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Alcançar este estágio de relativa liberação pessoal não é uma tarefa fácil. É verdade que há pessoas que são naturalmente
sadias, sem indicadores de neurotismo, e escassamente egocêntricas e narcísicas, admitindo já que estes dois fatores
sejam da natureza humana, podendo nós apenas reduzi-los a sua mínima expressão. Mas estes seres privilegiados, como
sempre, não são muitos (nem sequer me atrevo a sugerir uma percentagem hipotética da população adulta). Esta é uma
das razões que impõem ao futuro terapeuta uma Análise Preparatória. Não são muitos, porque existem os mais variados
fatores sociais que impedem um desenvolvimento salutar. Questionar os aspectos mistificadores do sistema social se
tornou uma necessidade de nosso próprio crescimento mental; sem este questionamento o indivíduo fica preso nas redes
de preconceitos e de mitos - além dos falsos valores - que circulam nos diversos setores da sociedade.
Noutro capítulo considero a questão da autenticidade; uma questão complexa que se costuma simplificar com fórmulas
que escondem as dificuldades que suscita este conceito. Fórmulas que ensinam "que ser autêntico (pág. 48) é ser
verdadeiro", ou ''dizer o que se pensa e o que se sente" como se isso fosse o mesmo que semear batatas.
Entremos então nas tão desejadas virtudes do terapeuta. Digamos apenas, para terminar esta parte, que os quatro outros
saberes, além dos três que mencionei, podem ser aprendidos nos anos de formação profissional. São mais um produto do
ofício que qualidades já internalizadas pela pessoa.Até certo ponto não tem a mesma importância que as três primeiras,
embora sejam habilidades que igualmente ajudam no trabalho proposto.
Na escolha destes saberes não pretendo esgotar todos os recursos que um profissional possa colocar em jogo. Uma
análise ainda mais exigente, ou usando outro referencial teórico, pode acentuar a importância de outros fatores.
Até aqui enfatizei a importância de todos estes saberes como os fatores principais do andamento terapêutico, mas não
sublinhei o fato que todas estas virtudes se manifestam na atividade que melhor caracteriza este tipo de relação: no
diálogo. Acredito que de todas as atividades possíveis, que podemos propor como recursos para facilitar o
desenvolvimento de uma pessoa, o diálogo continua sendo o mais indicado e a ferramenta mais poderosa para cumprir
este objetivo.
Não desacredito nos outros recursos que o terapeuta possa propor. Estes últimos anos surgiram uma série de técnicas
que não centralizam suas atividades na palavra. Penso que todas elas têm sua validade. Eu mesmo costumo usar algumas
técnicas, onde o diálogo está menos presente; mas todas estas técnicas me parecem recursos auxiliares, meios que nos
permitem criar situações experimentais que oferecem a possibilidade e a ocasião de exercitar certas capacidades do
cliente.
Todo comportamento social impõe alguns princípios éticos norteadores. Estes princípios possibilitam o relacionamento
interpessoal; sem ele não é possível um entendimento mínimo entre os humanos. Quando lidamos com máquinas, coisas
e mercadorias até podemos colocar em segundo plano a questão ética; nos relacionamentos com pessoas se colocam em
primeiro plano. Não é difícil concordar nalguns princípios. Eu indicaria aqui o fundamental: o respeito e consideração pelo
próximo, correlativo do respeito de si. Todos os outros são derivados desta exigência primeira. Se você experimenta
respeito por uma pessoa lhe resultará fácil manter um comportamento ético com ela. Por esta razão, os relacionamentos
baseados na servidão -no desprezo do outro - são, além de opressivas, profundamente aéticas. É necessário enfatizar que
o respeito supõe senso de responsabilidade: saber responder por seus próprios atos. Supõe também saber discernir entre
o (pág. 49) certo e errado.
Examinando com atenção os três primeiros saberes-atitudes (acolher, empatizar e saber escutar) percebemos que são um
reflexo dos três componentes básicos da personalidade postulados por nós como os pressupostos da atividade
terapêutica.
Estes três saberes derivam de um amplo senso da liberdade pessoal. Não falo aqui da liberdade como mero dado
ontológico do homem, como fundamento de sua existência. Falo da liberdade como a capacidade de desligarmos dos
elementos que nos condicionam e nos sujeitam a seu império: a entendo aqui como liberação. Liberação dos
condicionamentos neuróticos e do narcisismo primário. Liberação das imposições alienadoras do sistema social - de seus
preconceitos medíocres e de seus mitos encantatórios, opiáceos, de consumo popular.
Estar livre de condicionamentos neuróticos significa sentir-se à vontade no mundo; à vontade, apesar de todo seu lixo de
sua adversidade; sabendo lidar com toda essa adversidade com boa disposição. Significa estar livre de preocupações
egocêntricas e narcisistas - tão comuns em pessoas neuróticas. Não significa reduzir o narcisismo e o egocentrismo a
zero; não estou propondo outra fantasia-desejo igualmente narcisista (tipo liberação total). É simplesmente não pautar
nossa vida por esse tipo de preocupações. Significa não deixar-se comandar pelas miragens do ego e o mero fascínio de
uma imagem ideal de si.
INDICADORES FREQÜENTES DE NARCISISMO - e um conceito mínimo que o define
A questão do narcisismo ainda não está bem caracterizado na psicologia. Penso que uma definição inicial é conveniente
para sabermos de que estamos falando. Proponho uma a título de primeira aproximação: o narcisismo é a tendência ao
desmembramento de um suposto valor pessoal e a negativa para reconhecer o próprio desvalor e deficiência. Entendo
que o reconhecimento do próprio valor é algo saudável, no mínimo: é a base do sentimento de autoestima e da tranquila
aceitação de si mesmo. Uma pessoa pode perceber-se como inteligente e bem dotado numa série de aspectos, inclusive
no lado da aparência pessoal, sem que por isto fique deslumbrado - que é o que acontece ao Narciso do mito grego. Mas
o narcisismo também tem a outra face: o não reconhecimento do desvalor possível, ou da deficiência, que nos afeta a
todos nós, inclusive ao mais virtuoso. Só com a intenção de ilustrar este conceito dou alguns indicadores de (pág. 50)
narcisismo. A lista não pretende ser exaustiva, é apenas um levantamento de atitudes relativamente frequentes em
pessoas com um forte componente narcisista.
Alguns indicadores prováveis de narcisismo:
- Todas as formas da vaidade, isto é, todas os formas de realce supérfluo, da exibição de bens e do querer aparentar
mais do que o sujeito é (geralmente por meio do mero cuidado da fachada)
- Todas as formas de presunção: assunção de qualidades e posições que o sujeito se atribui como uma forma de
valorizar-se, procurando sua aprovação.
- Todas as formas de arrogância: não querer dar o braço a torcer, não querer reconhecer ou admitir os próprios
erros, não aceitar críticas, não querer mostrar os pontos fracos e vulneráveis, etc. O presunçoso pré-assume qualidades;
o arrogante se arroga superioridade.
- Todas as formas de megalomania: ter aspirações desmedidas, querer ser o maior, querer impor-se aos outros. É a
autoglorificação.
Como se vê por esta enumeração, o narcisismo é bastante comum em todos nós - inclusive alguns destes indicadores são
estimulados ou vistos como normais, na megalomania é francamente sintomático.
3. Saber acolher
Saber acolher não é um assunto de boa educação. Longe disso. As pessoas educadas podem ser corteses e gentis, mas o
são geralmente por mera formalidade e por conveniência social. Boa educação é sinônimo de comportamento adequado
em situações sociais. Por educação tratamos às pessoas como as regras e normas mandam, com uma cortesia que não
convida nem rejeita.
Posso estar dando a impressão de que enxergo a educação como simples cuidado da fachada e como a arte de agradar,
melhorando nossa imagem e ganhando aceitação. Também é isso e algo mais, o sei. Pode haver uma educação para a
verdadeira convivência, aquela baseada na solidariedade, no respeito e a boa vontade, sem ter que renunciar a um modo
genuíno de ser. Quando formos ensinados nesta segunda forma de educação provavelmente saibamos ser acolhedores
como o próximo.
Saber acolher é convidar ao outro para que seja ele mesmo, se sentindo a vontade em nossa presença. Nos gestos, no
olhar, nos movimentos, nas palavras expressamos este convite. (pág. 51)
No acolhimento estamos abertos ao outro, sem as prevenções e cautelas das situações impostas. Acolhemos ao amigo em
nosso lar, confiantes em seus propósitos e na benignidade de sua presença. Todo acolhimento é um ato de confiança, um
ato de fé. Por esta razão todos os textos sagrados nos exortam para acolhermos a sua mensagem nos recintos da alma.
Convite, abertura, confiança. Estes são os três movimentos que favorecem o acolhimento, fazendo possível sua
ocorrência. Quem não está aberto para o outro, permanecendo encolhido em sua cápsula egóica, não acolhe o chamado
incitante do mundo nem pode convidar a quem se aproxima a seu lar interior.
Quem dá confiança, afiança - assegura e outorga um voto de crédito; mas para dar confiança primeiro é preciso que seja
confiante: que ponha fé em si mesmo. De início, o terapeuta novato ainda não confia na sua arte. É compreensível; seu
conhecimento do ofício é apenas conceptual e teórico. Isto acontece em qualquer atividade. O engenheiro não fica menos
embaraçado quando começa a construir o primeiro prédio nem o professor se sente como passarinho perante os frutos da
primavera quando enfrenta, o primeiro semestre, uma aula. Mas uma coisa é sentir que ainda não se domina o ofício e
outra bem diferente é não sentir confiança em si mesmo.
Em todo empreendimento precisamos de autoconfiança, mas este sentimento-atitude se relaciona e se apoia em dois
elementos: primeiro, num sentimento básico de segurança, sentimento que, se traduz na percepção de que habitamos um
mundo suficientemente previsível e propício como para podermos transitar nele sem excessivos cuidados e previsões.
Segundo, na percepção de nossas capacidades e recursos.
A segurança é o solo ontológico da existência: é o sentimento básico de que vivemos num mundo hospitaleiro, podemos
perceber o mundo como variável, relativamente inconstante, incerto em alguns aspectos, inclusive ameaçador e perigoso
em determinadas regiões. De falo, o mundo é tudo isso, mas não podemos senti-lo como predominantemente inóspito,
nem muito menos como completamente inóspito.
A autoconfiança é a consciência de que temos capacidades, recursos para dar conta de nossa situação vital; ela depende
em boa medida tanto da segurança básica como da situação geral e concreta. Há variações da situação que podemos
encarar com ânimo confiante, cientes de que podemos dar conta delas, mas é possível l que as variações comportem
riscos bem além de nossos recursos: então perdemos o aprumo, nos tornamos inseguros e nossa confiança pode ser
abalada - sobretudo após de ter experimentado já algum fracasso nessa área. E aqui está o importante: o grau de nossa
(pág. 52) insegurança vai depender da confiança que tenhamos em nossos recursos. Estes três elementos do acolher são
sentidos pelo cliente. Não importa quão enfronhado esteja em seus conflitos. Como reflexo ele vai reagindo da mesma
maneira. Pode ser que no início ele esteja cético e até desconfiado do terapeuta, mas logo que começa a sentir o convite
de seu parceiro termina por entregar-se à situação.
Demais está dizer que o acolher não é privilégio exclusivo da relação que estamos comentando. É também um
componente que teria que dar-se nos vínculos de amizade e na esfera do amor. Os três elementos mencionados, neles
também se encontram, pelo menos nalguma medida. Na medida do afeto e do respeito. Quando não há suficiente
acolhida talvez exista atração erótica, alguma simpatia mas não amor nem amizade.
Pode parecer óbvio demais o caráter benéfico do acolher; poderíamos simplesmente concluir que nos agrada que nos
tratem com especial deferência. Nos relacionamentos de amizade e mais convencionais nos gratifica a deferência amável.
Mas há algo mais profundo na atitude em pauta. Não é uma questão de mero agrado. No acolher convidamos ao outro
para que também ele se acolha - pois o acolhimento de si para si é insólito nas pessoas que atravessam períodos de crise,
e não só de crise.
Assim, como nas condutas de rejeição - na agressividade e no desprezo, na distância fria e na formalidade pedante -
convidamos e autorizamos ao outro para que ele nos retribua com a mesma moeda, assim também acontece com o
acolhimento: o convidamos para que se abra a nós e a si mesmo, num duplo movimento.
Com nossa atitude de abertura afável, o próximo é confirmado em seu valor, percebe-se aceito. Este é o primeiro
momento, imprescindível para que surja o segundo. Ao sentir-se aceita, a pessoa adquire a confiança suficiente para
mostrar-se em seu modo mais genuíno; pode ainda experimentar um receio inicial, mas esta desconfiança vai cedendo
devagar à medida que sente corno verdadeira a atitude do terapeuta - isto sucede, aliás, em qualquer relacionamento.
Este é o princípio: quando nos sentimos aceitos aprendemos a aceitar-nos - e na aceitação nos reconhecemos, inclusive
na deficiência e limitação.
5. Saber escutar
"Minha infância foi fecunda em pequenas descobertas; duas me tocaram de perto. Uma destas descobertas foi que
tanto minha mãe como meu pai falam demais; e falavam ao mesmo tempo, como se tivessem que encher o
espaço com suas vozes: foi ai que percebi que nenhum dos dois escutava o que o outro dizia. A segunda
descoberta foi o valor do silêncio'' (Uma pessoa em psicoterapia)
''Quem está apaixonado por ti sabe falar-te lindas palavras, mas só quem te ama sabe escutar-te" (provérbio indiano)
Quando converso pela primeira vez com uma pessoa procuro logo constatar se sabe escutar ou não; sem dúvida, aprecio
e levo em conta sua inteligência, a qualidade de suas informações e o rigor de seu raciocínio, mas se percebo que não se
interessa em escutar concluo que ela não conhece a arte do diálogo e que ainda não superou um certo egocentrismo de
criança mimada. Por desgraça, não é fácil encontrar interlocutores de antenas atentas, cientes de que só temos direito a
falar quando primeiro sabemos ouvir.
Escutar significa deixar que o outro se expresse colocando-nos numa atitude de receptividade cordial; significa também
saber omitir-se para não interferir na livre fluência da outra pessoa. Às vezes, ao terapeuta lhe é difícil omitir-se perante
algumas colocações de seu consulente; sente o impulso de mostrar-se ele também, de argumentar em prol ou contra as
afirmações ouvidas, sente necessidade inclusive de refutar e ensinar. Escutar a outro significa estar disponível: sem
ânimo pré-concebido, sem necessidades urgentes de expressão pessoal. É preciso esclarecer que há uma diferença entre
ouvir e escutar: ouvir é simplesmente captar uma mensagem, uma informação; escutar é captar uma mensagem
atendendo a seu sentido menos explícito, abrindo-se inclusive a seu convite.
Escutar a palavra do interlocutor permite captar de onde e a quem fala. O onde revela o lugar desde o qual emana seu
dizer. Emana de sua mágoa, de sua culpa, de seus pais, do outro anônimo? Emana do olhar sereno que planeja sobre as
coisas numa avaliação ponderada? Revela o plano que (pág. 56) origina sua fala. Para quem fala? Dirige-se ao terapeuta
enquanto interlocutor-testemunha, ou fala para um personagem de sua história? Ainda, talvez, fala de si para si,
meditando, como desdobrando-se entre o que acredita ser e o outro-ser, que erige como testemunho ideal (juiz, amigo,
simples acompanhante).
Escutar não é uma tarefa fácil: vivemos num mundo cheio de egoísmo e de supérflua tagarelice; falamos mais para obter
informações e dados que para comunicarmos. O diálogo mesmo é uma experiência algo insólita e incomum; porém, saber
ouvir é uma experiência primordial; como escreve Max Nolden: "Aprende a ouvir e chegaras a perceber até o movimento
da terra em sua peregrinação cósmica; sobretudo aprende a escutar, que assim entenderás não só o pensamento de teu
interlocutor mas o que subjaz oculto detrás desse pensamento. Aprende a captar teu próprio silêncio porque detrás desse
silêncio muitas vozes falam para ti." (3)
O sentido existencial do escutar é que a palavra do outro deixe de ser simples mensagem para tornar-se palavra viva para
quem fala.
Saber escutar supõe ficar em silêncio; refiro-me ao silêncio da mente, aquele que conseguimos na meditação tal como ela
é ensinada pelos mestres orientais. Meramente calar não é estar em silêncio; quando calamos perante um interlocutor
podemos continuar tagarelando no pensamento. Ficar no silêncio da mente é entregar-se ao convite do mundo - ou do ser
das coisas - na muda contemplação, sem que nenhum comentário ou voz emane do sujeito (de nós). Quem não sabe ficar
em silêncio pode calar, permitindo assim que o outro se exprima, sem interrupções. Isto será um primeiro passo, um
requisito mínimo: Contudo, não é suficiente, pois é possível que seu pensamento (ou fala interior) continue discutindo,
objetando, interceptando o que o interlocutor está tentando transmitir. Pode inclusive distrair-se e até desligar-se da
demanda de atenção que coloca a palavra do outro no diálogo.
Por outra parte, só quem ficar em silêncio pode deixar fluir o mais íntimo de si quando fala. Quem conquista o estágio do
silêncio não mistura vozes, mistura oriunda de diferentes motivos que pugnam por expressar suas demandas. Emana de
si, quando fala, a voz mais própria - a voz do self, como costumam dizer os anglo-saxões. Quem fala desde o si-mesmo
não fica desdobrando-se em conflitos e em jogos de esconde-esconde ("gostaria de falar mas temo ser mal
compreendido", "não sei se devo falar", "devo dizer isso embora sinta outra coisa" - e assim por diante).
Só quem sabe ficar em silêncio chega a captar o valor essencial da palavra; então deixa de tagarelar. Compreende que a
palavra não é uma falsa moeda que circula por aí para divertimento dos tolos e ganho de alguns (pág. 57) espertos.
Percebe logo quem a usa com esse propósito. Usa a palavra, com ponderação, calibrando e sopesando seu justo
significado.