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O Fiat Mefistofele...

por Fernando Fire » 16 Dez 2011 16:54

Mefistófele é uma personagem satânica da Idade Média,


conhecida como uma das encarnações do mal, aliado de
Lúcifer na captura de almas inocentes. Em muitas culturas
também se toma como sinônimo do próprio Diabo. Fonte:
Wikipedia.

Em épocas em que a preparação automobilística ainda era


algo extremamente restrito, uma ciência oculta que poucos
dominavam, a aeronáutica era o ramo tecnológico que
ditava as regras. A aeronáutica, sobretudo nas áreas
voltadas para o combate, estava sempre à frente em termos
tecnológicos, e sempre teve íntima ligação com o
automobilismo, inclusive os avanços em aerodinâmica
conseguidos pela indústria automobilística são devido às
maravilhosas máquinas voadoras. Se algum fabricante dizia
empregar certa tecnologia aeronáutica em seus carros,
poderia se ter a certeza de que aquele item representava o
que havia de melhor em termos de eficiência e
funcionabilidade para a época.
Desde que o automóvel foi inventado o homem externou seu
desejo de fazê-lo ultrapassar barreiras de velocidade e
competir em diversos terrenos, numa demonstração não de
precisão mecânica apenas, mas também de coragem e
destreza. E o berço das competições automobilísticas e das
preparações mecânicas sempre foi a Europa. Mas houve um
carro único que foi um dos grandes marcos da saudosa era
dos engine swap com motores de avião.

Um Fiat SB4 de 1908 foi a base para o monstro que estaria


por vir. Tal carro era equipado originalmente com um motor
4-em-linha e 18 litros de deslocamento volumétrico e
contava com dois blocos unidos. O carro era um comum
participante de Grand Prix, até que, em 1922, após 14 anos
de serviços prestados à velocidade, um período expressivo
frente à durabilidade dos carros de competição atuais, o
bloco “composto” se partiu e um cilindro, que sozinho
deslocava aproximadamente 4,5 litros (0,4 litro a mais que
um motor GM 250 usado no Opala), voou para fora do motor
causando grandes danos estruturais ao carro. Parecia que
aquele seria o fim para um grande veterano das pistas.
Parecia...
Não muito tempo depois um britânico aficionado por carros
e competições automobilísticas, Ernest Eldridge, adquiriu o
que havia sobrado do velho Fiat e logo tratou de por em
prática sua desejada preparação tendo em vista a quebra do
recorde mundial de velocidade no solo. Eldridge não era
leigo em preparações automotivas, inclusive nas adaptações
de motores aeronáuticos em carros de competição, correndo
em Brooklands, Inglaterra, com um Issota-Fraschini
modificado que recebeu um motor Maybach aeronáutico de
20,5 litros de deslocamento que alcançava cerca de 163
km/h, um ótimo número para a época, mas ainda
insuficiente para levá-lo a um recorde. De qualquer forma o
entusiasta inglês já tinha em mãos um carro que suplantava
o Fiat SB4 e seu motor de 18 litros. Ele precisava de algo
ainda mais potente...
Foi então que começou o projeto de “ressurreição” do
valente Fiat, que viria se tornar uma besta devoradora de
pistas. O chassi foi inteiramente reforçado visando a
instalação de um motor ainda maior. As modificações, além
de reforço, visaram o aumento do chassi para o alojamento
do novo motor, inclusive, foram empregados até
componentes de um ônibus londrino sucateado. O
alongamento do conjunto chassi-carroceria também acabou
conferindo uma melhor aerodinâmica ao bólido que contava
também com uma “cauda” afilada.
Estruturalmente o Fiat não recebeu mais modificações e,
inclusive, manteve o sistema de freios apenas no eixo
traseiro que atuava sobre o diferencial e a ainda
contemporânea transmissão final por dupla corrente. Por
fim, o motor escolhido fora o 6-em-linha aeronáutico A-12
da Fiat, com robustos 21,7 litros de deslocamento
volumétrico. Nascia o lendário Fiat Mefistofele...

O renascido Fiat não poderia receber nome mais adequado:


o carro pesava cerca de 2 toneladas, foi pintado num
ultrajante tom de vermelho escuro e possuía um ronco dos
mais graves e assustadores que já ecoaram pelas pistas.
Antes de receber o nome definitivo o carro havia sido
batizado Fiat SB4 Eldridge, mas, sem dúvidas, o novo nome
tinha uma relação muito mais evidente com o veículo.
Motor Fiat A-12

O motor A-12 empregado no Fiat de competição


originalmente equipou uma enorme gama de aviões, dentre
eles o avião de combate francês Breguet Bre 14, usado pelo
então Serviço de Aviação Militar Brasileiro, que era de
responsabilidade conjunta do Exército e Marinha, só então,
1941, a aviação militar no Brasil foi emancipada criando-se a
Força Aérea Brasileira.
Aeronave Breguet Bre 14

O novo propulsor passou por modificações no sistema de


alimentação antes de equipar o Mefistofele, resultando em
325 cv a baixíssimas 1.800 rpm, um ganho bastante
expressivo diante da potência original que variava em torno
de 200 a 250 cv a 1.700 rpm. O A-12 deslocava exatos
21.715 cm³ (21,715 L) distribuídos por 6 cilindros de 160 mm
(16 cm) de diâmetro e 180 mm (18 cm) de curso, dispostos
em linha. O bloco era composto por duas meias-conchas,
onde ficava a árvore de manivelas; os cilindros e cabeçotes
eram independentes para cada pistão, ligados somente pelas
tubulações de condução do líquido de arrefecimento.
Contava com uma árvore simples de cames no cabeçote
(para os seis cabeçotes independentes, na verdade)
acionada por engrenagens e uma árvore de transmissão;
tinha 4 válvulas por cilindro e ignição múltipla, tecnologias
ainda não suplantadas e muito empregadas atualmente,
provas cabais de que a indústria aeronáutica de então
estava anos à frente da automobilística. O motor usava
gasolina como combustível e era alimentado por quatro
carburadores (apenas um de corpo duplo na versão original).
Contava com arrefecimento por líquido (troca de calor
líquido/ar) e a taxa de compressão era de 4,5:1. O peso
seco do propulsor era de 415 kg
Naquela época a superalimentação em motores, quer seja
por turbocompressor ou compressor mecânico, ainda não era
muito difundida, mesmo em motores aeronáuticos que
perdem drasticamente potência a media que as aeronaves
voam mais alto, devido ao decréscimo na pressão
atmosférica e densidade do ar.
Motor Fiat A-12 em vista lateral. Notem os cabeçotes e cilindros "exclusivos" para cada pistão.

Em julho de 1924 Ernest Eldridge leva a sua criação à cidade


francesa de Arpajon visando bater o recorde mundial de
velocidade em quilômetro lançado, porém, lá ele
encontraria um adversário à altura: um Delage V12
debitando 350 cv da equipe de René Thomas. Naquele dia 5,
Eldridge leva o Mefistofele a 230,55 km/h, atitude bastante
doentia visto que as suspensões e pneus do veículo estavam
claramente subdimensionados para tal feito.
Representação esquemática do Mefistofele. Notem a cambagem dianteira positiva e a inclinação do pino mestre.

Não satisfeita a equipe adversária, a de René, alega que o


Fiat infringia o regulamento por não ter uma marcha à ré.
Para dificultar ainda mais o objetivo de Eldridge, no dia
seguinte o Delage alcançava a velocidade 230,63 km/h.
Estava claro que então o carro francês era superior ao
Fiat...
O recorde de René Thomas e seu Delage V12 duraria pouco,
exatos 6 dias, o tempo necessário para Ernest Eldridge e sua
equipe fazerem novos acertos no motor e providenciarem
um mecanismo que levou o carro a percorrer uma distância
mínima em marcha à ré, apenas para comprovar que o
mesmo estava de acordo com o regulamento da competição.
No dia 12 de julho de 1924 Eldridge levaria o Mefistofele a
alcançar a incrível velocidade de 234,97 km/h na Route
d’Orleans e este foi o último recorde mundial de velocidade
em quilômetro lançado realizado no local.
Atualmente o Fiat Mefistofele descansa bem conservado
no Centro Storico Fiat na cidade de Turim, na Itália.
Periodicamente o carro é exibido ao público, a última
aparição foi no Salão do Automóvel de Genebra este ano.
Misteriosamente, ainda hoje, os peritos ainda não
conseguiram precisar que tipo de artifício permitia o carro
reverter, já que nenhum sinal de modificações ou
adaptações, que até seriam difíceis de serem aplicadas em
tão pouco tempo, foi encontrado no veículo. Desde aquela
época algumas pessoas atribuem ao próprio Diabo a súbita e
inexplicável capacidade do carro reverter...
Fotos: AUTOentusiastas e Wikipedia (páginas nas línguas inglesa e italiana).

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