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OS SABERES-ATITUDES DO TERAPEUTA COMO FATORES DECISIVOS NA RELAÇÃO TERAPÊUTICA

Neogênese: o desenvolvimento pessoal mediante a psicoterapia - Capítulo III (pág. 43)

1. Conhecimento da realidade externa e autoconhecimento.


Existem diversas formas ele conhecimento. Conhecer é uma exigência primária para a vida prática; ainda no plano mais
elementar precisamos ter algumas noções do terreno e do afazer que nos propomos. Aliás, boa parte do conhecimento
corriqueiro deriva e se origina na vida prática; o saber comum é aquele que aplicamos na vida cotidiana, adquirido por
aprendizado puramente empírico. É um saber de "como fazer e como comportar-se em determinadas situações". Não é
um saber conceptual nem teórico - ou o é em mínimo grau.
Num nível primário, conhecer é simplesmente aperceber-se de como funcionam as coisas e as relações interpessoais em
determinada área. O saber comum não se coloca como um conhecimento de validade universal baseado em princípios
racionais evidentes ou baseado em inferências rigorosas. Não se indaga sobre as causas e a razão de ser dos fenômenos
que entram na sua prática. Inclusive quando se indaga sobre as causas procurando uma explicação que satisfaça sua
curiosidade intelectual não chega a sua razão intrínseca e essencial.
Quando alcançamos a razão de ser de um fenômeno e sua articulação num processo superando os dados meramente
sensíveis, obtemos um conhecimento rigoroso, seja de tipo científico, seja filosófico. As duas modalidades têm uma
validade universal, isto é, se apresentam com as feições da verdade, formulável num princípio universal. Este tipo de
conhecimento é bastante incomum; exige toda uma disciplina da mente e requer um método apropriado de análise e de
reflexão.
Existe outra forma de dar-se o conhecimento: como saber da realidade externa - das coisas do mundo aí fora, da
natureza, do chamado (pág. 44) campo objetivo -e como conhecimento de si e da realidade pessoal. A semelhança das
outras duas categorias de saber descritas acima, tendemos a ter uma maior familiaridade com o mundo externo,
chegando a ignorar os aspectos essenciais da realidade pessoal. Um engenheiro, um cientista renomado, sói mostrar um
saber assombroso sobre uma determinada área, mas não seria surpreendente se revelasse ser bastante analfabeto em
relação a si mesrno.
Contudo, o autoconhecimento é a chave mestra do desenvolvimento e do bem estar pessoal; mas não qualquer grau de
autoconhecimento, pois no sujeito menos esclarecido existe certa compreensão de sua realidade íntima. Desde o
momento em que nos tornamos conscientes de nossa existência como indivíduos, ao redor do final da infância, e suposta
uma capacidade intelectual normal, todos têm um saber básico do que lhes acontece. Este conhecimento elementar vai se
tomando progressivamente mais rico e complexo no decorrer dos anos juvenis até alcançar um patamar satisfatório
segundo seja o projeto de vida da pessoa, segundo as exigências que lhe impõe sua realidade social - seu oficio, seu
status, sua instrução formal.
Sem querer ser pessimista eu diria que este conhecimento de si alcançado por mero decurso de prazo - como costumam
falar os advogados - não vai muito longe: dá para o uso doméstico. Precisa então toda uma proposta de desenvolvimento
para conseguir um patamar mais alto. É uma proposta deliberada, consciente e responsável, que exige da pessoa um
esforço persistente e disciplinado. É verdade que pessoas excepcionais conseguem um grau de desenvolvimento notável
com muita facilidade, mas isto é raro.
Os saberes que proponho em seguida são os requisitos indispensáveis para exercer o ofício de terapeuta; eles são
também as atitudes básicas que devem nortear a conduta de qualquer pessoa que queira usufruir melhor os bens da vida.
Não são patrimônio exclusivo e puras exigências para exercer o trabalho de terapeuta. Estão ao alcance de qualquer
pessoa que se proponha um desenvolvimento criativo, aberto aos convites do mundo e disposto a enfrentar seus
inevitáveis desafios, barreiras e dificuldades. As exigências de um autoconhecimento e sua adequada prática, é um dos
objetivos de um processo de neogênese. Ninguém alcança um estágio de desenvolvimento superior sem o cumprimento
desta exigência. Pode tornar-se o maior cientista na sua especialidade ou ser um indivíduo muito bem sucedido em
termos materiais, mas continuará sendo um sujeito extremamente vulnerável às peripécias e abalos inevitáveis da vida
corriqueira. (pág. 45)

2. Personalidade, ética e saberes pessoais


É coisa bem sabida: não basta ter um diploma na pasta das credenciais acadêmicas para ser um terapeuta competente.
Nem tampouco basta a boa vontade para ajudar a outra pessoa. Sem dúvida, a passagem por uma escola e todo o
aprendizado que isto implica, nos leva a conscientizar a necessidade de desenvolver em nós certas atitudes básicas que
permeiam o exercício adequado da psicoterapia. Os anos de formação, por mal aproveitados que sejam, nos permitem
perceber que este ofício exige de nós mais que qualquer outro, quanto a qualidades humanas. Quando pensamos e
inclusive quando discutimos em seminários sobre alguns requisitos que devemos preencher para nos tornarmos as
pessoas dignas deste oficio chegamos a duvidar que sejamos os sujeitos indicados para tal empreendimento; alguns, mais
conscienciosos talvez, optam por desistir, por esta e por outras razões.
Mas a verdade é que nos anos de formação nunca nos conscientizamos tanto como para sentirmos esta questão em toda
sua gravidade. Pensamos, quando pensamos, que o exercício da profissão nos ensinará o que por ventura nos falte. Por
enquanto nos sentimos portadores de duas qualidades preciosas: interesse em ajudar aos outros e uma adequada
sensibilidade para o lado subjetivo dos problemas humanos. Estes são os dois interesses primordiais, alterocêntricos. São
os dois pressupostos que sustentam o projeto de tornar-se psicólogo.
Também é verdade que por vezes nos pegamos em atitudes que desmentem esta suposta sensibilidade para os
problemas humanos de natureza subjetiva; em vez de tentar compreender uma conduta atípica ou incomum como seria o
caso, fazemos como faz a maioria - a despachamos colocando- a na prateleira das condutas 'anormais', sem questionar o
simplismo desta operação. Ou nos pegamos, em mais de uma ocasião, sendo indiferentes e até estúpidos perante as
inúmeras formas de injustiça social e de sofrimento coletivo. Lembro-me do que me referiu um colega quando estava no
último ano de preparação acadêmica:
"Talvez por todas as discussões que já houve entre nós sobre os requisitos para tornar-se um psicólogo qualificado,
comecei a indagar-me seriamente se eu preenchia alguns destes requisitos. Eu sabia que tenho uma série de traços
neuróticos, mas faz um ano que comecei meu treino psicoterapêutico e isso me tranquilizava com respeito a esses traços.
Mas agora não estou mais seguro se realmente tenho disposição para ajudar outras pessoas. Havia notado que minha
veia humanista em matérias políticas e sociais era muito escassa. Para ser sincero penso que as injustiças sociais, (pág.
46) sobretudo aquelas decorrentes da pobreza, não me tocam. Sei que não deveriam existir, mas penso que não é
assunto meu e que cada qual deve ajeitar sua vida sem esperar grande coisa dos outros. Penso que sou um cara muito
egoísta e egocêntrico, embora seja capaz de mostrar interesse pelas pessoas, e me é fácil vender a imagem de ser um
jovem atencioso, bem disposto para quem esteja por perto; mas estou longe ele ser tudo isso. Estou em dúvida se desisto
de psicologia clínica passando para uma área de pesquisa ou de ensino. Ou será que uma autoanálise me ajuda a sentir
verdadeiramente meus semelhantes?'' (1 )
Contudo, estes desmentidos gritantes não nos desanimam. Ainda temos o recurso da chamada análise didática, que nos
permitirá resolver algumas incongruências entre caráter e valores, entre tendências egocêntricas e verdadeira abertura
para o próximo, entre prática efetiva e ideal de si.
Não conheço pesquisas que mostrem que uma análise preparatória seja suficiente, junto com o preparo acadêmico, para
que o futuro terapeuta punha em exercício os saberes-atitudes que o tornam idôneo na sua profissão. Talvez não seja por
si só suficiente, mas ela resulta indispensável para desenvolver alguns destes saberes. Falo de uma análise preparatória
levada a sério, feita não para cumprir um passo a mais de um currículo profissionalizante nem para ver meramente como
funciona um processo deste tipo na prática. Feita com o firme propósito de alcançar o estágio de Esaucrilib (2)
Penso que um bom terapeuta apresenta num grau notório as características do esaucrilib; notório, quero dizer que estão
operando na sua conduta e na sua visão do mundo; operam ao ponto que o outro, em especial o coagente, percebem
estas qualidades. Em outro lugar me refiro ao sentido de autenticidade, ponto sobre o qual tanto insistiu C. Rogers
quando escreveu sobre as qualidades que possibilitam uma adequada relação terapeuta-cliente.
Além dos dois interesses primordiais e de um grau apreciável de esaucrilib, quem se dedica a este ofício precisa ter um
definido senso ético, isto é, uma clara definição com respeito aos fins e meios que validam uma conduta socialmente
correta.
Não vou insistir por ora sobre todos estes pontos, pois meu propósito neste capítulo é expor o que considero os saberes-
atitudes que precisam estar presentes no desempenho profissional de um psicólogo, como habilidades
operativas e como traços pessoais. Todas as outras qualidades que mencionei são os pressupostos do relacionamento.
Até que ponto estes pressupostos são respeitados e seguidos pelos que se autorizam para exercer esta atividade, (pág.
47) isto é um outro assunto. Assunto que muitos não levam em consideração, ou parecem ignorar.
De qualquer maneira, estes componentes da personalidade do terapeuta me parecem indispensáveis para seu intuito de
ajuda efetiva ao cliente. Eu diria que todos eles funcionam, por assim dizer, em circuito integrado, influindo-se
mutuamente. Quanto mais desenvolvidos estão os traços do esaucrilib tanto mais se tornam presente nos saberes-
atitudes.

Definições éticas norteadoras Saberes-atitudes


Espontaneidade Saber acolher
Autenticidade Saber empatizar
Criatividade Saber escutar
Liberdade Saber observar
Saber ser objetivo
(ES-AU-CRI-LIB) Saber indagar e questionar
Saber orientar
Interesses primordiais alterocêntricos
Esquema dos traços dominantes do terapeuta como pressupostos e operadores de sua atividade.

Alcançar este estágio de relativa liberação pessoal não é uma tarefa fácil. É verdade que há pessoas que são naturalmente
sadias, sem indicadores de neurotismo, e escassamente egocêntricas e narcísicas, admitindo já que estes dois fatores
sejam da natureza humana, podendo nós apenas reduzi-los a sua mínima expressão. Mas estes seres privilegiados, como
sempre, não são muitos (nem sequer me atrevo a sugerir uma percentagem hipotética da população adulta). Esta é uma
das razões que impõem ao futuro terapeuta uma Análise Preparatória. Não são muitos, porque existem os mais variados
fatores sociais que impedem um desenvolvimento salutar. Questionar os aspectos mistificadores do sistema social se
tornou uma necessidade de nosso próprio crescimento mental; sem este questionamento o indivíduo fica preso nas redes
de preconceitos e de mitos - além dos falsos valores - que circulam nos diversos setores da sociedade.
Noutro capítulo considero a questão da autenticidade; uma questão complexa que se costuma simplificar com fórmulas
que escondem as dificuldades que suscita este conceito. Fórmulas que ensinam "que ser autêntico (pág. 48) é ser
verdadeiro", ou ''dizer o que se pensa e o que se sente" como se isso fosse o mesmo que semear batatas.
Entremos então nas tão desejadas virtudes do terapeuta. Digamos apenas, para terminar esta parte, que os quatro outros
saberes, além dos três que mencionei, podem ser aprendidos nos anos de formação profissional. São mais um produto do
ofício que qualidades já internalizadas pela pessoa.Até certo ponto não tem a mesma importância que as três primeiras,
embora sejam habilidades que igualmente ajudam no trabalho proposto.
Na escolha destes saberes não pretendo esgotar todos os recursos que um profissional possa colocar em jogo. Uma
análise ainda mais exigente, ou usando outro referencial teórico, pode acentuar a importância de outros fatores.
Até aqui enfatizei a importância de todos estes saberes como os fatores principais do andamento terapêutico, mas não
sublinhei o fato que todas estas virtudes se manifestam na atividade que melhor caracteriza este tipo de relação: no
diálogo. Acredito que de todas as atividades possíveis, que podemos propor como recursos para facilitar o
desenvolvimento de uma pessoa, o diálogo continua sendo o mais indicado e a ferramenta mais poderosa para cumprir
este objetivo.
Não desacredito nos outros recursos que o terapeuta possa propor. Estes últimos anos surgiram uma série de técnicas
que não centralizam suas atividades na palavra. Penso que todas elas têm sua validade. Eu mesmo costumo usar algumas
técnicas, onde o diálogo está menos presente; mas todas estas técnicas me parecem recursos auxiliares, meios que nos
permitem criar situações experimentais que oferecem a possibilidade e a ocasião de exercitar certas capacidades do
cliente.
Todo comportamento social impõe alguns princípios éticos norteadores. Estes princípios possibilitam o relacionamento
interpessoal; sem ele não é possível um entendimento mínimo entre os humanos. Quando lidamos com máquinas, coisas
e mercadorias até podemos colocar em segundo plano a questão ética; nos relacionamentos com pessoas se colocam em
primeiro plano. Não é difícil concordar nalguns princípios. Eu indicaria aqui o fundamental: o respeito e consideração pelo
próximo, correlativo do respeito de si. Todos os outros são derivados desta exigência primeira. Se você experimenta
respeito por uma pessoa lhe resultará fácil manter um comportamento ético com ela. Por esta razão, os relacionamentos
baseados na servidão -no desprezo do outro - são, além de opressivas, profundamente aéticas. É necessário enfatizar que
o respeito supõe senso de responsabilidade: saber responder por seus próprios atos. Supõe também saber discernir entre
o (pág. 49) certo e errado.
Examinando com atenção os três primeiros saberes-atitudes (acolher, empatizar e saber escutar) percebemos que são um
reflexo dos três componentes básicos da personalidade postulados por nós como os pressupostos da atividade
terapêutica.
Estes três saberes derivam de um amplo senso da liberdade pessoal. Não falo aqui da liberdade como mero dado
ontológico do homem, como fundamento de sua existência. Falo da liberdade como a capacidade de desligarmos dos
elementos que nos condicionam e nos sujeitam a seu império: a entendo aqui como liberação. Liberação dos
condicionamentos neuróticos e do narcisismo primário. Liberação das imposições alienadoras do sistema social - de seus
preconceitos medíocres e de seus mitos encantatórios, opiáceos, de consumo popular.
Estar livre de condicionamentos neuróticos significa sentir-se à vontade no mundo; à vontade, apesar de todo seu lixo de
sua adversidade; sabendo lidar com toda essa adversidade com boa disposição. Significa estar livre de preocupações
egocêntricas e narcisistas - tão comuns em pessoas neuróticas. Não significa reduzir o narcisismo e o egocentrismo a
zero; não estou propondo outra fantasia-desejo igualmente narcisista (tipo liberação total). É simplesmente não pautar
nossa vida por esse tipo de preocupações. Significa não deixar-se comandar pelas miragens do ego e o mero fascínio de
uma imagem ideal de si.
INDICADORES FREQÜENTES DE NARCISISMO - e um conceito mínimo que o define
A questão do narcisismo ainda não está bem caracterizado na psicologia. Penso que uma definição inicial é conveniente
para sabermos de que estamos falando. Proponho uma a título de primeira aproximação: o narcisismo é a tendência ao
desmembramento de um suposto valor pessoal e a negativa para reconhecer o próprio desvalor e deficiência. Entendo
que o reconhecimento do próprio valor é algo saudável, no mínimo: é a base do sentimento de autoestima e da tranquila
aceitação de si mesmo. Uma pessoa pode perceber-se como inteligente e bem dotado numa série de aspectos, inclusive
no lado da aparência pessoal, sem que por isto fique deslumbrado - que é o que acontece ao Narciso do mito grego. Mas
o narcisismo também tem a outra face: o não reconhecimento do desvalor possível, ou da deficiência, que nos afeta a
todos nós, inclusive ao mais virtuoso. Só com a intenção de ilustrar este conceito dou alguns indicadores de (pág. 50)
narcisismo. A lista não pretende ser exaustiva, é apenas um levantamento de atitudes relativamente frequentes em
pessoas com um forte componente narcisista.
Alguns indicadores prováveis de narcisismo:
- Todas as formas da vaidade, isto é, todas os formas de realce supérfluo, da exibição de bens e do querer aparentar
mais do que o sujeito é (geralmente por meio do mero cuidado da fachada)
- Todas as formas de presunção: assunção de qualidades e posições que o sujeito se atribui como uma forma de
valorizar-se, procurando sua aprovação.
- Todas as formas de arrogância: não querer dar o braço a torcer, não querer reconhecer ou admitir os próprios
erros, não aceitar críticas, não querer mostrar os pontos fracos e vulneráveis, etc. O presunçoso pré-assume qualidades;
o arrogante se arroga superioridade.
- Todas as formas de megalomania: ter aspirações desmedidas, querer ser o maior, querer impor-se aos outros. É a
autoglorificação.
Como se vê por esta enumeração, o narcisismo é bastante comum em todos nós - inclusive alguns destes indicadores são
estimulados ou vistos como normais, na megalomania é francamente sintomático.

3. Saber acolher
Saber acolher não é um assunto de boa educação. Longe disso. As pessoas educadas podem ser corteses e gentis, mas o
são geralmente por mera formalidade e por conveniência social. Boa educação é sinônimo de comportamento adequado
em situações sociais. Por educação tratamos às pessoas como as regras e normas mandam, com uma cortesia que não
convida nem rejeita.
Posso estar dando a impressão de que enxergo a educação como simples cuidado da fachada e como a arte de agradar,
melhorando nossa imagem e ganhando aceitação. Também é isso e algo mais, o sei. Pode haver uma educação para a
verdadeira convivência, aquela baseada na solidariedade, no respeito e a boa vontade, sem ter que renunciar a um modo
genuíno de ser. Quando formos ensinados nesta segunda forma de educação provavelmente saibamos ser acolhedores
como o próximo.
Saber acolher é convidar ao outro para que seja ele mesmo, se sentindo a vontade em nossa presença. Nos gestos, no
olhar, nos movimentos, nas palavras expressamos este convite. (pág. 51)
No acolhimento estamos abertos ao outro, sem as prevenções e cautelas das situações impostas. Acolhemos ao amigo em
nosso lar, confiantes em seus propósitos e na benignidade de sua presença. Todo acolhimento é um ato de confiança, um
ato de fé. Por esta razão todos os textos sagrados nos exortam para acolhermos a sua mensagem nos recintos da alma.
Convite, abertura, confiança. Estes são os três movimentos que favorecem o acolhimento, fazendo possível sua
ocorrência. Quem não está aberto para o outro, permanecendo encolhido em sua cápsula egóica, não acolhe o chamado
incitante do mundo nem pode convidar a quem se aproxima a seu lar interior.
Quem dá confiança, afiança - assegura e outorga um voto de crédito; mas para dar confiança primeiro é preciso que seja
confiante: que ponha fé em si mesmo. De início, o terapeuta novato ainda não confia na sua arte. É compreensível; seu
conhecimento do ofício é apenas conceptual e teórico. Isto acontece em qualquer atividade. O engenheiro não fica menos
embaraçado quando começa a construir o primeiro prédio nem o professor se sente como passarinho perante os frutos da
primavera quando enfrenta, o primeiro semestre, uma aula. Mas uma coisa é sentir que ainda não se domina o ofício e
outra bem diferente é não sentir confiança em si mesmo.
Em todo empreendimento precisamos de autoconfiança, mas este sentimento-atitude se relaciona e se apoia em dois
elementos: primeiro, num sentimento básico de segurança, sentimento que, se traduz na percepção de que habitamos um
mundo suficientemente previsível e propício como para podermos transitar nele sem excessivos cuidados e previsões.
Segundo, na percepção de nossas capacidades e recursos.
A segurança é o solo ontológico da existência: é o sentimento básico de que vivemos num mundo hospitaleiro, podemos
perceber o mundo como variável, relativamente inconstante, incerto em alguns aspectos, inclusive ameaçador e perigoso
em determinadas regiões. De falo, o mundo é tudo isso, mas não podemos senti-lo como predominantemente inóspito,
nem muito menos como completamente inóspito.
A autoconfiança é a consciência de que temos capacidades, recursos para dar conta de nossa situação vital; ela depende
em boa medida tanto da segurança básica como da situação geral e concreta. Há variações da situação que podemos
encarar com ânimo confiante, cientes de que podemos dar conta delas, mas é possível l que as variações comportem
riscos bem além de nossos recursos: então perdemos o aprumo, nos tornamos inseguros e nossa confiança pode ser
abalada - sobretudo após de ter experimentado já algum fracasso nessa área. E aqui está o importante: o grau de nossa
(pág. 52) insegurança vai depender da confiança que tenhamos em nossos recursos. Estes três elementos do acolher são
sentidos pelo cliente. Não importa quão enfronhado esteja em seus conflitos. Como reflexo ele vai reagindo da mesma
maneira. Pode ser que no início ele esteja cético e até desconfiado do terapeuta, mas logo que começa a sentir o convite
de seu parceiro termina por entregar-se à situação.
Demais está dizer que o acolher não é privilégio exclusivo da relação que estamos comentando. É também um
componente que teria que dar-se nos vínculos de amizade e na esfera do amor. Os três elementos mencionados, neles
também se encontram, pelo menos nalguma medida. Na medida do afeto e do respeito. Quando não há suficiente
acolhida talvez exista atração erótica, alguma simpatia mas não amor nem amizade.
Pode parecer óbvio demais o caráter benéfico do acolher; poderíamos simplesmente concluir que nos agrada que nos
tratem com especial deferência. Nos relacionamentos de amizade e mais convencionais nos gratifica a deferência amável.
Mas há algo mais profundo na atitude em pauta. Não é uma questão de mero agrado. No acolher convidamos ao outro
para que também ele se acolha - pois o acolhimento de si para si é insólito nas pessoas que atravessam períodos de crise,
e não só de crise.
Assim, como nas condutas de rejeição - na agressividade e no desprezo, na distância fria e na formalidade pedante -
convidamos e autorizamos ao outro para que ele nos retribua com a mesma moeda, assim também acontece com o
acolhimento: o convidamos para que se abra a nós e a si mesmo, num duplo movimento.
Com nossa atitude de abertura afável, o próximo é confirmado em seu valor, percebe-se aceito. Este é o primeiro
momento, imprescindível para que surja o segundo. Ao sentir-se aceita, a pessoa adquire a confiança suficiente para
mostrar-se em seu modo mais genuíno; pode ainda experimentar um receio inicial, mas esta desconfiança vai cedendo
devagar à medida que sente corno verdadeira a atitude do terapeuta - isto sucede, aliás, em qualquer relacionamento.
Este é o princípio: quando nos sentimos aceitos aprendemos a aceitar-nos - e na aceitação nos reconhecemos, inclusive
na deficiência e limitação.

4. Saber acompanhar ao interlocutor - A simpatia e a empatia


Não deixa de ser surpreendente que uma pessoa precise alugar algumas horas por semana para que um
desconhecido se disponha a ouvir suas dores, dúvidas, medos e desencantos - sobretudo se este desconhecido
chamado terapeuta fala pouco, cobra caro e apenas (pág. 53) insiste que a saída depende de quem a procura, não
de quem indica a porta.
Podemos simpatizar com diversos tipos de pessoas. Tendemos a simpatizar com todos aqueles com quem nos
identificamos de alguma maneira; diríamos que quanto maior e a identificação maior é a simpatia. Simpatizar é sentir
com, experimentar o que o outro também experimenta. Na simpatia nos abrimos ao convite do outro, encontrando nele
certa afinidade ou percebendo uma atitude propícia; propícia inclusive para exercer nosso senso de solidariedade ou de
humanidade - como quando nos aproximamos de uma pessoa que está precisando de ajuda.
Há pessoas que nos inspiram simpatia; outras que provocam rejeição: isso nos acontece seja no contato direto, seja nas
figuras que observamos como protagonistas de um filme ou de um romance. Não preciso dizer que quem nos mostra
consideração nos inspira este sentimento; nos surpreendemos quando sentimos simpatia por quem nos rejeita, ou se
mostre indiferente, mas não é algo completamente insólito. Talvez fosse mais correto dizer que neste caso se trata de
algo diferente: é provável que se trate de atração sexual. Pode ser tão forte que o sujeito não chega a abalar-se pela
rejeição manifesta. Alguns confessam que isso ainda os excita mais.
A direção de nossa simpatia revela aspectos importantes de nossa afetividade. Há pessoas que tendem a experimentar
simpatias por figuras que representam o sucesso e o poder, rejeitando aos humildes e os desafortunados; uns preferem,
especialmente como personagens de ficção, os malandros, os espertos e os bons vivants. Nem sempre sabemos explicar-
nos algumas destas afinidades.
A empatia se parece com a simpatia, mas é diferente. Podemos sentir simpatia por um amigo ou outro indivíduo qualquer
e isso não nos leva necessariamente a um contato empático. Só nos facilita a empatia. Dificilmente enpatizaríamos com
alguém que rejeitamos.
Empatizar é situar-se no lugar do outro, captando assim o movimento de seu afeto. Se não consigo colocar-me no lugar
do outro não há empatia. Sem esta capacidade é muito difícil compreender o lado emocional e os aspectos menos
convencionais de uma pessoa. Podemos ter uma compreensão intelectual dela, mas será algo meramente conceptual, não
algo que nos aproxime e nos permita, sequer por um momento, ver com os olhos do outro e sentir um pouco com suas
fibras anímicas. Digo sentir um pouco, pois o que acontece a uma pessoa não é inteiramente transferível. E na relação
terapêutica não seria desejável uma comunhão tão grande de afetos, isso (pág. 54) envolveria demais ao terapeuta,
impedindo-o de enxergar as coisas com o mínimo de distância que precisa para discernir o ruído do som.
Há pessoas que por serem muito egocêntricas mostram escasso senso de empatia, ou porque estão transitoriamente
enfronhadas em seus problemas pessoais não estão em condições de transpor suas próprias barreiras.
A simpatia implica num movimento de aproximação bem disposto, na empatia nos aproximamos um pouco mais,
situando-nos na perspectiva de nosso próximo, sem chegar a coincidir com ele, pois isto é literalmente impossível.
Posso compreender os ciúmes ou a reação de frustração de um amigo por via intelectual ou por via empática. No primeiro
caso permanecerei a distância dele, tendo talvez algumas palavras de boa educação para seu infortúnio; o mais provável
é que o julgue: ninguém é completamente vítima no que lhe acontece, seguramente ele merecia tudo aquilo - quiçá isso
lhe sirva para que aprenda.
Na compreensão empática minha atitude será algo diferente. Seu infortúnio me tocará de alguma maneira, enxergarei
seus motivos e inclusive seus erros com benevolência; talvez não diga nada, mas ele perceberá que não o julgo; se logo
me permite dar-lhe alguma sugestão, até discrepando de sua maneira de agir, ele não perceberá censura nas minhas
palavras. Perceberá minha intenção de ajudá-lo. No que seguramente não está equivocado.
Eu entendo que ser empático não implica que a pessoa se omita para evitar uma aberta divergência. O movimento da
empatia é a compreensão; seu sentido existencial é encontrar em si mesmo, sequer a título provisório, o que está
afetando ao outro. Depois de ter compreendido o que lhe acontece, depois de tê-lo acompanhado - e me parece que esta
é a palavra que melhor traduz esta atitude - no movimento de seus afetos, podemos divergir e ainda confrontarmos com
ele. A empatia não é uma forma de cumplicidade.
Acompanhar é uma proposta necessária pelo menos por três razões:
a) porque a pessoa que solicita ajuda terapêutica está precisando de alguém que esteja com ela na sua fase de
vulnerabilidade;
b) este alguém não é qualquer um, mas o outro qualificado por seu saber - que se acredita conhecedor das ciladas do
caminho;
c) este acompanhante responde à demanda de ajuda, figura concreta na qual encontra e confirma sua própria condição
humana, enfraquecida e desvirtuada pelas experiências adversas que originaram seu sofrimento.
Esta necessidade de companhia - é bom lembrar - está colocada também no plano metafísico-religioso, que neste ponto
intui a fragilidade humana oferecendo o auxílio simbólico, auxílio personificado na figura do anjo. Não se (pág. 55) pense
que a importância do anjo na tradição judeu-cristã-islâmica é uma mera fantasia, um mito a mais. É uma representação
simbólica desta necessidade de ajuda. Nem preciso dizer que não estou aqui justificando toda essa corrente mistificadora
que circula por aí no mercado da literatura de autoajuda, que vende a ilusão de como obter as mil graças de inúmeros
anjos.

5. Saber escutar
"Minha infância foi fecunda em pequenas descobertas; duas me tocaram de perto. Uma destas descobertas foi que
tanto minha mãe como meu pai falam demais; e falavam ao mesmo tempo, como se tivessem que encher o
espaço com suas vozes: foi ai que percebi que nenhum dos dois escutava o que o outro dizia. A segunda
descoberta foi o valor do silêncio'' (Uma pessoa em psicoterapia)
''Quem está apaixonado por ti sabe falar-te lindas palavras, mas só quem te ama sabe escutar-te" (provérbio indiano)

Quando converso pela primeira vez com uma pessoa procuro logo constatar se sabe escutar ou não; sem dúvida, aprecio
e levo em conta sua inteligência, a qualidade de suas informações e o rigor de seu raciocínio, mas se percebo que não se
interessa em escutar concluo que ela não conhece a arte do diálogo e que ainda não superou um certo egocentrismo de
criança mimada. Por desgraça, não é fácil encontrar interlocutores de antenas atentas, cientes de que só temos direito a
falar quando primeiro sabemos ouvir.
Escutar significa deixar que o outro se expresse colocando-nos numa atitude de receptividade cordial; significa também
saber omitir-se para não interferir na livre fluência da outra pessoa. Às vezes, ao terapeuta lhe é difícil omitir-se perante
algumas colocações de seu consulente; sente o impulso de mostrar-se ele também, de argumentar em prol ou contra as
afirmações ouvidas, sente necessidade inclusive de refutar e ensinar. Escutar a outro significa estar disponível: sem
ânimo pré-concebido, sem necessidades urgentes de expressão pessoal. É preciso esclarecer que há uma diferença entre
ouvir e escutar: ouvir é simplesmente captar uma mensagem, uma informação; escutar é captar uma mensagem
atendendo a seu sentido menos explícito, abrindo-se inclusive a seu convite.
Escutar a palavra do interlocutor permite captar de onde e a quem fala. O onde revela o lugar desde o qual emana seu
dizer. Emana de sua mágoa, de sua culpa, de seus pais, do outro anônimo? Emana do olhar sereno que planeja sobre as
coisas numa avaliação ponderada? Revela o plano que (pág. 56) origina sua fala. Para quem fala? Dirige-se ao terapeuta
enquanto interlocutor-testemunha, ou fala para um personagem de sua história? Ainda, talvez, fala de si para si,
meditando, como desdobrando-se entre o que acredita ser e o outro-ser, que erige como testemunho ideal (juiz, amigo,
simples acompanhante).
Escutar não é uma tarefa fácil: vivemos num mundo cheio de egoísmo e de supérflua tagarelice; falamos mais para obter
informações e dados que para comunicarmos. O diálogo mesmo é uma experiência algo insólita e incomum; porém, saber
ouvir é uma experiência primordial; como escreve Max Nolden: "Aprende a ouvir e chegaras a perceber até o movimento
da terra em sua peregrinação cósmica; sobretudo aprende a escutar, que assim entenderás não só o pensamento de teu
interlocutor mas o que subjaz oculto detrás desse pensamento. Aprende a captar teu próprio silêncio porque detrás desse
silêncio muitas vozes falam para ti." (3)
O sentido existencial do escutar é que a palavra do outro deixe de ser simples mensagem para tornar-se palavra viva para
quem fala.
Saber escutar supõe ficar em silêncio; refiro-me ao silêncio da mente, aquele que conseguimos na meditação tal como ela
é ensinada pelos mestres orientais. Meramente calar não é estar em silêncio; quando calamos perante um interlocutor
podemos continuar tagarelando no pensamento. Ficar no silêncio da mente é entregar-se ao convite do mundo - ou do ser
das coisas - na muda contemplação, sem que nenhum comentário ou voz emane do sujeito (de nós). Quem não sabe ficar
em silêncio pode calar, permitindo assim que o outro se exprima, sem interrupções. Isto será um primeiro passo, um
requisito mínimo: Contudo, não é suficiente, pois é possível que seu pensamento (ou fala interior) continue discutindo,
objetando, interceptando o que o interlocutor está tentando transmitir. Pode inclusive distrair-se e até desligar-se da
demanda de atenção que coloca a palavra do outro no diálogo.
Por outra parte, só quem ficar em silêncio pode deixar fluir o mais íntimo de si quando fala. Quem conquista o estágio do
silêncio não mistura vozes, mistura oriunda de diferentes motivos que pugnam por expressar suas demandas. Emana de
si, quando fala, a voz mais própria - a voz do self, como costumam dizer os anglo-saxões. Quem fala desde o si-mesmo
não fica desdobrando-se em conflitos e em jogos de esconde-esconde ("gostaria de falar mas temo ser mal
compreendido", "não sei se devo falar", "devo dizer isso embora sinta outra coisa" - e assim por diante).
Só quem sabe ficar em silêncio chega a captar o valor essencial da palavra; então deixa de tagarelar. Compreende que a
palavra não é uma falsa moeda que circula por aí para divertimento dos tolos e ganho de alguns (pág. 57) espertos.
Percebe logo quem a usa com esse propósito. Usa a palavra, com ponderação, calibrando e sopesando seu justo
significado.

6. Saber observar e saber estar atento


Temos que estar atentos ao visível e ao invisível: não apenas no trato interpessoal; não apenas em relação ao nosso interlocutor e
parceiro; mas especialmente em relação a nós mesmos. Atento ao que se mostra disfarçando-se e ao que se disfarça para poder
mostrar-se. Ao que está explícito, agitando sua bandeira, quase sem pudor. E temos que estar mais atentos ainda ao que
meramente se insinua, sussurrando na penumbra algo cujo sentido apenas podemos adivinhar.
Antes de chegar a compreender um fenômeno, primeiro temos que observá-lo. Observar é o passo preliminar de toda
pesquisa. Na relação em pauta, observar supõe saber estar atento ao que expressa o coagente. Mas conseguir estar
atento não é uma tarefa fácil nem se trata simplesmente de treino. Conseguimos estar atentos quando não estão
interferindo em nós os fatores emocionais ou preocupações importantes: em verdade, para isto é necessário ter equilíbrio
emocional suficiente. Se o terapeuta está distraído ou preocupado com outro assunto não conseguirá observar nem
comunicar-se adequadamente com o cliente: deve-se estar atento não só à comunicação verbal senão igualmente às
outras formas expressivas: mímica, atitude, disposição para o contato, insights e outras manifestações.
Sói acontecer que passadas as primeiras sessões, tendo já uma avaliação geral do sujeito, se relaxe um pouco nossa
atenção, deixando de perceber detalhes e conteúdos verbais muitas vezes importantes. Por isso não podemos cair num
esquema de habituação, que é o início de toda rotina. Nem para o cliente nem para o terapeuta é bom deixar-se levar
pela rotina (embora toda atividade repetitiva termine por impor uma boa dose de clichês rotineiros, ameaça da qual não
está isento este tipo de relação). Quando isto sucede é quase certo que o coagente se desmotive, sobretudo se percebe
que seu parceiro e cicerone parecem amiúde cochilando em sua poltrona. O passo da desmotivação para a desistência (do
tratamento) é a pendente inercial costumeira, neste como em qualquer empreendimento.
Saber estar atento permite observar o movimento vivencial manifesto no discurso e nas diversas expressões do
interlocutor - e de si mesmo. E de si mesmo, pois na relação sempre há também um movimento vivencial no (pág. 58)
terapeuta.
Seria estranho que isto não acontecesse. Por muito em silêncio que esteja sua mente isto não impede sua receptividade.
Pelo contrário, a aprimora. Sendo assim, também se sente afetado pelo que sucede ao cliente. O pode afetar em tal grau
que seja invadido por uma onda emocional indisfarçável. Já dizíamos que a empatia era uma maneira de acompanhar ao
outro na sua peregrinação interior (que é também exterior, é claro).
Aqui me permito um leve parêntese pessoal. Lembro-me de um cliente de 35 anos, homem de rara sensibilidade e de
excepcional talento expressivo. Possuía uma capacidade igualmente única para mergulhar em seus sentimentos. Confesso
que eu tinha que fazer um verdadeiro esforço para não entrar de cheio, como um espectador absorvido no clima de um
intenso drama teatral. Se há algo que me pega no drama humano são as tentativas do homens para ser alguém no teatro
da vida e o quase inevitável malogro dessas tentativas. E este era o caso deste homem com uma alma de artista, que não
conseguia achar um lugar numa sociedade sem reserva de espaço para este tipo de individualidade.
Tinha que estar atento para não cair no encantamento de sua palavra sempre impregnada de emoção e de sentido,
sobretudo porque ele era ciente do poder de sua locução e gostava de exercer esse poderio sobre o eventual ouvinte. Se
me envolvesse demais no feitiço de sua encenação me tornaria mero espectador, perdendo o poder que me outorgava
minha função. Era co-ator e para tanto precisava agir na articulação e no momento certo.
Temos que estar atentos ao visível e ao invisível; ao que se mostra disfarçando-se e ao que se disfarça para poder
mostrar-se. Ao que está explícito, clamando por socorro, quase sem pudor. Mas precisamos estar mais atentos ainda ao
que meramente se insinua como se não conseguisse encontrar a via certa de expressão ou como se ainda permanecesse
em estado embrionário. Atento ao que permanece na discreta penumbra, embrulhado por uma espessa camada de
tempo, de esquecimento, de coisas mal digeridas - todo esse aluvião que nutre nossa vida passada.
Compreensão de si e observação
Não adianta grande coisa ser um excelente observador do externo se não sabemos observar o que acontece conosco.
Contudo, é mais fácil perceber o que está aí fora, na proximidade de nosso olhar, que reparar no movimento de nosso
espírito. A razão disto salta à vista: reside na dificuldade de sermos observadores e observados. Aqui precisamos
desdobrar-nos, o que não acontece quando atendemos os requerimentos externos. Estar atento a si mesmo, entretanto, é
um requisito para alcançar o autoconhecimento; (pág. 59) não apenas das motivações, das fantasias e desejos que
circulam no espaço da mente; atento igualmente ao cuidado que exige a existência na sua concretude realizadora. Atento
ao modo de relacionar-nos com o próximo, em especial, pois é este próximo quem nos proporciona a medida e o
horizonte do humano.
Estar atento aos requerimentos dos semelhantes não significa subordinar-se a suas imposições, caprichos e poderes.
Significa tentar achar uma via possível de mútuo entendimento, no pressuposto da reciprocidade. Nos foi ensinado que os
relacionamentos requerem todo um estilo para que tenham um bom encaminhamento. Um estilo para cada tipo de
relacionamento. Que não é o mesmo tratar com um colega, um amigo, um amante, ou um sócio qualquer. Que cada qual
se indague então qual é seu estilo de relacionamento. Esta é uma tarefa mínima; ou vamos por ai relacionando-nos à toa.
Em outro lugar falo da introspecção e da interocepção. São duas formas adequadas de tomar consciência do que se está
passando conosco nos bastidores do espírito. Não é bom deixar que as flutuações e variações dos estados de ânimo e as
subidas e descidas das motivações aconteçam sem que nos importemos com todas essas mudanças. Viver no descuido do
movimento das vivências, como se elas não fossem o tecido íntimo que configura nosso ser, é lamentável alienação. Pelo
menos temos que estar cientes do sentido que elas desenham.
7. Saber indagar e questionar
''No início, principalmente, foi duro sentir-me questionado dessa maneira, aberta e amável, mas sempre percebi
que esse estilo franco de colocar as coisas apontava para a direção correta. Não deixava que eu me acomodasse
em minha passividade ou em minhas ideias sem base. Às vezes me irritava, mas sempre terminava por enxergar a
validade do confronto''. (Depoimento de um cliente, no final de um processo terapêutico).
Todas as atitudes do terapeuta se manifestam no dialogo e nele encontram seu maior sentido. Mas, certamente todas elas
fluem no contato interpessoal e na visão da vida, pois podem estar presentes em qualquer pessoa que se proponha
alcançar um certo patamar de desenvolvimento.
Em todo diálogo está o momento de acolher, de escutar e de empatizar; do estar atento e do acompanhar; mas também
há outros momentos. Os mencionados são momentos de receptividade. Vou falar agora do lado mais ativo, onde o
terapeuta toma iniciativas dirigidas a aprofundar e enriquecer a (pág. 60) experiência do interlocutor. Este é o primeiro
intuito; mas também pode ser para obter maiores esclarecimentos que permitam uma melhor compreensão do assunto
em pauta.
E ainda pode ir mais longe: pode sugerir, estimular, mostrar possibilidades, questionar e confrontar. Veja bem: não estou
afirmando que estas iniciativas estão dissociadas das três atitudes básicas, que sempre continuam presentes, permeando
o diálogo todo. São aspectos de uma totalidade em marcha.
Veremos o que é isto do saber indagar e questionar.
É bom ter presente que o diálogo verdadeiro não pode ser um interrogatório, uma série de perguntas e respostas
destinadas a preencher um formulário. Nem se deve colocar qualquer pergunta "para não esquecer depois". O andamento
do diálogo exige uma certa pertinência, uma sequencia que abra espaço para certas questões e não para outras.
Às vezes um entrevistador inexperiente levado pela própria ansiedade, pergunta demais ou faz perguntas impertinentes
nesse ponto do diálogo; impertinente porque o desvia do assunto, distanciando-o do caminho que já tinha pego ou
distraindo-o do que estava perto de ser revelado. Pode ser uma pergunta ou simplesmente uma colocação inoportuna -
que, aliás, mostra a falta de empatia por parte de quem a faz. Quando há uma boa sintonia a com o discurso do outro
este tipo de erro não ocorre.
O sentido existencial do indagar e questionar é que o próprio sujeito se indague e questione não apenas os aspectos que o
estão perturbando mas especialmente o sentido de sua vida e os.objetivos que a orientam. O pressuposto é que no
indagar se convida à pessoa a descortinar os aspectos menos frequentados por ela, junto com examinar com mais
atenção seus circuitos de trânsito, suas programações e condicionamentos.
Indagamos com o óbvio intuito de obtermos maiores esclarecimentos: informações sobre um tema que discorre no
discurso do cliente, mas a indagação é justificada e conveniente quando a usamos por uma série de outros intuitos, todos
eles destinados a aprofundar a experiência do sujeito e estimular sua comunicação. Quero comentar alguns destes
objetivos.
a) Para acompanhar melhor o fluxo ideo-afetivo do interlocutor.
Uma senhora que chamarei Ruth tem sérios problemas com o marido, a ponto de ter sofrido agressões verbais em
diversas ocasiões. Lhe indago: "então você estava com muita raiva, mas de novo optou por calar; o fez pelo mesmo
motivo que às vezes anteriores, ou calou por outros motivos?" (ela havia dito que não adianta de nada discutir com o
marido, que ele não houve). Ela: "Sim, porque não adianta discutir, mas também para mostrar-lhe (pág. 61) que já
não me importa tanto suas tolices e provocações".
b) Para suscitar uma dúvida pertinente - que questiona uma convicção negativa, um preconceito, uma conclusão
precipitada, uma visão ingênua.
A Ruth lhe digo: será mesmo que já não se importa tanto com as provocações e tolices de seu marido?
- Me importo, é claro, mas sinto que já não tanto como antes; antes me sentia arrasada; ele tinha esse poder. Parece
que de tanto manusear nossas brigas aqui, fui saindo de sua influência e agora começo a enxergar as coisas com mais
distância e alívio. Estava muito envolvida; é uma grande besteira envolver-se demais em qualquer relação; de agora
em diante será diferente, nada de envolvimentos emocionais fortes...
- Entendo, percebeu que foi maior seu sofrimento por estar muito dentro da relação; não quer mais voltar a sofrer por
este motivo, mas por acaso você não mantém um envolvimento emocional forte com outras pessoas, além do marido?
- Claro, meus filhos...
c) Para levantar uma possibilidade, que permita uma perspectiva diferente
Numa outra sessão, ainda com esta senhora.
"Eu sei que meu marido me ama, me agride porque eu não correspondo a seu desejo sexual, pois evito ter, até onde
posso, uma relação que não me dá prazer; eu também gosto dele, não gostaria de ir para uma separação; aliás o que
eu faria separada?" Acho que não conseguiria nem um amante casado com meus quarenta anos (silêncio).
- Lhe resulta difícil achar uma saída, será que não há nenhuma?
- Não vejo nenhuma que eu possa levar em frente (ri maliciosa) já pensei ter um amante, tal vez isso me ajudasse a
levar melhor as coisas em casa, mas essa alternativa, além de improvável, me geraria mais problemas que os que já
tenho (silêncio)
- Teme as consequências dessa alternativa?
- Temo, imagine o que poderia acontecer, nunca se sabe as consequências de entrar numa dessa...
- Tudo sem saída, então?
- Tudo (silêncio)
- Então porque não pensar na possibilidade de um acerto com seu marido? Será que está tudo perdido? Você falou que
ainda gosta dele...
- Sim, ele tem algumas coisas boas, será que uma terapia conjunta nos faria bem? -E ' uma possibilidade. (pág. 62)
d) Para levar a uma tomada de consciência, para ter uma apreensão mais nítida daquilo que o sujeito tende a alienar.
Na verdade, uma parte importante do processo de crescimento consiste em desalienar-nos de tudo aquilo que nos toma
estranhos - que nos distancia de nossa realidade mais própria. Isto significa que temos que cancelar um monte de ilusões,
de falsas representações com respeito a nós mesmos, aos outros e à sociedade. Já mencionei as ilusões oriundas do
narcisismo (vaidade, presunção, arrogância, megalomania), que nos dá uma falsa imagem de nós que nos leva a procurar
metas insensatas - simples ídolos do mercado, geralmente.
Precisamos tomar consciência do que tendemos a alienar, mas que constitui nossa realidade originária. Pode ser um
passado que não queremos aceitar porque nos resulta doloroso ou fere nosso autoconceito; pode ser uma situação atual
que enxergamos de relance, que sabemos importante mas que deixamos de lado porque pensamos que é algo ainda
protelável. Por ignorância, por descuido, por esquecimento, por cansaço, porque algo caiu em descrédito perante nossos
olhos - por isto e outros motivos afastamos de nossa vigília uma série de realidades que nos incumbem de modo direto e
iniludível. Por vezes estão ai, tocando-nos os olhos e mordendo-nos as canelas, mas não queremos vê-las ou pensamos
que não são de nossa incumbência. É o que fazemos com os problemas sociais e econômicos (inflação, desemprego,
assaltos, miséria, mortalidade infantil, desamparo e todas as lepras da desventura humana). Enquanto não nos mordem
as canelas são problemas dos outros, do vizinho. Um dia qualquer percebemos que a inflação e a miséria também são
assunto nosso, de todos. Acordamos, tornamos consciência.
Todas essa realidades do sistema social são também nossas. Nos alienamos delas por todos os motivos mencionados. Mas
há também realidades puramente pessoais que descuidamos, que deixamos na periferia de nosso ser, como coisa de
menos. Nos descuidamos do corpo, do relacionamento conjugal, do contato interpessoal só para citar três formas
correntes como o ar que respiramos.
Vejamos o que nos ensina Rulh - mulher, diga-se de passagem, muito inteligente, mas com interesses intelectuais
reduzidos em razão de sua dedicação às obrigações domésticas. Depois de ter rejeitado a hipótese de um desquite como
saída das dificuldades conjugais e depois de reconhecer que na atual fase lhe resulta difícil experimentar desejo por seu
marido, ela continua:
- "Penso que uma boa saída seria que ele arrumasse uma amante; (pág. 63) assim deixar-me-ia tranquila e ele
solucionaria seu problema sexual..."
-Já lhe colocou essa hipótese?
-Sim, quase me bateu; falou que eu estava querendo isso para dar-me o direito de eu também arrumar um amante, e
eu não havia pensado nessa possibilidade.
- Não mesmo, Ruth? Pense um pouco melhor, só falava, de boazinha, para que ele se aliviasse de uma necessidade, e
você? Ficaria por acaso fazendo voto de castidade? Será que já não passou por sua mente esse arranjo?
- (ela me olha com uma certa malícia) Pode passar, às vezes fico pensando em meu primeiro namorado, que foi muito
apaixonado por mim; penso que seria bom vê-lo de novo; já cheguei a marcar o telefone, mas quando ele atendeu e
reconheci sua voz não me atrevi a identificar-me e cortei. Ter saudade de um namorado, querer vê-lo para saber de
sua vida, é por acaso querer ter um caso?
- Pode ser ou não ser; para você, sua saudade ficaria apenas nos cumprimentos, com toda essa carência que você
está não a levaria para algo mais?
- (ri) Levaria, sim, levaria, era tão bom o sexo com ele.
- Então não resultaria mais fácil para você que seu marido arrumasse um caso?
- Ficaria, e como!...
O indagar e questionar são parecidos; mas o questionar vai mais longe; exige mais da dupla. No caso extremo pode levar
a um confronto de posicionamento entre o terapeuta e o coagente, marcando uma nítida divergência dele com os
procedimentos e táticas do cliente.
Eu emprego o questionamento como um verdadeiro método. Distingo três formas que levam ao cliente, de um modo
progressivo, a posicionar-se perante suas dificuldades de uma maneira diferente. Por ora só farei um breve comentário
das três:
a) O questionamento reflexivo: tenta provocar a reflexão no entrevistado. É um convite para que ele tome certa
distância do objeto - ou situação - que o sujeita ou solicita. Sempre insinua uma outra perspectiva possível de enxergar as
relações e as coisas. A uma moça de 42 anos que nos consulta porque quer superar um sentimento de menor valia
centralizado na anatomia de suas pernas, inquirimos: ''quando você aprecia o lado estético de um homem, repara num
detalhe ou aprecia o conjunto?"
- Primeiro aprecio o conjunto, é claro; depois vou aos detalhes.
- Então, o que a leva a pensar que seria diferente com os homens? Por que teriam que centrar sua atenção nas suas
pernas? Um detalhe, aliás, que (pág. 64) você dissimula perfeitamente sob as saias. Não será tudo isso um pretexto para
resguardar-se?
b) O questionamento incisivo: tenta levarao sujeito a um ponto crítico; mostra uma contradição, acentua um conflito,
pretende descentrar o sujeito de uma posição cômoda, na qual se encastelou mas que implica uma estagnação ou um
desvio sintomático. Traduz até uma eventual divergência do terapeuta com respeito a algumas táticas e atitudes do
coagente. Formula-se num tom cordial, mas incisivo, sem panos quentes.
Quando falo à dama das pernas demasiado finas na região das coxas, mas possuidora de uma notória beleza facial e de
um porte muito distinto - no último parágrafo de cima, já estou nesta segunda fase do método. Noutro momento de uma
sessão lhe digo:
- Por acaso nenhuma qualidade sua compensa seu suposto defeito? Nem sequer no plano intelectual ou moral?
- Eu não me desvalorizo tanto nesses planos, mas os homens parecem que o primeiro que reparam na gente é na parte
física, poucos se interessam pela formação moral ou intelectual.
- Admito que uma parte considerável dos homens colocam em primeiro plano o aspecto físico da mulher, mas dai não
pode concluir que todos ficam apenas nisso. Tem sentido o que lhe digo ou estou errado? Ela fica pensando um momento,
parece estar digerindo o que afirmei. Diz logo: - Tem sentido, só que é duro para mim pensar que com quarenta anos
tenho que partir para a briga, em busca de um parceiro sem ter nenhuma experiência até hoje, que me encoraje para
essa procura.
c) O questionamento de confrontação:
Obriga ao sujeito a encarar uma situação que ele encobre ou esquiva. O terapeuta o coloca de cheio na situação para que
ele a enxergue tal como ela se manifesta, em sua adversidade e em suas possibilidades, sem truques nem jogos de luzes
dissimuladores.
Em geral, eu coloco o confronto só quando já estabeleci o vinculo terapêutico com o cliente. Este laço afetivo me autoriza
este recurso, que sem dúvida exige muito mais dele, pois desmascara suas táticas, já obsoletas, e seus artifícios para
manter zonas de resguardo que já se mostram ineficazes e pouco compensadoras.
A continuação do diálogo do item anterior nos dá uma ideia de um momento de confronto:
-Lhe é penoso pensar que aos quarenta tenha que iniciar o que devia ter começado aos 20. Pensou que poderia passar-se
uma vida sem um companheiro e agora está percebendo que isso é muito difícil, mas tem uma (pág. 65) alternativa
melhor? É uma boa alternativa ficar esperando que seus pais morram para assim tentar uma vida sozinha? É possível
protelar mais esta decisão?
Quando havia terminado de redigir este capítulo me deparei com um livro que fazia algum tempo tinha folheado mas que
deixei de lado em razão de seu título: "Bitolando pela psiquiatria", de um a autora anglo-americana, Eileen Walkenstein.
Em inglês, leva um título menos comercial, "Shrunk to Fit". Livro surpreendente e em mais de um aspecto. Corajoso e
forte. Nele encontramos diversas transcrições de entrevistas da autora com seus pacientes, que são uma excelente
amostra de aplicações deste estilo de questionamento, acima caracterizado. A autora é ainda bem mais incisiva, por vezes
francamente dura com os clientes, que o que nós somos.

8. Saber orientar e estimular


Todos nós nos encontramos, em diversas ocasiões, na situação, proposta por Kafka, daquele camponês que
procura a casa da Justiça, mas fica no pórtico pois um guardião lhe fecha a entrada cada vez que tenta transpor as
portas da entrada; assim permanece durante anos, tentando uma vez por outra, até que chega o dia de sua
morte: só então fica sabendo que apenas ele podia forçar a entrada da casa da lei
"Algumas vezes, ofereço conselhos ou 'prescrevo determinados comportamentos, não como uma forma de usurpar
a decisão de meu paciente, mas para dar uma sacudidela num padrão arraigado de personalidade ou
comportamento". (I. Yalom)
Alguns puristas em matéria de tratamentos psicológicos tremem de indignação quando ouvem falar em aconselhamento e
orientação - como atividades próprias do trabalho terapêutico. Eles propugnam uma espécie de voto de abstinência, que
obriga ao terapeuta a não dar palpites nem possíveis sugestões ao coagente. Mas como dizem, - agudizando a voz - não é
tarefa do psicólogo e nunca jamais de um analista, dar orientações ao cliente. Sim, em parte têm razão. Não se trata de
aconselhar à maneira do bruxo ou do médico, que indicam ponto por ponto o que deve fazer o consultante para que a
mandinga ou o remédio deem certo.
Seria torpeza de nossa parte fazer o papel de conselheiro pastoral ou de mentor espiritual; e ainda é pior se temos
pretensões de guru. Alguns colegas, com fortes traços carismáticos caem na tentação de tornar-se mentores diretos.
Penso que não é este o papel do terapeuta. Mas tampouco (pág. 66) pode eximir-se de mostrar alguns caminhos
possíveis, de indicar certas vias de circulação e algumas janelas que oferecem melhores perspectivas. Mostra, mas ao
cliente corresponde escolher.
Orientar é também saber situar-se - dar as coordenadas que configuram um quadro. Quando uma pessoa está confusa ou
demasiado envolvida numa rede de relações que atrapalham sua visão das coisas, precisa que alguém lhe proporcione
algumas coordenadas que lhe permitam enxergar-se melhor nessa rede. É isso o que faz um bom amigo. É isso o que
fazemos com nossos clientes -talvez com um pouco de mais arte, com o tino que permite uma maior compreensão de sua
realidade.
O pressuposto do orientar é que a pessoa que procura ajuda psicológica está passando por um período de desencontro
consigo mesmo nalguma área básica de seu mundo. Precisa de orientação externa que lhe ofereça e mostre novas
perspectivas e lhe permita situar-se melhor na sua realidade. O sentido e a justificativa do orientar é que no encontro com
o terapeuta, o coagente enxergue melhor as vias adequadas de seu encaminhamento - nas perspectivas e
questionamentos que surgem da interação.
Saber estimular - este é também um assunto delicado. Não se trata de elogiar ao cliente nem de acariciar seu narcisismo.
Muito ocasionalmente até se pode fazer, pois todos nós merecemos um elogio uma vez por outra, sobretudo quando é
mais que justificado.
Eu diria que toda nossa atuação é uma forma de estímulo. No acolher já estamos estimulando; e ainda quando
confrontamos suas táticas e truques o estamos estimulando para o lado da autenticidade e do jogo limpo. O olhar cordial,
o gesto tranquilo, o acompanhamento atento, a palavra interrogativa - tudo isto são as formas de um convite para
encarar as dificuldades de um modo corajoso e positivo.
Em toda entrevista clínica o entrevistado abriga algumas expectativas; entre suas expectativas está a de obter uma
orientação para sua problemática. O assunto consiste em como orientar. Aqui há discrepâncias doutrinais. Para um
enfoque comportamentalista não há dúvidas: podemos orientar tranquilamente e inclusive podemos estabelecer convênios
comportamentais, que o terapeuta propõe como parte indispensável do encaminhamento terapêutico. Já na abordagem
rogeriana a orientação é não-diretiva. Trata-se apenas de mostrar os caminhos possíveis, que o consultante optará por
escolher. São caminhos, portas que ele acaso até então não tinha percebido, ou se tinha percebido, não ousou transitar.
Devemos estimulá-lo para que adquira a coragem mínima que lhe permita atravessar certas portas e encruzilhadas. Nossa
orientação limitar-se-á à tomada de consciência de (pág. 67) suas próprias forças e possibilidades, porque forma parte de
sua problemática, geralmente, uma certa incapacidade para confiar em si mesmo, além de uma falta de coragem para
encarar o caminho certo.
O consultante acha-se, com frequência, na situação daquele camponês que refere Franz Kafka em seu conto "A Lei":
Um camponês dirige-se à cidade em procura da Lei. Assim que chega à casa da lei intenta de imediato atravessar o
pórtico mas um guarda armado lhe fecha a entrada, interceptando sua passagem. O camponês entende que deve
aguardar. Fica ao lado de fora, com todos os seus pertences. Durante alguns meses intenta todos os dias transpor o
pórtico, mas cada vez que o faz o guarda lhe impede de passar. Passando um ano, vai espaçando cada vez mais suas
tentativas de entrar na casa da lei. Deste modo transcorrem anos e o camponês termina por envelhecer.
Já muito velho lhe chega o momento da morte. Quando estava agonizando o velho camponês percebe que durante todos
esses anos ninguém mais tem procurado a lei. Fica algo surpreso e quer saber a razão disso. Fazendo grandes esforços
chama o guarda e com as forças que ainda lhe restam, grita: "Guarda, explica-me porque até agora ninguém mais tem
procurado as portas da lei?" O guarda compreende que o velho está agonizando e decide satisfazer o pedido do
moribundo: "Esta porta só estava reservada para ti, só a ti correspondia abri-la, agora já não precisa mais ser vigiada, se
fecha para sempre". Justo no momento da morte do camponês a porta se fechou. (5)
Trata-se de orientar sem impor; o objetivo é levar ao consultante à consciência de sua liberdade, geralmente alienada por
fantasmas afetivos e afogada por conflitos reais ou imaginários; é a consciência alienada na passividade, no deixar-se
estar, como aquele camponês kafkiano, a que deve ser acordada, estimulada. Impor uma orientação seria como reforçar
a passividade, menoscabar ainda mais seu senso de liberdade.
Saber orientar-se a si mesmo.
Saber orientar-se nas fases de perplexidade, confusão e conflitos não é uma tarefa fácil. Requer de nossa parte pelo
menos três requisitos: em primeiro lugar, um mínimo de serenidade. A situação, em seus aspectos mais objetivos, precisa
ser considerada em suas exigências reais. Quando entramos numa fase de conflitos geralmente perdemos as dimensões
da situação do que nos está atrapalhando. Como pegar os fios da rede que tende a envolver-nos de um modo sufocante?
Estamos confusos, sem saber com o encarar as dificuldades. É necessário tentar um recuo, saindo sequer de maneira
momentânea da configuração perturbadora. Se não podemos sair (pág. 68) pelo menos tentar tranquilizar o ambiente,
afrouxando a tensão dos elos. Calma e serenidade.
O segundo requisito é ser capaz de refletir sobre o que nos está acontecendo. Refletir é tentar enxergar as coisas a uma
certa distância para assim apreciá-las melhor. Refletir é o exercício do pensar quando o pensar apenas pondera, analisa,
relaciona.
Há um terceiro elemento: a convicção de que sempre há uma saída adequada do labirinto, por muito intrincado que seja.
Esta convicção deve existir sempre -acreditar que temos alguns recursos que nos permitem enfrentar e superar as
situações menos favoráveis e desventuradas.

9. Saber ser objetivo: saber ater-se aos fenômenos mesmos


As pessoas vivem num mundo de objetos - os acumulam, os fetichizam, os procuram, os trocam. Também
perseguem alguns objetivos, que além de mantê-los ocupados, parecem dar sentido a suas vidas, embora isto
amiúde seja pura ficção. Contudo nem todos conseguem ser objetivos, isto é, capazes de analisar as coisas no que
elas simplesmente são -sem preconceitos, sem projeções, sem desejos, num olhar puramente contemplativo e
cognitivo.
Quando falamos de objetividade talvez a primeira imagem que nos passe pela tela da mente seja a do homem de ciência.
De fato, é na área do pensamento científico onde a exigência de objetividade se impõe com todo seu rigor. Esperamos
que o cientista saiba ater-se ao fatos, observando os fenômenos, qualquer que seja sua natureza, com clareza fotográfica,
sem colocar na sua descrição seus desejos e preconceitos. Parecer-nos-ia uma lamentável falta de honestidade intelectual
se ele procurasse nos fatos apenas a confirmação de suas teorias; pelo contrário, esperamos que a teoria apenas nos
permita encontrar uma boa explicação do porque os fatos se apresentam desse modo e não de outro.
Mas não precisamos ser cientistas para saber ater-nos ao que se mostra perante os olhos. A própria vida prática nos
obriga a uma certa objetividade. Queiramos ou não temos que reconhecer uma certa realidade que está aí, independente
de nossa vontade e de nossos desejos. Contudo, ser realista não é o mesmo que ser objetivo. Muita gente é realista,
sabendo manter os pé no chão e podendo avaliar corretamente as coisas. São objetivos no que lhes compete e no que
lhes convém, mas perdem essa objetividade quando se trata se defender seus interesses ou quando são supostamente
lesados (pág. 69) em seus bens - inclusive quando são simplesmente questionados em suas posições e valores.
De todas as virtudes intelectuais - rigor, probidade, veracidade, espírito de pesquisa - a capacidade para sermos objetivos
me parece de primeira importância, especialmente quando esta capacidade está associada a uma profunda capacidade de
sondar e explorar a própria subjetividade.
Ser objetivo implica por entre parênteses, pelo menos momentaneamente, a própria subjetividade para enxergar o objeto
sem preconceitos. Esta é, aliás, uma das exigências do método fenomenológico, que nos ensina ater-nos aos fenômenos
mesmos, tal como eles se manifestam no espaço da consciência, colocando o sujeito suas avaliações entre parênteses.
Saber ser objetivo é deixar falar o objeto, assumindo uma atitude neutra e atenta. Ademais, é perceber o que é uma
mera projeção pessoal; não um dado objetivo. A pessoa objetiva reconhece no outro suas qualidades positivas ou
negativas embora tais qualidades desmintam por vezes suas expectativas. Por isso a objetividade supõe o
desenvolvimento do autoconhecimento e da racionalidade.
Saber ser objetivo não significa descompromissar-se com a própria subjetividade, o que, aliás, não seria possível numa
relação que se propõe ser uma forma de encontro.
Esses engenheiros e supostos cientistas; os homens de negócios e os praticistas de todas as laias, que menosprezam a
subjetividade, desconfiando de tudo aquilo que não se deixa capturar em dados quantitativos e quadros estatísticos -
fantasias, emoções, crenças, lembranças, imagens - estão longe do verdadeiro espírito objetivo. Eles se representam a si
mesmos, nos delírios da razão, como máquinas; não como homens que vivem todas as dimensões do ser.
A maioria das pessoas não sabe ser objetiva. Só no mundo das relações puramente abstratas - no campo das
matemáticas, da lógica pura - é fácil enxergar as coisas livres de impressões subjetivas. Mas a matemática e a lógica
jogam um papel exíguo na vida de todos nós. Usamos a aritmética para fazer algumas contas e o raciocínio para atender
as exigências da práxis cotidiana (o que será que está querendo minha mulher que hoje se mostra tão gentil?), rara vez
nos leva pelo lado da especulação metafísica e do questionamento reflexivo.
Podemos ser realistas e praticistas, mas como já anotei acima, estas duas maneiras de relacionar-se com o mundo não
vão pelo lado da objetividade, tal como aqui a quero expor. O realista não quer iludir-se com respeito às possibilidades
das coisas; o praticista insiste em que o que importa nas (pág. 70) atividades humanas é seu lado utilitário. A pessoa com
capacidade para enxergar a dinâmica do acontecer não tem porque subscrever esse tipo de teses. O realista pode ser
objetivo, mas apenas quando se move no espaço das possibilidades e da avaliação das dificuldades; perde-se assim que
entra no plano dos afetos e das emoções. Aliás, isto é o que acontece com a maioria das pessoas. Perdem seu aprumo e
até seu bom senso ao ter que lidar com sua própria subjetividade. Não é surpreendente que isto seja assim, é claro.
Quando entramos nos planos da subjetividade fica anulado o desdobramento que caracteriza a dicotomia sujeito-objeto.
Dicotomia que muitos filósofos repudiam, julgando-a uma das fontes de uma série de mal entendidos e de falsos
problemas (como a divisão entre interior mental e exterior comportamental, entre mente e corpo; ou a concepção
tradicional da verdade como coincidência entre os dados e conceitos com o movimento dos eventos).
Este desdobramento certamente é bastante artificial. O sujeito está no objeto e o objeto é também, em certa medida,
uma construção do sujeito. Não estou negando este aspecto da questão. Não estou pretendendo um suposto
conhecimento que elimine toda "contaminação subjetiva". Isso talvez ocorra no reino das matemáticas, mas nunca no
plano da vida prática, incluída a prática da pesquisa cientifica. O que estou propugnando aqui é uma certa inocência no
olhar, inocência que implica ausência de preconceitos, de meras projeções pessoais e de simples desejos. Saber ser
objetivo significa, no plano do conhecimento, ter a capacidade para discriminar estes elementos pessoais, tão fortes em
todos nós, dos simples dados da experiência e do que estamos pesquisando.
Esta atitude é o melhor antídoto contra certo furor interpretativo que circula por aí, que pretende meter os fenômenos
mais heterogêneos no mesmo saco conceitual, ignorando suas diferenças para assim honrar a teoria.

Uma observação final


Deixei mais de um ponto sem sua sequencia necessária. O leitor exigente gostaria de um tratamento mínimo de algumas
questões. Provavelmente se ficou perguntando em que consistem as definições éticas norteadoras, que todos nós
precisamos desenvolver para não extraviar-nos por atalhos nada recomendáveis. Quando se coloca a questão ÉTICA
muita gente faz um gesto de perplexidade indicando assim que não sabe bem de que se trata. Todos têm uma vaga ideia.
Muitos a fazem sinônimo de moral e de bons costumes - dois conceitos que inspiram desconfiança e sorrisos dúbios nos
mais céticos. (pág. 71)
Contudo, moral e costume (bons ou maus, pouco importa neste momento), são só um aspecto da ética. Para mim a ética
se relaciona, em primeiro lugar, com dois princípios básicos que devem sustentar as relações interpessoa is: o respeito e
a responsabilidade para com o próximo. Respeito significa consideração especial para com os outros, correlativa de uma
consideração similar para consigo mesmo. Implica o conceito de dignidade e valor humanos como pressupostos dos
relacionamentos interpessoais. Ser responsável é responder por nossos atos, compromissos e contratos. Em segundo
lugar, a ética se relaciona com o comportamento correto, consoante ou não com as normas morais e com os costumes.
Correto sobretudo no sentido budista de correção expressado na regra de ouro desta doutrina: como os oito caminhos que
levam, aliás, à superação do sofrimento. (6)
Por vezes, ética, moral e costumes coincidem; por vezes se contrapõem e entram em conflito. Entendo por moral os
códigos de conduta social, as normas que a sociedade impõe ao indivíduo. Os costumes são práticas sociais tradicionais,
que mantêm um elo de continuidade entre as gerações passada e a presente. São toleradas ou estimuladas pelas normas
vigentes.
Cabe indagar-se o que entendo por conduta correta, além do sentido indicado acima. Neste momento não pretendo
estender-me neste assunto. Apenas sugiro duas pistas para que o leitor benevolente pense sobre elas.
Digo que uma conduta é correta, quando respeita e cumpre seus compromissos e contratos (contrato livremente aceito
pelas partes).Digo também que um comportamento é correto quando atende aos princípios da justiça e da verdade,
princípios que podem conflitar com interesses e convenções dominantes no sistema social, ou com o grupo de referência.
Agir com duplicidade, com segundas intenções ocultas, enganando, é incorreto. É por-se ao lado da falsidade, contra a
verdade. Agir de maneira arbitrária, sem respeitar os direitos do outro, é incorreto. Só para indicar um par de exemplos.
Formulando assim, de maneira geral, parece algo abstrato. Corresponde a você enxergar estes princípios na sua
concretude.
Uma sugestão: pode começar perguntando-se se você é um indivíduo correto. Pode dar um segundo passo: perguntar-se
em que casos é decididamente incorreto - que tipo de proveito espera obter com esta forma de conduta. E por aí a fora.
(pág. 72)

Notas e citações bibliográficas:


(1) Usarei neste capítulo como sinônimos de psicoterapia algumas palavras equivalentes, a saber: onto-análise, treino
terapêutico e tratamento psicológico.
E para análise didática (A.D.) usarei também análise preparatória(A.P.). Para designar o que na linguagem médica
costuma chamar-se como paciente usarei alguns vocábulos equivalentes: coagente, interlocutor, cliente,
entrevistado, consulente.
(2) Lembro ao leitor que noutro capítulo falo dos objetivos que aspira alcançar um desenvolvimento integral, que são
os propostos por uma psicoterapia rigorosa; quatro conceitos resumem estes objetivos: espontaneidade,
autenticidade, criatividade e liberdade. É o Es-au-cri-lib
(3) Nolden, Max : Lo que se oculta en el fondo del espejo (Santiago do Chile, 1972)
(4) Walkenstein, Eeilen: Bitolando pela psiquiatria (Ed. Brasiliense, 1980. S. Paulo)
(5) Kafka, Franz: A Colônia penal (Livraria Exposição do Livro, S.P.)
(6) Em meu livro "As Dimensões da Vida Humana", (Novos Horizontes Editora, S.Paulo, 1998) no capítulo sobre a
dimensão valorativa exponho as 8 vias do caminho correto segundo Buda.
(7) lrvin Yalom: Os desafios da terapia. Ediouro, S.Paulo, 2006. Este psicólogo inclusive pede uma suposta ajuda ao
paciente narrando um caso similar ao dele. Uma vez ouvido o caso o cliente toma maior consciência da armadilha
que inventou para não sair de uma situação.

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