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A (IN)VISIBILIDADE DO SUJEITO NEGRO EM URIAH’S WAR, DE ANDREA

LEVY

RESUMO: Este artigo tem por objetivo analisar a (in)visibilidade do sujeito negro na
literatura inglesa tendo como corpus o conto Uriah’s War, de Andrea Levy. A análise
focaliza-se na participação de dois soldados do BWIR durante a Primeira Guerra
Mundial em busca por reconhecimento e glória. Utilizando os estudos de Hall (2006),
Ashcroft (2001, 2004) e Smith (2004), dentre outros, os resultados mostram que, apesar
de invisibilizados pela história, os soldados negros contribuíram para a vitória britânica
sobre os inimigos.

PALAVRAS-CHAVE: Invisibilidade; Sujeito negro; História; Andrea Levy.

BLACK SUBJECT’S (IN)VISIBILITY IN URIAH’S WAR, BY ANDREA LEVY

ABSTRACT: This paper analyzes the black subject’s (in)visibility in English literature
having as its corpus Andrea Levy’s short story Uriah’s War. The analysis focuses on
the participation of two BWIR soldiers during World War I in their quest for
recognition and glory. With the studies of Hall, Ashcroft and Smith, among others, the
results show that although they were invisible by the history, black soldiers contributed
to the British victory over enemies.

KEYWORDS: Invisibility, Black man; History; Andrea Levy.

INTRODUÇÃO

O apagamento do negro no fazer das sociedades não é uma mera conjectura.


Embora as mãos dos povos escravizados da África permearam quase todas as atividades
laborais durante séculos de escravidão, sua figura é hifenizada ou mesmo invisibilizada
desse fazer. Ao mencionarmos o negro, quase sempre remontamos seu papel na
escravidão, e não sua contribuição involuntária no desenvolvimento e na construção
identitária das sociedades em que atuou. Não bastasse esse apagamento, o negro
também foi e ainda é invisível no fazer histórico. Reconhecemos que a história não está
desatrelada ao desenvolvimento social, ao contrário, ambos caminham juntos, porém,
acontecimentos tidos como irrelevantes não são retratados por ela, ficando ao seu cargo
os grandes feitos realizados pelo homem, não incomum, branco.
Pensando na história enquanto recipiente do arquivamento da memória coletiva
e individual, quando indivíduos, principalmente aqueles que exercem influência sobre
outros, não reconhecem certos acontecimentos e feitos, essa mesma história deixa,
também, de sinalizar tal relevância. Será que nossa memória coletiva realmente
reconhece a injustiça cometida contra os sujeitos negros durante os vários séculos de
escravidão, violência e marginalização a que foram submetidos? Será que atualmente
conseguimos compreender que grande parte das riquezas das sociedades foi adquirida
por meio de uma destruição maciça dos povos e culturas da África?
Por outro lado, adentrando na ceara da história enquanto disciplina acadêmica,
se ela não documenta certos acontecimentos ou se faz uma seleção de apenas alguns
fatos, excluindo outros, como os indivíduos vão concebê-los como relevantes? Parece
que estamos diante de uma questão insolúvel, no entanto, não devemos demonizar a(s)
história(s), pois elas são guiadas pela ação da humanidade. Até que ponto o historiador
está fadado a sua condição humana, portanto, falha?
Apesar de levantarmos tais questionamentos a respeito da problemática em torno
da história, vale refletir o nosso presente que deixa vislumbrar um fio de esperança para
a igualdade de todos perante à sociedade, como observa Candido:

[...] somos a primeira era da história em que teoricamente é possível


entrever uma solução para as grandes desarmonias que geram a
injustiça contra a qual lutam os homens de boa vontade à busca, não
mais do estado ideal sonhado pelos utopistas racionais que nos
antecederam, mas do máximo viável de igualdade e justiça, em
correlação a cada momento da história. (CANDIDO, 2011, p. 170).

Se por um lado caminhamos em direção à essa igualdade, em se tratando do


negro, temos, ainda hoje, as consequências de sua escravização muito perenes subscritas
na sociedade. As populações negras, atualmente dispersas no mundo, ainda vivem de
forma invisível e marginal: ou estão em situação de extrema pobreza, como em muitos
países africanos, ou vivendo do trabalho árduo que não é mais escravo, mas que também
não lhes garante um sustento digno, conforme analisa Hall (2006, p. 61): “Em termos
gerais, a maioria se concentra na extremidade inferior do espectro social de privação,
caracterizada por altos níveis relativos de pobreza, desemprego e insucesso”. Entretanto,
o resgate da figura do negro enquanto indivíduo e não mais um produto ou um objeto
valioso, mas descartável, vem ganhando espaço dentro das mais variadas esferas em que
o homem atua: nas artes, nos esportes, na academia e seus círculos de produção de
conhecimento.
A história vem sendo reescrita a partir de novos relatos e vozes periféricas que
insurgem contra o discurso hegemônico avesso à diferença. Se ela, como argumenta
Fanon (1968), é feita pelo colonizador, cabe ao colonizado inscrever sua história de
descolonização no ideário do mundo. Aos poucos, as vozes silenciadas vão se
espalhando na tentativa de descontruir a imagem do negro criada e perpetuada pelo
branco. Relatos de ex-escravizados, slave-narratives ou testimonios de sua vivência
sofrida e sua produção literária, avançam à medida em que são descobertos e publicados
nas mais variadas mídias. Também, a paródia e a reescrita, duas importantes estratégias
de resistência da literatura pós-colonial, contribuem para a desconstrução do
pensamento segregacionista e hierarquizante do sujeito negro. A história se reconstrói,
seja por meio de fatos narrados pelos sujeitos marginalizados, seja por meio da ficção.
Sobre isso, Ashcroft et. al afirmam que é necessário lermos essas vozes antes sufocadas,
pois:

The symptomatic readings […] serve to illustrate three important


features of all post-colonial writing. The silencing and marginalizing
of the post-colonial voice by the imperial centre; the abrogation of this
imperial centre within the text; and the active appropriation of the
language and culture of that centre. These features and the transitions
between them are expressed in various ways in the different texts,
sometimes through formal subversions and sometimes through
contestation at the thematic level. In all cases, however, the notions of
power inherent in the model of centre and margin are appropriated and
so dismantled.1 2 (ASHCROFT et. al, 2004, p. 82).

1
Todos os trechos sem correspondência para a língua portuguesa foram traduzidos pelos autores.
2
As leituras sintomáticas [...] servem para ilustrar três características importantes de toda a escrita pós-
colonial. O silenciamento e marginalização da voz pós-colonial pelo centro imperial; a revogação deste
centro imperial dentro do texto; e a apropriação ativa da língua e cultura desse centro. Esses traços e as
Deste modo, o objetivo desse artigo é analisar a (in)visibilidade do negro na
literatura tendo como corpus o conto Uriah’s War, da escritora britânica Andrea Levy;
para tanto, temos como base teórica os estudos de Ashcroft (2001, 2004), Hall (2006),
Smith (2004), dentre outros. O conto, que se insere no livro Six Stories and an essay,
publicado em 2014, narra a trajetória de dois soldados jamaicanos que lutaram na
Primeira Guerra Mundial e que mimetizam a vivência de muitos outros soldados
negros. Buscamos, ao final, ilustrar que apesar de invisível para a história, o sujeito
negro participou ativamente dos eventos dessa guerra.

Levy e o Resgate do Papel do Negro no Fazer Histórico

Andrea Levy (1956-2019) foi filha de imigrantes jamaicanos que se mudaram


para o Reino Unido em 1948 a bordo do SS Empire Windrush, o primeiro navio
caribenho a levar para a metrópole uma quantidade substancial de negros civis que
procuravam por novas oportunidades na pátria mãe. Dois de seus romances foram
premiados nas esferas literárias internacionais, The long song (2010), um testimonio
ficcional da vida de uma escravizada em meio às batalhas pelo fim da escravidão na
Jamaica, e Small Island (2004), romance que narra a vida de um casal jamaicano que se
muda para o Reino Unido após a Segunda Guerra Mundial e entrecruza sua vida com a
de um casal britânico.
Nos dois romances percebe-se a tentativa da autora em descrever momentos
históricos cruciais que tiveram a participação ativa dos negros. Em The Long Song,
Levy reescreve a trajetória dos negros que se rebelam em prol de sua liberdade,
cansados de esperar por políticas públicas que os resgatassem de sua existência
miserável, resultando na abolição da escravidão na Jamaica. Em Small Island, o
protagonista jamaicano Gilbert é convocado para lutar na Segunda Guerra Mundial e se
decepciona com o modo como os negros eram segregados dos soldados brancos, mesmo
não sendo mais escravizados. A protagonista Hortense, sua esposa jamaicana, vai para o
Reino Unido a bordo do navio SS Empire Windrush para lecionar, mas acaba por
compreender que as únicas posições que poderia ocupar eram aquelas invisíveis aos
olhos dos brancos, como a de babá ou a de faxineira.
Na introdução do livro Six Stories and an essay, há uma descrição do fazer
literário de Levy. A própria autora diz: “‘None of my books is just about race.’ [...]
They’re about people and history.’”3 (LEVY, 2014, s/p); ela complementa dizendo que
seus romances “have triumphantly given voice to the people and stories that might have
slipped through the cracks in history.”4 (LEVY, 2014, s/p). Sobre o livro, o jornal The
Irish Times comenta que:

The short stories are almost perfunctory but they too give a
disconcerting glimpse into events that have the power to move. Of
particular note are Loose Change and Uriah’s War; the first a clever
and honest look at contemporary attitudes to ‘migrants’ and the
second recalling the forgotten story of West Indian troops during the
first World War.5 (THE IRISH TIMES, 2015, online, s/p).

transições entre eles são expressos de várias maneiras nos diferentes textos, ora através de subversões
formais e ora através de contestação no nível temático. Em todos os casos, no entanto, as noções de poder
inerentes ao modelo de centro e margem são apropriadas e desmanteladas.
3
Nenhum dos meus livros é apenas sobre raça. [...] Eles são sobre pessoas e a história.
4
triunfantemente deram voz às pessoas e estórias que podem ter escapado através das rachaduras da
história.
Levy faz uma breve introdução ao conto Uriah’s War para alertar os leitores de
que, apesar de seu conhecimento da história da Jamaica, ela não sabia que seu avô havia
lutado na Batalha de Somme, mais conhecida como Ofensiva de Somme, travada entre
julho e novembro de 1916, ao norte da França. Considerada uma das maiores batalhas
da Primeira Guerra Mundial, tratou-se de uma ofensiva anglo-francesa cujo objetivo
era romper as linhas de defesa alemãs, estacionadas na região do Rio Somme, na
França. As baixas foram elevadíssimas para ambos os lados, sobretudo para o Reino
Unido, principalmente pelo fato de o objetivo não ter sido atingido.
O que, no entanto, a história não conta, é que muitos jamaicanos fizeram parte
dessa ofensiva, servindo voluntariamente ao Reino Unido por meio do Regimento
Britânico das Índias Ocidentais (doravante BWIR). Provavelmente eles não combateram
na linha de frente, mas ajudando a suprir as necessidades básicas dos combatentes. Por
isso, esquecidos. Assim, baseando-se na experiência vivenciada por seu avô, Levy
escreve o conto Uriah’s War, paródia da história de muitos soldados do BWIR.

Uriah’s War e a (In)Visibilidade do Negro

Em uma tentativa de resgatar o papel dos negros que lutaram na Primeira


Guerra Mundial, Levy mostra a trajetória de dois soldados jamaicanos, Uriah e Walker,
que se aventuraram a lutar pelo Império Britânico em busca de reconhecimento por sua
bravura e patriotismo. O conto se trata de uma paródia, estratégia utilizada pelo escritor
pós-colonial para contar a trajetória ou uma narrativa canônica com outro olhar e viés, o
dos emudecidos e invisíveis. Na introdução do conto, Levy argumenta que:

The centenary of the outbreak of World War One made me want to


add the experience of West Indian troops to the record. The more I
researched, the more I was struck by the patriotism and courage of the
West Indian men who volunteered to fight for the British Empire. This
story is inspired by the experiences of soldiers of the 1st Battalion of
the BWIR who fought in Palestine and Egypt. Their contribution must
not be overlooked.6 (LEVY, 2014, p. 111).

Observamos que Levy compreende a invisibilidade desses sujeitos durante a


referida guerra e procura, ficcionalmente, integrá-los ao movimento histórico deixado
apenas aos soldados brancos. A autora, ainda na introdução, faz referência ao livro
Jamaican Volunteers in the First World War: Race, Masculinity and the Development
of a National Consciousness (2004), de Richard Smith, que a ajudou a ter certeza de que
a participação dos jamaicanos na guerra foi real. No livro, Smith comenta que muitos
soldados jamaicanos mantinham ideais alinhados ao pensamento do Império mesmo
passando por situações de racismo diariamente:

5
Os contos são quase superficiais, mas também dão uma visão desconcertante de eventos que têm o poder
de movimentar. Merecem destaque Loose Change e Uriah’s war; o primeiro, um olhar inteligente e
honesto sobre as atitudes contemporâneas em relação aos “migrantes” e o segundo, relembrando a história
esquecida das tropas das Índias Ocidentais durante a Primeira Guerra Mundial. Disponível em:
https://www.irishtimes.com/culture/books/six-stories-and-an-essay-by-andrea-levy-1.2446157 . Acesso
em: 04. Dez. 2020.
6
O centenário do início da Primeira Guerra Mundial me fez querer registrar a experiência das tropas das
Índias Orientais. Quanto mais eu pesquisei, mais fiquei impressionada com o patriotismo e a coragem dos
homens [das tropas das Índias Orientais] que se voluntariaram para lutar pelo Império Britânico. [...] Sua
contribuição não pode ser esquecida.
Loyalty to abstract British ideals, as opposed to concrete experience,
particularly equality before the law, suffrage and land rights, had been
a central feature of pro-British sentiment among Africans and Indian
migrants during the South African War. Such ideals, much vaunted by
British leaders at the time, and existing limited rights as British
subjects, stood in stark contrast to fears of dispossession under a Boer
regime. Many Jamaican volunteers adopted a similar approach by
continuing to maintain an enthusiasm for the ideals of Empire, despite
experiencing daily racism.7 (SMITH, 2004, p. 40).

Por meio de um discurso paternalista e sensível aos ouvidos dos caribenhos,


sedentos de empregos, reconhecimento e desejo de esquecer o passado escravocrata a
eles imposto, esses indivíduos ouviram o chamado da antiga, mas ainda muito presente,
pátria mãe:

The fond imaginings of Britain as the emancipator of slaves and the


guardian of freedom became a staple ingredient at recruitment rallies
for the Jamaica contingents. At a meeting in St Mary and St Thomas
in October 1015, Brigadier-General Blackden, commander of the
troops in Jamaica, stressed the war was a flight for liberty. Were the
men of Jamaica going ‘to sit down and be slaves’? 8 (SMITH, 2004, p.
41).

A ironia reside no fato de que essa mesma pátria mãe havia escravizado esses
sujeitos durante anos e a liberdade só foi alcançada por meio de revoltas que o povo
caribenho armou contra o domínio britânico. O benevolente Reino Unido não se sentiu
satisfeito com o fim da escravidão e domínio colonial nas colônias caribenhas, pois a
manutenção do status quo da nação dominante foi duramente ameaçado com o fim da
exploração da mão de obra escravizada.
Quando a Primeira Guerra Mundial se tornou um desafio muito maior que
esperado pelo Reino Unido, o Ministério Britânico de Guerra, que se opunha ao
alistamento das tropas das Índias Orientais, se viu obrigado a aceitar soldados das mais
variadas partes de suas ex-colônias caribenhas. Assim, o regimento BWIR foi formado,
sendo composto por dois terços de soldados vindos da Jamaica e o restante oriundos das
Bahamas, e atuando em diversas frentes na Europa, na África e no Oriente Médio. O
texto literário, entretanto, revela que, embora se dedicassem ao dever militar tanto
quanto os brancos, os soldados negros eram relegados à invisibilidade, ao esquecimento.
Neste artigo, elencamos três momentos inscritos no conto Uriah’s War em que
podemos observar como a história apagou os soldados jamaicanos da Primeira Guerra
Mundial. O conto de Levy é narrado em primeira pessoa por Uriah. O jovem soldado
jamaicano conta as aventuras e dramas vividos por ele e seu amigo, Walker, durante o

7
A lealdade aos ideais abstratos britânicos, em oposição à experiência concreta, particularmente a
igualdade perante a lei, o conflito e o direito à terra, tinha sido uma característica central do sentimento
pró-britânico entre africanos e indianos durante a Guerra da África do Sul. Tais ideais, muito elogiados
pelos líderes britânicos na época, e direitos limitados existentes como súditos britânicos, contrastavam
fortemente com os temores de desapropriação sob um regime Boer. Muitos voluntários jamaicanos
adotaram uma abordagem semelhante, continuando a manter e entusiasmar os ideais do Império, apesar
de experimentar o racismo diário.
8
A imaginação carinhosa sobre a Grã-Bretanha como a emancipadora dos escravos e a guardiã da
liberdade tornou-se um ingrediente básico em comícios de recrutamento para os contingentes jamaicanos.
Em uma reunião em St. Mary e St. Thomas, em outubro de 1915, o brigadeiro-general Blackden,
comandante das tropas na Jamaica, enfatizou que a guerra era uma luta pela liberdade. ‘Os homens da
Jamaica estavam lutando para se sentar e ser escravos’?
tempo em que serviram ao BWIR. O conto ainda é composto por um epílogo narrado
por Walker, após a morte prematura e brutal de Uriah. O início da narração já
demonstra a ansiedade dos soldados em participarem ativamente da guerra: “And we
finally got to England”9 (LEVY, 2014, p. 113), denotando que os que se alistaram
ouviram o chamado da pátria mãe e foram socorrê-la.
O primeiro momento em que percebemos hifenização dos soldados negros no
conto é quando, em um bar, um soldado branco zomba do fato de eles estarem lutando
uma guerra por um salário ínfimo: “‘Why are you going to fight in this war for only a
shilling10 a day?’”11 (LEVY, 2014, p. 113). Em uma época em que a Jamaica atravessa
um período econômico crítico, quando a falta de empregos assola a população, qualquer
dinheiro, como se vê, era bem-vindo. O narrador protagonista esclarece: “And all the
while I am thinking, a shilling is a lot of money. It took many a long time in Jamaica to
earn a shilling” 12 (LEVY, 2014, p. 114). Observa-se que a condição socioeconômica da
Jamaica era típica de nações colonizadas. O extrativismo, a exploração do solo, da mão-
de-obra e o pouco investimento em educação empobreceram as nações largamente.
Assim, a soma ínfima para o soldado inglês torna-se um atrativo para o soldado
jamaicano. Ashcroft et. al. (2001) argumentam que muitas colônias, após o fim da
escravidão e/ou sua independência, desenvolveram o que eles chamam de teoria da
dependência, a qual descrevem como um atraso no desenvolvimento industrial
provocado pelas metrópoles:

The economic rationale of colonization, by establishing colonies as


producers of raw materials and foodstuffs for the industrialized
metropolitan centres, played a major part in retarding the
industrialization and development of those regions. 13 (ASHCROFT,
et. al. 2001, p. 67).

Smith (2004) explica que após a emancipação da Jamaica em 1838, muito


pouco havia mudado em termos socioeconômicos na vida dos jamaicanos. Em 1915, o
salário recebido por um trabalhador nas plantações era praticamente o mesmo:

[…] in the years since 1838, the white minority had become more
diverse, both ethnically and occupationally, but it continued to
constitute an elite, holding economic power and privilege over the
black and brown population in inverse proportion to its size. 14
(SMITH, 2004, p. 34).

Tal descrição não se distancia em nada do que houve no Brasil após a


independência da metrópole e a abolição da escravidão. Sem políticas públicas e sociais
que amparassem legalmente os sujeitos negros, a elite branca manteve o controle sobre
os meios de produção e a economia, arrastando o país dos negros e pardos para a

9
E nós finalmente chegamos na Inglaterra.
10
Moeda que, até fevereiro de 1971, representava a vigésima parte da libra esterlina britânica.
11
‘Por que vocês estão lutando em uma guerra por um xelim por dia?’
12
E durante todo o tempo eu pensava, um xelim é muito dinheiro. Demorava muito tempo para
ganharmos um xelim na Jamaica.
13
A lógica econômica da colonização, ao estabelecer as colônias como produtoras de matérias-primas e
alimentos para os centros metropolitanos industrializados, desempenhou um papel importante no
retardamento da industrialização e desenvolvimento dessas regiões.
14
[...] nos anos desde 1838, a minoria branca tornou-se mais diversificada, tanto étnica quanto
ocupacionalmente, mas continuou a constituir uma elite, detendo poder econômico e privilégio sobre a
população negra e parda na proporção inversa de seu tamanho.
pobreza e, em muitos casos, para a marginalidade. Ainda em relação à Jamaica, Howe
(2011) acrescenta que os recrutadores, cientes das condições econômicas precárias nas
ex-colônias, utilizavam o incentivo monetário como um grande aliado:
The economic advantages of enlisting also constituted a central theme
used by recruiters in virtually every territory. In the prevailing
conditions of high unemployment, spiraling cost of living, and
depressed wages, the groups most susceptible to the economic
incentives included plantation workers, artisans and the many
unemployed of the working class in the towns. 15 (HOWE, online,
2011, s/p).

Mais tarde, após já terem passado por algumas experiências na retaguarda dos
campos de batalhas, os protagonistas descobrem que haveria um aumento no salário dos
soldados, passando de um xelim para um xelim e seis centavos por dia. Uriah e Walker
se empolgam, porém, suas expectativas de tocar naquele dinheiro são minadas ao
descobrirem que o aumento seria dispensado apenas aos soldados brancos. Enfurecido,
Walker discute o assunto com Uriah:

‘Did we not march up mountains? Freezing in our summer uniform


with no water to drink?’ he said.
‘Yes,’ I told him, ‘but we are warm and well fed at this camp.’
‘Did we not sleep nights without shelter? Bitter air benumbing us
senseless. Waking each other every hour to check for warm breath
and reason?’
‘But Walker, we are only here waiting in readiness for our ship.’
‘Did we not wrestle trucks through mud, sunk to our waists?’
‘When we disembark in Jamaica we will find a hero’s welcome.’
‘How many of us died not from combat but malaria?’
‘But come, Walker, we showed them what black men can do.’
‘Have we not been bombed, shelled and shot at for the glory of the
Empire?’16 (LEVY, 2014, p. 122-3).

A indignação do soldado é compreensível, tendo em vista que seu trabalho não


era reconhecimento como igual ao dos soldados brancos. Porém, um outro aspecto
histórico pode ser desvelado por meio das palavras enfurecidas de Walker. Dos 1200
soldados do BWIR que perderam suas vidas na guerra, cerca de 1000 morreram por
doenças contraídas nos campos de batalhas e acampamentos, dentre ela, a malária.
15
As vantagens econômicas do alistamento também constituíram um tema central usado pelos
recrutadores em praticamente todos os territórios. Nas condições prevalecentes de alto desemprego,
aumento do custo de vida e salários arrochados, os grupos mais suscetíveis aos incentivos econômicos
incluíam os trabalhadores das plantações, artesãos e os muitos desempregados da classe trabalhadora nas
cidades. A White Man's War? World War One and the West Indies. Disponível em:
http://www.bbc.co.uk/history/worldwars/wwone/west_indies_01.shtml. Acesso em 07 Dez. 2020.
16
-‘Não marchamos montanha acima? Congelando em nosso uniforme de verão sem água para beber?’,
Disse ele.
- ‘Sim’ - eu disse a ele, - ‘mas estamos aquecidos e bem alimentados neste acampamento’.
- ‘Não dormimos à noite sem abrigo? Com o ar congelante nos deixando sem sentido. Acordando um ao
outro a cada hora para verificar o hálito quente e a razão?’
- ‘Mas, Walker, estamos prontos aqui apenas esperando o nosso navio.’
- ‘Não lutamos com os caminhões na lama, afundados até a cintura?’
- ‘Quando desembarcarmos na Jamaica, seremos recebidos como heróis.’
- ‘Quantos de nós morreram não de combate, mas de malária?’
- ‘Vamos lá, Walker, mostramos a eles o que os homens negros podem fazer.’
- ‘Não fomos bombardeados, atacados e alvejados para a glória do Império?’
Segundo o Imperial War Museums17 (online, 2020, s/p), em 1916 um grupo de 500
soldados do BWIR foi lutar na África Oriental Alemã. Devido à estação chuvosa e a
localização remota, os soldados padeceram com a malária, exposição ao clima inóspito
e falta de suprimentos, como roupas e alimentos.
A conjuntura desses soldados negros é comparável à dos escravos que
trabalhavam nas plantações na Jamaica. Sob forte calor, sol, falta de alimentação
adequada e imprimindo um grande esforço físico, além de receberem castigos
frequentes, os escravos morriam sem qualquer auxílio. Ressalta-se que a mortandade
entre os nativos das colônias se deveu às doenças trazidas nos navios dos colonizadores,
sem qualquer cuidado ou higiene.
Assim, entende-se que a condição socioeconômica dos soldados caribenhos os
impeliu a se alistarem para uma guerra da qual muitos não sairiam vivos ou
recompensados financeiramente de acordo com seu empenho. Concluímos que isso se
constitui como um apagamento de sua participação na história da Primeira Guerra
Mundial, uma vez que eles não eram sequer reconhecidos tal qual eram os soldados
brancos, monetariamente falando.
O dinheiro, no entanto, não era o único motivo que levou os caribenhos a
ingressarem na guerra. O nacionalismo e o patriotismo também foram levados em
consideração e o narrador assim descreve o modo como Walker recebeu o chamado do
Rei: “He heard the King’s appeal as if whispered by His Majesty into his ears alone: I
ask you man of all classes, to come forward voluntarily and take you share in the
fight...”18. (LEVY, 2004, p. 114). Naquele momento, Walker, metaforizando muitos dos
jovens caribenhos que se juntaram à guerra, se sentiu meritório simplesmente pelo fato
de o Rei permitir que os homens negros participassem de uma guerra de homens
brancos: “You see, the Empire was our protector, that is how we thought. England was
great, sort of thing. And she was under threat” 19 (LEVY, 2014, p. 114). Observamos a
personificação da Inglaterra. Em se tratando de um país, o pronome para se referir a um
país deveria ser it, que se trata do pronome da terceira pessoa do singular, mas o termo
empregado é she, vocábulo que também tem a mesma função, mas para designar
pessoas.
A figura de linguagem não é sem razão. Durante a Primeira Guerra Mundial,
alguns poetas que estiveram no front se destacaram no cenário britânico. Em seus
poemas, a guerra foi abordada de formas diferentes: como uma maldição, como uma
ironia e até como uma grata honra. Em um de seus mais famosos sonetos, intitulado The
Soldier, Rupert Brooke, poeta e soldado britânico que lutou e morreu na guerra,
descreve a Inglaterra como uma mãe que criou e deu forma aos seus filhos. O eu lírico
indica que ao morrer em solo estrangeiro, um pedaço da Inglaterra estaria enriquecendo
aquele espaço: “If I should die, think only this of me:/That there’s some corner of a
foreign field/That is for ever England. There shall be/In that rich earth a richer dust
concealed.” (BROOKE, online, 2020, s/p)20.
Uriah e Walker, por se tratarem de dois sujeitos negros, entendem que podem ser
reconhecidos por sua lealdade à pátria mãe e, com isso, mostrarem também a
capacidade do sujeito negro, tão marginalizado em seu próprio país: “We worked
together as clerks for a manufacturer’s agent. Until he heard the call and we joined up!
17
https://www.iwm.org.uk/. Acesso em 04 Dez. 2020.
18
Ele ouviu o apelo do Rei como um sussurro de Sua Majestade apenas em seus ouvidos: Peço a você,
homem de todas as classes, que se apresente voluntariamente e o faça parte da luta ....
19
Vejam, o Império era nosso protetor, era como pensávamos. A Inglaterra era maravilhosa, esse tipo de
coisa. E ela estava sob ameaça.
20
Disponível em: https://www.poetryfoundation.org/poetrymagazine/poems/13076/the-soldier . Acesso
em 04 Dez. 2020.
Two proud volunteers for the 1st Battalion.” 21 (LEVY, 214, p. 116). Porém, o que
recebem por seu orgulho e lealdade é a indiferença das autoridades e o desprezo dos
soldados brancos: “‘Lay down your arms . . . do not fight . . . white men should fight
their own battles and black men theirs!’” 22 (LEVY, 2014, p. 114).
O segundo momento em que percebemos a invisibilidade dos soldados negros é
quando eles não são escalados para lutarem na linha de frente, mas para atuarem em
batalhões de trabalho (labour battalions). Na verdade, o fato de as tropas da BWIR
atuarem apenas nos trabalhos de segundo plano das batalhas era algo comum. De acordo
com o site Imperial War Museums, a função dos soldados caribenhos se limitava, à
princípio, a auxiliar os soldados brancos na retaguarda, realizando trabalhos variados,
porém, árduos, que muitas vezes lhes custavam a vida:

BWIR troops were engaged in numerous support roles on the Western


Front, including digging trenches, building roads and gun
emplacements, acting as stretcher bearers, loading ships and trains,
and working in ammunition dumps. This work was often carried out
within range of German artillery and snipers. In July 1917, 13 men
from the BWIR were killed by shell fire and aerial bombardment. 23
(online, 2020, s/p).

Os protagonistas expressam o desejo de serem reconhecidos como heróis de


guerra, mas o que descobrem sobre sua atuação nas batalhas lhes proporciona uma
grande frustração: “Now, who wanted to come all that way to be in a labour battalion?
Running back and forth with shells and what-and-what for the front line. No rifle, no
combat, but as likely to die. That would have been a humiliation.” 24 (LEVY, 2014, p.
117). Assim, por se tratarem de sujeitos negros, os soldados jamaicanos não eram
escalados para desempenhar funções de destaque ou lutar nas frentes de batalhas, mas
auxiliar os soldados brancos em funções consideradas inferiores no que concerne a um
batalhão de infantaria. Novamente, a invisibilidade lhes é imputada.
Sobre esse aspecto, Ashcroft et. al. (2001), ao fazerem uma leitura da teoria
sobre o subalterno da estudiosa Gayatri Spivak, comentam que o texto da autora mostra
“a warning to avoid the idea that the subaltern can ever be isolated in some absolute,
essentialist way from the play of discourses and institutional practices that give it its
voice”25 (ASHCROFT et. al, 2001, p. 79). Ao escalar os soldados negros para
realizarem trabalhos invisíveis na guerra, a possibilidade da glória, tão almejada por
soldados que se voluntariam para a guerra, lhes é usurpada. Embora a guerra não se
trate se um acontecimento que possibilite a veiculação do discurso de soldados, ela é
propagadora da agência deles. Neste caso, para a história, não foi.

21
Trabalhávamos juntos como balconistas para uma agencia de manufatura. Até que ele [Walker] ouviu o
chamado e nos alistamos! Dois voluntários orgulhosos do 1º Batalhão.
22
‘Abaixem suas armas… não lutem… homens brancos deveriam lutar suas batalhas e os negros as suas!’
23
As tropas BWIR estavam engajadas em várias funções de apoio na Frente Ocidental, incluindo cavar
trincheiras, construir estradas e posições de armas, agindo como carregadores de maca, carregando navios
e trens e trabalhando em depósitos de munições. Esse trabalho era frequentemente executado dentro do
alcance da artilharia e atiradores alemães. Em julho de 1917, 13 homens do BWIR foram mortos por tiros
e bombardeios aéreos. Disponível em: https://www.iwm.org.uk/history/the-story-of-the-british-west-
indies-regiment-in-the-first-world-war Acesso em 04 Dez. 2020.
24
Sinceramente, quem queria vir até aqui para estar em um batalhão de trabalho? Correndo para a frente e
para trás com cartuchos e sei-lá-o-que para a linha de frente. Sem rifle, sem combate, mas com
probabilidade de morrer. Isso teria sido uma humilhação.
25
um alerta para evitar a ideia de que o subalterno pode ser isolado de alguma forma absoluta e
essencialista do jogo de discursos e práticas institucionais que lhe dê sua voz.
Na trama de Levy, em contrapartida, os soldados caribenhos deixam sua posição
de invisibilidade quando são surpreendidos por um ataque no Egito e os soldados
brancos não conseguem conter o exército inimigo. São Uriah e Walker que fazem o
trabalho de combate em colaboração com os outros soldados. Isso lhes dá uma sensação
momentânea de pertencimento e igualdade:

Walker’s coolness and devotion to duty was ‘mentioned in dispatches.


And one of our officers, who had thought that black men would be no
real help in this war, declared that we had jolly well changed his mind.
Splendidly, he said we behaved, splendidly! 26 (LEVY, 2014, p. 120-
1).

Após o episódio, os soldados negros são elogiados por sua bravura e disposição
para a luta. Seus superiores reconhecem seu esforço e isso reforça ainda mais o espírito
de honra e devoção à pátria mãe: “And at the armistice we patted the backs of our
imperial comrades – from Britain, New Zealand, Australia, India, Africa – and they
patted ours. ‘From over the seven seas the Empire’s sons came…’” 27 (LEVY, 2014, p.
121). Observamos que no contexto de vitória e comemoração, os soldados negros não se
enxergam diferentes dos outros soldados. Naquele momento, eram todos camaradas,
lutando a mesma guerra. Desse modo, conclui-se que a invisibilidade dos soldados
caribenhos é solapada por sua bravura e capacidade de lutar tal qual os soldados
brancos. Entretanto, o momento de reconhecimento e autoestima não dura muito tempo,
visto que os protagonistas teriam que passar por uma situação extremamente vexatória e
desmerecedora de seu empenho, culminando em uma tragédia ainda maior.
O terceiro momento em que a ação dos negros é marginalizada e invisível na
Primeira Guerra Mundial ilustrada no conto é quando, ao retornar para o campo base,
eles não recebem aumento de salário como todos os outros soldados brancos e, ainda,
precisam limpar as latrinas de seus colegas brancos. Após o armistício, Uriah e Walker
são enviados para Taranto, na Itália, para esperarem um navio que os levaria de volta à
Jamaica. Levy elenca em seu conto um fato histórico ocorrido no mês de dezembro em
Taranto envolvendo os batalhões do BWIR. Em 1918, o tenente-coronel Willis ordenou
que os soldados do BWIR limpassem a latrina dos soldados italianos. Ultrajados com a
demora em serem dispensados e enviados para seus países, pela falta de suprimentos,
por receberem salários menores que os dos soldados brancos e por terem que limpar as
latrinas, os soldados negros organizaram um motim. Naquele cenário, um dos soldados
foi baleado e morto.
Na ficção de Levy, os dois protagonistas, indignados com o fato de serem
convocados a limparem as latrinas dos homens brancos, decidem comunicar sua não
conformidade com as ordens absurdas. Walker, prezando pelo respeito e educação,
explica a situação, mas em retorno recebe a seguinte razão pela qual os soldados negros
deveriam fazer o que foi ordenado: “He could order us to do whatever work he pleased.
And then this sergeant, this sergeant, he shout [sic] on Walker that we were better fed
and treated than any nigger had a right to expect.” 28 (LEVY, 2014, p. 124). O racismo
26
A frieza e a devoção de Walker ao dever foram “mencionadas em despachos”. E um de nossos oficiais,
que pensava que os negros não seriam uma ajuda real nesta guerra, declarou que tínhamos mudado sua
opinião muito bem. Esplendidamente, ele disse que nos comportamos, esplendidamente!
27
E no armistício, demos tapinhas nas costas de nossos camaradas imperiais - da Grã-Bretanha, Nova
Zelândia, Austrália, Índia, África - e eles deram tapinhas nas nossas. ‘Dos sete mares vieram os filhos do
Império...’
28
Ele poderia ordenar que fizéssemos qualquer trabalho que ele quisesse. E então esse sargento, esse
sargento, gritou para Walker que éramos mais bem alimentados e tratados do que qualquer preto tinha o
direito de esperar.
explícito na palavra nigger juntamente com o trabalho injusto imputado aos soldados do
BWIR enfurece Walker que usa da violência como revide. Após atacar o sargento,
Walker é agarrado por vários homens que o jogam ao chão e o tratam com violência
também:
Four white men then seized Walker. Threw him to the ground. Knelt
on him. On his back. On his legs. His face was rubbing in the dirt.
And he was struggling to fight them fierce. While the sergeant yelled
on us black men that niggers should expect no more than this! 29
(LEVY, 2015, p. 124-5).

O episódio de racismo e discriminação não termina com a apreensão de Walker


e os insultos do sargento. Após ser capturado, Walker é acorrentado: “My friend who
was once mentioned in dispatches for his coolness and devotion to duty is shackled in
fetters like a... Like a slave.”30 (LEVY, 2015, p. 125). A punição a Walker, análoga à
escravidão, é revoltante, pois demonstra que os soldados negros não só eram
invisibilizados como também percebidos como não sujeitos, subalternos e passíveis de
receberem os piores castigos oriundos dos tempos da escravidão.
Observa-se que o legado da colonização escravocrata estava presentificado
durante a Primeira Guerra Mundial. Apesar de serem aceitos como soldados na guerra,
os negros não recebiam o mesmo tratamento que os soldados brancos. O binarismo que
permeou toda a prática colonizadora possuía raízes muito profundas no ideário do
branco, como argumenta Howe:

Even though there was a high degree of standardisation and


regularisation in the disciplinary code structure of the army,
inequalities in attitudes towards and treatment of the different races,
classes and ethnic groups did exist. Major problems of discrimination
were to be found in the practical application of army regulations in an
environment in which stereotypes of race and class were prevalent.
Even though the army structure and system of accountability did in
many instances eventually vindicate the rights of all soldiers,
adjustment into army life was usually more difficult and precarious for
the black soldier than for his white counterpart because of racism. 31
(HOWE, online, 2011, s/p).

Apesar da violência contra o soldado Walker, a trama não se encerra neste


momento. Em uma inversão do narrador, Andrea Levy acrescenta um epílogo em que
Walker relata as ações decorrentes de sua prisão. Não aceitando a condição do amigo,
Uriah decide conversar com o seu superior, mas é mal interpretado e recebe um tiro
acidental no coração, morrendo no mesmo momento. De fato, relatos mencionam a
morte de um soldado negro de forma acidental durante os motins que aconteceram em
29
Quatro homens brancos apreenderam Walker. Jogaram-no ao chão. Ajoelharam-se sobre ele. Em suas
costas. Em suas pernas. Seu rosto estava esfregando na terra. E ele estava lutando contra eles ferozmente.
Enquanto o sargento gritava para nós, negros, que os pretos não deveriam esperar mais do que isso!
30
Meu amigo, que certa vez foi mencionado em despachos por sua frieza e devoção ao dever, está
acorrentado por grilhões como um... Como um escravo.
31
Embora houvesse um alto grau de padronização e regularização na estrutura do código disciplinar do
exército, existiam desigualdades nas atitudes e no tratamento das diferentes raças, classes e grupos
étnicos. Os principais problemas de discriminação podiam ser encontrados na aplicação prática dos
regulamentos do exército em um ambiente em que prevaleciam os estereótipos de raça e classe. Embora a
estrutura do exército e o sistema de responsabilização tenham, em muitos casos, reivindicado os direitos
de todos os soldados, a adaptação à vida no exército era geralmente mais difícil e precária para o soldado
negro do que para o seu homólogo branco por causa do racismo.
Taranto (HOWE, 2011, online, s/p), porém, ao dar um rosto e uma história a esse
soldado, Andrea Levy o humaniza e o resgata de sua invisibilidade. Além disso, a troca
de narradores se constitui como uma estratégia de resistência da tentativa de obliterar o
descontentamento e indignação de Uriah, cuja voz que é para sempre silenciada. Walker
desempenha, então, a função de contar a história do amigo ao mesmo tempo inscreve a
participação dos caribenhos na Primeira Guerra Mundial.
O conto termina com Walker explicando que após a morte de Uriah, outros
motins aconteceram em Taranto e que os soldados negros exigiram melhores condições
de trabalho. Além disso, Walker, passa de patriota extremo a militante pela causa da
desigualdade e racismo em seu próprio país:

In consequence I turn my back upon Britain, my Motherland. The


place I once believed was the seat of all that was good in my life. And
turn my face to my island home of Jamaica. This war was fought for
the principles of democracy and freedom. I now demand those
principles for the black man. And to that fight shall all my energies be
placed. For the right to vote, the right to work. But most of all, the
right to live without insult.32 (LEVY, 2014, p. 127).

Em se tratando da história oficial, no ano do armistício, uma nova organização


chamada de Caribbean League, composta pelos soldados negros que lutaram na
Primeira Guerra Mundial, surgiu com o propósito de discutir as questões sobre
racismo, direitos civis e trabalhistas dos sujeitos negros na guerra. No entanto, tais
discussões abriram as portas para outros aspectos visíveis nas Índias Orientais e no
Reino Unido, como a desigualdade presente em todas as esferas da sociedade em torno
do sujeito negro (HOWE, 2011, online, s/p). A história de muitos Uriahs e Walkers não
foi em vão.

CONSIDERAÇÕES

Ao escrever um conto no século XXI narrando os atos heroicos de negros


durante a Primeira Grande Guerra - que eram desconhecidos até mesmo por ela que
tinha origem jamaicana – Andrea Levy recupera a voz desses sujeitos, tirando-os de sua
invisibilidade e revelando sua contribuição nas conquistas do Império Britânico,
reafirmando sua identidade como agentes da história.
A resistência do sujeito negro se faz perceber de muitas maneiras, seja por meio
da violência, seja com demonstrações de capacidade e agência, seja com
questionamentos ou seja com patriotismo e dedicação como fizeram Walker e Uriah no
conto. Porém, não podemos deixar de mencionar o papel da literatura na resistência dos
marginalizados e na sua inscrição na história oficial. Se ela deixa de fora ou pouco
acentua a participação ativa e necessária dos soldados do BWIR, a literatura pós-
colonial o faz por meio da paródia. O conto de Levy reconta, por meio da paródia
literária, uma experiência real, porém, esquecida e cujos envolvidos não têm rostos, são
invisibilizados, obliterados pela narrativa construída pelos homens brancos na Primeira
Guerra Mundial. Como afirma Ashcroft:

32
Como consequência, eu viro as minhas costas para a Grã-Bretanha, minha pátria mãe. O lugar que eu
acreditava ser a sede de tudo o que havia de bom em minha vida. E eu me concentro em minha ilha natal,
a Jamaica. Esta guerra foi travada pelos princípios da democracia e da liberdade. Eu agora exijo esses
princípios para o homem negro. E todas as minhas energias serão colocadas nessa luta. Pelo direito de
votar, o direito de trabalhar. Mas acima de tudo, o direito de viver sem insultos.
The ability of literary texts to disrupt the apparently transparent
narrativity of history and expose its allegorical nature is almost
boundless. But however energetic and subtle the literary dismantling
of historical truth, literature is to some extent shielded by its
simulation of the political struggle over ‘the truth of what is real’ in
colonial experience.33 (ASHCROFT, 2001, p. 112, destaques do
autor).

Por um lado, o conto termina de uma forma amarga, com a morte de um soldado
entusiasmado e sedento de glória, como muitos que vão para a batalha, por outro,
Walker, o soldado que dá continuidade à voz do amigo assassinado no epílogo,
prossegue a narrativa dos soldados negros à partir de uma intensa conscientização de
seu papel social e de militância pelos direitos dos sujeitos negros sempre relegados a um
espaço marginal, seja na guerra, seja na história oficial.
Se há a necessidade de, em pleno século XXI, escrever sobre a invisibilidade do
negro, é porque certamente a sociedade branca ainda não os considera como iguais.
Ainda, a tessitura de Levy nos mostra que a história oficial, por ser registrada por
homens brancos, relega o sujeito negro às margens de grandes eventos, quando não o
invisibiliza. Neste sentido, a escrita literária trabalha como uma paródia, em que os
sujeitos marginalizados, os chamados outros, são também agentes desta história.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ASHCROFT, Bill. Post-Colonial Transformation. New York/London: Routledge, 2001.

ASHCROFT, Bill. Et. Al. Key concepts in post-colonial studies. New York/London:
Routledge, 2001.

ASHCROFT, Bill. Et. Al. The Empire Writes Back: Theory and practice in post-
colonial literatures. New York/London: Routledge, 2004.

BROOKE. Rupert. The Soldier. Disponível em:


https://www.poetryfoundation.org/poetrymagazine/poems/13076/the-soldier. Acesso em
04 Dez. 2020.

CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ___. Vários Escritos. São Paulo: Duas
Cidades, 2011.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.

HALL, Stuart. Da diáspora: Identidades e mediações culturais. Belo Horizonte:


Editora da UFMG, 2006.

HOWE, Glenford D. A White Man's War? World War One and the West Indies.
Disponível em: http://www.bbc.co.uk/history/worldwars/wwone/west_indies_01.shtml.
Acesso em 07 Dez. 2020.

33
A capacidade dos textos literários de interromper a narratividade aparentemente transparente da história
e expor sua natureza alegórica é quase ilimitada. Porém, por mais enérgico e sutil que seja o
desmantelamento literário da verdade histórica, a literatura é, em certa medida, protegida por sua
simulação da luta política sobre ‘a verdade do que é real’ na experiência colonial.
IWM. The Story of The British West Indies Regiment in The First World War.
Disponível em: https://www.iwm.org.uk/history/the-story-of-the-british-west-indies-
regiment-in-the-first-world-war. Acesso em 07 Dez. 2020.

LEVY, Andrea. Six Stories and an Essay. London: Headline, 2014, Kindle Edition.

SMITH, Richard. Jamaican Volunteers in the First World War: Race, Masculinity and
the Development of a National Consciousness. Manchester: Manchester University
Press, 2004.

THE IRISH TIMES. West Indian troops during the first World War. Disponível em:
https://www.irishtimes.com/culture/books/six-stories-and-an-essay-by-andrea-levy-
1.2446157 Acesso em: 04 Dez. 2020.

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