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Parashat Beshalach - Como se define um Milagre?

Análise do Prof Michael Avioz (Bar Ilan University), sobre a definição do conceito de
milagre dentro da Tradição Judaica, por meio dos exemplos das narrativas sobre a divisão
do mar, descida do Mán e a derrota de Amalek
Nesta Parashá temos histórias bem conhecidas pelo público, que são consideradas como
relatos de milagres:
1 – A abertura do mar de juncos (vulgo: mar vermelho) – Shemot 14 – 15
2 – A descida do Mán desde os céus (e das codornizes) – Shemot 16
3 – A vitória na batalha contra Amalek – Shemot 17
Estas narrativas são corroboradas com outras histórias, sobre Moshe e Aharon no Egito.
PRIMEIRA PARTE
Mas afinal, o que é um Milagre?
Embora comumente percebida como parte integrante da narrativa bíblica, a questão de
como devemos definir um milagre foi e ainda é, uma questão de debate.
Em primeiro lugar, não há termo fixo para "milagre" no Tana’h. De fato, a palavra Hebraica
<nês> (‫)נס‬, que é a palavra comum para milagres no hebraico desenvolvido com o tempo,
e no Tana’h, este termo carrega o significado de "bandeira / estandarte" em vez de
"milagre" no sentido que a teologia atribuiu depois.
Qualquer leitor que deseje preparar uma lista de todos os “milagres” da Bíblia Hebraica,
não poderá fazer isso usando apenas a concordância.
Ele ou ela terá que começar, definindo, o que é um milagre e, de acordo com essa
definição, tentará localizar os “vários” tais milagres.
Dois estudiosos israelenses trataram extensivamente da definição de milagres: Yair
Zakovitch, da Universidade Hebraica, e Rimon Kasher, da Universidade Bar-Ilan.
[A obra de Yair Zakovitch, é o The Concept of the Miracle in the Bible (Tel-Aviv: MOD
Books, 1991); A obra de Rimon Kasher, é o The Theological Conception of the Miracle in
the Bible (Phd. Diss. Bar-Ilan University, 1981).]
Então, segundo Zakovitch, um milagre é "uma ocorrência extraordinária, atribuível à mão
Divina, que deixa uma impressão marcante no texto".
[Por exemplo, a quantidade de pessoas punidas como parte de uma história de milagre, é
enorme, em comparação com outras narrativas nas quais uma pequena quantidade de
pessoas morre. Compare a morte de “milhares” de pessoas em Beit Shemesh em Shmuel
Alef 6, com a morte de Uzá em Shmuel Bet 6: A antiga narrativa milagrosa é considerada
muito mais "impressionante" por assim dizer, por ter expressividade numérica.]
Tais “milagres” podem, às vezes, atrapalhar a “ordem da criação”, de acordo com este
sentido. Reconhecendo que essa definição contém termos muito subjetivos, como
"extraordinário" e "marcado", o Professor Zakovitch acrescenta à sua definição, uma série
de "mecanismos de controle", como:
1 – Um aviso prévio, por um mensageiro da Divindade
2 – A natureza extraordinária da ação miraculosa, com relação tanto a duração com ao
lugar
3 – A posterior restauração do <status quo ante>
4 – A especificação do objetivo “teológico” do milagre
5 – Quando um milagre incorpora apenas, um grupo definido enquanto ignora outro
Já segundo o Professor Rimon Kasher, que é menos interessado em definir milagres e,
mais ocupado com a catalogação dos diferentes milagres trazidos pelas narrativas:
1 – Milagres anunciados previamente pelo agente (ou seja, o que realiza o milagre
apenas anuncia, mas não faz ele mesmo)
2 – Milagres realizados pelo agente, de acordo com instruções precisas recebidas
3 – A iniciativa do milagre vem do agente, mas sua implementação é atribuída a Divindade
4 – Tanto a iniciativa e a realização, são atribuídas diretamente ao agente
Conforme lidamos com os resultados do que foi elaborado até aqui, somos capazes de
compreender com mais clareza, as narrativas de milagres de Shemot em particular, e da
Bíblia Hebraica como um todo.
SEGUNDA PARTE
Milagres da Parashat Beshalach
Alguns estudiosos tentaram entender até as duas primeiras histórias de milagres nesta
parashá, como adornos retóricos para fenômenos naturais.
[O principal proponente dessa abordagem foi o Professor Werner Keller no livro, The Bible
as History (rev. Ed; Bantam, 1974)]
Eles chamam a nossa atenção para a referência em Shemot 14:21 sobre um vento forte,
que pode ter causado o caminho em terra seca.
O <Mán> foi "identificado" por vários estudiosos desta escola de pensamento, como uma
série de diferentes "alimentos do deserto", como a resina de tamarisco, o ‘orvalho de mel”
de insetos-escama, o talo de líquenes, dentre outros exemplos.
Nesta reflexão, no entanto, vamos nos focar nas histórias em si, no modo pelo qual elas
são contadas, em vez de explorar a teoria de sua possível historicidade.
A partir da apresentação dessas histórias na Bíblia Hebraica, a definição de Zakovitch,
parece se adequar bem às duas primeiras "histórias de milagres" da Parashat Beshalach.
Ambas são ocorrências que podem ser consideradas “extraordinárias” e atribuíveis à
mão Divina. Além disso, a história da divisão do Mar de Juncos descreve, vividamente, a
impressão que o “milagre” deixou em seus destinatários:
‫הוה ובמשה עבדו‬-‫הוה ויאמינו בי‬-‫הוה במצרים וייראו העם את י‬-‫וירא ישראל את היד הגדלה אשר עשה י‬
“E quando Israel viu o maravilhoso poder que o HaShem exercia contra os egípcios, o
povo temeu ao HaShem; eles confiaram no HaShem e em Seu servo Moshe.”
Shemot 14: 31
Na medida em que consideramos os mecanismos de controle de Zakovitch para
identificar ocorrências milagrosas, percebemos que vários deles também aparecem
nessas histórias.
Tanto a divisão do mar como o <Mán> são anunciados previamente por Moshe (n° 1).
Ambos os milagres são extraordinários, em seu tempo e lugar (nº 2).
A terra seca aparece no meio do mar no momento exato em que os israelitas precisam
atravessar e o <Mán> aparece no deserto apenas enquanto Israel vagueia nele (o fim
desta história aparece em Iehoshua 5: 12; após a entrada de Israel em Israel. a Terra
Prometida e a celebração do primeiro Pessach, o maná para de cair.)
Quando Israel termina de atravessar o mar, a terra seca desaparece, retornando o local
ao “status quo ante” (n° 3); o mesmo ocorre com o <Mán>, que para de cair quando Israel
sai do deserto.
A Divindade diz especificamente a Moshe (14: 18) que esse milagre ocorreria, para que o
Egito soubesse que Ele é o HaShem (n° 4).
Da mesma forma, Moshe e Aharon anunciam ao povo que, com a descida do <Mán>, eles
saberiam quem é o HaShem, que os tirou do Egito e veriam a <kavod> (honra) do
HaShem. Na divisão do mar, assim que os israelitas passaram, embora os egípcios
estivessem no mesmo caminho, o caminho desaparece, afogando o exército egípcio (n°
5).
Finalmente, voltando-se para o catálogo de Kasher, podemos ver que os dois milagres
seguem o segundo modelo. Moshe anuncia os milagres antes, mas ele não faz nada sem
o comando da Divindade e segue exatamente as instruções dadas.
TERCEIRA PARTE
A derrota de Amalek foi miraculosa?
Em suma, a divisão do mar e as histórias sobre o <Mán> são claramente histórias de
milagres. O que é menos claro, no entanto, é se a história de Shemot 17: 8 - 16, que
descreve uma batalha entre Israel e Amalek, narra um milagre.
Nessa batalha, Iehoshua lidera o exército para a vitória. Ao mesmo tempo, Moshe,
acompanhado por Aharon e Hur, sobe uma montanha e Moshe levanta os braços. A Torá
então declara (v. 11):
‫והיה כאשר ירים משה ידו וגבר ישראל וכאשר יניח ידו וגבר עמלק‬
Então, sempre que Moshe levantava a mão, Israel prevalecia; mas sempre que abaixava
a mão, Amaleque prevalecia.
Enquanto os braços de Moshe se cansam, Aharon e Hur começam a segurá-los, e eles
permanecem elevados durante a batalha.
Presumivelmente, isso está de alguma forma ligado à derrota de Amalek. Ao analisar os
detalhes da história, certos aspectos permanecem obscuros: quem venceu a guerra
contra Amalek? Foi Iehoshua e o exército? Moshe inspirou o povo? Era a Divindade que
Moshe representa, com os braços estendidos na montanha? A história termina com a
Divindade prometendo varrer Amalek da face da terra, e lutar com eles por toda a
eternidade, então, talvez devamos atribuir essa vitória inicial a Divindade também.
Por outro lado, o texto também afirma explicitamente que Josué derrotou Amaleque pela
espada e que Moshe escolheu as tropas e que suas mãos permaneceram "firmes" (o
texto usa a palavra surpreendente - ‫אמונה‬, literalmente "fiel") durante a batalha. Em suma,
o texto parece bastante ambíguo em relação a quem creditar pela derrota de Amalek: A
Divindade? A Iehoshua? A Moshe?
Alguma combinação dos três? Finalmente, embora não seja incomum o milagre ser uma
combinação da Divindade e um agente humano, aqui parece haver dois agentes humanos
fazendo coisas diferentes; Moshe com as mãos no ar e Iehoshua liderando a batalha. Não
há razão propriamente dita de que, um milagre não pudesse ser realizado por dois
agentes humanos distintos, mas seria incomum, talvez único, na narrativa bíblica.
QUARTA PARTE
A Batalha com Amalek – Uma mistura de modelos
Shemot 17: 8 - 16 provavelmente preserva uma mistura de modelos com relação à
questão da identidade do milagreiro. Os estudiosos modernos, cientes desse problema,
sugerem que essa mistura é o resultado de uma combinação de diferentes fontes
(tradição J ou E) ou diferentes tradições que foram incorporadas em Shemot 17.
[G. W. Coats, Exodus 1-18 (The Forms of the Old Testament Literature Grand Rapids:
Eerdmans, 1999)]
Os rabinos, no entanto, também parecem cientes do problema, mas adotam uma
abordagem diferente.
A Mehilta, por exemplo, parece estar lidando com esse mesmo problema:
‫וכי ידיו של משה מגברות את ישראל או ידיו שוברות את עמלק? אלא כל זמן שהיה משה מגביה את ידיו‬
‫כלפי מעלה היו ישראל מסתכלין בו ומאמינין במי שפיקד את משה לעשות כן והקב”ה עושה להם נסים‬
‫וגבורות‬
Agora as mãos de Moshe poderiam fazer Israel vitorioso, ou poderiam quebrar Amalek?
O sentido é o seguinte: quando Moshe levantava as mãos para o céu, os israelitas
olhavam para ele, e confiavam Naquele que ordenara que Moshe o fizesse; então a
Divindade fazia por eles, milagres e grandes feitos.”
Mehilta Amalek 1 sobre Shemot 17: 11
Esse Midrash conecta a oração à Divindade, com a iniciativa humana. Assim, nesta
leitura, é a Divindade - e não Moshe – que é o salvador de Israel, em resposta às suas
orações. Os rabinos entendem a palavra <Emuná> ali, como oração, relacionando assim
o milagre completamente a Divindade.
Se perguntássemos a eles, quem é o realizador do milagre naquela cena, eles
responderiam que é apenas a Divindade. O papel de Moshe neste milagre foi apenas
rezar.
QUINTA PARTE
Quem dividiu o mar?
Curiosamente, mesmo as histórias que se encaixam claramente na rubrica de “histórias
de milagres” contêm, ambiguidades problemáticas relacionadas à sua natureza milagrosa.
Olhando novamente para o relato da divisão do mar, surge um problema um pouco
diferente. Em Shemot 14, é Moshe quem divide o mar com o cajado milagroso, em
consonância com o mandamento Divino - o modelo dois, de Kasher.
No entanto, no Cântico do Mar (Shemot 15), Moshe nem sequer é mencionado (exceto
como cantor)!
Nessa versão, é somente a Divindade quem divide o mar e mata os egípcios, é a mão
Divina, não a de Moshe, que se estende sobre o mar.
A Divindade age sozinho, sem um agente humano.
O Professor Kasher nem sequer lista essa opção, mas aqui está. Os estudiosos explicam
essa inconsistência, entre os capítulos 14 e 15 de várias maneiras.
Uma abordagem é argumentar que o Cântico do Mar no capítulo 15 é original e mais
antigo, enquanto o capítulo 14 é uma versão posterior.
[J. W. Watts, Psalm and Story: Inset Hymns in Hebrew Narrative (Sheffield: Sheffield
Academic Press, 1992)]
Em outras palavras, esses estudiosos acreditam que havia uma tradição antiga sobre a
Divindade afogando os egípcios no mar, que nada sabia sobre Moshe ter participado na
cena, e que esse cântico antigo, foi incluído no texto da Torá, mesmo que a narrativa da
Torá identifique Moshe claramente, como um protagonista na história.
O Professor Michael Avioz, sugere o contrário porém. Ele diz que a história "original" ou
primitiva, é a que foi contada em Shemot 14, e que Moshe é que era a parte integrante
dela.
Em Shemot 15, no entanto, encontramos o primeiro passo no processo de negar os atos
milagrosos de Moshe e atribuí-los completamente a Divindade.
O próximo passo no processo de desinvestir Moshe de seus milagres, é encontrado no
Livro de Tehilim. Em várias canções que recontam a história do Egito (66; 78; 136), não
há menção a Moshe.
Novamente, os milagres são atribuídos somente a Divindade. A etapa final pode ser
encontrada na Hagadá de Pessach. Neste livro ritual, o nome de Moshe não é nem
mencionado, mesmo enquanto todo o trabalho é dedicado à história do êxodo do Egito!
CONCLUSÃO
As narrativas de Shemot 14 - 17 detalham (pelo menos) três “milagres”.
Embora alguns estudiosos tentaram entender essas histórias, como adornos de
fenômenos naturais, nesta reflexão inspirada nos ensinos do Professor Michael Avioz, se
procura adotar uma abordagem fenomenológica.
Em outras palavras, a questão é o que na narrativa (não na história) faz de uma história,
uma história milagrosa?
Qual foi o significado desses milagres para os narradores bíblicos e seus leitores?
Ao examinar apenas os três milagres do mar, o <Mán> e Amalek, descobrimos que o
texto bíblico contém uma variedade de visões que poderiam ser consideradas “proto-
teológicas” sobre a identidade e o papel dos milagres e a inter-relação entre a Divindade e
a humanidade.
Alguns textos enfatizam o papel de Moshe; outros a limitam significativamente; outros
ainda a ignoram completamente.
Algumas das tradições enfatizam o papel da Divindade na história de Israel, enquanto
outras enfatizam a parte do ser humano.
A Torá, em sua multivocalidade, inclui todas essas perspectivas, colocando-as lado a lado
no mesmo livro, às vezes até na mesma história, gerando as dificuldades naturais para
quem estuda.

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