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Ações socioeducativas: reflexões a partir de Freire

Social educational actions: reflections based on


Freire

Evangelina Sanches LIMA*


Cássia Maria CARLOTO**

Resumo: As ações socioeducativas têm sido proclamadas como uma das prin-
cipais ações da Política Nacional de Assistência Social para a concretização da
proteção social, em especial da proteção social básica. Por ações socioeducativas
compreende-se, neste texto, um conjunto de atividades: grupos socioeducativos,
campanhas socioeducativas, grupos de convivência familiar, grupos de desenvol-
vimento familiar. A ênfase é para que essas ações fundamentem-se em uma visão
participativa e dialógica. Sob essa ótica, o conceito de ações socioeducativas apre-
senta uma associação à idéia de educação como prática da liberdade, de Paulo
Freire. Nesse sentido, a proposta deste trabalho é discutir esse conceito a partir da
obra de Freire e comentar a concepção de ação socioeducativa que tem norteado
algumas práticas profissionais, tendo por base pesquisa por nós realizada***
Palavras-chave: A pedagogia de Paulo Freire. Ações socioeducativas. Política de
assistência social.

Abstract: Social educational actions have been considered as some of the main
actions of the Social Assistance National Policy for the achievement of social pro-
tection, in particular basic social protection. In this article, the following set of acti-
vities are described as social educational actions: social educational groups, social
educational campaigns, family relationship groups, and family development groups.
It is emphasized that these actions should be based on a dialogical participative
view. From this perspective, the concept of social educational actions refers to
education as the practice of freedom as proposed by Paulo Freire. Thus, this article
aims to discuss the concept from Paulo Freire’s perspective, and analyze the social
educational action conception that has orientated some professional practices. The
discussion presented in the article is based on research.
Key words: Paulo Freire’s pedagogy. Social educational actions. Social assistance
policy.

Recebido em :10/12/2008. Aceito em: 10/04/2009.

* Docente da Universidade Filadélfia de Londrina. Mestre em Serviço Social.


** Docente da Universidade Estadual de Londrina. Doutora em Serviço Social.
*** Pesquisa realizada no município de Londrina-PR no ano de 2007 – Ações Socioeducativas na Política Nacional da Assistência Social:
uma análise sobre a concepção e a operacionalização no município de Londrina-PR. Os dados foram coletados a partir de entrevistas
com coordenadoras de grupos socioeducativos

Emancipação, Ponta Grossa, 9(1): 127-139, 2009. Disponível em <http://www.uepg.br/emancipacao>


Evangelina S. LIMA; Cássia M. CARLOTO

Embora as ações socioeducativas estejam mostrou os vários sentidos adquiridos por essa
bastante difundidas no âmbito das políticas so- palavra nos diferentes contextos no qual é uti-
ciais como uma ferramenta de promoção da in- lizada e a diversidade de ações desenvolvidas
clusão social e possuam, ano âmbito da política em associação a esse termo.
de assistência social, uma descrição metodológi-
Dessa forma também, nossa análise sobre
ca sistematizada em documento do Ministério do
o termo socioeducativo parte dessa premissa,
Desenvolvimento Social, não se verifica clareza
de que o mesmo muda de significado conforme
de concepção teórica. Por ações socioeducativas
o contexto no qual está inserido, pois é neste
são descritos um conjunto de atividades: grupos
em que se encontra seu sentido potencial ou
socioeducativos, campanhas socioeducativas,
subjacente.
grupos de convivência familiar, grupos de desen-
volvimento familiar, e grupos de desenvolvimen- Importante lembrar que Freire nunca uti-
to local das comunidades cada um enfatizando lizou nenhum desses termos (socioeducativo,
uma atividade. O desenvolvimento de um ou de sem hífen ou sócio-educativo, com hífen), mas
outro se fará conforme a vulnerabilidade das fa- sim ação cultural, que supõe atuação dos sujei-
mílias ou necessidades locais. A ênfase é para tos trocando cultura, entendida por ele como tudo
que estas ações fundamentem-se em uma visão que o homem construiu em sua relação com a
participativa e dialógica natureza.
Sob essa ótica, de fundamentar-se na vi- Freire reconheceu a influência das assis-
são dialógica, o conceito de ações socioeduca- tentes sociais em sua formação inicial. Ele co-
tivas apresenta uma associação à idéia de edu- menta que houve dois pólos de influência muito
cação como prática da liberdade de Paulo Freire. grande em sua formação. Sobre isso acrescen-
No entanto, foi possível constatar que apesar da ta:
influência do Serviço Social na construção teó- De um lado assistentes sociais, a Escola de
rica dos primeiros anos da obra de Freire e da Serviço Social de Pernambuco, assistentes
influência deste no pensamento do Serviço So- sociais, todas católicas, e Anita Paes Barre-
cial, há na prática contemporânea pouca relação to, que em não sendo assistente social era,
com a direção e operacionalização das ações. porém, primeiro, do mesmo time dessas as-
Ressaltamos que a analogia ao pensamento de sistentes sociais que eu vou citar e, segun-
Freire se deu não pelo termo socioeducativo, do era professora fundadora dessa escola.
pois o autor não utilizou esse termo, mas em ra- É interessante recordar como mulheres de
zão da metodologia sugerida pelos documentos minha geração, algumas mais velhas, outras
um pouco mais jovens, três, quatro, cinco,
norteadores da Política Nacional de Assistência
me marcaram fundamentalmente - Anita
Social. Paes Barreto, Lourdes de Moraes, Dolores
A partir dessas considerações iniciaremos Coelho e Hebe Gonçalves.... Por isso mes-
nossas reflexões contextualizando o termo socio- mo é que essa escola que me influenciou me
educativo a partir da obra de Paulo Freire. chama para ela e eu fui professor da Escola
de Serviço Social. Entro em contato com as
assistentes sociais logo depois do meu in-
gresso no SESI, cerca de três meses depois,
O debate a partir da obra de Paulo Freire e elas começam imediatamente a me mar-
car. Me lembro da ênfase que davam ao ser-
De um ponto de vista semântico, sabemos viço social de grupo, ao serviço social de or-
que as palavras têm um sentido de base e um ganização da comunidade, se bem que não
sentido contextual. É o contexto em que se en- desprezassem o trabalho com os indivíduos.
Mas nestes casos o que elas buscavam era
contra a palavra que delimita um de seus senti-
capacitar as meninas, as jovens que estuda-
dos potenciais ou virtuais. vam, na compreensão do indivíduo para que
Freire se apoiou nessa premissa para dis- depois confrontando os grupos e as comuni-
cutir em seu livro “Extensão ou Comunicação?”, dades tivessem a possibilidade de individuar
o sentido da palavra extensão, texto em que os grupos e as comunidades”. “[...] gente que
era progressista, gente comprometida [...]”.

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O outro pólo foi exatamente a minha práti- O educador é o que sabe; o que pensa; o que
ca no SESI, pelo contato com os trabalhadores, diz a palavra; o que disciplina; o que opta e
com grupos de trabalhadores no que então cha- prescreve sua opção; o que escolhe o con-
mávamos Núcleos de Serviço Social. Comecei teúdo programático; o que identifica a auto-
ridade do saber com sua autoridade funcio-
a trabalhar como assistente de Divisão de Edu-
nal; enfim, o sujeito do processo, enquanto
cação e Cultura, logo depois fui para a direção os educandos, meros objetos”. Infelizmente,
dessa divisão e comecei a desenvolver um traba- esse saber deixa de ser de “experiência fei-
lho muito associado com as assistentes sociais. ta” para ser de “experiência narrada ou trans-
Aí continuei a minha ligação com essas amigas mitida”. Nesta visão distorcida de educação,
maiores do Serviço Social e também com as não há criatividade, não há transformação,
jovens que elas formavam e que iam trabalhar não há saber. Acrescenta também, que “só
no SESI e que me ajudavam a compreender os existe saber na invenção, na re-invenção, na
problemas das escolas dos garotos. (BEISEGEL, busca inquieta, impaciente, permanente, que
1982 p.35) os homens fazem no mundo, com o mundo e
com os outros. (FREIRE, 2005a p.68-69).
Destacamos que Freire desenvolveu sua
concepção educativa numa perspectiva crítica, Em contraposição a essa forma de edu-
questionadora das relações de dominação e cação ele propõe a educação (ou ação cultural)
essa concepção encerra também uma concep- problematizadora, libertária, que tem como pres-
ção de práxis. supostos a humanização de ambos, educador
Educação é assim descrita: “como situa- e educando, o pensar autêntico, e, não, educa-
ção gnosiológica em que o objeto cognoscível, ção como doação, como entrega do saber. Isso
em lugar de ser o término do ato cognoscente prevê o companheirismo de ambos, educador e
de um sujeito, é o mediatizador de sujeitos cog- educando. Isto implica num que fazer, conceito
noscentes” (FREIRE, 2005a p.78). Essa forma que representa a união entre teoria e a prática,
de ver a educação coloca educador e educando reflexão e ação.
no mesmo nível de igualdade, isto é, ambos na Sobre o efeito de cada uma dessas edu-
condição de sujeitos, superando a posição tradi- cações sobre os homens Freire diz: “a primeira
cional por ele nomeada de bancária, em que há assistencializa; a segunda, criticiza. Assisten-
a atuação do educador, sujeito, sobre um obje- cializa através da ação de ocultar certas razões
to, o educando. Do ponto de vista de Freire, na que explicam como estão sendo os/as homens/
educação bancária há uma ação educativa, dis- mulheres1 no mundo, mistificando a realidade”.
sertativa, narrativa. Coloca ainda, que na forma Apresentando somente alguns aspectos dessa
“bancária” da educação, o “saber” é visto como realidade. A educação problematizadora des-
uma doação dos que se julgam sábios, conhe- mistifica. Propõe um re-fazer o mundo, ou seja,
cedores, aos que julgam nada saber. Há o que ver sob vários ângulos as razões de como estão
ele chama de alienação da ignorância, segundo
a qual esta se encontra sempre no outro.
Uma observação necessária a ser feita é 1
Uma observação a ser feita é quanto à palavra “homem”. Ao
em relação ao conceito de educação bancária. longo desse trabalho, muitas vezes o termo será utilizado nas
citações no sentido genérico, com o significado de “homem/mu-
Contrário ao que muito foi divulgada, a palavra lher”, pois algumas das citações aqui apresentadas são de obras
“bancária” não está relacionada a banco de es- nas quais o autor ainda entendia, erroneamente segundo ele
cola, mas sim ao sistema bancário, onde saques próprio, que ao se utilizar, genericamente, do masculino, estaria
incorporado o gênero feminino. Essa solicitação é feita por ele em
e depósitos são feitos. Sacar a ignorância e de- Pedagogia da Esperança. Assim expõe: “[...] ao ler as primeiras
positar conhecimento. críticas que me chegavam ainda me disse ou me repeti o en-
sinado na minha meninice: “Ora, quando falo homem, a mulher
Em decorrência desse entendimento de necessariamente está incluída”. Em certo momento de minhas
educação bancária, ele apresenta a postura do tentativas, puramente ideológicas, de justificar a mim mesmo, a
linguagem machista que usava, percebi a mentira ou a ocultação
educador nesse modelo de educação e como da verdade que havia na afirmação: “Quando falo homem, a mu-
deve ser a postura deste na educação proble- lher está incluída”. E por que os homens não se sentem incluídos
quando dizemos: “As mulheres estão decididas a mudar o mun-
matizadora. do”?”. (PE, p.67)

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sendo no mundo. (2005a, p.83). como um ser a – histórico/a, abstrato/a, com ca-
racterísticas inatas, há uma dicotomia entre ho-
Para o autor, o assistencialismo é uma
mem/mulher-mundo. Como se o fato de nascer
forma de ação que rouba ao homem condições
com características humanas já o/a torne um ser
à consecução de uma das necessidades funda-
humano. Por entender a consciência como algo
mentais de sua alma – a responsabilidade. No
dentro da/o mulher/homem que se manifestará
assistencialismo não há decisão. Só há gestos
independentemente das suas relações é que não
que revelam passividade e domesticação.
distinguem entre presentificação à consciência
Em seu livro Pedagogia do Oprimido ex- de entrada na consciência. Na presentificação
plica como a forma problematizadora de educa- os objetos se tornam presentes a mim, tomo
ção liberta. consciência deles e não estão dentro de mim.
O educador problematizador re-faz, constan-
(2005a, P.72)
temente, seu ato cognoscente, na cognosci- Já a visão de homem/mulher da educação
vidade dos educandos. Estes, em lugar de libertadora parte do princípio que ontologicamen-
serem recipientes dóceis de depósitos, são te todo ser humano é inacabado, não existindo
agora investigadores críticos, em diálogo
dessa forma alguém plenamente educado, pron-
com o educador, investigador crítico tam-
to, terminado, capaz de atuar, sobre os outros; há
bém” (gn). “Na medida em que o educador
apresenta aos educandos, como objeto de apenas seres em diferentes fases de maturação,
sua “ad-miração”, o conteúdo, qualquer que precisando sempre aprender mais, buscando ser
ele seja, do estudo a ser feito, “re-ad-mira” a mais. Porque uma vez que refletem juntos sobre
“ad-miração” que antes fez, na “ad-miração” si e sobre o mundo vão dirigindo sua mirada a
que fazem os educandos”. “[...] o papel do percebidos que não percebiam antes, levando
educador problematizador é proporcionar, ambos, educador e educando, a outra visão de
com os educandos, as condições em que se mundo. Isto se dá na ação, reflexão e de modo
dê a superação do conhecimento no nível da contínuo, pois dialético. Como é possível inferir,
doxa pelo verdadeiro conhecimento, o que
Freire coloca a solução, a resposta aos proble-
se dá no nível do logos. (2005a, p.80)
mas como algo aberto, isto é, que deve ser pro-
curada pelos educadores e educandos refletindo
Vimos acima que Freire, não nega o co- em conjunto, buscando a síntese de seus pen-
nhecimento do nível da doxa (conhecimento in- sares para também agirem em conjunto.
gênuo ou do sendo comum), mas afirma que para
superá-lo é necessário partir desse para chegar, Com relação ao conceito de cultura, ele a
através do nível do logos (razão) ao saber ver- apresenta com um sentido muito diferente e mais
dadeiro que se dá na práxis. Por sua própria ca- rico do que compreendida no uso ordinário.
racterística ontológica os homens são seres do A cultura – por oposição à natureza, que não
que fazer exatamente porque seu fazer é ação é criação do homem – é a contribuição que
e reflexão, é teoria e prática, é práxis, por isso o homem faz ao dado, à natureza. Desse
mesmo diferente dos animais que são puro fa- modo, cultura é todo o resultado da ativida-
zer. Os animais não trabalham, vivem dos seus de humana, do esforço criador e recriador do
suportes biológicos particulares herdados aos homem, de seu trabalho por transformar e
quais não transcendem. Os animais não “ad- estabelecer relações de diálogo com outros
miram” o mundo, imergem nele. Os homens/ homens. [...] A cultura é também aquisição
mulheres “emergem” dele porque ao objetivá-lo sistemática da experiência humana, mas
aquisição crítica e criadora, e não uma jus-
podem conhecê-lo e transformar o mundo com
taposição de informações armazenadas na
seu trabalho. (2005a, p.141-142) inteligência ou na memória. (2001, p.38)
Como se pode verificar, a concepção de
educação proposta por Freire implica numa vi- Neste sentido é lícito dizer que todo/a ho-
são de homem/mulher e de cultura diferente da mem/mulher fazem história, pois a história repre-
concepção de homem/mulher e cultura da educa- senta a mobilidade, o movimento, a capacidade
ção bancária. Nesta, o/a homem/mulher é visto/a de se envolver e se fazer enquanto ser ético e

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político. Freire diz: “a História é tempo de pos- petua as estruturas sociais.


sibilidades e não de determinismo, que o futu-
Em relação à visão simplista sobre o pro-
ro, permita-se-me reiterar, é problemático e não
cesso de conscientização, assim ele justifica: “o
inexorável, isso significa reconhecer que somos
meu equívoco consistiu em não ter tomado estes
seres condicionados, mas não determinados”.
pólos – conhecimento da realidade e transfor-
(2005b, p.19)
mação da realidade – em sua dialeticidade. Era
como se desvelar a realidade já significasse a
sua transformação”. (1981, p.145)
A relação entre educação e conscientização Posteriormente, a partir da Pedagogia do
Oprimido e Ação Cultural para a Liberdade é
Cabe agora comentar sobre a relação en-
que passa a compreender que não é suficiente
tre educação e conscientização ou consciência-
desvelar a realidade para que haja conscientiza-
ação como pensada por Freire.
ção ou consciência crítica, mas que é necessá-
A essa forma de educação, isto é, de seres rio transformar essa realidade pela ação prática
atuantes em situação de conhecimento é que sobre ela.
Freire chamou, num primeiro momento, de cons-
Esse processo exige criticização, ou seja,
cientização e que mais tarde passou a nomear
ação e reflexão, profundidade na análise dos pro-
de consciência-ação e por último de curiosidade
blemas. Nas palavras de Freire: “a consciência
epistemológica. Para ele, conhecer é aplicar a
crítica é a representação das coisas e dos fatos
consciência, é entrar em relação com o mundo,
como se dão na existência empírica. Nas suas
é necessário ter curiosidade. Dessa maneira a
correlações causais e circunstanciais”. (2007,
conscientização não pode existir fora da “prá-
p.113). Por essa razão a consciência crítica face
xis”, pois “práxis humana é a unidade indisso-
ao novo, não repele o velho por ser velho, nem
lúvel entre a ação e reflexão sobre o mundo”.
aceita o novo por ser novo, mas os aceita na
(2001, p.26)
medida em que são válidos”.
Entretanto, no primeiro momento de sua
Essa inserção crítica, como assim ele atri-
obra Freire acreditava que a conscientização ou
buiu a essa ação, se dá quando da tomada de
a consciência crítica se daria apenas em desve-
consciência pelo indivíduo oprimido de sua rea-
lar a realidade. Uma vez desvelada a situação
lidade e da tomada de consciência da existência
social opressiva, poderiam os educandos estabe-
da relação opressor-oprimido, de seus mecanis-
lecer as relações entre a opressão e a estrutura
mos e efeitos. Por isto explica:
de poder, e, que isto poderia trazer implicações
políticas, ou seja, levar os sujeitos a repensar Inserção crítica e ação já são a mesma coi-
o que fazer e como fazer e assim buscar uma sa. Por isto também é que o mero reconheci-
nova organização nas relações sociais. Quanto mento de uma realidade que não leve a esta
ao papel do educador esse seria estritamente inserção crítica (ação já) não conduz a ne-
pedagógico, isto é, ajudar na percepção crítica nhuma transformação da realidade objetiva,
precisamente porque não é reconhecimento
da realidade, mas não lhe cabia modificar as es-
verdadeiro”. (2005a p.42).
truturas sociais diretamente.
Com o aprofundamento da sua visão so- Porém, para que essa consciência crítica
bre a relação entre educação e política e, prin- e/ou inserção crítica possa acontecer é neces-
cipalmente, quanto à impossibilidade dessa sário que os sujeitos acreditem no inédito viável,
neutralidade acrescenta: “A educação é práxis que tenham esperança. Freire explica isso em
social, isto é, modificação do modo de perceber Pedagogia da Esperança,
a realidade e também ação sobre as estruturas
sociais. É nesse sentido que é política”. (Frei- Fazendo-se e refazendo-se no processo de
fazer a história, como sujeitos e objetos, mu-
re apud Januzzi, 1987, p.31). E é por isso que
lheres e homens, virando seres da inserção
acrescenta que mesmo a educação que se diz
no mundo e não da pura adaptação ao mun-
neutra é política, pois na sua “neutralidade” per- do, terminaram por ter no sonho também

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um motor da história. Não há mudança sem na projeto. É atuando que posso transformar
sonho como não há sonho sem esperança. meu anteprojeto em projeto. (2001, p.27)
(2006, p.91).
Outros conceitos relevantes na obra de
No mesmo livro acima citado ele diz que se Freire são os conceitos de autonomia e cida-
o contexto de origem dos sujeitos faz com que dania, conceitos estes também presentes na
eles tragam em seu corpo inteiro uma espécie proposta para o desenvolvimento das ações
de cansaço, que ele chamou de “cansaço exis- socioeducativas.
tencial”; um cansaço que não é só físico, mas
Por autonomia Freire compreende o pro-
espiritual, que deixa as pessoas por ele domina-
cesso gradativo de amadurecimento que ocorre
das vazias de ânimo, de esperança e tomadas,
durante toda a vida, propiciando ao indivíduo a
sobretudo, do medo da aventura e do risco, não
capacidade de decidir e, ao mesmo tempo, de
há possibilidade de mudança, de movimento, de
arcar com as conseqüências dessa decisão, as-
mudar a história. A esse cansaço paralisante ele
sumindo, portanto, responsabilidades. Nas pala-
chamou de “anestesia histórica”. (2006, p.124).
vras do autor a autonomia, deve ser entendida
Uma vez que essa anestesia histórica se enquanto amadurecimento do ser para si, é pro-
instale acaba a possibilidade de transposição cesso, é vir a ser. Não ocorre em data marcada. É
da situação-limite, seja ela qual for, e de atingir neste sentido que uma pedagogia da autonomia
o inédito-viável ou a crença no sonho possível, tem de estar centrada em experiências estimu-
na utopia. Observe como Freire explica: “nas ladoras da decisão e da responsabilidade, vale
situações-limites, mais além das quais se acha dizer, em experiências respeitosas da liberdade.
o inédito viável às vezes perceptível, às vezes (2005b, p.121)
não, se encontram razões de ser para ambas as
Em relação a cidadania, termo citado e
posições: a esperança e a desesperança” (2000,
usado à exaustão nos planejamentos pedagó-
p.138), ou como nas palavras de Amartya Sen
gicos contemporâneos e de uso freqüente na
(2000) que a pobreza e o nível de vulnerabilida-
PNAS/SUAS, Freire afirma que conceito vem
de e exclusão tenha chegado a um nível de pri-
casado com a concepção de participação, de
vação de capacidades que impossibilite o agir.
ingerência nos destinos históricos e sociais do
Uma das razões para esse “cansaço exis- contexto onde se está.
tencial” é a insegurança vital acumulada em anos
Para atingir esses objetivos, a expressão
de sucessivos fracassos. Ou, conforme Amartya
e vivência da autonomia e cidadania dos sujei-
Sen, a pobreza ou o nível de vulnerabilidade e
tos históricos, sua metodologia está centrada no
exclusão chegou a um nível de privação de ca-
diálogo, esse compreendido como uma relação
pacidades que impossibilita o agir.
de comunicação entre dois seres em construção;
É importante que se esclareça o que é o um diálogo que não se dá de A para B ou ainda
sonho utópico ou a utopia para Freire. de A sobre B, mas um diálogo que se dá entre
A com B sempre mediatizados pelo mundo, no
Para mim o utópico não é o irrealizável; a
utopia não é o idealismo, é a dialetização qual um não é sem o outro. Uma vez que nin-
dos atos de denunciar e anunciar, o ato de guém nasce homem/mulher, torna-se homem/
denunciar a estrutura desumanizante e de mulher, o ser humano é sempre um devir, um
anunciar a estrutura humanizante. Por esta vir- a – ser. Assim, o diálogo “é uma exigência
razão a utopia é também um compromisso existencial”, [...] é o encontro onde se solidarizam
histórico”. “[...] A utopia exige o conhecimen- o refletir e o agir de seus sujeitos, endereçados
to crítico. É um ato de conhecimento. Eu não ao mundo a ser transformado e humanizado ”.
posso denunciar a estrutura desumanizante ( 2005a, p. 90)
se não conheço, mas entre o momento do
anúncio e a realização do mesmo existe algo Quanto ao pensar verdadeiro e crítico afir-
que deve ser destacado: é que o anúncio ma que, este é um pensar que percebe a reali-
não é o anúncio de um anteprojeto, porque é dade como processo, que a capta em constante
na práxis histórica que o anteprojeto se tor- devenir e não como algo estático.

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A ação dialógica Oprimido são todos os/as cidadãos/ãs que não


têm a consciência de suas possibilidades de
Freire, mesmo humanista, chama a aten- transformação da realidade. Vivem imersos na
ção para um dos equívocos comuns de uma engrenagem da estrutura dominante. Diz-se tam-
compreensão ingênua do humanismo e que tem bém que são aqueles indivíduos que hospedam
influenciado muitos profissionais levando-os a o opressor dentro de si, ou seja, identificam-se
erros graves no trabalho com as comunidades. com os valores do opressor, de tal forma que não
Na ânsia de corporificar um modelo ideal de se percebem como oprimidos.
“bom homem”, se esquece da situação concreta,
Não há dúvida que a pobreza, a miséria, o
existencial, presente dos homens mesmos. Isso
analfabetismo, as relações de gênero, a idade, a
levou muitos projetos falharem porque os seus
deficiência podem tornar os indivíduos mais vul-
realizadores partiram de uma visão pessoal da
neráveis e, portanto, mais propensos à opressão,
realidade. Esqueceram que seu objetivo funda-
mas todo trabalhador/a, independente de sua es-
mental é problematizar a situação existencial da-
colaridade, condição econômica que não tenha
quele momento histórico e problematizar, porém,
consciência da sua capacidade de transformação
não é sloganizar, é exercer uma análise crítica
da realidade é, por isso mesmo, considerado um
sobre o problema. (2005a, p.193)
oprimido. Pode até ser que esses/as cidadãos/
Assim, a metodologia desenvolvida por ele, ãs tenham certo conhecimento de sua condição,
para as situações de educação como prática da mas se nada fazem para mudança dessa estru-
liberdade afirma que o diálogo começa na busca tura desumanizante, são oprimidos.
do conteúdo programático. Nesse momento de
Se na ação dialógica a primeira caracte-
buscar o que se vai trabalhar é que se inaugu-
rística é a co-laboração, o seu contrário na ação
ra o diálogo do educador da educação que se
antidialógica é a conquista. Co-laborar, significa
propõe transformadora. É o momento que Freire
a impossibilidade da não existência de diálogo.
nomeia de investigação do universo temático ou
E diálogo é sempre comunicação entre seres,
o conjunto de seus temas geradores. Sem essa
diálogo não se impõe, não se maneja, não se
ação inicial, os conteúdos não serão horizontal-
domestica, não se sloganiza. Essa comunica-
mente construídos. Não serão, esses conteúdos
ção não deve acontecer para conquistar, pois
ou elementos, a devolução sistematizada daquilo
isso implica em conseguir a adesão para liber-
que lhes foi entregue de maneira desorganiza-
tação. O autor diz: “a adesão conquistada, não é
da. Pois relata que “o diálogo com as massas
adesão, porque é aderência do conquistado ao
populares é uma exigência radical de toda revo-
conquistador através da prescrição das opções
lução autêntica”. Acrescenta que: “o humanista
deste àquele”. (2005a, p.145)
científico revolucionário não pode, em nome da
revolução, ter nos oprimidos objetos passivos O problema central percebido pelo autor é
de sua análise, da qual decorram prescrições que como em qualquer outra categoria da ação
que eles devam seguir”. (2005a, p.152). A práxis dialógica nenhuma delas se dá fora da práxis.
revolucionária requer um agir em equipe, carac- A práxis deve ser compreendida como aquele
terizada por um processo de busca contínuo da domínio da vida ativa onde o instrumento usado
transformação. pelo homem e pela mulher é o discurso, a sua
própria palavra. Também deve ser entendida
Temos até agora falado sobre o oprimido -
como o âmbito da vida política, no qual se dis-
termo hoje pouco utilizado e que tem sido subs-
cutem os interesses, as paixões, as questões
tituído pelos termos excluído/a ou indivíduo em
muito concretas que se referem ao convívio har-
situação de vulnerabilidade social -, sem explicá-
monioso entre cidadadãos/ãs. Para o opressor
lo até o momento.
é mais fácil a práxis opressora, o que já não é
Embora os termos excluídos ou indivíduos fácil para a o oprimido, uma vez que esse não
em situação de vulnerabilidade social pareçam conta com o poder.
apresentar certa relação com o conceito de opri-
Quanto a isso revela:
mido de Freire, este é muito mais abrangente.

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A primeira se organiza a si mesma livremen- Na ‘organização’ que resulta do ato manipu-


te e, mesmo quando tenha as suas divisões lador, as massas populares, meros objetos
acidentais e momentâneas, se unifica ra- dirigidos, se acomodam às finalidades dos
pidamente em face de qualquer ameaça a manipuladores enquanto na organização
seus interesses fundamentais. A segunda, verdadeira, em que os indivíduos são su-
que não existe sem as massas populares, jeitos do ato de organizar-se, as finalidades
na medida em que é contradição antagôni- não são impostas por uma elite. No primei-
ca da primeira, tem, nesta mesma condição, ro caso, a “organização” é meio de massi-
o primeiro óbice à sua organização. (2005a, ficação; no segundo, de libertação. (2005a,
p.199). p.168)

Para exemplificar essa capacidade de uni- A organização autentica, portanto, é a


ficação da classe opressora frente a possíveis que surge a partir da classe oprimida, de movi-
ameaças, ela conta com os métodos repressivos mentos sociais. Para Freire, qualquer outro tipo
da burocratização estatal sempre à sua disposi- de organização é inautêntica. Por partir dessa
ção, até as formas de ação cultural por meio das premissa é que temos nos questionado sobre a
quais manejam as massas populares, dando- possibilidade da ação organizadora da PNAS das
lhes a impressão de que as ajudam. comunidades vulneráveis. Será possível essa
organização autêntica, de libertação?
Assim ele apresenta:
Para finalizar este tópico trazemos a res-
Uma das características destas formas de
posta apresentada por Freire em seu livro Peda-
ação, quase nunca percebidas por profis-
sionais sérios, mas ingênuos, que se dei- gogia da Esperança, às críticas feitas, segundo
xam envolver, é a ênfase da visão localista ele, “por quem se diziam marxistas” dirigidas à
dos problemas e não na visão deles como sua obra na década de 1970. Críticas essas fei-
uma dimensão de uma totalidade. Quanto tas em especial ao seu livro “Pedagogia do Opri-
mais se pulverize a totalidade de uma área mido” e ao seu livro “Educação como prática da
em “comunidades locais”, nos trabalhos de liberdade”. As críticas referiam-se a que ele não
“desenvolvimento de comunidade”, sem que fazia referência às classes sociais, e, sobretu-
estas comunidades sejam estudadas como do que a luta de classes é o motor da história.
totalidades em si, que são parcialidades de A estranheza desses críticos era a utilização do
outra totalidade (área, região etc.) que, por
conceito ‘vago’ de oprimido ao invés de classes
sua vez, é parcialidade de uma totalidade
maior (o país, como parcialidade de totali- sociais, principalmente com a afirmação que
dade continental), tanto mais se intensifica Freire fazia de que o oprimido libertando-se li-
a alienação. E, quanto mais alienados, mais berta o opressor.
fácil dividi-los e mantê-los divididos. (2005a, Além disso, seus críticos se incomodavam
p.165)
com o tratamento que dava ao indivíduo sem
aceitar reduzi-lo a puro reflexo das estruturas só-
Como dito acima, se essas características cio-econômicas; o tratamento que dava à cons-
se dão na práxis e estão interligadas, assim tam- ciência, à importância da subjetividade; o papel
bém acontece com outra característica da ação da conscientização. Por fim, a última crítica dizia
dialógica a organização que apresenta como seu respeito a sua asserção de que “a aderência à
contrário na ação antidialógica a manipulação. que se encontravam as grandes massas campo-
Quanto à manipulação ele fala que esta é nesas da América Latina exigia que a consciência
sempre uma necessidade imperiosa dos opres- de classe oprimida passasse, senão antes, pelo
sores. Essa manipulação aparece na formação menos concomitantemente pela consciência de
inautêntica, em uma “organização duvidosa” da homem oprimido”. (2006, p.90).
massa oprimida com o intuito de evitar a verda- Com relação à crítica sobre a luta de clas-
deira organização. ses afirma:
Em nota de rodapé Freire acrescenta:
Falei ontem de classes sociais com a
mesma ‘independência e consciência do

134 Emancipação, Ponta Grossa, 9(1): 127-139, 2009. Disponível em <http://www.uepg.br/emancipacao>


Ações socioeducativas: reflexões a partir de Freire

acerto com que delas falo hoje. É pos- ações socioeducativas ainda estão pautadas na
sível, porém, que muitas ou muitos dos transmissão de informações e orientações sem
que me cobravam nos anos 1970 a ex- a participação da população atendida na defi-
plicitação constante do conceito, me co- nição, na escolha do conteúdo programático. É
brem hoje o contrário: que retire as duas sobre esse ponto que faremos algumas consi-
dezenas de vezes em que o empreguei, derações a seguir.
porque ‘já não há classes sociais, cujos
conflitos com elas sumiram também’”.
“(...) Nunca entendi que as classes so-
As ações socioeducativas
ciais, a luta entre elas, pudessem expli-
car tudo (...) daí que jamais tenha dito A análise dos dados a partir da pesquisa,
que a luta de classes, no mundo moder- apresenta como núcleos centrais da ação socio-
no, era ou é o motor da história. Mas por educativa realizada nos grupos, a informação
outro lado, hoje ainda (1992, gn) e pos- e a orientação. A essas informações e orienta-
sivelmente por muito tempo não é pos- ções são atribuídos diversos sentidos: sentido
sível entender a história sem as classes de fortalecimento da família, do indivíduo, da
sociais, sem seus interesses em choque. comunidade, para a promoção da socialização,
A luta de classes não é o motor da histó- cidadania e autonomia.
ria, mas certamente é um deles. (2006,
p. 91). O que se verifica em relação às ações in-
formativas é a ênfase no desenvolvimento das
Eis aí então uma das razões pelas quais habilidades psicológicas individuais (auto-estima,
Freire não é considerado por seus críticos e por busca de uma identidade transformada) e na ela-
ele mesmo, um marxista. boração de referências para avaliar seu processo
de transformação familiar e social.
Reitera seu conceito de oprimido que de
acordo com ele já estava clara em seu livro Peda- Há, por parte das entrevistadas, a compre-
gogia do Oprimido. Com relação à assunção de ensão de que à medida que os sujeitos ao par-
que o oprimido libertando-se liberta o opressor, ticiparem de pequenos grupos com demandas
as críticas recebidas pelo autor ao reconheci- coletivas percebam que muitos dos seus proble-
mento que dava à subjetividade no processo de mas individuais são similares ao dos outros par-
transformação da realidade ou às relações entre ticipantes, e, não incompetência pessoal, assim
subjetividade e objetividade ou à consciência e terão maior compreensão de si. Isto promoveria
mundo como não dicotômicas, ele argumenta mudanças no nível micro, tais como maior liber-
que a visão dialética indica a necessidade de re- dade, sentido de competência pessoal e reavalia-
cusar a compreensão da consciência como puro ção dos problemas vivenciados cotidianamente.
reflexo da objetividade material como tampouco Essas mudanças no plano micro (individual, fa-
conferir à consciência um poder determinante miliar) gradativamente promoveriam uma trans-
sobre a realidade concreta. formação no plano macro, como a inserção no
mercado de trabalho, uma agenda política mais
Para se chegar a esse nível de diálogo, ampla, a participação na comunidade, geralmen-
de pensar crítico, esperançoso, é necessário te nas associações de bairro, da escola, que le-
que desde a escolha do conteúdo programático varia a uma cidadania transformada.
exista a participação do educando - educador,
que o conteúdo programático não seja: [...] “uma Essa é uma visão centrada no indivíduo. As
doação ou imposição – um conjunto de informes mudanças assim entendidas trazem uma idéia
a ser depositado nos educandos -, mas a devo- de que as transformações ocorrem a partir do
lução organizada, sistematizada e acrescentada indivíduo, de dentro para fora, apenas ao tomar
ao povo daqueles elementos que este lhe entre- conhecimento delas.
gou de forma desestruturada”. (2005a, p.97). Embora não haja essa percepção e inten-
Como verificamos em nossa pesquisa as ção por parte das entrevistas corre-se o risco

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Evangelina S. LIMA; Cássia M. CARLOTO

de ver a população atendida como totalmente uma ação que proporcione um crescimento
alienada, e isso já evidenciaria a inexistência de da pessoa, do público que a gente vai traba-
diálogo, troca de saber e sim doação de conte- lhar. Se a gente pretende que esse público,
údos. que esse sujeito, que ele seja ator, protago-
nista de mudança, então ele precisa ter uma
A questão da emancipação também é pre- ação educativa né”. “(...) Se é para alguém
sente. O que é emancipar? Como emancipa-los? crescer, se é para alguém ser participativo,
Orientação e informação não podem, por si só exercer a cidadania, tem de passar pela edu-
emancipar um indivíduo. cação; e a ação socioeducativa ela faz parte
desse processo no meu entendimento.(fala
Emancipar nesse contexto é fazer com que de uma AS entrevistada?)
os indivíduos adquiram o direito de administrar
seus próprios bens e receber seus rendimentos. Se pensarmos educação como definida na
Isto só é possível se paralelamente a essa ação teoria da ação cultural “como situação gnosioló-
aconteça uma parceria efetiva com a inclusão gica em que o objeto cognoscível, em lugar de
produtiva. Sabe-se que essa é uma proposta da ser o término do ato cognoscente de um sujei-
política nacional de assistência, a capacitação to, é o mediatizador de sujeitos cognoscentes”,
e promoção da inserção produtiva ou geração podemos afirmar que o ato não termina ali na
de renda, no entanto, essa capacitação quando descoberta da necessidade, ele tem início entre
acontece não tem produzido inserção efetiva. os sujeitos conhecedores. Ninguém desvela o
Pois além da dificuldade de acesso aos grupos mundo ao outro e, ainda quando um sujeito ini-
de inclusão produtiva, pela dificuldade de aces- cia o esforço de desvelamento aos outros, “(...)
so ao local de realização, falta às mulheres, em é preciso que estes se tornem sujeitos do ato de
sua grande maioria, condições para se afastar desvelar”. (FREIRE, 2005a, p.194).
da casa – não têm com quem deixar as crianças
ou idosos, falta dinheiro para o passe e, ainda Embora se cite o socioeducativo como uma
por essas ações estarem centradas em traba- ação educativa, não é explicitado de que maneira
lhos artesanais que podem até desenvolver ou isso deva ocorrer. Dá-se a entender que é atra-
potencializar uma habilidade, mas não dão con- vés das orientações fornecidas pelos técnicos
dições de inserção no mercado. Em muitos casos seja qual for, o/ assistente social, o/a psicólogo/a,
faltam a essas mulheres as condições mínimas os/as estagiárias. Essas orientações, informa-
para que possam desenvolver a atividade em ções darão aos sujeitos a visão de totalidade
sua moradia. dos fenômenos, seja na situação familiar, seja
na situação social, que promoverá a mudança.
Para elucidar a situação mostramos o ob- Essa vai do individual ao familiar.
servado num grupo.
Será que eles não sabem que essa con-
Uma das mulheres pede para trazer gente dição em que vivem não é de responsabilidade
para dar curso (bijuteria, chinelo). Souberam deles? Será que eles podem abrir mão da condi-
que em outro local isso está acontecendo. A ção de beneficiários? Sem saúde, sem escolari-
AS explica o que é o programa de geração
dade, sem trabalho, sem redes sociais de apoio,
de renda, inclusão produtiva. A participante
é possível essa transformação?
diz que a sogra dela fez o curso de borda-
do. Pena que é longe. É difícil ir a pé com Observa-se que o sentido dado para as
criança. O local desse curso é bem longe da ações socioeducativas é de educação para o
região onde mora. A pé daria 1h30 e com coletivo, pois sem a soma de forças não é pos-
criança então? A AS diz que vai tentar agen- sível às famílias romperem com a situação de
dar o curso para o próximo mês.
exclusão em que se encontram.
Outro objetivo para realização de ação so- Mas ao mesmo tempo em que identificam
cioeducativa é a relacionada a educação, como a necessidade de uma ação mais ampla, se con-
na fala abaixo: tradizem quando dirigem as ações para o plano
individual e familiar.
(...) por ação socioeducativa eu entendo

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Ações socioeducativas: reflexões a partir de Freire

Assim, as concepções de ação socioedu- ciência, destacando o papel fundamental das


cativa apresentadas correspondem à justificati- famílias e da comunidade no processo de rea-
va apresentada no documento Proteção Básica bilitação e de inclusão social das pessoas com
do SUAS: orientações técnicas para os CRAS, deficiência.
(2006 p.41) para a oferta dos grupos socioedu-
Mesmo que apareça na fala das entrevis-
cativos.
tadas a questão da organização comunitária,
O grupo socioeducativo para as famílias é essa é sempre no sentido da comunidade buscar
um excelente espaço para trocas, para o soluções para os problemas que enfrentam ali
exercício da escuta e da fala, da elaboração naquele território e para que os indivíduos se re-
de dificuldades e de reconhecimento de po- conheçam como membros daquela comunidade.
tencialidades. Contribui para oferecer aos Em nenhum momento as técnicas expressaram
cidadãos/ãs a oportunidade de melhor viver uma organização para luta e transformação da
os seus direitos dentro de um contexto de
estrutura opressora. Inferimos que a ausência
proteção mútua desenvolvimento pessoal e
solidariedade. Neste sentido os núcleos so-
desse objetivo para as ações socioeducativas
cioeducativos introduzem elementos de dis- se dê por elas reconhecerem a impossibilida-
cussão, vivência e reflexão relacionados às de desse movimento surgir de dentro do poder
etapas dos ciclos de vida familiar. público.
Não que pensar em soluções para a co-
Chamamos a atenção para ser o grupo um munidade não seja relevante, mas uma proposta
espaço de escuta. O que significa escutar? So- que pretenda desenvolver seus educandos em
bre a importância do escutar Freire afirma: cidadãos/ãs de fato não pode prescindir da critici-
Escutar é obviamente algo que vai mais dade e de movimentos sociais organizados, nem
além da possibilidade auditiva de cada um. do protagonismo destes educandos no sentido
Escutar, no sentido aqui discutido, significa atribuído por Freire.
a disponibilidade permanente por parte do
O termo protagonismo da comunidade
sujeito que escuta para a abertura à fala do
é sempre presente nas falas e nos documen-
outro, ao gesto do outro, às diferenças do
outro. Isto não quer dizer, evidentemente, tos. Se protagonizar é possuir o papel principal,
que escutar exija de quem realmente escuta como se sabe, há o risco da responsabilização
sua redução ao outro que fala. Isto não seria das pessoas da comunidade local em cuidar ali
escuta, mas auto-anulação. A verdadeira es- dentro daqueles que não estão cumprindo as
cuta não diminui em mim, em nada, a capa- condicionalidades da saúde, da educação, de
cidade de exercer o direito de discordar, de boa convivência e de desenvolver o bairro, es-
me opor, de me posicionar. (2005b, p. 119). tes, geralmente, miseráveis e sem redes sociais
de apoio com qualidade. Mais uma vez é preci-
Do sentido atribuído ao ato de escutar uma so estar atento para não reforçar a gueticização
pergunta nos ocorreu. Essa escuta tem sido real- das minorias como fala Freire. O autor utiliza
mente uma escuta aberta à fala do outro? Como o termo para falar do cuidado que se deve ter
verificado a ênfase está na oferta de informação com recortes das minorias. Em especial utilizou
e na orientação sobre os direitos sociais e vivên- o conceito para falar dos movimentos étnicos,
cia e reflexão sobre as etapas do ciclo de vida. feministas, de raça etc., pois há o risco de se
Parece-nos então que essas ações estão perder a noção do todo.
reduzidas ao treinamento técnico de habilidades O autor descreve:
sociais e de competências para o exercício de
cuidadoras/es. O mesmo documento apontado a contradição principal” [é] encoberta e, em
seu lugar [aparecem] “aspectos principais”
acima informa alguns objetivos para as ações
da contradição principal como se fossem
nos grupos ou núcleos socioeducativos: de- esta”. “(...) uma percepção paroquial ou fo-
senvolver habilidades de cuidado, orientação e calista dos problemas e não uma visão da
acompanhamento das crianças; proteção aos totalidade. As chamadas minorias ainda não
seus membros idosos e da pessoa com defi- perceberam, de modo geral, [...], que a úni-

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Evangelina S. LIMA; Cássia M. CARLOTO

ca minoria real é a classe dominante. (2001, tempo pensam que deve ser mesclada, um pou-
285-286). co de cada uma, pois uma só não dará conta da
realidade. Assim, o referencial é vago, baseado
A educação para Freire, é práxis social, isto em técnicas de dinâmicas de grupos. Aparece
é, modificação do modo de perceber a realidade também a preocupação das técnicas de como
e também ação sobre as estruturas sociais. É abordar a teoria da ação cultural, como isso pode
nesse sentido que é política. Dessa forma com- se dar na prática? Libertar-se da opressão, o que
preendida uma ação educativa não pode ser isso significa realmente no concreto?
apenas informativa. Para que haja mudança é
As capacitações realizadas são baseadas
necessário diálogo entre as partes, é necessá-
mais no exemplo de outras operacionalizações
ria práxis.
do que propriamente um debate entre elas, equi-
As reflexões críticas apontadas também pe dirigente e equipe executora. Sem uma defi-
fazem parte do universo de preocupação das nição teórica consistente elas ficam totalmente
assistentes sociais entrevistadas. Alguns aspec- perdidas quanto aos limites de atuação do assis-
tos chamam a atenção, entre eles a queixa que tente social e do psicólogo. Isso tem levado-as
não há um norte teórico-metodológico claro. In- a se sentirem perdidas frente às situações que
dagam: qual e a nossa linha? ocorrem nos grupos, situações que emergem a
Mioto (2004, p.3) mostra a preocupação partir das dinâmicas ou de outras situações.
dos profissionais da área com relação à capa- A análise desenvolvida por Freire com rela-
citação profissional dos assistentes sociais no ção ao termo extensão, termo que adquiriu vários
aspecto teórico-metodológico e ético-político sentidos nos diferentes contextos no qual foi utili-
para dar conta da operacionalização dos seus zado, mostrou o paradoxo existente na proposta
serviços, em especial do apoio sociofamiliar de desenvolvimento das ações socioeducativas.
exigência da política nacional de assistência. A Esse paradoxo se apresenta com mais clareza
autora discorre sobre alguns aspectos que têm na proposição dos grupos socioeducativos. A
sido observados nas pesquisas sobre o tema. idéia central para o desenvolvimento desse tipo
De maneira geral há por parte dos/as profissio- de grupo é o da informação, orientação sobre
nais a ausência de: discriminação quanto à na- temas relacionados à política de assistência
tureza das ações direcionadas ao atendimento social, esses objetivando tornar essas famílias
das famílias, em muitos serviços; utilização de alcançáveis pelas demais políticas sociais para
categorias de análise sem o devido conheci- que possam cuidar de seus dependentes, em
mento ou discernimento quanto às matrizes especial as crianças e adolescentes, deficien-
teóricas às quais estão vinculadas; articulação tes e idosos.
explícita entre referências teóricas e ação pro-
Ainda que a metodologia sugerida paute-
fissional que aparece quando o assistente tem
se numa prática dialógica e utilize termos como:
uma formação específica na área da família, que
temas geradores e ação participativa da comu-
geralmente, se faz através de outras áreas, em
nidade, constatou-se, entretanto, que as ações
especial a psicologia, levando à psicologização
socioeducativas como são desenvolvidas , não
dos problemas sociais; e, por fim os processos
vão além da transmissão de informações e orien-
de intervenção com famílias que são pensados
tações e que os conceitos de emancipação, ci-
apenas no âmbito do atendimento direto. Este
dadania, autonomia possuem concepção bem
atendimento dirigido maciçamente às famílias,
diferente da proposta por Freire.
que por pobreza ou falimento nas suas funções,
são tidas incapazes ou patológicas. A concepção de ações socioeducativas
das entrevistadas não difere da concepção veri-
É oportuna a pergunta que algumas entre-
ficada nos documentos, ainda que haja por parte
vistadas fazem. Qual a nossa linha? Nós atua-
das mesmas uma visão crítica sobre esse traba-
mos no marxismo, educação libertária, sistêmi-
lho. Como demonstraram as falas das entrevis-
ca? Perguntam: vamos trabalhar duas, trabalhar
tadas há também por parte delas a consciência
marxista, sistêmica da psicologia? Ao mesmo
de um esvaziamento de significado e de sentido

138 Emancipação, Ponta Grossa, 9(1): 127-139, 2009. Disponível em <http://www.uepg.br/emancipacao>


Ações socioeducativas: reflexões a partir de Freire

dos conceitos de autonomia, cidadania, eman- Referências


cipação e empoderamento. Pois ainda que não
saibam em qual referencial teórico respaldam BEISIEGEL, Celso de Rui. Política e educação po-
suas ações, conhecem o sentido amplo desses pular. A Teoria e a Prática de Paulo Freire no Brasil.
São Paulo: Ática, 1982.
conceitos. E como falta referencial teórico, falta
metodologia adequada, pois ela é parte intrínse- BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e
ca da visão de mundo veiculada na teoria. Por- Combate a Fome. Proteção social Básica. Orien-
tanto, a metodologia não pode se constituir num tações técnicas para o centro de referência de
conjunto de técnicas. assistência social. Brasília: junho de 2006, versão
preliminar.
Sobre a questão teórica do Serviço Social,
BRASIL. Ministério do Desenvolvimento Social e
Mioto (2004, p.8) sinaliza que sua operatividade Combate a Fome. Política Nacional da Assistên-
tem se caracterizado pela escassez de discus- cia Social – PNAS. Brasília, 2004.
são e produção teórico-metodológica se compa-
rada às análises da profissão ou do debate dos FREIRE, Ana Maria Araujo. (org). Pedagogia dos
sonhos possíveis. São Paulo: UNESP, 2001.
direitos sociais e das políticas sociais em geral.
A autora não nega que exista um debate da ca- FREIRE, Paulo. A ação cultural para a liberdade.
tegoria sobre as questões teórico-operativas, no 5. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra,
entanto, adverte que essas têm se concentrado 1981.
na discussão das bases do projeto-ético político
______. Educação como prática da liberdade.
ou na necessidade de transformação da prática São Paulo: Paz e Terra, 2007, 30ªed.
profissional ou sobres suas áreas de atuação.
______. Extensão ou comunicação? Rio de Janei-
Como se constatou nas entrevistas a falta ro: Paz e Terra, 1982, 6ª ed.
dessa orientação teórico-metodológica tem sido
______. Pedagogia do oprimido. 44ª ed. São Pau-
o grande desafio da equipe que tem operacio-
lo: Paz e Terra, 2005a.
nalizado os grupos socioeducativos. Como dito
pelas entrevistadas, para suprir essa falta de um ______. Pedagogia da esperança. Um reencontro
referencial que as oriente, as assistentes sociais com a Pedagogia do Oprimido. 13ª ed. São Paulo:
Paz e Terra, 2006.
não encontrando esse apoio no corpo teórico da
profissão têm buscado em outras áreas um refe- ______. Pedagogia da autonomia. Saberes neces-
rencial para seu trabalho. Todas as entrevistadas sários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra,
relataram terem feito cursos de dinâmica de gru- 2005b (coleção leitura).
po ou formação na aérea da psicologia sistêmica JANUZZI, Gilberta Martino. Confronto pedagógi-
ou atuarem baseadas nas experiências pessoais co: Paulo Freire e Mobral. 3ª ed. São Paulo: Cortez,
desenvolvidas em sua trajetória profissional. 1987.

Com relação à identificação da proposta MIOTO, Regina Célia Tamaso. Novas propostas e
das ações socioeducativas e a teoria de Freire, velhos princípios: a assistência às famílias no con-
isso acontece como relatado pelas técnicas pe- texto de programas de orientação e apoio sociofami-
liar. IN: MIONE, Apolinário Sales; de Matos, Maurílio
los conceitos centrais da proposta apresentada
Castro; Leal, Maria Cristina (org.). 2. ed., São Paulo:
pela PNAS. Entretanto, esses conceitos como Cortez, 2006. Política social, família e juventude.
demonstramos não apresentam a mesma dimen- Uma questão de direitos.
são ou amplitude como pensados na educação
SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade.
como prática da liberdade.
São Paulo: Companhia das letras, 2000. 5ª ed.

Emancipação, Ponta Grossa, 9(1): 127-139, 2009. Disponível em <http://www.uepg.br/emancipacao> 139

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