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CAPÍTULO I

INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA LINGUAGEM

1. Definição dos conceitos Linguagem e Filosofia da Linguagem


1.1. Linguagem1
A linguagem é um conjunto complexo de processos – resultado de uma certa actividade psíquica
profundamente determinada pela vida social – que torna possível a aquisição e o emprego
concreto de uma língua qualquer (…); é todo o sistema de sinais que serve de meio de
comunicação entre os indivíduos (CUNHA; CINTRA, 1999: 1).

A linguagem é um acto, uma acção, em que estão envolvidas dimensões comportamentais,


psicológicas e mentais, tanto conscientes como inconscientes. Ela é entendida por Wittgenstein
como sendo um conjunto de jogos de linguagem; é a totalidade das proposições; ela é a forma de
expressão do nosso conhecimento. A linguagem deve ser vista, no entender deste filósofo, como
o modo por excelência de agirmos no mundo, isto é, de interagirmos socialmente numa
comunidade. “A linguagem é o património de palavras e de regras lógicas, gramaticais e
sintácticas que estabelece limites intransponíveis ao que podemos dizer; ela é a casa do ser, e é
nessa moradia onde habita o homem” (Cfr. HEIDEGGER, apud., REALE; ANTISERI, 1991:
590).

A linguagem é uma cadeia de sons articulados, mas também uma rede de marcas escritas, ou um
jogo de gestos (uma gestualidade); é simultaneamente o único modo de ser do pensamento, a sua

1
“A linguagem nos foi dada para habilitar-nos a ocultar nossos pensamentos. É interessante que a linguagem possa
enunciar factos; e é também interessante que possa enunciar falsidades. Quando enuncia uma dessas coisas, o faz
com a intenção de causar alguma acção” (RUSSELL, 1978:29). “A linguagem é essencialmente algo de que
dispomos e que, apesar de tudo, noutro sentido, dispõe de nós enquanto, com as suas estruturas, delimita desde o
início o campo da nossa possível experiência do mundo. Só na linguagem as coisas nos podem aparecer: todo o falar
concreto pressupõe que a linguagem já tenha aberto o mundo e que também a nós nos tenha colocado nele... A
linguagem é, sobretudo, um dirigir-se a nós, sem o qual não podemos falar. Ela é anúncio, apelo, mensagem, e usa o
homem como mensageiro” (Cfr. VATTIMO, 1996:132). “A posse da linguagem pelo homem marca-se pelo facto,
em primeiro lugar, de se dirigir aos semelhantes, em cujo meio vive, e de também poder ver o seu comportamento
modificado pelas palavras deles. Falar é falar-a (um outro que não seja eu). Ter linguagem também é poder ser
afectado pela palavra do outro” (AA.VV., 2003:555).
realidade e a sua realização; é um processo de comunicação de uma mensagem entre dois sujeitos
falantes pelo menos, sendo um o emissor, e o outro, o receptor (Cfr. KRISTEVA, 1969: 16-17).

O homem actua como se fosse o modelador e mestre da linguagem, enquanto de facto a


linguagem permanece a senhora do homem. (...) pois, estritamente, é a linguagem que fala. O
homem fala pela primeira vez quando, e apenas quando, responde à linguagem ouvindo o seu
apelo (HEIDEGGER. Apud., RORTY, 1991:111).

A linguagem é um fenómeno social, que tem por função fundamental permitir a comunicação e
não apenas representar o pensamento; “(...) ela é o meio em que se realiza o acordo dos
interlocutores e o entendimento sobre a coisa” (GADAMER, 1999:559-560).

1.2. Filosofia da Linguagem


Por que uma disciplina distinta intitulada Filosofia da Linguagem? Não é uma linguagem uma
evidência, já que todos os homens conseguem com relativa facilidade exercê-la e que cabe à
investigação científica, eventualmente, explicar o seu funcionamento?

● Quanto mais um fenómeno humano é difundido e importante, tanto mais ele é problemático. É
necessário reconhecer na Filosofia da Linguagem uma interrogação sobre o sentido. Katz
entende filosofia da linguagem, a disciplina que se preocupa com análise dos conceitos e do
método da linguística. Esta definição da Filosofia da Linguagem como teoria da linguística é
rejeitada. Por sua vez, Fodor sustenta que esta disciplina socorre-se da linguística para resolver
os problemas filosóficos.

A filosofia da linguagem foi primeiramente a manifestação da vontade de estabelecer uma


filosofia do espírito, ao lado de uma filosofia da natureza. Depois, com o desenvolvimento da
linguística, apareceu como necessária uma reflexão filosófica sobre a linguística. O que a
linguagem comporta de filosófico? Em que consiste esta disciplina: será uma filosofia que se
serve da linguística ou, antes, valerá por uma filosofia a descrição linguística?
● Entende-se por Filosofia da Linguagem a ciência filosófica que estuda o sistema de signos e
sua relação de significação nas funções da comunicação e interpretação do pensamento humano.
É mais um campo no conjunto da investigação filosófica sobre o conhecimento conceptual, do
que um dos vários ramos da filosofia contemporânea, como a filosofia da ciência, a filosofia das
matemáticas, a filosofia da arte, etc. – esse conjunto de investigações que procura estabelecer o
que se pode saber do conhecimento conceptual, na medida em que esse conhecimento é expresso
e comunicado na linguagem. É o estudo ontológico da natureza e do significado das proposições;
uma radiografia dos fenómenos linguísticos, buscando a sua essência; é análise das
argumentações dos outros, dos paradoxos que surgem em certas teses, das possíveis contra
argumentações a essas teses.

Segundo Aristóteles, o ser humano é um animal racional, ou seja, um ser capaz de raciocínio.
Raciocinar significa dar razões, isto é, justificações coerentes e dotadas de sentido, numa palavra,
argumentar. A capacidade de raciocinar deve ser exercitada e treinada. Em todas as épocas da
história, o sono da razão tem gerado monstros. Cabe à filosofia a tarefa de manter viva a luz da
razão contra os enganos que procedem da aceitação ingénua e acrítica de qualquer discurso. Nos
seus apontamentos que remontam à década de 1930, eis o que escrevia Wittgenstein: “filosofar
é descartar argumentações erradas”. Ademais, o filósofo austríaco gritava em Cambridge: não
se preocupem com a significação, mas com o uso (Don‟t ask for the meaning, ask for the use).
Hume não se perguntava o que era a causa, mas em que condições ocorria o facto de se utilizar a
relação de causa a efeito. Há aí toda uma crítica do meaning (significado).

É necessário ter um olho treinado e um estudo atento para reconhecer os discursos que não têm
solidez e que talvez depois de um certo tempo desmoronem miseravelmente como um prédio mal
construído. O filósofo tenta encontrar caminhos para se orientar no mundo dos conceitos, no
intuito de esclarecer as relações entre conceitos. O filósofo da linguagem se defronta com a tarefa
de analisar conceitos.

A filosofia da linguagem situa-se na zona limítrofe entre a lógica e a linguística, e busca acima de
tudo analisar as argumentações a favor e contra as diversas visões do sentido que são a cada
momento propostas. Seu paradigma é o esclarecimento coerente dos pensamentos; é a
desambiguização dos enunciados ambíguos.

Por que de forma muito aguçada pode-se considerar Filosofia da Linguagem como sendo
“Filosofia Primeira”?
● Pode-se considerar Filosofia da Linguagem como sendo “filosofia primeira”, no sentido em
que questões metafísicas, epistemológicas ou da filosofia da mente deveriam ser reformuladas
nos termos da Filosofia da Linguagem. Ademais, em várias disciplinas científicas o estudo sobre
a linguagem é levado a cabo. A “filosofia primeira” não é mais a investigação da natureza ou da
essência das coisas, ou dos entes (ontologia), nem tampouco a reflexão sobre as noções ou
conceitos da consciência ou da razão (epistemologia), mas sim a reflexão sobre o significado ou o
sentido de manifestações linguísticas (análise da linguagem).

2. Itinerário histórico de reflexão sobre a linguagem


Sócrates foi culpado de arrancar a linguagem à interioridade do falante; de contaminar a
linguagem e o pensamento. A linguagem pertence ao oral como ao escrito, é suspeita, geradora
de erro, de persuasão sofista, perigo para o dialéctico.

Aristóteles está convencido de que a consideração do funcionamento da linguagem tem uma


importância decisiva para a construção não apenas da ciência, mas de uma cidade bem
organizada. Ele trata de domesticar a linguagem. Importa pouco – diz o estagirita que se diga que
o vocábulo tem vários sentidos, desde que eles sejam definidos, pois que se poderia dar sempre a
cada sentido um outro nome. Aquele que não pensa numa coisa determinada não pode pensar: e,
se se está em situação de pensar, será necessário dar um único nome à coisa em que se pensa.

Sofistas: a verdade universal não existe, simplesmente está sujeita à mudança constante, o
mesmo que a linguagem. Górgias – não existe o ser, mesmo que se existisse, não poderia ser
conhecido; se pudesse ser conhecido não poderia ser comunicado. Assim sendo, a linguagem não
passa de um jogo ou de um exercício, criado e estimulado pelos mais poderosos.
O nosso ser está escondido e só se revela a partir da linguagem. O ser só é possível (cognoscível)
a partir da linguagem. Quando falamos transmitimos o nosso eu aos outros. O ser se manifesta
sempre até quando não queremos nos manifestar.

Não obstante a Filosofia da Linguagem como ciência advier entre séculos XIX e XX, na época
antiga, ainda que de forma implícita já se faziam reflexões filosóficas sobre a linguagem.
- Apresente um breve panorama histórico da Filosofia da Linguagem na antiguidade.

3. A Filosofia da Linguagem no universo das outras ciências


Platão na sua obra Fedro põe na boca de Sócrates tal sentença “…buscamos entender a
linguagem como espelho da realidade para que a mesma realidade não ofusque nossos olhos
com sua luz e brilho”.

No decorrer da história aparecem três tradições de estudo da linguagem:


● Tradição teológica: judaica e cristã que busca interpretar seus textos sagrados, para isso se faz
mister um conhecimento mais aprofundado da realidade da linguagem;
● Tradição filosófica: que na interpretação do pensamento começa a indagar se a linguagem é
certeira para expressá-lo, ou se há convenções arbitrárias que impedem uma objectividade, o
relativismo dos sofistas e a busca do objectivismo dos três grandes filósofos gregos ilustram esse
caminho;
● Tradição científica que se situando no século XIX com ciências como a Linguística, começa a
duvidar da univocidade na correlação linguagem-realidade e pela linguística comparada a
distanciar-se de uma compreensão simples da linguagem.

Essas três correntes ou tradições se separaram, mas tendem a unir-se e iluminar-se mutuamente,
pois o mesmo carácter multidisciplinar das ciências leva a uma complexidade em cada âmbito
que começa a deixar de fora os outros. Hoje se compreende o valor da interdisciplinaridade e o
valor de verdade de cada âmbito.
A Filosofia da Linguagem se relaciona de modo especial com a Epistemologia ou Teoria do
Conhecimento, pois tantos enunciados linguísticos que devem ter um sentido na Epistemologia
dependem da Linguagem, como também os processos cognoscitivos que são objectos da
Epistemologia são sob outro aspecto objectos da Filosofia da Linguagem, vemos o exemplo claro
do conceito.

A Lógica, pelas mesmas razões da Epistemologia, tem uma grande conaturalidade com a
Filosofia da Linguagem. Em alguns estudos as duas vêm juntas. O critério de verdade lógica e
verdade significativa que são próprios da Lógica estão muito presente na Linguagem.

A Metafísica como ciência central da Filosofia é de grande interesse para a Filosofia da


Linguagem, pois dependendo da metafísica em que se baseia, os enunciados corresponderão a
uma verdade ulterior ou não, se a linguagem é veículo de pensamento para expressar o ser,
devemos saber o que é o ser de que se fala.

A Antropologia mostra o homem, que é o sujeito da linguagem, dependendo da concepção que se


tenha do homem, veremos o que é a linguagem.

Sendo a Filosofia da Linguagem um campo de meditação tão abrangente, ela tem uma forte
afinidade com muitas ciências, aliás vários são os saberes que reivindicam a linguagem como seu
objecto de estudo.
- Explique o valor interdisciplinar existente entre Filosofia da Linguagem, Linguística, Filologia,
Neurofisiologia, Psicologia, História, Geografia, Retórica e Hermenêutica Filosófica.

4. Origem da linguagem
A linguagem é natural aos homens ou é uma convenção social? Se a linguagem for natural, as
palavras possuem um sentido próprio e necessário; se for convencional, são decisões consensuais
da sociedade e, nesse caso, são arbitrárias.
Esta discussão levou, séculos mais tarde a seguinte conclusão: a linguagem como capacidade de
expressão dos seres humanos é natural, isto é, os humanos nascem com uma aparelhagem física,
anatómica, nervosa e cerebral que lhes permite expressarem-se pela palavra; mas as línguas são
convencionais, isto é, surgem das condições históricas, geográficas, económicas e políticas
determinadas.

Perguntar pela origem da linguagem levou a quatro tipos de respostas:


1. A linguagem nasce por imitação, isto é, os homens imitam, pela voz, os sons da natureza (dos
animais, dos rios, do trovão, etc.) – onomatopeia. Não é uma mera imitação, mas o homem já
possuía a capacidade de reflexão.
2. A linguagem nasce por imitação dos gestos que passou a ser acompanhado por sons e estes se
tornaram gradualmente palavras. Os meninos recorrem ao gesto por não saberem pronunciar as
palavras.
3. A linguagem nasce da necessidade: a fome, a sede, a necessidade de abrigar-se e proteger-se,
de reunir-se para defender-se – levaram a criação de palavras.
4. A linguagem nasce das emoções, particularmente do grito (medo, surpresa ou alegria), do
choro (dor, medo, compaixão) e do riso (prazer, bem-estar, felicidade).

● Essas teorias não são excludentes. É muito possível que a linguagem tenha nascido de todas
essas fontes ou modos de expressão.

4.1. Condições transcendentais da linguagem


A linguagem assume três condições indispensáveis:
- Sujeito que fala (e se exprime falando);
- Objecto de que se fala (e se representa mediante a palavra);
- Interlocutor a quem se fala e com quem se quer comunicar falando.

● Não há linguagem se não há alguém que fala. Mas, ele não fala se não tem nada para dizer e
não há alguém para quem dizê-lo.
4.2. Importância da linguagem na óptica de alguns autores
a) Para o psicólogo Alexis Leontico a linguagem é elemento concreto que permite ao homem ter
consciência das coisas.
b) Segundo Herculano Carvalho, a primeira importância da linguagem ao homem é possibilitar-
lhe o exercício da faculdade de pensar. Todos os símbolos, são uma forma de linguagem, sejam
eles fonéticos, visuais ou tácteis.
c) Para Jakobson, o pensamento humano é possível graças a linguagem.
d) Para Fromkin e Rodman, a posse da linguagem, mais do que qualquer outro atributo
distingue os seres humanos dos outros animais; para compreendermos a nossa humanidade
teremos que compreender a linguagem que nos torna humanos. A criança se transforma em
“pessoa” ou ser humano apreendendo a linguagem.

5. Diferença entre linguagem, língua e fala


O homem não fala porque tem língua, mas sim inteligência. Ele se manifesta como um ser que
fala precisamente porque tem inteligência e conhece. O ser humano é mais que a natureza por
isso está chamado a continuá-la e realizá-la por meio da linguagem, da arte, do direito, ou seja, o
mundo das construções humanas. Continua construindo um mundo não natural, o mundo dos
símbolos – assim, continua o mundo.

Toda pessoa, toda vida intelectual e social se estancam e ficam num estado embrionário quando a
linguagem está ausente. A linguagem aparece ao final como: instrumento de interacção, de
constituição da identidade, de representação dos papéis, de negociação dos sentidos: com o uso
da linguagem o homem doa de sentido a realidade e também dota de um sentido particular o
mundo, faz dele um mundo para si.

As centenas de línguas vivas impedem-nos de “sermos” irmãos, mantêm-nos estrangeiros


uns aos outros. Separando a língua da fala, separa-se da mesma vez: o que é social do que é
individual; o que é essencial do que é acessório e mais ou menos acidental. A língua não é uma
função do sujeito falante, é o produto que o indivíduo regista passivamente; não supõe nunca a
premeditação, e a reflexão não intervém nela. A fala é, pelo contrário, um acto individual de
vontade e de inteligência.

A língua é necessária para que a fala seja inteligível e produza todos os seus efeitos; mas esta é
necessária para que a língua se estabeleça. Há interdependência da língua e da fala; esta é à vez
instrumento e produto daquelas. Mas nada disto as impede de serem duas coisas absolutamente
distintas.

A palavra2 distingue os homens dos animais (estes possuem voz e não palavra); a linguagem
distingue as nações entre si. A linguagem é assim, a forma propriamente humana de
comunicação, da relação consigo mesmo e com os outros, da vida social e política, do
pensamento e das artes. A linguagem é um fenómeno cultural; é condição da cultura e contribui a
criá-la. A cultura é condição da linguagem, mas a linguagem também o é em relação à cultura.
Enquanto é um saber transmissível, a linguagem é um facto cultural. Dizia Hannah Arendt que “a
linguagem é o que faz do homem um animal político”.

6. Relação entre linguagem e pensamento


Sem um sistema se sinais que permite a utilização da linguagem, o pensamento. Não há
pensamento “puro”, privado de toda a ligação com a linguagem. A própria linguagem e a palavra,
bem como o pensamento, são um produto social que, na ontogénese do indivíduo humano, lhe é
transmitido pela educação. Uma criança privada da faculdade da linguagem e da palavra, está
condenada a ficar a nível de um débil mental; a perda parcial dessa faculdade limita as
possibilidades de desenvolvimento do pensamento.

Pode-se até ensinar um animal a acender a luz num compartimento escuro, mas se esse animal
soubesse abster-se de tal gesto, porque dorme uma pessoa no compartimento, ele deixaria de ser
um animal – pensaria. Um comportamento deste género está necessariamente ligado ao

2
Processo concreto de comunicação inter-subjectiva com a ajuda de sinais sonoros; actualização da linguagem;
qualquer segmento de uma oração limitado por pontos sucessivos em que é possível fazer pausas.
pensamento linguístico. Sem a linguagem, o homem perde a atitude categorial e, assim, a
faculdade de pensar.

A linguagem é tão velha como a consciência; é a consciência prática, que existe também para
outros homens, que portanto existe e é real igualmente para mim, e a linguagem tal como a
consciência, não nasce senão da carência, da necessidade do comércio com outros homens.

Não é possível o pensamento sem a linguagem; mas isto não significa que só se produzam
operações verbais nos processos de pensamento. É nas palavras que pensamos. Querer pensar
sem as palavras é uma tentativa insensata. A palavra dá ao pensamento a existência mais elevada
e mais verdadeira.

A faculdade de pensar, e de pensar sem palavras, não foi dada aos homens senão graças à
palavra. A função cognitiva do pensamento não se realiza sem a linguagem e, por outro lado,
a função comunicativa da linguagem não se realiza sem o pensamento. É certo que o
pensamento é sempre um acto individual levado a efeito por um indivíduo definido, mas é
também um fenómeno social: 1) é socialmente condicionado e impossível, sem a participação do
sujeito a pensar na comunidade humana; 2) o pensamento, por exemplo, científico ou político de
um indivíduo exerce influência na sociedade. O mesmo se passa com a linguagem: não só assume
uma função social enquanto instrumento de comunicação

Bibliografia
PENCO, Carlos. Introdução à Filosofia da Linguagem. Rio de Janeiro, Vozes, 2006.
CAPÍTULO II
ESTRUTURALISMO

1. Definição do estruturalismo e seu enquadramento nos problemas filosóficos da linguagem

2. O contributo de Ferdinand de Saussure (1857 - 1913)

O Curso de Linguística Geral dado por Ferdinand de Saussure na Universidade de Genebra, entre
os anos de 1906 e 1911 teve em particular o mérito de definir pela primeira vez, e de maneira
magistral, um certo número de conceitos-chave: a distinção entre língua e fala, a noção de língua
como sistema, etc. Vários sectores das ciências humanas, inclusive a Filosofia da Linguagem
foram influenciados pelas pesquisas de Saussure que permitiram o prodigioso desenvolvimento
ao longo do século XX.

- Apresente pormenorizadamente o contributo saussureano para a revolução da ciência


linguística.

2.1. A Semiologia
Semiologia – é a ciência que estuda a vida dos sinais no quadro da vida social pode ser parte da
psicologia social e, consequentemente, da psicologia geral. O seu objectivo está em nos dizer em
que consiste os sinais, que leis os regulam. Isso quer dizer que os sinais não são apenas os
linguísticos, mas diz respeito a outros sistemas de sinais como os ritos simbólicos, o alfabeto dos
surdos-mudos, as formas de cortesia, os sinais militares, a própria moda, os sinais visuais,
marítimos, etc.

Para Saussure, o sinal é uma identidade de duas faces: a do significado e a do significante. A


língua é comparável a uma folha de papel onde o pensamento é a frente sem cortar ao mesmo
tempo o verso.
2.2. Sincronia e diacronia
Com a oposição entre sincronia3 e diacronia4, Ferdinand de Saussure efectua autêntica revolução
na ciência da linguagem. Saussure revolucionou a ciência linguística, na medida em que querer
falar da lei linguística em geral é querer agarrar um fantasma. Ele dá uma fundamentação
epistemológica à linguística, atribuindo-a a linguagem como seu objecto de estudo, propondo
sincronia e diacronia como métodos, numa altura em que várias ciências reivindicavam a
linguagem como seu objecto de estudo. Ademais, o linguista suíço estava preocupado com
significados, propondo a polissemia que nos permite perceber várias significações do conceito em
análise. É com o desenvolvimento da linguística saussuriana que aparece como necessária uma
reflexão filosófica sobre a linguagem.

3
Refere-se ao estudo da língua vista como sistema, não considerando as mudanças ocorridas no tempo. É por assim
dizer, linguística estática.
4
Estuda as relações que ligam termos sucessivos, não percebidos pela consciência colectiva e que se substituem uns
aos outros sem formar sistemas entre si. É, por assim dizer, linguística evolutiva.
CAPÍTULO III
DIMENSÃO ÉTICA DO DISCURSO EM KARL-OTTO APEL E JÜRGEN HABERMAS

1. Contexto histórico do surgimento da Ética do Discurso


O termo “Ética do Discurso” foi introduzido entre os filósofos alemães como designação de um
princípio de fundamentação da ética que Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas representam em seus
traços principais. Este termo surge numa altura conturbada devido as contendas bélicas da arena
internacional, guerra fria, os regimes totalitários: fascismo na Itália de Benito Mussolini; nazismo
na Alemanha hitleriana; corporativismo em Portugal salazariano. Devido a esses acontecimentos
a ética kantiana já não era suficiente para suster os conflitos – daí a necessidade de instaurar um
clima de diálogo, por meio da ética do discurso de Apel e Habermas.

2. Karl-Otto Apel: a concepção deficiente da linguagem


A concepção “técnico-científica” da linguagem reduz a linguagem a um sistema de sinais
subordinado a um mundo pré-linguisticamente “dado”. O aspecto lógico-semântico e a função
descritiva da linguagem foram separados de sua dimensão expressivo-pragmática. A lógica do
conhecimento foi separada da linguagem já desde Platão e Aristóteles, passando depois pela
escolástica, descartes, o “primeiro” Wittgenstein e o empirismo lógico.

Nas duas tradições do estudo da linguagem: analítica e transcendental é reconhecida a


importância da linguagem para o conhecimento e para a mediação entre teoria e praxis. Porem, a
maneira de se entender a índole e o papel da linguagem é diferente em cada uma delas. A posição
analítica limita a problemática da linguagem aos aspectos sintáctico-semânticos, separados da
dimensão pragmática. A função designativa é a única levada em consideração no processo do
conhecimento. A linguagem vulgar é desqualificada em favor das linguagens artificiais
científicas, controladas por uma sucessão sem fim de metalinguagens.

As duas posições são, para Apel, contrárias à experiencia, na qual a dimensão hermenêutico-
pragmática da linguagem é tão importante quanto a lógico-semântica. Por outro lado, a
abordagem analítica, ainda que reconhecendo a importância da linguagem para o conhecimento,
focaliza a linguagem como um objecto, sem conseguir perceber que ela é também, e
fundamentalmente, condição de possibilidade de nosso conhecimento de objectos.

A valorização do uso comum da linguagem mostrou que a sintaxe depende da semântica, a qual
supõe, por sua vez, a pragmática. Este enfoque exige não perder de vista o carácter
intersubjectivo da linguagem, que nunca se reduz à relação de um sujeito com os objectos
mediante sinais, senão que consiste sempre num mútuo entendimento de diversos sujeitos a
propósito dos objectos.

Tampouco deve ser esquecida a importância da pragmática na relação linguagem-conhecimento,


porque a verdade das teorias não pode ser estabelecida apenas pelos “dados dos sentidos”, senão
mediante a praxis do trato com as coisas significadas pela teoria. Toda linguagem artificial é,
assim, uma “continuação controlada da abertura de mundo da linguagem vulgar”.

3. Ética do Discurso em Jürgen Habermas


O ideal de comunicação racional de Habermas – uma situação ideal de fala em que todos os
interlocutores partilham um conjunto de regras ou critérios e cujo objectivo último é o consenso -
só seria verdadeiramente exequível dentro de uma comunidade que partilha o mesmo background
e um conjunto de jogos de linguagem.

É necessário respeitar a posição de Habermas em pretender criar uma linguagem universal, pois
suprimir os desacordos entre os homens significaria extirpar da existência humana uma das suas
dimensões constitutivas, que é a conflitualidade: actividade quimérica, evidentemente, mas resta
saber de Habermas o que é linguagem universal? Será que referia-se a língua comum à
humanidade ou língua perfeita capaz de tudo dizer sem qualquer ambiguidade? Será que existe o
verdadeiro universalismo linguístico ou é utopia habermasiana? Não será um projecto longínquo
e irrealizável?
“Habermas defende ferozmente a ideia segundo a qual, existem regras comuns a todos os que
querem comunicar. Ele não se contenta em deixar as narrativas que mantêm a nossa cultura
unida fazerem o seu serviço. Está a coçar onde não faz comichão” (RORTY, 1991:261). Não
poderemos obter a metanarrativa. Pensando assim, Habermas enveredou pelo caminho errado.

Na sua obra Teoria do Agir Comunicativo elabora uma teoria pragmática universal da linguagem
e o sujeito que a usa, procurando as condições universais necessárias duma possível comunicação
linguística que permite a produção de discursos possíveis, partilhados por todos. As regras
comuns a todos os que querem comunicar são quatro: compreensibilidade, verdade, veracidade
e pretensão de justeza. Se faltar uma destas quatro regras, não é possível nenhuma comunicação
entre os interlocutores – isso pressupõe três condições para que haja um agir comunicativo:
seres iguais, livres e capazes de raciocinar.

Habermas critica o relativismo cultural porque existe uma lógica “inter-subjectiva” da


argumentação que é trans-cultural, ou seja, não se limita aos confins de uma cultura particular.
Critica também o relativismo pós-moderno (Lyotard): mesmo porque existe uma multiplicidade
de jogos linguísticos; é necessário um “mínimo comum denominador” racionalmente fundado,
que permita um diálogo entre as culturas.

Bibliografia
CARVALHO, Maria Cecília M. de. A Filosofia Analítica do Brasil. São Paulo, Papirus, 1995.
CAPÍTULO IV
ANÁLISE FENOMENOLÓGICA EM HUSSERL E EXISTENCIAL DA LINGUAGEM
EM HEIDEGGER

1. Análise fenomenológica da linguagem em Edmund Husserl


Para a concepção tradicional, de Platão a Husserl, a linguagem é compreendida como mero
suplemento das ideias, incapaz, portanto, de expressar a essência das coisas. A relação entre a
linguagem e o mundo não pode ser explicada logicamente porque o “mundo” é linguagem. A
linguagem sempre já é anterior a toda pergunta específica sobre qualquer coisa no mundo. A
linguagem abre o mundo, ela tem papel constitutivo na nossa relação com o mundo, mas não é
um objecto do mundo e, por isso, não podemos simplesmente submetê-la às distinções
tradicionais, como entre “realidade” e “representação”. Não há como escapar da linguagem, não
há um “fora” da linguagem, nem pensamentos “pré-linguísticos”. A linguagem sem comunicação
é o monólogo ou a voz da “vida solitária da alma”.

Um enunciado pode ser proferido e entendido, mesmo se o objecto (referente) não esteja
disponível ao falante e ao ouvinte. Por exemplo, o enunciado “o céu é azul” é inteligível e
comunicável mesmo se o interlocutor não vê o céu, mesmo se o autor da frase não o vê e mesmo
se está chovendo no momento da comunicação. Assim, pertence à estrutura do enunciado poder
funcionar separado de seu referente.

As expressões agramaticais, desprovidas de lógica devem ser banidas do discurso filosófico


rigoroso, uma vez que o que interessa a Husserl é o sistema de regras de uma gramática universal,
sob o ponto de vista lógico e epistemológico, formando assim, aquilo que denominou uma
“gramática pura lógica”. Desse modo, as expressões consideradas problemáticas por Husserl e
que perturbam seu projecto logicista são as expressões sem sentido. Husserl admite que nem
todas as expressões estão destinadas a comunicar.

Um diálogo interior é algo puramente imaginário e não constitui uma comunicação genuína e
efectiva, visto que a característica inicial da linguagem resta sem utilidade. Senão vejamos o que
escreve o próprio Husserl: nas Meditações cartesianas, mais especificamente na quinta
meditação, Husserl fala sobre a não presença do outro, que nunca estaria presente, a quem o “eu”
nunca terá acesso senão por analogia. Quando eu escuto o outro, o seu vivido não está presente
para mim, originariamente, em pessoa. Para Husserl, é possível ter uma intuição originária ou
uma percepção imediata do seu corpo, gestos e fala, isto é, daquilo que ele expõe ao mundo. Mas
a sua consciência, os actos pelos quais o outro dá sentido aos seus signos, não me estão imediata
e originariamente presentes. O vivido do outro apenas se manifesta para mim através da
mediação simbólica, isto é, através de signos que comportam uma face física e não através de
nossa intuição originária e imediata.
2. Análise existencial da linguagem em Martin Heidegger
2.1. O caminho para a linguagem

O caminho para a linguagem - isto soa como se a linguagem estivesse bem longe de nós,
em alguma parte, de modo que para lá chegar ainda teríamos que nos pôr a caminho. Será
mesmo necessário um caminho para a linguagem? Segundo uma antiga tradição, nós
somos aqueles seres capazes de falar e, assim, aqueles que já possuem a linguagem. A
capacidade de falar, ademais, não é apenas uma faculdade humana, dentre muitas outras.
A capacidade de falar distingue e marca o homem como homem. Essa insígnia contém o
desígnio de sua essência. O ser humano não seria humano se lhe fosse recusado falar
incessantemente e por toda parte, variadamente e a cada vez, no modo de um "isso é", na
maior parte das vezes, impronunciado. À medida que a linguagem concede esse sustento,
a essência do homem repousa na linguagem. Somos, antes de tudo, na linguagem e pela
linguagem. Pretende-se trazer a linguagem como linguagem para a linguagem (Cfr.:
HEIDEGGER; 2003: 191).

2.2. Concepção heideggeriana da linguagem


Heidegger não pretende definir um conceito sobre a essência da linguagem, não quer discutir
apenas algum aspecto ou outro dela, nem oferecer uma concepção de linguagem que satisfaça
uma representação a ser usada por toda parte. Seu intuito não é conduzir a linguagem ao fazer tal
colocação, mas conduzir nós mesmos para o lugar da essência da linguagem, do seu modo de ser.
Ele quer penetrar na fala da linguagem, para chegar à sua morada. Ele não quer esclarecer
outras coisas por meio da linguagem, mas fundamentá-la com base nela mesma.

É a partir da fala da linguagem que Heidegger pretende acessar a linguagem por ela mesma. O
pronunciamento do discurso é o meio pelo qual expressamos a fala. O escutar é linguagem
porque o discurso fala em nós. Para escutar é preciso silenciar-se. A linguagem fala como ressoar
do silêncio, que por sua vez, carrega em si o mundo. Ao fazer um estudo sobre a linguagem,
Heidegger busca a morada para a essência do homem.
A linguagem pertence, em todo caso, à vizinhança mais próxima do humano. A linguagem
encontra-se por toda parte. Não é, portanto, de admirar que, tão logo o homem faça uma ideia do
que se acha ao seu redor. O pensamento busca elaborar uma representação universal da
linguagem. Heidegger pretende pensar a linguagem ela mesma e somente desde a linguagem. A
linguagem ela mesma: a linguagem e nada além dela. A linguagem ela mesma é linguagem. A
linguagem fala. Deve-se levar a sério uma resposta assim? Talvez, isto é, se ficar claro o que
significa falar5.

De acordo com as palavras que abrem o prólogo do Evangelho de São João, no princípio era a
palavra e a Palavra estava em Deus. Essa posição procurou não apenas libertar a questão da
origem das cadeias de uma explicação lógico-racional como também recusar os limites impostos
por uma descrição puramente lógica da linguagem. Opondo-se à determinação do significado das
palavras exclusivamente como conceitos, essa posição coloca em primeiro plano o carácter
figurativo e simbólico da linguagem. Desse modo, a biologia, a antropologia filosófica, a
sociologia, a psicopatologia, a teologia e a poética buscaram descrever e esclarecer de maneira
mais abrangente os fenómenos da linguagem.

2.2.1. A linguagem enquanto morada humana segundo Heidegger


“Falar um com o outro significa: dizer algo para o outro, mostrar um para o outro alguma coisa
e confiar-se mutuamente ao que se mostra” (Heidegger). O homem é dotado de um atributo que o
faz se destacar entre tantos seres que existem na face da terra. Há nele uma capacidade que o
especifica, que faz dele um ser social, de relação e interacção. Esta especificidade é a linguagem,
atributo que faz do homem um ser vivo notável, que o qualifica enquanto tal.

No início da obra A Caminho da Linguagem, Heidegger diz:


O homem fala. Falamos quando acordamos e em sonho. Falamos continuamente. Falamos
mesmo quando não deixamos soar nenhuma palavra. Falamos quando ouvimos e lemos.

5
A fala é uma actividade dos órgãos que servem para a emissão de sons e para a escuta; é expressão e comunicação
sonora de movimentos da alma humana. Esses movimentos são acompanhados por pensamentos.
Falamos igualmente quando não ouvimos e não lemos e, ao invés, realizamos um trabalho ou
ficamos à toa. Falamos sempre de um jeito ou de outro.

Tal citação ajuda-nos a ter uma compreensão mais totalizante acerca da linguagem humana e
entendermos o quanto o ser humano é próximo da linguagem. A linguagem é algo muito próximo
do ser humano, algo que o encanta e que o faz participante do mundo. É na linguagem que
Heidegger vai encontrar a forma de interpretar o homem enquanto partícipe deste mundo.
“A linguagem é a casa do ser. É nessa morada que habita o homem”.

Pela humanidade do homem é que ele se comunica, possui uma linguagem, o que o distancia dos
demais seres presentes na natureza. “Heidegger afirma que falamos porque somos homens e, por
conseguinte, falamos quando estamos acordados ou em sonhos, falamos quando não deixamos
soar nenhuma palavra” (ASSIS JÚNIOR; 2004: 388). Heidegger nos propõe que conheçamos a
linguagem por ela mesma, nada mais além da linguagem. A linguagem fala, a fala é o que vigora
a linguagem enquanto linguagem. É preciso explorar a fala para podermos morar na
linguagem. O falar do homem não é apenas uma de suas inúmeras capacidades, mas é algo que
marca o ser humano de forma profunda, a capacidade do falar nos distingue dos demais seres da
natureza e nos faz sermos verdadeiramente homens. “O ser humano não seria homem se lhe
fosse recusado falar necessariamente” (HEIDEGGER; op. cit., p. 191).

A fala se expressa no dito e também no silêncio. Isto se dá pelo fato de em determinadas


situações, diante de uma admiração profunda ou de um terror atroz o homem perder a fala, mas
ele não se emudece, pois continua a dizer, pois ele se sente tocado. Ou pode acontecer, por meio
de um acidente ou deficiência, perdemos a capacidade de falar, mas mesmo nesta situação o
homem não se silencia. “Falar implica em articular sons, seja falando ou calando, e mesmo
na mudez, quando não podemos falar” (Ibidem, p. 193).

A linguagem possui uma autonomia em relação ao homem, não é o homem que produz a
linguagem, ela não é obra humana, é totalmente autónoma. Heidegger considera a linguagem
como sendo um elemento muito característico da nossa humanidade, a partir dela é que se
desvela a verdade do ser. A linguagem é a base da nossa realidade, pois clarifica os fenómenos e
é lugar privilegiado para respondermos como ser-aí (Dasein), enquanto seres no mundo.

“Quando o homem fala… ele fala após ter consentido em ouvir a língua. Mesmo não saber
entender a língua é uma forma de escuta. O homem fala a partir da língua [...] Na verdade, é a
língua que fala e não o homem. O homem fala na medida em que corresponde à língua”
(BEAINI; 1986: 92). É, portanto, na linguagem que se desvela quem verdadeiramente somos, as
potencialidades que temos, a manifestação autêntica do ser.

2.2.2. A linguagem na poesia


Heidegger está preocupado em determinar a essência da poesia e a eleva dizendo que ela é o
acontecimento fundamental do Ser que se manifesta em palavra. Ele propõe que o primado na
poesia é do Ser e não do poeta, porque para ele, neste caso, não é o poeta que tem a linguagem,
mas é a linguagem que o tem.

A poesia de um poema está sempre impronunciada. Nenhum poema isolado e nem mesmo o
conjunto de seus poemas diz tudo. Cada poema fala, no entanto, a partir da totalidade dessa única
poesia, dizendo-a sempre a cada vez. Cada poema necessita assim de um esclarecimento. O
esclarecimento deixa brilhar como numa primeira vez o clarim da claridade que transluz no que
se diz poeticamente.

A conversa do pensamento com a poesia busca evocar a essência da linguagem para que os
mortais aprendam novamente a morar na linguagem. O diálogo do pensamento com a poesia é
demorado. Trata-se de um diálogo que mal acabou de começar.

A linguagem é de modo essencial fala. A fala da linguagem se dá também por meio da poesia,
que é a forma mais autêntica de manifestação da linguagem, segundo Heidegger. Não é o homem
que fala, mas a linguagem. Portanto, a linguagem não é algo que o homem expressa, pois ele está
nela e é falado na linguagem. A linguagem, nesse caso, guarda uma relação de anterioridade
ao falante. É devido ao fato de que a linguagem fala que o homem é capaz de falar. O poeta
possui uma sensibilidade aberta para o mundo tocá-lo, ele deixa as coisas serem elas mesmas
quando emite sua fala. Na poesia o ser não se define, ele se mostra. Muitas vezes não há
explicação clara na poesia justamente porque ela as mostra, nesse mostrar das coisas também é
exibida a obscuridade própria delas.

Bibliografia
HEIDEGGER, Martin. A Caminho da Linguagem. São Paulo, Vozes, 2003.
______. Ser e Tempo. 14. ed., Rio de Janeiro, Vozes, 2005, pp. 218-226.
CAPÍTULO V
HERMENÊUTICA COMO INTERPRETAÇAO DA LINGUAGEM

A tese fundamental da hermenêutica é que é possível a comunicação e o entendimento através da


linguagem, mas concebe que essa comunicabilidade não é natural nem automática, nem
transparente; ao contrário, deve ser buscada metodicamente e sempre resta problemática. A
experiência das falhas na compreensão é o ponto de partida da hermenêutica. Hermenêutica é
interpretação de manifestações linguísticas; arte de evitar a má compreensão. “Tudo o que se
propõe na hermenêutica é unicamente linguagem” (Schleiermacher).

1. Contributo de Hans-Georg Gadamer


Gadamer inaugura a hermenêutica filosófica. Para ele, a compreensão é o próprio modo de ser do
sujeito; tematiza a pré-compreensão e o pré-conceito não mais como entraves para acesso puro e
objectivo às verdades do mundo, mas como a constatação de que pretender uma apreensão das
coisas de forma neutra, absoluta, objectiva é uma ingenuidade pueril (infantil, fútil) ou um acto
de tremenda soberba (arrogância).

Em Gadamer, a experiência é irrepetível e, mais ainda, a repetição não é experiencia. A


experiência é um veículo necessário no movimento de compreensão, pois o conhecimento
filosófico sem a experiência é um conhecimento oco, descarnado, pura forma. Nas palavras de
Gadamer, “a verdadeira experiência é aquela em que o homem se torna consciente de sua
finitude”. Dito doutro modo, a verdadeira experi6encia é sempre experiência negativa. O que não
só pode, mas deve ser feito, é uma constante revisitação, reabilitação ou revisão desses
preconceitos e prejuízos, num contínuo movimento crítico. É através desse criticismo que se pode
distinguir a pré-compreensao autêntica dos preconceitos e pré-juízos falsos, os quais levam,
frequentemente, o interprete ao mal entendido.

O hermeneuta carrega seu próprio horizonte histórico, a que Gadamer nomeou de fusão de
horizontes. Os “prés” são a possibilidade que o sujeito tem para poder iniciar qualquer processo
compreensivo.
Compreender um texto não é reconstruir uma vida passada, mas significa participação actual no
que se diz. A fixação do texto por escrito permite que o leitor compreensivo possa erigir-se em
advogado da sua pretensão de verdade. Aquilo que ele compreendeu será sempre mais que uma
opinião. Pessoas pouco aproximadas à leitura não suspeitam que algo escrito possa ser falso. Para
este tipo de pessoas, todo escrito é documento que se avaliza (legitima) a si mesmo.

O intérprete não enfrenta o texto como tábua rasa, mas sim tábua plena. Ele se aproxima do texto
com a sua pré-compreensão, cheio de pré-juízos ou ideais, com base na sua memória cultural
(linguagem, teorias, mitos, lendas, etc.) que vão chocar quando o intérprete esboçar uma primeira
interpretação do texto que pode ser adequada, justa ou errada em relação ao texto original.

Cada interpretação se efectua à luz do que se sabe e o que se sabe muda no decurso da história
humana: mudam as perspectivas (conjecturas ou pré-juízos) com que se olha um texto, cresce o
saber sobre o contexto e aumenta o conhecimento sobre o homem, a natureza e a linguagem,
criando novas hipóteses interpretativas a submeter à prova.

Para Francis Bacon, a compreensão só é possível libertando-se dos ídolos porque estes, no seu
entender, enjaulam a nossa mente, razão pela qual, urge a necessidade de expurgar a mente dos
ídolos que na perspectiva gadameriana podem ser entendidos como preconceitos ou pré-juízos,
ou ainda, tradição. Contrariamente a Bacon, para Gadamer os pré-juízos não têm um significado
depreciativo - são conjectura ou pré-suposição. Os juízos de hoje serão pré-juízos de amanhã e os
pré-juízos de ontem e de hoje serão os juízos de amanhã. Quem quiser compreender um texto
deve estar pronto a deixar que o texto lhe diga alguma coisa.
2. Contributo de Paul Ricoeur: relação entre fala e escrita

Ricoeur é filósofo. Sendo filósofo, um hermeneuta. Sendo hermeneuta, se debruça sobre a


linguagem. Pode ser classificado como filósofo da linguagem, na medida em que a linguagem
passou a ser, para nós, o lugar próprio do filosofar e não apenas mais uma área do interesse
filosófico. Ele concebe a linguagem como o meio onde o ser é dito; como a escuta do dizer do
ser.
Edvino Rabuske considera-o um dos maiores filósofos da linguagem nos tempos actuais. Ricoeur
se lança ao estudo das diversas dimensões da linguagem, sejam elas lógicas, epistemológicas,
antropológicas, culturais, ontológicas ou teológicas. A linguagem, em sua constituição
ontológica, é algo que se efectiva plenamente na interpretação. Aliás, não há manifestações
discursivas que não precisam de interpretação.

Heidegger põe em movimento uma nova revolução copernicana na hermenêutica. Para ele, o
primado da compreensão não pode ser apenas gnoseológico, mas, antes de tudo, ontológico. É o
ser que deve ser interpretado.

Para Ricoeur, o discurso é sempre discurso a respeito de algo” refere-se a um mundo que
pretende descrever, exprimir ou representar. Mas o discurso também é interpessoal, ele se dirige a
um outro que pode ouvi-lo, prolongá-lo ou mesmo interrompê-lo. Com Ricoeur, a compreensão
não elimina a explicação e nem vice-versa, antes pelo contrário, para o filósofo, a explicação é o
caminho obrigatório da compreensão.

Antes da escrita, a função de fixar a fala é dada pela Memória (deusa, Musa dos poetas). Se para
os gregos antigos, a passagem da fala à escrita vai propiciar uma autonomia dos homens em
relação aos deuses, para Ricoeur, tal movimento, representará a possibilidade da autonomia do
texto em relação ao seu autor. Graças à escrita, o “mundo” do texto pode explodir o mundo do
autor. O falar e o ouvir é substituído pelo par escrever e ler. O texto é o lugar privilegiado da
significação e esta é sempre algo a ser produzido. O solo próprio da hermenêutica é a linguagem
escrita.
Bibliografia
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Método. 3. ed., Brasil, Vozes, 2009.

RICOEUR, Paul. Teoria da Interpretação. Lisboa, 70, 1987.


CAPÍTULO VI
AS ESCOLAS LIGADAS AO NEOPOSITIVISMO E OS FILÓSOFOS DA LINGUAGEM

1. O Circulo de Viena - o positivismo lógico ou empirismo lógico


2. Wittgenstein I e II: Do “Tratado Lógico-Filosófico” às “Investigações Filosóficas”
Com a publicação do Tratado Lógico-Filosófico, Wittgenstein pensou ter dito, nesse livro curto e
denso, tudo o que há a dizer em Filosofia, mas sete anos depois constatou que havia se
equivocado e passou a liderar um grupo de estudos em Cambridge, de onde saíram as anotações
para Investigações Filosóficas. Nesta última obra ele muda completamente de ideia em relação ao
que havia escrito em seu primeiro livro, quando revolucionou a lógica. Nela, Wittgenstein
assume que a lógica tem limites: a linguagem é um tipo de jogo que não alcança tudo.

O Tratado Lógico-Filosófico corrobora a tese de que a linguagem tem uma estrutura lógica, cuja
elucidação poderia ser possível. Por conseguinte, a elucidação desses problemas de ordem lógica
clarificaria a natureza da linguagem e, consequentemente, erradicaria de nossas mentes os
problemas filosóficos tradicionais. Sob a perspectiva do Tratado Lógico-Filosófico, “a proposição é
uma imagem da realidade (…); ela mostra o seu sentido; mostra como as coisas se passam se é
verdadeira… A realidade tem que ser fixada pela proposição, pois a proposição é a descrição de um
estado de coisas” (WITTGENSTEIN, 1995:55-56).

Na sua “filosofia primeira”, a função essencial da linguagem é descritiva e representacional. De


modo geral, a linguagem é considerada como devendo servir de imagem ou de espelho fiel do
real. Esta concepção exclui todos os usos da linguagem que não sejam científicos, descritivos ou
informativos. Uma proposição é a imagem de um facto.

“As minhas proposições são esclarecimentos, na medida em que aquele que me compreende as
reconhece no final como sendo desprovidas de sentido, quando foi através delas – passando sobre
elas – que ele as ultrapassou. (Ele deve, por assim dizer, derrubar a escada depois de ter subido
por ela)” (WITTGENSTEIN, apud., HOTTOIS, 2002:313).

É importante referir que o Tratado Lógico-Filosófico foi um empreendimento teórico


extremamente ambicioso. Nele, Wittgenstein afirmou categoricamente, que tinha resolvido todos
os problemas da Filosofia. Entretanto, não foi o que ocorreu. Pouco tempo depois, o austríaco
apercebeu-se de que as imprecisões e generalizações dos termos da linguagem ordinária deveriam
ser compreendidas da forma como se manifestam. O carácter lógico-analítico presente nela
paulatinamente foi enfraquecendo, e Wittgenstein tornou-se mais atento à variedade do discurso
comum.

No Tratado, (...) caso as nossas palavras sejam utilizadas como, por exemplo, na ciência, elas
representam recipientes que nada mais podem conter do que uma interpretação natural e um
sentido natural. No entanto, as nossas palavras só expressam factos. Como uma chávena de chá,
onde somente cabe uma chávena cheia de água, ainda que despeje litros sobre ela (HABERMAS,
2001:81).

Perante este posicionamento, o revolucionário Wittgenstein das Investigações Filosóficas irrita-se


não contra a ciência e a sua linguagem, mas sim contra um cientismo que discrimina como sendo
absurdo tudo aquilo que não se deixa exprimir nesta linguagem, ou o talha à medida do próprio
formato e assim o aniquila.

Nas Investigações Filosóficas, sua obra madura de reflexão sobre a linguagem, ele propõe a
substituição da pergunta pelo significado pela pergunta sobre o uso, pois se há inúmeras maneiras
pelas quais “usamos” a linguagem, deve haver, portanto, vários “jogos de linguagem”, vários
usos, cada qual com sua regra específica, irredutíveis entre si. A linguagem, portanto, não é
regida unicamente pela ordem lógica, mas pela social, sobretudo.

O que marca o novo posicionamento de Wittgenstein é a mudança programático-teórico sobre a


linguagem. O Wittgenstein do Tratado Lógico-Filosófico preconizava uma perspectiva lógica,
semântica e proposicional, considerando que a linguagem é um conjunto de proposições. Destas,
apenas interessaria avaliar o seu valor de verdade. A proposição seria detentora de sentido se
pudesse ser considerada verdadeira ou falsa, o que era extremamente limitador para, por
exemplo, proposições sobre a moral ou sobre a estética. No Tratado o sentido das preposições era
determinado, agora em Investigações o sentido não é mais determinado, é indeterminado.
O Wittgenstein das Investigações Filosóficas filia-se numa pragmática que defende que a
linguagem é constituída por jogos. Os “jogos de linguagem” são uma dinâmica constante,
essencial a qualquer forma de vida. Nesta obra, diferentemente do Tratado a linguagem não é
mais uma representação da realidade. Aliás, a linguagem pode até distorcer a realidade.

3. Wittgenstein II: As Investigações Filosóficas


3.1. Jogos de linguagem
Jogos de linguagem são inumeráveis actividades contínuas, formas de vida não estáticas: sinais,
palavras, proposições que permitem falar uma linguagem, revelando os comportamentos
humanos; são, sobretudo, “(...) multiplicidade de instrumentos de linguagem e dos seus modos de
emprego” (REALE & ANTISERI, 1991:665). “Ainda se pode entender por „jogos de linguagem‟
a transformação prática da teoria „linguística‟ e consiste em aderir à pluralidade original dos
mecanismos da linguagem, à diversidade essencial do seu pensamento” (JACOB, 1984:225).

Ademais, Wittgenstein define “jogos de linguagem” como uma combinação de palavras, de actos,
de atitudes ou de formas de comportamento que possibilita a compreensão do processo de “uso”
da linguagem em sua totalidade. Nesta ordem de ideias, é por meio de “jogos de linguagem” que
os indivíduos aprendem, na infância, a usar certas palavras ou expressões e, também, aprendem
como usar determinada palavra ou expressão linguística, num contexto determinado, visando
obter fins.

3.2. A multiplicidade de jogos de linguagem

Existe uma multiplicidade de jogos de linguagem, tais como: dar ordens e agir de acordo com
elas; descrever um objecto a partir do seu aspecto ou das suas medidas; construir um objecto a
partir de uma descrição (desenho); relatar um acontecimento; fazer conjectura sobre o
acontecimento; formar e examinar uma hipótese; representar os resultados de uma experiência
através de tabelas e diagramas; inventar uma história; lê-la; representar um teatro; cantar numa
roda; resolver adivinhas; fazer uma piada; contá-la; resolver um problema de aritmética aplicada;
traduzir de uma língua para outra; pedir, mentir, agradecer, praguejar, isto é, amaldiçoar ou
maldizer, cumprimentar, rezar... (WITTGENSTEIN, op. cit.: 190).

Dar ordens, fazer perguntas, narrar, conversar, pertencem tanto à nossa história natural como
andar, comer, beber, brincar. Aprender uma linguagem consiste em nomear os objectos, como
seres humanos, formas, cores, dores, estado de espírito, números… dar um nome é algo de
semelhante a pregar uma etiqueta numa coisa. Só dando nomes às coisas é que podemos falar
acerca delas, referirmo-nos verbalmente a “elas”.

Também faz parte do jogo de linguagem a invenção de um nome para uma coisa. Dizer: “isto
chama-se…” e aplicar o nome novo. Isto acontece nas crianças quando dão nomes às suas
bonecas e depois falam delas e para elas. Pode-se dizer: “só pergunta pelo nome de uma coisa
quem já sabe o que vai fazer com ela. Pode acontecer também que a pessoa a quem se faz a
pergunta responda: „Põe-lhe tu próprio o nome‟. Sendo assim, aquele que fez a pergunta tem de
resolver tudo sozinho” (Ibid., p. 197). Dar um nome é um acto notável da alma, quase um
baptismo de um objecto. A palavra só adquire sentido quando é usada na linguagem. As palavras
são etiquetas das coisas. “Tudo o que existe em e por si só pode ser designado com nomes; uma
outra determinação não é possível, nem a de que é nem a de que não é” (Ibid., p. 208).

“A linguagem é um jogo; „um jogo é jogado‟ de acordo com uma regra determinada. A regra
pode ajudar a ensinar o jogo. É transmitida à pessoa que aprende e que se exercita na sua
aplicação. Aprende-se o jogo vendo como é que os outros o jogam” (Cfr. Ibid., p. 218).

Quem pretende jogar deve conhecer as regras. De tal maneira que o jogador de xadrez deve
conhecer as regras deste jogo, de forma a poder deslocar convenientemente as peças, o mesmo
acontece com o uso da linguagem. É necessário referir que nos jogos de linguagem as suas regras
têm a sua legitimação em si mesmas, mas que elas constituem objecto de um contrato explícito ou
não entre os jogadores; a falta de regras cria a modificação do jogo, mesmo a modificação mínima
de uma regra modifica a natureza do jogo e que um “lance” ou um enunciado que não satisfaça as
regras não pertence ao jogo definido por estas; qualquer enunciado deve ser considerado como um
“lance” feito num jogo (Cfr. LYOTARD, s/ano:25-26).
Os “jogos de linguagem”, isto é, as maneiras como utilizamos realmente a linguagem, estão
indissoluvelmente associados a actividades práticas e executadas num contexto, num ambiente
natural, técnico e cultural, e histórico também. Todo o jogo de linguagem, toda a linguagem é
solidária de uma forma de vida. A linguagem não é, assim, qualquer coisa de único e de sublime,
como uma dádiva dos deuses ou como uma faculdade transcendente que faria o homem participar
num mundo imaterial e imutável (espiritual, ideal): a linguagem é empírica, complexa e
evolutiva, faz parte da história natural e cultural dos humanos.

Não há jogo de linguagem privilegiado. A heterogeneidade dos jogos de linguagem é radical.


Uma característica dos jogos de linguagem é o seu carácter público ou comum, intersubjectivo,
isto é, partilhado por um número maior ou menor de sujeitos falantes jogando os mesmos jogos e
observando as mesmas regras. A relativa estabilidade e a permanência dos jogos de linguagem
dependem inteiramente dessa prática comum, associada à educação, à cultura, aos costumes – à
forma de vida partilhados. Os jogos de linguagem também podem mudar, desaparecer, surgir, sem
que haja o menor universo de sentido imutável por detrás desses acontecimentos (HOTTOIS, op.
cit.: 316).

Por vezes, o sentido de uma proposição fica oculto, escondido, necessitando de um esforço
mental para pô-lo à tona. Por exemplo, alguém que diz: “A minha vassoura está ali no canto”,
concretamente quer dizer; o cabo está no canto e a escova também, e o cabo está pregado à
escova. O que acontece é que a pessoa não tinha especialmente pensado no cabo ou
especialmente pensado na escova. Ao invés de dizer: “Traz-me o cabo e a escova que lhe está
pregada”, dizemos muitas vezes: “Traz-me a vassoura”. O uso nunca é único: uma palavra
remete para uma família de usos, cuja coerência é analógica, exactamente como os membros de
uma família se assemelham de diversas maneiras, sem terem necessariamente um único traço
comum.

3.3. Terapia linguística


A terapia linguística deve ser entendida num sentido forte, como a libertação mental, a abertura
para muitas saídas, de forma a tratar uma questão, um problema filosófico como se fosse uma
doença; é a abertura, a possibilidade de pensar, “inventar” modos de considerar um conceito,
“jamais pensado ou sonhado”; é a eliminação da estrita, absurda e esperada possibilidade de
analisar os factos. Esta terapia das doenças da linguagem é a Filosofia. “A análise terapêutica põe
em valor a flexibilidade do dizer contra todas as escleroses e recaídas dogmáticas. É a lógica
informal do funcionamento das expressões que deve prevalecer sobre a análise formal do
positivismo lógico” (JACOB, op. cit.: 225).

A Filosofia constitui uma actividade terapêutica cujo objectivo é a luta contra o dogmatismo na
procura duma vida melhor e cujo desenvolvimento exige uma espécie de conversão, não teórica,
mas de atitude, na qual as personagens submetidas a terapia devem estar dispostas a uma
mudança significativa na maneira como enfrentam as contradições envolvidas no seu pensamento
e, ainda, na sua forma de vida.

4. A linguagem como objecto de reflexão da Filosofia


Em Filosofia, muitas vezes comparamos o uso das palavras com jogos, cálculos, com regras
fixas, mas não somos capazes de dizer que quem usa a linguagem tem que jogar um destes jogos.
Uma regra é como um sinal colocado “de vigia” a meio do caminho. É necessário dar explicação
às palavras, proposições. Uma explicação serve para afastar um equívoco ou para o impedir –
portanto um equívoco que sem ela poderia surgir; mas não para afastar todos os equívocos que
possa-se conceber. “O ideal da exactidão não é unívoco, não sabemos como o devemos conceber,
a não ser que tu próprio determines o que é que receberá este nome. Mas vai-te ser difícil fazer
uma determinação destas; uma que te satisfaça” (WITTGENSTEIN, op. cit.: 247).

Aquilo que sabemos se ninguém nos perguntar, e que já não sabemos se tivermos que explicá-lo,
é algo que temos que trazer à consciência. (E obviamente é algo que, por um motivo qualquer,
dificilmente trazemos à consciência). Esta investigação ilumina o nosso problema por afastar uma
possível má-compreensão que diz respeito ao uso das palavras, por certas analogias entre formas
de expressão em domínios diferentes da nossa linguagem.
O pensamento, a linguagem, aparece-nos como sendo um correlato único, uma imagem do
mundo. Os conceitos proposição, linguagem, pensamento, mundo, etc., seguem-se uns aos outros,
sendo cada um equivalente ao outro. Na “atmosfera” do acto de compreensão, as regras claras e
rigorosas da estrutura lógica da proposição surgem-nos como ocultas no plano de fundo.
Wittgenstein encara a Filosofia como sendo o combate contra o embruxamento, isto é,
enfeitiçamento da mente humana pelos meios da nossa linguagem. Os problemas da má
compreensão das nossas formas linguísticas tendem a ganhar uma profundidade, a multiplicarem-
se; constituem perturbações profundas.

Quando os filósofos usam uma palavra – „saber‟, „ser‟, „objecto‟, „eu‟, „proposição‟, „nome‟ – e
procuram captar a essência da coisa, devemo-nos sempre perguntar: na linguagem onde vive, esta
palavra é de facto sempre assim usada? Nos reconduzimos as palavras do seu emprego metafísico
ao seu emprego quotidiano (Ibid., p. 259).

O sentido de uma expressão não é unívoco, usando palavras do Wittgenstein, o sentido não é um
anel de vapor que acompanha a palavra, e que é transposto para cada uma das suas aplicações.
Com isso pretende-se dizer que, da maneira que compreendo uma expressão, não é
necessariamente da mesma que o outro compreenda-a. Existem inúmeros escrúpulos que
resultam da má compreensão.

Os resultados da Filosofia são a descoberta da simples falta de sentido e das bolhas feitas pelo
intelecto ao chocar com as fronteiras da linguagem (…) Quando eu falo acerca da linguagem (da
palavra, da proposição, etc.) tenho de falar da linguagem de todos os dias. O objecto da Filosofia é
a clarificação lógica dos pensamentos; ela não é uma doutrina, mas uma actividade que consiste
fundamentalmente em elucidações. O seu resultado não são proposições filosóficas, mas o
esclarecer das proposições. A Filosofia deve tornar claros e delimitar rigorosamente os
pensamentos, que doutro modo estão opacos e nebulosos (Cfr. WITTGENSTEIN, op. cit.,
passim).

Ademais, a Filosofia deve demarcar o que é pensável, e assim o impensável; deve igualmente
demarcar o impensável, do interior, através do pensável, mostrando o indizível, ao representar
claramente o que é dizível.
É necessário termos uma visão panorâmica do uso das nossas palavras, pois isso facilita a
compreensão. A Filosofia tem a função de descrever, e de modo nenhum deve a Filosofia tocar
no uso real da linguagem. Da mesma maneira não pode fundamentar a linguagem, devendo
deixar tudo como é. Frequentemente contradizemo-nos e dizemos: “Não foi isso que eu quis
dizer”. Nem sempre as coisas passam ou acontecem como supomos. O estatuto civil da
contradição; o seu estatuto na sociedade civil – este é o problema filosófico.

A linguagem, os diferentes jogos linguísticos, estão bem como estão e funcionam bem como
funcionam. A preocupação não é com a procura de um ideal linguístico, pois é claro que onde há
sentido deve estar tudo em regra, inclusive a frase mais vaga deve estar perfeitamente em regra.
Não se trata, pois, de corrigir as frases, mas de as compreender simplesmente, pois por mais que
estejam em regra (e não deixa de ser surpreendente), as expressões linguísticas podem ser mal
interpretadas. A Filosofia está essencialmente ligada a tais mal-entendidos (de certos usos
linguísticos). Como uma mosca metida numa garrafa, aos problemas filosóficos convidam-se a
sair, mostrando-se-lhes a abertura por onde passaram: o mal entendimento e a conclusão dos usos
linguísticos (CORDON & MARTINEZ, 1983:179).

Os jogos de linguagem são muito mais objectos de comparação, quer por semelhança e
dissemelhança irão esclarecer os factos da nossa linguagem. É urgente estabelecer uma ordem no
nosso saber acerca do uso da linguagem; é igualmente urgente e necessária a reforma da
linguagem para fins práticos determinados – isso passa entre outros aspectos pelo melhoramento
da nossa terminologia para evitar no nosso quotidiano equívocos. É necessário tirar a linguagem
do “ponto morto” em que se encontra, de forma a ressuscitá-la, a reduzir as confusões, mas deve-
se ter em conta que “ (...) não há um método mas há na Filosofia de facto, métodos, tal como há
diversas terapias” (Ibid., p. 265).
5. Escola de Oxford
5.1. Gilbert Ryle
Para Ryle, o filósofo deve incidir sobre a linguagem para descobrir, corrigir e prevenir os erros
lógicos, que consistem em atribuir um conceito a uma categoria à qual ele efectivamente não
pertence, mas que apresenta com ela unicamente afinidades gramaticais.

A preocupação de Ryle é reencontrar o uso linguístico dos termos e contribuir para a elucidação
dos falsos problemas. “A análise é a só e única tarefa da Filosofia e deve detectar na linguagem
corrente, como nas maneiras de falar dos filósofos, a soma dos erros e das suas dificuldades”
(JACOB, 1984:226). Ele mostrou como a má aplicação de um termo comum pode resultar num
erro categórico pelo qual filósofos podem ser seriamente enganados.

5.2. John Austin


Austin considera a linguagem comum como sendo a “linguagem rica”, devendo ser considerada
em si mesma; ser analisada, especialmente nas áreas filosoficamente candentes. A análise da
linguagem comum nos mostra entidades linguísticas com as quais nós não tanto dizemos coisas,
mas sim fazemos coisas (…); fazemos coisas com palavras. A linguagem comum não constitui a
última palavra em Filosofia: em princípio, ela pode ser sempre integrada, melhorada e superada,
mas deve-se notar que ela é somente a primeira palavra. “Nós não consideramos somente
palavras (…), mas também a realidade, para falar da qual usamos palavras. Nós utilizamos uma
consciência refinada dos termos para afinar a nossa percepção dos fenómenos” (AUSTIN,
apud., REALE; ANTISERI, 1991: 674).
6. Escola de Cambridge: George Edward Moore6
Wittgenstein é, tal como Moore, um filósofo do sentido comum? Como faz observar Ayer,
Moore: a) nunca mostrou qualquer interesse particular pela linguagem ordinária como tal; b)
nunca pretendeu que a filosofia pudesse consistir numa análise da linguagem; c) não pretende que
a análise filosófica seja puramente linguística. Moore defende a verdade de certas afirmações do
senso comum, e não a propriedade do uso linguístico comum, contra os ataques dos filósofos.

A terapia filosófica não é tanto uma questão de detectar o “disparate”, de detectar “violações da
linguagem”. É antes uma questão de detectar comportamento filosófico improdutivo e
autodestruído – o tipo de comportamento que nos conduz vezes sem conta aos mesmos becos sem
saída... (RORTY, 1991: 102).

Moore centra-se na defesa da veracidade do senso comum e a elucidação das proposições. As


estranhas asserções dos filósofos muitas vezes lhe pareceram bem enigmáticas. Para ele, os
filósofos tentam dar respostas sem antes ter analisado as perguntas às quais respondem. Por seu
turno, para Wittgenstein, o filósofo trata de uma questão como uma doença e assim resolve os
problemas desatando os nós linguísticos do nosso cérebro.

7. Bertrand Russell contra o segundo Wittgenstein e a Filosofia analítica


Para Russell, a primeira condição para que uma linguagem seja logicamente perfeita é uma
condição semântica; o princípio de isormofia semântica: „numa linguagem logicamente perfeita
haverá uma só palavra para cada objecto simples, e tudo o que não seja simples será expresso
por uma combinação de palavras‟ – é o seu atomismo lógico.

A linguagem ordinária, com vocabulário e com uma sintaxe não lógica, é imperfeita, com as suas
ambiguidades, a sua polissemia, vantajosa para a prática da comunicação mais inadequada à
lógica. Para Russell, “o significado consiste fundamentalmente na referência”.

6
Filósofo britânico, nascido em Londres aos 04 de Novembro de 1873 e veio a falecer aos 24 de Outubro de 1958.
Dedicou ao latim e ao grego a maior parte de seus estudos secundários. Foi como estudante de letras clássicas que
entrou, em 1892, no Trinity College, na Universidade de Cambridge. A amizade com Bertrand Russell conseguiu
convencê-lo a voltar-se para a Filosofia. Foi um crítico sempre vigilante; é também, por certo, um filósofo para os
filósofos.
A Filosofia analítica está preocupada com a relação entre as palavras e as coisas, ou melhor, entre
as palavras e a vida. Numa introdução escrita para a obra de Gellner, Russell considera a filosofia
do segundo Wittgenstein como uma espécie de exortação patética à preguiça intelectual. Ele
ataca ferozmente o “segundo” Wittgenstein dizendo que o “primeiro” Wittgenstein, o qual
admirava era homem empenhado intensa e apaixonadamente ao pensamento filosófico,
consciente dos inquietantes problemas filosóficos, um autêntico génio filosófico, mas o novo
Wittgenstein, ao contrário, apresenta doutrina melancólica; parece ter cansado de pensar
seriamente, e parece ter inventado uma doutrina capaz de tornar essa actividade desnecessária.

Russell não consegue aceitar de Wittgenstein e de todo o movimento analítico em seu conjunto de
que a linguagem da vida quotidiana, com as palavras usadas em seu significado comum, basta
para a Filosofia, pois esta não teria necessidade de termos técnicos ou de mudanças de significado
nos termos comuns. Ele é contrário a essa posição por várias razões, entre elas: a) porque é
insincera; b) porque é apresentada por alguns com o tom de cerimoniosa rectidão, como se a
oposição a ela fosse pecado contra a democracia; c) porque torna esmiuçada e superficial a
Filosofia; d) porque torna quase inevitável a perpetuação entre os filósofos daquela atitude
confusa que eles retomaram do senso comum (Cfr. REALE & ANTISERI, 1991:649-650).

Russell chama a essa posição como a prática da mística do uso comum. Esta análise filosófica na
sua visão exclui a linguagem técnica. Aos oxfordianos, Russell ataca dizendo que a Filosofia que
nela se faz parece uma disciplina desprovida de relevância e de interesse. Vai mais longe ao
dizer: “ (...) discutir ao infinito o que os tolos entendem quando dizem tolices pode ser divertido,
mas é muito difícil que seja importante” (Ibid., p. 650). Para ele, a Filosofia analítica interessa-se
tanto pelo sentido dos discursos do que por sua veracidade.

Em suma, “as acusações russellianas contra a Filosofia analítica são duas: por um lado, ela
praticaria o culto ao uso comum da linguagem, a despeito de toda linguagem técnica; por outro
lado, ao invés de buscar o sentido das coisas e da realidade, ela se ocuparia de modo estéril com
o sentido das palavras” (Ibid., p. 651).
Bibliografia

PINTO, António Vaz. Introdução ao tratactus lógico-philosophicus de Ludwig Wittgenstein.


Braga, Fransciscana, 1982.

RUSSELL, Bertrand. Significado e verdade. 2. ed., Rio de Janeiro, Zahar, 1984.

WITTGENSTEIN, Ludwig. Tratado lógico filosófico & investigações filosóficas. Lisboa,


Calouste Gulbenkian, 1995.

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