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Resumo
Toda a produção artística de Francis Bacon traz a distorção da imagem corporal como característica prin-
cipal, destacando-a quase sempre em primeiro plano. Este artigo tem como objetivo apresentar reflexões
sobre as possíveis expressões do mundo interno do artista retratado em suas telas, além de articular suas
distorções nas imagens e figuras, marca constante de sua obra, com conceitos da Psicologia Analítica Cor-
poral. Foram escolhidos, para efeito de análise com base na teoria junguiana, os quadros do pintor sobre
as séries: “Papa”, “Grito” e “Autorretrato”.
Palavras-chave: Francis Bacon; Complexo paterno negativo; Imagem corporal; Identidade.
Abstract
All of Francis Bacon artistic production carries the distortion of body image as the main feature, almost
always highlighting it in the foreground. This article aims to present reflections on possible expressions of
the artist’s inner world portrayed on his canvases, in addition to articulate his distortions in images and
figures, constant mark of his work, with Body Analytical Psychology. For the purpose of analysis with the
Jungian theory , the painter’s works from “Pope”, “Scream” and “Self-portrait” series were chosen.
Keywords: Francis Bacon; Negative paternal complex; Corporal image; Identity.
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Introdução
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Francis Bacon
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fossem burgueses. Me inclino a dizer que me equivoquei de família. Não creio que me
fique bem”.
Francis Bacon foi cuidado, desde a sua tenra infância, por Jessie Lightfoot, enfermeira
da família, principalmente em função de sua saúde delicada que sempre apresentou –
uma alergia crônica a cães e cavalos aliada a uma asma que o acompanhou a vida toda.
Bacon teve, muitas vezes, que tomar morfina para aliviar seus sofrimentos durante os
ataques alérgicos e asmáticos. Um vínculo forte desenvolveu-se, então, entre esta babá
e Bacon, a ponto de Jessie acompanhá-lo durante toda a sua vida adulta, nas viagens e
mudanças constantes. Ficou junto dele até início de 1951, quando faleceu em Londres.
A asma transformou Bacon em uma criança frágil e confinada, passando sua infância
isolado do convívio com outras crianças e sem vida social, o que o deixou com muitos
temores. Assim, o pintor não recebeu uma educação completa e normal como as outras
crianças, permanecendo um curto período na escola (não mais que um ano). Dessa for-
ma, teve uma educação muito limitada.
Eu me lembro da minha timidez diante de todos. Não me sentia bem comigo mesmo. As
pessoas me assustavam. Eu sentia que não era normal. O fato de que eu era asmático me
impediu de ir à escola; passei todo o meu tempo com minha família e com o sacerdote que
me educou. Assim, eu não tinha amigos e era muito solitário. Lembro-me de chorar muito.
Quando penso em minha infância, vejo algo muito pesado, muito frio, como um bloco de
gelo. Creio que eu era infeliz!”, disse em sua última entrevista para Richard Cork em 1991,
talvez uma das mais profundas de sua vida. (BATALLA, 2018, s/p)
Aliado a esses fatos, soma-se o momento histórico da Europa, aonde habitava. Quan-
do a 1ª Guerra Mundial irrompeu em 1914, Francis Bacon (então com quase cinco anos
de idade), foi para a Inglaterra com a família, onde seu pai é designado para um depar-
tamento do Ministério da Guerra, realizando serviços burocráticos. Bacon viveu até o
final do conflito em Londres, em meio à violência desencadeada pela guerra. Voltando
para a Irlanda, foi viver uns tempos com sua avó, em plena efervescência política do mo-
vimento Sinn Fein – movimento político da Irlanda do Norte, fundado em 1905, contra
a presença britânica nesse país (FRANCIS-BACON, s/d; SYLVESTER, 2007, p.81). Desse
modo, entra em contato com uma realidade permeada de uma violência militar, desde
muito pequeno. Muitas foram as casas em que Francis Bacon morou no pós-guerra, en-
tre a Irlanda e a Inglaterra.
Na época pós-Primeira Guerra, o futuro pintor apreciava vestir as roupas de sua mãe
e começou a se sentir sexualmente atraído, mesmo sem compreendê-lo, por seu próprio
pai. Seus primeiros amores foram os jovens irlandeses que cuidavam dos cavalos, nas
horas em que os estábulos ingressavam nas sombras do esquecimento.
Quando eu tinha uns 15 anos, deitava-me com os rapazes que trabalhavam para ele (o pai).
Ele era um treinador de corridas, um fracassado. Essa é definitivamente a razão pela qual
eu nunca pintei cavalos. Creio que é um animal muito bonito, mas as lembranças da minha
infância são bastante negativas, e o cavalo me devolve uma angústia distante. E, além disso,
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Esta considerada má conduta, para um ex-militar como o seu pai, resultou na sua
expulsão de casa aos 16 anos, após o episódio em que foi encontrado vestindo roupas
íntimas da mãe – nem seu pai e nem sua mãe aceitaram a conduta homossexual do fi-
lho, ficando furiosos com a descoberta. Por esse e outros motivos, Francis Bacon sempre
teve um relacionamento muito difícil com os pais:
Bem, minha relação com meu pai e com minha mãe nunca foi boa. Nós nunca nos entende-
mos. Não posso dizer que fui feliz na minha vida em família [...] entre mim e meu pai, não
havia qualquer ligação. Ele não gostava de mim e não gostava da ideia de que eu quisesse
ser artista [...] eles ficaram horrorizados .... (SYLVESTER, 2007, p.188)
Dessa forma, após a expulsão, foi para Londres em 1925 viver, inicialmente, com uma
renda de três libras esterlinas semanais, enviadas por sua mãe. Em 1927, o pai o envia
a Berlim, “...sob a supervisão ineficaz de um tio, numa tentativa de salvar o filho de um
modo libertino de vida e devasso” (FICACCI, 2007, p.88). Dois meses depois, Bacon che-
ga sozinho em Paris, aonde começa a fazer trabalhos de decoração de interiores.
Visitando uma exposição de Picasso na capital francesa, Bacon ficou profundamente
comovido com as telas apresentadas ao público. Começa, então, a desenhar e a pintar,
enquanto frequentava as Academias Livres de Paris. Francis Bacon nunca frequentou um
curso sistemático de arte. Entre 1929 e 1932, pintou em estreita colaboração com Roy
de Maistre (pintor pós-cubista australiano), que lhe forneceu a orientação e introdução
nos estudos artísticos e técnicas da pintura. Pode-se considerar que Bacon foi, nestas
circunstâncias, um autodidata. (FICACCI, 2007, p.90; SYLVESTER, 2007, p.68).
Em 1928, instalou-se em Londres, juntamente com a sua babá de infância Jessie Li-
ghtfoot, que passou a cuidar do pintor em sua nova vida. De acordo com Ficacci (2007,
p.90), entre 1930 e 1937 Bacon participou de algumas exposições coletivas e individu-
ais, que não resultaram no esperado – foram consideradas fracassadas e irrelevantes
pelo artista. Com o insucesso dessas e profundamente descontente e decepcionado, foi
deixando a pintura de lado, destruindo vários de seus trabalhos, em acessos de grande
pessimismo com sua própria produção artística.
Em 1939, no início da 2ª Guerra Mundial, foi dispensado do serviço militar pelas For-
ças Armadas Inglesas, em razão da asma crônica de que era portador. “Fui posto a ser-
viço da reserva da Força Passiva, mas minha asma é tão forte, que mesmo ali não fui
aceito. A asma, no meu caso, é de família, sempre fui asmático”, relata Sylvester (2007,
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p.189). Em 1942, por ocasião de seu regresso à Londres encontra-se com Lucien Freud,
iniciando uma amizade íntima que perduraria muitos anos (FRESNEDA, 2018).
Entre 1943 e 1944, começa de fato a dedicar-se à pintura, instalado num estúdio no
bairro de South Kensighton: “...considerava esta vez como o verdadeiro começo de sua
arte, e começou a proteger os seus trabalhos contra a destruição causada pelo descon-
tentamento dos anos anteriores”. (FICACCI, 2007, p.91). A partir de 1945, Francis Bacon
produz uma obra farta, até o final de sua vida, realizando inúmeras participações em
exposições, tanto coletivas (bienais) quanto individuais, não só em galerias de arte, bem
como em grandes museus de vários países.
As relações afetivo-amorosas de Francis Bacon foram inúmeras, sendo que algumas
foram mais conturbadas do que outras. Estabeleceu relacionamentos relativamente lon-
gos com alguns de seus parceiros durante a vida, com grandes repercussões não só na
sua produção artística, como também na projeção da sua carreira. No início da década
de 1930, Bacon conheceu o empresário Eric Hall (1890-1959), 19 anos mais velho que
o artista, o qual foi seu amante e patrocinador, entre 1932 e 1949. A influência que Eric
Hall exerceu sobre ele foi muito grande, não só em termos afetivos, mas principalmente
em relação ao seu trabalho como pintor, alavancando sua carreira de sucesso. (FRANCIS-
-BACON.COM, s/d; SILVESTER, 2007, p.68).
A segunda relação amorosa de Francis Bacon foi com Peter Lacy (1916-1962), um ex-
-piloto de combate na batalha da Grã-Bretanha. Bacon conheceu-o por volta de 1952,
numa viagem ao Tanger, Marrocos – apaixonando-se profundamente por ele, estabe-
leceram uma longa e tempestuosa relação, até alguns meses antes da morte de Lacy,
no início de 1962 (FRANCIS-BACON, s/d; FICACCI, 2007, p.92). Este parceiro foi tema
de várias pinturas de Bacon – ele estimulou o artista a criar imagens homoeróticas de
lutadores, inspiradas nas fotografias produzidas por Eadweard Muybridge (1830-1904).
No início de 1963, Bacon encontrou um novo amor, outra relação apaixonada e tem-
pestuosa, revelando-se trágica também – outro amor que veria morrer (FICACCI, 2007).
George Dyer (1934-1971), 25 anos mais novo que Bacon, “...viria a se tornar uma fonte
favorita de inspiração para ele”. (p.93). Mesmo após o término desse relacionamento
profundamente intenso, continuou a retratar o amigo e amante, dedicando-lhe muitas
pinturas, especialmente após sua morte.
Outra relação afetiva importante na vida do pintor foi John Edwards (1949-2003):
Bacon contava 65 anos de idade quando conheceu o rapaz, em 1974, com seus 26 anos.
Ficacci (2007) destaca que Francis Bacon, então, “...começa uma relação paternal íntima
com John Edwards, que retratou em numerosos quadros, e que mais tarde se tornou seu
herdeiro” (p.94). Essa relação perdurou até o final de sua vida – o artista considerava o
rapaz como o único amigo verdadeiro que havia tido.
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O corpo e a psique
Leloup (2015), em seus escritos, ressalta o quanto é importante o ser humano escutar
o seu corpo, pois ele conta muitas histórias, com múltiplos sentidos a se descobrir. Este
autor acrescenta, ainda, que as várias partes desse corpo também são animadas com os
significados dos acontecimentos, das doenças ou do prazer. O corpo é a memória mais
arcaica do homem, sendo que nele nada é esquecido – tudo fica inscrito como experiên-
cia e vivência, sendo que neste corpo está a memória de sua existência como ser. Cada
acontecimento vivido, particularmente na primeira infância e depois, pela vida adulta
afora, deixa no corpo sua marca profunda.
Farah (2008), ao mencionar Jung, comenta que este também se referiu aos processos
corporais em sua extensa obra, mencionando-os como componentes intrinsicamente
interligados aos dinamismos psíquicos. Isto pode ser visto no conjunto de textos referen-
tes às “Conferências de Tavistock”, dadas em Londres em 1935 (JUNG, 1996), por exem-
plo. Neles, há uma espécie de introdução didaticamente organizada aos pensamentos
de Jung, acerca das conexões e da integração fisiopsíquica, ressaltando-se a importância
da relação entre o consciente e o inconsciente, do ego e a sua relação com a consciência,
além dos complexos e seus núcleos. Deixa claro, ainda, que há um sentido mais agudo da
totalidade do físico e do psíquico e de sua indissolubilidade.
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Aliado a esses conceitos de Jung, Farah (2008, p.56), ressalta a importância do con-
ceito de “imagem corporal”. Dentre os vários autores pesquisados, esta autora destacou
Paul Schilder, citando seu livro “A imagem do corpo – as energias construtivas da psique”,
de 1981, no qual ele traz a definição de imagem corporal como sendo uma representa-
ção internalizada do próprio corpo de uma pessoa. A construção desta representação
envolve tanto aspectos neurofisiológicos, quanto psicoemocionais. Farah (2008) pontua,
também, que essa representação interna se constitui, não só como um dos principais de-
terminantes da relação do indivíduo com o próprio corpo, mas também de seu contato
com o ambiente em que está inserido.
O corpo físico, então, tal como percebido pelo indivíduo, se torna o instrumento pelo
qual a pessoa pode estabelecer contato – seja consigo própria, seja com seu ambiente,
ou com os demais indivíduos ao seu redor – delineando todas as relações que vão per-
mear a sua vida, nas mais diversas situações e acontecimentos em que se verá envolvida.
“A forma, bem como especialmente a qualidade do contato estabelecido, podem ser
consideradas fatores extremamente atuantes na contínua reconstrução da imagem que
o indivíduo faz de si mesmo” (FARAH, 2008, p.59).
Atrelado ao conceito de imagem corporal encontra-se, ainda, a importância da re-
lação desta com o conceito de identidade. Ao falar deste tópico, Farah cita Alexander
Lowen (1910-2008), psicoterapeuta de formação reichiana, que entendia a noção de
identidade de uma pessoa – “quem eu sou” – como provinda basicamente da sensação
de contato que ela seria capaz de estabelecer com o próprio corpo: “Para saber quem
ele é, o indivíduo precisa ter consciência daquilo que sente. Deve conhecer a expressão
do seu rosto, a sua postura e a forma de movimentar-se” (FARAH, 2008, p.61).
A autora ainda ressalta que, quanto menor é a possibilidade de um contato efetivo e
consciente com seu próprio sentir (em nível corporal), tanto maior é a possibilidade de
o indivíduo alienar-se de si mesmo e do meio ao seu redor (FARAH, 2008, p.61). Desta
forma, o indivíduo pode refugiar-se em imagens cada vez mais desvinculadas do conta-
to com seu sentir mais genuíno, defendendo-se ao evitar o confronto com conteúdos
emocionais conflitivos. Além disso, com esta evitação procura distanciar-se de si mesmo
e do meio em que vive, podendo entrar em um processo de certa alienação (ou crise de
identidade).
No tocante às doenças físicas, Ramos (2006) ressalta que para Jung, psique e maté-
ria são aspectos diferentes de uma única e mesma coisa, uma vez que psique e corpo
formam um par de opostos. Dessa forma, toda e qualquer doença apresenta uma ex-
pressão no corpo e na psique simultaneamente, acrescentando que todas as emoções e
fenômenos psíquicos têm um correlato fisiológico.
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tegrar o material reprimido. Assim, a doença orgânica é uma expressão simbólica que visa
compensar uma atitude unilateral da consciência. A doença orgânica é uma reação do or-
ganismo, uma compensação, com a finalidade de levar o indivíduo a integrar o reprimido,
religar o ego ao seu eixo com o Self (RAMOS, 2006, p.73).
Esta autora faz, ainda, uma correlação entre sintomas somáticos ou psíquicos e os
complexos. Explica que tais sintomas têm origem no núcleo afetivo de um complexo e
que, quando este é constelado, provoca uma alteração tanto em nível fisiológico, quanto
psicológico, sincronicamente, quer o indivíduo tenha percepção ou não dessas altera-
ções. Menciona, também, a importância da sinestesia, enquanto combinação de senti-
dos a sensações distintas, relacionada com a condição neurológica de quem combina,
espontânea e naturalmente, sensações a imagens diversas.
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Sobre o pai
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ainda, que é o arquétipo materno que vai ser inicialmente ativado na psique da criança,
mas na medida em que a consciência desta vai se desenvolvendo, a figura do pai entra
em cena e se apresenta, ganha destaque e auxilia na ativação do arquétipo paterno. A
relação do pai pessoal (ou outras figuras paternas) com o filho é intermediada pelo ar-
quétipo paterno – assim, Jung aponta o arquétipo do pai como determinante da relação
interpessoal.
Esse aspecto também é mencionado por Covelo (2011), ao dizer que o arquétipo pa-
terno apresenta um caráter mediador da relação pessoal do indivíduo com a figura que
lhe é apresentada como paterna – seja seu pai biológico ou algum outro representante
desse arquétipo. Ressalta, também, que o arquétipo paterno está ligado à luta pela vida,
ao existir no mundo, ao abandono do universo materno protegido e aos perigos do mun-
do fora do útero da mãe.
Covelo (2011) destaca que o arquétipo paterno pode, também, comportar conteúdos
de polaridades opostas, numa dinâmica de “luz” e “sombra”: ele pode ser fortaleza e
aquecer, ou pode queimar e devastar, ao representar uma rigidez quanto a forma de
pensar, de sentir e de se comportar. A autora ainda discute as inúmeras possiblidades
que o arquétipo paterno pode comportar enquanto forma: ele pode abarcar tanto os
pais facilitadores, que favorecem o desenvolvimento na medida em que intermedeiam a
relação da criança com o mundo, quanto os pais devoradores, que impedem o desenvol-
vimento dos filhos. E aponta que, no mesmo pai, convivem ambos os aspectos.
Numa amplificação das imagens arquetípicas (uma das formas de expressão dos ar-
quétipos), Covelo (2011) e Faria (2006) discorrem, por meio de personagens mitológi-
cos, as diferentes imagens de paternidade presentes na psique coletiva. E estas, muitas
vezes, são ativadas na psique individual do pai, a partir da relação deste com seus filhos.
Figuras como Urano, Cronos, Zeus, Céfiso e Dédalo, por exemplo, apresentam mode-
los paternos que manifestam não apenas o caráter de força do arquétipo paterno, mas
também sua disfuncionalidade como conduta parental, a sua insegurança e fragilidade,
as quais muitas vezes permanecem na sombra. A expressão de um arquétipo pode ser
saudável ou não, e essa expressão dará a forma a ele. Assim, a maneira como o arqué-
tipo paterno se expressa, por meio das atitudes por exemplo, pode gerar o complexo
paterno.
Jung (2000, 1996) se debruçou sobre o conceito de complexo em diferentes momen-
tos de sua obra, pontuando que este é um aglomerado de associações, com acentuado
caráter afetivo. O complexo traz imagens do inconsciente pessoal carregadas de emo-
ção, agrupadas em torno de um núcleo arquetípico comum às situações vividas e não
compatível com as atitudes habituais apresentadas pela consciência. Jung (2000) ainda
afirmou que, quando um complexo se constela (entra em ação), a consciência encontra-
-se num estado de certa perturbação.
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tanto a ausência física quanto psicológica do pai ou aquele pai que, mesmo fisicamente
presente, não se comporte de maneira aceitável – como exemplo, aqueles que se mos-
tram autoritários, os que são abusivos e os que se tornam tiranos, além dos alcoólatras,
invejosos e esmagadores de talentos do filho, etc.
A essa falta paterna, encontra-se a correspondência do vazio de uma estruturação
interna de sustentação; o filho não se sente estruturado em seu próprio interior de uma
forma adequada. Ele pode apresentar-se confuso em suas ideias, com dificuldades na
fixação de objetivos e na realização de escolhas, além de não conseguir reconhecer ade-
quadamente o que é bom para si, identificando suas necessidades: a organização das
suas percepções fica, então, prejudicada. O filho não se sente seguro de coisa alguma. A
desordem interna do filho é, portanto, uma marca do complexo paterno negativo.
Para Corneau (1991), a falta de atenção do pai traz, ainda, como consequência para
o filho, a impossibilidade de o menino identificar-se com ele, para estabelecer a própria
identidade masculina. Assim, uma das principais consequências da ausência do pai, é
que os filhos são deixados sem corpo. Se o corpo é a base de toda identidade, é nele que
uma identidade deve necessariamente começar. Assim, pode-se dizer que a identidade
do filho está ancorada no corpo do pai.
Uma paternagem inadequada traz consigo, além de atitudes e comportamentos pa-
ternos considerados inaceitáveis, a imposição de uma grande frustração presente nos
filhos. Corneau (1991) cita, como exemplo desses comportamentos, a ausência paterna
prolongada (seja qual for o motivo existente); a falta de resposta do pai à necessidade de
afeto e dedicação do filho; ameaças de abandono, com o objetivo de punir ou disciplinar
a criança; indução de culpa no filho; agarrar-se ao filho (como comumente o alcoólatra
faz); bater regular e fisicamente na criança e fazer da criança o bode expiatório da pato-
logia familiar.
Em relação ao filho, Corneau (1991) menciona as seguintes consequências dessas
posturas paternas inadequadas: falta de confiança em si mesmo; timidez excessiva e
dificuldade de adaptação; maturidade prejudicada; dependência estendida; angústia;
depressão; fobias; obsessões; compulsões; tendência a reprimir a raiva. Acrescenta, ain-
da, uma possível confusão quanto a sua identidade sexual (ou mesmo sofrer bloqueios
relativos à sexualidade); falta de amor próprio, além de demonstrar, muitas vezes, difi-
culdades em assumir valores morais.
Kast (1997), ao se debruçar sobre a polaridade negativa do complexo paterno, acres-
centou outras perspectivas a este. Um dos aspectos que a autora considera essencial, es-
pecialmente na constelação desse complexo, é o fato de que as leis do pai prevaleçam e,
uma vez que esse pai é experienciado como a medida de todas as coisas, o filho pode de-
senvolver um sentimento de nulidade, ao não conseguir corresponder às expectativas e
exigências desse pai. Aliado a esse sentimento, também se juntam a culpa e a vergonha,
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promovendo um mutismo que se associa à ânsia por uma vingança e uma destruição.
Nota-se, então, uma relação de dominação–sujeição entre pai e filho, que não comporta
o “nós” dentro dessa experiência vivenciada na relação. Ao não conseguir vislumbrar um
caminho próprio, diferente do escolhido pelo pai, o filho apresentará grandes dificulda-
des com a adaptação que lhe é exigida, e esta nunca será suficientemente boa.
Reflexões
FB: [...] Durante a Guerra de 1914 fui levado para Londres, porque meu pai foi para um
departamento do Ministério da Guerra; foi quando passei a ter consciência daquilo que se
costuma chamar de possibilidade de perigo, numa idade realmente muito jovem. Voltei,
então, para a Irlanda e me criei durante o movimento Sinn Fein, morando com minha avó;
nossa casa era cercada por sacos de areia e fossos na estrada, enquanto os atiradores aguar-
davam emboscados nas margens. E então, com dezesseis ou dezessete anos fui para Berlim,
e vi aquela Berlim de 1927 e 1928, que era uma cidade ampla e aberta, e de certo modo
muito violenta. Talvez violenta para mim, que estava chegando da Irlanda, onde a violência
era no sentido militar e não no sentido emocional, como no caso de Berlim. E depois fui para
Paris, e então eu vivi todos aqueles anos conturbados que precederam a guerra, iniciada em
1939. Desse modo, posso dizer que sempre fui acostumado a viver no meio da violência...
que pode ou não ter tido um efeito sobre mim, é muito provável que tenha tido. Mas essa
violência em minha vida, a violência no meio da qual vivi, acho que é diferente da violência
em pintura. Quando se fala em violência em pintura, ela nada tem a ver com a violência da
guerra. Ela tem a ver é com a maneira como reproduzimos a violência da própria realidade.
(p.81).
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Ao lado dessa realidade permeada pela violência, Francis Bacon também deixava cla-
ro a grande influência que Pablo Picasso exerceu, tanto em sua decisão de se tornar
um pintor, quanto na produção de sua obra em si. Bacon adorava o estilo inconfundível
do cubista, que separava e fragmentava em diferentes ângulos, as figuras pintadas nas
telas. “Enquanto estava em Paris, vi na Galeria Rosenberg uma exposição de Picasso e
foi naquele momento que pensei: um dia eu também serei pintor” (SYLVESTER, 2007,
p.188).
Além do conturbado panorama social no qual estava inserida a sua família, Francis
Bacon relata não ter tido uma infância e adolescência muito felizes. A relação estabe-
lecida com as figuras parentais parece ter sido, desde muito cedo, um tanto distante,
mantendo pouco contato tanto com a mãe, quanto com o pai – estava sempre aos cui-
dados da babá, especialmente nas constantes crises de alergia e asma: “As crianças eram
mantidas sempre na parte detrás das casas, e só encontravam seus pais por meia hora
depois do chá, ou ocasionalmente para o almoço de domingo” (LANDERS, 2011, p.1).
Desta forma, a relação conflituosa que foi se estabelecendo entre Bacon e as figuras
parentais, à medida em que crescia, especialmente no que se referia à ligação com seu
pai, mostrou variados reflexos durante a sua vida adulta. Isto pode ser percebido em
algumas colocações feitas pelo pintor, nas várias entrevistas que concedeu.
FB: O fato é que nunca me dei bem com meu pai e nem com minha mãe. Eles não queriam
que eu fosse pintor; simplesmente achavam que eu não passava de um vagabundo, princi-
palmente minha mãe. Foi só quando ela começou a sentir que eu estava ganhando dinheiro
– e isso aconteceu já tarde em sua vida, pouco antes de morrer – é que voltamos a nos falar,
e ela mudou de atitude. (SYLVESTER, 2207, p.71)
FB: E eu detestava minha mãe, e detestava acima de tudo meu pai. Ele não sentia nada por
mim, como se eu não existisse. Só o vi chorar por ocasião da morte de meu irmão, que tinha
14 anos. Nunca por mim. (MAUBERT, 2010, p.58)
Com isto, pode-se inferir o quanto foi desastroso para o menino e o jovem Bacon, seu
convívio familiar com as figuras parentais. Alie-se, ainda, as constantes mudanças – de
casas, de cidades e de países – situação na qual provavelmente não sentia uma confiabi-
lidade em relação ao ambiente em que estava inserido, dado à imprevisibilidade do mes-
mo. Isto é algo muito importante para o desenvolvimento psíquico de uma criança, já
que as constantes mudanças não foram, de certa forma, propícias para que se efetuasse
um “enraizamento” nesses locais, fator necessário para a existência dessa confiabilida-
de. Isso refletiu na vida adulta do pintor, expressando-se nas suas constantes mudanças
de casas e estúdios e nas longas viagens para outras cidades e países.
Para os estudiosos do desenvolvimento psíquico infantil, as relações primárias esta-
belecidas pela criança são extremamente importantes em vários sentidos, ressaltando-
-se o da formação da sua identidade. Nesse contexto, Byington (2008) acrescenta que
as figuras parentais, tanto do complexo materno quanto do complexo paterno incluem,
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além dos pais, todas as figuras dos cuidadores relevantes para a criança, como tios, avôs,
padrinhos, amigos da família, babás, etc. Ressalta, ainda, tanto a importância das rela-
ções estabelecidas entre os pais, bem como as reações destes frente à criança. Além
disso, também são importantes as reações da criança frente aos vínculos que foram se
estabelecendo com seus pais e/ou cuidadores – vinculações que contribuem significati-
vamente para a formação da sua identidade.
Nesse sentido, pode-se supor que tanto as reações dos pais de Bacon em relação a
ele, quanto as reações deste frente às figuras parentais, principalmente à figura paterna,
foram cruciais na formação da sua identidade e de muitas escolhas feitas, especialmente
já na vida adulta. Observa-se, então, que uma parte significativa da configuração teóri-
ca descrita acerca do complexo paterno negativo, pode ser percebida no contexto dos
vínculos construídos entre Bacon e seu pai – e na interação entre os dois, nas diversas
situações dentro do âmbito familiar. Um pai presente, porém, ausente e exercendo uma
paternagem um tanto disfuncional.
De acordo com Ficacci (2007) e outros autores, o pai de Francis Bacon era protes-
tante, de formação rígida, austera e moralista. Mas também era autoritário, agressivo,
vingativo, não tinha amigos e castigava constantemente o menino Francis, por achá-lo
muito distante daquilo que ele esperava da criança. Seu afeto pelo filho se expressava
pela desaprovação e punição, por este não estar correspondendo às expectativas que
este pai alimentava em relação ao filho. Atuando nessa polaridade negativa do complexo
paterno, talvez o pai de Bacon sentisse a necessidade de manter o filho rebaixado em
relação a si, humilhando-o e o castigando-o com certa frequência.
FB: Meu pai não me amou, isso é certo. Creio que me odiava. Não queria gastar dinheiro
comigo. Sempre estava buscando uma desculpa para que seus empregados me batessem.
Era um homem difícil, muito vingativo, uma pessoa emocionalmente perturbada. (BATALLA,
2018, s/p)
Assim, Bacon criou grande aversão à figura do pai. Foi desenvolvendo uma timidez
excessiva, o que lhe trouxe dificuldades de adaptação ao ambiente social e familiar, com
falta de confiança em si e prejuízos em relação à sua maturidade. A insegurança foi outra
consequência visível na vida do artista. Além disso, demostrava certa ambiguidade em
assumir valores morais.
FB: Eu me lembro da minha timidez diante de todos. Não me sentia bem comigo mesmo. As
pessoas me assustavam. Eu sentia que não era normal. [...]. Assim, eu não tinha amigos e
era muito solitário. Lembro-me de chorar muito. (BATALLA, 2018, s/p)
FB: Acho que o lado analítico de meu cérebro, em comparação com o dos outros, começou
a desenvolver-se tarde – só quando eu estava com 27 ou 28 anos. Quando eu era muito
jovem, você sabe, eu era incrivelmente tímido, e depois comecei a achar ridículo ser tími-
do, procurando então deliberadamente controlar isso, porque acho ridículo pessoas velhas
tímidas. E quando andava pelos trinta anos, aos poucos fui conseguindo me abrir. Mas a
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maioria das pessoas faz isso mais cedo. Por isso, sinto que desperdicei muitos anos de mi-
nha vida. (SYLVESTER, 2007, p.71)
FB: Bom, sempre consegui mais ou menos manejar as coisas para que na hora elas me sal-
vassem. Acho que sou uma dessas pessoas que tem o dom de saber safar-se. Mesmo que
seja o caso de roubar ou qualquer coisa parecida, eu não tenho qualquer escrúpulo com
relação a isso. Imagino que seja uma atitude extremamente egocêntrica. Seria muito chato
ser apanhado e ir parar na cadeia, mas não tenho nada contra roubar. Agora que estou ga-
nhando dinheiro seria uma espécie de luxo idiota sair por aí roubando. Mas no tempo em
que não tinha dinheiro, acho que muitas vezes peguei aquilo que estava fácil de conseguir.
(SYLVESTER, 2007, p.124)
Ela foi um pilar emocional vital para o artista emergente, e uma parceira leal no crime, que
viveu com ele a maior parte do tempo até a morte dela em 1951. [...] . Ela tolerava e estava
imersa no estilo de vida extravagante de Bacon. [...] Ele ficou arrasado com a perda dela, e
isso desencadeou nele um longo período de instabilidade emocional.
FB: (...) Mas sempre vi como um fracasso essas pinturas inspiradas em Velázquez, um de
meus primeiros temas. Fiquei obcecado por esse quadro, e comprava fotografias e mais
fotografias dele. Acho que ele foi mesmo o meu primeiro tema.
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DS: E isso começou no final dos anos de 1940. Você acha que seu interesse aqui tinha algu-
ma coisa a ver com o que você sentia por seu pai?
FB: Acho que não estou entendendo o que você quer dizer.
FB: Bem, na verdade nunca havia pensado nisso desse jeito, mas eu não sei dizer.... É difícil
dizer o que faz surgir uma obsessão. O fato é que eu nunca me dei bem com o meu pai.
(p.71)
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outro. A verdade é que aquilo que não conseguiu compreender e elaborar, e as reper-
cussões de sua relação tempestuosa e negativa com seu pai, transpareceram repetida-
mente nas figuras distorcidas e disformes desses papas retratados em cada tela. E essas
questões ficaram, em boa medida, em aberto e o acompanharam vida afora, em suas
variadas expressões do cotidiano.
FB: [...] acho que este é um dos grandes retratos que já se fez no mundo, e eu acabei obce-
cado por ele. Compro um livro atrás do outro com reproduções do papa de Velázquez. Essa
obsessão toca todos os tipos de sentimentos e de áreas – eu diria – da minha imaginação.
(SILVESTER, 2007, p.24).
Se, por um lado, a aversão ao pai predominava, por outro Bacon também reconhece
que sentia certa atração física pela figura masculina paterna, o que o desconcertava já
muito jovem, por não compreender tal sentimento. Assim, a questão da exploração da
sexualidade do artista também esteve ligada à presença de um pai ausente, que nunca
aceitou tal escolha.
FB: Bom, eu também não desgostava dele, e sentia uma atração sexual por ele quando eu
era jovem. Quando eu percebi isso pela primeira vez, nem sabia direito que o que sentia era
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sexual. Só depois, com os empregados da estrebaria com que eu tinha meus casos, é que
compreendi que se tratava de uma coisa sexual em relação ao meu pai. (SYLVESTER, 2007,
p.71-72).
FB: Sabe como é, era como uma deficiência. Eu não podia fazer absolutamente nada quanto
a isso... (MAUBERT, 2010, p.60)
Nesse sentido, Francis Bacon teve três relacionamentos amorosos importantes e mui-
to significativos, que influenciaram diretamente tanto a sua vida, quanto a sua produção
artística. “Minha vida sentimental é que interferia na minha pintura”, responde Bacon a
Sylvester (2007, p.159), falando de seus amores e sua obra. Alguns pontos observados
são expressões daquilo que repercutiu em Bacon na vida adulta – dois desses relaciona-
mentos mais longevos foram tempestuosos e muito conturbados. Foram relações mais
destrutivas e abusivas do que benéficas para o pintor e, nas quais, a situação do pai
ausente delineou-se com contornos visíveis, tanto nas telas, quanto na relação com seus
amantes.
Em 1952, aos 43 anos, Francis Bacon conhece Peter Lacy, 36 anos, iniciando uma re-
lação amorosa na qual a violência vai predominar, entre os dois amantes, na maior parte
do tempo. Observa-se, de acordo com alguns relatos contundentes acerca desse relacio-
namento, uma reprodução do comportamento agressivo e violento do pai do pintor, nas
atitudes e modo de ser de seu companheiro. Lucien Freud foi um dos vários amigos de
Bacon que presenciou cenas nas quais Lacy espancava o artista. “Freud compreendeu,
então, que a violência entre eles era algo sexual e que Bacon queria ser espancado”
(BATALLA, 2018, s/p). Foi durante esses anos em que perdurou tal agressividade cons-
tante, que Francis Bacon produziu o maior número de quadros da série “Papas”, da série
“Gritos”, e dos nús com figuras homoeróticas, muitas vezes, retratando os dois amantes.
No início de 1963, Francis Bacon contava 54 anos quando conheceu George Dyer,
29 anos – jovem pobre dos bairros do East End; um pequeno criminoso bonito, alto
e atlético, mas que abusava do álcool e das drogas. Ao contrário da anterior, esta foi
uma relação em que a paixão que Bacon sentia pelo rapaz ficou mais em destaque. Foi
uma relação mais abusiva, pois Dyer, sem dinheiro próprio, aproveitou todo o sucesso
que Bacon estava conquistando. Sendo o protagonista de inúmeros quadros famosos,
desfrutava de tudo o que o pintor recebia de reconhecimento internacional, no mundo
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das artes (FRANCIS-BACON, s/d; BATALLA, 2018, s/p; FICACCI, 2007, p.93-94; MAUBERT,
2010, p. 89-91). Bacon pintou obsessivamente Dyer em inúmeros quadros, especialmen-
te nos trípticos (figura 5) que fez após a morte trágica do rapaz – coloca neles toda a sua
dor e sofrimento pela perda desse amor. Batalla (2018, s/p) ainda comenta que “a rela-
ção entre eles era plena de extremos, com uma gama completa de paixões e emoções,
que brilhavam através da rica textura da superfície de seus quadros”. Pode-se dizer que
a presença de Dyer na vida de Bacon, mudou o curso da vida do artista até o seu final.
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Quando Eric Hall, parceiro de longo prazo de Bacon, entrou em sua vida por volta de 1932,
ele completou com Jessie Lightfoot uma constelação incomum de pais substitutos, que for-
neceria estabilidade e incentivo a Bacon por quase 20 anos. (FRANCIS-BACON, s/d)
Vale ressaltar como a vida amorosa do pintor reverberava na sua produção e na sua
arte, mudando não só as temáticas dos quadros, mas principalmente toda a paleta de
cores e acordes cromáticos, numa rica expressão das sensações, sentimentos e emoções,
que povoavam seu mundo interior em cada amor vivenciado. Segundo Heller (2013), a
paleta de cores reunidas por Bacon em cada quadro pintado possibilitava traduzir (e
transmitir) suas dores, suas perdas e lutos, sua solidão, suas faltas e seus anseios, a
agressividade e as violências sentidas, a frieza, os desejos e o amor, a indiferença e a
insegurança, o hostil e o proibido, o amargor, a infidelidade, a velhice, a brutalidade e a
dureza, a intrusão e a indiferença, a impulsividade, a tristeza, a ira e a paixão, o confor-
mismo e a ambivalência, o pesado e o hostil, a brandura e o perigo, a proximidade e a
distância. Sentimentos, sensações e emoções presentes em todos os seres humanos, em
qualquer momento histórico. Daí o grande impacto da sua obra até os dias atuais.
Se a temática do papa acompanhou Bacon ao longo da vida, já a série “Gritos” ficou
circunscrita entre os anos das décadas de 1940 e 1950, num total de cerca de 25 obras,
numa combinação de diferentes figuras entrelaçadas, incluindo os retratos do papa. Va-
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Ao deixar de lado a literalidade da imagem colocada nas telas, pode-se tomar “o gri-
to” (ou a boca aberta), como um símbolo que traz variados significados em seu bojo.
Fato é que Francis Bacon sofreu com crises asmáticas e alérgicas a vida toda, vivendo
num contínuo estado de tensão. E, em função do isolamento que essas crises provoca-
vam na vida do pintor, além dos vários impedimentos que sofreu devido a tal condição,
variados sentimentos e emoções emergiram nessas ocasiões. Vale lembrar que Jung
(1996) afirmava que psique e corpo formam um par de opostos e que todas as emoções
e fenômenos psíquicos têm um correlato fisiológico.
Dessa forma, é válido supor que tais conteúdos internos ficassem expressos nas ima-
gens pintadas, nas quais as bocas se presentificaram. E, dentre as variadas amplificações
possíveis, cabe inúmeras inferências: que grito é este? um grito que estaria sendo um
pedido de socorro do pintor? ou mesmo, dizendo da sua necessidade de querer respirar
a vida, para ser absorvida com menos dor? ou, ainda, pedindo o olhar do outro, ou do
pai? ou será que, nos retratos do papa, esse grito seriam as reprimendas e a reprovação
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do pai em relação a ele? ou, também, porque Bacon teria, de certa maneira, conseguido
transmitir nesse grito, algo do terror que ele verdadeiramente trazia em si? Estes são
apenas alguns questionamentos!
Outra temática na qual Bacon se debruçou, em boa parte da sua carreira, foi a figura
humana, especialmente os retratos e os autorretratos. “Acho que a arte é uma obses-
são pela vida e afinal, como somos seres humanos, nossa maior obsessão somos nós
mesmos” (SYLVESTER, 2007, p.63). O artista utilizava-se de variadas fotografias que ia
colecionando e usava principalmente as de pessoas conhecidas, como inspiração para
executar as figuras na tela – mas nunca tendo, porém, a pessoa presente como modelo.
Servia-se da foto e da memória para a reprodução dessa imagem, afirmando que isso
facilitava o seu trabalho criativo. Mesclava as duas imagens – a real e a imaginária – e o
resultado não era fiel nem a uma e nem a outra instância, mas a uma imagem desfigura-
da que despontava e brilhava na tela.
Uma característica marcante desses retratos (e da sua obra como um todo) é a distor-
ção presente nas figuras das telas – o que torna, muitas vezes, a imagem bem disforme.
Sobre isso e o que envolve seu processo criativo, Francis Bacon fez vários comentários
como respostas a Sylvester (2007), durante suas várias entrevistas: “O que eu pretendo
é distorcer o objeto até um nível que está muito além da aparência, mas, na distorção,
voltar a um registro da aparência” (p.40).
Em outros trechos das conversas com Sylvester (2007), Bacon vai discorrendo acerca
do seu processo criativo, enfatizando a questão do acaso e de como, frente à tela, deixa-
-se levar por aquilo que ele chama de instinto. São pontos importantes a se ressaltar,
pois podem denotar o quanto o artista conseguia interiorizar-se nesses momentos, mes-
mo sem se dar conta, entrando em contato com diversos conteúdos internos que o afli-
giam tão amiúde, e não lhe deixavam ficar em paz. E isso era transposto para as imagens
que terminavam compondo aquele quadro.
DS: Você está querendo dizer que, quando se deixa o acaso agir, certos níveis mais profun-
dos da personalidade vêm à tona?
FB: É exatamente o que estou querendo dizer. A vontade foi subjugada pelo instinto. Mas
também estou tentando dizer que eles (os níveis), vêm à tona inevitavelmente... eles vêm à
tona sem que o cérebro interfira na inevitabilidade de uma imagem. Isso parece provir dire-
tamente daquilo que resolvemos chamar de inconsciente... com a espuma do inconsciente
circundando a imagem. É isso que lhe dá vigor. (SYLVESTER, 2007, p.120)
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envelhecendo e, embora se sentisse solitário e desconfortável com seu corpo – não gos-
tava do que via no espelho! (FRANCIS-BACON, s/d). Porém, de algum modo, não resistia
a colocar sua própria imagem na tela compulsivamente, buscando algo do qual não se
dava conta conscientemente. Bacon dizia que muitas vezes seu trabalho brotava da frus-
tração e do desespero que sentia.
FB: [...]. Quando envelhecemos ficamos pavorosos. Precisamos compensar isso com as rou-
pas. Estou velho e feio. E detesto meu rosto, assim como ouvir minha voz é penoso para
mim. É horrível. É como ver fotografias de si próprio. (MAUBERT, 2010, p.49-50).
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e o modo como transpõe tais imagens para a tela, numa obsessão de refazer, continua-
mente, a forma humana através da pintura (figuras 9 a 11).
FB: [...] Pinto apenas com meu instinto. Apenas tento recriar as imagens que tenho em meu
cérebro. [...]. Eu não pensava em ganhar a vida com minha pintura, pensava apenas em me
explicar comigo mesmo. [...]. (MAUBERT, 2010, p.35-36)
FB: Pode ser que no fim das contas, eu faça uma longa análise de mim mesmo. Sim, talvez
seja isso que eu ponha em prática. Trabalho sobre mim mesmo. (MAUBERT, 2010, p.33)
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Considerações finais
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que não pode ser contemplado nos recortes escolhidos. Outro ponto não visto, porém
muito importante, relaciona-se com a destruição dos quadros dos quais não gostava ou
não conseguia olhar, depois de finalizados. Isto ocorreu em diferentes momentos de sua
vida, nos quais irrompia de si um forte sentimento de destruição e agressividade.
A temática da crucificação e a correlação que fazia com a sua obsessão pelas peças
de carne expostas no açougue, também traz elementos importantes para uma reflexão
mais apurada que não pode ser feita. E as peças de carne que ele escolheu pintar em
vários quadros, curiosamente tinham o formato alongado de pulmões – os que trazem o
ar que o artista tanto tinha dificuldade em respirar, especialmente nas crises agudas de
asma que o acompanharam vida afora.
Enfim, falar da conexão entre a vida e a obra de Francis Bacon, também é falar de uma
busca que ele incessantemente empreendia, uma busca por uma integração maior de si.
E sua produção artística deixa transparecer o quanto ele se empenhava nessa constante
reconstrução do humano – em si e no outro!
Referências
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