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Ybine Dias1
PPGF/UFS
1. Mestre em filosofia moderna e contemporânea pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia – PPGF- da
Universidade Federal de Sergipe – UFS. E-mail: ybine_dc@hotmail.com
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Tomando como ponto de partida o recorte metodológico em três fases do itinerário do pen-
samento do filósofo Maurice Merleau-Ponty, no presente artigo almejamos descrever as con-
siderações do filósofo acerca da expressão literária, seja na prosa ou na poesia, dadas por ele
em sua obra Fenomenologia da percepção, especialmente no capítulo VI (“O corpo como
expressão e a fala”) da primeira parte desse livro, obra de sua primeira fase. A literatura toma
outros desdobramentos em suas obras e fases posteriores, mas o nosso objetivo se delimita a
sua primeira fase, em que a literatura se apresenta como expressão capaz de sedimentar sig-
nificações conceituais ou pensamentos e por permitir relações intersubjetivas, o que rompe
com princípios epistemológicos das filosofias tradicionais de cunho dualista, ou seja, filoso-
fias intelectualistas e empiristas. Dessa forma, para fins coerentes, este artigo se divide em
dois momentos: no primeiro momento pretendemos, de forma geral, apresentar a noção de
linguagem merleau-pontyana na Fenomenologia da percepção, que é fruto da sua crítica às
teorias tradicionais da linguagem de cunho intelectualista e empirista; e no segundo e último
momento descrevemos melhor como Merleau-Ponty pensa a literatura na Fenomenologia da
percepção, a partir de uma nova noção fenomenológica da linguagem.
I
A obra merleau-pontyana passa por diferentes fases. Uma divisão muito famosa é aceita
por boa parte de comentadores (CARDIM, 2012; RAMOS, 2013; MÜLLER, 2001; CHAUÍ,
2009; BARBARAS, 1991). Essas fases indicam um corte metodológico necessário para me-
lhor entendimento do itinerário de seu pensamento. A primeira fase corresponderia as suas
primeiras obras, A estrutura do comportamento (1942), Fenomenologia da percepção (1945)
e O primado da percepção e suas consequências filosóficas (1946), as quais descrevem a re-
lação primária do homem com o mundo, ou seja, a Fenomenologia da percepção pretende
completar desse modo o movimento crítico, iniciado pela A estrutura do comportamento,
de “refazer o solo ontológico da experiência viva, que liga o sujeito ao mundo” (RAMOS,
2013, p. 38); a segunda fase, ou fase intermediária, corresponderia às obras que se incli-
nam aos problemas da expressão, da cultura, das relações intersubjetivas, aos problemas
da filosofia da história, explorando a relação entre a filosofia e a não filosofia (arte, ciência
e política); e, por último, temos a terceira fase que se caracteriza pela construção de uma
ontologia selvagem, que procura dissolver a dicotomia entre natureza e cultura com base no
conceito de carne e de Ser bruto. O processo de expressão literária e como este tipo de ex-
pressão institui significações no mundo cultural só será trabalhado detalhadamente na se-
gunda fase do pensamento de Merleau-Ponty, por exemplo, em textos como O romance e a
metafísica (1945); As linguagens indiretas e as vozes do silêncio (1960) e, principalmente, A
prosa do mundo (1952), esse último é um ensaio inacabado no qual o filósofo trabalha mais
detidamente os temas da “expressão simbólica” na pintura e na literatura como linguagens
indiretas. Não é nosso objetivo adentrar nas questões levantadas neste conjunto de textos.
A intenção deste artigo é somente explorar na Fenomenologia da percepção, no capítulo
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VI (“O corpo como expressão e a fala”) da primeira parte desta obra, como Merleau-Ponty
apresenta, ainda que de forma esboçada ou embrionária, considerações acerca da expressão
literária no âmbito das linguagens ou categorias artísticas.
Nesse sentido, o ato da fala é entendido, nessas correntes, como uma condução mecânica,
dotada de fenômenos psíquicos e fisiológicos que possibilitam a sonoridade das palavras, ou
seja, designação dos signos adequados às significações interiores da consciência. A lingua-
gem, na perspectiva dessas filosofias clássicas, funciona como instrumento, ou seja, a utiliza-
ríamos para expressar sua significação que é intelectual ou posse de “imagens verbais” dadas
de antemão.
No empirismo, as palavras são apenas símbolos sensíveis utilizados para exteriorizar e pos-
sibilitar a comunicação entre experiências de sujeito. Neste aspecto, o intelectualismo não
se diferencia da corrente empirista: “no que concerne à própria fala, o intelectualismo mal
difere do empirismo e não pode, tanto quanto este, dispensar-se de uma explicação pelo au-
tomatismo” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 241). O sujeito pensante cifra suas ideias, sejam
elas derivadas das experiências, inatas ou imaginadas. Em ambas as posições a linguagem
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na realidade, veremos mais uma vez que há um parentesco entre as psicologias empiristas ou
mecanicistas e as psicologias intelectualistas, e não se resolve o problema da linguagem pas-
sando da tese à antítese. [...] E todavia as duas concepções coincidem em que tanto para uma
como para a outra a palavra não tem significação. [...] A palavra ainda está desprovida de uma
eficácia própria, desta vez porque é apenas o signo exterior de um reconhecimento interior
que poderia fazer-se sem ela e para o qual ela não contribui. [...] Ela é apenas um fenômeno ar-
ticular, sonoro, ou a consciência desse fenômeno, mas em qualquer caso a linguagem é apenas
um acompanhamento exterior do pensamento (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 241).
Da mesma forma que Merleau-Ponty utiliza de patologias psicofísicas para evidenciar a Fun-
dação (Fundierung) do corpo próprio no mundo vivido, afetivo e existencial (um todo no sen-
tido rigoroso husserliano), ele também utiliza de problemas da linguagem, como as afasias,
por exemplo, para fortalecer algumas características da linguagem que se opõe ao caráter que
as psicologias e filosofias clássicas estabeleciam2. Para isso, Merleau-Ponty analisa o caso de
um paciente (Schneider) de Gelb e Goldstein, e nota que doentes afásicos possuem dificulda-
des de expressão, às vezes na escrita e também na fala, por terem sofrido algum tipo de lesão
no sistema nervoso central. O nosso filósofo escreve que alguns doentes, quando em situa-
ções afetivas e vitais, suas expressões ocorrem espontaneamente, ou seja, são nessas situa-
ções que necessariamente a linguagem surge como necessidade de comunicação e expressão
da relação do sujeito com o mundo e com os outros. Segundo Merleau-Ponty,
2. Müller explica com clareza como o conceito de Fundação husserliano é tomado por Merleau-Ponty para
fundamentar a expressão em nossos comportamentos perceptivos ou simbólicos. Conceito esse que dará fun-
damentação a estrutura do mundo percebido como se nota na passagem: “Nas Investigações lógicas (Logische
Untersuchungen), especificamente quando trata de uma teoria geral sobre o ‘todo e as partes’, Husserl apresenta
concepções distintas do ‘todo’. A primeira é aquela em que temos o todo em sentido inautêntico. A segunda é
aquela em que temos um todo em sentido rigoroso. Em seu sentido inautêntico, o todo é uma unidade formada
por partes independentes entre si. Para que estas possam estar relacionadas, elas precisam do auxílio de um
elemento exterior que as agregue. A unidade que assim se estabelece não é espontânea, tampouco necessária.
Um todo em sentido rigoroso, ao contrário, não depende de nenhum aporte exterior. Nele, cada parte guarda
uma relação de não-independência em relação às demais, o que faz com que se exijam mutuamente. Consequen-
temente, estabelecem entre si uma unidade espontânea e necessária. ‘Fundação’ (Fundierung) é o nome dessa
conexão essencial que define a relação das partes num todo em sentido rigoroso” (MÜLLER, 2001, p. 152).
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afetivo e vital. Portanto, descobria-se atrás da palavra uma atitude, uma função da fala que
condicionam a palavra. Distinguia-se a palavra enquanto instrumento de ação e enquanto
meio de denominação desinteressada (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 239).
A partir desta passagem destacamos como o doente afásico, para Merleau-Ponty, não conse-
gue se desvencilhar ou se expressar para além de uma situação concreta e que não condiz com
seus interesses internos e existenciais. A linguagem, neste caso, passa a ter um caráter de ins-
trumento segundo os estudos de Goldstein, pelos quais Merleau-Ponty se pauta para as suas
considerações3. Dessa forma, a linguagem automática (concreta) seria a linguagem que está
diante dos interesses vitais. Como no exemplo dado acima, o “não” só é possível de ser dito
pelo doente ao médico, por conta do sujeito está inteiramente na situação. Já em situações
fictícias ou imaginárias o doente não consegue se expressar ou mesmo não tem necessidade
de expressão. É nessa situação que a linguagem gratuita ocorre, pois mesmo tendo as pala-
vras a sua disposição para execução automática, o doente não consegue utilizá-las além da
função instrumental. Neste caso, como destaca Cardim, “a linguagem tal como expressa pelo
doente apresenta apenas um caráter concreto e está subordinado à ação e ao real” (CARDIM,
2012, p. 40). Ou seja: caso fosse uma situação fictícia o doente não conseguiria pronunciar o
“não”. A linguagem gratuita seria o tipo de expressão em que o corpo próprio normal é capaz
de compor as dimensões da linguagem enquanto sedimentada e criadora4. O doente não
pode realizar e fazer a linguagem viva, por conta da ausência de princípios do sujeito saudável
na utilização da linguagem já que não possui a capacidade de expressão simbólica e atitude
categorial. Portanto, podemos concluir, a partir da explicitação das patologias da afasia, que
Merleau-Ponty utiliza como contraexemplo para as teorias da linguagem tradicionais, que o
fenômeno da linguagem, na perspectiva fenomenológica existencial, está condicionado pela
correlação afetiva de um corpo próprio (sujeito perceptivo) com o mundo.
Mais ainda: Merleau-Ponty nota na linguagem também uma atitude categorial, fruto de suas
leituras dos trabalhos de Gelb e Goldstein, que é uma atitude completamente atribuída, pelos
psicólogos alemães, como característica fundamental da expressão humana. O que mostra
que a linguagem é o próprio pensamento que tende à expressão; mas não só isso, pois compro-
va a Fundação que existe entre o sujeito e o mundo em que está situado. Dito de outro modo:
na atitude pré-científica, ou seja, no próprio ato perceptivo, “nomear um objeto é afastar-se
do que ele tem de individual e de único para ver nele o representante de uma essência ou de
3. A característica instrumental, que estamos nos referindo aqui, está relacionada à utilização da linguagem cir-
cunscrita apenas a uma relação concreta do sujeito com o mundo, como ocorre no caso de Schneider. Já que nas
psicologias clássicas, como explicamos acima, ela é, também, considerada instrumento por servir somente como
exteriorização dos pensamentos de um sujeito.
4. Da mesma forma para uma discussão desse aspecto, ou seja, da linguagem como sedimentada e criadora na
Fenomenologia da percepção e nas demais fases do pensamento merleau-pontyano conferir o artigo Ebulição na
massa d’água ou a linguagem segundo Merleau-Ponty (CARDIM, 2012). Essa distinção em dimensões fará a fala,
enquanto fenômeno da linguagem, distinta dos outros modos de expressão na Fenomenologia da percepção, dife-
rente das obras de arte, pois a fala, assim como a literatura, são os únicos meios de expressão capaz de sedimen-
tar-se e se reiterar, dimensões que comentaremos mais detidamente a seguir.
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uma categoria [...] por que o objeto mais familiar parece-nos indeterminado enquanto não
encontramos seu nome” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 241). Essa ideia é melhor destacada
ainda na seguinte passagem: “quando fixo um objeto na penumbra e digo: ‘é uma escova’, não
há em meu espírito um conceito de escova ao qual eu subsumiria o objeto e que, por outro
lado, estaria ligado à palavra ‘escova’ por uma associação frequente, mas a palavra traz o sen-
tido e, impondo-o ao objeto, tenho consciência de atingi-lo” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p.
243). Quando nomeamos um objeto temos o poder de alcançá-lo e como que “o fazemos exis-
tir no mundo das coisas”. Nesse sentido, “o nome é a essência do objeto [...] a palavra, longe de
ser o simples signo dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula as significações”
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 242) e podemos encaixá-las em categorias na medida em que
nos relacionamos com o mundo.
por que o próprio sujeito pensante está em um tipo de ignorância de seus pensamentos
enquanto não os formulou para si ou mesmo disse e escreveu, [...]. Um pensamento que se
contentasse em existir para si, fora dos incômodos da fala e da comunicação, logo que apare-
cesse cairia na inconsciência, o que significa dizer que ele nem mesmo existiria para si. [...] Ele
progride no instante e como que por fulgurações, mas em seguida é preciso que nos apro-
priemos dele, e é pela expressão que ele se torna nosso (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 242).
E é uma dessas expressões considerada, por Merleau-Ponty, privilegiada, que será nosso foco
no próximo momento: a literatura. Essa noção de entrelaçamento entre a significação e o
signo na linguagem, é atribuída à literatura e também a fala, essa última que é o modo de
expressão a qual Merleau-Ponty tem como eixo principal no capítulo VI da primeira parte da
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5. “As palavras só podem ser as ‘fortalezas do pensamento’ e o pensamento só pode procurar a expressão se
as falas são por si mesmas um texto compreensível e se a fala possui uma potência de significação que lhe seja
própria. É preciso que, de uma maneira ou de outra, a palavra e a fala deixem de ser uma maneira de designar
o objeto ou o pensamento para se tornarem a presença desse pensamento no mundo sensível e, não sua vesti-
menta, mas seu emblema ou seu corpo” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 247).
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Desse modo, Merleau-Ponty, por meio do estudo dos problemas de afasia, mostrou que a
linguagem não está distante do pensamento e que todo pensamento tende para a expressão
e só tomamos posse dele quando o expressamos. Há necessidade do sujeito falante que seus
pensamentos sejam expressos para que tomem vida no mundo sensível, pois para Merle-
au-Ponty: “o próprio sujeito pensante está em um tipo de ignorância de seus pensamentos
enquanto não os formulou para si ou mesmo disse e escreveu, como mostra o exemplo de
tantos escritores que começam um livro sem saber exatamente o que nele colocarão” (MER-
LEAU-PONTY, 2015a, p. 241). Com base nessa noção de linguagem, um texto literário é a
expressão escrita de pensamentos de um autor, ou seja, a expressão se torna um “conceito
linguístico”6, signos que comportam seu significado7. A expressão literária não seria muito
diferente da expressão falada, o autor se reporta das palavras como utensílio de seu mundo
linguístico e expressa seus próprios pensamentos. Elas são como equipamentos, não como
instrumento, mas “a palavra assim como minha mão se dirige para o lugar de meu corpo
picado por um inseto; só tenho um meio de representá-la para mim, é pronunciá-la, assim
como o artista só tem um meio de representar-se a obra na qual trabalha: é preciso que ele
a faça” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 246).
6. Este conceito é derivado da obra de Goldstein, L’analyse de l’aphasie et l’essence du langage:“é preciso que exis-
ta, como dizem os psicólogos, um ‘conceito linguístico’ (Sprachbegriff) ou um conceito verbal (Wortbegriff), uma
‘experiência interna central’, especificamente verbal, graças à qual o som ouvido, pronunciado, lido ou escrito se
torne um fato de linguagem” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 247).
7. Esta mesma noção da presença da significação no signo na fala, na Fenomenologia da percepção Merleau-Ponty
expande para outras formas de expressão artística, recorre a obras e artistas escritores como Proust e Balzac,
como também a atriz Berma (Sarah Bernardt). No teatro “a atriz torna-se invisível, e é Fedra quem aparece. A
significação devora os signos e Fedra tomou posse da Berma tão bem, que seu êxtase em Fedra nos parece ser
o máximo do natural e da facilidade” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 248). No capítulo VI da Fenomenologia da per-
cepção o filósofo francês recorre a pintores, Cézanne, por exemplo, para descrever e fazer um contraponto com
o funcionamento da fala, ou seja, a presença da significação no signo. Como reconhece Müller, “ainda que, nos pri-
meiros textos, Merleau-Ponty não reflita na importância que o recurso às obras de arte possa representar para a
delimitação da noção de expressão e de cultura, este procedimento foi por ele largamente utilizado. São inúmeras
as referências aos relatos e obras realizados por literatos, músicos e artistas plásticos” (MÜLLER, 2001, p. 222).
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próprio público, a obra musical ou a pintura comporta ela mesma o que quer significar, pois
elas são exemplos de expressão simbólica das relações primordiais do homem com o mundo
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 244). Assim, um texto, se verdadeiramente diz algo, ele nos
transporta para novas dimensões, no sentido de que ele expressa o próprio pensamento do
autor, mas também no sentido de que ele é expressão de remanejamentos das significações
conceituais sedimentadas que este possui de suas percepções do ser e da cultura, ou seja, do
mundo linguístico e intersubjetivo na qual está instalado (Dimensão criadora)8. Podemos
destacar aqui as palavras enquanto “mímica existencial”: atrás das significações conceituais
há uma significação existencial “que não é apenas traduzida por elas, mas que as habita e é
inseparável delas” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 248)9. O autor de um romance retém as pa-
8. No capítulo VI da primeira parte da Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty distingue a fala em fala falada
e fala falante, que, podemos chamar de “camadas da fala”, expressão que nos ajuda a entender a linguagem como
transformação (Dimensão sedimentada e criadora) e que se faz na interação entre os sujeitos (CARDIM, 2012).
Nas palavras de Merleau-Ponty, “poderíamos dizer, retomando uma distinção célebre, que as linguagens, quer
dizer, os sistemas constituídos de vocabulário e de sintaxe, os ‘meios de expressão’ que existem empiricamen-
te, são o depósito e a sedimentação de atos de fala nos quais o sentido não-formulado não apenas encontra o
meio de traduzir-se no exterior, mas ainda adquire a existência para si mesmo, e é verdadeiramente criado como
sentido. Ou, ainda, poderíamos distinguir entre uma fala falante e uma fala falada” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p.
266). Na medida em que os sujeitos expressam significações, ou seja, os pensamentos ou significações conceituais,
elas passam a existir no mundo sensível, essas significações podem ser retomadas por outros sujeitos em outros
atos de fala ou expressão, como no caso da literatura que estamos descrevendo. A descoberta do fenômeno da
linguagem, tal como Merleau-Ponty descreve, é uma consequência de sua reformulação do problema da percep-
ção enquanto visto a partir da Fundação do sujeito – cogito tácito – com o mundo e os outros.
A Fala falada seria a camada da linguagem circunscrita à dimensão sedimentada, ou seja, na medida em que os
sujeitos expressam as significações, os pensamentos enraízam-se no mundo cultural, sedimentando, e ficam
acessíveis a outros sujeitos. Esse utensílio da linguagem constitui uma língua, uma sintaxe ou um idioma que
pode ser compreendido por outro sujeito em meio a um diálogo, pois, “só podemos falar-nos uma linguagem
que já compreendemos [...] daí a fala falada que desfruta as significações disponíveis como a uma fortuna obtida”
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 267). A fala falante, por sua vez, é a camada de significação da linguagem dentro da
dimensão criadora, ou seja, “é aquela em que a intenção significativa se encontra em estado nascente” (MERLE-
AU-PONTY, 2015a, p. 266). É nessa camada que os sujeitos falantes, ou mesmo os autores, podem retomar o
que já fora expresso alguma vez, podendo reiterar e transformar, o que já estava disponível no mundo cultural
(linguagem gratuita): “é para além do ser que [a linguagem] procura alcançar-se e é por isso que ela cria a fala
como apoio empírico de seu próprio não-ser” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 243).
9. Além de significações conceituais (os pensamentos, ou seja, as palavras), para Merleau-Ponty a fala ou as palavras
possuem significações existenciais e significações linguísticas, ou seja, essas últimas seriam os signos de um idioma,
os símbolos utilizados para escrever ou pronunciar um pensamento, já as significações existenciais seriam as inten-
ções ao falar ou ao escrever que indicam meu estado de espírito, sentimentos, relação com o mundo percebido.
Para Merleau-Ponty, “o pensamento surge enquanto estilo, enquanto valor afetivo”: “as significações existenciais
de nossa experiência perceptiva são tão somente a orientação comum ou sinergia expressa pelos diversos ele-
mentos que a compõem. Elas são a totalidade ou implicação espontânea desses elementos, o que os faz valer
‘cinestesia’ do corpo próprio, ‘coisa’ no tempo e espaço vividos, ‘intenção’ de nossa ação junto às coisas, enfim,
‘mundo vivido’ ou ‘da percepção’” (MÜLLER, 2001, p. 175). Um exemplo de uma significação existencial é o meu
sotaque que determina de qual região de uma comunidade linguística eu tenho origem. Não preciso retomar
as significações verbais, ou existenciais, ou seja, as intenções, a mímica que realizei no ato da fala primeira para
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lavras que possui à sua disposição e as remaneja para expressar o novo: “cada artista retoma
a tarefa no seu início, há um novo mundo a libertar, enquanto na ordem da fala cada escritor
tem consciência de visar o mesmo mundo do qual os outros escritores já se ocupavam” (MER-
LEAU-PONTY, 2015a, p. 258).
só podem falar-nos uma linguagem que já compreendemos, cada palavra de um texto difícil
desperta em nós pensamentos que anteriormente nos pertenciam, mas por vezes essas sig-
nificações se unem em um pensamento novo que as remaneja a todas, somos transportados
para o centro do livro, encontramos a sua fonte (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 243).
que a palavra seja entendida, ou mesmo depois que queira pronunciá-la “o fato de reconhecermos para nossas
construções simbólicas a capacidade de exprimir significações não apenas linguísticas e conceituais, mas também
existenciais, não implica reconhecer que essas últimas sejam uma prerrogativa exclusiva da cultura” (MÜLLER,
2001, p. 175). E como descobrimos na leitura do capítulo VI da Fenomenologia da percepção na pintura e na música
as significações existenciais estão presentes a todo momento, jamais se pode distinguir as obras de arte de sua
significação existencial, já que os artistas, pintores e músicos, para Merleau-Ponty, sempre exprimem a partir de
sua relação com o mundo e jamais com o que está sedimentado.
10. Existe uma retomada dos pensamentos expressos no ato da fala. A estrutura da subjetividade enquanto tem-
po, para Merleau-Ponty, nos ajuda a compreender esse fenômeno. Assim como as percepções, perfis passados
jamais estão distantes, ausentes, ou mesmo distintos do meu presente e do meu futuro (Fundação), as palavras
às quais nos reportamos para expressar nossos pensamentos estão disponíveis enquanto atos de expressão
sedimentados notados por meu corpo, na minha interação com meu mundo linguístico, pois “o mundo linguís-
tico e intersubjetivo não nos espanta mais, nós não o distinguimos mais do próprio mundo, e é no interior de
um mundo já falado e falante que refletimos” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 250). Ou seja: há uma copresença
dos pensamentos passados em minha fala presente (MÜLLER, 2001, p. 240). A noção de “campo de presença”
(Präsenzfeld) esclarece-nos muito bem a disposição das palavras ou mesmo dos pensamentos sedimentados em
meu presente. De certo que as três dimensões do tempo, passado, presente e futuro, para Merleau-Ponty, se
encontram imanentes no sujeito, dessa forma, as significações conceituais podem ser retomadas, intencionadas ou
mesmo retidas (retenção) enquanto presentes no sujeito e não como ausência. Para entender o papel da me-
mória no corpo, segundo Merleau-Ponty, é preciso entender o passado não como consciência constituinte do
passado, mas por meu corpo tenho a presença desse passado que reabro a todo o momento. O passado não é
ausência, mas está presente em meu corpo de acordo com as suas vivências, nosso corpo “é o meio de nossa
comunicação com o tempo” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 246). Posso reter com meu corpo às palavras que
estão a minha disposição e “basta que eu possua sua essência articular e sonora como uma das modulações,
um dos usos possíveis do meu corpo” para poder pronunciá-las: “o corpo converte uma certa essência motora
em vociferação, desdobra o estilo articular de uma palavra em fenômenos sonoros, desdobra em panorama do
passado a atitude antiga que ele retoma, projeta uma intenção de movimento em movimento efetivo, porque ele
é um poder de expressão natural” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 247).
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Nesta passagem, já podemos encontrar elementos que contribuem para as reflexões posterio-
res do filósofo, a respeito da expressão literária, ou mesmo suas descrições de nossos compor-
tamentos ou “expressões simbólicas”, que serão constatadas em textos da sua fase intermedi-
ária, atribuindo à literatura o caráter de linguagem indireta.
Uma obra literária, com base no que dissemos, portanto, seria a utilização de significações
disponíveis no mundo cultural, significações sedimentadas e, quando reiteradas, dão origem
a novidades, que podem ser compreendidas por outros sujeitos. Percebe-se aqui, de acordo
com o que mencionamos, também na literatura uma potência intersubjetiva. Podemos in-
dagar: a expressão literária recupera, na Fenomenologia da percepção, as relações entre os
sujeitos que a modernidade solapou?
Essa capacidade única do ser humano de suscitar pensamentos no outro rompe com a im-
possibilidade de relações intersubjetivas nas expressões linguísticas sustentadas pela ideia
de linguagem como “vestimenta dos pensamentos”. Dessa forma, a expressão literária, para
Merleau-Ponty, na Fenomenologia da percepção, realiza uma dissolução da distância entre
as consciências e entre signo e significação. Há uma verdadeira intenção de uma consciência
para outra, assim como de um corpo para outro: “há confirmação do outro por mim e de mim
pelo outro” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 251). Na passagem a seguir, Merleau-Ponty clarifica
o caráter intersubjetivo da obra literária:
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É por meio dessa intersubjetividade, na leitura de um texto, que podem surgir os pensa-
mentos derivados do que fora lido, pois “o fim do discurso ou do texto será o fim do encan-
tamento. É então que poderão sobrevir os pensamentos sobre o discurso ou sobre o texto”
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 245). As significações conceituais e linguísticas ficam dispo-
níveis, ou seja, sedimentadas na cultura, para os leitores11. Portanto, toda essa descoberta e
comprovação de Merleau-Ponty da presença do pensamento nos atos de expressão, seja na
fala e agora na literatura, é o que dá o patamar de expressão ser inseparável do exprimido.
Signo e significação estão em interdependência; essa prerrogativa, na Fenomenologia da
percepção, é levada para o campo artístico, nesse caso, a literatura, e para as outras catego-
rias como no teatro, na música e na pintura.
Bibliografia
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Cadernos Espinosanos estudos sobre o século XVII. N. XX, Jan-jun de 2009.
CARDIM, L. N. “A ebulição na massa d’água” ou linguagem segundo Merleau-Ponty. Revista Dois Pontos:
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11. “O maior benefício da expressão não é consignar em um escrito pensamentos que poderiam perder-se,
um escritor quase não relê suas próprias obras, e as grandes obras depositam em nós, na primeira leitura, tudo
aquilo que a seguir extrairemos delas” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 244).
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Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.2017 | ISBN 978-85-7822-593-3
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________. O visível e o invisível. Tradução de José Artur Gianotti. São Paulo: Perspectiva, 1999.
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________. A Linguagem indireta e as vozes do silêncio. In: Merleau-Ponty. Tradução de Marilena de Sou-
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________. O romance e a metafísica. . In: Merleau-Ponty. Tradução de Marilena de Souza Chauí. São
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