Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Estudos Afro-Latinos
Reflexões sobre o campo
Peter Wade
Palavras-chave:
Afro-Latina; racismo; negros; América Latina; mestiçagem; cultura negra
Introdução
Estudos de afro-latinos - se esse for o termo apropriado (ver abaixo) -
foram enquadrados por três grandes preocupações. A primeira tem sido o
lugar comparativo dos sistemas latino-americanos de escravidão e das
relações raciais nas Américas. Começando pelo clássico Slave and Citizen
2 P. Wade
identidades hifenizadas dos EUA (se bem que tardiamente, uma vez que o
'afro-americano' foi há muito deslocado pelo 'afro-americano'). Mais
recentemente, o termo afro-descendente tornou-se popular, especialmente
nos círculos internacionalistas de organismos como o Banco
Interamericano de Desenvolvimento ou as Nações Unidas, onde está a
ser dada uma atenção crescente aos afro-latinos (Sanchez & Bryan, 2003;
Santos Roland, 2002; Zoninsein, 2001), mas também em muitos países
latino-americanos (Mosquera et al., 2002; Safa, 2005, p. 312). Mais uma
vez, isto obedece a uma lógica americana de colocar todos aqueles que
têm alguma descendência africana - embora talvez não apenas "uma gota"
- na mesma categoria étnico-racial, mas agora com um alcance
transnacional que inclui todos aqueles considerados como fazendo parte
de uma diáspora africana global. O termo também responde a um
interesse crescente, especialmente entre os movimentos sociais negros,
com uma herança cultural africana. O Estado colombiano, por exemplo,
aderiu a esta tendência expansiva, passando das estimativas da população
afro-colombiana para 6%, depois para 16% e agora para 26% da população
nacional (Wade, 2002b, p. 6). Nobres argumenta que, ao longo do século XX,
a forma como os dados do censo brasileiro são coletados e interpretados
ajudou a mudar o Brasil de uma imagem de branqueamento demográfico
para uma imagem de não-branqueamento da maioria (Nobles, 2000). É claro
que muitos 'afro-descendentes' na América Latina podem se considerar
tanto ou mais indo-descendentes ou euro- descendentes: a parte afro da
mistura identifica apenas um aspecto do que eles podem ver como sua
herança. Com ênfase na auto-identificação, o termo afrodescendente
funciona tanto como um convite para se juntar à diáspora quanto como
uma classificação objetiva.
Estas mudanças mostram uma tendência para falar em termos inclusivos
de negros, afro-brasileiros, afro-latinos e assim por diante, como se estas
Estudos Afro-Latinos 7
fossem categorias claras. Esta tendência tem sido fomentada pela vontade
evidente de algumas pessoas, que se auto-identificavam com termos mais
ou menos eufemísticos, como moreno (espanhol e português: marrom),
para se identificarem como negros, em uma estratégia de vindicação
cultural. A tendência também é estimulada pela técnica, comumente
utilizada em estudos estatísticos do Brasil, de agrupar as categorias
censitárias de pardo (marrom, misto) e preto (preto), a fim de compará-las
ao branco (branco). É evidente que essas categorias não comandam o
acordo coletivo e mudam de acordo com o contexto, como continua a
mostrar a recente bolsa de estudos (Sansone, 2003, cap. 1; Telles, 2002).
A este respeito, um caminho interessante que eu acho que precisa de
maior atenção é a forma como o género molda o uso da terminologia racial.
Por exemplo, embora os significados associados à negra e ao negro se
sobreponham fortemente, existem diferenças na forma como esses termos
são empregados, relacionadas ao gênero e à sexualidade. Telles (2004, p.
99) mostra que, no Brasil, as entrevistadoras da pesquisa hesitam em
classificar como negras (negras) as mulheres que se classificam como tal,
especialmente se essas mulheres são bem instruídas. Telles sugere que as
entrevistadoras querem evitar o que elas vêem como uma classificação
aviltante e que isso é mais forte ao classificar mulheres do que homens e
muito mais forte, de fato, ao classificar mulheres aparentemente de alto
status.
Por outro lado, o trabalho histórico e contemporâneo mostra que a
imagem da mulher negra, ou de pele escura, é fortemente sexualizada e que
essas mulheres podem ser (por vezes, voluntariamente) alvo (por vezes) de
homens de pele mais clara nas relações sexuais (Brennan, 2004; Caulfield,
2003; Martinez-Alier, 1989; Smith, 1997; Twine, 1998). A imagem do
homem negro também é sexualizada, mas de uma forma mais agressiva,
como predador sexual (Viveros Vigoya, 2002). Assim, especulo que o uso da
8 P. Wade
negra por homens de pele clara pode construir uma categoria mais inclusiva
de mulheres vistas como objetos sexuais potenciais ou desejados, enquanto
o uso da negra pelos mesmos homens pode ser mais cauteloso, evitando
ameaças ao seu próprio status sexual. O uso dos termos negros por
mulheres de pele clara e por homens e mulheres de pele escura, em
contextos além da classificação formal nas pesquisas, teria que ser
explorado empiricamente.
A minha opinião sobre as práticas de classificação é que a clareza da
nomenclatura parece coexistir com uma ambiguidade contínua na
classificação das práticas e que a chave para as terminologias raciais da
América Latina está em compreender que as pessoas podem fazer
identificações claras de si e de outros contextos em particular, o que pode
ter consequências estruturais de longo alcance em termos de mercados de
trabalho ou mobilizações políticas ou assédio policial, sem que haja um
consenso colectivo, independente do contexto, sobre quem é "preto",
"castanho" e "branco". A discriminação racial pode coexistir muito
facilmente com a ambiguidade classificatória. A clareza da categorização a
nível social colectivo só é necessária se estiverem a ser aplicados sistemas
rigorosos de segregação racial ou direitos diferenciais, tais como nos EUA
'Jim Crow' ou na África do Sul do apartheid. Se essa clareza é estritamente
necessária para decretar discriminação positiva - programas de ação
afirmativa, cotas raciais - parece-me ser uma questão em aberto (sobre a
qual mais, abaixo).
Discriminação racial
A seção anterior introduz a questão de como e em que medida a
discriminação racial opera na América Latina contra os afro-latinos. Muitos
estudos indicam que sim. De la Fuente (2001) e Adams (2004) documentam
isso para Cuba, Anderson (2002) faz para Honduras, assim como Wright
Estudos Afro-Latinos 9
pessoa está aos olhos de outros que o aceitam ou rejeitam como igual) é
muito subjetivo, contextual e difícil de definir; o segundo método toma o
sistema de classes como a estrutura e observa como a identidade racial o
molda. Esta tem sido a técnica favorecida em muitos estudos brasileiros e
colombianos, baseada no 'controle por classe', ou seja, comparar coortes
brancas e não brancas que têm características semelhantes de classe e
outras (educação, origem, idade, etc.) e ver se alcançam de forma diferente
em termos de mobilidade social (geralmente renda, mas também
localização residencial). Se eles alcançam de maneira diferente, e
assumindo que todas as outras variáveis influentes foram controladas,
então a diferença é provavelmente devido ao racismo.
Muito trabalho, principalmente focado no Brasil, tem sido feito para
medir estatisticamente até que ponto a discriminação racial opera contra
os negros na América Latina. Tenho a impressão de que esse trabalho
ultrapassa essa medição estatística da discriminação racial contra os povos
indígenas - o que parece ser considerado mais garantido (mas veja
Psacharopoulos & Patrinos, 1994). A evidência esmagadora das análises
estatísticas no Brasil é que o racismo prejudica os negros no mercado de
trabalho e no sistema educacional (Hasenbalg & Silva, 1999; Lovell, 1994;
Lovell & Wood, 1998; Silva, 1985; Silva & Hasenbalg, 1999). Estudos de
empresas particulares podem mostrar resultados mais equívocos (Arau'jo
Castro & Guimara˜es, 1999). Estudos na Colômbia que tentaram alcançar
rigor estatístico - quer mais (Barbary et al., 1999; Urrea Giraldo et al., n.d.),
quer menos (Wade 1993) - demonstraram que, embora a discriminação
racial funcione nos mercados de trabalho e habitação, muitos afro-
colombianos partilham, em geral, um nível socioeconómico com muitos
colombianos pobres não negros. O principal problema é que a maioria dos
afro-colombianos é pobre. Para Cuba, embora seja certo que, sob o
socialismo, um ataque total às desigualdades de classe favoreceu os afro-
Estudos Afro-Latinos 11
cubanos, que estavam concentrados nas classes mais baixas, isso nunca foi
suficiente para erradicar o poderoso racismo que existia ali. Na verdade, o
racismo parece estar ganhando força no contexto do período especial e da
crescente privatização de partes da economia, especialmente através do
turismo (De la Fuente, 2000, 2001; Hagedorn, 2001; Pe'rez Sarduy, 1998).
Estes estudos revelam de forma interessante como o gênero é
importante na formação das oportunidades de vida no sistema de classes:
Lovell (1994) mostrou que, ao contabilizar as diferenças salariais entre
homens brancos, homens negros e mulheres negras, mais da diferença
preto-branco se deve à discriminação das mulheres negras do que dos
homens negros. Ainda mais da diferença se deveu à discriminação ao
comparar mulheres brancas com homens brancos (ver também Safa, 2005,
pp. 318-325).
Se tais métodos estatísticos dependem de separar analiticamente raça e
classe, outros estudos têm se concentrado em como essas coisas (e gênero)
se entrelaçam na experiência. Esta abordagem não rejeita de forma alguma
os dados fornecidos pela forçagem estatística à parte de raça, classe e
gênero; ela acrescenta uma dimensão diferente. Rejeitando todas as formas
de reducionismo de classe, Winant (1994) centra- se em processos de
'formação racial', traçando como as pessoas perseguem projectos
destinados a moldar ideologias, imagens e estruturas raciais de forma a
que elas próprias possam moldar a estrutura de classe da sociedade. Isto
afasta-se das abordagens estatísticas acima delineadas na medida em que
estas últimas tomam a estrutura básica de classe como dada e depois
medem o quanto a identidade racial impinge o progresso da vida das
pessoas através dela. Winant quer ver como diferentes conjuntos de pessoas
(por exemplo, políticos, activistas negros) tentam dar forma a ideias e
práticas racializadas. Outros estudos mais etnográficos - por exemplo, por
Burdick (1998), Sheriff (2001), Streicker (1995) e Twine (1998) - focalizam-
12 P. Wade
na América Latina.
eles o façam.
Conclusão
Os estudos afro-latinos têm se aprofundado e ampliado muito nas últimas
décadas. Crucial para o seu progresso será a capacidade de trazer uma
ampla perspectiva de economia política, o que, sem ser dogmático, nos
permite ver a política racial e as categorias à luz da mudança das estruturas
de classe e dos regimes de governação. O multiculturalismo não pode ser
entendido sem ligar essas idéias e práticas à economia e à política
neoliberal, como Hale (2005) tem defendido para a América Central. A
posição dos negros de classe média em relação ao movimento social negro
em Salvador, Brasil, ou os debates sobre ação afirmativa, não podem ser
entendidos separadamente da pressão econômica sobre o status de classe
média no Brasil em geral. A situação das comunidades negras na região
costeira do Pacífico, na Colômbia, e sua relação com a legislação que lhes
confere direitos sobre a terra, é muito obviamente condicionada pela
guerra virtual que aflige a região, a qual, por sua vez, está ligada às
prioridades de desenvolvimento do Estado e às lutas pelo poder sobre elas.
Igualmente importante é uma ampla perspectiva comparativa. Há um
conjunto crescente de trabalhos sobre populações afro-latinas fora do
Brasil, Colômbia e Equador. A clássica dimensão comparativa que contrapõe
os EUA à América Latina precisa ser diferenciada para abranger diferenças
intra-nacionais, como as existentes entre Salvador e Rio (Sansone, 2003;
Telles, 2004) ou entre as regiões costeiras do Pacífico e do Caribe da
Colômbia (Cunin, 2003), e comparações internacionais que trazem afro-
peruanos, afro-bolivianos, afro-uruguaios, afro-guatemaltecos e assim por
diante. As comparações internacionais precisam de estar vivas às
constantes ligações transnacionais que complicam uma análise baseada nas
fronteiras nacionais.
Estudos Afro-Latinos 27
Notas
Veja páginas sobre Afro-Latins no site do Banco Mundial (http://web.worldbank.org).
[1] Ver o debate na revista Horizontes Antropolo'gicos vol. 11, no. 23, 2005; acessível
viahttp://www.scielo.br/.
[2] Acuerdo 07, 8 de Abril de 2003, Consejo Superior, Universidad de Caldas; disponível no
siteda Universidade em http://www.ucaldas.edu.co/academia/normatividad.asp.
Referências
Adams, H. C. (2004) 'Fighting an uphill battle: race, politics, power, and
institutionalization in Cuba',
Latin American Research Review, vol. 39, no. 1, pp. 168-182.
Anderson, M. (2002) '¿Existe el racismo en Honduras? Discursos garı´funas'funas sobre
raza yracismo', Mesoame'rica, vol. 22, não. 42, pp. 135-163.
Anderson, M. (2005) "Bad boys and peaceful Garifuna: transnational meetings between
racial stereotypes of Honduras and the United States" in Neither Enemies Nor Friends:
Latinos, Blacks, Afro-Latinos, eds A. Dzidzienyo & S. Oboler, Palgrave Macmillan, New
York, pp.101-116.
Anderson, M. & England, S. (2004) '¿Aute'ntica cultura africana en Honduras? Los
28 P. Wade
2, pp. 21-25.
Torres-Saillant, S. (2000) 'The tribulations of blackness: stages in Dominican racial
identity',
Callaloo, vol. 23, no. 3, pp. 1086-1111.
Twine, F. W. (1998) Racism in a Racial Democracy: The Maintenance of White Supremacy in
Brazil,Rutgers University Press, New Brunswick, NJ.
Urrea Giraldo, F., Lo´pez'rez, H. F. & Via'fara Lo'pez, C. (n.d.) Perfiles socio-demogra'ficos de la
poblacio'n afrocolombiana en contextos urbano-regionales del paı´s's a comienzos del
siglo
XXI. Cali.
Van Cott, D. L. (2000) The Friendly Liquidation of the Past: The Politics of Diversity in Latin
America,University of Pittsburgh Press, Pittsburgh, PA.
Vaughn, B. (2005) 'Afro-Mexico: Negros, índios, política, e a grande diáspora' em Nem Inimigos
nem Amigos: Latinos, Negros, Afro-Latinos, eds A. Dzidzienyo & S. Oboler, Palgrave
Macmillan, New York.
Viveros Vigoya, M. (2002) 'Dionysian Blacks: sexuality, body, and racial order in
Colombia', Latin American Perspectives, vol. 29, pp. 60-77. Wade, P. (1993) Blackness
and Race Mixture: The Dynamics of Racial Identity in Colombia", Johns Hopkins
University Press, Baltimore, MD.
Wade, P. (1995) "The cultural politics of blackness in Colombia", American Ethnologist,
vol. 22, no.
2, pp. 342-358.
Wade, P. (1997a) Gente Negra, Nacio'n Mestiza: las Dina'micas de las Identidades Raciales en
Colombia, trans. A. C. Mejı´a'a, Ediciones Uniandes, Ediciones de la Universidad de
Antioquia,
Siglo del Hombre Editores, Instituto Colombiano de Antropologı´a'a, Bogotá. Wade,
P. (1997b) Race and Ethnicity in Latin America, Pluto Press, Londres.
Wade, P. (ed.) (2002a) 'Black identity and social movements in Latin America: the Colombian
Pacific region', Journal of Latin American Anthropology, vol. 7, no. 2 (Edição especial:
Guest Editedby Peter Wade).
Wade, P. (2002b) 'The Colombian Pacific in perspective', Journal of Latin American
Anthropology, vol. 7, no. 2, pp. 2-33.
Wade, P. (2004) 'Images of Latin American mestizaje and the policy of comparison', Bulletin of
LatinAmerican Research, vol. 23, no. 1, pp. 355-366.
Estudos Afro-Latinos 35
Wade, P. (2005) 'Rethinking mestizaje: ideology and lived experience', Journal of Latin
American Studies, vol. 37, pp. 1-19.
Wade, P. (2006, no prelo) "Understanding ''Africa'' and ''Blackness'' in Colombia: music and the
politics of culture", in Afro-Atlantic Dialogues: Anthropology in the Diaspora, ed. K.
Yelvington, School of American Research Press, Santa Fé, NM.
Warren, J. W. (2001) Racial Revolutions: Antiracism and Indian Resurgence in Brazil, Duke
University Press, Durham, NC.
Whitten, N. (ed.) (1981) Cultural Transformations and Ethnicity in Modern Ecuador, University
of Illinois Press, Urbana, IL.
Whitten, N. (1986) Black Frontiersmen: A South American Case, 2nd edn, Waveland Press,
ProspectHeights, IL (publicado originalmente em 1974).
Whitten, N. & Torres, A. (eds) (1998) Blackness in Latin America and the Caribbean: Social
Dynamicsand Cultural Transformations, 2 vols, Indiana University Press, Bloomington.
Winant, H. (1992) 'Rethinking race in Brazil', Journal of Latin American Studies, vol. 24, pp. 173-
192.
Winant, H. (1994) Racial Conditions: Politics, Theory, Comparisons, University of Minnesota
Press, Minneapolis, MN.
Wright, W. (1990) Cafe'con Leche: Race, Class and National Image in Venezuela, University of
TexasPress, Austin, TX.
Yelvington, K. (2001) 'The Anthropology of Afro-Latin America and the Caribbean: diasporic
dimensions', Annual Review of Anthropology, vol. 30, pp. 227-260.
Yelvington, K. (2006, no prelo) "The invention of Africa in Latin America and the
Caribbean: discurso político e práxis antropológica, 1920-1940', em Diálogos Afro-
Atlânticos: Anthropology in the Diaspora, ed. K. Yelvington, School of American
Research Press, SantaFé, NM.
Zoninsein, J. (2001) The Economic Case for Combating Racial and Ethnic Exclusion in Latin
American and Caribbean Countries, Banco Interamericano de Desenvolvimento,
Washington.
124 P. Wade