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Endereço este texto aos agentes da cultura Hip Hop; àqueles que desejam pensar
ou repensar questões societárias e que inevitavelmente acaba por esbarrar em aspectos
estruturais o que complexifica ainda mais as coisas. Sei o quanto é difícil compreender
uma série de questões sociais e políticas e o quanto também somos confundidos por
diversas fontes duvidosas com intenções das mais variadas o que acontece inclusive no
interior da cultura Hip Hop. Reconheço também o quanto somos carentes de um
pensamento histórico e sociológico muitas vezes recusado pela vivência das ruas. É
necessário aliar as experiências das ruas com a História e consequentemente com a
teoria política. Esse é o fundamento das ruas e o verdadeiro compromisso. Por isso é
preciso fazer um debate interno, nos qualificarmos sem medo de errar e cada
contribuição neste sentido tem sua importância por mais que muitas vezes esteja
atravessada por contradições.
Faço parte da cultura Hip Hop há mais ou menos dezesseis anos e um dos
aspectos que mais me preocupa é a precária formação política entre os nossos. Os
pontos que venho levantando desde 2008 sobre nossa cultura tem gerado eventuais
desgastes a ponto de rompimentos pessoais o que na maioria das vezes se dá por uma
péssima disposição ao debate recalcando problemas que ainda podem ser resolvidos,
mas não sem confrontos. Não devemos temer este processo. O preço pode ser alto, mas
os resultados são de grande valia. Os rompimentos políticos são absolutamente normais
e necessários nos processos de disputa por hegemonia. É através da diferenciação que
deixamos claro o conjunto de interesses em questão e a forma como estes interesses
devem ser defendidos. Os rompimentos se dão por haver incompatibilidade entre as
práticas, não sendo, portanto, somente da forma como se decodifica o mundo. Mesmo
havendo consenso de que todos querem um mundo melhor não são todos que lutam por
este mundo melhor somente por enunciar uma vontade geral de forma abstrata e
discursiva. E mesmo aqueles que lutam por um mundo melhor podem na sua prática
anular aquilo que afirma gerando a necessidade do rompimento ou de uma reavaliação
radical.
Somente uma pessoa muito ingênua pode achar que não existem disputas
políticas na cultura. Elas existem e estão se dando agora neste momento a todo vapor.
Dessa forma, cada um de nós precisa se posicionar porque o que nos espera ali na frente
é algo da ordem do inimaginável, tenebroso, sombrio e somente com organização, força
popular e violência contra nossos inimigos conseguiremos nos emancipar. Já de
antemão quero ressaltar aqui que o discurso pacifista e conciliatório muito presente em
nosso meio deve ser destruído, desmascarado e superado e os defensores de tais ideais
serão jogados na lata do lixo da história. A “revolução interna” defendida pelos pós-
modernos é um engodo que beira a tosquice.
Marc Bloch em seu livro de introdução à História explica que o historiador não é
juiz, mas sim aquele que compreende criticamente os fatos. Quem ainda pensa que a
crítica é apenas um subterfúgio para “julgar” o outro pode abandonar a leitura por aqui.
Eu não dediquei minhas pesquisas para os “acadêmicos” como alguns podem pensar ou
tampouco para destruir reputações. O respeito em minhas análises sempre prevaleceu.
Produzi e sistematizei a crítica da crítica para nós mesmos. Por mais que na minha
banca de mestrado o saudoso geógrafo Andrelino Campos (autor da importante obra Do
Quilombo à Favela) tenha afirmado que eu não consegui alcançar os meus propósitos de
produzir uma crítica da crítica, continuo tentando me comunicar de alguma forma
colocando parte daquilo que aprendi nas ruas e universidades para todos que queiram
avançar em temas importantes. Sabemos que infelizmente ainda são poucos os leitores
que se preocupam com um debate um pouco mais denso, mas é nossa tarefa (dos
revolucionários) forçar uma ruptura com o senso comum que impera entre os nossos o
que muitas vezes acaba por confundir todos estes numa suposta totalidade quebrando os
paradigmas que antes os diferenciava como bem ressaltou Rafael Lopes de Sousa em
seu livro A Anticordialidade da República dos Manos e a Estética da Violência. Já tem
um bom tempo que venho me dedicando ao assunto, mas apesar de todo o meu cansaço
é importante demarcar aqui uma posição para que haja outros referenciais que se
contraponham ao modelo neoliberal hegemônico defendido pela grande maioria dos
rappers.
Desde 2008 venho escrevendo dezenas de artigos que resultou no meu TCC
“Uma Liberdade Chamada Solidão (História-UFF)” e minha dissertação de mestrado “O
Ciclo dos Rebeldes: processos de mercantilização do rap no Rio de Janeiro (Educação-
FFP-UERJ), que, por ser um trabalho denso e de fôlego, muitas vezes acaba por
espantar as pessoas ao invés de aproximar para uma leitura detida sobre os pontos
fundamentais que ali abordei. Eu diria sem dúvida que tais trabalhos, apesar de ainda
invisibilizados devido a questões políticas, são imprescindíveis para se compreender o
processo de mercantilização da cultura, já que a esmagadora maioria dos trabalhos que
analisam a cultura Hip Hop são meramente descritivos. Há, claro, também a dificuldade
de se decodificar uma série de contextos, teorias, categorias e problemas por uma
defasagem maciça da maioria das pessoas em assuntos científicos e históricos o que
acaba resultando no prevalecimento dos formadores de opinião que não têm o menor
compromisso com a revolução sendo apenas reprodutores de um discurso
demasiadamente desgastado. Pois bem. Vamos por parte.
No período colonial, não se dizia escravo para designar o cativo, e sim negro.
Essa coisa-mercadoria chamada negro compõe a produção colonial. Em suma,
toda a complexidade da experiência anterior à entrada desse sujeito no
complexo colonial é destituída de validade. A palavra negro congrega a
violência que justifica o ato em si e a consequência da escravização. Negro
significa não ser, representa a destituição da ontologia de todo um amplo grupo
populacional.
Nesse sentido, o Hip Hop é ele mesmo parte dessa ontologia do negro, sua
história e luta por emancipação. Há uma polêmica entre os estudiosos do tema de que a
cultura não tem em sua gênese um posicionamento anti-capitalista o que justificaria de
certa forma o seu esvaziamento contumaz ou os seus descaminhos, mas essa não chega
a ser a questão central já que as culturas desenvolvem-se ao longo do tempo avançando
e retrocedendo de acordo com o contexto social. O que tornou a cultura Hip Hop
inimiga da revolução social e do pensamento crítico foi o processo de mercantilização.
Neste jogo de negociações o capital prevaleceu. De uma forma ou de outra o Hip Hop é
uma cultura de resistência inventada pelos negros e logo em seguida apropriada por
demais segmentos subalternizados na sociedade capitalista. A cultura, portanto,
transformou-se num instrumento de luta para mais tarde ser confinada como
mercadoria. No Brasil o processo de mercantilização transmutou valores e pautas
fundamentais da cultura a ponto de subverter seus propósitos sociais alinhando-se com
as necessidades do capitalismo por meio do consumo seja de mercadorias ou ideias,
posturas e estéticas.
Tem havido enorme esforço por parte dos liberais e ultra-liberais em suavizar
determinadas leituras e entendimentos com a intenção de relativizar ou até mesmo
(principalmente por parte dos ultra-liberais e consequentemente setores fascistas)
inverter a compreensão do que vem a ser capitalismo, numa tentativa de legitimar o
sistema em forte oposição às ideias de esquerda, produzindo uma leitura de que tal
sistema é a última forma de sociabilidade humana. Na verdade esses setores querem
manter as coisas como estão. A luta de classes nessa leitura perde o foco principal
cabendo ao indivíduo os rumos da sociedade o que é completamente falso. Essa é uma
tentativa de negar o motor da história e da problemática relação entre capital e trabalho
principalmente no que diz respeito à exploração direta dos trabalhadores que são os que
verdadeiramente sustentam o sistema e não o empresariado como afirmam os liberais. O
fato é que estamos em guerra, ou melhor, o capital está em guerra contra os
trabalhadores. Para que exista capitalismo, diz Afrânio Mendes, “faz-se necessária a
concentração da propriedade dos meios de produção em mãos de uma classe social e a
presença de uma outra classe para a qual a venda da força de trabalho seja a única fonte
de subsistência.” Propriedade privada e divisão social do trabalho e troca são, portanto,
características fundamentais do capitalismo que opera por meio da concentração de
recursos e exploração indefinida da força de trabalho alheia.
Recentemente uma polêmica veio à tona. Devemos ou não ir às ruas? E por que?
Naturalmente que muitos rappers se posicionaram e defenderam seus posicionamentos.
Alguns optaram por se posicionar presencialmente nos atos o que foi visto como uma
divergência no seio da cultura Hip Hop, mas que depois se tentou mostrar que não era
bem assim. Foi dito também que houve uma tentativa da “esquerda branca” de criar
uma rivalidade artificial entre os negros como forma de enfraquecer o movimento. Vou
aproveitar essa polêmica para irmos além do espetáculo.
Qual seria a forma mais eficaz no combate a uma pandemia como essa que
estamos vivenciando agora? Naturalmente, já que a vacina ainda não está disponível, é
garantir que a população fique em casa evitando maiores contágios a fim de controlar a
situação até que haja cura e a única estrutura capaz de ofertar isso em nível de toda
federação é o Estado. Mas como o Estado é um aparato da classe dominante isso está
muito distante de acontecer. Segundo Eliezer Pacheco,
Essa conjuntura tem cada vez mais se acentuado enquanto vemos covas sendo
abertas para dar conta do número de mortos. A barbárie é uma realidade e se apresenta
de forma explícita. A baixa letalidade que o rapper Emicida afirmou no Faustão não
parece corresponder com a realidade. E mesmo que a letalidade fosse baixa ninguém
poderia morrer por conta do sucateamento da saúde pública para atender aos interesses
dos capitalistas. Nesse sentido, Emicida vem se prestando a uma série de desserviços,
desencorajando a luta, despolitizando o debate com posições absolutamente rasas, mas
certeiras na defesa dos seus interesses, já que os rappers liberais não têm compromisso
com a radicalização das lutas sociais e tampouco com a necessária organização dos
trabalhadores no enfrentamento contra o capital. Suas prioridades são os negócios. Se
não há condições mínimas da manutenção da vida da população negra, pobre, periférica,
é preciso que os oprimidos lutem contra a barbárie que impera contra suas vidas. O
próprio contexto sócio-histórico coloca as classes sociais em confrontos permanentes e
dependendo há tensões e acirramentos. Se o Estado age contra a população é necessário
fazer frear essa força ofensiva contra todos nós. É claro que há uma série de fatores que
torna essa luta singular, pois as condições normais agora são de confinamento e isso
torna ainda mais importante a organização dos setores dispostos à luta como forma de
compensar a defasagem dos que precisam estar em casa. O que está colocado é uma
ofensiva do Estado contra a população potencializando a letalidade do vírus.
Infelizmente Emicida por não ter consciência de classe esquece-se que governo
nenhum (seja de esquerda ou direita) favorecerá as lutas dos oprimidos. Seu pensamento
liberal resume-se em compreender a realidade longe dos conflitos de classe. O aumento
do número de casos e mortes por covid seguirá independente dos antifascistas estarem
nas ruas ou não. A luta nas ruas, portanto, se faz presente como resposta ao próprio
contexto sócio-histórico que empurra as diferentes classes a defender seus interesses
para a manutenção da própria vida por parte de uns enquanto outros prezam pela
destruição dessas vidas. Os riscos sempre fazem parte da luta. A única luta que exime
homens e mulheres de qualquer prejuízo é a luta institucional que funciona por
coalizações (justamente como aponta o rapper) que captam as insatisfações populares
capitalizando para o parlamento burguês. Os riscos da luta pela emancipação não são
maiores do que os riscos da escravidão imposta pelo capitalismo. Não há mais risco de
golpe de Estado. O que está em curso é tão-somente o desenrolar de uma ditadura.
Bolsonaro e seu governo já deixou claro que os que não concordam com ele devem se
curvar. O setor progressista cinicamente busca ressuscitar um estado democrático que já
faleceu a muito tempo protocolando impeachments que não vão dar em nada pois é o
interesse do capital que está em jogo. Ao invés de desestimular as lutas populares
devemos estar presentes e sim se organizar, transformar os atos em manifestações
sistemáticas e não ceder à democracia burguesa e ao capitalismo que cooptou as mentes
e os corações inclusive de setores que um dia já foram da resistência como é o rap.
Arthur Moura