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Anais do IV Colóquio Filosofia e Literatura: Poética São Cristóvão/SE | julho.

2017 | ISBN 978-85-7822-593-3

Maurice Merleau-Ponty e a expressão literária


na Fenomenologia da percepção

Ybine Dias1
PPGF/UFS

Tomando como ponto de partida um recorte metodológico em três fa-


ses do itinerário do pensamento do filósofo Maurice Merleau-Ponty, o
presente artigo procura descrever suas considerações acerca da expres-
são literária, seja na prosa ou na poesia, em sua obra Fenomenologia da
percepção, especialmente no capítulo VI (“O corpo como expressão e a
fala”) da primeira parte desse livro, que corresponde a uma obra escrita
em sua primeira fase. A literatura toma outros desdobramentos em suas
obras e fases posteriores, mas o nosso objetivo se delimita a sua primei-
ra fase, em que a literatura se apresenta como expressão capaz de se-
dimentar significações conceituais e criar relações intersubjetividades,
que rompe com princípios epistemológicos das filosofias tradicionais de
cunho dualista: filosofias intelectualistas e empiristas.

Palavras-chaves: Corpo próprio; Expressão; Literatura.

Taking as a starting point a three-step methodological cut in the itine-


rary of the thought of the philosopher Maurice Merleau-Ponty, this arti-
cle seeks to describe his considerations about literary expression, in the
prose or poetry, in his work Phenomenology of perception, especially in
chapter VI (Body as expression and speech) of the first part of this book,
a work written in its first phase. Literature takes on other developments
in its later works and phases, but our objective is delimited in its first
phase, the literature presents itself as an expression able to seduce con-
ceptual meanings and create intersubjectivity relations, which breaks
with the epistemological principles of the traditional philosophies of
dualistic: intellectualist and empiricist philosophies.

Keywords: Own body; Expression; Literature.

1.  Mestre em filosofia moderna e contemporânea pelo Programa de Pós-graduação em Filosofia – PPGF- da
Universidade Federal de Sergipe – UFS. E-mail: ybine_dc@hotmail.com

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Tomando como ponto de partida o recorte metodológico em três fases do itinerário do pen-
samento do filósofo Maurice Merleau-Ponty, no presente artigo almejamos descrever as con-
siderações do filósofo acerca da expressão literária, seja na prosa ou na poesia, dadas por ele
em sua obra Fenomenologia da percepção, especialmente no capítulo VI (“O corpo como
expressão e a fala”) da primeira parte desse livro, obra de sua primeira fase. A literatura toma
outros desdobramentos em suas obras e fases posteriores, mas o nosso objetivo se delimita a
sua primeira fase, em que a literatura se apresenta como expressão capaz de sedimentar sig-
nificações conceituais ou pensamentos e por permitir relações intersubjetivas, o que rompe
com princípios epistemológicos das filosofias tradicionais de cunho dualista, ou seja, filoso-
fias intelectualistas e empiristas. Dessa forma, para fins coerentes, este artigo se divide em
dois momentos: no primeiro momento pretendemos, de forma geral, apresentar a noção de
linguagem merleau-pontyana na Fenomenologia da percepção, que é fruto da sua crítica às
teorias tradicionais da linguagem de cunho intelectualista e empirista; e no segundo e último
momento descrevemos melhor como Merleau-Ponty pensa a literatura na Fenomenologia da
percepção, a partir de uma nova noção fenomenológica da linguagem.

I
A obra merleau-pontyana passa por diferentes fases. Uma divisão muito famosa é aceita
por boa parte de comentadores (CARDIM, 2012; RAMOS, 2013; MÜLLER, 2001; CHAUÍ,
2009; BARBARAS, 1991). Essas fases indicam um corte metodológico necessário para me-
lhor entendimento do itinerário de seu pensamento. A primeira fase corresponderia as suas
primeiras obras, A estrutura do comportamento (1942), Fenomenologia da percepção (1945)
e O primado da percepção e suas consequências filosóficas (1946), as quais descrevem a re-
lação primária do homem com o mundo, ou seja, a Fenomenologia da percepção pretende
completar desse modo o movimento crítico, iniciado pela A estrutura do comportamento,
de “refazer o solo ontológico da experiência viva, que liga o sujeito ao mundo” (RAMOS,
2013, p. 38); a segunda fase, ou fase intermediária, corresponderia às obras que se incli-
nam aos problemas da expressão, da cultura, das relações intersubjetivas, aos problemas
da filosofia da história, explorando a relação entre a filosofia e a não filosofia (arte, ciência
e política); e, por último, temos a terceira fase que se caracteriza pela construção de uma
ontologia selvagem, que procura dissolver a dicotomia entre natureza e cultura com base no
conceito de carne e de Ser bruto. O processo de expressão literária e como este tipo de ex-
pressão institui significações no mundo cultural só será trabalhado detalhadamente na se-
gunda fase do pensamento de Merleau-Ponty, por exemplo, em textos como O romance e a
metafísica (1945); As linguagens indiretas e as vozes do silêncio (1960) e, principalmente, A
prosa do mundo (1952), esse último é um ensaio inacabado no qual o filósofo trabalha mais
detidamente os temas da “expressão simbólica” na pintura e na literatura como linguagens
indiretas. Não é nosso objetivo adentrar nas questões levantadas neste conjunto de textos.
A intenção deste artigo é somente explorar na Fenomenologia da percepção, no capítulo

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VI (“O corpo como expressão e a fala”) da primeira parte desta obra, como Merleau-Ponty
apresenta, ainda que de forma esboçada ou embrionária, considerações acerca da expressão
literária no âmbito das linguagens ou categorias artísticas.

Para Merleau-Ponty as manifestações de linguagem surgem a partir do mundo percebido,


pois, como veremos, na perspectiva merleau-pontyana, o contato pré-objetivo com o mundo
funda as expressões simbólicas, como é o caso da linguagem, que nasce do “fundo ontológico”
do corpo próprio com o mundo. A fala, por exemplo, surge, para Merleau-Ponty, como ex-
pressão da experiência que um sujeito perceptivo possui enquanto presente no mundo. Não
só a fala nesse sentido, como também a expressão artística nasce da experiência perceptiva
primordial e dos atos de expressão que se sedimentam na cultura, como é o caso da literatura.
É por isso que as obras de arte são importantes para Merleau-Ponty, elas permitem melhor
demonstrar a operação primordial de sua nascente do mundo da percepção (MÜLLER, 2001,
p. 221). O problema que gostaríamos de explorar é saber como, na Fenomenologia da percep-
ção, ocorre essa dinâmica da expressividade do sujeito, em especial na literatura, a partir de
suas vivências com o mundo da percepção e em interação com os outros.

Ao analisar, na Fenomenologia da percepção, as psicologias empiristas e as psicologias inte-


lectualistas, Merleau-Ponty aponta mais um “parentesco” nas duas correntes sobre a concep-
ção que possuem sobre os fenômenos da linguagem. Em ambas as posições “a palavra não
tem significação” (MERLEAU-PONY, 2015a, p. 240). O que esse enunciado quer dizer? Nessas
correntes clássicas, a linguagem é apenas um instrumento de significação externa das repre-
sentações – Vor-stellung – de um sujeito pensante. O sentido da palavra não se encontra nela.
A palavra não contém uma significação quando o sujeito pensante a utiliza para transmitir ao
outro o que se encontra invisível no seu interior. O sujeito nessas psicologias compartilham
experiências comuns, como é o caso do empirismo. O que ocorre em um diálogo é a cifração
de representações ou ideias de um sujeito pensante para outro. Para Merleau-Ponty, isso não
passa de uma comunicação ilusória, pois o ouvinte no diálogo reconhece apenas o que por ele
já é conhecido enquanto signo convencional. Não há aqui transmissão de pensamentos novos
de um sujeito para outro.

Nesse sentido, o ato da fala é entendido, nessas correntes, como uma condução mecânica,
dotada de fenômenos psíquicos e fisiológicos que possibilitam a sonoridade das palavras, ou
seja, designação dos signos adequados às significações interiores da consciência. A lingua-
gem, na perspectiva dessas filosofias clássicas, funciona como instrumento, ou seja, a utiliza-
ríamos para expressar sua significação que é intelectual ou posse de “imagens verbais” dadas
de antemão.

No empirismo, as palavras são apenas símbolos sensíveis utilizados para exteriorizar e pos-
sibilitar a comunicação entre experiências de sujeito. Neste aspecto, o intelectualismo não
se diferencia da corrente empirista: “no que concerne à própria fala, o intelectualismo mal
difere do empirismo e não pode, tanto quanto este, dispensar-se de uma explicação pelo au-
tomatismo” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 241). O sujeito pensante cifra suas ideias, sejam
elas derivadas das experiências, inatas ou imaginadas. Em ambas as posições a linguagem

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é a “vestimenta do pensamento”. Temos aqui mais um dos parentescos entre as psicologias


clássicas apontadas por Merleau-Ponty na Fenomenologia da percepção. Percebe-se como
a linguagem na tradição estava distante da expressão própria do mundo da percepção, pois
ela é fruto das análises intelectuais. As palavras não possuem sentido para essa tradição, mas
apenas as ideias de um sujeito pensante que é alheio ao mundo. Esta passagem da Fenomeno-
logia da percepção nos ajuda a sintetizar o que estamos afirmando:

na realidade, veremos mais uma vez que há um parentesco entre as psicologias empiristas ou
mecanicistas e as psicologias intelectualistas, e não se resolve o problema da linguagem pas-
sando da tese à antítese. [...] E todavia as duas concepções coincidem em que tanto para uma
como para a outra a palavra não tem significação. [...] A palavra ainda está desprovida de uma
eficácia própria, desta vez porque é apenas o signo exterior de um reconhecimento interior
que poderia fazer-se sem ela e para o qual ela não contribui. [...] Ela é apenas um fenômeno ar-
ticular, sonoro, ou a consciência desse fenômeno, mas em qualquer caso a linguagem é apenas
um acompanhamento exterior do pensamento (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 241).

Da mesma forma que Merleau-Ponty utiliza de patologias psicofísicas para evidenciar a Fun-
dação (Fundierung) do corpo próprio no mundo vivido, afetivo e existencial (um todo no sen-
tido rigoroso husserliano), ele também utiliza de problemas da linguagem, como as afasias,
por exemplo, para fortalecer algumas características da linguagem que se opõe ao caráter que
as psicologias e filosofias clássicas estabeleciam2. Para isso, Merleau-Ponty analisa o caso de
um paciente (Schneider) de Gelb e Goldstein, e nota que doentes afásicos possuem dificulda-
des de expressão, às vezes na escrita e também na fala, por terem sofrido algum tipo de lesão
no sistema nervoso central. O nosso filósofo escreve que alguns doentes, quando em situa-
ções afetivas e vitais, suas expressões ocorrem espontaneamente, ou seja, são nessas situa-
ções que necessariamente a linguagem surge como necessidade de comunicação e expressão
da relação do sujeito com o mundo e com os outros. Segundo Merleau-Ponty,

a mesma palavra que permanece à disposição do doente no plano da linguagem automática


furta-se a ele no plano da linguagem gratuita – o mesmo doente que encontra sem esforço a
palavra “não” para rejeitar as questões do médico, quer dizer, quando ela significa uma nega-
ção atual e vivida, não consegue pronunciá-la quando se trata de um exercício sem interesse

2.  Müller explica com clareza como o conceito de Fundação husserliano é tomado por Merleau-Ponty para
fundamentar a expressão em nossos comportamentos perceptivos ou simbólicos. Conceito esse que dará fun-
damentação a estrutura do mundo percebido como se nota na passagem: “Nas Investigações lógicas (Logische
Untersuchungen), especificamente quando trata de uma teoria geral sobre o ‘todo e as partes’, Husserl apresenta
concepções distintas do ‘todo’. A primeira é aquela em que temos o todo em sentido inautêntico. A segunda é
aquela em que temos um todo em sentido rigoroso. Em seu sentido inautêntico, o todo é uma unidade formada
por partes independentes entre si. Para que estas possam estar relacionadas, elas precisam do auxílio de um
elemento exterior que as agregue. A unidade que assim se estabelece não é espontânea, tampouco necessária.
Um todo em sentido rigoroso, ao contrário, não depende de nenhum aporte exterior. Nele, cada parte guarda
uma relação de não-independência em relação às demais, o que faz com que se exijam mutuamente. Consequen-
temente, estabelecem entre si uma unidade espontânea e necessária. ‘Fundação’ (Fundierung) é o nome dessa
conexão essencial que define a relação das partes num todo em sentido rigoroso” (MÜLLER, 2001, p. 152).

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afetivo e vital. Portanto, descobria-se atrás da palavra uma atitude, uma função da fala que
condicionam a palavra. Distinguia-se a palavra enquanto instrumento de ação e enquanto
meio de denominação desinteressada (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 239).

A partir desta passagem destacamos como o doente afásico, para Merleau-Ponty, não conse-
gue se desvencilhar ou se expressar para além de uma situação concreta e que não condiz com
seus interesses internos e existenciais. A linguagem, neste caso, passa a ter um caráter de ins-
trumento segundo os estudos de Goldstein, pelos quais Merleau-Ponty se pauta para as suas
considerações3. Dessa forma, a linguagem automática (concreta) seria a linguagem que está
diante dos interesses vitais. Como no exemplo dado acima, o “não” só é possível de ser dito
pelo doente ao médico, por conta do sujeito está inteiramente na situação. Já em situações
fictícias ou imaginárias o doente não consegue se expressar ou mesmo não tem necessidade
de expressão. É nessa situação que a linguagem gratuita ocorre, pois mesmo tendo as pala-
vras a sua disposição para execução automática, o doente não consegue utilizá-las além da
função instrumental. Neste caso, como destaca Cardim, “a linguagem tal como expressa pelo
doente apresenta apenas um caráter concreto e está subordinado à ação e ao real” (CARDIM,
2012, p. 40). Ou seja: caso fosse uma situação fictícia o doente não conseguiria pronunciar o
“não”. A linguagem gratuita seria o tipo de expressão em que o corpo próprio normal é capaz
de compor as dimensões da linguagem enquanto sedimentada e criadora4. O doente não
pode realizar e fazer a linguagem viva, por conta da ausência de princípios do sujeito saudável
na utilização da linguagem já que não possui a capacidade de expressão simbólica e atitude
categorial. Portanto, podemos concluir, a partir da explicitação das patologias da afasia, que
Merleau-Ponty utiliza como contraexemplo para as teorias da linguagem tradicionais, que o
fenômeno da linguagem, na perspectiva fenomenológica existencial, está condicionado pela
correlação afetiva de um corpo próprio (sujeito perceptivo) com o mundo.

Mais ainda: Merleau-Ponty nota na linguagem também uma atitude categorial, fruto de suas
leituras dos trabalhos de Gelb e Goldstein, que é uma atitude completamente atribuída, pelos
psicólogos alemães, como característica fundamental da expressão humana. O que mostra
que a linguagem é o próprio pensamento que tende à expressão; mas não só isso, pois compro-
va a Fundação que existe entre o sujeito e o mundo em que está situado. Dito de outro modo:
na atitude pré-científica, ou seja, no próprio ato perceptivo, “nomear um objeto é afastar-se
do que ele tem de individual e de único para ver nele o representante de uma essência ou de

3.  A característica instrumental, que estamos nos referindo aqui, está relacionada à utilização da linguagem cir-
cunscrita apenas a uma relação concreta do sujeito com o mundo, como ocorre no caso de Schneider. Já que nas
psicologias clássicas, como explicamos acima, ela é, também, considerada instrumento por servir somente como
exteriorização dos pensamentos de um sujeito.
4.  Da mesma forma para uma discussão desse aspecto, ou seja, da linguagem como sedimentada e criadora na
Fenomenologia da percepção e nas demais fases do pensamento merleau-pontyano conferir o artigo Ebulição na
massa d’água ou a linguagem segundo Merleau-Ponty (CARDIM, 2012). Essa distinção em dimensões fará a fala,
enquanto fenômeno da linguagem, distinta dos outros modos de expressão na Fenomenologia da percepção, dife-
rente das obras de arte, pois a fala, assim como a literatura, são os únicos meios de expressão capaz de sedimen-
tar-se e se reiterar, dimensões que comentaremos mais detidamente a seguir.

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uma categoria [...] por que o objeto mais familiar parece-nos indeterminado enquanto não
encontramos seu nome” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 241). Essa ideia é melhor destacada
ainda na seguinte passagem: “quando fixo um objeto na penumbra e digo: ‘é uma escova’, não
há em meu espírito um conceito de escova ao qual eu subsumiria o objeto e que, por outro
lado, estaria ligado à palavra ‘escova’ por uma associação frequente, mas a palavra traz o sen-
tido e, impondo-o ao objeto, tenho consciência de atingi-lo” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p.
243). Quando nomeamos um objeto temos o poder de alcançá-lo e como que “o fazemos exis-
tir no mundo das coisas”. Nesse sentido, “o nome é a essência do objeto [...] a palavra, longe de
ser o simples signo dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula as significações”
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 242) e podemos encaixá-las em categorias na medida em que
nos relacionamos com o mundo.

Merleau-Ponty utiliza de um exemplo para descrever a atitude categorial a partir da descrição


da amnésia dos nomes de cores: um doente que esqueceu os nomes das cores, quando dado o
objetivo de reunir algumas amostras, faz de forma minuciosa, pois necessita realizar aproxima-
ções, para comparar e perceber qual a semelhança entre elas. No entanto, se nomeada a cor, a
atingimos a partir de sua essência e, consequentemente, conseguimos encaixá-la em uma ca-
tegoria (eidos) com mais praticidade, isso faz a palavra não estar “desprovida de sentido”. A ati-
tude categorial faz, necessariamente, a palavra possuir um sentido e a linguagem ser um ato de
pensamento. Assim, “se a linguagem ‘concreta’ continuava a ser um processo em terceira pes-
soa, a linguagem gratuita, a denominação autêntica tornava-se um fenômeno de pensamento, e
é em um distúrbio do pensamento que seria preciso procurar a origem de certas afasias” (MER-
LEAU-PONTY, 2015a, p. 239). A tese merleau-pontyana vai na direção contrária da linguagem
entendida como posse de “imagens verbais” ou como invólucro de pensamentos. A linguagem,
para Merleau-Ponty, é a expressão do próprio pensamento no mundo sensível: a “linguagem
aparece agora como condicionada pelo pensamento” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 240).

A tese de Merleau-Ponty ultrapassa o intelectualismo e o empirismo, por perceber na lingua-


gem a presença de um sentido, ou seja, a presença do próprio pensamento nos signos (Fun-
dação entre signo e significação), pois um pensamento, para ele, só se torna nosso por meio
da expressão. O pensamento não se consuma enquanto constituinte apenas na interioridade,
ele é força significadora, ele inclina-se para a expressão,

por que o próprio sujeito pensante está em um tipo de ignorância de seus pensamentos
enquanto não os formulou para si ou mesmo disse e escreveu, [...]. Um pensamento que se
contentasse em existir para si, fora dos incômodos da fala e da comunicação, logo que apare-
cesse cairia na inconsciência, o que significa dizer que ele nem mesmo existiria para si. [...] Ele
progride no instante e como que por fulgurações, mas em seguida é preciso que nos apro-
priemos dele, e é pela expressão que ele se torna nosso (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 242).

E é uma dessas expressões considerada, por Merleau-Ponty, privilegiada, que será nosso foco
no próximo momento: a literatura. Essa noção de entrelaçamento entre a significação e o
signo na linguagem, é atribuída à literatura e também a fala, essa última que é o modo de
expressão a qual Merleau-Ponty tem como eixo principal no capítulo VI da primeira parte da

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Fenomenologia da percepção. Vejamos agora como, a partir dessas características da lingua-


gem que descrevemos, a expressão literária passa a ter outros aspectos enquanto realização
do pensamento que tende a ser expresso e passa a existir no mundo sensível.

II

De acordo com o que descrevemos em relação à linguagem, para Merleau-Ponty, a fala, se


apresenta como expressão da interação de um sujeito com o mundo da percepção. Ela é a pre-
sença do próprio pensamento de um sujeito no mundo sensível. As observações apontadas
por Merleau-Ponty, em relação às patologias da linguagem, possibilita outra concepção de
fala, “essas observações permitem-nos restituir ao ato de falar a sua verdadeira fisionomia”
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 247). As psicologias intelectualistas e empiristas a entendiam
como um fenômeno psíquico e fisiológico, justificado por “leis da mecânica nervosa” no cor-
po humano, neste caso, a fala é símbolo sonoro utilizado para exteriorizar pensamentos in-
visíveis (ideias) no interior do sujeito. Existiria, nesse sentido, uma vida interior no sujeito,
antes de qualquer ato expressivo. Mas, ao contrário, as patologias comprovam a presença de
um pensamento no que é dito, “a fala não é o ‘signo’ do pensamento, se entendemos por isso
um fenômeno que anuncia um no outro, como a fumaça anuncia o fogo”, os pensamentos
estão enraizados na fala, “estão envolvidos um no outro [...], e a fala é a existência exterior do
sentido” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 247). Portanto, a fala é um modo de expressão da re-
lação originária de uma consciência com um mundo, ou seja, expressão de um corpo próprio
em Fundação com os “domínios do ser”, ou seja, o mundo percebido5.

Notado isso, Merleau-Ponty utiliza na Fenomenologia da percepção a imagem da ebuli-


ção em um líquido como metáfora para melhor descrever a gênese da fala ou mesmo da
linguagem, uma vez que o pensamento intencional é atividade fundamental “pela qual o
homem se projeta para um ‘mundo’” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 259). Assim, enquanto
as bolhas de uma massa d’água insistem em aparecer de forma espontânea, na medida em
que determinada porção de água entra em interação com o fogo, podemos dizer que a água
refere-se ao corpo próprio, o fogo corresponde ao mundo e as bolhas d’água podem ser con-
sideradas a linguagem, ou seja, a fala que surge como consequência dessa interação e que
se diferencia de onde tem origem: a linguagem surge da interação com o mundo sensível,
mas se diferencia dele.

5.  “As palavras só podem ser as ‘fortalezas do pensamento’ e o pensamento só pode procurar a expressão se
as falas são por si mesmas um texto compreensível e se a fala possui uma potência de significação que lhe seja
própria. É preciso que, de uma maneira ou de outra, a palavra e a fala deixem de ser uma maneira de designar
o objeto ou o pensamento para se tornarem a presença desse pensamento no mundo sensível e, não sua vesti-
menta, mas seu emblema ou seu corpo” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 247).

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Desse modo, Merleau-Ponty, por meio do estudo dos problemas de afasia, mostrou que a
linguagem não está distante do pensamento e que todo pensamento tende para a expressão
e só tomamos posse dele quando o expressamos. Há necessidade do sujeito falante que seus
pensamentos sejam expressos para que tomem vida no mundo sensível, pois para Merle-
au-Ponty: “o próprio sujeito pensante está em um tipo de ignorância de seus pensamentos
enquanto não os formulou para si ou mesmo disse e escreveu, como mostra o exemplo de
tantos escritores que começam um livro sem saber exatamente o que nele colocarão” (MER-
LEAU-PONTY, 2015a, p. 241). Com base nessa noção de linguagem, um texto literário é a
expressão escrita de pensamentos de um autor, ou seja, a expressão se torna um “conceito
linguístico”6, signos que comportam seu significado7. A expressão literária não seria muito
diferente da expressão falada, o autor se reporta das palavras como utensílio de seu mundo
linguístico e expressa seus próprios pensamentos. Elas são como equipamentos, não como
instrumento, mas “a palavra assim como minha mão se dirige para o lugar de meu corpo
picado por um inseto; só tenho um meio de representá-la para mim, é pronunciá-la, assim
como o artista só tem um meio de representar-se a obra na qual trabalha: é preciso que ele
a faça” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 246).

Segundo Merleau-Ponty, a expressão literária, “no caso da prosa ou da poesia, a potência da


fala é menos visível”, pois quando lemos um texto já conhecemos, certamente, o que está
sendo colocado, por estar lendo uma expressão com significações conceituais (pensamentos)
sedimentadas na comunidade linguística que estamos inseridos, assim, “temos a ilusão de já
possuirmos em nós, com o sentido comum das palavras, o que é preciso para compreender
qualquer texto” e, portanto, compreendo porque tenho a presença dessas significações em
mim e porque há uma intencionalidade intersubjetiva (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 244). O
que com a pintura e com a música não acontece, já que não sedimentam, “as cores da paleta
ou os sons brutos dos instrumentos, tais como a percepção natural os oferece para nós, não
bastam para formar o sentido musical de uma música, o sentido pictórico de uma pintura”
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 244). Não preciso reconhecer sedimentações na música e na
pintura para compreender sua significação enquanto obra de arte, essas linguagens quan-
do dizem algo por si mesmas, elas mesmas exprimem sua significação, criam, portanto, seu

6.  Este conceito é derivado da obra de Goldstein, L’analyse de l’aphasie et l’essence du langage:“é preciso que exis-
ta, como dizem os psicólogos, um ‘conceito linguístico’ (Sprachbegriff) ou um conceito verbal (Wortbegriff), uma
‘experiência interna central’, especificamente verbal, graças à qual o som ouvido, pronunciado, lido ou escrito se
torne um fato de linguagem” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 247).
7.  Esta mesma noção da presença da significação no signo na fala, na Fenomenologia da percepção Merleau-Ponty
expande para outras formas de expressão artística, recorre a obras e artistas escritores como Proust e Balzac,
como também a atriz Berma (Sarah Bernardt). No teatro “a atriz torna-se invisível, e é Fedra quem aparece. A
significação devora os signos e Fedra tomou posse da Berma tão bem, que seu êxtase em Fedra nos parece ser
o máximo do natural e da facilidade” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 248). No capítulo VI da Fenomenologia da per-
cepção o filósofo francês recorre a pintores, Cézanne, por exemplo, para descrever e fazer um contraponto com
o funcionamento da fala, ou seja, a presença da significação no signo. Como reconhece Müller, “ainda que, nos pri-
meiros textos, Merleau-Ponty não reflita na importância que o recurso às obras de arte possa representar para a
delimitação da noção de expressão e de cultura, este procedimento foi por ele largamente utilizado. São inúmeras
as referências aos relatos e obras realizados por literatos, músicos e artistas plásticos” (MÜLLER, 2001, p. 222).

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próprio público, a obra musical ou a pintura comporta ela mesma o que quer significar, pois
elas são exemplos de expressão simbólica das relações primordiais do homem com o mundo
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 244). Assim, um texto, se verdadeiramente diz algo, ele nos
transporta para novas dimensões, no sentido de que ele expressa o próprio pensamento do
autor, mas também no sentido de que ele é expressão de remanejamentos das significações
conceituais sedimentadas que este possui de suas percepções do ser e da cultura, ou seja, do
mundo linguístico e intersubjetivo na qual está instalado (Dimensão criadora)8. Podemos
destacar aqui as palavras enquanto “mímica existencial”: atrás das significações conceituais
há uma significação existencial “que não é apenas traduzida por elas, mas que as habita e é
inseparável delas” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 248)9. O autor de um romance retém as pa-

8.  No capítulo VI da primeira parte da Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty distingue a fala em fala falada
e fala falante, que, podemos chamar de “camadas da fala”, expressão que nos ajuda a entender a linguagem como
transformação (Dimensão sedimentada e criadora) e que se faz na interação entre os sujeitos (CARDIM, 2012).
Nas palavras de Merleau-Ponty, “poderíamos dizer, retomando uma distinção célebre, que as linguagens, quer
dizer, os sistemas constituídos de vocabulário e de sintaxe, os ‘meios de expressão’ que existem empiricamen-
te, são o depósito e a sedimentação de atos de fala nos quais o sentido não-formulado não apenas encontra o
meio de traduzir-se no exterior, mas ainda adquire a existência para si mesmo, e é verdadeiramente criado como
sentido. Ou, ainda, poderíamos distinguir entre uma fala falante e uma fala falada” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p.
266). Na medida em que os sujeitos expressam significações, ou seja, os pensamentos ou significações conceituais,
elas passam a existir no mundo sensível, essas significações podem ser retomadas por outros sujeitos em outros
atos de fala ou expressão, como no caso da literatura que estamos descrevendo. A descoberta do fenômeno da
linguagem, tal como Merleau-Ponty descreve, é uma consequência de sua reformulação do problema da percep-
ção enquanto visto a partir da Fundação do sujeito – cogito tácito – com o mundo e os outros.
A Fala falada seria a camada da linguagem circunscrita à dimensão sedimentada, ou seja, na medida em que os
sujeitos expressam as significações, os pensamentos enraízam-se no mundo cultural, sedimentando, e ficam
acessíveis a outros sujeitos. Esse utensílio da linguagem constitui uma língua, uma sintaxe ou um idioma que
pode ser compreendido por outro sujeito em meio a um diálogo, pois, “só podemos falar-nos uma linguagem
que já compreendemos [...] daí a fala falada que desfruta as significações disponíveis como a uma fortuna obtida”
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 267). A fala falante, por sua vez, é a camada de significação da linguagem dentro da
dimensão criadora, ou seja, “é aquela em que a intenção significativa se encontra em estado nascente” (MERLE-
AU-PONTY, 2015a, p. 266). É nessa camada que os sujeitos falantes, ou mesmo os autores, podem retomar o
que já fora expresso alguma vez, podendo reiterar e transformar, o que já estava disponível no mundo cultural
(linguagem gratuita): “é para além do ser que [a linguagem] procura alcançar-se e é por isso que ela cria a fala
como apoio empírico de seu próprio não-ser” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 243).
9.  Além de significações conceituais (os pensamentos, ou seja, as palavras), para Merleau-Ponty a fala ou as palavras
possuem significações existenciais e significações linguísticas, ou seja, essas últimas seriam os signos de um idioma,
os símbolos utilizados para escrever ou pronunciar um pensamento, já as significações existenciais seriam as inten-
ções ao falar ou ao escrever que indicam meu estado de espírito, sentimentos, relação com o mundo percebido.
Para Merleau-Ponty, “o pensamento surge enquanto estilo, enquanto valor afetivo”: “as significações existenciais
de nossa experiência perceptiva são tão somente a orientação comum ou sinergia expressa pelos diversos ele-
mentos que a compõem. Elas são a totalidade ou implicação espontânea desses elementos, o que os faz valer
‘cinestesia’ do corpo próprio, ‘coisa’ no tempo e espaço vividos, ‘intenção’ de nossa ação junto às coisas, enfim,
‘mundo vivido’ ou ‘da percepção’” (MÜLLER, 2001, p. 175). Um exemplo de uma significação existencial é o meu
sotaque que determina de qual região de uma comunidade linguística eu tenho origem. Não preciso retomar
as significações verbais, ou existenciais, ou seja, as intenções, a mímica que realizei no ato da fala primeira para

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lavras que possui à sua disposição e as remaneja para expressar o novo: “cada artista retoma
a tarefa no seu início, há um novo mundo a libertar, enquanto na ordem da fala cada escritor
tem consciência de visar o mesmo mundo do qual os outros escritores já se ocupavam” (MER-
LEAU-PONTY, 2015a, p. 258).

Aqui podemos destacar a noção de “campo de presença” (Präsenzfeld) da estrutura temporal


da subjetividade na qual Merleau-Ponty descreve no capítulo II (A temporalidade) da ter-
ceira parte da Fenomenologia da percepção10. Da mesma forma que ao falar o sujeito possui
o passado imanente ao seu presente, o autor, ao escrever, possui, também, as significações
conceituais percebidas no passado e as utiliza para expressar seus pensamentos no presente.
O autor reabre o tempo, o passado “co-presente” para realizar sua expressão, assim explica
Merleau-Ponty:

só podem falar-nos uma linguagem que já compreendemos, cada palavra de um texto difícil
desperta em nós pensamentos que anteriormente nos pertenciam, mas por vezes essas sig-
nificações se unem em um pensamento novo que as remaneja a todas, somos transportados
para o centro do livro, encontramos a sua fonte (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 243).

que a palavra seja entendida, ou mesmo depois que queira pronunciá-la “o fato de reconhecermos para nossas
construções simbólicas a capacidade de exprimir significações não apenas linguísticas e conceituais, mas também
existenciais, não implica reconhecer que essas últimas sejam uma prerrogativa exclusiva da cultura” (MÜLLER,
2001, p. 175). E como descobrimos na leitura do capítulo VI da Fenomenologia da percepção na pintura e na música
as significações existenciais estão presentes a todo momento, jamais se pode distinguir as obras de arte de sua
significação existencial, já que os artistas, pintores e músicos, para Merleau-Ponty, sempre exprimem a partir de
sua relação com o mundo e jamais com o que está sedimentado.
10.  Existe uma retomada dos pensamentos expressos no ato da fala. A estrutura da subjetividade enquanto tem-
po, para Merleau-Ponty, nos ajuda a compreender esse fenômeno. Assim como as percepções, perfis passados
jamais estão distantes, ausentes, ou mesmo distintos do meu presente e do meu futuro (Fundação), as palavras
às quais nos reportamos para expressar nossos pensamentos estão disponíveis enquanto atos de expressão
sedimentados notados por meu corpo, na minha interação com meu mundo linguístico, pois “o mundo linguís-
tico e intersubjetivo não nos espanta mais, nós não o distinguimos mais do próprio mundo, e é no interior de
um mundo já falado e falante que refletimos” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 250). Ou seja: há uma copresença
dos pensamentos passados em minha fala presente (MÜLLER, 2001, p. 240). A noção de “campo de presença”
(Präsenzfeld) esclarece-nos muito bem a disposição das palavras ou mesmo dos pensamentos sedimentados em
meu presente. De certo que as três dimensões do tempo, passado, presente e futuro, para Merleau-Ponty, se
encontram imanentes no sujeito, dessa forma, as significações conceituais podem ser retomadas, intencionadas ou
mesmo retidas (retenção) enquanto presentes no sujeito e não como ausência. Para entender o papel da me-
mória no corpo, segundo Merleau-Ponty, é preciso entender o passado não como consciência constituinte do
passado, mas por meu corpo tenho a presença desse passado que reabro a todo o momento. O passado não é
ausência, mas está presente em meu corpo de acordo com as suas vivências, nosso corpo “é o meio de nossa
comunicação com o tempo” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 246). Posso reter com meu corpo às palavras que
estão a minha disposição e “basta que eu possua sua essência articular e sonora como uma das modulações,
um dos usos possíveis do meu corpo” para poder pronunciá-las: “o corpo converte uma certa essência motora
em vociferação, desdobra o estilo articular de uma palavra em fenômenos sonoros, desdobra em panorama do
passado a atitude antiga que ele retoma, projeta uma intenção de movimento em movimento efetivo, porque ele
é um poder de expressão natural” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 247).

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Nesta passagem, já podemos encontrar elementos que contribuem para as reflexões posterio-
res do filósofo, a respeito da expressão literária, ou mesmo suas descrições de nossos compor-
tamentos ou “expressões simbólicas”, que serão constatadas em textos da sua fase intermedi-
ária, atribuindo à literatura o caráter de linguagem indireta.

Uma obra literária, com base no que dissemos, portanto, seria a utilização de significações
disponíveis no mundo cultural, significações sedimentadas e, quando reiteradas, dão origem
a novidades, que podem ser compreendidas por outros sujeitos. Percebe-se aqui, de acordo
com o que mencionamos, também na literatura uma potência intersubjetiva. Podemos in-
dagar: a expressão literária recupera, na Fenomenologia da percepção, as relações entre os
sujeitos que a modernidade solapou?

É interessante destacar a intersubjetividade no ato de leitura de uma obra literária. Se a lin-


guagem, nos moldes das psicologias clássicas, fosse uma cifração do pensamento de um autor,
ao ler um livro, ela só suscitaria o que já estava em mim, enquanto leitor, ou seja, as repre-
sentações comuns, e nada se passariam de um sujeito pensante ao outro. Teríamos então a
ilusão da experiência da comunicação que já comentamos acima: “porque temos a ilusão de já
possuirmos em nós, com o sentido comum das palavras” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 244).
Enquanto remanejamento de significações, de palavras, e, portanto, de pensamentos já ad-
quiridos, a leitura de uma obra realiza uma intenção de um sujeito percipiente ao outro: “na
verdade o sentido de uma obra literária é menos feito pelo sentido comum das palavras do que
contribui para modificá-lo [...] [existe] uma reflexão no outro, um poder de pensar segundo o
outro que enriquece nossos pensamentos próprios” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 243).

A operação de expressão, quando é bem-sucedida, não deixa apenas um sumário para o


leitor ou para o próprio escritor, ela faz a significação existir como uma coisa no próprio
coração do texto, ela a faz viver em um organismo de palavras, ela a instala no escritor ou
no leitor como um novo órgão dos sentidos, abre para nossa experiência um novo campo
ou uma nova dimensão (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 248).

Essa capacidade única do ser humano de suscitar pensamentos no outro rompe com a im-
possibilidade de relações intersubjetivas nas expressões linguísticas sustentadas pela ideia
de linguagem como “vestimenta dos pensamentos”. Dessa forma, a expressão literária, para
Merleau-Ponty, na Fenomenologia da percepção, realiza uma dissolução da distância entre
as consciências e entre signo e significação. Há uma verdadeira intenção de uma consciência
para outra, assim como de um corpo para outro: “há confirmação do outro por mim e de mim
pelo outro” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 251). Na passagem a seguir, Merleau-Ponty clarifica
o caráter intersubjetivo da obra literária:

o ‘pensamento’ do orador é vazio enquanto ele fala, e quando se lê um texto diante de


nós, se a expressão é bem-sucedida, não temos um pensamento à margem do próprio tex-
to, as palavras ocupam todo nosso espírito, elas vêm preencher exatamente nossa expec-
tativa e nós sentimos a necessidade do discurso, mas não seríamos capazes de prevê-los e
somos possuídos por ele. O fim do discurso ou do texto será o fim de um encantamento
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 245).

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É por meio dessa intersubjetividade, na leitura de um texto, que podem surgir os pensa-
mentos derivados do que fora lido, pois “o fim do discurso ou do texto será o fim do encan-
tamento. É então que poderão sobrevir os pensamentos sobre o discurso ou sobre o texto”
(MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 245). As significações conceituais e linguísticas ficam dispo-
níveis, ou seja, sedimentadas na cultura, para os leitores11. Portanto, toda essa descoberta e
comprovação de Merleau-Ponty da presença do pensamento nos atos de expressão, seja na
fala e agora na literatura, é o que dá o patamar de expressão ser inseparável do exprimido.
Signo e significação estão em interdependência; essa prerrogativa, na Fenomenologia da
percepção, é levada para o campo artístico, nesse caso, a literatura, e para as outras catego-
rias como no teatro, na música e na pintura.

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11.  “O maior benefício da expressão não é consignar em um escrito pensamentos que poderiam perder-se,
um escritor quase não relê suas próprias obras, e as grandes obras depositam em nós, na primeira leitura, tudo
aquilo que a seguir extrairemos delas” (MERLEAU-PONTY, 2015a, p. 244).

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