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na Atenção Básica
Research Gestures: Repercussions of a Mental Health Intervention Within Primary Health
Care
Gestos Investigativos: Resonancias de una Intervención en Salud Mental en la Atención Primaria
atenção básica (inicialmente não tivemos oportunidade de estar com os gestores para
usuários) interessados no tema. Nessa também trazer suas reivindicações.
aproximação inicial com a gestão, parecia O brilho nos olhos daqueles
tudo muito organizado na saúde do trabalhadores, tomados por uma alegria
município. Viu-se logo que não era. paradoxal diante das precariedades,
Gestores atrasados, dificuldades em encontrava-se com nossas pupilas agora
conseguir local, ar condicionado quebrado, dilatadas e saltitantes. Tomávamo-nos de
pesquisadores levemente despreparados, brilho e perdíamos a noção do tempo,
um tanto ansiosos e preocupados com o estendendo-nos além do relógio nesse
peso das expectativas. Mas, início de conversa. Sentíamos nuances da
surpreendentemente, a sala começou a se potência dos movimentos simples no
encher de trabalhadores, os gestores encontro, com olhares e suores trocados
também foram se chegando. Alternavam- diante do ar condicionado quebrado, que
se queixas de colegas, de sofrimento, com nos forçavam a transbordar fluídos.
desejos de cuidar, de pensar, de desfazer as Aquecíamos movimentos, pesquisadores-
durezas tão conhecidas da saúde. Falas trabalhadores-gestores, criando uma
sensíveis, contando de pessoas atmosfera que acolhesse novos possíveis.
acompanhadas, um suicídio não evitado, Abriríamos espaço para a fuga de devires
tristezas e alegrias. Falavam de possíveis que borbulhavam diante dos olhos
caminhos do cuidado, de um bom curso de encontrados e dos corpos inquietos?
formação que ampliou o horizonte. Nós, Queriam sair, furar os frequentes
contagiados por tamanho desejo dos engessamentos tão entediantes e
trabalhadores de se reunirem sem uma protocolares das reuniões no campo da
funcionalidade tão definida, empolgados, saúde, os termos endurecidos e os tempos
víamo-nos diante dos embates entre de fala demarcados? Essas movimentações
inúmeros agentes comunitários de saúde, faziam-nos sentir vivos na pesquisa,
algumas poucas médicas, enfermeiros, voltando a perceber o corpo saltitante,
técnicos de enfermagem e gestores. vibrátil, que quer experimentar, criar, fazer
Queríamos, de alguma forma, valorizar conexões (Rolnik, 2006). Encontro
todas as posições, falas, tudo acolher em paradoxal, marcado por falas sobre as
meio a alguns debates e cobranças sutis precárias condições de trabalho diante das
que se insinuavam nas vozes dos diferentes imensas dificuldades e sofrimentos vividos
atores. As equipes pareciam aproveitar a por usuários, trabalhadores e gestores, e
que mostravam a potência de estarem ali,
porque o barulho é muito alto. Aqui ainda espaço, ouvíamos também de uma
é Brasil colônia. (Trecho da fala de uma
trabalhadora-moradora sobre os efeitos da
trabalhadora em um dos grupos focais).
construção de Alvorada que, em sua
história, tentou atrair empresas e fábricas,
Sentimos o peso da referência
cedendo suas áreas públicas. Os modos
esperada em relação às unidades de saúde
solitários de habitar a cidade, a
como porta de entrada resolutiva de uma
fragmentação, a privatização e a
determinada área adstrita. Centro. Ponto de
interiorização das vivências mostravam-
apoio importante (senão o único) em um
nos as dificuldades que articulam tão
cenário de carências, pobrezas e violências
fortemente subjetividade, cidade e
característico da cidade, contrastando com
modernidade, como afirma Rodrigues
a acolhida e o vínculo percebidos na
(2009).
unidade. Entre ruídos insistentes nas
Deste modo, diante da centralidade
portas, desfocamos os objetivos
das unidades e da carência da convivência
pesquisantes, fazendo do corpo inteiro
social, percebíamos o desafio de produzir
ouvidos e incrementando a
saúde mental, encontrando-nos com a
heterogeneidade de elementos, ao sermos
loucura também enclausurada na patologia,
perpassados por fluxos dispersos que
estigmatizada, desconectando corpo e
evidenciam a articulação entre saúde
mente, adoecimento e território, na qual o
mental, subjetividade e os territórios
corpo orgânico merece tratamento, sem
geográficos, carentes e afetados pelas
uma possível escuta aos percursos do
proximidades. Experimentávamos a
usuário e seus laços para com o social. Por
complexidade de realizar um serviço dito
outro lado, paradoxalmente, atravessavam-
primário, supostamente simples e básico.
se práticas de cuidado afetivas e
Entremeavam-se questões sociais e
aproximadas, permeadas pelos modos de
de saúde, mesmo com as segmentações
vida na comunidade, com as dificuldades e
frequentes de campos e de serviços, em
as potencialidades de inventar uma vida.
misturas trazidas também nos Grupos
Em análises conjuntas com trabalhadores e
Focais com usuários que clamavam a falta
usuários, conversávamos sobre os
de espaços para brincar e de lazer, ao
adoecimentos depressivos e suas alianças
mesmo tempo em que percebaim as
com a ausência de espaços que
agitações hiperativas de crianças e o uso
favorecessem os encontros no bairro,
abusivo de drogas, aliado ao tráfico, como
marcados também pela insegurança de
caminho recorrente dos jovens. Em outro
circular pelas ruas. Assim, a patologização
diferentes atores. Entre elas, a fala inquieta muitas vezes com suas potencialidades
de uma usuária reverbera: deslegitimadas, colocando em discussão a
coprodução de sujeitos e a cogestão do
“Como vou me apropriar da minha saúde cuidado (Cunha & Campos, 2010; Brasil,
se eu não recebo a bula do medicamento
2009). Em meio aos coletivos da pesquisa,
psiquiátrico? Se eu não conheço o
exercícios sutis de autonomia eram
medicamento, como vou saber se aquilo
que estou sentindo se deve ao efeito do possíveis, clamando por novas
remédio ou a outra questão de saúde?” grupalidades. Fronteiras identitárias se
(Trecho de um diário de campo do evento faziam mais porosas diante das
final).
flexibilidades nesses encontros inéditos,
marcados por corpos interessados, mas
Ao interrogar o porquê de não
mantendo as singularidades.
receber a bula do medicamento quando
Nesse sentido, buscávamos fazer do
retirado na farmácia do SUS, sua fala
evento final da pesquisa não apenas um
colocava-se como um ato. Gestos
espaço oficial, mas sim aberto às
questionadores quebravam alguns
informalidades que conectam sujeitos.
engessamentos e borravam fronteiras entre
Assim, junto às falas formais, éramos
atores no grande salão em roda, trazendo a
transversalizados pela cultura produzida
discussão sobre autonomia e gestão
nas unidades de saúde, pelo
compartilhada do cuidado. Quem é gestor
compartilhamento de experiências e por
do cuidado? O prescritor do medicamento?
uma grande roda de conversações no
Que lugar é esperado do usuário?
imenso salão, em que todos escutavam e
Questionavam-se os entraves para o
muitos queriam falar. Buscávamos
autocuidado, suspendendo estereótipos
instaurar uma conversa múltipla e
loucos, que aos usuários em saúde mental
perpassada por fluxos heterogêneos no
atribuem apenas desrazão, e ampliando o
sentido trazido por Deleuze e Parnet
campo de possíveis relações entre usuários,
(1998), mas, diante da grandiosidade,
trabalhadores, gestores e pesquisadores.
temíamos não conectar diversidades,
O questionamento sobre autonomia
apreensivos sobre os efeitos possíveis das
abria brechas para reconhecermos
metodologias escolhidas para conversar.
diferentes protagonistas em um cuidado
Atentávamos aos imprevistos e
em rede, descentrado. Disparava a
improvisos, diante das responsabilidades e
legitimação de outros atores-cuidadores,
pesquisadores diluídos em meio ao grupo
usuários e profissionais de nível médio,
organizador. Rodamos, agenciando afetos,
falas, silêncios, arte, cuidado e pesquisa, categoria que dizia do cuidado afetivo,
afirmando a coexistência de heterogêneos vinculado e assumindo a coordenação do
entremeados em uma experimentação cuidado. Onde caberia este ponto da
comum. Junto a essas intensidades e análise? Parecia estar em todos os campos,
empolgação que tomava o encontro entre esparramando-se na rede de falas e
os atores da rede, construímos também um vivências. Esgarçavam-se demarcações
relatório das principais demandas e científicas, embaralham-se agrupamentos e
questões levantadas em relação à saúde categorias.
mental na atenção básica no município a Ao acolhermos fluxos
partir desses debates. imprevisíveis em meio às categorizações,
aproveitando as dúvidas, evidenciávamos o
Sobre Considerações Pesquisantes Nada paradoxo das práticas de cuidado e
Finais percorríamos o desafio de não cair na
armadilha de encerrar em uma significação
Diante da complexidade de tais linhas que tentam fugir. A mesma prática,
encontros, percebíamo-nos capturados, por por vezes, fazia-se em um encontro
vezes, por nossa necessidade pesquisadora potente, produtor de singularidades e
de tudo significar, submetendo as novos caminhos e, em outros, parecia
vivências em campo ao nosso modo apenas reforçar a imitação de uma vida que
instituído de relação acadêmica. Nos não lhes pertencia, padronizando modos de
exercícios de análise, instituímos trabalhar, de cuidar e de ser paciente.
categorias e agrupamentos, tentando Incômodo por não conseguir traduzir e
organizar a multiplicidade desse tempo de significar, alternado com o encantamento
imersão, mas também encerrando sentidos. diante da multiplicidade, riqueza e
Temíamos perder as identidades conexões. Necessidade de inventar.
pesquisadoras. Entretanto, enchemo-nos de Buscando modos de expressar,
dúvidas, diante das brechas abertas. encontramo-nos com Mia Couto (2009)
Quando a prática de um médico, por que nos apresenta um caminho possível:
exemplo, centralizava em si o cuidado de “Mas na verdade, meus amigos, é que
um grupo, mas mantinha vínculo e afeto nenhum escritor tem ao seu dispor uma
com os usuários (que se sentiam cuidados língua já feita. Todos nós temos de
em princípio), não sabíamos exatamente o encontrar uma língua própria que nos
quanto se enquadrava em uma prática revele como seres únicos e irrepetíveis”
especialista, hierárquica e tutelar ou (p.25). Advoga, ainda, por um ser plural,
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