. Há um interesse significativo pelas
áreas de História antiga, medieval e mesmo pelo Oriente
– motivado muitas vezes por uma cultura popular de
jogos, games, romances, filmes e livros de mitologias –
que se esvai com a pressão exercida ao longo da
graduação, para que esses alunos sejam direcionados a

232
temas mais “práticos, mais adequados, mais viáveis, mais
pertinentes, etc.”.
Essa problemática postura acadêmica revela, para
nós, uma condição de extremo preconceito. Voltemos
ao “Caso Jacques Le Goff”: por qual razão alguns de
nossos estudantes e professores se permitem assimilar e
debater as contribuições historiográficas desse autor
(como História: Novos problemas, 1978, ou A História
Nova, 1990), mas seguem tentando ignorar e excluir
História medieval dos currículos? Obviamente, alguém
pode refutar que Le Goff era francês, e por isso, seria
natural que ele estudasse História medieval como parte
de sua História nacional. A questão, porém, é se
podemos separar seu trabalho como medievalista de suas
posições na historiografia. Um é resultado do outro, e
ambos se engendram. Ignorar um dos lados é tentar
excluir parte da trajetória que permitiu a formulação dos
conceitos e propostas. Isso sim, é inviável – e por tentar
fazê-lo é que observamos o quanto nossos professores e
historiadores tem alcançado suas graduações e pós-
graduações com falhas profundas em suas formações.
Tendo examinado o caso de Le Goff, presença
marcante na vida de todos os historiadores brasileiros, é
possível, agora, dar um exemplo mais claro dessa linha
de argumentação: o caso de Edward Said, e seus estudos
sobre o Orientalismo (Orientalismo: o Oriente como

233
invenção do Ocidente, 1998). Said não era historiador,
mas seu trabalho é amplamente empregado em estudos
historiográficos sobre alteridade, pós-colonialismo e
imagem. Ora, toda a teoria de Said foi construída a
partir da análise da estética orientalista criada no século
19, e que até hoje influencia, com grande força, o
imaginário ocidental sobre o “Oriente”. Os estereótipos
orientalistas funcionam de forma ativa, e muitas vezes
são decisivos em decisões políticas e culturais
(investimentos econômicos, debates sobre migrações,
etc.). Assim, será possível separar as teorias de Said de
suas opções de estudo?
Do mesmo modo, poderíamos especular se Le
Goff ou Said não seriam bons intelectuais em qualquer
campo que pesquisassem. Seja qual for a resposta que
quisermos dar a essa reflexão, a questão é que ambos os
autores conquistaram sua projeção nos espaços que
escolheram, manifestando suas potencialidades nos
assuntos que mais lhes atraíam e interessavam. Isso
implica em admitir que existem bons historiadores em
quaisquer áreas: mas, sua capacidade de influenciar os
debates acadêmicos está indissociavelmente vinculada ao
trabalho em suas áreas de preferência intelectual.
A questão da liberdade acadêmica vem de
encontro aos dois argumentos que apresentarei no seguir
desse texto. Há uma percepção generalizada de que

234
China e Índia estão retomando seus espaços de
protagonismo na dinâmica mundial, após dois séculos
de profundas dificuldades políticas, sociais e
econômicas. Esse contexto tem proporcionado a revisão
da escrita histórica em relação ao “Oriente”,
estimulando uma série de novos estudos sobre as
conexões e diálogos interculturais entre as diversas partes
do mundo desde a antiguidade. Não é estranho, pois,
que um aluno adentre hoje o curso de História
buscando aprofundar-se no estudo de uma dessas
civilizações. Nesse momento crucial, gerar a
possibilidade ao aluno de optar pelos seus futuros temas
de estudo pode ser responsável por uma real renovação
da universidade, atualizando e diversificando seus
campos de atuação, estimulando o desenvolvimento
teórico e metodológico, e ampliando significativamente
a estrutura acadêmica dos cursos de História. No caso
específico de China e Índia, veremos agora as razões para
investir nesses campos de estudo, e que contribuições
elas podem nos oferecer.

Reescrever a História

Uma anedota recente conta que, em meio a uma das


reuniões da Organização Mundial de Comércio, os
representantes chineses estavam mais uma vez sendo
questionados pelo desrespeito a propriedade intelectual
235
na China. Patentes quebradas, além de uma
incontrolável cultura de cópia de produtos, criaram
um ambiente de pesadas perdas de lucros paras as
empresas ocidentais. Políticos de vários países exigiam
indenizações financeiras, e ameaçavam com retaliações
comerciais e embargos. No auge das pressões para que
fosse tomada uma atitude sobre o assunto, um dos
representantes chineses teria se levantado e dito:
“Podemos concordar com todas as exigências de
propriedade intelectual e indenização que nos são
pedidas, se vocês ocidentais também concordarem em
reconhecer a propriedade intelectual dos produtos
chineses, bem como nos indenizarem por todas as
nossas perdas.” Os representantes ocidentais ficaram
estupefatos com essa afirmação. Um deles teria se
levantado e perguntado: “E você pode nos explicar a
que produtos chineses se referem?”, ao que o chinês
respondeu: “Pólvora, bússola, papel, imprensa, leme de
popa...”

Essa piada nos chama atenção para o fato de que


desconhecemos, em grande parte, o papel das
civilizações asiáticas na História mundial. Para os
brasileiros, em geral, a História de China e Índia é uma
incógnita, pela qual se passeia brevemente na “época das
grandes navegações” (século 16) ou na História
contemporânea. A ausência é tão marcante que, como
vimos no item anterior, foi preciso recorrer a autores
mais conhecidos (porém, nenhum deles indólogo ou
236
sinólogo) para elaborar uma digressão absolutamente
especulativa. Não temos praticamente nenhum contato
com a História asiática, e ela pouco parece nos
interessar.
É notável pensar que nem sempre foi assim. No século
19, o debate sobre a imigração chinesa para o Brasil, em
substituição a mão de obra africana, envolveu a
intelectualidade do império, e luminares como Joaquim
Nabuco e Machado de Assis se manifestaram sobre a
questão. Uma missão foi enviada a China para conhecer
mais sobre sua cultura e História (Lisboa, 1880). O
projeto fracassou, mas o estigma orientalista sobre os
chineses permaneceu: e os brasileiros, se julgando de
certa forma europeus, relegaram ao esquecimento o
estudo das civilizações asiáticas.
Essa atitude não é estranha, nem despropositada.
Desde essa época, a História foi escrita de maneira
eurocêntrica, e as vozes afro-asiáticas estavam
emudecidas, em função do período colonial. Somente
na década de 50 do século 20 vemos autores como K.
Panikkar proporem mudanças nessas perspectivas.
Panikkar era indiano, mas formado na Inglaterra, e seu
livro A Dominação Ocidental da Ásia (1977) nos
mostra que o modelo historiográfico da dominação
ocidental sobre o “Oriente” era artificial, cheio de falhas,
e não dava conta de provar que o processo colonial fora

237
avassalador e absoluto como se propunha. Ele durara
muito pouco em termos de História mundial -
basicamente, apenas a primeira metade do século 19 até
a primeira metade do século 20 – mas conseguiu criar a
impressão de um domínio absoluto, perene, como se a
Europa sempre fora o centro do mundo.
Poderíamos pensar, assim, que a visão
eurocêntrica pesou decisivamente na liberdade
acadêmica, determinando os campos e temas a serem
estudados nas academias ocidentais, e excluindo em
definitivo as civilizações afro-asiáticas dos currículos.
Mas não foi assim. A mesma Europa – fosse pelas
necessidades coloniais, ou pelo puro e simples interesse
científico – percebe um fenômeno de abertura de
cadeiras em Sinologia e Indologia em suas universidades.
É provável que esse movimento incorporasse razões
estratégicas, mas ele consolidou o entendimento de que
o ensino universitário, em ciências humanas, deveria
contemplar o mundo oriental – sem o que, a sua
proposta de Humanidade estaria absolutamente
incompleta.
Foi esse tipo de atitude que fez com que no século
19 os europeus se dedicassem avidamente a traduzir as
obras clássicas da literatura chinesa e indiana. Expoentes
como James Legge (1815-1897), Richard Wilhelm
(1873–1930), Seraphin Couvreur (1835–1919) ou

238
Edouard Chavannes (1865–1918) são apenas exemplos
destacados entre uma plêiade de pesquisadores que
surgem nesse período. Marcel Granet (1884–1940), já
citado aqui, foi um dos introdutores da abordagem
sociológica na História, inovando no âmbito das teorias
e metodologias historiográficas por meio de seus estudos
referenciais em Sinologia da China antiga.
Em todo esse período, portanto – desde o século
19 até agora – existe uma ativa produção mundial nos
campos da Sinologia e da Indologia, que nós, brasileiros,
desconhecemos de forma preocupante. A única exceção
destacada é o sinólogo Ricardo Joppert (1979), formado
na França, e com um profundo trânsito na arte e na
cultura da China Antiga. Alguns autores brasileiros já se
debruçam sobre temas chineses e indianos, mas com
forte ênfase na contemporaneidade.
Isso nos remete a piada no início dessa segunda
parte. É possível compreender a História mundial isenta
do protagonismo asiático? Até onde somos capazes de
sustentar versões históricas que não se assentam em um
exame mais cuidadoso das fontes?
André Gunder Frank, em seu livro ReOrient
(1998) propõe uma completa revisão desse quadro,
clamando por uma reescrita da História. Até o século
18, as civilizações mais avançadas do mundo, em todos
os sentidos, eram a Chinesa e a Indiana. A própria

239
insistência em buscar novas rotas para o Oriente desde o
século 16 (o ‘Caminho das Índias’, entre outros), nos
revela de modo cabal que eram os europeus que iam
comprar seus artigos de luxo na Ásia. A exploração das
Américas estava intimamente ligada ao fornecimento de
ouro e prata, utilizados na aquisição dessas mercadorias
(seda, porcelana, especiarias, etc.). Essa atividade
comercial foi amplamente lucrativa para o império
chinês, apesar de todas as restrições impostas ao trânsito
de europeus em seu território. No entanto, não
podemos nos limitar a análise superficial das relações
comerciais. Existem aspectos fundamentais no trânsito
cultural que se deram entre essas culturas.
Armesto (1999) propôs em seu livro Milênio –
uma história de nossos últimos mil anos um quadro
sinótico totalmente diferente do usual. Iniciando sua
narrativa da história mundial por China e Japão, ele
redimensionou as relações de equilíbrio, poder e
influência no mundo do último milênio, mostrando que
não havia uma predominância clara do Ocidente nesse
período. Por seu turno, Hobson (2006) sustenta que os
elementos econômicos e tecnológicos chineses foram
decisivos para o surgimento de uma revolução industrial
ocidental. Os modelos produtivos da China serviram de
inspiração para o desenvolvimento das corporações
européias – principalmente a inglesa – em direção ao seu

240
processo de revolução industrial. Esse, sim, seria o passo
decisivo para que os europeus começassem a virar a
balança da preponderância asiática no século 19.
Tais considerações se tornaram possíveis graças ao
referencial trabalho de Joseph Needham (1900–1995),
que em sua vasta obra Science and Civilization in China
(datas), demonstrou que as numerosas conquistas
tecnológicas chinesas foram essenciais para o
desenvolvimento da Humanidade ao longo da História.
Os próprios chineses consideram que o trabalho de
Needham foi fundamental para compor uma trajetória
científica e intelectual chinesa, antes fragmentada em
sua própria escrita historiográfica. É notável pensar,
portanto, o quanto a História mundial deve as
inumeráveis descobertas científicas chinesas –
concebidas em um ambiente cujos conceitos e métodos
eram amplamente diferentes dos ocidentais.
Recentemente, o historiador Jack Goody (1919-
2015) em seu livro O Roubo da História (2009)
colocou, de modo bem claro, que a História das
civilizações asiáticas foi vilipendiada pelas construções
eurocêntricas. Não se trata apenas de comentar o
processo de exclusão que os ‘orientais’ sofreram na
escrita da História ocidental; mas também, de ressaltar
os processos de apropriação cultural que os europeus
levaram a cabo, transformando elementos asiáticos dos

241
mais diversos gêneros em formas europeurizadas de
saber e cultura. Nesse contexto, vale relacionar o trecho
de Gilberto Freyre, citado logo no início de nosso texto,
com a perspectiva de Goody; o quanto somos ‘orientais’
e nem o sabemos? O que, e quanto, de nossa cultura, são
resultado de apropriações, mestiçagens e hibridizações
com conceitos, ideias e práticas vindas de Índia e China?
Tais processos, aliás, são milenares. O
desenvolvimento da Rota da Seda, no século 3 AEC nos
mostra que, desde aquele período, o Mediterrâneo
romano consumia avidamente produtos, ideias e a arte
vindas do Oriente. Trabalhos como os de F. Hirth
(1875) e G. Coedes (1910) já nos revelavam o quanto
romanos, indianos e chineses se inter-relacionavam,
num processo de diálogo cultural fértil e rico. São
inúmeras as citações sobre a China na documentação
Greco-romana, bem como os chineses comentavam,
com certa regularidade, suas relações com o mundo
romano. Tanto Hirth como Coedes nos alertaram que
as raízes de uma dinâmica euro-asiática eram muito mais
antigas do que supúnhamos – e, no entanto, preferíamos
ignorá-las.
Isso nos mostra que a cegueira intelectual foi
sempre uma opção. Por mais que a documentação
textual fosse capaz de mostrar o contrário, a atitude de
ignorar o ‘Oriente’ era, muitas vezes, deliberada.

242
Trabalhos como de Young (2001), Ball (2000) e Bueno
(2002) nos mostram que a conexão estabelecida por
essas civilizações durou séculos – e embora crises
periódicas afetassem o funcionamento desse sistema
mundial – ele perdurou de modo constante até o século
16, quando a descoberta da América influenciou
substancialmente a mudança desse quadro. Mesmo
assim, devemos lembrar que a busca por rotas marítimas
para a Ásia (que culminaram com a descoberta das
Américas) visava à manutenção dessas relações, e não o
contrário. Recentemente, Raoul MacLaughlin (2010)
tem explorado mais profundamente as relações
comerciais entre o império romano e mundo asiático,
incorporando as descobertas arqueológicas em curso e
expandido amplamente o quadro dessas interações.
Tais pesquisas nos levam a repensar a escrita da
História em novos patamares. Os processos de interação
cultural na antiguidade não são fenômenos isolados, mas
compreendem vastas e complexas redes de trocas
materiais e simbólicas. Um exemplo clássico e bem
conhecido no campo da História da arte é o da
formação da iconografia budista – um longo processo
intelectual e estético que envolve elementos gregos,
romanos, indianos e chineses, e que é estudado desde o
início do século 20. A arte budista manifesta plenamente
a capacidade de diálogo e hibridização dos antigos, por

243
meio de um cânone artístico flexível e bem elaborado,
calcado na primeira experiência religiosa proselitista da
Humanidade. (Bueno, 2015)
Nesse ponto, é preciso aprofundar ainda mais o campo
das interações históricas que compõem o mundo antigo.
A conhecida Rota da Seda, que desde o século 3 AEC
unia a Europa a China, conectando outras rotas conexas
(como a Rota do Marfim da África, ou a Rota da
Pimenta do Oceano Índico) propiciou um dos primeiros
fenômenos de globalização da História mundial. As
religiões encontraram vias seguras para expandirem suas
doutrinas, alcançado as mais diversas partes da Ásia,
Europa e África. O Mediterrâneo dos séculos 1 ao 3 EC
era um palco de disputas religiosas (Woolf, 2009),
enquanto a China tornara-se gradualmente um
ambiente receptivo para experiências de mestiçagem
cultural desses cultos.
Liu Xinru (2010) nos traça um quadro bastante
rico do processo de circulação das religiões pela Rota da
Seda, demonstrando que é impossível falar de
religiosidades absolutamente isentas de qualquer
influência externa. Ao contrário: a sobrevivência do
Monoteísmo (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo)
deriva, em parte, de sua capacidade em dialogar,
adaptar-se e lidar com os desafios impostos pelas
religiões politeístas tradicionais. Há que se perguntar,

244
ainda, qual das grandes religiões atuais – mesmo no
Ocidente – não tem origem Oriental, revelando a sua
importância na formação de nossas mentalidades.
Na tentativa de dar a conhecer ao mundo acadêmico um
pouco mais do rico panorama da Rota da Seda, bem
como dos fenômenos culturais que cobrem suas áreas de
trânsito, a UNESCO promoveu a referencial coleção
History of Civillizations of Central Asia (1999),
envolvendo os especialistas asiáticos na produção de suas
próprias Histórias. Essa foi uma valiosa experiência de
protagonismo, na qual as narrativas, construídas dentro
dos formatos científicos reconhecidos
internacionalmente, projetaram a existência das
academias ‘orientais’ como produtoras de saberes
legítimos.
O campo dos estudos antigos euro-asiáticos,
porém, abriu outra frente de pesquisa. Mittag e
Mutschler (2008) propuseram, mais recentemente, um
estudo comparativo entre os impérios romano e chinês.
Em sua compreensão, os impérios não apenas criaram
um sistema internacional de trânsito político e
econômico, mas também, enfrentaram desafios sociais e
culturais semelhantes. A perspectiva comparatista, aqui,
é capaz de nos prover uma interessante análise sobre as
dinâmicas imperiais dos primeiros séculos EC. Neste
mesmo sentido, Walter Scheidel (2009 e 2014) tem

245
promovido constantemente a necessidade de analisar o
mundo mediterrânico e asiático de forma interligada, na
qual decisões militares, econômicas e culturais
envolviam um pensamento estratégico geopolítico,
levando em conta as variantes representadas pelos outros
impérios. Isso denota uma relativa consciência sobre o
que se passava no eixo euro-asiático, quebrando
definitivamente a concepção de um mundo antigo
compartimentado e isolacionista. Por fim, autores como
Obenga (1990) e Lloyd (2006) têm alertado para a
necessidade de aprofundar as relações entre o
pensamento grego com o egípcio, indiano e o chinês,
inserido num movimento atual de reescrita da História
da filosofia, que compreende a sua gênese e
desenvolvimento como um continuum, a partir de
matrizes afro-asiáticas (Egito, Mesopotâmia, Israel,
Pérsia e Índia). Até mesmo autores controversos como
Ferguson (2012), cuja teoria propõe que práticas
culturais e tecnológicas das sociedades influenciam em
sua capacidade de desenvolvimento (importando a
linguagem e conceitos da informática para demonstrá-
las), sustentam que todo e qualquer processo
comparativo, na história, não pode mais excluir o
Oriente.
Essa pequena recolha de autores pode nos
proporcionar uma visão mais ampla da questão. É

246
necessário reformular a cronologia histórica mundial,
levando em conta a dinâmica de suas relações
geopolíticas, desde a antiguidade, e a formação de redes
complexas de trocas, que permeavam o desenvolvimento
das culturas. O trânsito dos mais diversos elementos
materiais e intelectuais ensejou transformações
constantes nas sociedades, gerando uma fértil
diversidade que hoje pode ser constatada nos mais
diversos avanços arqueológicos. Tais considerações, por
si só, já nos permitiriam propor que é inevitável estudar
a História asiática para compreender as raízes das
civilizações humanas, e sua inserção na História
mundial. Todavia, um terceiro campo se apresenta
necessário para levar a termo essa proposta: a questão
conceitual.

Problemas conceituais
Uma tradição popular no meio musical conta que, para
as comemorações da abertura do Canal de Suez (1869),
foi encomendado ao grande músico italiano Giuseppe
Verdi (1813-1901) a composição de uma ópera, que
seria conhecida mais tarde como Aida. A estréia seria
feita no próprio Egito, então sob mandato turco-
britânico. Verdi concebera uma História de contornos
clássicos. A narrativa de Aida passava-se no tempo dos
faraós. A princesa egípcia Amnéris estava prometida em

247
casamento ao general Radamés, que havia saído
vitorioso da guerra contra os etíopes. No entanto, um
fator inusitado ocorre: Radamés apaixona-se pela
princesa etíope Aida, sua prisioneira, e começava aí o
desenrolar de uma longa e trágica peça envolvendo os
personagens. A História dramática desse triângulo foi
aplaudida entusiasticamente pela platéia presente no dia
de sua apresentação, e a ópera alcançou a consagração
imediata. Todavia, essa estréia não foi no Egito, como
inicialmente planejado, mas em Milão. Somente dois
anos depois, em 1871, ela seria encenada, de fato, no
Cairo. Mesmo assim, o imaginário popular registrou que
sua primeira encenação teria se dado no Egito, em frente
às pirâmides. O mais interessante, contudo, foi a
recepção da peça. Foram convidados membros das elites
locais - europeus, turcos e egípcios. Os europeus a
saudaram como uma tradução perfeita do Oriente,
manifestando mais uma vez seu fascínio absoluto por
essa ópera. Uma parte do público, porém, não gostou e
nem compreendeu a peça: para os convidados
muçulmanos presentes naquela noite, além da
musicalidade estranha e ininteligível, a História lhes
parecera uma rematada bobagem. Afinal, em seu
entendimento, o general poderia se casar com as duas se
quisesse, resolvendo o problema desde o início.

248
Esse episódio, descrito em pormenores por Said (1995),
é bastante elucidativo para que possamos compreender o
que se trata o problema conceitual a que nos referimos.
No campo do conhecimento histórico, filosófico e
científico, uma série de conceitos vem sendo
desenvolvidos há séculos, pretendendo dar sentido e
universalidade a uma série de situações, problemas e
categorias existentes. Essas injunções e classificações,
laboriosamente trabalhadas no campo intelectual,
continham em si a pretensão de dar uma resposta
essencial as questões humanas. A situação enfrentada
pela Aida de Verdi foi apenas uma, entre milhares de
situações, em que esse trabalho praticamente falhou. O
conceito de matrimônio entre os muçulmanos era
diferente dos cristãos; a beleza estética e musical da
ópera europeia era agradável a um público treinado em
compreendê-la, mas continuava inacessível e
incompreensível para aqueles que desconheciam esse
gênero. O que ficara claro, ali, é que as diferenças
culturais pareciam decisivas para um entendimento
multifacetado de determinados conceitos que,
aparentemente, deveriam ser universais (ao menos, na
“perspectiva ocidental”). Os europeus dessa época,
porém, estavam convencidos de que a incompreensão
alheia para com suas obras de arte, sua filosofia e sua
técnica se deviam a algum tipo de atraso intelectual ou

249
moral desses povos. Eles se permitiam essas afirmações
em função do imenso poder político e tecnológico que
angariaram no século 19, colocando-os numa situação
de preponderância nunca antes vista em relação ao
mundo. Mas, para embasar esse ponto de vista, era
necessário um bom argumento.
Foi com Hegel (1770-1831) que o Ocidente
aprendeu, basicamente, que só deveria estudar a sua
própria História, e que todo o restante do mundo
constituía um imenso e indistinto detalhe. Ao criar a sua
gaiola logocêntrica, que colocava os gregos na origem da
razão, Hegel pretendia determinar um ponto de partida
para o pensamento ocidental, europeu e científico. A
História do pensamento tornar-se-ia, assim, a História
da conquista de seus conceitos, capazes de traduzir o
mundo em leis, práticas e costumes. E, no ponto
culminante dessa trajetória, estava a Europa, herdeira
natural dessas ideias, mantenedora das riquezas da
antiguidade. Somente essa explicação poderia justificar a
situação de domínio que os europeus pareciam exercer
no restante do mundo (Bueno, 2005). Essa construção
histórica encontrou uma boa acolhida na academia
europeia, numa época em que o Imperialismo europeu
manifestava suas pretensões sobre a África e a Ásia.
Contudo, os mesmo europeus se ressentiam da falta de
conhecimentos acerca dessas civilizações, ainda que seus

250
interesses primeiros fossem de ordem prática, como a
dominação militar e a exploração econômica.
Na época de Hegel, os europeus sabiam muito
pouco sobre o restante do mundo, e podiam se sentir a
vontade com seu logocentrismo eurocêntrico. No
entanto, o surgimento da Sinologia e da Indologia foi,
gradualmente, forçando uma revisão dessa postura.
Ambas as civilizações possuíam tradições intelectuais
milenares, estruturadas a partir de suas próprias
fundações culturais, e cuja continuidade temporal
desafiava as melhores elaborações europeias.
Analisemos os dois casos em separado. A Índia
antiga possuía um senso histórico singular, que nunca
enfatizou o registro dos eventos ou da cronologia, e que
compreendia o tempo como um elemento móvel de suas
construções narrativas. Por causa disso, os indianos
tradicionais foram muitas vezes considerados como “a-
históricos”. A preocupação fundamental de seus escritos
era a fixação de determinados valores morais e
espirituais, por meio de passagens narrativas ilustrativas.
Em função disso, seus principais textos históricos
antigos, tais como o Mahabharata, o Ramayana e os
puranas estavam muito mais próximos da Ilíada e da
Odisséia de Homero do que da História de Heródoto.
Todavia, a preocupação fundamental dos indianos era

251
preservar as suas formas de religiosidade, o que eles
alcançaram com sucesso notável.
Os indianos se desviaram da preocupação de
registrar formalmente seus eventos, para enfocar na
manutenção de uma série de conceitos e tradições que
consideravam essenciais. Essa condição permitiu que o
Hinduísmo chegasse aos dias de hoje com um vasto
corpo literário de textos, capaz de nos orientar sobre as
crenças e costumes indianos através de séculos. No
entanto, foi preciso que os ingleses começassem suas
escavações arqueológicas para descobrir as civilizações do
Vale do Indo, revelando que a Índia antiga era bem
anterior aos seus próprios textos, e que já desfrutava de
regulares relações comerciais com a Mesopotâmia. A
cronologia histórica da Índia, tal como conhecemos
hoje, é praticamente uma invenção inglesa; e, no
entanto, ao estudarmos o hinduísmo, acessamos
diretamente um conjunto de narrativas históricas,
filosóficas e antropológicas milenares, cuja preservação
duradoura coloca em questão a necessidade dessas
mesmas construções cronológicas (Panikkar, 1975).
Totalmente diferente é o caso chinês, que desde
épocas muito remotas começou a registrar seus
acontecimentos históricos, seus discursos, personagens, e
eventos fundamentais. A escrita chinesa surgiu, de fato,
para viabilizar consultas oraculares, e seus resultados

252
eram zelosamente guardados, fazendo surgir os
primeiros arquivos chineses em um período em torno do
século 18 AEC. A História, para os chineses, fornecia o
seu sentido de civilização. Por essa razão, os escritos
históricos chineses, desde sua origem, tendem a um
pragmatismo revelador. Eles não se preocupavam, por
exemplo, em relacionar mitos de criação do universo:
simplesmente eles não estavam lá para registrá-lo, e,
portanto, qualquer consideração nesse sentido seria
meramente especulativa. A História chinesa era feita de
documentos, de pesquisas aos antigos arquivos e da
reconstituição narrativa do passado. Eles estavam
absolutamente conscientes de que essas reconstruções
eram imaginadas, e por isso, sabiam também que elas
poderiam ser modificadas com o tempo. No século 6
AEC, quando o sábio Confúcio (551 – 479 AEC)
reorganiza e edita os principais clássicos chineses, ele
trabalhava com textos já estabelecidos desde os séculos
12 ou 13 AEC. Mesmo assim, ele reclamava da falta de
fontes, o que dificultava o seu trabalho de historiador. A
literatura historiográfica chinesa, portanto, é riquíssima,
e continuou sendo produzida ininterruptamente até os
dias de hoje. Estima-se que algo em torno de um quarto
de todas as obras chinesas já escritas, desde a
antiguidade, constitui-se de livros de História
(Vandermeersch, 1987). Esse fenômeno não encontra

253
paralelo no Ocidente; o mais próximo disso seriam as
tradições religiosas, tais como o Judaísmo e o
Cristianismo, que continuam a existir desde a
antiguidade. O caso chinês, porém, é radicalmente
diferente: a unidade de sua civilização assentava-se no
conhecimento de sua História, e por isso, sua
conservação era indissociável de sua continuidade.
Existe, ainda, uma condição histórica própria de ambas:
são civilizações que se encontram em desenvolvimento
contínuo, desde suas fases pré-históricas, sem
interrupções. As culturas ocidentais têm uma imensa
dificuldade em compreender e traçar um paralelo com
essa realidade (Larre, 1975).
O encontro dos europeus com essas duas
realidades foi chocante. No caso indiano, o desafio era
compreender como uma cultura poderia durar tanto, e
manter tão duravelmente suas tradições, prescindindo
do instrumento indispensável da História; já o caso
chinês parecia ainda mais complexo, tendo em vista que
os chineses haviam sido capazes de conceber, pensar e
produzir História, com seus próprios conceitos, métodos
e materiais, desconhecendo absolutamente as discussões
européias nesse sentido. As discussões em relação a esses
dois problemas foram – e continuam – extensas, não
cabendo aqui estendê-las. Basta-nos entender que, ao
confrontar com essas realidades, a pretensão de

254
universalidade dos conceitos científicos europeus teve
que passar por mudanças e transformações.
Nesse ultimo momento, pois, nos deparamos
com duas situações distintas: a primeira diz respeito a
como determinados conceitos podem ser aplicados a
outras culturas, como instrumentos referenciais, mas que
precisam ser adaptados ou reinterpretados ao longo de
uma pesquisa. A segunda, de como outras culturas
apresentam conceitos novos, desconhecidos para nós,
que poderiam enriquecer nosso cabedal de ideias e
interpretações sobre o mundo.
Essas duas situações nos colocam no caminho de
um necessário diálogo intercultural. Raimon Panikkar,
pensador indo-espanhol (1918-2010), propôs uma
metodologia nova para compreender os processos de
tradução, conversão e entendimento de conceitos
(1997). Para ele, o reconhecimento de um conceito não
se dava, a princípio, no plano das ideias, mas no plano
simbólico. A tendência de muitas culturas é a de entrar
em contato com a manifestação de um conceito
qualquer enquanto forma, imagem, máquina, hábito ou
prática, sem atingir de imediato sua essencialidade.
Somente o aprofundamento gradual em seu sentido
pode estabelecer a ponte idealística entre duas ou mais
mentalidades diversas, propiciando um verdadeiro
diálogo intercultural. Panikkar cita, por exemplo, o

255
conceito de tempo histórico entre os indianos: somente
o termo “tempo” é expresso de variadas formas em
sânscrito, o que torna complexa a sua associação com a
ideia de “História”. Painkkar chama a atenção para as
dificuldades e alternativas que uma efetiva compreensão
dos saberes asiáticos implica (1975).
Por seu turno, o sinólogo e filósofo francês
François Jullien (2009) propôs igualmente uma via para
o entendimento do pensamento chinês, e sua
aplicabilidade em termos acadêmicos. Jullien defende, a
partir de uma perspectiva deontológica, que os chineses,
como qualquer outra civilização, foram capazes de
inferir certos conceitos ao longo de sua História. O
crucial é saber o que eles foram capazes de conceber, e
como. O proveito de estabelecer um intenso diálogo
com o pensamento chinês é de levar até ele os nossos
problemas conceituais, e observar as suas respostas
possíveis. São essas clivagens que torna possível, aos
poucos, acessar a imensa construção intelectual da
História e do pensamento chinês, e inferir de que
maneiras ela pode se preservar, se transformar e se
expandir. Por fim, se é possível, e como, aplicar algumas
dessas soluções chinesas para nossas questões
intelectuais, sociais, humanas enfim.
O interesse acendido por essa historiografia
chinesa tradicional tem chamado a atenção de

256
importantes pensadores ocidentais no campo da teoria
histórica. Novamente, para citarmos um exemplo, Jörn
Rusen (2015), em suas mais recentes publicações, tem
dirigido seu interesse para compreender como
funcionava, para os chineses, o problema dos ciclos
históricos. Note-se que a questão já foi objeto de estudo
de vários pesquisadores da área da Sinologia, mas
raramente ela é abordada pelos teóricos da História, cuja
insistência em negá-la reproduz infindavelmente o ciclo
de exclusão.

Conclusões possíveis

Nunca ouviu falar do sapo na fontezinha? O sapo disse


à tartaruga do Mar Oriental - "Que vida boa a minha!
Pulo até a ribanceira que cerca a fonte e vou descansar
no buraco de alguns tijolos. Nadando, flutuo sobre os
sovacos, pondo meu queixo justamente fora d'água.
Mergulhando na lama, enterro meus pés até as curvas e
nenhum dos mariscos, caranguejos ou rãs que vejo ao
meu redor, conseguem fazer o mesmo. Além disso,
morar em tal charco sozinho e possuir o recanto da
nascente - ser feliz como ninguém mais pode sê-lo. Por
que não vem visitar-me?"- Ora, antes que a tartaruga
do Mar Oriental tivesse descansado no chão a perna
esquerda, o joelho direito já tinha se enterrado
profundamente na lama e ela o retirou depressa,
recuando e pedindo desculpas. Contou depois ao sapo

257
muita coisa sobre o mar, dizendo - "Mil pé não dariam
para medir sua largura, nem mil braças darão para
medir-lhe a profundidade. Nos dias do Grande Yu
havia nove anos de cheia, em dez: porém isso nada
acrescentava a ele. Nos dias de Tang, havia sete anos
de seca, em oito; porém isso não fazia com que suas
praias recuassem. Não ser atingido pelo perpassar do
tempo e nem sofrer pelo aumento ou pela diminuição
d'água - tal é a grande felicidade do Mar Oriental".
Ante essa narração, o sapo da fonte ficou
profundamente surpreso e sentiu-se muito pequeno,
como alguém que se tivesse perdido.
(Zhuangzi, cap. 7)

Para concluirmos esse ensaio, nunca é demais lembrar


essa conhecida História chinesa. O sapinho, no fundo
de seu poço, desconhece todo o restante. Ele acreditava
que tudo que precisava se circunscrevia ao mundo na
qual vivia. Mas vem a tartaruga revelar que há um
mundo maior lá fora. Como sábio de Platão, que tenta
salvar os homens de sua caverna mental, a tartaruga
buscava salvar o sapinho de seu desconhecimento.
A analogia parece pertinente a questão do ensino
de História asiática em nosso país. Temos um imenso
conjunto de fatores imediatistas para justificar essa
postura: o crescimento das economias asiáticas, a
retomada de seu papel protagonista no mundo atual, o
intenso fluxo das migrações, que põe em atrito as mais
258
diversas culturas... Mas, como historiadores e
educadores, estamos preparados para dar resposta a
alguma dessas questões? Como vimos, a questão de
estudar os ‘Orientes’ no Brasil emperra-se por um
triângulo pernicioso, formado pela falta de liberdade de
pensar, pelo desconhecimento e, por fim, por visões
conservadoras e excludentes de compreensão histórica.
Não parece difícil compreender esse panorama, tanto
quanto ele parece redundante; mas urge modificá-lo.
A ignorância representa um custo pesado em
termos de formação humana. Todo e qualquer discurso
relacionado ao desenvolvimento histórico das
civilizações precisa compreender a necessidade de
ampliar seus horizontes, englobando as culturas asiáticas.
Civilizações como Índia e China continuam a
representar, para o pensamento brasileiro, importantes
oportunidades epistemológicas. E assim posto, é preciso
então por mãos à obra, e dar continuidade a esse longo,
enriquecedor e indispensável processo de aprendizado.

Referências
ARMESTO, Felipe. Milênio – uma história de nossos
últimos mil anos. Rio de Janeiro: Record, 1999.
BALL, W. Rome in the East: the transformations of
Empire. London, Routledge, 2000.

259
BUENO, André.. Rotas do Mundo Antigo. Dissertação
de Mestrado, UFF, 2002.
BUENO, André. A justa medida em Confúcio e
Aristóteles. Tese de Doutorado, UGF, 2005.
BUENO, André. Um Buda Chinês para os romanos.
Revista Mirabilia ars v.2, 2015/1
COEDES, George. Textes d'auteurs grecs et latins
relatifs à l'Extrême-Orient depuis le IVe siècle av. J.-C.
jusqu'au XIVe siècle. Nova Iorque: Ares, 1977. (original,
Paris, 1910)
FERGUSON, Niall. Oriente x Oriente. São Paulo:
Planeta, 2012.
FRANK, Andre Gunder. ReOrient: global economy in
the Asian Age. Berkeley: University of California Press,
1998.
FREYRE, Gilberto. China Tropical. Brasília: UNB,
2003.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1977.
GOODY, Jack. O roubo da História. São Paulo:
Contexto, 2009.
GRANET, Marcel. A Civilização Chinesa. Rio de
Janeiro: Ferni, 1979 (original: 1929)
HIRTH, Friederich. China and the Roman Orient.
Chicago: Ares, 1975. (original, 1875)

260
HOBSON, John M. The Eastern Origins of Western
Civilization. Cambridge: Cambridge University Press,
2006.
JOPPERT, Ricardo. O alicerce cultural da China. Rio
de Janeiro: Avenir, 1979.
JULLEIN, François. O diálogo entre as culturas. Rio de
janeiro: Zahar, 2009.
LARRE, Claude. A percepção empírica do tempo e a
concepção da história no pensamento chinês.. In
RICOUER, Paul (org.) As culturas e o tempo. São
Paulo: Vozes, EDUSP, 1975.
LeGOFF, Jacques. A História Nova. São Paulo: Martins
Fontes, 1990.
LeGOFF, Jacques. História: novos problemas. Rio de
janeiro: Francisco Alves, 1979.
LISBOA, Henrique. A China e os chins. Rio de janeiro:
Funag, 2016. (original, 1880)
LIU, Xinru. The silk road in world history. Oxford:
Oxford University press, 2010.
LLOYD, G. Principles and Practices in Ancient Greek
and Chinese Science. Londres: Routledge, 2006.
McLAUGHLIN, R. Roma e o Oriente distante. São
Paulo: Rosari, 2012.
McLAUGHLIN, R. Rome and the distant East.
London: Continuum, 2010

261
MITTAG, A. & MUTSCHLER, F. Conceiving the
Empire: China and Rome Compared. Oxford, Oxford
University Press, 2008.
NEEDHAM, Joseph. Science and civilization in China.
Cambridge: Cambridge University Press, 1954-2015, 7
volumes (a coelção continua em produção)
OBENGA, Theóphile. La philosophie africaine de la
période pharaonique. L’Harmattan, 1990.
PANIKKAR, Raimon Sobre El Dialogo Intercultural.
Esteban: Salamanca, 1997
PANIKKAR, Raimon. Tempo e História na tradição da
Índia. In RICOUER, Paul (org.) As culturas e o tempo.
São Paulo: Vozes, EDUSP, 1975.
PNIKKAR, K. A dominação Ocidental na Ásia. Rio de
janeiro: Paz e Terra, 1977.
RUSEN, Jorn & HUANG, Chun (org.) Chinese
Historical Thinking: An Intercultural Discussion.
Vandenhoeck & Ruprecht e National Taiwan
University Press, 2015.
SAID, Edward. Cultura e Imperialismo. Rio de janeiro:
Companhia das Letras, 1995.
SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção
do Ocidente. Rio de Janeiro: Companhia das Letras,
1998.

262
SCHEIDEL, W. (org.) Rome and China: Comparative
Perspectives on Ancient World Empires. Oxford,
Oxford University Press, 2009.
SCHEIDEL, W. (org.) State Power in Ancient China
and Rome. Oxford, Oxford University Press, 2014.
UNESCO. History Of Civilizations of Central Asia.
Unesco, 1999-2002. In:
http://www.unesco.org/new/en/social-and-human-
sciences/themes/general-and-regional-histories/history-
of-civilizations-of-central-asia/
VANDERMEERSCH, L. Vérité historique et langage
de l'histoire en Chine in Extreme Orient, Extreme
Occident. V.9, n.9, 1987.
WOOLF, Greg. “World Religion and World Empire in
the Ancient Mediterranean” In CANCIK, Hubert e
RUPKE, Jorg (orgs.) Die Religion des Imperium
Romanum. Tubingen: Mohr Siebeck, 2009, p. 19-34
YOUNG, G. Rome’s Eastern Trade. London,
Routledge, 2001.
ZHUANGZI, in LIN, Yutang. Sabedoria de China e
Índia. Rio de Janeiro: José Olympio, 1958.

263
264

Você também pode gostar