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BARBO, Daniel.

O triunfo do falo: homoerotismo, dominação, ética e política na


Atenas Clássica. Rio de Janeiro: E-papers, 2008, p.43-54.

O homoerotismo ateniense: norma e transgressão

Daniel Barbo (2008) afirma que o Banquete e o Fedro de Platão revelam uma
relação erótica e pedagógica ideal entre um adulto (o amante) e um jovem (o amado)
na Atenas Clássica. Os parceiros, além de pertencerem a categorias de idade
distintas, possuem diferentes estatutos cívicos: o adulto é cidadão pleno na
democracia ateniense e o jovem só obterá cidadania plena aos vinte anos de idade.
Além do mais, o desejo erótico nessa relação não é recíproco: o adulto é sujeito do
desejo e o jovem, o objeto. No mundo grego antigo, as condutas eróticas não eram
classificadas pelo gênero dos participantes, isto é, amor entre um homem e uma
mulher ou amor entre dois homens; elas eram classificas em virtude da atividade e da
passividade erótica. Ser eroticamente ativo é ser virial, qualquer que seja o gênero do
parceiro passivo. A mulher é eroticamente passiva por natureza. Quanto aos jovens
atenienses, por não serem ainda cidadãos plenos, podiam ser submetidos à
passividade erótica sem desonra. Tal era a dicotomia que balizava as relações
eróticas na antiguidade clássica: a passividade erótica era, no caso dos greco-
romanos, um ato degradante para um cidadão, enquanto a atividade afirmava a sua
superioridade e a sua masculinidade.

No Banquete e no Fedro, Platão usa preferencialmente o termo erastés para


designar o amante, e poucas vezes o termo eron. Para designar o amado, às vezes
usa o termo paidiká e, às vezes, o termo erómenos. Pausânias, no Banquete diz que o
relacionamento entre o erastés e o erómenos é honrado se se desenvolve de forma
digna (kalôn), e vil se se desenvolve de forma vergonhosa (aischrôn). De todas as
ações, segundo ele, nenhuma é em si digna nem vil. Tudo depende do modo com que
se age nelas.

Espera-se que o amante, na condição de kalokagathós (belo, nobre e virtuoso)


conduza o amado ao ponto desejado pela comunidade: o acesso do jovem às virtudes
e, portanto, sua ascensão à kalokagathía e à participação na democracia ateniense.
Por outro lado, se o amor do amante só é pelo corpo, esse amante logo abandona o
amado, frustrando as possibilidades de engrandecer a alma do jovem, ao deixar
apenas promessas e discursos desonrados. Esse tipo de amante, o jovem deve evitar
sob pena de desonra. Ele não deve ceder a qualquer amante, mas somente àquele
que lhe proporcionar o caminho das virtudes.
Um exemplo dessa função pedagógica entre erastés e erómenos é
apresentada no próprio Banquete: a relação estabelecida entre Sócrates e Alcebíades
– o discípulo vislumbra a possibilidade de adquirir toda a diversidade de virtudes que
descobriu no interior de Sócrates.

O mito relatado por Aristófanes em seu discurso no Banquete traz outros


elementos que nos ajudam a compor a condição e o comportamento específicos do
erastés e do erómenos. Diz Aristófanes que, no início, a natureza do ser humano era
outra, sendo três, e não dois, os gêneros dos seres humanos: o duplo masculino, o
duplo feminino e o andrógino, comum ao masculino a ao feminino. Eram seres
intemperantes, dissolutos, acometidos pela hýbris (o excesso), terrivelmente fortes e
presunçosos. Tão presunçosos que se voltaram contra os deuses. Zeus pôs-se a
refletir e decidiu cortar cada um em dois para torná-los mais fracos e abrandar a
intemperança humana. Assim mutilados, cada um ansiava por sua própria metade e a
ela se unia. Juntos, queriam ficar para sempre. Quando uma das metades morria, a
outra procurava uma nova metade que fosse da sua própria natureza e a ela se unia.

O mito retrata certa noção da virtualidade do desejo erótico humano. Há


homens que foram metade de um duplo masculino e homens que foram metade de um
andrógino. E o mesmo vale para mulheres. Nesse caso, somente quando o desejo
aflorar no coração de um ser humano saber-se-á ao certo a que unidade primordial ele
pertencia.

Aristófanes diz que os que são corte do masculino, enquanto são jovens,
gostam da amizade dos homens. São os melhores garotos e jovens, pois eles têm
natureza mais viril, e fazem isso por coragem e virilidade. Quando amadurecem, os
que são desse tipo “provam ser homens numa carreira pública” e amam os jovens
dando pouca atenção a casamento e procriação, mesmo que a isso sejam forçados
por lei ou costume. Idealmente, o erastés está imbuído pela paixão erótica, possuído
por éros. Esse responde com a amizade, imbuído que está da philía por seu erastés.

Costumes atenienses consideram uma desgraça (aischrón) a capitulação muito


rápida por parte do jovem (erómenos), pois é necessário um certo intervalo de tempo
moralmente estabelecido. Consideram também igual desgraça se a rendição do jovem
for por dinheiro ou por favores políticos, ou se ela for por medo de resistir a maus
tratos, ou mostrar que o jovem não é devidamente desdenhoso de tais benefícios.
Nesse sentido, para os costumes atenienses, só resta um modo pelo qual o amado
(paidiká) possa com razão gratificar seu amente (erastê): se, no caso dos amantes,
não é considerado um escândalo ou vergonha o fato de eles estarem desejosos e
completamente escravizados por seus amados, já no caso desses, só há um tipo de
dominação voluntária que não seja escandalosa, qual seja, pela causa da virtude.

No discurso de Diotima no Banquete, por meio do mito, ela emprega a


condição e o comportamento do daímon éros, filho de Riqueza (Pónos) e Pobreza
(Penía), nascido no dia do aniversário de Afrodite. O daímon éros é um misto das
heranças de seus pais, possuindo, então, essa condição mestiça de riqueza e
pobreza. Por um lado, sempre convivendo com a precisão. Éros é pobre, não é
delicado, não é belo, é seco, duro, descalço e sem lar, sempre por terra e sem cama,
deita-se ao desabrigo das portas e dos caminhos. Por outro lado, Éros é um amante
(erastés) inclinado para o que é belo e bom, é corajoso, decidido e enérgico, grande
caçador tecendo maquinações, ávido por sabedoria e possuidor de grandes recursos.
Por isso filosofa, posto que esteja entre a sabedoria e a ignorância. Éros, destarte,
possui uma natureza entre a mortalidade e a imortalidade, pois, no mesmo dia em que
germina e vive, ele morre e ressuscita. Tudo que consegue, escapa-lhe das mãos, de
modo que nem empobrece nem enriquece.

Pode-se dizer, portanto, que nos discursos do Banquete e do Fedro subjaz,


ainda que de forma ideal, uma mesma estruturação no que concerne ao
homoerotismo: dois homens, distinto pelo grupo etário a que pertencem e pelo
estatuto cívico-político que possuem, numa relação erótica, afetiva e pedagógica na
qual o mais velho ama (paiderastés) e o mais jovem é amado (philerastés), cada um
com uma condição, uma função e um comportamento específicos.

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