Você está na página 1de 14

A construção social da masculinidade

Como definir masculinidade? Vários caminhos se delineiam, mas Oliveira


(2004) aposta numa construção conceitual que se fará a partir das mediações
argumentativas de seu percurso teórico. Vale adiantar um conceito geral: lugar
simbólico (sistema de condicionamentos, valores, juízos estéticos e perceptivos) e
imaginário (dinâmica existencial constitutiva do agente – aspectos corporais e
psíquicos que orientam sua conduta, seus desejos, suas metas, enfim, sua própria
realidade) de sentido estruturante nos processos de subjetivação. E complementaria:
na qualidade de estrato constitutivo e articulado do socius, apresenta-se como uma
significação social, um ideal culturalmente elaborado ou sistema relacional que aponta
para uma ordem de comportamentos socialmente sancionados.
A palavra “masculinidade”, derivada do termo latino masculinus, começou a ser
utilizada apenas em meados do século XVIII, no momento em que se realizava uma
série de esforços científicos no intuito de estabelecer critérios mais explícitos de
diferenciação entre os sexos.
(...) a masculinidade não existe, enquanto característica, traço de
caráter ou aspecto da identidade dos indivíduos. Isto quer dizer que
tentar definir uma ou várias masculinidades é uma tarefa infrutífera (...).
(Ela) existe apenas como ideologias ou fantasias variadas (...)
(MacINNES, apud, OLIVEIRA, 2004, p.14).

A afirmação de que a masculinidade é hoje uma realidade evanescente que


deve ser descartada como algo insignificante é uma temeridade. Não se trata, no
entanto, de reificá-la e procurar seus traços essenciais, mas de discutir sua
importância e características históricas, sua força de arregimentação social, sua
imbricação com outros estratos, formas e sistemas simbólicos do socius, seu poder de
indicar e orientar predicações, que definem, entre outras coisas, juízos perceptivos,
cognitivos e estéticos.
Não bastaria dizer que ela atua nos discursos, ou se constitui como uma
estrutura de poder, que integra a economia psíquica dos agentes, ou que é histórica,
ideológica, identitária, predispondo comportamentos ao prescrever atitudes especiais
em situações distintas, ou que recobre um sistema de valores ou fundamenta certo
tipo de estética. Consoante Oliveira (2004), dependendo da perspectiva adotada,
sempre seria insuficiente qualquer uma dessas definições acima elencadas. O referido
autor parte da seguinte premissa: a masculinidade articula e constitui um dos estratos
da região do socius, esse espaço-processual ou processo-espacializante dinâmico,
intangível, mas efetivo, que compreende todos os objetos da vida social (agentes, leis,

1
instituições, símbolos, valores, etc.), ao lado ou mesmo articulada a outros, como
nacionalidade, religião, profissão, grupos de status, posição de inserção social, região
de origem, etnia, grupo de idade, etc. Essa premissa será considerada por Oliveira
(2004) dentro daquilo que ele chama de lugares simbólicos de sentido estruturante,
pois, enquanto estrato, a masculinidade articula-se, ladeia, esparrama-se
rizomaticamente junto aos demais. Dinamicamente, dispõe-se ou sobrepõe-se, mais
ou menos, em determinadas regiões e momentos históricos, modifica-se ao se
fortalecer ou mesmo se esvai no contato com a realidade histórica dos outros estratos.
A discussão desenvolvida por Oliveira (2004) nos dois primeiros capítulos propiciará
compreender, em linhas gerais, a modelação da masculinidade a partir de uma
sociogênese moderna – ideal moderno da masculinidade – bem como os processos
de mudanças decisivas empreendidas pela supermodernidade no caráter e valor
expressivo da masculinidade. Tais mudanças sócio-estruturais terão uma importância
capital na desestabilização de algumas certezas e afetarão o ideal moderno da
masculinidade, face mais tangível desse estrato ou lugar simbólico.

CAPÍTULO I – Panorama Ocidental (OLIVEIRA, 2004, p. 19-82)


A fim de construir um panorama histórico-filosófico capaz de permitir a
compreensão do ideal de masculinidade como bússola de orientação para a
formatação de comportamentos assumidos no Ocidente, nesse primeiro momento,
reservarei um breve espaço para discutir a configuração grega do homoerotismo na
cultura falocêntrica. A seguir trilharei os caminhos teóricos propostos por Oliveira
(2004) para compreender a série de transformações ocorridas na passagem da
sociedade medieval para a moderna, bem como a preservação e o reforço do ideal de
masculinidade (resultado de complexas elaborações culturais).
Segundo Daniel Barbo (2008, p.80-95), a desvalorização política e social da
mulher nas comédias de Aristófanes e na tragédia de Eurípedes tem por fundo uma
desvalorização natural: a representação da mulher como um ser poluído. Os gregos
antigos atribuíam às mulheres certas condições deficientes, certas nódoas congênitas,
que as tornavam naturalmente inferiores aos homens. Fisiológica e psicologicamente a
mulher era considerada úmida e fria, ou seja, nessa representação do feminino pelo
masculino (artefato cultural e retórico) a umidade tornava as mulheres histéricas,
irresponsáveis, fracas para reprimir seus impulsos, sempre prontas para ceder às
tentações sexuais, sexualmente vorazes, levando os homens à exaustão. Assim, por
causa dessa umidade inata a mulher está mais sujeita que o homem aos assaltos
emocionais sobre o corpo e a mente. Por outro lado, o caráter seco e quente é
prerrogativa masculina. A oposição, por conseguinte, não é simplesmente entre o seco

2
e o úmido, mas também entre forma e conteúdo, limitado e ilimitado, pureza e
impureza.
A sociedade grega considera que, antes de entrar na atividade sexual, a
mulher faz parte do mundo selvagem, um animal indômito que prefere a selvageria e
voracidade. Iniciada a atividade sexual ela tende da licenciosidade para a
bestialização. Daí a afirmação: o homem tem uma maturidade sexual que melhora
com a idade, a mulher, por outro lado, iniciada a atividade sexual, apodrece
gradativamente devido a sua natural voracidade sexual, a qual deve ser regulada e
controlada (não se pode deixar de salientar que essas idéias fazem parte de uma
complexa formulação que visa validar e perpetuar a instituição civil do matrimônio
monogâmico e a vida familiar). Na literatura grega, o ato sexual que engendra ou
almeja engendrar prole é chamado de trabalho (ponos), enquanto todas as outras
variedades de atividade erótica são chamadas de diversão (paidía) – a diversão
erótica, nessa medida, polui as mulheres, enquanto o trabalho erótico não polui e, pelo
contrário, recupera-a da poluição.
Na sociedade ateniense constitui-se um discurso público masculino que
dominava e regulava o feminino num trânsito de mão dupla entre o campo
sociopolítico e o campo erótico. Por um lado, no matrimônio, o descontrole e a
irresponsabilidade do eros feminino são regulados pelo eros e pelo ponos masculino.
Portanto, é pelo matrimônio que a mulher, confinada ao oikos, é resgatada do mundo
selvagem e inserida na civilização. A suposta voracidade sexual da mulher é
reprimida, sua índole é domesticada e vigiada, sua pessoa jurídica é tutelada, passada
do pai para o marido. Sua atividade sexual é desqualificada por natureza, já que, uma
vez iniciada, leva a mulher não a maturidade, mas, progressivamente, à
desvalorização do seu erotismo. Reversamente, o homem aprimora-se em sua
atividade sexual, que se expande e pode ultrapassar os limites do matrimônio e do
oikos, estando ele, assim, liberado para a diversão sexual. Por outro lado, para a pólis,
a mulher não tem voz, não obstante o seu papel fundamental de legítima genitora.
Define-se, então, a condição política e o erotismo da mulher pela sua posição em
relação ao poder fálico. Opõe-se a virtude pública reguladora típica da natureza
masculina à virtude confinada e controlada da natureza feminina.

Agentes históricos reforçadores do ideal de masculinidade


Formação do Estado Nacional moderno (constituição e manutenção da
autonomia e soberania de uma nação – monopólio do uso da força: aparato policial e
militar) e criação de instituições específicas, como os exércitos (na virada do século
XIX, basear a honra na estirpe e no sangue ficava cada vez mais ultrapassado e

3
anacrônico. Isso não impediu, entretanto, que alguns elementos constitutivos do
ímpeto de duelar fossem transportados para a propensão bélica entre os Estados
modernos e seu emergente nacionalismo), resultando nos processos de
disciplinarização e brutalização dos agentes nelas envolvidos, bem como o surgimento
de ideais burgueses e dos valores de classe média, calcados no pragmatismo dos
negócios, na personalidade moderada e no culto da ciência metódico-racional.

Declínio medieval – período de transição entre período medievo e moderno


a) Desloca-se do público para o doméstico a arena legítima de expressão dos
sentimentos. O amor romântico se insinuava como o novo modelo de relação conjugal
e prenunciava a conformação de uma instituição chave para a sociedade burguesa: a
família monogâmica (observa-se um contínuo esmaecimento das expressões
desenfreadas das emoções).
b) Passagem da nobreza de espada para a nobreza de corte e depois a suplantação
de ambas pela burguesia – emergência da personalidade burguesa, caracterizada
pelo autocontrole e pela contenção das violentas expressões emocionais, típicas da
nobreza de espada (coragem e bravura).
c) Duelo entre os cavaleiros (associado à honra masculina e entendido como
expressão do poder de sangue e da qualidade da estirpe aristocrática – ser chamado
de covarde era o pior insulto e o atestado de destemor obtido era valorizado, inclusive
pelos perdedores). Quando o duelo é apropriado pela burguesia a ênfase na bravura,
na ousadia e no destemor desloca-se para a firmeza, autocontrole e contenção,
tornando-se freqüente o aperto de mãos ao final do ritual. Essa consciência de culpa,
tipicamente burguesa, é impensável para os valores nobres e aristocráticos. Por fim, o
duelo é transferido para recintos fechados e assim, de exibição púbica, tornava-se um
evento para audiências privadas, expressando, dessa forma, seu contínuo
aburguesamento.
d) Imbricação entre militarização, nacionalismo e masculinidade (os ideais medievais
de bravura e destemor passavam agora a integrar as características fundamentais do
soldado devotado e heróico). Assiste-se a uma ampla valorização social do ethos
guerreiro (inculcação dos ideais masculinos através da instituição militar, exaltação do
belicismo como terapia viril, apologia a capacidade de suportar flagelos e ao ideal
sacrificial de abnegação e entrega de si ao corpo da nação, enfim, entoa-se um
cântico de louvor à guerra e à força).
d1) O nazismo inculcou nos jovens alemães uma disposição e um espírito aguerrido e
belicoso e, nessa busca, a exacerbação da masculinidade desempenhou um papel
importante (apelo ao sacrifício: espectro nazista). Na condição de messianismo político

4
totalitário, o nazismo exaltou o espírito comunitário que se instila de modo integral na
consciência dos agentes, socius invasor que abarca a quase totalidade da agência e
vida pessoal. Nesse sentido, apesar de ser um totalitarismo de massa, alimentou
sentimentos semelhantes àqueles estimulados por pequenos grupos e comunidades
fechadas.
d2) Movimento político semelhante, o fascismo italiano buscava inspiração na
grandeza romana para construir a idéia de uma Itália poderosa e seu fundamento
essencial: o novo homem fascista, imagem do guerreiro conquistador romano (adoção
de um decoro comportamental de viés moral fortíssimo). Muitas diferenças podem ser
apontadas entre a experiência histórica do nazi-fascismo, de um lado, e a do
socialismo, do outro. Entretanto, no que diz respeito ao cultivo do ideal moderno de
masculinidade, elas ficam menos claras. Assim, observa-se que os ideais de
masculinidade não irão diferir significativamente em nenhum desses movimentos –
prega-se a oposição à lassidão, a lascívia, a preguiça, a permissividade sexual e
defende-se a instituição familiar, o labor e a ordem. Ao devotado soldado guerreiro,
acrescentar-se-ia o modelo do trabalhador exemplar e responsável, produtor de
mercadorias e provedor (disciplinado e industrioso), como paradigma do homem
autêntico.
Como conciliar o aparente paradoxo entre, de um lado, o guerreiro heróico,
tosco, rude, quase bárbaro e selvagem, que se sacrifica pelos ideais nacionais e, de
outro, o responsável, comedido e autocontido homem burguês moderno? Na
perspectiva da constituição e manutenção da nação, era necessária a pacificação do
território e isso deveria se refletir na valorização do controle das emoções com o
conseqüente comedimento na expressão das paixões, de tal forma que assim
pudessem ser afiançadas relações sociais equilibradas e estáveis. Já no que tange às
relações entre os países, adequava-se uma educação heróica, a inculcação dos
valores guerreiros, caso fosse necessário entrar em combate com outros Estados.
Esses dois conjuntos de prescrições e modelos idealizados, aparentemente
antinômicos, deveriam se fazer presentes durante o processo de socialização e
subjetivação especialmente dos meninos.
e) Romantismo (culto aos heróis e ênfase na aura mítica em torno da virilidade
masculina) X Iluminismo (fé na razão e ênfase na ponderação e no equilíbrio). Ambos
compuseram o rol dos valores modernos que, nessa condição, aportaram ao ideal de
masculinidade.

Religião, ideais burgueses e masculinidade

5
Amplamente apoiado pelo cristianismo, o ideal moderno de masculinidade se
transformaria num baluarte contra a decadência e a degeneração dos costumes
(relação entre valorização da masculinidade e recrudescimento da influência religiosa).
Assim, a religião se incumbia, principalmente, de promover a moralidade tipicamente
burguesa, enquanto o exército e os esportes cultivavam valores masculinos para a
educação da virilidade (casamento: barreira contra os vícios e a degeneração).
Defende-se a assimetria do poder na família – quanto mais feminina a mulher e
mais masculino o homem, mais saudáveis a sociedade e o Estado (autonomia
masculina se contrastava com a submissão feminina). Para os ideais de moralidade
burgueses, o sexo é o coração do casamento e o casamento, a base fundamental da
família. Para o ideal moderno masculino, a constituição de uma família tinha também
uma outra função primordial: afastava dúvidas em relação ao noivo quanto a uma
possível orientação sexual pervertida. No caso masculino, a prática sexual entre
homens era aquela que suscitava o anátema social mais depreciativo que alguém
poderia receber.

As ciências e os ideais de racionalidade


O darwinismo (final do século XIX) forneceu a narrativa científica fundamental
para descrever o pensamento acerca do mundo social. Os atributos de força física e
propensão à agressividade representavam agora os instrumentos utilizados pelos mais
capazes para vencer na luta pela sobrevivência. O translado desse tipo de
pensamento para a vida social vinha ao encontro das estratégias de competitividade
capitalista e também fazia eco junto ao ideal moderno de masculinidade ao fantasiar
uma idéia de virilidade adaptativa por meio de uma constante disciplina corporal, moral
e intelectual.
A relação entre corpo e alma também foi objeto de muitas formulações
médicas. O slogan “menta sã num corpo são” orientou boa parte da pesquisa médica
efetuada durante o século XIX. Sobretudo nesse século os médicos tendiam a definir
saúde e doença não apenas como categorias clínicas, mas também como categorias
morais. Assim, com a medicalização da moralidade, a medicina passou a ocupar cada
vez mais um lugar social antes monopolizado pela Igreja e pela Teologia. Os médicos
emprestavam sua autoridade científica para a criação do estereótipo físico e moral dos
desviantes, pervertidos e todos aqueles normalmente tidos como devassos,
afeminados e fracos (o domínio do sexo se transferia do registro da culpa e do
pecado, do excesso e da transgressão, para o registro do normal e do patológico).
Jacques Derrida denominou nossa racionalidade como “falogocêntrica”, ao
indicar o acoplamento entre o falo e o logos ocidentais, caracterizando-a pelo seu

6
enaltecimento da identidade masculina, européia, branca e heterossexual
(identificação entre masculinidade e raciocínio científico, pensamentos claros e
precisos, procedimentos matemáticos, lógicos). Fica estabelecido o paradoxo entre
Razão-cálculo (racionalismo cartesiano) e Razão analógica (multifacetada e
hipertextual – fenomenológica e hermenêutica).
Vale dizer que uma coisa é destacar a imbricação entre enunciados científicos
e o ideal moderno de masculinidade, outra é deslegitimar de antemão o
empreendimento científico em si como se ele contivesse em sua própria gênese a
essência totalizadora e tirânica de uma razão masculina.

Em busca do corpo masculino ideal


O atleta grego apresentado em sua perfeição nas esculturas por ele analisadas
modelou a configuração de um homem vigoroso e vencedor, exemplo a ser adotado
em momentos de exaltação política exacerbada da masculinidade, como no caso do
nazismo.
No final do século XVIII a ginástica emerge como meio para se atingir o vigor e
a força masculina de forma disciplinada. Iluministas, como Rousseau, pregavam a
necessidade de submeter constantemente os meninos aos exercícios físicos, com o
objetivo de torná-los saudáveis e robustos, condição para a sapiência e a sensatez.
Kant ressaltou a função biológica do jogo, que, segundo ele, servia para manter
desperta e reforçar a energia vital na competição com as demais energias do mundo.
Pode-se dizer que esportes, ginástica e treinamento físico constituíram um
excelente ponto de apoio para a veiculação dos ideais viris na modernidade. A
disciplinarização do corpo masculino, via esportes e treinamento físico, além de ser útil
aos ideais de conquista e defesa nacional, incorporava-se nos agentes que passavam
a reproduzi-la em hábitos e atitudes cotidianas (controle minucioso das operações do
corpo, sujeição das forças e imposição de uma relação de docilidade e utilidade).
O vínculo entre os esportes, mercado e ideias disseminadas que, de modo
subliminar ou não, favorece a hegemonia do masculino, como é o caso do darwinismo
e todo o seu legado sexista presente na sociobiologia (diferença de comportamento
social entre os gêneros é determinado biologicamente), é reforçado pelo ideal de
competência e competição, habilidade e sobrevivência, progresso e supremacia.

A masculinidade e a lei
A lei se arrogou o direito de invadir a privacidade sempre que esta não se
conformava aos ditames da ordem social burguesa. Também teve efeitos marcantes
para modelar os discursos científicos moralizadores em torno da sexualidade

7
masculina aceitável (se articulou como parte do nexo de prescrições culturais que
apontavam para o banimento e punição do desvio, da anormalidade e da doença).
Cinco características norteiam a constituição de leis referentes aos aspectos da
vida sexual dos agentes no final do século XIX: sexo é algo natural; o natural é sempre
o comportamento heterossexual; o sexo genital é primário e determinante; o
verdadeiro sexo é falocêntrico; por fim, o sexo é algo que deve ocorrer de preferência
no casamento.

O outro da masculinidade
Seria impossível pensar a masculinidade abstraindo-se de refletir sobre o seu
outro, pois para que esse lugar simbólico se destacasse como símbolo social
valorizado fez-se necessária a emergência de sombras e faces que desempenharam o
papel de antípodas, alvos de depreciação e anátema, signos do vil, abjeto,
desprezível, verdadeiros alter egos.
Muitas vezes, torna-se importante eleger um inimigo para que se possa criar
um grau de coesão grupal e a conseqüente identificação coletiva juntamente com as
normas comuns capazes de induzir à euforia gratificante que acompanha a
consciência de pertencer a um grupo de valor superior, com o desprezo complementar
por outros grupos (imagem do antiparadigma: agente homo-orientado – cumpria à
risca o receituário da feminilidade exacerbada e afetada).
Como contraponto ao ideal moderno de masculinidade, emergiu,
paralelamente, o ideal feminino. Enquanto o masculino simbolizava a ordem e o
progresso, o feminino deveria expressar a castidade, a pureza e o comedimento
público. Os ideais assim configurados buscavam naturalizar a idéia de que o domínio
público era assunto masculino, enquanto o doméstico ficaria a cargo das mulheres.
Essa situação consagrava a autonomia de um gênero e destacava a heteronomia do
outro.
Com a ascensão da burguesia a mulher passa a ser vista como um
complemento do homem, que deveria ser aperfeiçoado e enobrecido pela afeição e o
puro amor de uma mulher. Do ponto de vista das imagens, símbolos e representações
sociais, a mulher e o feminino apareciam como o outro pólo, a alteridade do
masculino. Assim, a autêntica feminilidade surgia como o inverso da masculinidade:
delicadeza, beleza sensual, fragilidade (modelo oposto do heróico masculino). Os
contratipos da masculinidade ideal apareciam como inimigos públicos, dignos de
desprezo, escárnio e ódio (evidenciava-se como a maior desonra que um varão
poderia sofrer – vistos como aberração, ameaça à família e ao casamento).

8
Para o ideal moderno de masculinidade foi de grande valia a construção do tipo
homo-orientado, baseado num discurso médico, psicológico e jurídico, que permitia
submetê-lo a observação, policiamento e exame (“psicologização” e “medicalização”
do homo-orientado).
Em 1886 Freud causou profundo desconforto junto à comunidade médica
austríaca quando leu perante a Sociedade de Medicina de Viena um artigo sobre a
histeria masculina. O trabalho foi mal recebido, pois ia de encontro às idéias
comungadas pela comunidade médica da época que acreditava ser a histeria um
distúrbio tipicamente feminino. Os ataques que Freud sofreu fizeram-no recuar de
algumas posições assumidas.
Freud defendeu com ousadia a idéia de que a sexualidade humana é em si
perversão dos instintos, pois ela desvia o instinto, metaforiza seu alvo, desloca e
interioriza seu objeto e concentra enfim sua fonte numa zona eventualmente mínima, a
zona erógena. Assim, pode-se concluir que tanto a homo quanto a heterossexualidade
são modeladas a partir das sanções culturais que delas se apropriam, a partir de
singularidades socioculturais bastante específicas; e mais: se tivéssemos que ser
justos, então ambas deveriam ser encaradas como perversões do instinto sexual. Por
razões óbvias, não foi esta a leitura que o movimento psicanalítico preferiu fazer.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a psicanálise como corpus teórico consagrado
naturaliza valores culturais arbitrários de forma que possam ser vistos como verdades
eternas.
O famoso “Complexo de Édipo” tornou-se modelo e centro nevrálgico que
permitia esclarecer a inversão e justificar a adequação da família burguesa ocidental.
No final do século XIX e início do XX o culto à domesticidade da mulher já estava
consagrado, e a psicanálise, com o seu triângulo edípico, reforçava todo um
pensamento de senso comum que justificava o arranjo familiar no qual a figura do pai
era algo superior e inatingível.
A dominação simbólica exercida pelos grupos estabelecidos consegue
transformar os valores dos dominantes em valores dominantes, a tal ponto que mesmo
os que são mal classificados na hierarquia social, isto é, os desclassificados,
reproduzem, cultuam e aplicam a si próprios os valores responsáveis por sua própria
classificação.

Capítulo II – Capitalismo Cósmico (OLIVIERA, 2004, p.83-139)


Pós-modernidade?
Ultra-modernidade, super-modernidade, modernidade tardia, modernidade
líquida, modernidade light, alta modernidade, sociedade do espetáculo, sociedade

9
pós-industrial, sociedade pós-colonial, sociedade da performance, sociedade do
simulacro, sociedade do risco ou da dúvida radical.

Contemporaneidade como sinônimo de pós-modernidade


- Tipo de cultura que só se sente verdadeiramente à vontade em seu desabrigo –
caráter trágico ou mesmo esquisofrênico (Deleuze e Guattari);
- Triunfo completo do capitalismo – saturação de cada poro do mundo com o soro do
capital (Perry Anderson);
- Sociedade de massa que é ao mesmo tempo opaca e translúcida, pois refratária ao
sentido e irredutível a qualquer prática e a qualquer teoria (Jean Baudrillard);
- Movimento contínuo de privatização e de esvaziamento do espaço público. A tônica
dominante é a excentricidade das expectativas, a inconstância das normas, a
cacofonia das vozes, as cataratas de tagarelice visual, a pulverização do espaço, o
solapamento das totalidades sociais, o multifacetado e colorido mundo das impressões
e sensações proporcionadas pelo mercado (Zygmunt Bauman);
- É o consumo da própria produção de mercadorias como processo – nada ficou
incólume à “mercadificação” (Frederic Jameson);
- Velocidade e performance: obsessões pós-modernas mais cultivadas e imperiosas
(Jean-François Lyotard);

Tecnologias e mudanças
- “Descorporificação” do trabalho: aumento da participação feminina no mercado de
trabalho desde o pós-guerra (contínuo afluxo de mulheres a partir de inovações
tecnológicas);
- Surgimento de políticas de identidade como o feminismo, o movimento gay e lutas
étnicas;
- Enaltecimento da pluralidade, diversidade, multiculturalismo, heterogeneidade –
pulverização do tempo e do espaço no movimento siderado/atordoado de
desterritorialização contínua (libertação dos significados locais e de concepções
arcaicas);
- Caracterização fugidia e sempre volátil do fluxo de capitais – era do software,
bastante diferente da antiga era do hardware.

A (suposta) crise do Estado-nação


- Formação do Estado-nação na era moderna: necessidade de pacificação interna,
proteção do território nacional e imposição de normas e medidas comuns. Uma vez
desbastado o terreno para o livre fluxo de capitais, o Estado se torna cada vez menos

10
interessante àquela paisagem de liberdade econômica irrestrita. Daí o divórcio entre
política e poder, entre o poder do Estado-nação e os interesses do capital
transnacional (desterritorialização do capital enquanto o Estado nacional continua
preso ao seu território. Esta discrepância transforma a política em algo local e
inadequada para lidar com os fluxos. O capital escapa assim ao alcance da política);
- Diluição do poder de soberania dos Estados (crescente internacionalização da
economia) – definhamento do Estado-nação;
- Explosão das particularidades dentro do próprio Estado-nação o transforma em
inimigo (nesses tempos pós-modernos o contra-poder ao Estado-nação é constituído
por inúmeras organizações criminosas: narcotraficantes, contrabandistas, etc.);
- Intensificação da preocupação com a segurança pública devido ao aumento da
violência e da criminalidade (essas demandas sociais emergentes refletem a demissão
do Estado de funções que, se exercidas com desenvoltura, poderiam minorar a
escalada do crime).

Crise da família
- Aumento do número de divórcios ou separação de casais;
- Postergação cada vez maior do vínculo conjugal e crescente formação de
relacionamentos sem vínculos legais (enfraquecimento da autoridade patriarcal, tanto
institucional quanto psicologicamente);
- Crescente aumento de lares em que apenas um dos pais é responsável pelos filhos;
- Aumento dos domicílios habitados por pessoas que vivem sós;
- Crescimento de nascimentos de filhos fora do casamento;
- Crescente incorporação das mulheres ao mercado de trabalho e conseqüente
participação de seus salários na composição do orçamento familiar (isto é, abalo da
ideologia do patriarcalismo que legitimava a dominação masculina com base na idéia
de que o provedor da família goza de privilégios);
- Adoção de novas técnicas (biotecnológicas) capazes de promover a inseminação
artificial, a clonagem e a engenharia genética;
- Crescente descrença no casamento, na família, na classe e no bairro (revelação da
acelerada desintegração dos antigos tecidos de apoio comunitário);
- Dissolução dos laços de sociabilidade e reciprocidade, assim como solapamento da
própria natureza da obrigação social pela “mercadificação” quase total da vida social
(o capital fareja o consumidor e oferece a ele o serviço ou o produto desejado,
desmantelando as instituições sociais tradicionais via “mercadificação”);

11
- Produção de agentes cada vez mais individualizados, privatizados, avessos a
compromissos e fidelidades de longa duração – acelaração do processo de
privatização dos agentes;
- Estimulação de novos desejos que toma o lugar da regulamentação normativa (a
publicidade toma o lugar da coerção e a sua sedução torna redundante ou invisível as
pressões da necessidade);
- Divórcio entre sexo e família (disjunção entre sexo e dever e conjunção entre sexo e
prazer);

Crises de outras instituições


- Crescimento e pulular mundial de novas seitas e igrejas (processo de
reencantamento do mundo que contraria as expectativas de sociólogos como Max
Weber que afirmava que a sociedade ocidental caminhava a passos firmes para uma
irreversível secularização de todas as esferas da vida social);
- Modificação dos aspectos da vivência religiosa: a prática religiosa se tornou uma
atividade de lazer, isto é, comportamento deliberado, não-regulamentado, pessoal e
privado;
- Crescimento das opções: trânsito religioso (multiplicação das filiações religiosas);
- (Re)configuração da ciência: relativa e pragmática, a ciência se despe da autoridade
inconteste que assumiu na modernidade;
- Aparecimento das figuras dos mestres e gurus: especialistas ou bruxos da Nova Era
(oferecem receitas de “como fazer”, livros de auto-ajuda, restauração de
personalidade, consultorias para se fazer um melhor uso das emoções e dos
sentimentos);
- Decretação do FIM das grandes metanarrativas (o sonho comteano para a sociologia
sintetizado no mote positivista “ver para prever, prever para prover” transformou-se, na
melhor das hipóteses, numa risível quimera);
Com base no que foi exposto até o momento pode-se afirmar que o
“economicamente correto” ganha precedência sobre o “politicamente correto”. Como
asseguram Deleuze e Guattari (1976, p.61) “estamos na idade dos objetos parciais,
dos tijolos e dos restos. Não acreditamos mais numa totalidade original nem numa
totalidade de destinação”. Nesse sentido, soberano agora é o consumidor, não mais o
soldado ou o trabalhador.
Segundo Bauman os consumidores pós-modernos são “coletores de
sensações e impressões” caleidoscópicas que se deleitam na busca de novas
experiências, desmantelando hábitos ossificados. Nesse caso, o simulacro e não a
realidade se impõe. Assim, os colecionadores de sensações se satisfazem com as

12
simulações, o ciberespaço, o bate-papo, o sexo, o mundo virtual. Como conseqüência
disso, o consumo abundante passa a ser a marca do sucesso e a estrada que conduz
diretamente ao aplauso público e à fama. Por via de regra, aqueles que não podem
consumir na volúpia que a publicidade impõe são como um refugo desse jogo de
sedução e consumo pós-moderno.
O agente contemporâneo está, por definição, deslocado e em deslocamento.
Centrado em seu núcleo egóico, que ele busca continuamente reconstituir, não
encontra base externa permanente que lhe dê uma segurança ontológica consistente.
A miríade de significantes que o atropelam continuamente o faz recolher a si mesmo, e
a privatização de seus problemas parece-lhe algo natural e inevitável. Diante da
fluidez contemporânea e das pertenças múltiplas e contrastantes o modelo ideal de
identidade seria uma “antiidentidade” ou uma identidade bricolage (espécie de mistura,
de celebração do cruzamento, do híbrido, do fragmento e do episódico). Oliveira
(2004) ironiza a situação pós-moderna quando dispara: Quereis identidade?
Oferecemos várias possibilidades em cores, diferentes tamanhos e para todos os
bolsos. Identikits são oferecidos “sob medida”, atendendo a todas as diferentes
individualidades, isto é, “personalizados”. E ainda resta opção: se não gostar de
nenhum desses, pode se fazer uma bricolage self-service, onde o cliente escolhe duas
características de cada um e ele próprio compõe seu identikit (p.133).
Na dinâmica do descarte, identidades rígidas são desvantajosas, quando não,
anátemas, pois o mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de
produtos disponíveis projetados para imediata obsolescência. Desse modo, as
identidades podem ser adotadas e descartadas como uma troca de roupa, ao mesmo
tempo em que elas devem parecer suficientemente estáveis para terem a mínima
possibilidade de serem reconhecidas.

BIBILIOGRAFIA
BARBO, Daniel. O triunfo do falo – homoerotismo, dominação, ética e política na
Atenas clássica. Rio de Janeiro: E-papers, 2008.

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kühner. 4ª.ed. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.

MUCHAIL, Salma Tannus. Foucault, simplesmente: textos reunidos. São Paulo:


Edições Loyola, 2004.

OLIVEIRA, Pedro Paulo de. A construção social da masculinidade. Belo Horizonte:


Editora UFMG, Rio de Janeiro: IUPERG, 2004, p.19-82.

RUIZ, Castor Bartolomé. Os desencontros e paradoxos de logos e sofia: um conflito


antropo-lógico ou gineo-simbólico? In: TIBURI, Márica; MENEZES, Magali de;

13
EGGERT, Edla. As mulheres e afilosofia. Editora Unisinos: São Leopoldo, RS Brasil,
2002.

SENNETT, Richard. Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental. Trad.


Marcos Aarão Reis. Rio de Janeiro: Record, 1997.
WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual.
In: Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Org. e Trad. Tomaz
Tadeu da Silva.
4ª. Ed. Petrópolis: Vozes, 2005, p.7-72.

14

Você também pode gostar