Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
RESUMO: Este trabalho tem como foco a realização de um estudo sobre algumas propostas
analíticas de Mikhail Bakhtin, sendo estes aspectos baseados no diálogo entre as expressões
artísticas e seu intercâmbio com a literatura. A análise traz a lenda O bracelete de ouro (1861)
do escritor sevilhano Gustavo Adolfo Bécquer, uma história onde o tempo e espaço da igreja
surge como elemento propulsor para o desenvolvimento da trama. Percebe-se que em sua obra
há também diferentes abordagens do universo fantástico destacando recorrentemente a
arquitetura, a música e a pintura para a concepção de ações, espaços, temas e personagens,
ressaltando assim a pluralidade de vozes e pontos de vista que aproveitam o recurso de outras
linguagens para a construção do texto.
1
Mestrando em Letras – Unesp/Assis-CAPES
2
Professora Doutora FCL Assis – UNESP.
Nesta modalidade ele tende em geral a apresentar características que preservam a
verossimilhança das histórias, com fortes recursos da oralidade assim como
personagens, cenários e enredos que criam destaque para as cidades espanholas,
trazendo recorrentemente paisagens reais como as catedrais, monastérios, ruínas e
igrejas que até hoje formam a base histórica de seu país.
Gustavo Adolfo Bécquer, apesar dos trabalhos junto aos periódicos e jornais da
época, não obteve a consagração em vida. Devido aos problemas de saúde, problemas
financeiros e extremamente fragilizado pela morte do irmão, o escritor morre no dia 22
de dezembro de 1870, com apenas trinta e quatro anos de idade. Os amigos Rodríguez
Correa, Férran e Campillo logo no ano seguinte realizam as primeiras compilações de
suas obras, numerando as rimas e agregando outros materiais deixados.
Um dos pressupostos discutidos neste trabalho é justamente a aproximação que
o escritor Gustavo Adolfo Bécquer teve com as artes ao longo de seu curto, porém
intenso período de vida. Em alguns pontos de sua trajetória pode-se observar aspectos
emblemáticos desta concepção, como por exemplo o fato deste ter sido filho de José
Dominguez Isausti Bécquer, um renomado pintor da cidade de Sevilha. Ainda cedo
Bécquer e seus irmãos aprendem as mais variadas técnicas artísticas, estas que
envolvem desde a observação de figuras no espaço até as formas de reprodução.
Entre todos os irmãos Bécquer desenvolve uma maior afinidade com
Valeriano, irmão mais velho e que se dedica integralmente para a pintura. No entanto, a
juventude é extremamente difícil para ambos, além das precárias condições de moradia,
saúde e alimentação, perdem o pai e a mãe ficando então aos cuidados de parentes
próximos. Valeriano segue compondo quadros e Bécquer, apesar da admiração pelas
técnicas do irmão, descobre na arte literária uma forma muito mais profunda e
particular. É neste período que o jovem artista passa a ter contato com as obras de
Balzac, Walter Scott, Hoffmann, Byron, Victor Hugo, entre tantos outros autores que
mudariam os rumos de sua vida e se tornariam uma referência inicial para as criações
escritas. Bécquer consegue publicar ainda na juventude, num dos principais periódicos
de Sevilha, os seus primeiros versos e poemas românticos em 1853, antes de completar
dezoito anos. Já se percebe que neste momento as inspirações artísticas recorrentes no
escritor acontecem sobretudo no âmbito do mistério, do obscuro e dos sentimentos
aflorados, sendo que as obras deste autor tenderão a envolver em seu cerne uma ampla
gama de estilos e gêneros.
99
Seus poemas foram na maioria agrupados e organizados após a morte do
escritor, ganhando notoriedade como “rimas becquerianas”, mas sabe-se que muitas
delas já estavam em processo de composição entre 1858 e 1860, algumas inclusive
puderam ser lidas em reuniões musicais e literárias. Ainda na década de 1860 Bécquer
torna-se redator do diário “El contemporâneo” e nos anos posteriores publica algumas
de suas Leyendas. Pode-se apontar ainda que este jornal foi central para a carreira do
escritor, onde publica também a famosa obra Cartas literarias a una mujer (1860-
1861), um pequeno tratado sobre a imaginação e a composição poética.
Em 1864 publica Cartas desde mi celda, onde elabora diversas análises sobre
o Monastério de Santa María de Veruela e continua na revista “La América” mais
publicações de suas Leyendas nos anos posteriores. Bécquer atuou também ao lado de
outros importantes periódicos de Madrid, realizando pesquisas, dirigindo ou publicando
em diferentes modalidades textuais. Valeriano, irmão de Bécquer e pelo qual este tinha
clara admiração, acaba por falecer na metade do ano de 1870 e o escritor morre apenas
alguns meses depois.
102
PROPOSTAS PARA UMA ANÁLISE BAKHTINIANA
103
indissolubilidade da relação entre o espaço e o tempo, sendo este último definido como
a quarta dimensão do primeiro.” (BRAIT, 2018, p.102).
Nas obras de Gustavo Adolfo Bécquer é possível lançar mão desta teoria tendo
em vista que na maioria de suas Leyendas há a figura do narrador que introduz uma
história, havendo frequentemente o deslocamento posterior no tempo para o enredo que
será então contado. Na perspectiva do autor este recurso é usado para reafirmar o caráter
oral, os aspectos históricos e a cultura popular, mas quando analisamos esta aplicação
pelo viés bakhtiniano, torna-se evidente o deslocamento pelos diferentes tempos e
espaços da trama como pontos fundamentais.
Na introdução da lenda O bracelete de ouro podemos destacar a figura de um
narrador sem nome (provavelmente em um tempo presente ao do leitor), transmitindo
uma história emblemática e que marca a cidade e a catedral de Toledo. Este narrador se
apresenta como cronista verídico que pretende expressar na mesma altura de intensidade
os fatos ocorridos, havendo logo após a transposição do tempo para iniciar a narrativa:
“Yo, en mi calidad de cronista verídico, no añadiré ni una sola palabra de mi cosecha
para caracterizarlos mejor.” (BÉCQUER, 1973, p.115).
Nas lendas becquerianas pode-se frequentemente observar que o autor lança
mão de aspectos reais como as histórias tradicionais de seu país ou personagens que de
fato tenham existido. Percebemos assim uma evidente correspondência de tempo e
espaço entre duas realidades, sendo a do conhecimento histórico e seu diálogo com a
ficção: “Figura-se o mundo por meio de cronotopos, que são, pois, uma ligação entre o
mundo real e o mundo representado, que estão em interação mútua.” (FIORIN, 2011, p.
53).
É possível salientar também que a religiosidade surge com grande força nas
lendas becquerianas, não raramente trazendo o espaço-tempo da igreja para revelar
verdadeiras epifanias para as personagens. Este mesmo percurso pode ser analisado
também no enredo de Mestre Pérez organista de Sevilha (1861), onde o local sagrado se
contrapõe aos demais espaços da cidade para se transformar no elemento propulsor de
todo o fio narrativo.
Ao longo desta análise da lenda O bracelete de ouro foi possível revelar alguns
aspectos fundamentais para os estudos do cronotopo propostos por Bakhtin. É
importante lembrar que este exame sobre a relação entre espaço e tempo pode também
ser expandido nas mesmas lendas suscitadas ou partir de novos estudos em narrativas
deste e de outros autores. Gustavo Adolfo Bécquer deixou um legado cultural altamente
104
reconhecido até os dias de hoje em seu país e no mundo, seus textos, rimas e lendas
servem não apenas como material de análise literária, mas também como importante
fonte de pesquisa para a compreensão histórica, artística e cultural da Espanha.
REFERÊNCIAS
105