Mefistófele é uma personagem satânica da Idade Média,
conhecida como uma das encarnações do mal, aliado de Lúcifer na captura de almas inocentes. Em muitas culturas também se toma como sinônimo do próprio Diabo. Fonte: Wikipedia.
Em épocas em que a preparação automobilística ainda era
algo extremamente restrito, uma ciência oculta que poucos dominavam, a aeronáutica era o ramo tecnológico que ditava as regras. A aeronáutica, sobretudo nas áreas voltadas para o combate, estava sempre à frente em termos tecnológicos, e sempre teve íntima ligação com o automobilismo, inclusive os avanços em aerodinâmica conseguidos pela indústria automobilística são devido às maravilhosas máquinas voadoras. Se algum fabricante dizia empregar certa tecnologia aeronáutica em seus carros, poderia se ter a certeza de que aquele item representava o que havia de melhor em termos de eficiência e funcionabilidade para a época. Desde que o automóvel foi inventado o homem externou seu desejo de fazê-lo ultrapassar barreiras de velocidade e competir em diversos terrenos, numa demonstração não de precisão mecânica apenas, mas também de coragem e destreza. E o berço das competições automobilísticas e das preparações mecânicas sempre foi a Europa. Mas houve um carro único que foi um dos grandes marcos da saudosa era dos engine swap com motores de avião.
Um Fiat SB4 de 1908 foi a base para o monstro que estaria
por vir. Tal carro era equipado originalmente com um motor 4-em-linha e 18 litros de deslocamento volumétrico e contava com dois blocos unidos. O carro era um comum participante de Grand Prix, até que, em 1922, após 14 anos de serviços prestados à velocidade, um período expressivo frente à durabilidade dos carros de competição atuais, o bloco “composto” se partiu e um cilindro, que sozinho deslocava aproximadamente 4,5 litros (0,4 litro a mais que um motor GM 250 usado no Opala), voou para fora do motor causando grandes danos estruturais ao carro. Parecia que aquele seria o fim para um grande veterano das pistas. Parecia... Não muito tempo depois um britânico aficionado por carros e competições automobilísticas, Ernest Eldridge, adquiriu o que havia sobrado do velho Fiat e logo tratou de por em prática sua desejada preparação tendo em vista a quebra do recorde mundial de velocidade no solo. Eldridge não era leigo em preparações automotivas, inclusive nas adaptações de motores aeronáuticos em carros de competição, correndo em Brooklands, Inglaterra, com um Issota-Fraschini modificado que recebeu um motor Maybach aeronáutico de 20,5 litros de deslocamento que alcançava cerca de 163 km/h, um ótimo número para a época, mas ainda insuficiente para levá-lo a um recorde. De qualquer forma o entusiasta inglês já tinha em mãos um carro que suplantava o Fiat SB4 e seu motor de 18 litros. Ele precisava de algo ainda mais potente... Foi então que começou o projeto de “ressurreição” do valente Fiat, que viria se tornar uma besta devoradora de pistas. O chassi foi inteiramente reforçado visando a instalação de um motor ainda maior. As modificações, além de reforço, visaram o aumento do chassi para o alojamento do novo motor, inclusive, foram empregados até componentes de um ônibus londrino sucateado. O alongamento do conjunto chassi-carroceria também acabou conferindo uma melhor aerodinâmica ao bólido que contava também com uma “cauda” afilada. Estruturalmente o Fiat não recebeu mais modificações e, inclusive, manteve o sistema de freios apenas no eixo traseiro que atuava sobre o diferencial e a ainda contemporânea transmissão final por dupla corrente. Por fim, o motor escolhido fora o 6-em-linha aeronáutico A-12 da Fiat, com robustos 21,7 litros de deslocamento volumétrico. Nascia o lendário Fiat Mefistofele...
O renascido Fiat não poderia receber nome mais adequado:
o carro pesava cerca de 2 toneladas, foi pintado num ultrajante tom de vermelho escuro e possuía um ronco dos mais graves e assustadores que já ecoaram pelas pistas. Antes de receber o nome definitivo o carro havia sido batizado Fiat SB4 Eldridge, mas, sem dúvidas, o novo nome tinha uma relação muito mais evidente com o veículo. Motor Fiat A-12
O motor A-12 empregado no Fiat de competição
originalmente equipou uma enorme gama de aviões, dentre eles o avião de combate francês Breguet Bre 14, usado pelo então Serviço de Aviação Militar Brasileiro, que era de responsabilidade conjunta do Exército e Marinha, só então, 1941, a aviação militar no Brasil foi emancipada criando-se a Força Aérea Brasileira. Aeronave Breguet Bre 14
O novo propulsor passou por modificações no sistema de
alimentação antes de equipar o Mefistofele, resultando em 325 cv a baixíssimas 1.800 rpm, um ganho bastante expressivo diante da potência original que variava em torno de 200 a 250 cv a 1.700 rpm. O A-12 deslocava exatos 21.715 cm³ (21,715 L) distribuídos por 6 cilindros de 160 mm (16 cm) de diâmetro e 180 mm (18 cm) de curso, dispostos em linha. O bloco era composto por duas meias-conchas, onde ficava a árvore de manivelas; os cilindros e cabeçotes eram independentes para cada pistão, ligados somente pelas tubulações de condução do líquido de arrefecimento. Contava com uma árvore simples de cames no cabeçote (para os seis cabeçotes independentes, na verdade) acionada por engrenagens e uma árvore de transmissão; tinha 4 válvulas por cilindro e ignição múltipla, tecnologias ainda não suplantadas e muito empregadas atualmente, provas cabais de que a indústria aeronáutica de então estava anos à frente da automobilística. O motor usava gasolina como combustível e era alimentado por quatro carburadores (apenas um de corpo duplo na versão original). Contava com arrefecimento por líquido (troca de calor líquido/ar) e a taxa de compressão era de 4,5:1. O peso seco do propulsor era de 415 kg Naquela época a superalimentação em motores, quer seja por turbocompressor ou compressor mecânico, ainda não era muito difundida, mesmo em motores aeronáuticos que perdem drasticamente potência a media que as aeronaves voam mais alto, devido ao decréscimo na pressão atmosférica e densidade do ar. Motor Fiat A-12 em vista lateral. Notem os cabeçotes e cilindros "exclusivos" para cada pistão.
Em julho de 1924 Ernest Eldridge leva a sua criação à cidade
francesa de Arpajon visando bater o recorde mundial de velocidade em quilômetro lançado, porém, lá ele encontraria um adversário à altura: um Delage V12 debitando 350 cv da equipe de René Thomas. Naquele dia 5, Eldridge leva o Mefistofele a 230,55 km/h, atitude bastante doentia visto que as suspensões e pneus do veículo estavam claramente subdimensionados para tal feito. Representação esquemática do Mefistofele. Notem a cambagem dianteira positiva e a inclinação do pino mestre.
Não satisfeita a equipe adversária, a de René, alega que o
Fiat infringia o regulamento por não ter uma marcha à ré. Para dificultar ainda mais o objetivo de Eldridge, no dia seguinte o Delage alcançava a velocidade 230,63 km/h. Estava claro que então o carro francês era superior ao Fiat... O recorde de René Thomas e seu Delage V12 duraria pouco, exatos 6 dias, o tempo necessário para Ernest Eldridge e sua equipe fazerem novos acertos no motor e providenciarem um mecanismo que levou o carro a percorrer uma distância mínima em marcha à ré, apenas para comprovar que o mesmo estava de acordo com o regulamento da competição. No dia 12 de julho de 1924 Eldridge levaria o Mefistofele a alcançar a incrível velocidade de 234,97 km/h na Route d’Orleans e este foi o último recorde mundial de velocidade em quilômetro lançado realizado no local. Atualmente o Fiat Mefistofele descansa bem conservado no Centro Storico Fiat na cidade de Turim, na Itália. Periodicamente o carro é exibido ao público, a última aparição foi no Salão do Automóvel de Genebra este ano. Misteriosamente, ainda hoje, os peritos ainda não conseguiram precisar que tipo de artifício permitia o carro reverter, já que nenhum sinal de modificações ou adaptações, que até seriam difíceis de serem aplicadas em tão pouco tempo, foi encontrado no veículo. Desde aquela época algumas pessoas atribuem ao próprio Diabo a súbita e inexplicável capacidade do carro reverter... Fotos: AUTOentusiastas e Wikipedia (páginas nas línguas inglesa e italiana).