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Resenhas

Apuntes para análises de indústrias se espacial dos vestígios é um tema


líticas. PROUS, André. Ortegalia, n.2. muito complexo e está além dos objeti-
Fundación Federico Maciñera. Ortiguei- vos desta publicação.
ra, Espanha, 2004. Apesar deste livro de Prous não ser
escrito em português e ser direcionado
Resenhado por Lucas de Melo Reis Bueno, preferencialmente para um público euro-
Bolsista do CNPq peu, o fato de o autor ser um profundo
Museu de História Natural da UFMG conhecedor da arqueologia brasileira e
fornecer ao longo do livro uma série de
exemplos do contexto arqueológico bra-
O livro é dividido em cinco partes
sileiro, garantindo, por exemplo, ao quart-
mais a introdução. Nesta, apresenta-se
zo e seu lascamento bipolar, um papel de
um conjunto de fatores que influenciam
destaque, faz com que esse livro se cons-
a variabilidade tecnológica das indústri-
titua numa referência fundamental para
as líticas e que envolvem: necessidades;
os estudos sobre tecnologia lítica a se-
técnicas corporais; técnicas de apropri-
rem desenvolvidos no Brasil.
ação; tipos de ação, categoria de ativi-
dade e matéria prima; disponibilidade de O livro é bastante completo no que
outros recursos; modo de vida; abun- diz respeito aos tipos de técnica e arte-
dância de matérias primas líticas; tipo fatos produzidos sobre matéria prima lí-
de matéria prima; tradição cultural. tica. Apresenta uma grande variedade
de artefatos brutos, lascados, polidos e
A Parte 1 é composta por três capí- picoteados, procurando associar sempre
tulos, os quais versam, respectivamen- técnica e matéria prima na caracteriza-
te, sobre histórico das análises dos ob- ção do processo de apropriação, trans-
jetos líticos, obtenção da matéria prima formação e uso de cada tipo de artefa-
e a utilização de materiais brutos. A Parte to. Além disso, confere atenção também
2 apresenta os métodos e técnicas de aos demais vestígios envolvidos nesse
lascamento e corresponde à parte mais processo enfatizando que para conhe-
extensa do livro. A Parte 3 consiste em cer e compreender as indústrias é ne-
dois capítulos, um sobre os artefatos cessário estudar artefatos, vestígios e
polidos e picoteados e outro sobre leitu- contexto.
ra dos desenhos dos vestígios líticos ar- Entre os pontos de maior destaque
queológicos. A parte 4 confere atenção do livro estão a precisão e o detalhe
aos diferentes tipos e processos de en- das descrições a respeito dos gestos en-
cabamento e apresenta noções básicas volvidos na aplicação de cada técnica e
sobre estudos funcionais, especificamen- dos vestígios produzidos pela sua apli-
te sobre traceologia. Por fim, a parte 5 cação em diferentes etapas da produ-
traz alguns exemplos etnográficos sobre ção dos artefatos e as inúmeras refe-
o uso do material lítico e apresenta uma rências a exemplos de técnicas e arte-
proposta de análise para objetos, cole- fatos em diferentes locais do mundo e
ções e atributos isolados. em diferentes períodos. Esses aspectos
Este livro se propõe a tratar do estu- revelam, por sua vez, uma grande eru-
do dos objetos líticos a partir de uma dição e um profundo conhecimento so-
perspectiva tecnológica e funcional, ten- bre o tema, além de evidenciarem o
do, segundo Prous, sempre em conta os papel de destaque que recebe a experi-
aspectos simbólicos. Seu objetivo é for- mentação no enfoque metodológico pro-
necer os subsídios para que se façam posto.
leituras individuais e análises dos con- Há vários aspectos que contribuem
juntos industriais a partir de um enfo- para um detalhamento do processo ge-
que tecnológico. Segundo Prous a análi- ral de apropriação de matérias primas

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líticas, possibilitando uma caracterização Nessa perspectiva o significado é es-


mais apurada das indústrias na medida pecífico e contextual e, portanto, é pre-
em que amplia a variabilidade de usos e ciso estudar um contexto mais amplo
técnicas utilizados nessa apropriação – que exclusivamente aquele da tecnolo-
esse é um dos grandes méritos do livro gia segundo dois eixos: diacrônico (tra-
e também por isso viabiliza sua utiliza- dições e rupturas tecnológicas e estilís-
ção por pesquisadores que trabalham em ticas) e sincrônico (reconstrução da eco-
diferentes contextos. nomia e da sociedade que produziu a
Além de observações pontuais e es- indústria no sítio e, em certa medida,
pecíficas relacionadas a cada uma das téc- fora dele).
nicas de aproveitamento da matéria pri- Conforme já mencionamos, a propos-
ma lítica apresentadas no texto, há ou- ta de análise para coleções líticas apre-
tras contribuições bastante importantes, sentada por Prous envolve a análise tec-
dentre as quais destacamos a ênfase con- nológica de todos os vestígios, a classi-
ferida à necessidade de definir primeiro ficação tipológica dos artefatos baseada
o problema de pesquisa para só então em aspectos tecnológicos e morfológi-
escolher a metodologia de análise. Esse cos, a incorporação das informações so-
ponto é bastante importante, pois deixa bre contexto e quando possível, a reali-
claro que não existe uma metodologia de zação de remontagens.
análise universal, mas sim diferentes Enfim, podemos dizer que este tra-
maneiras de se obter informações espe- balho apresenta uma proposta de estu-
cíficas sobre problemas determinados do tecno-tipológico clássico, baseado es-
através do estudo do material lítico. sencialmente na experimentação - o que
Outro ponto forte do livro envolve o denota claramente a influência da esco-
fato de o autor procurar sempre relati- la francesa, com uma ênfase na relação
vizar o significado dos indicadores apre- entre gesto e matéria prima. Essa ênfa-
sentados, reforçando a relação estreita se está associada a uma postura teórica
existente entre técnica, ação/lascador e para a qual a técnica é entendida como
matéria prima. Essa constatação faz com um indicador cultural, o que, por sua vez,
que em várias partes do livro o autor decorre do fato da técnica ser composta
reforce o papel do contexto na constru- por conhecimentos e gestos. A proximi-
ção das tipologias, uma vez que por mais dade com as ciências da terra, faz tam-
minuciosa que seja a análise tecnológi- bém com que haja uma valorização do
ca realizada, muitas vezes há vestígios papel das matérias primas nessa rela-
cujos atributos que os compõem apre- ção, o que, por sua vez, abre a possibi-
sentam um alto grau de similaridade. Ou lidade para a explicação da existência
seja, apesar da ênfase na análise por de convergências.
atributos e na tentativa de descrever a No que diz respeito ao significado das
composição e as principais característi- indústrias líticas, há vários pontos nos
cas de cada vestígio a diferença entre quais Prous reforça a importância do con-
eles pode ser, em muitos casos, contex- texto para definição de estilo ou signifi-
tual e não tecnológica. cado. Os dois tópicos que apresentam
Por isso é necessário pensar todo essa discussão, um na introdução e ou-
objeto como parte integrante de um con- tro na parte cinco, terminam mais com
junto lítico mais amplo que, por sua vez, questionamentos do que propostas. Se-
é parte de um complexo industrial (que gundo Prous uma tradição tecnológica não
envolve outros materiais) e participa de corresponde a uma tradição lingüística ou
um conjunto cultural que lhe dá um sen- religiosa e as culturas arqueológicas não
tido específico. são equivalentes às culturas históricas, o
que ilustra a partir do seguinte exemplo:

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“os autores da tecnologia Levallois podi- Essa dicotomia pode ser representa-
am falar línguas diversas, ter costumes e da por algumas questões que se colocam
crenças também diferentes; não reconhe- de maneira bastante importante na Ar-
cemos, através de seus artefatos, mais queologia Brasileira hoje, principalmente
do que uma comunidade tecnológica re- quando estudamos as indústrias líticas do
lativa ao trabalho da pedra”. Brasil Central: como em indústrias líticas
Ou seja, não há um significado social, sem (ou com pouquíssimos) artefatos
cultural ou político a priori para o concei- retocados, criar uma alternativa ao enfo-
to de tradição tecnológica – ele, por si só que tipológico? Como caracterizar essas
não explica nada. Nessa perspectiva, tal indústrias levando em consideração seus
conceito estaria diretamente relacionado aspectos locais e regionais criando, ao
a uma questão descritiva, uma constata- mesmo tempo, parâmetros para compa-
ção empírica a respeito do compartilha- rações macro-regionais? Qual o signifi-
mento de certos traços culturais. Esses cado desses conjuntos? Qual sua relação
traços culturais podem envolver técnicas, com grupos culturais? Como acessar a
um artefato ou um conjunto deles, ca- variabilidade das indústrias líticas no con-
texto brasileiro, uma vez que o arcabou-
racterizados e comparados de um ponto
ço construído pelo PRONAPA se comple-
de vista tecnológico e/ou morfológico.
xifica e as categorias classificatório-ex-
Ainda no que se refere às tipologias plicativas deixam de fazer sentido?
Prous expõe algumas das principais ten-
Para algumas indústrias líticas clássi-
dências ao longo do século XX, aponta
cas da Europa parece ser possível definir
suas limitações e acaba com um questi-
fósseis-guia em termos formais que as-
onamento. Neste tópico, como em ou-
sumam o papel de caracterizadores cul-
tras partes do livro, Prous baseia as ex-
plicações em experiências e referências turais relacionados a determinado tem-
a estudos de caso realizados em diver- po e lugar. Isso não quer dizer que pos-
sas partes do mundo. Como estas expe- samos e devamos proceder sempre as-
riências são muito diversas não é possí- sim, em qualquer lugar e para qualquer
vel gerar, apenas a partir de sua exposi- época. Este parece, justamente, ser o
ção, uma explicação ou interpretação a caso do Brasil Central que, neste sentido
respeito do seu significado; essas expe- requer a aplicação de uma outra aborda-
riências precisam ser ordenadas, orga- gem teórico-metodológico para que se
nizadas segundo uma perspectiva teóri- proceda à formação dos conjuntos e se
ca definida para que não se corra o risco investigue seus significados. Essa propos-
de restringir a pesquisa ao método. ta reforça e, em certo sentido baseia-se,
em um dos pontos enfatizados pelo au-
Esse questionamento constante a
tor ao longo do livro, o de que estilo é
respeito do significado dos conjuntos, as-
uma questão contextual e de que a tec-
sociado a adoção de um método especí-
nologia está diretamente relacionada a
fico pautado nos estudos tecno-tipológi-
aspectos sócio-econômicos e culturais.
cos clássicos de orientação francesa,
pode ser visto também como resultado Neste sentido, o livro de Prous apon-
de uma dicotomia que há entre as “in- ta para a necessidade de uma discussão
dústrias líticas européias” (estamos fa- aprofundada da relação entre contexto,
lando aqui essencialmente do Paleolítico teoria e método para o estudo das indús-
Superior) e as “indústrias líticas brasi- trias líticas no Brasil, certamente benefi-
leiras” (pensando especificamente nas ciado e fundamentado no excelente ar-
indústrias do Brasil Central durante o cabouço empírico construído pelas minu-
Holoceno), relacionada a um aspecto que ciosas e detalhadas descrições dos pro-
o próprio autor enfatiza: a relação entre cessos de apropriação das matérias pri-
contexto, problema e método. mas líticas construído pelo próprio autor.

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Identidades, discurso e poder: estudos moedas diferentes. Felizmente, e é isto


da arqueologia contemporânea. São o que me agrada na obra que acabo de
Paulo: Annablume; Fapesp. 245p. FUNARI, ler, um novo colírio vem revigorar o olhar
Pedro Paulo Abreu. ORSER JR, Charles E.; deste tão importante campo da ciência
SCIAVETTO, Solange Nunes de Oliveira que é a Arqueologia. Sem dúvidas, a
(Orgs.) 2005. coletânea de ensaios que o constitui de-
monstra claramente que, no mínimo, ci-
Resenhado por Verlan Valle Gaspar Neto,
ência e política podem ser encaradas
Bolsista da CAPES como faces de uma mesma moeda. Ou,
Mestrando em Antropologia na Universidade se preferirmos, numa alusão ao traba-
Federal Fluminense - PPGA/UFF lho de Latour, assumir que estamos li-
dando com quase-sujeitos e quase-ob-
Se jamais fomos modernos, como jetos. Aliás, como sempre estivemos,
procura atestar a Antropologia simétri- embora pretensamente ignorando-os.
ca de Bruno Latour, este exemplar de Não obstante as discussões que
Identidades, Discurso e Poder que te- toda essa problemática envolve, cabe-
nho em minhas mãos pode ser conside- ria a esta resenha realizar uma apre-
rado a materialização de uma série de sentação sucinta do escopo de textos
discussões que corroboram o enunciado reunidos no livro. Algo que, convenha-
inicial desta resenha. Não que a Arque- mos, tende sempre a incorrer numa
ologia seja um caso a parte dentro da possível redução da riqueza encontra-
constelação de disciplinas que tiveram da na obra como um todo. Sejamos
sua institucionalização na grande virada pois, condescendentes com as limita-
do século XIX para o século XX. Efetiva- ções impostas ao resenhista, afinal, são
mente, o projeto de modernidade da so- ossos do ofício.
ciedade ocidental previa um papel cen- Basicamente, a obra está subdivida
tral e decisivo para o saber científico em três grandes eixos temáticos com-
sobre o destino do mundo, numa clara preendidos em partes de mesmo núme-
pretensão de subordinação da apreen- ro: Identidades e Conflitos, Arqueologia
são da realidade à investigação pura- Pública e Arqueologia, Discurso e Poder,
mente objetiva. Para tanto, e é aí que com o menor volume de artigos dedica-
reside o elemento mais interessante des- do ao segundo - apenas dois. Ao longo
ta história toda, seriam necessários al- dos 14 textos que compõem este Iden-
guns acordos de ruptura entre determi- tidades, Discurso e Poder, com autores
nados campos, como a natureza, a cul- oriundos das cenas nacional e internaci-
tura, a ciência e a política. No tocante a onal, são debatidos diversos temas que
este último dado substancial, não há de têm em comum uma preocupação mai-
se refutar que todas as ciências, sejam or com os aspectos teóricos da discipli-
elas naturais ou humanas, pouco impor- na arqueológica, além das implicações
ta, tenham participado em alguma es- políticas decorrentes de sua prática. Sua
cala deste ambicioso empreendimento. apresentação nesta resenha tentará
A questão que nos compete rever hoje, acompanhar a ordem na qual eles estão
em pleno alvorecer do século XXI, é se dispostos no livro, de modo a respeitar
este projeto de fato conseguiu ser im- sua coerência interna.
plantado. O artigo que abre a série de debates
A resposta é não, mas para alguns sobre identidades e conflitos, intitulado
mais desavisados, a velha crença numa A Mulher Aborígene nas Antilhas no Iní-
suposta neutralidade científica ainda per- cio do Século XVI, de autoria de Lour-
siste em obnubilar-lhes a visão, como des S. Dominguez (Academia de Ciênci-
se ciência e política fossem, de fato, as de Cuba e Universidad De Puerto Rico)

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procura chamar a atenção para o trata- onde outrora se fixaram os fugitivos do


mento dado às mulheres pela historio- sistema escravista expressa uma luta de
grafia oficial da região pesquisada. Elas resistência a este regime. Mesmo com
são geralmente reconhecidas num se- uma farta documentação sobre o perío-
gundo plano dentro do processo de cons- do da escravidão, na ilha de Fidel não é
trução histórica das Antilhas e o propó- possível ainda encontrar um quadro sa-
sito do artigo é justamente reverter essa tisfatório sobre o cotidiano dos escravos
visão, demonstrando a importância das e suas estratégias de resistência. Deste
mulheres, sobretudo indígenas, em gru- modo, vem cabendo à Arqueologia His-
pos culturais locais e sua contribuição tórica elucidar as lacunas deixadas pela
mesmo no processo de miscigenação. História oficial.
Professora da Universidade de Man- Em O Desafio da Raça para a Arque-
chester, Inglaterra, Sîan Jones dá sua ologia Histórica, de Charles E. Orser Ju-
contribuição a este livro por meio de nior (Illinois State University), encontra-
uma reflexão teórica a respeito das pos- mos uma interessante discussão sobre
sibilidades de inferência étnica para gru- o papel da Arqueologia Histórica nos es-
pos pretéritos através da cultura mate- tudos sobre raça e racismo. Segundo ele,
rial em Arqueologia Histórica. Basica- os arqueólogos deveriam procurar com-
mente, ela põe em questionamento idéi- preender de que formas variáveis como
as como as de que os documentos his- a inserção no mercado, por exemplo,
tóricos seriam fontes fidedignas e dire- influenciaram a constituição de discur-
tas da identidade étnica, ou de que ha- sos racistas nos EUA, ao mesmo tempo
veria uma relação fixa entre “marcado- em que a disciplina poderia se inserir de
res étnicos” e identidades particulares, modo mais contundente, nos debates
concebendo os grupos étnicos como envolvendo tais questões. Já Solange
homogêneos e isolados. A saída para Nunes de Oliveira Schiavetto (Núcleo de
um aproveitamento mais satisfatório Estudos Estratégicos – Unicamp), com
tanto dos vestígios materiais quanto dos seu A Questão Étnica no Discurso Arque-
documentos históricos para a elucida- ológico, procura apontar alguns cami-
ção de possíveis passados étnicos re- nhos para a construção de uma Arqueo-
pousaria numa abordagem teórica da logia Indígena. Trata-se de uma alter-
etnicidade pela Arqueologia, com base nativa para que a Arqueologia feita no
no conceito de habitus desenvolvido Brasil possa lidar de melhor modo com
pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu. problemas envolvendo identidades étni-
Deste modo, tanto historiadores quan- cas de um lado (particularidades) e a
to arqueólogos teriam a ganhar na me- identidade nacional do outro. Para tan-
dida em que seus esforços se voltas- to, ela estabelece quatro premissas para
sem para a contextualização de suas a construção dessa Arqueologia indíge-
respectivas fontes e para as diferenças na: ela tem de ser relevante para as
qualitativas que há entre elas. No caso pessoas que atualmente vivem nas re-
específico da Arqueologia, seu papel giões estudadas; a cultura material não
fundamental residiria no reconhecimen- pode ser concebida como encerrando
to de que a cultura material tem muito uma identidade inequívoca; deve-se le-
a revelar da práxis de um grupo. var em conta os contatos pré e pós-co-
Numa espécie de continuidade com lonização ao mesmo tempo em que se
o texto de Jones, O Espaço da Resistên- reconhece que traços de continuidade ou
cia Escrava em Cuba, redigido por Gabi- descontinuidade não se fazem embutir
no La Rosa Corzo (Universidad de La Ha- necessariamente na cultura material e
bana, Cuba) intenta demonstrar como a os arqueólogos devem estar preocupa-
cultura material encontrada nos sítios dos com questões mais amplas, voltan-

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do-se para a história do conhecimento e tadas pela expansão da Arqueologia de


das ideologias de sua disciplina. contrato no país.
Encerrando a primeira parte do livro, Arqueologia, Discurso e Poder, ter-
Glaydison José da Silva (Núcleo de Es- ceira e última parte do compêndio, reú-
tudos Estratégicos – Unicamp) demons- ne uma gama de escritos que, de um
tra que países europeus como a França, modo geral, embora cada qual a seu
a Itália e a Alemanha tiveram suas iden- modo, refletem sobre a contínua inter-
tidades literalmente forjadas pelo uso locução entre o discurso arqueológico e
indiscriminado que os Estados fizeram a prática do poder. É isto que verifica-
da Arqueologia e da História. O que res- mos quando percorremos as páginas do
salta neste artigo é a constatação de texto de Lúcio Menezes Ferreira (Nú-
como a prática arqueológica jamais es- cleo de Estudos Estratégicos – Uni-
teve dissociada da esfera política nos camp), Solo Civilizado, Chão Antropo-
países nos quais ela se desenvolveu. fágico, em que os primórdios da disci-
Tema este que será retomado por ou- plina no Brasil são destrinchados de for-
tros autores na terceira parte deste mes- ma bastante interessante. Neste capí-
mo livro. tulo o autor procura demonstrar como
A segunda parte de Identidades, Dis- os conceitos de antropofagia e aliança
curso e Poder tem como foco central o utilizados por pesquisadores que se de-
papel da Arqueologia na esfera pública. tiveram sobre os sambaquis do Norte e
Pedro Paulo Funari (Unicamp), Nanci Vi- do Sul do Brasil, na década de 1870,
eira Oliveira (Universidade Estadual do serviram de base para o Império tecer
Rio de Janeiro) e Elizabete Tamanini (Ie- iniciativas de inserção de mão-de-obra
lusc, Santa Catarina) apresentam num indígena no seu quadro econômico fren-
artigo confeccionado em conjunto três te à inevitabilidade da abolição da es-
experiências distintas em programas cravatura. Ao mesmo tempo, discursos
que visavam uma aproximação entre sobre a identidade nacional eram cons-
público leigo e especialistas em Arque- truídos, alocando tais populações em
ologia no Brasil. Segundo os autores, patamares ora altos ora baixos, numa
iniciativas como estas estariam atrela- escala hierárquica dos povos, de acor-
das ao modo pelo qual os arqueólogos do com interesses ideológicos. A Arque-
vêm recentemente concebendo a disci- ologia servira de ferramenta de primei-
plina, reconhecendo-lhe a dimensão ro porte para o desenvolvimento deste
política e o potencial interveniente dela quadro e não é por menos que a breve
na sociedade. Na mesma esteira, Jorge história do Museu do Índio traçada por
Eremites de Souza (Universidade Fede- Tamima Orra Mourad (University Colle-
ral do Mato Grosso do Sul), em Por uma ge, London) nos deixa bem a par da
Arqueologia Socialmente Engajada: Ar- íntima relação guardada entre a traje-
queologia Pública, Universidade Públi-
tória particular daquela instituição e os
ca e Cidadania, defende uma Arqueo-
acontecimentos políticos do país. Mais
logia pública que sirva de ferramenta
uma vez ciência e política não estão dis-
através do qual possa ser obtido o aces-
sociadas e desde a campanha de intro-
so à cidadania. Esta cidadania, por sua
dução da rede telegráfica no Mato Gros-
vez, deve ser entendida como aquela
que o sujeito de direito exerce de for- so ao fim do século XIX até os dias atu-
ma autônoma e conquistada, e não ais, as possibilidades de funcionamen-
como uma suposta dádiva concedida to do Museu estiveram, de algum modo,
pelo Estado. Daí sua reflexão se voltar subordinadas às perspectivas ofertadas
também para o futuro das Universida- pelos quadros de interesses políticos de
des públicas e para as questões susci- nossa história.

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Fábio Adriano Hering (doutorando em conquistas dentro do meio científico. Ao


História pela Unicamp) traça um peque- mesmo tempo, estas mesmas reflexões
no, mas não menos interessante, retra- devem ter por referência direta o con-
to de como a concepção de que a Grécia texto social, político e econômico no qual
antiga seria a ancestral da civilização se inserem os contextos dos quais ela
ocidental superior está relacionada ao se utiliza para realizar suas inferências.
nacionalismo enquanto ideologia políti- Este parece ser o recado deixado por
ca. Segundo ele, a História serviu de ins- Thomas C. Patterson (Universidade da
trumento para o estabelecimento de uma Califórnia), para quem o Evolucionismo
ideologia nacionalista, sobretudo, nos cultural presente na Arqueologia inglesa
Estados europeus, com fortes apelos desde a década de 1950 é uma herdeira
étnicos, derivando daí a base para a direta da teoria econômica que marcara
construção do conceito de nação que, o final do século XVIII, sobretudo, a obra
por sua vez, não passa também de uma de Adam Smith – liberal em sua essên-
categoria criada num momento e num cia. Para este autor, a recorrência a ou-
local específicos, com vistas a atender tros quadros teóricos deve ser imple-
interesses bem delimitados.
mentada, a fim de que haja uma oxige-
Com os dados e exemplos arrolados nação do pensamento arqueológico.
ao longo do artigo de Laurent Olivier Deste modo, seu artigo explora as pos-
(Universidade de Paris), A Arqueologia sibilidades de utilização de alguns pres-
do 3º Reich e a França: Notas ao Estudo supostos marxistas para a compreensão
da “Banalidade” do Mal em Arqueologia, de problemas que, presentes no passa-
vê-se que os contatos estabelecidos en- do, constituem-se fontes de muita dor
tre a Arqueologia Nacional Socialista Ale- de cabeça hoje, como é o caso da explo-
mã e as pesquisas desenvolvidas na ração de uma classe pela outra. Proble-
França já vinham se realizando bem an- ma este que sem dúvidas, merece ser
tes da ocupação alemã neste último país, revisitado pela ciência do passado por
ou seja, contribuições mútuas não seri- excelência.
am devidas a uma pressão exercida por
E como estamos falando de alterna-
ocasião da II Guerra Mundial. Em linhas
tivas teóricas, parece-me que o texto,
gerais, as propostas expansionistas do
Das Condições de Possibilidade da Teo-
III Reich encontrariam ressonância e le-
ria em Arqueologia: do Implícito e do
gitimidade na pré-história recente da
Explícito na Arqueologia Brasileira, redi-
Alemanha, bem como em escavações
gido por José Alberione dos Reis, encer-
nas regiões adjacentes que foram inva- ra com chave de ouro esta que é uma
didas, como, por exemplo, na Alsácia. ótima iniciativa dos organizadores. Em
Figurou-se, assim, uma espécie de ma- resumo, Alberione parte do pressuposto
peamento arqueológico e cultural do pre- de que o pomo da discórdia na Arqueo-
térito europeu a partir de uma concep- logia tupiniquim é a teoria. Para alguns
ção “germanocentrista”. Algo que, como autores, ela estaria quase que comple-
bem demonstra o autor, deve servir de tamente ausente dos trabalhos publica-
lembrete para que as novas gerações de dos. Para outros, o problema residiria na
arqueólogos estejam atentas às perigo- tímida aparição dela em meio a tantas
sas ligações que podem ser estabeleci- descrições técnicas, sem quase tomar
das entre aparentes pesquisas “pura- vulto. Em ambas as queixas, esta seria
mente” científicas e ideologias nem sem- uma deficiência cruel, o que deixaria a
pre as mais nobres. arqueologia feita em solo nacional mui-
Alternativas teóricas e reflexões crí- to aquém da qualidade que esta ciência
ticas podem ser um bom começo para adquire em outros países, como Europa
que a Arqueologia possa angariar novas e Estados Unidos. E onde residiria a ver-

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dade dos fatos? Para Reis, a Arqueolo- das, haja vista que os problemas decor-
gia brasileira possui teoria sim, o pro- rentes de nosso passado de absurdos
blema é que ela estaria implícita nos tra- gloriosos não são poucos e tampouco
balhos, o que, segundo ele, ocorre em passíveis de solução fácil. No seio de uma
função de os arqueólogos não saberem comunidade científica engajada social-
coadunar de forma satisfatória conheci- mente e dotada de forte sentimento de
mentos teóricos com o trabalho empíri- responsabilidade ética, não se pode abrir
co. Exagerada ou não, esta proposição mão de um espaço para novas reflexões
não está muito longe de ser a primeira a e formulações teóricas. No caso especí-
reconhecer que muitos dos conceitos fico da Arqueologia, cacos cerâmicos,
utilizados pelos arqueólogos no Brasil se artefatos líticos e tantos outros materi-
configuram sobre uma espécie de vazio. ais encerram a história de homens de
Em suma, muita descrição com pouca um passado muitas vezes longínquo e
reflexão. que nos incita a uma curiosidade legíti-
Não cabe a mim, neste trabalho, dis- ma, por que não? Mas não nos engane-
correr acerca deste que me parece ser mos senhores, há muito de nós nesses
um debate dos mais urgentes a ser le- vestígios quando pretendemos dar-lhes
vado a sério pelos nossos pesquisado- significados e as conseqüências podem
res. Mas em verdade, não me é escuso não ser as mais nobres de que possa-
também salientar que mais iniciativas mos nos orgulhar. Eis, para mim, a prin-
como a deste livro devem ser estimula- cipal mensagem contida neste livro.

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