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Resumo: As ações socioeducativas têm sido proclamadas como uma das prin-
cipais ações da Política Nacional de Assistência Social para a concretização da
proteção social, em especial da proteção social básica. Por ações socioeducativas
compreende-se, neste texto, um conjunto de atividades: grupos socioeducativos,
campanhas socioeducativas, grupos de convivência familiar, grupos de desenvol-
vimento familiar. A ênfase é para que essas ações fundamentem-se em uma visão
participativa e dialógica. Sob essa ótica, o conceito de ações socioeducativas apre-
senta uma associação à idéia de educação como prática da liberdade, de Paulo
Freire. Nesse sentido, a proposta deste trabalho é discutir esse conceito a partir da
obra de Freire e comentar a concepção de ação socioeducativa que tem norteado
algumas práticas profissionais, tendo por base pesquisa por nós realizada***
Palavras-chave: A pedagogia de Paulo Freire. Ações socioeducativas. Política de
assistência social.
Abstract: Social educational actions have been considered as some of the main
actions of the Social Assistance National Policy for the achievement of social pro-
tection, in particular basic social protection. In this article, the following set of acti-
vities are described as social educational actions: social educational groups, social
educational campaigns, family relationship groups, and family development groups.
It is emphasized that these actions should be based on a dialogical participative
view. From this perspective, the concept of social educational actions refers to
education as the practice of freedom as proposed by Paulo Freire. Thus, this article
aims to discuss the concept from Paulo Freire’s perspective, and analyze the social
educational action conception that has orientated some professional practices. The
discussion presented in the article is based on research.
Key words: Paulo Freire’s pedagogy. Social educational actions. Social assistance
policy.
Embora as ações socioeducativas estejam mostrou os vários sentidos adquiridos por essa
bastante difundidas no âmbito das políticas so- palavra nos diferentes contextos no qual é uti-
ciais como uma ferramenta de promoção da in- lizada e a diversidade de ações desenvolvidas
clusão social e possuam, ano âmbito da política em associação a esse termo.
de assistência social, uma descrição metodológi-
Dessa forma também, nossa análise sobre
ca sistematizada em documento do Ministério do
o termo socioeducativo parte dessa premissa,
Desenvolvimento Social, não se verifica clareza
de que o mesmo muda de significado conforme
de concepção teórica. Por ações socioeducativas
o contexto no qual está inserido, pois é neste
são descritos um conjunto de atividades: grupos
em que se encontra seu sentido potencial ou
socioeducativos, campanhas socioeducativas,
subjacente.
grupos de convivência familiar, grupos de desen-
volvimento familiar, e grupos de desenvolvimen- Importante lembrar que Freire nunca uti-
to local das comunidades cada um enfatizando lizou nenhum desses termos (socioeducativo,
uma atividade. O desenvolvimento de um ou de sem hífen ou sócio-educativo, com hífen), mas
outro se fará conforme a vulnerabilidade das fa- sim ação cultural, que supõe atuação dos sujei-
mílias ou necessidades locais. A ênfase é para tos trocando cultura, entendida por ele como tudo
que estas ações fundamentem-se em uma visão que o homem construiu em sua relação com a
participativa e dialógica natureza.
Sob essa ótica, de fundamentar-se na vi- Freire reconheceu a influência das assis-
são dialógica, o conceito de ações socioeduca- tentes sociais em sua formação inicial. Ele co-
tivas apresenta uma associação à idéia de edu- menta que houve dois pólos de influência muito
cação como prática da liberdade de Paulo Freire. grande em sua formação. Sobre isso acrescen-
No entanto, foi possível constatar que apesar da ta:
influência do Serviço Social na construção teó- De um lado assistentes sociais, a Escola de
rica dos primeiros anos da obra de Freire e da Serviço Social de Pernambuco, assistentes
influência deste no pensamento do Serviço So- sociais, todas católicas, e Anita Paes Barre-
cial, há na prática contemporânea pouca relação to, que em não sendo assistente social era,
com a direção e operacionalização das ações. porém, primeiro, do mesmo time dessas as-
Ressaltamos que a analogia ao pensamento de sistentes sociais que eu vou citar e, segun-
Freire se deu não pelo termo socioeducativo, do era professora fundadora dessa escola.
pois o autor não utilizou esse termo, mas em ra- É interessante recordar como mulheres de
zão da metodologia sugerida pelos documentos minha geração, algumas mais velhas, outras
um pouco mais jovens, três, quatro, cinco,
norteadores da Política Nacional de Assistência
me marcaram fundamentalmente - Anita
Social. Paes Barreto, Lourdes de Moraes, Dolores
A partir dessas considerações iniciaremos Coelho e Hebe Gonçalves.... Por isso mes-
nossas reflexões contextualizando o termo socio- mo é que essa escola que me influenciou me
educativo a partir da obra de Paulo Freire. chama para ela e eu fui professor da Escola
de Serviço Social. Entro em contato com as
assistentes sociais logo depois do meu in-
gresso no SESI, cerca de três meses depois,
O debate a partir da obra de Paulo Freire e elas começam imediatamente a me mar-
car. Me lembro da ênfase que davam ao ser-
De um ponto de vista semântico, sabemos viço social de grupo, ao serviço social de or-
que as palavras têm um sentido de base e um ganização da comunidade, se bem que não
sentido contextual. É o contexto em que se en- desprezassem o trabalho com os indivíduos.
Mas nestes casos o que elas buscavam era
contra a palavra que delimita um de seus senti-
capacitar as meninas, as jovens que estuda-
dos potenciais ou virtuais. vam, na compreensão do indivíduo para que
Freire se apoiou nessa premissa para dis- depois confrontando os grupos e as comuni-
cutir em seu livro “Extensão ou Comunicação?”, dades tivessem a possibilidade de individuar
o sentido da palavra extensão, texto em que os grupos e as comunidades”. “[...] gente que
era progressista, gente comprometida [...]”.
O outro pólo foi exatamente a minha práti- O educador é o que sabe; o que pensa; o que
ca no SESI, pelo contato com os trabalhadores, diz a palavra; o que disciplina; o que opta e
com grupos de trabalhadores no que então cha- prescreve sua opção; o que escolhe o con-
mávamos Núcleos de Serviço Social. Comecei teúdo programático; o que identifica a auto-
ridade do saber com sua autoridade funcio-
a trabalhar como assistente de Divisão de Edu-
nal; enfim, o sujeito do processo, enquanto
cação e Cultura, logo depois fui para a direção os educandos, meros objetos”. Infelizmente,
dessa divisão e comecei a desenvolver um traba- esse saber deixa de ser de “experiência fei-
lho muito associado com as assistentes sociais. ta” para ser de “experiência narrada ou trans-
Aí continuei a minha ligação com essas amigas mitida”. Nesta visão distorcida de educação,
maiores do Serviço Social e também com as não há criatividade, não há transformação,
jovens que elas formavam e que iam trabalhar não há saber. Acrescenta também, que “só
no SESI e que me ajudavam a compreender os existe saber na invenção, na re-invenção, na
problemas das escolas dos garotos. (BEISEGEL, busca inquieta, impaciente, permanente, que
1982 p.35) os homens fazem no mundo, com o mundo e
com os outros. (FREIRE, 2005a p.68-69).
Destacamos que Freire desenvolveu sua
concepção educativa numa perspectiva crítica, Em contraposição a essa forma de edu-
questionadora das relações de dominação e cação ele propõe a educação (ou ação cultural)
essa concepção encerra também uma concep- problematizadora, libertária, que tem como pres-
ção de práxis. supostos a humanização de ambos, educador
Educação é assim descrita: “como situa- e educando, o pensar autêntico, e, não, educa-
ção gnosiológica em que o objeto cognoscível, ção como doação, como entrega do saber. Isso
em lugar de ser o término do ato cognoscente prevê o companheirismo de ambos, educador e
de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos cog- educando. Isto implica num que fazer, conceito
noscentes” (FREIRE, 2005a p.78). Essa forma que representa a união entre teoria e a prática,
de ver a educação coloca educador e educando reflexão e ação.
no mesmo nível de igualdade, isto é, ambos na Sobre o efeito de cada uma dessas edu-
condição de sujeitos, superando a posição tradi- cações sobre os homens Freire diz: “a primeira
cional por ele nomeada de bancária, em que há assistencializa; a segunda, criticiza. Assisten-
a atuação do educador, sujeito, sobre um obje- cializa através da ação de ocultar certas razões
to, o educando. Do ponto de vista de Freire, na que explicam como estão sendo os/as homens/
educação bancária há uma ação educativa, dis- mulheres1 no mundo, mistificando a realidade”.
sertativa, narrativa. Coloca ainda, que na forma Apresentando somente alguns aspectos dessa
“bancária” da educação, o “saber” é visto como realidade. A educação problematizadora des-
uma doação dos que se julgam sábios, conhe- mistifica. Propõe um re-fazer o mundo, ou seja,
cedores, aos que julgam nada saber. Há o que ver sob vários ângulos as razões de como estão
ele chama de alienação da ignorância, segundo
a qual esta se encontra sempre no outro.
Uma observação necessária a ser feita é 1
Uma observação a ser feita é quanto à palavra “homem”. Ao
em relação ao conceito de educação bancária. longo desse trabalho, muitas vezes o termo será utilizado nas
citações no sentido genérico, com o significado de “homem/mu-
Contrário ao que muito foi divulgada, a palavra lher”, pois algumas das citações aqui apresentadas são de obras
“bancária” não está relacionada a banco de es- nas quais o autor ainda entendia, erroneamente segundo ele
cola, mas sim ao sistema bancário, onde saques próprio, que ao se utilizar, genericamente, do masculino, estaria
incorporado o gênero feminino. Essa solicitação é feita por ele em
e depósitos são feitos. Sacar a ignorância e de- Pedagogia da Esperança. Assim expõe: “[...] ao ler as primeiras
positar conhecimento. críticas que me chegavam ainda me disse ou me repeti o en-
sinado na minha meninice: “Ora, quando falo homem, a mulher
Em decorrência desse entendimento de necessariamente está incluída”. Em certo momento de minhas
educação bancária, ele apresenta a postura do tentativas, puramente ideológicas, de justificar a mim mesmo, a
linguagem machista que usava, percebi a mentira ou a ocultação
educador nesse modelo de educação e como da verdade que havia na afirmação: “Quando falo homem, a mu-
deve ser a postura deste na educação proble- lher está incluída”. E por que os homens não se sentem incluídos
quando dizemos: “As mulheres estão decididas a mudar o mun-
matizadora. do”?”. (PE, p.67)
sendo no mundo. (2005a, p.83). como um ser a – histórico/a, abstrato/a, com ca-
racterísticas inatas, há uma dicotomia entre ho-
Para o autor, o assistencialismo é uma
mem/mulher-mundo. Como se o fato de nascer
forma de ação que rouba ao homem condições
com características humanas já o/a torne um ser
à consecução de uma das necessidades funda-
humano. Por entender a consciência como algo
mentais de sua alma – a responsabilidade. No
dentro da/o mulher/homem que se manifestará
assistencialismo não há decisão. Só há gestos
independentemente das suas relações é que não
que revelam passividade e domesticação.
distinguem entre presentificação à consciência
Em seu livro Pedagogia do Oprimido ex- de entrada na consciência. Na presentificação
plica como a forma problematizadora de educa- os objetos se tornam presentes a mim, tomo
ção liberta. consciência deles e não estão dentro de mim.
O educador problematizador re-faz, constan-
(2005a, P.72)
temente, seu ato cognoscente, na cognosci- Já a visão de homem/mulher da educação
vidade dos educandos. Estes, em lugar de libertadora parte do princípio que ontologicamen-
serem recipientes dóceis de depósitos, são te todo ser humano é inacabado, não existindo
agora investigadores críticos, em diálogo
dessa forma alguém plenamente educado, pron-
com o educador, investigador crítico tam-
to, terminado, capaz de atuar, sobre os outros; há
bém” (gn). “Na medida em que o educador
apresenta aos educandos, como objeto de apenas seres em diferentes fases de maturação,
sua “ad-miração”, o conteúdo, qualquer que precisando sempre aprender mais, buscando ser
ele seja, do estudo a ser feito, “re-ad-mira” a mais. Porque uma vez que refletem juntos sobre
“ad-miração” que antes fez, na “ad-miração” si e sobre o mundo vão dirigindo sua mirada a
que fazem os educandos”. “[...] o papel do percebidos que não percebiam antes, levando
educador problematizador é proporcionar, ambos, educador e educando, a outra visão de
com os educandos, as condições em que se mundo. Isto se dá na ação, reflexão e de modo
dê a superação do conhecimento no nível da contínuo, pois dialético. Como é possível inferir,
doxa pelo verdadeiro conhecimento, o que
Freire coloca a solução, a resposta aos proble-
se dá no nível do logos. (2005a, p.80)
mas como algo aberto, isto é, que deve ser pro-
curada pelos educadores e educandos refletindo
Vimos acima que Freire, não nega o co- em conjunto, buscando a síntese de seus pen-
nhecimento do nível da doxa (conhecimento in- sares para também agirem em conjunto.
gênuo ou do sendo comum), mas afirma que para
superá-lo é necessário partir desse para chegar, Com relação ao conceito de cultura, ele a
através do nível do logos (razão) ao saber ver- apresenta com um sentido muito diferente e mais
dadeiro que se dá na práxis. Por sua própria ca- rico do que compreendida no uso ordinário.
racterística ontológica os homens são seres do A cultura – por oposição à natureza, que não
que fazer exatamente porque seu fazer é ação é criação do homem – é a contribuição que
e reflexão, é teoria e prática, é práxis, por isso o homem faz ao dado, à natureza. Desse
mesmo diferente dos animais que são puro fa- modo, cultura é todo o resultado da ativida-
zer. Os animais não trabalham, vivem dos seus de humana, do esforço criador e recriador do
suportes biológicos particulares herdados aos homem, de seu trabalho por transformar e
quais não transcendem. Os animais não “ad- estabelecer relações de diálogo com outros
miram” o mundo, imergem nele. Os homens/ homens. [...] A cultura é também aquisição
mulheres “emergem” dele porque ao objetivá-lo sistemática da experiência humana, mas
aquisição crítica e criadora, e não uma jus-
podem conhecê-lo e transformar o mundo com
taposição de informações armazenadas na
seu trabalho. (2005a, p.141-142) inteligência ou na memória. (2001, p.38)
Como se pode verificar, a concepção de
educação proposta por Freire implica numa vi- Neste sentido é lícito dizer que todo/a ho-
são de homem/mulher e de cultura diferente da mem/mulher fazem história, pois a história repre-
concepção de homem/mulher e cultura da educa- senta a mobilidade, o movimento, a capacidade
ção bancária. Nesta, o/a homem/mulher é visto/a de se envolver e se fazer enquanto ser ético e
um motor da história. Não há mudança sem na projeto. É atuando que posso transformar
sonho como não há sonho sem esperança. meu anteprojeto em projeto. (2001, p.27)
(2006, p.91).
Outros conceitos relevantes na obra de
No mesmo livro acima citado ele diz que se Freire são os conceitos de autonomia e cida-
o contexto de origem dos sujeitos faz com que dania, conceitos estes também presentes na
eles tragam em seu corpo inteiro uma espécie proposta para o desenvolvimento das ações
de cansaço, que ele chamou de “cansaço exis- socioeducativas.
tencial”; um cansaço que não é só físico, mas
Por autonomia Freire compreende o pro-
espiritual, que deixa as pessoas por ele domina-
cesso gradativo de amadurecimento que ocorre
das vazias de ânimo, de esperança e tomadas,
durante toda a vida, propiciando ao indivíduo a
sobretudo, do medo da aventura e do risco, não
capacidade de decidir e, ao mesmo tempo, de
há possibilidade de mudança, de movimento, de
arcar com as conseqüências dessa decisão, as-
mudar a história. A esse cansaço paralisante ele
sumindo, portanto, responsabilidades. Nas pala-
chamou de “anestesia histórica”. (2006, p.124).
vras do autor a autonomia, deve ser entendida
Uma vez que essa anestesia histórica se enquanto amadurecimento do ser para si, é pro-
instale acaba a possibilidade de transposição cesso, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É
da situação-limite, seja ela qual for, e de atingir neste sentido que uma pedagogia da autonomia
o inédito-viável ou a crença no sonho possível, tem de estar centrada em experiências estimu-
na utopia. Observe como Freire explica: “nas ladoras da decisão e da responsabilidade, vale
situações-limites, mais além das quais se acha dizer, em experiências respeitosas da liberdade.
o inédito viável às vezes perceptível, às vezes (2005b, p.121)
não, se encontram razões de ser para ambas as
Em relação a cidadania, termo citado e
posições: a esperança e a desesperança” (2000,
usado à exaustão nos planejamentos pedagó-
p.138), ou como nas palavras de Amartya Sen
gicos contemporâneos e de uso freqüente na
(2000) que a pobreza e o nível de vulnerabilida-
PNAS/SUAS, Freire afirma que conceito vem
de e exclusão tenha chegado a um nível de pri-
casado com a concepção de participação, de
vação de capacidades que impossibilite o agir.
ingerência nos destinos históricos e sociais do
Uma das razões para esse “cansaço exis- contexto onde se está.
tencial” é a insegurança vital acumulada em anos
Para atingir esses objetivos, a expressão
de sucessivos fracassos. Ou, conforme Amartya
e vivência da autonomia e cidadania dos sujei-
Sen, a pobreza ou o nível de vulnerabilidade e
tos históricos, sua metodologia está centrada no
exclusão chegou a um nível de privação de ca-
diálogo, esse compreendido como uma relação
pacidades que impossibilita o agir.
de comunicação entre dois seres em construção;
É importante que se esclareça o que é o um diálogo que não se dá de A para B ou ainda
sonho utópico ou a utopia para Freire. de A sobre B, mas um diálogo que se dá entre
A com B sempre mediatizados pelo mundo, no
Para mim o utópico não é o irrealizável; a
utopia não é o idealismo, é a dialetização qual um não é sem o outro. Uma vez que nin-
dos atos de denunciar e anunciar, o ato de guém nasce homem/mulher, torna-se homem/
denunciar a estrutura desumanizante e de mulher, o ser humano é sempre um devir, um
anunciar a estrutura humanizante. Por esta vir- a – ser. Assim, o diálogo “é uma exigência
razão a utopia é também um compromisso existencial”, [...] é o encontro onde se solidarizam
histórico”. “[...] A utopia exige o conhecimen- o refletir e o agir de seus sujeitos, endereçados
to crítico. É um ato de conhecimento. Eu não ao mundo a ser transformado e humanizado ”.
posso denunciar a estrutura desumanizante ( 2005a, p. 90)
se não conheço, mas entre o momento do
anúncio e a realização do mesmo existe algo Quanto ao pensar verdadeiro e crítico afir-
que deve ser destacado: é que o anúncio ma que, este é um pensar que percebe a reali-
não é o anúncio de um anteprojeto, porque é dade como processo, que a capta em constante
na práxis histórica que o anteprojeto se tor- devenir e não como algo estático.
acerto com que delas falo hoje. É pos- ações socioeducativas ainda estão pautadas na
sível, porém, que muitas ou muitos dos transmissão de informações e orientações sem
que me cobravam nos anos 1970 a ex- a participação da população atendida na defi-
plicitação constante do conceito, me co- nição, na escolha do conteúdo programático. É
brem hoje o contrário: que retire as duas sobre esse ponto que faremos algumas consi-
dezenas de vezes em que o empreguei, derações a seguir.
porque ‘já não há classes sociais, cujos
conflitos com elas sumiram também’”.
“(...) Nunca entendi que as classes so-
As ações socioeducativas
ciais, a luta entre elas, pudessem expli-
car tudo (...) daí que jamais tenha dito A análise dos dados a partir da pesquisa,
que a luta de classes, no mundo moder- apresenta como núcleos centrais da ação socio-
no, era ou é o motor da história. Mas por educativa realizada nos grupos, a informação
outro lado, hoje ainda (1992, gn) e pos- e a orientação. A essas informações e orienta-
sivelmente por muito tempo não é pos- ções são atribuídos diversos sentidos: sentido
sível entender a história sem as classes de fortalecimento da família, do indivíduo, da
sociais, sem seus interesses em choque. comunidade, para a promoção da socialização,
A luta de classes não é o motor da histó- cidadania e autonomia.
ria, mas certamente é um deles. (2006,
p. 91). O que se verifica em relação às ações in-
formativas é a ênfase no desenvolvimento das
Eis aí então uma das razões pelas quais habilidades psicológicas individuais (auto-estima,
Freire não é considerado por seus críticos e por busca de uma identidade transformada) e na ela-
ele mesmo, um marxista. boração de referências para avaliar seu processo
de transformação familiar e social.
Reitera seu conceito de oprimido que de
acordo com ele já estava clara em seu livro Peda- Há, por parte das entrevistadas, a compre-
gogia do Oprimido. Com relação à assunção de ensão de que à medida que os sujeitos ao par-
que o oprimido libertando-se liberta o opressor, ticiparem de pequenos grupos com demandas
as críticas recebidas pelo autor ao reconheci- coletivas percebam que muitos dos seus proble-
mento que dava à subjetividade no processo de mas individuais são similares ao dos outros par-
transformação da realidade ou às relações entre ticipantes, e, não incompetência pessoal, assim
subjetividade e objetividade ou à consciência e terão maior compreensão de si. Isto promoveria
mundo como não dicotômicas, ele argumenta mudanças no nível micro, tais como maior liber-
que a visão dialética indica a necessidade de re- dade, sentido de competência pessoal e reavalia-
cusar a compreensão da consciência como puro ção dos problemas vivenciados cotidianamente.
reflexo da objetividade material como tampouco Essas mudanças no plano micro (individual, fa-
conferir à consciência um poder determinante miliar) gradativamente promoveriam uma trans-
sobre a realidade concreta. formação no plano macro, como a inserção no
mercado de trabalho, uma agenda política mais
Para se chegar a esse nível de diálogo, ampla, a participação na comunidade, geralmen-
de pensar crítico, esperançoso, é necessário te nas associações de bairro, da escola, que le-
que desde a escolha do conteúdo programático varia a uma cidadania transformada.
exista a participação do educando - educador,
que o conteúdo programático não seja: [...] “uma Essa é uma visão centrada no indivíduo. As
doação ou imposição – um conjunto de informes mudanças assim entendidas trazem uma idéia
a ser depositado nos educandos -, mas a devo- de que as transformações ocorrem a partir do
lução organizada, sistematizada e acrescentada indivíduo, de dentro para fora, apenas ao tomar
ao povo daqueles elementos que este lhe entre- conhecimento delas.
gou de forma desestruturada”. (2005a, p.97). Embora não haja essa percepção e inten-
Como verificamos em nossa pesquisa as ção por parte das entrevistas corre-se o risco
de ver a população atendida como totalmente uma ação que proporcione um crescimento
alienada, e isso já evidenciaria a inexistência de da pessoa, do público que a gente vai traba-
diálogo, troca de saber e sim doação de conte- lhar. Se a gente pretende que esse público,
údos. que esse sujeito, que ele seja ator, protago-
nista de mudança, então ele precisa ter uma
A questão da emancipação também é pre- ação educativa né”. “(...) Se é para alguém
sente. O que é emancipar? Como emancipa-los? crescer, se é para alguém ser participativo,
Orientação e informação não podem, por si só exercer a cidadania, tem de passar pela edu-
emancipar um indivíduo. cação; e a ação socioeducativa ela faz parte
desse processo no meu entendimento.(fala
Emancipar nesse contexto é fazer com que de uma AS entrevistada?)
os indivíduos adquiram o direito de administrar
seus próprios bens e receber seus rendimentos. Se pensarmos educação como definida na
Isto só é possível se paralelamente a essa ação teoria da ação cultural “como situação gnosioló-
aconteça uma parceria efetiva com a inclusão gica em que o objeto cognoscível, em lugar de
produtiva. Sabe-se que essa é uma proposta da ser o término do ato cognoscente de um sujei-
política nacional de assistência, a capacitação to, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes”,
e promoção da inserção produtiva ou geração podemos afirmar que o ato não termina ali na
de renda, no entanto, essa capacitação quando descoberta da necessidade, ele tem início entre
acontece não tem produzido inserção efetiva. os sujeitos conhecedores. Ninguém desvela o
Pois além da dificuldade de acesso aos grupos mundo ao outro e, ainda quando um sujeito ini-
de inclusão produtiva, pela dificuldade de aces- cia o esforço de desvelamento aos outros, “(...)
so ao local de realização, falta às mulheres, em é preciso que estes se tornem sujeitos do ato de
sua grande maioria, condições para se afastar desvelar”. (FREIRE, 2005a, p.194).
da casa – não têm com quem deixar as crianças
ou idosos, falta dinheiro para o passe e, ainda Embora se cite o socioeducativo como uma
por essas ações estarem centradas em traba- ação educativa, não é explicitado de que maneira
lhos artesanais que podem até desenvolver ou isso deva ocorrer. Dá-se a entender que é atra-
potencializar uma habilidade, mas não dão con- vés das orientações fornecidas pelos técnicos
dições de inserção no mercado. Em muitos casos seja qual for, o/ assistente social, o/a psicólogo/a,
faltam a essas mulheres as condições mínimas os/as estagiárias. Essas orientações, informa-
para que possam desenvolver a atividade em ções darão aos sujeitos a visão de totalidade
sua moradia. dos fenômenos, seja na situação familiar, seja
na situação social, que promoverá a mudança.
Para elucidar a situação mostramos o ob- Essa vai do individual ao familiar.
servado num grupo.
Será que eles não sabem que essa con-
Uma das mulheres pede para trazer gente dição em que vivem não é de responsabilidade
para dar curso (bijuteria, chinelo). Souberam deles? Será que eles podem abrir mão da condi-
que em outro local isso está acontecendo. A ção de beneficiários? Sem saúde, sem escolari-
AS explica o que é o programa de geração
dade, sem trabalho, sem redes sociais de apoio,
de renda, inclusão produtiva. A participante
é possível essa transformação?
diz que a sogra dela fez o curso de borda-
do. Pena que é longe. É difícil ir a pé com Observa-se que o sentido dado para as
criança. O local desse curso é bem longe da ações socioeducativas é de educação para o
região onde mora. A pé daria 1h30 e com coletivo, pois sem a soma de forças não é pos-
criança então? A AS diz que vai tentar agen- sível às famílias romperem com a situação de
dar o curso para o próximo mês.
exclusão em que se encontram.
Outro objetivo para realização de ação so- Mas ao mesmo tempo em que identificam
cioeducativa é a relacionada a educação, como a necessidade de uma ação mais ampla, se con-
na fala abaixo: tradizem quando dirigem as ações para o plano
individual e familiar.
(...) por ação socioeducativa eu entendo
ca minoria real é a classe dominante. (2001, tempo pensam que deve ser mesclada, um pou-
285-286). co de cada uma, pois uma só não dará conta da
realidade. Assim, o referencial é vago, baseado
A educação para Freire, é práxis social, isto em técnicas de dinâmicas de grupos. Aparece
é, modificação do modo de perceber a realidade também a preocupação das técnicas de como
e também ação sobre as estruturas sociais. É abordar a teoria da ação cultural, como isso pode
nesse sentido que é política. Dessa forma com- se dar na prática? Libertar-se da opressão, o que
preendida uma ação educativa não pode ser isso significa realmente no concreto?
apenas informativa. Para que haja mudança é
As capacitações realizadas são baseadas
necessário diálogo entre as partes, é necessá-
mais no exemplo de outras operacionalizações
ria práxis.
do que propriamente um debate entre elas, equi-
As reflexões críticas apontadas também pe dirigente e equipe executora. Sem uma defi-
fazem parte do universo de preocupação das nição teórica consistente elas ficam totalmente
assistentes sociais entrevistadas. Alguns aspec- perdidas quanto aos limites de atuação do assis-
tos chamam a atenção, entre eles a queixa que tente social e do psicólogo. Isso tem levado-as
não há um norte teórico-metodológico claro. In- a se sentirem perdidas frente às situações que
dagam: qual e a nossa linha? ocorrem nos grupos, situações que emergem a
Mioto (2004, p.3) mostra a preocupação partir das dinâmicas ou de outras situações.
dos profissionais da área com relação à capa- A análise desenvolvida por Freire com rela-
citação profissional dos assistentes sociais no ção ao termo extensão, termo que adquiriu vários
aspecto teórico-metodológico e ético-político sentidos nos diferentes contextos no qual foi utili-
para dar conta da operacionalização dos seus zado, mostrou o paradoxo existente na proposta
serviços, em especial do apoio sociofamiliar de desenvolvimento das ações socioeducativas.
exigência da política nacional de assistência. A Esse paradoxo se apresenta com mais clareza
autora discorre sobre alguns aspectos que têm na proposição dos grupos socioeducativos. A
sido observados nas pesquisas sobre o tema. idéia central para o desenvolvimento desse tipo
De maneira geral há por parte dos/as profissio- de grupo é o da informação, orientação sobre
nais a ausência de: discriminação quanto à na- temas relacionados à política de assistência
tureza das ações direcionadas ao atendimento social, esses objetivando tornar essas famílias
das famílias, em muitos serviços; utilização de alcançáveis pelas demais políticas sociais para
categorias de análise sem o devido conheci- que possam cuidar de seus dependentes, em
mento ou discernimento quanto às matrizes especial as crianças e adolescentes, deficien-
teóricas às quais estão vinculadas; articulação tes e idosos.
explícita entre referências teóricas e ação pro-
Ainda que a metodologia sugerida paute-
fissional que aparece quando o assistente tem
se numa prática dialógica e utilize termos como:
uma formação específica na área da família, que
temas geradores e ação participativa da comu-
geralmente, se faz através de outras áreas, em
nidade, constatou-se, entretanto, que as ações
especial a psicologia, levando à psicologização
socioeducativas como são desenvolvidas , não
dos problemas sociais; e, por fim os processos
vão além da transmissão de informações e orien-
de intervenção com famílias que são pensados
tações e que os conceitos de emancipação, ci-
apenas no âmbito do atendimento direto. Este
dadania, autonomia possuem concepção bem
atendimento dirigido maciçamente às famílias,
diferente da proposta por Freire.
que por pobreza ou falimento nas suas funções,
são tidas incapazes ou patológicas. A concepção de ações socioeducativas
das entrevistadas não difere da concepção veri-
É oportuna a pergunta que algumas entre-
ficada nos documentos, ainda que haja por parte
vistadas fazem. Qual a nossa linha? Nós atua-
das mesmas uma visão crítica sobre esse traba-
mos no marxismo, educação libertária, sistêmi-
lho. Como demonstraram as falas das entrevis-
ca? Perguntam: vamos trabalhar duas, trabalhar
tadas há também por parte delas a consciência
marxista, sistêmica da psicologia? Ao mesmo
de um esvaziamento de significado e de sentido
Com relação à identificação da proposta MIOTO, Regina Célia Tamaso. Novas propostas e
das ações socioeducativas e a teoria de Freire, velhos princípios: a assistência às famílias no con-
isso acontece como relatado pelas técnicas pe- texto de programas de orientação e apoio sociofami-
liar. IN: MIONE, Apolinário Sales; de Matos, Maurílio
los conceitos centrais da proposta apresentada
Castro; Leal, Maria Cristina (org.). 2. ed., São Paulo:
pela PNAS. Entretanto, esses conceitos como Cortez, 2006. Política social, família e juventude.
demonstramos não apresentam a mesma dimen- Uma questão de direitos.
são ou amplitude como pensados na educação
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade.
como prática da liberdade.
São Paulo: Companhia das letras, 2000. 5ª ed.