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Aula 8
Inversões e estruturas
A certeza sensível experimenta, assim, que sua essência nem está no objeto nem no
Eu e que a imediatez nem é imediatez de um nem de outro, pois o que viso em
ambos é, antes, um inessencial. Ora, o objeto e o Eu são universais: neles o agora, o
aqui e o Eu que viso não se sustém [não permanecem – bleibt], ou não são2.
O agora é indicado: este agora. Agora: já deixou de ser enquanto era indicado. O
agora que é, é um outro que o indicado e vemos que o agora é precisamente isto:
enquanto é, já não ser mais. (...) Vemos, pois, nesse indicar só um movimento e seu
curso, que é o seguinte: 1) indico o agora, que é afirmado como o verdadeiro; mas o
indico como o que-já-foi [gewesenes – particípio passado de sein – o indico como o
passado], ou como um superado. Supero a primeira verdade, 2) agora afirmo como
segunda verdade que ele foi, que está superado, 3) mas o-que-foi não é. Supero o
ser-que-foi ou o ser-superado – a segunda verdade, nego com isso a negação do
agora e retorno à primeira afirmação de que o agora é4.
Ou seja, vemos novamente a reflexão sobre o descompasso entre designação e significação.
Ao tentar intuir momentos no tempo através do agora percebo que nunca consigo adequar
o agora à designação do instante. Quando era indicado, o instante deixou de ser e este
instante designado é outro em relação àquele que inicialmente foi visado. Daí porque Hegel
afirma claramente: o agora é esta contradição que indica um ser que nunca é, que nunca se
apresenta positivamente no intuir. Esboça-se assim uma dialética na determinação dos
objetos no tempo. Procuro inicialmente designar o que viso, ou seja, procuro intuí-lo no
tempo e no espaço. Mas a experiência que tenho é do desvanecimento da referência visada:
só consigo indicá-la como o que passou, como o que não se deixa submeter à forma da
minha intuição. A primeira tentativa de indicar a referência foi negada. Posso apenas
afirmar: a referência é o que foi negada pela forma da intuição. Mas se posso superar esta
negação e retornar à designação do instante, é porque esta passagem de um instante a outro
que foi objeto da experiência na designação do agora já é a própria verdade do agora. O
agora não é o que indica um instante, mas o que indica como cada instante é a passagem
necessária no outro, “põe-se este mas sempre é um outro que é posto”. O agora é apenas a
formalização desta passagem, ele é a figura de uma relação entre múltiplos instantes a partir
4
HEGEL, Fenomenologia, pars. 106-107
da negação determinada, e não a indexação de um instante isolado. Daí porque Hegel
poderá afirmar que a verdade do agora é ser: “um agora que é absolutamente muitos agoras
[ou ainda, muitos instantes] (...) uma pluralidade de agoras unidos (zusammengefasst)”5.
Dizer que o agora é algo “refletido em si” significa aqui que ele internaliza o que nega a
indexação simples do instante.
O que Hegel quer dizer é, no fundo, simples. Nós vimos, na aula passada, como
‘agora”, “aqui”, “eu” são unidades gramaticais muito particulares. Como vimos, eles são
shifters, ou seja, unidades gramaticais que não podem ser definidas fora da referência a uma
mensagem e, por conseqüência, ao ato de enunciação. Sua natureza é dupla. De um lado,
eles funcionam como símbolos devido a sua relação convencional à referência. Por outro
lado, eles funcionam como index devido a sua relação existencial à referência
particularizada pelo contexto. Neste sentido, os shifters nos mostrariam como seria possível
designar o singular através do uso de termos universais, no sentido de não se referirem
inicialmente a nenhum termo em particular e poderem ser universalmente usados para todo
e qualquer objeto (todo e qualquer objeto é um “isto”, é algo que pode estar no “aqui” e no
“agora”).
No entanto, mesmo que a consciência sensível envie a significação de seus termos
ao ato de indicação, a designação do singular não pode se realizar. Hegel sabe que as
coordenadas que identificam o lugar lógico do ato de indicação são, desde o início,
articuladas no interior de uma estrutura dada como condição a priori para a experiência. O
que vemos quando ele afirma, por exemplo, que:
O aqui indicado, que retenho com firmeza, é também um este aqui que de fato não
é este aqui, mas um diante e atrás, uma acima e abaixo, um à direita e à esquerda. O
acima, por sua vez, é também este múltiplo ser-Outro, com acima, abaixo etc., O
aqui que deveria ser indicado desvanece em outros aqui; mas esses desvanecem
igualmente. O indicado, o retido, o permanente é um este negativo [ele é outro do
outro, ele é aquilo que os outros não são] que só é tal porque os aquis são tomados
como devem ser, mas nisso se supera, constituindo um complexo simples de muitos
aquis (einfache Komplexion vieler Hier) 6.
Hegel está simplesmente dizendo que não há singularidade que não passe a priori pelo
genérico da estrutura (estrutura que pode aparecer, por exemplo, como um complexo
simples de muitos aquis), já que toda indicação é feita em um tempo e em um espaço
estruturalmente coordenados. Tudo se passa como se Hegel houvesse percebido o problema
de Quine sobre a inescrutabilidade da referência. Lembremos como Quine nos afirma que:
“a referência é sem sentido, salvo em relação a um sistema de coordenadas (...) Procurar
uma referência de maneira mais absoluta seria como querer uma posição absoluta ou uma
velocidade absoluta ao invés da posição ou da velocidade em relação a um quadro
referencial dado”7. Isto permite a Quine deduzir que ser é ser valor em uma variável, o que
nos leva a uma relativização da ontologia. Hegel, de sua parte, compreende inicialmente o
resultado como a experiência do fracasso da apresentação positiva imediata do
acontecimento singular (ou da referência enquanto ser sensível) [isto para nos jogar em
uma naturalização do background enquanto resposta para questões como: qual é o sistema
5
HEGEL, Fenomenologia, par. 107
6
HEGEL, Fenomenologia, par. 108
7
QUINE, A relatividade ontológica, p. 144
de coordenadas do sistema de coordenadas?]. A instância singular referida não acede à
palavra. Hegel tira assim as consequências gerais da experiência da defasagem entre
significação e ato ostensivo de designação8. A exterioridade do sensível em relação ao
sistema diferencial será o motor da dialética. Digamos, com Bourgeois, que o especulativo:
“enraíza-se na visada – ‘indicativa’, infradiscursiva – do isto sensível, para ser, em todo seu
discurso, a explicação dos requisitos da afirmação original, ‘é’, ‘há’" 9. De qualquer forma,
esta exterioridade será garantia para uma recuperação da ontologia.
A partir daí, Hegel dedica os dois últimos parágrafos do nosso capítulo a criticar
toda posição filosófica que procure fundamentar o saber através do primado do sensível,
como seria o caso do ceticismo moderno de Schulze, que insistiria que o ser sensível e a
experiência imediata teriam uma verdade absoluta para a consciência. “Uma afirmação
destas diz o contrário do que quer dizer”, dirá Hegel. Lá onde ela julga enunciar a
ancoragem do saber no sensível, ela enuncia (devido à própria dinâmica dos shifters) o
primado do conhecimento das relações sobre o conhecimento do conteúdo da experiência.
Hegel passa então à necessidade de consumar o sensível. ele chegará mesmo a falar da
sabedoria dos animais que, na plena certeza do nada da realidade sensível, simplesmente a
consomem: “E a natureza toda celebra com eles esses mistérios revelados, que ensinam
qual é a verdade das coisas sensíveis”10.
Hegel termina então reafirmando a impossibilidade da designação do singular e a
essencialidade da linguagem enquanto sistema de coordenadas:
Esta perspectiva que parece não levar a sério o sensível será usada contra Hegel,
principalmente através dos pós-estruturalistas. Esta é uma digressão interessante por nos
mostrar um aspecto da maneira com que a contemporaneidade compreende o que estaria
em jogo no interior da experiência intelectual hegeliana. Lyotard, por exemplo, dizia a
respeito de Hegel : “a exterioridade do objeto do qual se fala não diz respeito à
significação, mas à designação”12. Pois a referência: “pertence ao mostrar, não ao significar,
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Neste sentido, Hegel pode admitir a afirmação de Frege: “não nos contentamos com o sentido, supomos uma
denotação” (FREGE, Écrits logiques et philosophiques, Paris: Seuil, 1971, p. 107). Mas nos parece que ele
não pode aceitar que: “com o signo, exprimimos o sentido do nome e designamos a denotação" (idem, p. 107).
É exatamente a impossibilidade de convergir sentido e designação no signo que anima a dialética. Para Hegel,
o objeto desvanece quando é designado pelo signo, ele só poderá ser recuperado como negação
9
BOURGEOIS, La spéculation hégélienne in Etudes hégéliennes, Paris: PUF, 1992, p. 89
10
HEGEL, Fenomenologia, par. 109
11
HEGEL, Fenomenologia, par. 110
12
LYOTARD, Dialectique, index, forme in Discours, figure, Paris: Klicksieck, 1985, p. 50.
ela é insignificável”13. Hegel pode facilmente admitir que a referência diz respeito à
designação e que ela é, a princípio, insignificável. Para ele, o fundamento da negação
dialética é a negação que vem do fracasso da designação. No entanto, como vimos, ele não
pode aceitar a pretensão de imanência da designação que se resolve no mostrar, já que a
dialética não pode assumir a perspectiva externalista que crê poder sair dos limites da
linguagem para apreender a exterioridade do objeto.
Isto não significa que a aposta dialética seja fundada em uma totalização simples
que seria um retorno ao pensamento da adequação e da identidade. Lyotard insiste no fato
de que a Aufzeigen capaz de nos abrir a uma experiência da ordem do sensível nunca será
totalizada em uma linguagem dialética. Mas deveríamos dizer que a dialética visa a
possibilidade de apresentação deste impossível (representado pelo que Lyotard chama de
negatividade transcendental que suporta toda relação à referência) em uma linguagem que
porta em si sua própria negação, conservando-a como negação. Podemos sempre denunciar
esta internalização do negativo como uma maneira astuta de esconder o corte entre saber e
realidade fenomenal, o que Lyotard fará: “Mas não é porque o objeto adquire um
significado no interior do sistema que este perde sua relação de arbitrário com o objeto. A
imotivação é inscrita na linguagem como sua dimensão de exterioridade em relação aos
objetos. Este exterioridade uma vez significada é certamente interiorizada na linguagem,
mas esta não terá perdido sua borda, e sua borda é sua face olhando para além”14.
É correto dizer que, em Hegel, a clivagem entre significação e designação está
fadada a uma certa reconciliação através do conceito. Mas dizer isto é dizer muito pouco.
Pois a verdade questão consiste em saber qual é o regime de reconciliação capaz de curar as
cicatrizes desta clivagem, ou seja, como a reconciliação pode superar a negatividade do
sensível.
Por outro lado, no que concerne à perspectiva de Lyotard, podemos sustentar que
seu problema é pressupor muita coisa. Por exemplo, ela pressupõe a possibilidade de uma
experiência imediata acessível fora dos limites de minha linguagem. Ela pressupõe também
uma integralidade do sensível que ficaria livre da interferência da linguagem, ou seja, uma
imanência do sensível que se abriria em sua integralidade à experiência: tal como vemos na
crítica de Lyotard ao fato do sistema hegeliano não deixar o objeto no exterior como seu
outro. Dizer que o objeto deve ser conservado no exterior do sistema pressupõe uma
alteridade indiferente das diferenças, o que o próprio Hegel já havia criticado na Doutrina
da essência, no capítulo sobre a diversidade. Esta alteridade indiferente esconde a
necessidade da perspectiva de um terceiro (que Hegel chama de das Vergleichende)
enquanto lugar que permite a comparação entre a exterioridade e a interioridade do sistema.
Este terceiro anula a indiferença do diverso e estabelece uma unidade negativa entre o
objeto da experiência sensível e a linguagem. Tal unidade negativa se transforma em
oposição estruturada.
E verdade que, quando Lyotard fala deste deixar-estar do objeto fora da linguagem
(que é também deixar-estar do desejo), ele não entra na hipóstase do inefável. Sua
estratégia consiste antes em colocar um espaço figural que pode se manifestar também na
ordem da linguagem: “No entanto, não é como significação, mas como expressão” 15. Algo
que se mostra, ao invés de se deixar dizer.
13
idem, p. 40
14
LYOTARD, idem, p.46
15
LYOTARD, Idem, p. 51
Podemos perguntar se este retorno à expressão, retorno que mostra como a atividade
sensível é um Dasein, e não uma Bedeutung, não nos envia a uma linguagem da imanência.
Talvez o problema maior desta leitura de Hegel venha de uma certa confusão, própria a
Lyotard, entre negação opositiva e negatividade absoluta enquanto contradição que se
manifesta, inicialmente, no interior do objeto e que reconhece que o objeto também é algo
fora do sistema. Os exemplos hegelianos são claros e instrutivos neste ponto.