Este documento contém quatro breves descrições de fenômenos da natureza feitas por Francis Ponge: a chuva, a vela, o cigarro e o pão. Cada descrição destaca detalhes visuais e sonoros observados com precisão.
Este documento contém quatro breves descrições de fenômenos da natureza feitas por Francis Ponge: a chuva, a vela, o cigarro e o pão. Cada descrição destaca detalhes visuais e sonoros observados com precisão.
Este documento contém quatro breves descrições de fenômenos da natureza feitas por Francis Ponge: a chuva, a vela, o cigarro e o pão. Cada descrição destaca detalhes visuais e sonoros observados com precisão.
A chuva, no pátio em que a olho cair, desce em andamentos muito diversos. No centro, é uma fina cortina (ou rede) descontínua, uma queda implacável mas relativamente lenta de gotas provavelmente bastante leves, uma precipitação sempiterna sem vigor, uma franção intensa do meteoro puro. A pouca distância das paredes da direita e da esquerda caem com mais ruído gotas mais pesadas, individuadas. Aqui parecem do tamanho de um grão de trigo, lá de uma ervilha, adiante quase de uma bola de gude. Sobre o rebordo, sobre o parapeito da janela a chuva corre horizontalmente ao passo que na face inferior dos mesmos obstáculos ela se suspende em balas convexas. Seguindo toda a superfície de um pequeno teto de zinco abarcado pelo olhar, ela corre em camada muito fina, ondeada por causa de correntes muito variadas devido a imperceptíveis ondulações e bossas da cobertura. Da calha contígua onde escoa com a contenção de um riacho fundo sem grande declive, cai de repente em um filete perfeitamente vertical, grosseiramente entrançado, até o solo, onde se rompe e espirra em agulhetas brilhantes. Cada uma de suas formas tem um andamento particular; a cada uma corresponde um ruído particular. O todo vive com intensidade, como um mecanismo complicado, tão preciso quanto casual, como uma relojoaria cuja mola é o peso de uma dada massa de vapor em precipitação. O repique no solo dos filetes verticais, o gluglu das calhas, as minúsculas batidas de gongo se multiplicam e ressoam ao mesmo tempo em um concerto sem monotonia, não sem delicadeza. Quando a mola se distende, certas engrenagens por algum tempo continuam a funcionar, cada vez mais lentamente, depois toda a maquinaria para. Então, o sol reaparece, tudo logo se desfaz, o brilhante aparelho evapora: choveu.
Trad. Júlio Castañon Guimarães
A VELA
A noite por vezes reaviva uma planta singular cujo clarão decompõe os aposentos mobiliados em maciços de sombra. Sua folha de ouro mantém-se impassível no côncavo de uma coluneta de alabastro presa por um pedúnculo mui negro. As míseras borboletas assaltam-na de preferência à lua muito alta, que vaporiza os bosques. Mas queimadas de imediato ou esgotadas na escaramuça, fremem todas à beira de um frenesi vizinho do estupor. Entretanto a vela, com a vacilação das claridades sobre o livro no brusco despreender das fumaças originais anima o leitor, – depois se inclina sobre seu prato e se afoga em seu alimento.
Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson
O CIGARRO
Recuperemos de início a atmosfera a um só tempo brumosa e seca, desgrenhada, onde, desde que incessante a cria, o cigarro está sempre enviesado. A seguir, sua pessoa: uma pequena tocha muito menos luminosa que perfumada, de onde se destacam e caem, em ritmo a determinar, um número incalculável de pequenas massas de cinzas. Por fim, sua paixão: esse botão em brasa, escamando em películas prateadas, que uma bainha logo formada das mais recentes circunda.
Trad. Júlio Castañon Guimarães
O PÃO
A superfície do pão é maravilhosa em primeiro lugar por causa dessa impressão quase panorâmica que dá: como se tivéssemos à nossa disposição ao alcance das mãos os Alpes, o Tauro ou a Cordilheira dos Andes. Assim, pois, uma massa amorfa a arrotar foi introduzida para nós no forno estelar, onde endurecendo se moldou em vales, cristas, ondulações, gretas… E todos esses planos logo tão nitidamente articulados, essas lajes delgadas onde a luz com aplicação deita seus fogos, – sem um olhar sequer para a moleza ignóbil subjacente. Esse frouxo e frio subsolo que se chama miolo tem seu tecido semelhante ao das esponjas: ali folhas ou flores são como irmãs siamesas soldadas por todos os cotovelos a um tempo só. No pão amanhecido essas flores murcham e encolhem: desprendem- se então umas das outras, e a massa torna-se friável… Mas partamo-la: pois o pão deve ser em nossa boca menos objeto de respeito do que de consumo.
Trad. Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson
A BORBOLETA
Quando o açúcar elaborado nos caules surge no fundo das flores, como xícaras mal lavadas, – um grande esforço se produz no solo de onde, súbito, as borboletas alçam voo. Porém, como cada lagarta teve a cabeça ofuscada e enegrecida, e o torso adelgaçado pela verdadeira explosão de onde as asas assimétricas flamejaram. Desde então, a borboleta errática só pousa ao acaso do percurso, ou quase isso. Fósforo voejante, sua chama não é contagiosa. E, além do mais, ela chega muito tarde e pode apenas constatar as flores desabrochadas. Não importa: comportando-se como acendedora de lâmpadas, verifica a provisão de óleo de cada uma. Pousa no cimo das flores o farrapo atrofiado que carrega e vinga assim sua longa humilhação amorfa de lagarta ao pé dos caules. Minúsculo veleiro dos ares maltratado pelo vento como pétala superfetatória, vagabundeia pelo jardim.