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DIE POESIE IST DAS ECHT ABSO-

T. S. ELIOT
LUT REELLE. DIES IST DER KERN
lVJEINER PHILOSOPHIE.
JE POETISCHER, JE WAHRER.

A POESIA É O AUTÊNTICO REAL


ABSOLUTO. ISTO É O CERNE DA
MINHA FILOSOFIA.
QUANTO MAIS POÉTICO, MAIS VERDADEIRO.

NOVALIS

Tradução de
MARIA AMÉLIA NETO

( 2.ª Edição)

ATICA
LISBOA
Titulo da edição original
«THE WASTE LAND»
Copyright FABER AND FABER
Londres

O desenho da capa é da autoria de


ALMADA NEGREIROS
INTRODUÇÃO

«0 que Tirésiras vê é, de facto, a substância do


poema», diz T. S. Eliot nas notas apensas a The
Todos os direitos reservados para a publicação desta obra Waste Land. E, chamando deste modo a atenção
na tradução portuguesa por ATICA, s. A. R. L., Lisboa
para o seu aspecto visual, leva-nos implicitamente
a considerar o processo de narração utilizado, que
apresenta analogias com a técnica cinematográfica.
Na verdade, a sequêncta narrativa em The Waste
Land, conseguida pela justaposição de imagens
aparentemente desconexas, tem muito da lingua-
gem de uma máquina de filmar.
Não deixa de ser curioso recordar o que Eliot
escreveu sobre Anabase, no prefácio da sua tradu-
ção desta obra de Saint-John Perse: «... qualquer
obscuridade do poema, à primeira leitura, deve-se
à supressão de 'elos na cadeia', de matéria expla-
natória e de ligação, e não a incoerência ou ao
amor do criptograma.» E, mais adiante: «Esta se-
Composto e impresso nas ofücinas Gráficas da Tipografia lecção de uma sequência de imagens e ideias nada
Macarlo, Lda. - R. Jorge Afonso, 10-A -Tel. 76 54 00. Lisboa tem de caótico. Existe da imaginação,
Acabou de imprimir-se em Janeiro de 1984 assim como uma lógica de conceitos.»

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Eis a técnica tão soberbamente manejada em as metrópoles modernas. «É possível - observa -
The Waste Land. Afinal, a lógica da imaginação é que eu deva sobretudo a Baudelaire meia dúzia
a que está na base dos movimentos literários e ar- de versos das Flores do Mal, e que o seu signifi-
tísticos das segunda e terceira décadas deste sé- cado para mim se resuma em:
culo. E a justaposição ou colagem de imagens abso-
lutas, isto é, não subordinadas a qualquer ordem '
1'
Fourmillante Cité, cité pleine de rêves,
espacial ou temporal, constitui, como se sabe, uma Ou le spectre en plein jour raccroche le pas-
característica da aliás co- sarnt .. .» ( 5 )
mum ao surrealismo e ao imagismo. Pertence a
Ezra Pound, impulsionador desta última corrente, Londres, de The Waste Land, é bem o símbolo
a célebre definição de imagem como «O que apre- da «fourmillante Cité»:
senta instantaneamente um complexo intelectual e
emocional» (1). Sobre a autonomia da imagem na Cidade irreal,
poesta surrealista, afirma André Breton: «É mesmo Sob o nevoeiro castanho de uma madrugada de in-
permitido intitular POEMA o que se obtém pela verno,
associação tão gratuita quanto possível (observe- Uma multidão fluía sobre a Ponte de Londres ...
mos, se assim o quiserem, a sintaxe) de títulos e de
fragmentos de títulos recortados dos jomaisll (2). E esta passagem é enriquecida com a alusão àque-
Thomas Steairns Eliot, que nasceu no ano de les de quem Dante .diz no Inferno:
1888, nos Estados Unidos, e se naturalizou inglês
em 1927, entrou na Universidade de Harvard em si lunga tratta
1906. Byron, Shelley, Keats, Rossetti e Swinburne di gente, ch'io non avrei mai creduto
eram já seus conhecidos da adolescência. Em Har- che morte tanta n'avesse disfatta.
vard estudou Dante e Donne, que viriam a ter
grande importância na sua obra. Porém, para a A sombra de Dante, cuja poesia T. S. Eliot con-
aprendizagem de poeta, que iniciou em 1908, con- sidera a sua «mais persistente e profunda influên-
tribuiu especialmente a França. cia» ( 6 ), paira em toda a obra eliotiana, desde a
Jules Laiforgue foi o primeiro que o «ensinou a epígrafe de The Love Song of J. Alfred Prufrock,
folar» ( 3 ), isto é, a descobrir as potencialidades o primeiro dos Collected Poems, 'ª Little Gidding,
poétioas da sua própria língua. Com Baudelaire, o último dos Four Quartets. É que, para Eliot, «A
a fundir «o sordidamente realista e o DiDina tudo o que o homem é
fantasmagórico» ( 4 ), utilizando como pano de fundo capaz de experimentar como emoção, desde o de-

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sespero da depravação à visão beatífica. Recorda, Apenas pela forma, pelo molde,
portanto, consta:ntemente ao poeta a obrigação de Podem as palavras ou a música alcançar
explorar, de encontrar palavras para o inarticu- O repouso, tal como uma jarra chinesa ainda
lado, de capturar aqueles sentimentos que as pes- Se move perpetuamente no seu repouso ( 8 ).
soas mal podem até sentir, porque não têm pala-
vras para eles; e, ao mesmo tempo, recorda que Passando ao simbolismo de The Waste Land, em
o explorador para além das fronteiras da cons- parte extraído do livro de Jessie L. Weston, From
ciência comum só poderá regressar e contar o que Ritual to Romance, que analisa as diferentes ver-
viu aos seus semelhantes, se tiver sempre uma sões da lenda do Graal, lembraremos que a este-
completa percepção das realidades que eles já co- rfüdade da terra se deve à perda de vitali!dade do
nhecem» (7). Rei Pescador (por doença, feridas ou idade avan-
Depois da P·rimeira Guerra Mundtal, a Europa çada), cuja cura e o consequente regresso da ferti-
oferecia aos olhos do «filho do homem» apenas lidade do solo dependem de um Caivaleiro, que
«um monte de imagens quebradas». The Waste «libertará as águas». O nome do Rei parece ter a
Land transmite-nos a visão desse mundo fragmen- sua origem no facto de o peixe ser um símbolo de
tado, lendo-se no fim do poema, ao longo do qual vida e de o título de Pesca:dor se encontrar fre-
T. S. Eliot intercala citações de algumas grandes quentemente ligaido a divindades com ela relacio-
obras das civilizações ocidental e oriental: nadas.
O emprego de alguns importaintes símbolos de
From Ritual to Romance é bem evidente no poe-
Com estes fragmentos escorei as minhas ruínas.
ma: a viagem, a capela (a Capela Perigosa, onde
os cavaleiros do Graal tinham de ,lutar contra for-
Espectadores permanentes do esplendor do pas- ças demoníacas), o Ta:wt. Este baralho - elucida
sado e da desintegmção do presente, os olhos ce- Jessie L. Weston - possui ,setenta e oito cartas,
gos de Tirésias, que pulsa «entre duas vidas». das quais vinte e duas são designadas como as
O ritmo de The Waste Land, ·a sua subtil orques- «Chaves», e está dividido em quatro naipes, cor-
tração e o valor encantatório de determinadas pas- respondentes aos das cartas normais. Caído hoje
sagens permitem a comparação da obra com uma em descrédito, por ser principalmente utilizado na
peça de música, designadamente com uma sinfo- adivinhação, o seu uso original, contudo, «parece
nia. E os Four Quartets virão continuar, desenvol- ter sido não para profetizar o Futuro em geral,
vendo-a, a técnica musical já tão evidente neste mas para p11edizer a subida e .a descida das águas
poema de 1922: que traziam fertilidade à terra.»

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Se T. S. Eliot afirma a sua dívida para com o a dever a Virginia Woolf e seu marido, Leonard.
fascinante tr.abalho de antropologia de Prazer, The A versão portuguesa foi publicada em 1972, exac-
Golden Bough, também a autora de From Ritual tamente meio século depois do do
to Romance declara, no prefácio do livro, dever a poema.
Frazer a inspiração que a lançou na estrada para Se, em The Waste Land, a esterilidl:lde do
? ~astelo do Graal. Encontram-se, por conseguinte, por reacção sirnpatética, se transmite à
mt1mamente relacionadas estas duas obras de que parece ter tornado as vidas inúteis,
Eliot se serviu para delineação do simbolismo de afastadas do ritmo normal da natureza. Revelador
The W as te Land. de uma união tão ár}da quanto 'ª terra devastada
Ao dedicar o poema a Ezra Pound, chamando-lhe é o diálogo entre a senhora neurótica, no rico bou-
il miglior fabbro, T. S. Eliot quis demonstrar-lhe o doír, e o seu impassível interlocutor:
seu agradecimento pelas alterações sugeridas no
manuscrito original e que o levaram a publicar a «Os meus nervos estão mal esta noite. Sim, mal.
Obra na forma em que se encontra no presente Fica ao pé de mim.
volume. Durante muitos anos esse manuscrito «Fala comigo. Porque é que nunca falas? Fala.
oferecido por Eliot ao mecenas John Quinn, e~ «Em que estás a pensar? Em que pensas?
1922, foi considerndo perdtdo, até que em 1968 a Em quê?
Biblioteca Pública de Nova Iorque anunciou que «Nunca sei no que estás a pensar. Pensa.»
ele se encontr,ava em seu poder, integrado na Co-
lecção Berg. E, em 1971, V,alerie Eliot, viúva do Penso que estamos na viela dos ratos
Poeta, falecido em 1965, publicou o famoso docu- Onde os mortos perderam os seus ossos.
mento ( 9 ), possibilitando assim a compamção do
texto primitivo com o que veio a lume nos anos Logo a seg;uk, em contraponto, a conversa em
vinte, mais precisamente, em Outubro de 1922, em cockney, no pub, em que Lil, envelhecida aos trinta
Londres, na revista The Criterion, editada pelo e um anos:
próprio T. S. Eliot. Em Novembro, The Dial, re-
vista amertoana, também insere o poema, que, em Foram os comprimidos que tomei para o desman-
ambos os casos, aparece sem notas. No mês de cho, disse ela.
Dezembro é publicada em Nova Io11que, por Boni (Ela já teve cinco e quase morreu quando nasceu
and Liveright, a primeira edição, contendo já as o Jorginho.)
notas do autor. E ,só em Setembro de 1923 sai fi- O farmacêutico disse que não fazia mas
nalmente a primeirra edição inglesa, que se ficou voltei a ser a mesma,

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-
-se. A confirmá-1o, os ewertos Tristão _e Is~lda,
é e:x:ortada a pensar no pobre Alberto, que
um dos quais precede e o outro segue imediata-
Esteve na tropa quatro anos, quer divertir-se, mente 0 refeddo flashback:
E se não for contigo, será com outras, disse eu.
Frisch weht der Wínd
Der H eimat zu
de amor e desencantada sexuaUdade Mein Irisch Kind,
encontramos também no «romance» entre a dacti- wo weilest du?
lógrafa e o jovem carbunculoso: «Deste-me jacintos pela pdmeira vez há um ano;
«Chamavam-me a rapariga dos jacintos.» .
- Porém, quando voltámos, tarde, do Jardim dos ~acmt~~~
Ela volta-se e olha-se um momento ao espelho, Os teus braços cheios e o cabelo molh~do, eu nao po
Mal se dando conta do desaparecido amante; Falar e os meus olhos velaram-se, eu nao estava
O seu cérebro consente um pensamento semi-for- Vivo 'nem morto, e não sabia na~~' .
mado: Espreitava o coração da luz, o sllenc10.
«Ora, já está: e ainda bem que acabou.» Oed' und leer das Meer.

Madame Sosostris, que, ao servir-se do Tarot, o O sinistro iaviso de Madame Sosostris ( «Acau-
despoja da dignidade do seu primitivo uso («Se tele-se com a morte na água») dá lugar ao quarto
vir a querida Senhora Equitone, /Diga-lhe que eu andamento, de carácter elegíaco, sobre Phlebas, o
própria 1evo o horóscopo»); o Senhor Eugenides, Fenício, que:
o me11caJdor de Esmirna, com o seu duvidoso con-
vite ao narrador «para almoçar no Cannon Street . . . há quinze dias morto,
Hotel/ E passar o fim-de-semana no Metrópole»; Esqueceu o grito das gaivotas, a ressaca,
as Filhas do Tamisa (note-se a alusão às Filhas os ganhos e as perdas.
do Reno, do Crepúsculo dos Deuses), agora três
prostitutas (versos 292 a 306), eis outros exemplos Eliot move-se muitas veres em ma~s ~o que um
da degradação e da morte-vida em The Waste nível de significação, para iisso contnbumdo ~uso
Land. e faz da alusão e do contraste. Assim, depo~s da
Existe, todavia, uma passagem onde perpassam ~~nversa no pub, e depois de feitas as despedidas:
'IAlltos mais misteriosos, envoltos numa intensa e
intangível c1aridade: as personagens do flashback
B'noite Bill. B'noite Lou. B'noite May. B'noite.
no Jardim dos Jacintos, símbolos do amor abso-
luto e, como tal, perdido ou condenado a perder- Tá-tá. B'noite. B'noite,

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resulta infinitamente pungente e sugestiva a ime- Abril é o mais cruel dos meses, gerando
diata justaposição do verso que recorda a loucura Lilases na terra morta, misturando
de 'V'kvLA<h,

A memória e o desejo, atiçando


Raízes inertes com a chuva da Primavera.
Boa noite, senhoras, boa noite, gentis senhoras, O Inverno manteve-nos quentes,
boa noite, boa noite.
A terra com a neve do esquecimento,
Um pouco de vida com tubérculos secos.
Por outro lado, o Tamisa, testemunha da pompa
da era isabelina: Por outro lado, na abertura do terceiro anda-
mento, «O vento atravessa a terra castanha, sem
Isabel e Leicester se ouvim. E na terra gretada e na rocha onde não
Remos bate.ndo existe o som da água se vai desenrolar o quinto
Formava a popa e último andamento, onde, mais do que em qual-
Uma concha dourada quer outra parte do poema, e como a própria pon-
tuação sugere, a estrutura mustcal é indissociável
da visão do Poeta. Aqui a música não acompanha
é agora um rio que «sua óleo e alcatrão» e as suas
discretamente as palavras; faz, sim, ir·rompê-1as
Filhas são, como vimos, as «ninfas» com quem se
com força stravinskiana, paJra criar coisas e vultos
divertem os «indolentes herdeiros dos magnates».
com o dilacerante e dilacerado surrealismo de
Deste modo, a evocação da festa nupcial de Spen-
ser: Hieronymus Bosch. E~ dentro da pura técnica sur-
realista, o fecho do úlhlmo a;ndamento (verso 423
e seguintes) é quase todo constituído por colagens.
Doce Tamisa, desliza mansamente, até ao fim do
A palavra lands (terras) surge no terceiro daque-
meu canto,
les vemos, ao ser finalmente formu1ada a medita-
tiva pergunta do Rei Pescador:
ganha um patetismo que não possui quando consi-
derada isoladamente. Shall I at least set my lands in order?
[Porei ao menos as minhas terras em ordem?]
Land (terra) é, sem dúvida, a palavra-chave do Logo a seguir, ü1resistivelmente trazido por
poema. Além de fazer parte do título, aparece na lands, criando mais do que uma simples alitera-
abertura do primeiro andamento e é ela que in- ção, chega o eco de uma oanção de oriança, bem
troduz a ambiência:
conhecida de todos os ingleses:
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tudo encantatório. Todavia, a do texto e a
London Bridge 1is falling down falling down falling força da música impuseram espontaneamente, no
down momento da sua recriação em português, um binó-
Ponte de Londres está a cair está a cair está a mio que, de modo assaz curioso, é permitido pela
toponímia de Londres e, maiis do que isso, pelo
contexto do andamento, como adiante demonstra-
O regresso à infância em tempos de destruição remos. Esse binómio é terras/ Torre de
é admiravelmente sugerido pela introdução de vo- Assim:
zes infantis neste contexto apocalíptico. Assinale-
-se que na primeira edição do poema, ao contrário Porei ao menos as minhas terras em ordem?
do que sucede agora, o verso se encontrava desta- A Torre de Londres está a cair está a cair está a
cado do precedente e do subsequente. cair
A tradução, ou melhor, a transposição de
Isto é, se em português existisse uma canção de
Shall I at least set my lands in order? criança cujo I'efrão fosse este segundo verso, a
London Bridge is f alling down f alling down f alling palavra terras poderia acordar a lembrança das
down vozes infantis. Trata-se, afinal, de um caso para-
digmático da «lógica da imaginação», de que fala
põe evidentemente um problema ( 1º), se tivermos Eliot. Tal canção, porém, não existe, e, se se aceita
em conta a importância que representa na estru- o binómio que a nossa língua impõe, é sobretudo
tura musical da passagem o binómio lands / Lon- porque, como atrás se disse, o contexto em inglês
don Bridge. Quer diZier: seria desejável, embora o consente. Vejamos:
aparentemente utópico, recriar, no caso de o per- l.º) Na seguinte passagem o Poeta emprega duas
mitirem as línguas para que o poema sej1a vertido, vezes a 1imagem das torres derrubadas:
um binómio correspondente, que mostre como a
palavra lands (terras), tão carregada de signifi- Que cidade é esta nas montanhas
cado, é responsável pelo apail'ecimento do verso Que se tende e reforma e rebenta no ar violeta
seguinte. Torres caindo
Em português não existe qualquer relação mu- Jerusalém Atenas Alexandria
sical entre terras e Ponte de Londres. Acresce ain- Viena Londres
da que os dois sons nasalados e a consoante ex- Irreais
plosiva p tornariam muito pesado, digamos antes, Uma mulher puxou o seu longo cabelo negro
fa11iam tropeçar um verso que se quer ,acima de
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E tocou nessas cordas uma música em sussurro que, no contexto já citado, o Poeta usa a expres-
E morcegos com rostos de bebé na luz violeta são falling towers (torres caindo).
Sibilavam e batiam as asas
Portanto, quase poderíamos sugerir, sem que-
E rastejavam de cabeça para baixo numa parede rermos, no entanto, ir longe de mais, que a ima-
enegrecida
gem de destruição que verdadeiramente importa,
E no ar havia torres invertidas não apenas pela conotação bíblica a que Eliot terá
Sinos reminiscentes que davam as horas sido certamente sensível, mas também pela sim-
E vozes cantando em cisternas vazias e em poços bologia do Tarot, tão viva no poema, é a da torre
sem água.
derrubada. s9 que ele pôde, em inglês, jogar com
dois planos de significação, tornando, assim, in-
-2.º) O quinto verso antes do fim do poema é vulgarmente patética a «resposta» ao Rei Pesca-
constituído por estoutro de El Desdichado, de Gé- dor: à imagem de destruição que vem utilizando,
rard de Nerval:
sobrepõe-se outra, idêntica, que a palavra lands,
palavra-chave do poema, faz acordar (como, aliás,
Le Prince d' Aquitaine à la tour abolie. faria acordar London Tower is falling down, se
este fosse o refrão ou um eco do refrão) e que
Ora, a mais sinistra carta do Tarot é «A Torre ful- oferece a ,singular particulruridade de ter sido en-
minada pelos Raios», como observa Hugh Ross toada descuidadamente por muitas gerações de
Williamson ( 11 ), ao comentar precisamente a cola- crianças.
gem constituída por este verso do soneto de Gé- Foi a orquestração em The Waste Land que le-
rard de Nerval. Es cusaldo é lembrar que o Tarot
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vou r. A. Riichards a classificar de «música de


é um dos mais importantes súnbolos do poema. ideias» a poesia eliotiana. Seja-nos permitido, po-
rém, chamrur a atenção para 'ª simultaneidade de
3.º) O refrão do nursery rhyme, cujo eco T. s. muitas das <motas» ou dos «sinais» captados. É
Eliot utiliza, é:
que a visão de T. S. Eliot leva-o à mais Temota
fronteira do dizível e a não raras incursões no
London Bridge is broken down
indizível, e aquilo que o nosso subconsciente, ilu-
Dance over my lady lee,
minado pelo poderoso clarão das suas imagens,
instintivamente vê e tem como certo desdobra-se
tendo o Poeta substituído broken down por falling em múltiplos «sinais», quando queremos recons-
dow.n. Trata-se, por conseguinte, de uma colagem tituir, racionalmente ou quase, o oaminho sem
retocada, e, aqui, não podemos debmr de recordar tempo que percorremos.
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Alguns anos após ter percorrido o caminho aqui nas 433 versos transmiti!r uma idêntica visão. Só a
traçado ( 12 ), a autora destas linhas encontrou grande Poesia permite uma tal sintese.
num trabalho que A. D. Moody acabava de
MARIA AMÉLIA NETO
car (13 ) a aproximação entre as imagens
de da Ponte de Londres e das torres:
And London Bridge, in the Unreal City, is falling
NOTAS
with the falling towers («E a Ponte de Londres,
na Cidade Irreal, cai com as torres que caem»). ( 1) Poetry (Março de 1913).
Mais adiante, diz ainda Moody: Finally, the poet's (2) Primeiro Manifesto do Surrealismo 0924).
own tower is down with that of de Nerval's El (3) What Dante means to me, con:Eerência proferida por
Desdichado: an image signifying, cabalistically, T. s. Eliot no Instituto Italiano de Londres, em 1950-To
that he is driven out from the earthly paradise Criticize the Critic (Faber).
(4) Idem.
(«Finalmente, a própria torre do poeta é derru- (5) Idem.
bada com a de El Desdtchado, de Nerval: uma (6) Idem.
imagem que significa, cabalísticamente, que ele é (7) Idem.
expulso do paraíso terrestrel>). ( s) Burnt Norton.
(9) THE WASTE LAND, a facsimi!le & transcript of the
The Waste Land é uma terra onde não existe
original drafts including the annotations of Ezra Pound,
água e onde não existe amor. No quinto e último efüted by Valerie Eliot (Faber).
andamento, já depois de atingida a capela, uma (lO) Devo confessar que o problema não foi por mim
rajada húmida anuncia a chuva, e nas palavras do resolvido ao nível do consciente, e que só reconheci a sua
trovão, Datta, Dayadhvam, Damyata, que signifi- evidência a posteriori.
(11) Hugh Ross Williamson, The Poetry of T. S. Eliot,
cam em sânscrito «dá, condói-te, controla», parece Loodres, Hodder & Stoughton Limited, 1932, p. 150.
encontrar-se o oamrinho para «a Paz que ultrapassa (12) Os comentários precedentes, sugeridos pela impor-
o entendimento», shantih. É repetindo três vezes tância da palavra land, foram extraídos, por amável per-
esta bênção sânscrita, à maneira de uma Upani- missão da Revista Colóquio/Letras, de um ,artigo publi-
shad, que o poema termina lentamente. cado pela tradutora naquela Revista (n.• 15, de Setembro
de 1973), sob o título Os Cinquenta Anos de «The Waste
Se Ulysses, a admirável obra de James Joyce,
Land».
oferece em mais de setecentas páginas uma visão (13) A. D. Moody, Thomas Stearns Eliot/Poet, Cambridge
do homem e do mundo, em que o passado e o pre- University Press, 1979, p. 104.
sente se interpenetram, The Waste Land, o mais
famoso dos poemas modernos, consegue em ape-

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