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A História de Um Silêncio - Um Estudo de Caso Sobre Questões Da Negritude em Uma Comunidade Batista Da Periferia Da Cidade de São Paulo
A História de Um Silêncio - Um Estudo de Caso Sobre Questões Da Negritude em Uma Comunidade Batista Da Periferia Da Cidade de São Paulo
Ao meu pai, Carlos, pelo apoio; as minhas irmãs, Claudia, Carol, Cássia e
Cíntia e ao meu irmão Junior, pela ajuda especial e pelo interesse constante
de cada um.
The aim of this work was to analyse in the single and plural ‘microbian’ practices,
issues related to negritude in the daily chores of a Maranata Baptist community, sited in
Grajaú district in the outskirts of São Paulo. By making use of the Oral History and
religious memory as a method of historiographic research, we gave word to a group of
persons from this evangelical community that label themselves black and dark, and thus
produced our source of documental analyses. We detected in their speech the perception
they have about themes concerned with Brazilian negritude, affirmative policies, the
existence of prejudice and racial discrimination in the present society and the position of
the community towards these issues. Because it is a very delicate and little discussed
theme among evangelical people, we realized that the community was not much
comfortable to discuss it. The speech of our interlocutors, that was apparently ambiguous
and even incoherent at times, as it accepted racial prejudice, and then denied it, was a way
found by these ‘consumers’ to conceal the modes of discrimination and exclusion also
noted by them within their community of faith. This way, in order for them to feel they
are accepted as part of the community, they constantly build up tactics to survive in the
midst of the strategies imposed by the religious domination.
KEY WORDS : Baptist church; negritude; racial prejudice; tactics and strategies.
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................. 11
3.1. Oralidade como ponto de partida na produção e análise dos documentos..... 100
3.2. A memória como objeto de pesquisa............................................................. 103
3.3. Táticas e estratégias: teoria certouriana......................................................... 104
3.4. Panorama geral das entrevistas através de gráficos....................................... 107
Bibliografia........................................................................................ 137
Anexos................................................................................................ 152
INTRODUÇÃO
1
O Museu Afro-Brasil, instalado no Parque do Ibirapuera, cujo objetivo é recuperar, preservar,
valorizar e divulgar o universo histórico-cultural do negro brasileiro. (Um projeto da Secretária
Municipal da Cultura de São Paulo em parceria com a Secretária Municipal do Verde e Meio
Ambiente de São Paulo, o Ministério da Cultura, a Petrobras, o Instituto Florestan Fernandes e a
Secretária Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial).
2
A negritude tem sido um tema de discussão da atual Secretária da Justiça e da Defesa da Cidadania do
Estado de São Paulo, Eunice Aparecida de Jesus Prudente.
os grupos militantes do movimento Negro. No entanto, percebemos que essa é uma
temática que pouco tem despertado o interesse das comunidades evangélicas do Brasil,
visto ser a igreja metodista o único exemplo de protestantismo de missão que possuí um
ministério de Ação Afirmativa. Assim, o presente trabalho quer ser uma contribuição,
ainda que modesta, para o debate da temática da negritude no âmbito religioso, mais
precisamente no campo protestante, na medida em que discute o preconceito racial numa
comunidade batista afro-descendente. Contudo, sua relevância não se restringe ao âmbito
estritamente religioso, se admitirmos que a igreja é um segmento da sociedade e uma
expressão de nossa cultura. Sendo assim, os problemas vivenciados por nossa sociedade,
também fazem parte da realidade de uma comunidade religiosa. Neste sentido, procurou-
se responder como os fieis da igreja batista Maranata entendem a participação social de
sua comunidade de fé em relação a questões do preconceito e da discriminação racial.
Uma vez que este estudo se interessa por processos históricos do tempo presente
e se preocupa em dar voz aos que foram silenciados pela história dominante, foi escolhido
como método de investigação científica a Historia Oral. Pois trata-se de um método que
permite pensar na particularidade, pressupondo que as subjetividades são categorias
importantes para se entender um processo histórico, sem desprezar as estruturas sociais e
a função da religião na sociedade, permitindo um enfoque da temática em pauta, a partir
da vivência religiosa dos sujeitos.
Para a elaboração dos documentos que foi produzido pela pesquisadora um
roteiro de perguntas abordando diferentes temáticas: preconceito e discriminação racial,
negritude brasileira, experiência do membro batista e sua percepção a respeito do
preconceito racial na comunidade batista Maranata. Para tanto foram selecionadas vinte
pessoas voluntárias que se autodenominaram ne gras, incluindo o líder da comunidade,
que, contudo, se autodenominou branco. Para obtenção de um quadro representativo e
geral da comunidade, foram entrevistados vinte membros efetivamente participantes da
comunidade, nove homens e onze mulheres com idades entre 24 a 59 anos. As entrevistas
foram feitas, a grande maioria, na casa do depoente para que este se sentisse mais
confortável e a vontade para conversar. Todas as entrevistas foram gravadas em fitas K7,
transcritas e anexadas na íntegra no final deste trabalho. Foi obtida autorização dos
depoentes para utilização total ou parcial de seus depoimentos, mediante a assinatura de
uma carta de concessão, produzida pela pesquisadora, permitindo liberdade ao depoente
de recusar-se a participar ou de retirar seu consentimento, em qualquer fase da pesquisa,
sem penalização alguma e sem nenhum prejuízo.
3
WIRTH, Lauri Emílio. Novas Metodologias para a história do cristianismo: Em busca da experiência
religiosa dos sujeitos religiosos. Conferências do XXVI Simpósio Anual do CEHILA/Brasil.
ampla da problemática negra em nossa sociedade. Neste sentido, o uso da História Oral
possibilitou o acesso a essa realidade complexa, ambígua e contraditória, que faz parte do
campo investigado. A oralidade, por apresentar uma gama enorme de subjetividade,
aparenta ser uma fonte pouco confiável, como pensavam os historiadores da Escola
Positivista, que privilegiavam a “verdadeira” história oficial, amparada por documentos
textuais. Marcos Antonio Lopes explica que para Immanuel Wallerstein, além de
privilegiarem os documentos textuais, estes eram interpretados como uma fiel reprodução
da realidade. “Tais fatos haviam sido registrados em documentos escritos, a maioria deles
localizáveis em arquivos. Esses sábios eram ferozmente empiristas. Agarravam-se a uma
visão tão próxima dos dados quanto possível, bem como a sua reprodução fiel na escrita
da história 4 .” Ao contrário, a subjetividade expressada através da oralidade não tira dela
sua confiabilidade. A entrevista responsável por produzir o documento da pesquisa não se
pretende a verdade, mas interessa-se em “documentar uma versão do passado, estudar
alguns fatos a partir de versões particulares, ou seja, procurar compreender a sociedade
através do indivíduo que nela viveu5 .” O foco que se pretendeu dar nessa pesquisa, ao
discurso oral do afro-descendente, tem como objetivo visibilizar as memórias marginais,
dando voz a um grupo de afro-brasileiros que pertencem a uma comunidade batista
localizada na zona sul, periferia da cidade de São Paulo. Ouvir esses sujeitos religiosos
possibilitou acesso às suas diferentes redes de significados.
Para que essas reflexões tomassem corpo, este trabalho foi dividido em três
partes, dando ênfase no primeiro capítulo a um histórico da comunidade estudada. Foi
feito um levantamento do processo de segregação social responsável pelo fenômeno da
favelização na capital paulistana, sugerindo uma trajetória que percorreu desde a
formação da cidade e o surgimento das fabricas até o fenômeno da super população e a
desestruturação urbana que ocasionou o caos característico de nossas grandes metrópoles.
Foi destacado o que se chamou de contraste irônico, a convivência entre o abandono de
uma grande parcela da massa empobrecida, a segregação social, a violência, as favelas e a
degradação ambiental, com o desenvolvimento, a tecnologia, os grandes
empreendimentos imobiliários e o luxo. Discorreu-se sobre o sub-distrito do Grajaú, que
pertence à periferia da cidade, sobre seus altos índices de pobreza e a grande concentração
de favelas, além de problematizar sobre a degradação ambiental que afeta as duas
4
LOPES, Marcos Antonio (org). Fernand Braudel: tempo e história. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003,
p.73.
5
ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro, RJ: FGV, 2004, p. 19.
represas, Billings e Guarapiranga, importantíssimas para a capital paulistana, pois são
responsáveis pelo abastecimento de água potável de pelo menos um terço da população.
Ponderou-se sobre a denominação batista, como ela chegou ao Brasil, sua formação e
pensamento nacional. E finalmente foi feito um breve histórico sobre a comunidade
batista Maranata, trazendo à tona quem ela é, como ela se originou e quem são seus
membros.
6
BACELAR, Jéferson.; CAROSO, Carlos. (orgs). Brasil: um país de negros? Rio de Janeiro: Pallas;
Salvador: CEAO, 1999, p. 55.
que eram negros e de sua importância para a denominação, falou do missionário que
pregava para os escravos, falou da primeira igreja batista no Brasil que era freqüentada
por negros, mas não foi além disso. Não houve indagações, não se questionou sobre a
situação atual do negro na sociedade, não tocou nas temáticas de discriminação e racismo.
Subjacente a esta postura parece estar a convicção representativa de certa tendência do
protestantismo de que com a conversão pessoal os problemas sociais perdem sua
importância, o que aplicado à nossa questão implicaria na eliminação da diferença entre
brancos e negros. Procuramos problematizar esta postura contrapondo- lhe argumentos
como os defendidos por Marco Davi Oliveira, que aponta como um dos caminhos rumo à
igualdade racial justamente a valorização do negro, de sua origem, sua história, sua
cultura e religião. A tentativa de apagar as marcas da negritude dos afro-brasileiros ou
desqualificá- las só aumenta a distância e a possibilidade de uma igualdade racial.
No terceiro capítulo foi feito um panorama geral dos entrevistados e uma analise
minuciosa de suas falas, apontando a influencia do pensamento protestante, da ideologia
racial e finalmente um contraponto entre as teorias certourianas e a posição dos negros da
comunidade batista em negar o preconceito racial dentro de sua comunidade de fé. O
pressuposto inicial que foi confirmado, é de que os integrantes negros da comunidade
batista estudada percebem na sociedade o preconceito racial, mas entendem que este
problema está fora dos muros da igreja, ou seja, este é um problema do Estado e não da
igreja. Os interlocutores utilizam desse discurso, aparentemente ambíguo e contraditório,
que ora admite o preconceito racial, e ora o nega, como um meio de encobrir os
mecanismos de descriminação e exclusão que também existem em sua comunidade de fé
e para, desse modo, se sentirem aceitos na comunidade. Buscamos respaldo teórico em
Michel de Certeau para interpretar esta postura como sutis táticas de sobrevivência em
meio a estratégias impostas pela denominação religiosa 7 .
7
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: arte de fazer. Vozes: Petrópolis, 2007, p. 39.
vista como um espaço de aceitação do outro e, sobretudo de afeto. Isto é, um espaço
entendido como formado por pessoas que sofreram regeneração, sendo assim, conseguem
ter um olhar de igualdade. Essa é uma tática utilizada pelo fiel para conviver no espaço de
sua comunidade. De acordo com as categorias certeaurianas acredita-se que no convívio
do cotidiano, as pessoas precisam enfrentar as estratégias criadas pela classe dominante,
todavia, as regras impostas não são seguidas conforme esperadas, porquanto as pessoas
conseguem criar meios, ou nas palavras do autor “táticas”, para enfrentarem sua
realidade. Dizer que não há preconceito na comunidade de fé, pode ser uma utilização da
linguagem como tática de sobrevivência dentro da comunidade 8 .
Não foi encontrado uma resposta fechada e, por isso, o discurso do membro
batista não terá um único reflexo, ou seja, não será uma reprodução do discurso elitista da
classe dominante, nem será uma cópia dos princípios batistas. Compreendemos que o ser
8
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: arte de fazer. Vozes: Petrópolis, 2007, p. 40.
9
GUSMAO, Eduardo. A vivência Religiosa como objeto da história das religiões: Uma leitura de Michel
de Certeau. Impulso: Piracicaba, 2004, p. 101-109.
humano, ao construir seu discurso, o faz de forma ambígua e criativa. A ambigüidade é
inerente ao ser humano. Nas palavras de Marilena Chauí,
Se faz necessário atentar às relações estreitas que existem entre igreja, cultura e
diversidade cultural, para que desse modo, seja possível vincular a defesa da igreja às
dimensões públicas e culturais com os direitos, uma vez que ela é pensada como um
espaço de integração e diversidade. A proposta feita foi vincular o mundo espiritual a
formação humana e cultural, pois como nos explica Juarez Dayrell “a cultura é também
um meio de comunicação e intercomunicação em processo, se todos nós estamos
10
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. Brasiliense: São
Paulo, 1994, p.123.
11
CHAUÍ, Marilena. Conformismo e resistência: aspectos da cultura popular no Brasil. Brasiliense: São
Paulo, 1994, p.125.
12
GUSMAO, Eduardo. GUSMAO, Eduardo. A vivência Religiosa como objeto da história das religiões:
Uma leitura de Michel de Certeau. Impulso: Piracicaba, 2004, p. 101-109.
inseridos nela de forma profunda e universal, todos nós a transformamos e a
transmutamos 13 .” Partindo do pressuposto que ao reivindicar respeito à diferença pelas
categorias sociais estigmatizadas – os negros – quando atacadas, levará a longo prazo, a
tornar a diferença pouco significativa e, conseqüentemente, um elemento secundário das
relações. Mas quando hierarquizamos as diferenças, garantimos o reconhecimento da
diferença como sinal diacrítico e de conflito.
Quando analisado mais de perto esse grupo batista, foi possível entender que eles
percebem com clareza a questão da hegemonia cultural como uma luta social e racial,
construindo suas normas, valores e comportamentos, claramente em oposição às normas e
valores propalados pela classe dominante, lúcidas de todas as condições que lhes são
impostas e detentores de uma reivindicação permanente contra tais circunstâncias. Em seu
cotidiano, lutam material e simbolicamente, ora resistindo ao conformar, ora se
conformando ao resistir.
13
DAYRELL, Juarez. Múltiplos olhares sobre educação e cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1996, p. 50.
CAPÍTULO 1
A cidade de São Paulo, desde o início do século XX, já era reconhecida como
uma cidade voltada para o futuro. Expressões como: A cidade que não para; A cidade do
futuro e A locomotiva que puxa o Brasil já eram bastante usadas em 1900.
14
PRADO, Jr. Caio. História econômica do Brasil. São Paulo: brasiliense, 1988, p. 227.
15
GORENDER, Jacob. A burguesia brasileira. 8º ed. São Paulo: Brasiliense, 1990, p. 33.
16
MATOS, Maria Izilda. A cidade que mais cresce no mundo: cotidiano, trabalho e tensão. In:
CAMARGO, Ana Maria (coord). São Paulo: CIEE, 2004, p. 64.
17
MATOS, Maria Izilda. A cidade que mais cresce no mundo: cotidiano, trabalho e tensão. In:
CAMARGO, Ana Maria (coord). São Paulo: CIEE, 2004, p. 72.
Milton Santos classifica o eixo Rio - São Paulo como a região dinâmica do país
que tende à industrialização, já em meados do século XXI. Essas áreas despontam devido
aos seus potenciais de acumulação da produção industrial, o que permitiu uma
diversificação da atividade fabril, beneficiando primeiramente a região sudeste do Brasil,
pois era um eixo capaz de oferecer produtos variados e mais baratos em relação aos
outros núcleos industriais espalhados pelo território nacional.
18
SANTOS, Milton; SILVEIRA, Maria Laura. O Brasil: território e sociedade no início do século 20. Rio
de Janeiro: Record, 2001, p.251
19
CARLOS, Ana Fani Alessandri; OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. (organizadores). Geografias de
São Paulo: representação e crise da metrópole. São Paulo: Contexto, 2004, p. 370.
Embora a cidade de São Paulo seja essa potência de produção e liderança
econômica nacional, possuindo uma permanente renovação técnica, com sucessivas
modernizações, não podemos desprezar o lado oposto dessa mesma moeda. Em
contraponto com a evolução e modernização, a lógica do sistema econômico estimulou o
surgimento de grandes contradições sociais, como o êxodo rural, o desemprego em massa
e a marginalização de milhões de trabalhadores excluídos do sistema econômico e da
distribuição de riqueza produzida nesse pólo que é a cidade de São Paulo.
É o que nos explica Odair Paiva: com a crise da economia cafeeira na década de
1920, e com a carência de mão-de-obra imigrante, a opção política foi incentivar a vinda
de nordestinos, pois estes estavam dispostos a trabalharem por um baixo salário. A partir
desse momento, São Paulo passa a ganhar fama de ser uma “terra de oportunidades” e a
imagem do nordeste passa a ser construída como um lugar inviável, um lugar de mazelas,
seca e pobreza. Como resultado, entre os anos de 1930 e 1950, 1,5 milhões de
trabalhadores nordestinos migraram para a capital paulistana, incentivados pelo governo
Federal e Estadual. Essa mudança de região geográfica significava uma busca de
realização de sonhos e ascensão social. Mas muitas vezes esse novo lugar significou uma
outra forma de exclusão social. Embora a perspectiva de melhoria de vida e de melhores
condições de trabalho, ainda nos dias de hoje, deixe de ser uma alternativa, em grande
medida, positiva, esse deslocamento continua presente no cotidiano da cidade de São
Paulo e nas grandes capitais. De acordo com os resultados divulgados em 2006, pela
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE), de 2005 para 2006, a participação da atividade agrícola na
população nacional caiu de 20,5% (17,8 milhões de trabalhadores) para 19,3% (17,2
milhões). Em 2004, a participação da atividade agrícola era de 21,0%, ou seja, 17,7
milhões de brasileiros estavam trabalhando no campo. A participação da atividade
agrícola na população ocupada caiu significativamente em todas as regiões. A região do
20
SAES, Flavio Azevedo Marques. 1870-1960: Industrialização e urbanização. In: CAMARGO, Ana
Maria. São Paulo, uma viagem no tempo. São Paulo: CIEE, 2005, p.114.
Nordeste, onde se concentrava o maior contingente desses trabalhadores, cerca de 7,9
milhões de pessoas, apresentou a maior queda (de 36,5% em 2005, para 33,8% em 2006),
com redução de 447 mil trabalhadores. Na região do Norte, a partic ipação da atividade
agrícola passou de 23,4% para 22,6% da população ocupada. No Sul, onde a atividade
agrícola tem peso expressivo, o percentual de trabalhadores também caiu, de 22,1% em
2005 para 21,2%. Por fim, a região Centro-Oeste, com cerca de 1 milhão de trabalhadores
na atividade agrícola, teve queda de 17,6% para 16,4%. No grupamento da indústria,
trabalhavam, em setembro de 2006, 13,2 milhões de pessoas. Observou-se aumento de
1,7% nessa estimativa, em relação ao ano anterior. A indústria registrou aumento de
contingente apenas nas regiões Sudeste (3,4%) e Centro-Oeste (8,1%). Em contra partida,
em 2006, verificou-se que 40,1 milhões de trabalhadores não tinham carteira de trabalho
assinada, trabalhavam por conta própria e ou eram não-remunerados (23,2%, 21,2% e 6%,
respectivamente, da população ocupada), esse grupo representa mais da metade da
população ocupada (50,4%). E como decorrência dessa vinda de trabalhadores para as
grandes capitais, explicitam as limitações e fragilidade dessas cidades, bem como nos
explica o autor:
21
PAIVA, Odair da Cruz. Nordestinos em São Paulo no século 20: diferentes tempos de uma mesma
história. In: CAMARGO, Ana Maria. São Paulo, uma viagem no tempo. São Paulo: CIEE, 2005, p. 103.
22
A autoconstrução consiste na compra de lote, muitas vezes, clandestino e ou irregular. A construção da
casa é feita, normalmente, nos finais de semana com ajuda de amigos e parentes. A construção começa, na
maioria das vezes, com um quarto e uma cozinha e vai se ampliando de acordo com a disponibilidade
financeira do proprietário, que muitas vezes, obedece o ritmo de crescimento da família ou número de
agregados que vão se juntando à mesma.
dessa região de São Paulo ainda mais delicados é o fato de ser ela uma área de proteção
aos mananciais.
Abaixo mostramos uma tabela nacional elaborada pelo IBGE sobre o saldo
migratório da década de 1990 até o ano de 2006.
23
PAIVA, Odair da Cruz. Nordestinos em São Paulo no século 20: diferentes tempos de uma mesma
história. In: CAMARGO, Ana Maria. São Paulo, uma viagem no tempo. São Paulo: CIEE, 2005, p. 105.
Pará -98.703 10.795 23.432
Paraíba -12.018 10.200 -25.661
24
Fonte: IBGE/PNADs 1992 a 2006. Elaboração do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA).
abrange as décadas de 1950 e 1970, com a concentração da atividade econômica nacional
na região metropolitana da cidade de São Paulo 25 .
25
TASCHNER, Suzana; BOGUS, Lucia. São Paulo: O caleidoscópio urbano. São Paulo: perspec, São
Paulo, v.15, nº1, 2001. Acesso dia 17 jan. 2007.
26
SADER, Emir. A transição do Brasil: da ditadura à democracia? São Paulo: Atual, 1990.
Essa política resultou em um crescimento econômico nacional, isto é, houve
crescimento do PIB. O Brasil ficou mais rico, mas em contrapartida, a classe trabalhadora
ficou mais pobre. Os anos de maior repressão durante o governo militar revelaram um
maior crescimento econômico. A época conhecida como o “milagre econômico” foi
justamente quando a economia crescia entre 10 e 13% durante o governo Médici. Mas
foram anos de violentas repressões.
27
SADER, Emir. Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático. Organização de Emir
Sader, Pablo Gentili. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1998.
elevado índice de desemprego. A crise do emprego fez com que os sindicatos perdessem
suas forças, no sentido de não poderem avançar muito, tendo em vista que precisavam
assegurar os empregos. Desse modo, os sindicatos se enfraquecem e se tornam
assistencialistas. A igreja e o sindicato foram os novos personagens que entraram em
cena. Mas nos anos de 1980, com o processo de redemocratização, também perdem seu
espaço 28 . A “única instituição que conseguiu defender-se, apesar de alguns conflitos com
o governo, foi a Igreja Católica 29 .” Devido o seu poder de resistência, tornou-se o
principal foco de oposição legal ao governo.
A Igreja Católica exerceu uma importante influência nessa nova fase dos
movimentos sociais. Ela, até a década de 60, mantinha um discurso que ensinava que o
pobre deveria se conformar com a miséria, pois assim, em troca, garantiria sua salvação
celestial. Porém, uma parcela da população, que percebia que o discurso da Igreja não era
condizente com suas práticas, uma vez que parte significativa da população brasileira se
definhava por falta de pão e a Igreja se mostrava pouco preocupada, decidiu abandonar o
catolicismo. Mas, em meados da década de 70, um movimento de renovação em processo
transforma o pensamento da Igreja na América Latina, principalmente em relação ao seu
olhar para o pobre. Com a teologia da libertação e as práticas do ver, julgar e agir, a
Igreja Católica consegue impulsionar aberturas de espaços em algumas igrejas para
discussão dos problemas vividos por suas comunidades. As periferias se tornaram alvo de
grupos de esquerda e da Pastoral Jovem, que seguindo os passos do pioneiro Paulo Freire,
realizavam trabalhos de alfabetização de adultos com objetivo de levar conscientização
política a essas pessoas pobres. Essa nova esquerda nasce a partir da decepção com a luta
armada 30 .
28
SKIDMORE, Thomas. Uma história do Brasil. São Paulo: paz e terra, 2003.
29
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de janeiro: Civilização
Brasileira, 2004, p. 165.
30
SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena. Rio de Janeiro: Paz e terra, 1988.
algumas figuras da intelectualidade: “eram grupos heterogêneos que conviviam dentro do
partido graças ao amplo espaço existente para a discussão interna 31 .”
31
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de janeiro: Civilização
Brasileira, 2004, p. 176.
32
LAMOUNIER, Bolívar. De Geisel a Collor: O balanço da transição. São Paulo: Sumaré, 1990, pp. 13-
35.
33
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de janeiro: Civilização
Brasileira, 2004, p. 166
como as eleições, os partidos, o Congresso, os políticos, se desgastam e perdem a
confiança dos cidadãos 34 .”
34
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. Rio de janeiro: Civilização
Brasileira, 2004, p. 8.
35
Musica de Gilberto Gil. “Nos barracos da cidade”.
36
Entrevista realizada no dia 3-7-2007. O colaborador é o senhor Ademar de 58 anos, morador da Zona Sul
e membro fundador da igreja Batista Maranata.
no início de 1990 37 .” Uma obra de referência que aborda o processo de urbanização da
cidade de São Paulo e os fenômenos de periferização e favelização é a pesquisa de Tereza
Caldeira, que se baseia em depoimentos de moradores de diferentes bairros da cidade de
São Paulo. Os depoimentos foram colhidos entre os anos de 1989 e 1991, e o objetivo foi
analisar os discursos de criminalidade, instituições democráticas e os direitos civis. Mas o
que nos interessa é o esforço da autora em mostrar a segregação social vivida na cidade
de São Paulo, que se divide em três padrões marcados por determinadas épocas.
Tereza Caldeira aclara que, de 1890 até 1940, o espaço urbano de São Paulo foi
caracterizado por uma imensa concentração no centro da capital. Havia um crescimento
populacional com a constante chegada de trabalhadores para a cidade e o surgimento de
fábricas que se multiplicavam a cada dia. A elite vivia em mansões enquanto os
trabalhadores viviam em casas alugadas mais de 80% e em cortiços.
A elite começou a perceber que viver muito próximo da classe trabalhadora e dos
pobres não era muito limpo e saudável, passando a associar o pobre à sujeira,
promiscuidade e idéias ligadas ao crime. Em função disso, além de controlar os pobres, a
elite começou a separar-se dele. Temendo epidemias, a elite passou a mudar para regiões
37
CARLOS, Ana Fani Alessandri; OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. . (organizadores). Geografias de
São Paulo: a metrópole do século XXI. São Paulo: Contexto, 2004, p. 274Op. cit., p. 274.
38
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São
Paulo: Editora 34/Edusp, 2000. p, 212.
menos densas e com loteamentos exclusivos. Um exemplo disso é o bairro de
Higienópolis.
39
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São
Paulo: Editora 34/Edusp, 2000. p. 215.
40
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São
Paulo: Editora 34/Edusp, 2000. p. 218.
41
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São
Paulo: Editora 34/Edusp, 2000. p. 224.
vezes eram inacessíveis às camadas baixas: “os moradores da periferia também foram
negligenciados pelo fato de que nunca puderam contar com nenhum tipo de
financiamento para construir suas casas 42 .”
Outro ponto ressaltado pela autora é que a distância entre os pobres e ricos não
ficava somente nas questões geográficas. Pois, além da habitação ser melhor nos centros
da cidade em relação à periferia, a qualidade de vida e o saneamento básico eram também
radicalmente diferentes. A pesquisadora apresenta dados estatísticos que comprovam que
a qualidade de vida na periferia era muitas vezes inferior à classe média e alta: “em
resumo, nos anos 70, os pobres viviam na periferia, em bairros precários e em casas
autoconstruidas; as classes média e alta viviam em bairros bem equipados e centrais, uma
porção significativa delas em prédios e apartamentos43 .”
Nesses anos, houve na cidade de São Paulo uma redução na taxa de crescimento
populacional devido à baixa fecundidade e emigração. Neste mesmo período, muitos das
classes média e alta deixaram os bairros centrais para habitarem em bairros distantes,
antes habitados somente por pobres:
42
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São
Paulo: Editora 34/Edusp, 2000. p.221.
43
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São
Paulo: Editora 34/Edusp, 2000. p.228.
44
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São
Paulo: Editora 34/Edusp, 2000. p.231.
45
SEABRA, Odette Carvalho de Lima. São Paulo: a cidade, os bairros e a periferia. In: CARLOS, Ana
fani Alessandri; Oliveira, Ariovaldo Umbelino de(orgs). Geografias de São Paulo: representação e crise da
metrópole. São Paulo: Contexto, 2004, p. 127.
Por outro lado, a aquisição de casa pela autoconstrução ficava cada vez menos
viável para o pobre trabalhador. Isso se explica devido ao empobrecimento contraído
decorrente da crise de 1980 e pelas melhorias urbanísticas na periferia:
Prado explica que no final da década de 1950 houve um acordo importante para
a economia brasileira. A Instrução nº. 11348 favoreceu o capital estrangeiro, que penetrou
na economia nacional de forma segura. Entram no Brasil produtos concorrentes dos
brasileiros, mas com um valor mais acessível. Para os industriais isso foi vantajoso,
embora perdessem sua autonomia e independência financeira. Mas o acordo parecia
vantajoso por possibilitar recurso financeiro para o crescimento de suas empresas. Essas
mudanças econômicas e políticas resultaram na terceirização industrial. Desse modo,
houve uma redução dos empregos. O Brasil viveu uma terrível contradição econômica,
houve ganho de produtividade e competitividade, mas perda de meio milhão de empregos
em curtíssimo prazo, resultando em um grande problema social49 .
46
CALDEIRA, Teresa Pires do Rio. Cidade de Muros: Crime, Segregação e Cidadania em São Paulo. São
Paulo: Editora 34/Edusp, 2000. p. 231.
47
MARICATO, Ermínia. Urbanismo na periferia do mundo globalizado: metrópoles brasileiras. São Paulo
Perspectiva. São Paulo, v. 14, n. 4, 2000. Disponível em: www.scielo.br. Acesso em: 30 Jan. 2007.
48
Instrução nº113 baixada pela Superintendência das Moedas e do Crédito em 17 de janeiro de 1955,
permitia ao Banco do Brasil emitir licença de importação sem cobertura cambial.
49
TASCHNER, Suzana; BOGUS, Lucia. São Paulo: O caleidoscópio urbano. São Paulo: perspectiva. São
Paulo, v.15, nº1, 2001. Disponível em: www.scielo.br. Acesso em: 17 jan. 2007.
foi ocupando sua nova moradia. Os apartamentos que eram financiados pelo BNH não
permitiam um acesso democratizado, visto que grande parte da população não tinha
acesso aos financiamentos, uma vez que estes eram prioritariamente direcionados às
classes média e alta.
50
MARQUES, Eduardo e BICHIR, Renata. Investimentos públicos, infra-estrutura urbana e produção da
periferia em São Paulo. São Paulo, 2007. Disponível em www.centrodametropole.org.br. Acesso em: 17
jan. 2007.
ou mais anos de estudo) e renda superior a 20 salários mínimos. Já no anel periférico se
encontra uma maior porcentagem de chefes de família não-brancos, ou seja, um maior
percentual de pretos e pardos, com baixa escolaridade (uma média de quatro anos de
estudo) e menor renda. Este estudo permite estabelecer uma relação entre renda, cor,
escolaridade e local de residência no espaço urbano. Conseqüentemente, evidencia a
discriminação sofrida por quem, além de negro, pobre e com baixa escolaridade, reside na
periferia.
51
TASCHNER, Suzana; BOGUS, Lucia. São Paulo: O caleidoscópio urbano. São Paulo: perspectiva. São
Paulo, v.15, nº1, 2001. Disponível em: www.scielo.br. Acesso em: 17 jan. 2007.
52
Renata Alves, 24 anos.
relação entre o desemprego e a procura por loteamentos baratos. Com a crise financeira
dos finais da década de 1970 e início dos anos 1980, foi crescente o número de
desempregados, ao mesmo tempo em que houve uma redução na procura por imóveis
alugados, pois essa população buscou na periferia por meios de habitação.
A Zona Sul da capital paulistana abrange uma região formada por cinco
subprefeituras: Capela do Socorro, Campo Limpo, Cidade Ademar, M’Boi Mirim e
Parelheiros. Veja mapa 54 abaixo:
53
SILVA, Jane de Souza. Urbanização de favelas em área de proteção de mananciais: O caso da
comunidade Sete de Setembro. 2003. Dissertação de mestrado. Escola Politécnica, Universidade de São
Paulo. São Paulo, 2003.
54
Mapa disponível no site oficial da prefeitura de São Paulo: www.portal.prefeitura.sp.gov.br. Acesso em:
16 nov. 2006.
Como vimos anteriormente, essa é uma das regiões da cidade de São Paulo
caracterizada como a mais carente. Grande parte da população que mora nessa região vive
abaixo da linha da pobreza, com um alto percentual de favelas localizadas nas
proximidades das represas Billings 55 e Guarapiranga 56 . Os três distritos mais pobres da
cidade de São Paulo estão localizados na Zona Sul: Parelheiros, Marcilac e Grajaú.
55
É um dos maiores e mais importantes reservatórios de água da região metropolitana de São Paulo. Foi
construída nas décadas de 1930 e 1940 pela empresa de energia elétrica Light (responsável pelo
abastecimento de energia da cidade de São Paulo). O objetivo de sua construção era armazenar água para
gerar energia elétrica para usina hidrelétrica de Cubatão. Em função do elevado crescimento populacional, a
represa Billings possui grandes trechos poluídos com esgotos domésticos e industriais.
É na Zona Sul que está a principal reserva florestal da Mata Atlântica da cidade
de São Paulo e onde se encontra o Autódromo de Interlagos e o aeroporto de Congonhas.
Por causa da abundância de terrenos baratos nos anos 50 e 70, a Zona Sul vai
atrair as indústrias de forma significativa, como a metalúrgica, mecânica, química e
farmacêutica. “Em 1965, somente no subdistrito de Santo Amaro, havia 332 indústrias
com mais de 5 empregados, 90 delas eram de metalúrgicas, 48 mecânicas e 34
56
Fundada em 1907 pela empresa Light. A partir da década de 1920, a represa serviu como reservatório de
água para distribuição domiciliar da capital. Também é utilizada para controle de cheias e para o lazer da
região. Nas suas margens, existem praias artificiais e marinas de barcos.
57
OLIVEIRA, Edison Luiz. Projeto Interlagos. A praia que faltava à São Paulo: Contradições e
significado da inserção de Santo Amaro/Zona Sul na formação sócio-espacial/metropolitana. 1996.
Dissertação de mestrado. Faculdade de FFLCH. USP. São Paulo, 1996, p. 91.
químicas 58 .” Um grande impulso para a industrialização da Zona Sul foi a construção das
marginais do rio Pinheiros.
58
OLIVEIRA, Edison Luiz. Projeto Interlagos. A praia que faltava à São Paulo: Contradições e
significado da inserção de Santo Amaro/Zona Sul na formação sócio-espacial/metropolitana. 1996.
Dissertação de mestrado. Faculdade de FFLCH. USP. São Paulo, 1996, p. 106.
59
OLIVEIRA, Edison Luiz. Projeto Interlagos. A praia que faltava à São Paulo: Contradições e
significado da inserção de Santo Amaro/Zona Sul na formação sócio-espacial/metropolitana. 1996.
Dissertação de mestrado. Faculdade de FFLCH. USP. São Paulo, 1996. p. 125.
aproximado de 35 milhões de metros quadrados de área loteada na área
de proteção aos mananciais, do município e São Paulo. 60
A lei de proteção aos mananciais foi ineficiente, pois não conseguiu nem
proteger a região contra a degradação ambiental e nem conter o avanço populacional. Mas
continua sendo alvo de preocupação e ação do poder público. Uma demonstração disso é
a nota oficial divulgada pela prefeitura de São Paulo, no dia vinte e nove de agosto de
2007, publicada em seu site oficial, referente à demolição de casas construídas na região
da zona sul de São Paulo. Foi uma operação em defesa às águas, realizada pela
fiscalização estadual em parceria com a municipal, em que foram derrubadas 97 casas na
região da subprefeitura Capela do Socorro, com objetivo de proteger a àrea de
preservação ambintal onde se situam as represas Billings e Guarapiranga, responsáveis
pelo abastecimento de 1/3 de água potável da capital.
60
OLIVEIRA, Edison Luiz. Projeto Interlagos. A praia que faltava à São Paulo: Contradições e
significado da inserção de Santo Amaro/Zona Sul na formação sócio-espacial/metropolitana. 1996.
Dissertação de mestrado. Faculdade de FFLCH. USP. São Paulo, 1996. p. 134.
61
SILVA, Jane de Souza. SILVA, Jane de Souza. Urbanização de favelas em área de proteção de
mananciais: O caso da comunidade Sete de Setembro. 2003. Dissertação de mestrado. Escola Politécnica,
Universidade de São Paulo. São Paulo, 2003. p.27.
62
SEABRA, Odette Carvalho de Lima. São Paulo: a cidade, os bairros e a periferia. In: CARLOS, Ana fani
Alessandri; Oliveira, Ariovaldo Umbelino de(orgs). Geografias de São Paulo: representação e crise da
metrópole. São Paulo: Contexto, 2004, p. 126.
1.5. Distrito Grajaú
A região da Zona Sul que nos interessa é a do distrito Grajaú, que pertence à
subprefeitura Capela do Socorro, composta por três subdistritos: Socorro, Grajaú e Cidade
Dutra. Somados representam 134km2, onde habitam aproximadamente 700 mil pessoas,
fazendo da Capela do Socorro a subprefeitura mais populosa da cidade de São Paulo. O
crescimento populacional da zona Sul se deu por volta da década de 1960. O distrito
Grajaú teve seu desenvolvimento no início da década de 1980, mesmo período em que
nasce a Igreja Batista Maranata. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística apontou
que no período de 60-80, houve um crescimento de 768% da população, que atualmente
conta com 675.162 habitantes. É o distrito mais populoso e com o maior índice de
crescimento demográfico da metrópole paulistana. A metade da população da
subprefeitura Capela do Socorro está no Grajaú.
63
Mapa disponível no site oficial da prefeitura de São Paulo: www.portal.prefeitura.sp.gov.br. Acesso em:
16 nov. 2006.
O Grajaú é o distrito que se localiza próximo a São Bernardo do Campo e às
margens das represas Billings e Guarapiranga. Segundo pesquisas oficiais, a população do
Grajaú é composta principalmente por migrantes nordestinos que, como vimos com o
pesquisador Oliveira, vieram em busca de melhores oportunidades de emprego e condição
de vida.
64
TORRES, Haroldo da Gama. Pobreza e espaço: padrões de segregação em São Paulo. Estudos
avançados, São Paulo, v. 17, n. 47, 2003. Disponível em: www.scielo.com.br. Acesso em: 09 nov. 2006.
65
Dados oficiais divulgados pela prefeitura de São Paulo no site: www.portal.prefeitura.sp.gov.br. Acesso
em: 12 de nov. 2006.
O mapa acima representa a realidade de exclusão social que compõe o município
de São Paulo. Destacamos ainda que a população do distrito Grajaú, como nos mostra o
mapa, está entre os mais atingidos pela exclusão social da cidade paulistana.
Não nos interessa aqui trabalhar todo o histórico de formação da denominação66 batista, ou como
a denominação chegou e se consolidou no solo brasileiro. Muitas obras se dedicaram a contar a história dos
batistas no Brasil, a primeira obra acadêmica com o tema Batistas, foi a de Marli Geralda Teixeira, com a
dissertação publicada em 1975 e a tese de doutorado em 1983. Algumas obras foram publicadas pela Casa
Publicadora Batista, por iniciativa da própria denominação, como por exemplo, a obra do autor Asa R.
CRABTREE, História dos batistas no Brasil: até o ano de 1906, publicada em 1962. A obra procura
documentar a história da denominação batista, mostrando sua trajetória até o ano de 1906; outro autor de
referência é José dos Reis Pereira, cuja obra, Breve história dos Batistas, publicada em 1972, teve o
objetivo de relatar a história do surgimento da denominação batista, ressaltando datas oficiais e nomes de
grandes líderes; no ano de 1980, publicou também uma nova obra História dos batistas no Brasil67 que
pretendeu contar a história da denominação batista em solo brasileiro; Betty Antunes Oliveira, em sua obra
Centelha do restolho seco, publicada pela própria autora em 1985, também pretendeu dar sua contribuição
sobre a história dos batistas no Brasil. As quatro obras acima citadas são referências de uma história
institucional dos batistas, e que não possuem cunho acadêmico.
66
Denominação é a forma específica e histórica que uma igreja toma. No interior do cristianismo, as
denominações podem ser vistas como conjuntos de tradições seguidas por igrejas. Os batistas integram uma
denominação.
67
PEREIRA, José dos Reis. História dos batistas no Brasil. Rio de Janeiro: Juerp, 1982.
Silva, Cidadão de outra pátria: Anglicanos e Batistas na Bahia, apresentada a
Universidade de São Paulo em 1998. A autora pesquisa sobre os batistas e os anglicanos
no contexto brasileiro, e principalmente baiano, nos anos de 1880 a 1930.
objetivo de criar uma igreja batista para os brasileiros, e fundaram, assim, a primeira
igreja batista brasileira, em 1882, na cidade de Salvador.
68
AZEVEDO, Israel Belo de. A celebração do individuo: A formação do pensamento batista brasileiro.
Piracicaba: Unimep, São Paulo: Exodus, 1996, p. 15.
69
Thomas Jefferson Bowen viveu entre os anos de 1814 a 1875, era missionário na África do Sul, quando
veio para o Brasil em 1860, fixando-se no Rio de Janeiro. Preparou um dicionário da língua Ioruba e veio
desejoso de formar uma igreja de fala inglesa e outra entre os escravos. O missionário chegando ao Rio de
Janeiro pôde fazer contato com os escravos devido ao domínio que tinha do idioma dos Iorubas. Por causa
de sua fluente comunicação com os escravos em suas próprias línguas, foi alvo de suspeitas, o que resultou
em sua prisão pela justiça brasileira.
70
AZEVEDO, Israel Belo de. A celebração do individuo: A formação do pensamento batista brasileiro.
Piracicaba: Unimep, São Paulo: Exodus, 1996, p. 153.
O período de maior crescimento dos batistas no Brasil foi entre 1930-1970.
Estimava-se que em 1982 os batistas chegariam a um milhão de membros, mas o número
só foi atingido mais de uma década depois. A denominação batista apresenta
oficialmente 71 os seguintes dados:
¦ 180.000 fiéis;
¦ Atua socialmente com lares para crianças (creches, orfanatos e casas lares) e
asilo;
71
Dados oficiais retirados da Convenção Batista Brasileira disponibilizado no Anuário da Assembléia anual
de 2007.
meio do batismo. Pois em termos existenciais, já formam a igreja batista 72 . Segundo a
descrição a Convenção Batista Brasileira:
A partir daí é que o pastor batista vai retirar sua teologia. Azevedo explica que a
teologia batista no Brasil se porta como sendo: bíblica, só colocando em ordem acessível
o que já está bem elaborado na revelação neotestamentária; supranacional, não sofre
influência de qualquer cultura; apologética, se coloca em contraposição ao erro,
72
TAYLOR, Azevedo de. Que significa ser batista? Recife: Colégio Americano Brasileiro, 192? p. 215.
73
Filosofia da Convenção Batista Brasileira, Anais de 1994, p. 513.
74
O Órgão Oficial da igreja batista brasileira é O Jornal Batista, fundado em 1909. Foi eleito como
instrumento auxiliar na captação de informações sobre a doutrina e o pensamento batista por ter
representado, durante um século, um veículo de informação sobre a doutrina e os princípios batistas no
Brasil. Hoje, a denominação conta com outras publicações que vêm cada um a seu modo, responder à
demanda de informações requeridas pelo povo batista e outros evangélicos.
75
AZEVEDO, Israel Belo de. A celebração do individuo: A formação do pensamento batista brasileiro.
Piracicaba: Unimep, São Paulo: Exodus, 1996. p. 157.
76
A celebração do individuo: A formação do pensamento batista brasileiro . Piracicaba: Unimep, São
Paulo: Exodus, 1996. p. 224.
principalmente o católico; utilitária, fornece elementos para as igrejas crescerem
numericamente; e pedagógica, sua finalidade é instruir os crentes na verdade da bíblia.
Para os batistas tudo pode ser resolvido no plano espiritual: se o coração mudar,
o homem mudará. “Assim, toda mudança, mesmo social, tem que passar pela experiência
da conversão. Pode-se mudar as formas de governo, mas se não mudar o coração dos
homens, não se pode esperar melhoria alguma 78 .”
77
A celebração do individuo: A formação do pensamento batista brasileiro. Piracicaba: Unimep, São
Paulo: Exodus, 1996. p.183.
78
A celebração do individuo: A formação do pensamento batista brasileiro. Piracicaba: Unimep, São
Paulo: Exodus, 1996. p.179.
79
A celebração do individuo: A formação do pensamento batista brasileiro. Piracicaba: Unimep, São
Paulo: Exodus, 1996. p. 180.
Certo ministro evangélico escreveu recentemente isto: ‘A Igreja não
pode se acomodar e se silenciar diante das iniqüidades e das injustiças
sociais neste século’. O que o escritor pretendia, porém, é que a Igreja
fizesse coro com as vozes políticas que defende determinada fórmula
(reforma de base) para combater tais injustiças. As autênticas igrejas de
Jesus Cristo sempre combateram o mal e a iniqüidade. São elas as vozes
mais antigas e mais poderosas nesse combate. Mas também as
autênticas igrejas de Jesus Cristo não se apóiam em messianismos
políticos, sociais e econômicos do século para cumprimento de uma
missão profética neste mundo. Quando esses movimentos efêmeros
surgiram já encontraram a Igreja na peleja 80 .
80
A celebração do individuo: A formação do pensamento batista brasileiro. Piracicaba: Unimep, São
Paulo: Exodus, 1996. p. 321-322.
81
REILY, Duncan Alexander. História documental do protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 2003, p.
42.
82
Dados oficiais sobre o surgimento da Igreja Batista Maranata encontram registrados no Livro de Atas da
Igreja Batista Betânia.
A Igreja Batista Betânia se localiza na Zona Leste da cidade de São Paulo. Mas
os membros senhor Túlio da Silva 83 e sua esposa Maria da Silva, por necessidades
pessoais, no final da década de 1970, resolveram mudar de residência, indo morar no
bairro Vila Panorama, distrito Grajaú. Uma vez que no bairro e em seu entorno não havia
nenhuma igreja batista, o casal sugeriu que fosse aberto um ponto de pregação 84 em sua
residência. Para isso, recebeu apoio da igreja Betânia, que enviou um pregador para
iniciar o trabalho batista na região.
83
Senhor Túlio da Silva é o membro fundador da comunidade batista Maranata. Deu inicio ao trabalho da
igreja em sua própria casa, vindo a falecer três anos após a organização da igreja (01-09-1986).
84
Ponto de pregação é a designação utilizada pelos batistas para as reuniões que acontecem, em grande
maioria, na casa de algum membro, e que se localiza longe de uma igreja batista. As reuniões recebem
apoio da igreja cujo fundador é membro, e quando atingem um número mínimo de batizados, estabelecido
pela Convenção, o ponto de pregação pode ser organizado ganhando o título de igreja.
para o estudo bíblico. E há ainda reuniões especiais durante os sábados. Abaixo
mostramos uma foto do inicio da década de oitenta, que ilustra as primeiras reuniões de
‘culto nos lares’ realizado pela comunidade batista.
Israel Belo de Azevedo define a igreja local, no pensamento batista, como sendo um microcosmo
do reino espiritual de Cristo. Ela é autônoma e plena em liberdade, podendo decidir sobre todos os assuntos
sem dependência de qualquer outro corpo eclesiástico, ou seja, a igreja é uma congregação de fiéis,
fraternas umas com as outras e com Cristo, que concordam com uma disciplina segundo as regras do
evangelho. De acordo com a filosofia da Convenção Batista Brasileira, uma igreja batista é uma
congregação local de pessoas regeneradas e batizadas após confissão de fé. Ser membro de uma igreja
batista é um direito dado exclusivamente a pessoas regeneradas que voluntariamente aceitam o batismo e se
entregam ao discipulado fiel, segundo o preceito cristão.
Durante seus vinte e cinco anos de existência, vários líderes participaram de sua
formação, ajudando em sua consolidação:
Essa é uma idéia de que a cidade grande pode oferecer melhores oportunidades
de ascensão social, principalmente para os mais jovens, que não vêem alternativa no
nordeste. Por isso, é com freqüência que eles vêm para São Paulo, iniciando, assim, o
processo de migração. Estabelecendo-se, trazem a família. No momento da chegada é de
vital importância a rede de relações familiares, para dar um mínimo de suporte até as
pessoas ‘arranjarem’. A igreja pode entrar nessa rede de relações sendo apoio para quem
está chegando, como veremos no capítulo 3 desse trabalho.
85
Humberto de Moura, 39 anos.
tema do racismo e preconceito racial, por achá- lo irrelevante para sua comunidade de fé.
Tudo isso pode ser indício de um preconceito racial que se esconde e se camufla entre
falas, atitudes e pensamentos.
86
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Ed. Guanabara: 1989, p. 45-98.
O ser negro no Brasil é resultado de uma construção social impregnada por ideologias87 racistas,
sem consistência biológica. Os homens pensantes da sociedade, fazendo uso da ciência e da produção
acadêmica – sempre dinâmica e que tem como desígnio acompanhar as mudanças e transformações da
sociedade na busca por atender as necessidades sociais, políticas e econômicas de seu tempo – são os
responsáveis pela produção ideológica e por sua manutenção. Como nos explica Geertz, a ideologia
também é uma resposta às tensões criadas em nossas sociedades.
O negro, a feiúra.
87
Tomaremos emprestado de Marilena Chauí a definição do conceito de ideologia que pretendemos utilizar
em nosso trabalho. A ideologia é entendida como um fato social produzido pelas relações sociais, possuindo
razões determinadas para surgir e se conservar. Faz parte da produção de idéias de uma sociedade, ou seja,
das formas históricas determinadas pelas relações sociais.
O branco significa a perfeição.
Como foi bem elucidado por Thomas Skidmore, não se pode demarcar com
precisão as origens do credo racial no Brasil. O que se sabe é que o marco histórico das
doutrinas raciais brasileiras é o período que antecede a proclamação da República e a
abolição da escravidão, momentos marcados por profunda crise nacional e de abalo nas
hierarquias sociais 91 .
88
COHEN, W. Français et africain. Paris: Gallimard, 1980, p. 307.
89
Arthur de Gabineau, um intelectual do século XIX, enviado da França, permanecendo quinze meses no
Rio de Janeiro.
90
SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do ser negro: um percurso das idéias que naturalizaram a
inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/ Fapesp; Rio de Janeiro: Pallas, 2002, p. 55.
91
SKIDMORE, Thomas. Preto no Branco: Raças e nacionalidade no pensamento brasileiro. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1976.
foi dividido entre uma raça superior, glorificada por uma missão civilizatória auto-
atribuída e raças inferiores. (...) Significa dizer que passa a se admitir que nem todos os
homens pertencem igualmente à mesma espécie humana 92 .” Desse modo, a crueldade, a
violência e a opressão, muito comum no sistema escravista, foram aceitas sem prejuízo
moral ou religioso.
92
HERNANDEZ, Leila Maria Gonçalves Leite. A África na sala de aula: visita à história contemporânea.
São Paulo: Selo Negro, 2005, p. 132
93
SCHWARCZ, Lilian Moritz. O espetáculo das raças: cientistas, Instituições e questão racial no Brasil
1870-1930. São Paulo: Companhia das letras, 1993.
Um dos estudos importantes desenvolvidos pelo médico Raimundo Nina
Rodrigues, no final do século XIX, foi na área da criminologia, apoiado pelas pesquisas
no campo da eugenia. Este estudo pretendeu definir negros e mestiços como
potencialmente criminosos. Para o cientista, tanto os negros como os índios e mestiços
eram incapazes de desenvolver uma civilização, pois possuíam uma deformação
biológica, característica de suas raças inferiores. Dada as desigualdades entre as raças,
seriam necessárias modificações na responsabilidade penal. A regra do contrato na
sociedade brasileira, que considera todos os indivíduos iguais perante a lei, o que é uma
medida de defesa social, converte-se em pura repressão: índios, negros e mestiços não
têm a mesma consciência do direito e do dever que a raça branca civilizada, porque ainda
não atingiram o nível de desenvolvimento psíquico, seja para discernir seus atos, seja para
exercer o livre-arbítrio. Vista por esse ângulo, a criminalidade do mestiço brasileiro torna-
se uma manifestação de fundo degenerativo. “Não são ou criminosos ou loucos, são
criminosos e loucos, pois o crime é o mal gerado pelas e nas raças inferiores94 .”
94
SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do ser negro: um percurso das idéias que naturalizaram a
inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/ Fapesp; Rio de Janeiro: Pallas, 2002, p.148.
95
Esses são alguns dos resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em relação ao ano de 2006.
No final do século XIX, ocorria entre os intelectuais um curioso paradoxo: eles
percebiam que nos Estados Unidos o sistema de escravidão desvendava sua face de
exploração e crueldade, enquanto que, no Brasil, o sistema de escravidão revelava uma
faceta paternalista e benigna. Essa controvérsia se dava à medida que percebiam que nos
Estados Unidos os conflitos se faziam abertos entre negros e brancos, mas no Brasil,
reinava uma aparente ausência de conflitos96 . Os proprietários de escravos que se
esforçavam para manter uma aparência de boa escravidão acabaram por contaminar os
escritos dos cientistas da época. De acordo com as observações de Louis Couty, médico
francês que chegou ao Brasil no ano de 1874, o escravo no Brasil era bem tratado e, às
vezes, gozavam de melhores condições do que os assalariados da Europa. Desse modo,
expressa Louis Couty no relato abaixo:
Gilberto Freyre também pode ser citado como um clássico exemplo. Em sua obra
Casa Grande e Senzala, ele consegue reproduzir um ideário romântico de escravidão
paternalista, mostrando em todos os momentos uma ausência de conflitos e por isso, a
possibilidade de no futuro existir no Brasil uma democracia racial. A argumentação do
sociólogo para a distância social entre brancos e negros no Brasil estava ligada mais a
diferenças de classe (problema econômico) do que ao preconceito de cor ou raça. Sendo
assim, a mistura, a mescla veio se tornar a identidade brasileira. Freyre introduziu uma
nova ideologia nacional, conceituando a miscigenação positivamente e transformando-a
em um símbolo importante da cultura brasileira. “Freyre expressou, popularizou e
desenvolveu por completo a idéia da democracia racial que dominou o pensamento sobre
raça dos anos 1930, até o começo dos anos 1990 98 .”
96
COSTA, Emilia Viotti. Da monarquia à república: momentos decisivos. Editorial Grijalbo: São Paulo,
1977. p.56.
97
SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do ser negro: um percurso das idéias que naturalizaram a
inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/ Fapesp; Rio de Janeiro: Pallas, 2002, p.82.
98
TELLES, EDWARD. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume
dumará, 2003, p. 50.
Todavia, a maioria da população negra permaneceu nos porões da sociedade,
sem nenhuma chance de ascender à superfície. Essa realidade se mostrava contraditória
quando comparada ao mito da democracia racial, que reforçava um imaginário de que na
sociedade brasileira, brancos, negros e mulatos viviam harmoniosamente. Como poderia
ser explicada, então, essa discrepância que não conseguia mais ficar camuflada? Como
conviver com uma realidade que negava o mito de democracia racial, por deixar claro que
os negros eram lesados nessa sociedade tida como democrática racialmente?
Célia Marinho de Azevedo, em seu livro Onda negra, medo branco, questiona
tanto a passividade dos escravos, quanto a idéia de que a abolição foi feita por iniciativa
exclusiva dos abolicionistas brancos. As rebeliões e fugas de escravos eram encaradas
pela historio grafia brasileira como acontecimentos isolados ou expressão de
irracionalidade. Essas lutas implícitas eram minimizadas pelos historiadores, ou até
mesmo silenciadas. Azevedo, no entanto, sustenta a teoria de que não se pode pensar na
abolição sem se levar em conta uma onda de revoltas, fugas e até crimes que,
combinados, trouxeram pavor e medo à classe dominante, exercendo uma grande coerção
no sentido de acelerar o processo abolicionista.
99
AZEVEDO, Célia M. Marinho de. Onda negra, medo branco: negro no imaginário das elites do século
XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 180.
100
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na côrte.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p. 32.
própria e autônoma daqueles escravos, pois agiam de acordo com sua própria
compreensão da situação e não simplesmente reproduziam a ótica do opressor. O autor
mostrou que os escravos atuaram de acordo com a lógica ou racionalidade própria, e que
seus movimentos estavam vinculados a experiências e tradições particulares e originais.
Nesse sentido, não podem ser vistos como simples reprodutores ou reflexos de
representações sociais dos brancos.
A visão de liberdade do escravo negro não poderia ser a mesma esperada pelo
branco europeu. Cardoso interpreta o sentido de liberdade para o escravo de forma única e
exclusivamente a partir das visões de liberdade inventadas para os negros pelos senhores
proprietários brancos. Chalhoub propõe outra interpretação, ou outro caminho, para
analisar a visão de liberdade do negro, como por exemplo, compreender o que os negros
entendiam por liberdade, ou seja, pensar a liberdade na visão do próprio negro como algo
possível. Isso torna possível perceber, que para o negro, a liberdade pode ser representada
como uma autonomia de movimento nas relações afetivas, isto é, a liberdade de escolher
a quem servir, por assim dizer: “não a liberdade de ir e vir de acordo com a oferta de
emprego ou valor dos salários, porém a possibilidade de escolher a quem servir ou de
escolher não servir a ninguém”101 . Essa inovação na abordagem da escravidão contribuiu
para se pensar a negritude de um modo diferente e repensar o simbolismo criado, até
então, em torno do negro no Brasil.
101
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na côrte.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990, p.80.
102
COSTA, Emilia Viotti. Da monarquia à república: momentos decisivos. Editorial Grijalbo: São Paulo,
1977. p. 234.
brancos beneficiaram-se com o mito. Mas também é verdade que os negros beneficiaram-
se igualmente, embora de uma maneira limitada e contraditória 103 .”
103
COSTA, Emilia Viotti. Da monarquia à república: momentos decisivos. Editorial Grijalbo: São Paulo,
1977. p.237.
104
COSTA, Emilia Viotti. Da monarquia à república: momentos decisivos. Editorial Grijalbo: São Paulo,
1977. p. 241.
105
SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do ser negro: um percurso das idéias que naturalizaram a
inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/ Fapesp; Rio de Janeiro: Pallas, 2002, p. 103.
106
SANTOS, Gislene Aparecida dos. A invenção do ser negro: um percurso das idéias que naturalizaram a
inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/ Fapesp; Rio de Janeiro: Pallas, 2002, p. 104.
como, por exemplo, alguns intelectuais (grandes nomes de literatos brasileiros foram
mestiços), os que ocuparam funções liberais, serviços urbanos, comerciantes e militares.
A classe média negra, desde o inicio do século XX, tentou se organizar e se manifestar
contra o preconceito racial. Só na cidade de São Paulo, dos anos de 1915 a 1935, foram
organizados dez jornais, com o objetivo de denunciar práticas de discriminação e racismo
contra o negro, e programas reivindicando direitos iguais entre brancos e negros. Apesar
dos jornais se prestarem à denúncia, cada notícia de evento ou protesto era acompanhada
de desenhos publicitários com venda de produtos para mulheres negras, para que ficassem
parecidas com as brancas de classe média, como alisantes de cabelo, vestuário,
maquiagem, etc. “A inclusão social do afro-descendente traz em si mesmo a exclusão.
Eram aceitos aqueles que seguissem as normas, valores e a cultura em geral do branco.
Mas, apesar dessa aceitação, o impulso original de rejeição ao negro resultava em
discriminações sociais 107 .”
Na década de 1930, a classe média negra assume uma postura ainda mais
agressiva contra a discriminação. Em contrapartida, sua preocupação com o
branqueamento se torna mais nítido: “Destacam a imagem de pessoas da elite negra, que
tinham como finalidade orientar, educar e incentivar todos os negros à construção de sua
casa própria, que não podiam ser confundidos com os demais negros, pobres e atrasados
ou vagabundos 108 .”
107
TRINDADE, Liana Silva. “O negro em São Paulo no período pós-abolicionista” in História da cidade
de São Paulo: a cidade na primeira metade do século 20 (1890-1954). V. 3. São Paulo: Paz e terra, 2004, p.
117.
108
COSTA, Emilia Viotti. Da monarquia à república: momentos decisivos. Editorial Grijalbo: São Paulo,
1977.p. 118.
109
COSTA, Emilia Viotti. Da monarquia à república: momentos decisivos. Editorial Grijalbo: São Paulo,
1977. p.COSTA, Emilia Viotti. p. 242.
No Brasil, desde a época colonial, o monopólio dos meios de produção estava
concentrado nas mãos de uma minoria branca. Mesmo com o fim da escravidão, o sistema
econômico capitalista continuou centrando a grande riqueza nacional nas mãos de poucos
brancos. A estrutura patriarcal de nossa sociedade cooperou para que os negros se
adaptassem a essa nova forma de dominação. O negro não conseguiu melhorar sua vida,
nem mesmo após a abolição, pois continuou a exercer as atividades de menor prestígio
social. Os trabalhos executados pelos negros (doméstico, faxineiro, cozinheiro, jardineiro,
pedreiro, etc) são uma continuação de sua vida de escravo. “Essa categoria social de
trabalhador servil foi sempre estimulada pelos brancos como a forma idealizada pelas
relações raciais que reproduzem as antigas forma s sociais e atitudes mentais do sistema
patriarcal110 .”
O negro que realizava trabalhos domésticos era visto como o bom negro, isto é,
aquele que é submisso e conformado com sua situação social. E a relação de patronagem
ilustra bem essa realidade. O senhor branco, sendo padrinho do filho do empregado,
oferecia proteção ao afilhado. Mas em troca ele exigia lealdade, submissão e até proteção
contra grupos políticos. Era possível, então, reforçar o imaginário coletivo da existência
de uma harmonia entre as classes sociais no Brasil. “O compadrinho (relação de afilhado
e padrinho), o coronealismo e o clientelismo, são os componentes de um mesmo sistema
social, construídos por redes de interesses políticos e sociais partidários ou inter
partidários entre os detentores do poder caracterizado pelos coronéis locais 111 .”
Com o fim do Estado Novo, a luta dos negros toma um novo rumo e passa a
denunciar a miséria, a pobreza, as perseguições policiais e as injustiças. Na década de
1950, a classe negra emergente se divide assumindo posturas diferentes. A primeira nega
as questões raciais e se reafirma com os valores da classe média branca. A segunda se
junta à associação negra, retoma os movimentos reivindicatórios e luta pelo direito à
cidadania do afro-descendente sem anular suas raízes culturais. Em 1963, com a força dos
movimentos negros, foram criadas leis contra a discriminação, que denunciavam atos de
violência física ou moral contra o negro brasileiro. Edward Telles chama este processo de
110
TRINDADE, Liana Silva. “O negro em São Paulo no período pós-abolicionista” in História da cidade
de São Paulo: a cidade na primeira metade do século 20 (1890-1954). V. 3. São Paulo: Paz e terra, 2004. p.
106.
111
TRINDADE, Liana Silva. “O negro em São Paulo no período pós-abolicionista” in História da cidade
de São Paulo: a cidade na primeira metade do século 20 (1890-1954). V. 3. São Paulo: Paz e terra, 2004. p.
110.
novo momento ou nova fase de política racial no Brasil, na qual políticas públicas
reconhecem o racismo e tentam reparar a situação. Questionar a situação do negro no
Brasil e suas relações raciais teve como resultado o surgimento de políticas públicas, e se
percebeu um crescimento vertiginoso do interesse público pelo assunto. “Pela primeira
vez na história brasileira, políticas sociais começam a promover explicitamente a
integração de negros e mulatos 112 .”
O racismo brasileiro tem muitas faces, o que lhe confere um caráter específico.
As formas que o racismo assume no Brasil são diferentes se comparadas com o mesmo
fenômeno em países como Estados Unidos da América ou África do Sul. Uma de suas
facetas é a confusão entre a desigualdade social e racial. Desde a década de 1970, é
possível comprovar que a pobreza brasileira é marcadamente negra, enquanto a riqueza é
predominantemente branca. E embora os pardos estejam pouco acima dos pretos, estão
muito abaixo dos brancos. Pesquisas realizadas pelo PNDAD, IBGE, DIESSE e outros
indicadores estatísticos apontam para a diferença entre os negros e brancos na sociedade
brasileira. Os negros possuem menor expectativa de vida que os brancos. Além disso, são
as maiores vítimas de homicídio, como nos mostra o artigo de Doriam Borges, A cor da
morte. Analisando registros 113 de homicídios no Brasil, Borges detectou que a morte tem
cor. Os negros são as maiores vítimas de morte por homicídio. “No que concerne à
vitimização por homicídios, ser pardo é mais seguro que ser preto, mas é muito menos
seguro que ser branco 114 .” A mortalidade infantil atinge em maior número as crianças
negras; o negro possui menor taxa de escolaridade em relação ao branco; a maior taxa de
desemprego é entre pretos e pardos; e as atividades de menor rendimento são ocupadas
pelos negros (limpeza, reforma, transporte, etc). André Brandão, em sua obra miséria da
periferia, além de ressaltar o grande fosso existente entre os brancos e negros no Brasil,
fala sobre uma desigualdade acumulativa. Isto é, o negro, quando vem de família pobre
(em sua maioria), possui um baixo aproveitamento escolar e em conseqüência ocupa as
112
TELLES, EDWARD. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume
dumará, 2003, p. 30.
113
Os registros de homicídios no Brasil, não fornecem muitos dados sobre as vítimas, além de sexo, idade e
estado civil. A partir de 1996, um dado importante passou a ser obrigatório: a identificação da cor da pele
na declaração de óbito.
114
BORGES, Doriam. A cor da morte. Ciência Hoje. São Paulo, v. 35, n. 209, p.26-31, out. 2004.
atividades de menor nível e pior rendimento, o que dificulta o acesso à melhor qualidade
de vida a seus descendentes, e a realidade tende a se repetir por muitas gerações115 .
Outra face desse racismo tipicamente brasileiro foi ressaltada por Darcy Ribeiro
em sua obra O povo Brasileiro. Trata-se da cruel tendência de culpar o negro por sua
condição social, de responsabilizá- los pelas estatísticas vergonhosas que o aponta em
posição social periférica e miserável, desconsiderando as ações políticas e econômicas
que sempre funcionaram privilegiando uma minoria branca e displicente com a maioria
negra. Essa tendência racista, de mostrar o negro como culpado por sua própria desgraça,
é explicada como característica da ‘raça’: o negro não ascende socialmente porque tem
tendência para preguiça e vadiagem. “Essa visão deformada é assimilada também pelos
mulatos e até pelos negros que conseguem ascender socialmente, os quais se somam ao
contingente branco para discriminar o negro-massa 116 .” O autor esclarece que, ao colocar
o negro como culpado por seu sofrimento, ou como se o problema fosse somente uma
questão de desigualdade social, torna-se mais difícil ter um olhar crítico sobre essa
situação e, assim, se pensar em alternativas que rompam com o racismo e o preconceito
em nossa sociedade. Nessas circunstâncias, escreve: “seu sofrimento não desperta
nenhuma solidariedade e muito menos a indignação. Em conseqüê ncia, o destino dessa
parcela majoritária da população não é objeto de nenhuma forma específica de ajuda para
que saia da miséria e da ignorância 117 .”
115
BRANDÃO, André Augusto. Miséria da periferia: desigualdades raciais e pobrezas na metrópole do
rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Pallas ed; Niterói: PENESB, 2004, p. 18.
116
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995, p. 222.
117
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. p. 224.
professado de uma democracia racial que integrasse o negro na condição
de cidadão indiferenciado dos demais 118 .
118
RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro: a formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das
Letras, 1995. p. 234.
119
PENA, Sérgio; BIRCHAL, Telma. A inexistência biológica versus a existência social de raças
humanas: pode a ciência instruir o etos social? Revista USP. São Paulo. V.68, n.1, dez, jan, fev. 2005-
2006. p 11-21. INSS 0103-9989.
120
PENA, Sérgio; BIRCHAL, Telma. A inexistência biológica versus a existência social de raças
humanas: pode a ciência instruir o etos social? Revista USP. São Paulo. V.68, n.1, dez, jan, fev. 2005-
2006. p 11-21. INSS 0103-9989. p. 20.
quadros de uma avaliação fenotípica e naturalizante anterior, o que
remete a dicotomia branco/ não-branco121 .
Para Lílian Schwarcz, os brasileiros se sentem uma ilha cercados por racistas de
todos os lados122 . Numa pesquisa realizada em 1996, o resultado foi que entre os
entrevistados, 97% afirmaram não ter preconceito, e 98% declararam conhecer pessoas e
parentes próximos que são racistas. Os brasileiros admitem, em sua maioria, que vivem
em um país de diferença racial, onde práticas de preconceito e discriminação estão
presentes em seu dia-a-dia. Porém, não assumem o preconceito: o racismo está sempre no
outro. Tal antagonismo pode ser explicado por João Batista Pereira, quando diz que o
Brasil é um país racista e ao mesmo tempo não é, porque vivemos em uma realidade
ambígua que nos força a nos expressarmos ambiguamente. Como vimos no tópico acima,
o racismo esteve presente nos estudos acadêmicos responsáveis pela construção de um
imaginário popular de racismo, como sinônimo de segregação racial, crueldade, tortura
física, e até extermínio de grupos étnicos. Sendo assim, o que acontecia nos Estados
Unidos e na África do Sul, o Apartheid, era considerado expressão do verdadeiro
racismo. “Para os que avaliam as tensões étnicas nessa perspectiva, racismo é uma
expressão muito forte para rotular o preconceito e a discriminação que permeiam as
relações de raça no Brasil 123 .” Segundo esta linha de interpretação, o que ocorre no Brasil
seria um falso racismo.
121
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil. Petrópolis: vozes, 1999, p. 94.
122
SCHWARCZ, Lilian Moritz. Uso e abusos da mestiçagem e da raça no Brasil: Uma história das teorias
raciais em finais do século XIX. Estudos Afro-Asia, São Paulo, 18, 1996, pp.77-101.
123
PEREIRA, João Baptista. Racismo à brasileira. In: Estratégias e políticas de combate à discriminação
racial. Kabengele Munanga (Org). São Paulo: editora da Universidade de São Paulo, 1996, p.76.
relações pessoais altamente estruturada que, por definição, não pode
deixar nada de fora: nem propriedade nem emoção nem relação124 .
124
MATA, Roberto da. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1984, p.
76.
125
MATA, Roberto da. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Petrópolis: Vozes, 1984, p.
83.
126
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Preconceito e discriminação. São Paulo: editora 34, 2004, p.
18.
O fato de ser considerado natural o fato de ver um negro ocupando posições de
subalternidade social impede os brasileiros de aceitarem qualquer esforço de
discriminação positiva praticada por entidades Negras ou de ação afirmativa por parte do
Estado. No discurso racista do brasileiro é apontado o princípio de igualdade de
tratamento como fundamental, pressupondo uma igualdade de oportunidade inexistente.
“Isso equivale a sugerir que a situação de desvantagem real do negro decorre de sua falta
de esforço ou de competitividade 127 .”
127
GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Preconceito e discriminação. São Paulo: editora 34, 2004, p.
81.
128
Foi no de 1988, quando comemorávamos o centenário da abolição da escravidão, que a nova
Constituição da República reconheceu o racismo como um crime inafiançável. Trata-se, portanto, de um
ano significativo para o movimento Negro, sendo de se esperar que houvesse, neste ano, maior discussão
em torno do racimo no país.
129
TELLES, EDWARD. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume
dumará, 2003, p. 75.
da implementação de segregação nos moldes dos Estados Unidos”. Porém, ele explica
que há um certo limite entre essa interação inter-racial no Brasil. A interação entre
brancos e negros fica limitada aos bairros pobres. É mais comum a interação entre pretos,
pardos e brancos pobres. “Os brancos de classe média brasileira possuem poucos vizinhos
negros, salvo talvez na condição de serviçais, principalmente porque estes têm sido
mantidos fora dessa classe 130 .” Nesse sentido, o autor conclui que existe segregação entre
brancos e negros, que pode receber explicação, em parte, por classe social, possuindo
implicações importantes. Sendo assim, essa segregação moderada do Brasil ofusca a
perspectiva de resistência das vítimas do racismo.
130
TELLES, EDWARD. Racismo à brasileira: uma nova perspectiva sociológica. Rio de Janeiro: Relume
dumará, 2003, p. 183.
131
As ações afirmativas surgiram nos Estados Unidos na década de 1960, após a declaração dos direitos
civis em 1964. Ações afirmativas são entendidas como políticas públicas que pretendem corrigir
desigualdades socioeconômicas que resultaram em tratamento discriminatório, atual ou histórico, sofrido
por um grupo de pessoas. As ações afirmativas podem atuar como políticas de cotas, que reserva uma
porcentagem de vagas para minorias políticas e culturais, e a descendência racial passa a ser o critério de
classificação. A discussão de políticas de cotas no Brasil teve origem em 1995, em um projeto de leis
apresentados pela Senadora Benedita da Silva. Na Lei nº 14, que propõe cotas mínimas de 10% para os
setores etno-raciais, socialmente discriminados, em instituições de ensino superior.
mistura racial existente no país, que era positiva, criando duas raças distintas, agora de
forma negativa. “As políticas de ação afirmativa racial terão a conseqüência de estimular
os pertencimentos ‘raciais’, assim fortalecendo a crença em raças 132 .”
Joaze Bernardino, quando discute as ações afirmativas no Brasil, nos lembra que
a aprovação da lei de políticas afirmativas nos Estados Unidos foi diferente, pois, lá a
definição de negro e branco é muito clara: uma gota de sangue negro é suficiente para se
dizer negro. No Brasil, a realidade é bem diferente. Com a difusão do mito da democracia
racial e conjuntamente com o ideal de branqueamento, criamos o que o autor chama de
saída de emergência: o mestiço. Com essa noção de um ser híbrido, a autoclassificação e
a alterclassificação ficou mais complexa: “em termos concretos, são encontradas duas
variáveis que interferem significativamente tanto na auto quanto na alterclassificação dos
indivíduos: a escolaridade e o rendimento familiar 135 .” Desse modo, o lugar do indivíduo
na hierarquia social pode determinar sua cor, o fazendo embranquecer ou escurecer.
132
FRY, Peter. A persistência da raça. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005.
133
MUNANGA , Kabengele. Algumas considerações sobre raça, ação afirmativa e identidade negra no
Brasil: fundamentos antropológicos. Revista USP. São Paulo V.68, n.1, dez, jan, fev. 2005-2006. p.46-57.
INSS 0103-9989.
134
O termo negro que, de acordo com a significação dada pelos dicionários, significa da cor escura, muito
escura; que pertence à raça negra. De acordo com a realidade brasileira, o termo negro é um conceito
político. Ser negro é identificar-se e reconhecer-se como tal.
135
BERNARDINO, Joaze. Ação afirmativa e a rediscussão do mito da democracia racial no Brasil.
Estudos afro-asiáticos. Rio de janeiro, v. 24, n. 2, 2002. Disponível em: www.scielo.br. Acesso em: 12
agosto 2006. p.247-273.
Brandão fala sobre um racismo de assimilação, ou seja, o afro-descendente pode
se auto afirmar menos negro de acordo com seu capital econômico ou cultural. Trata-se
de um racismo representacional, pois, quando ele é assimilado na sociedade branca, pode
ser visto como quase branco, sendo ele mestiço, ou se auto representar menos negro pelos
símbolos econômicos e culturais que pode portar. Por exemplo, um mestiço que no
passado fora pobre, mas que hoje se tornou um médico por seu próprio mérito, pode se
autoclassificar menos negro e, portanto, se sentir mais branco, uma vez que sua condição
socioeconômica é superior àquela que viveu no passado. Por esse ângulo, na ideologia
racial brasileira, a noção de cor, que é afirmada como a negação da marca de raça, é na
verdade, uma transmutação desta, pois a cor da pele somente tem sentido como elemento
classificatório nos quadros de uma avaliação fenotípica e naturalizante anterior, o que
remete a uma dicotomia branco/ não-branco 136 .
136
BRANDÃO, André Augusto. Miséria da periferia: desigualdades raciais e pobrezas na metrópole do
rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Pallas ed; Niterói: PENESB, 2004, p. 94.
137
Esses são alguns dos resultados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) do Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2006.
possíveis é que mais pessoas estejam assumindo a própria cor. Com isso, a participação
da população de cor preta no país aumentou de 6,3% em 2005, para 6,9% no ano de 2006.
A participação das pessoas de cor parda na população caiu de 43,2% para 42,6%, o que
confirma a tese de que houve uma migração de pessoas que se declaravam pardas para o
grupo dos que se declaram pretos. A população negra começa a ganhar mais visibilidade
nas estatísticas oficiais em um período em que se ampliaram as políticas públicas de ação
afirmativa, destinadas a promover maior eqüidade racial. A população de cor branca
perdeu participação e passou de 49,9% em 2005 para 49,7% em 2006. No Sul, a
população branca chega a 79,6%, e no Norte, a parcela é de 23,9%. Em termos
percentuais, a população de cor preta da região Norte foi a que mais cresceu em 2006:
passou de 3,8% para 6,2%, seguida pelo Nordeste, onde o percentual passou de 7,0% para
7,8%. No Sudeste, a participação passou de 7,2% para 7,7% da população. Veja essa
distribuição no mapa 138 a seguir:
138
Mapa referente ao percentual de pessoas pretas, pardas ou indígenas, na população residente, segundo as
Unidades da Federação em 2005. Extraído do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE).
Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de
Domicílios, 2005.
Valorizar a identidade negra é criar condições para alguém se autoclassificar
negro e ser reconhecido de forma positiva por isso. Quando isso acontece, temos a
valorização da auto-estima da pessoa negra e uma modificação simbólica do ser negro.
Todo mundo tem um palpite em relação às políticas de cotas. Muitas pessoas não
possuem nem mesmo informações precisas sobre essas políticas, como por exemplo, a
porcentagem reservada para as cotas. Mas mesmo assim opinam contra ou a favor. O
nível de escolaridade, muitas vezes, não faz diferença. Mesmo quem está dentro de uma
universidade, muitas vezes, não sempre sabe muito bem sobre as finalidades das cotas
nem o porquê de sua existência. Observe as respostas dadas à pergunta sobre se conhecem
as políticas afirmativas e seu posicionamento (contra ou a favor):
Para Daniel Silva, o assunto sobre as políticas afirmativas não lhe é estranho,
embora deixe claro, em sua fala, não ter um amplo conhecimento do assunto. O depoente
é a favor das cotas, pois acredita ser uma iniciativa positiva para o negro.
Eu sou a favor, não só para os negros, mas para todas as pessoas que
tem desejo de estudar. Deveria ter faculdade grátis para todos os que
têm desejo de estudar. Acho que as pessoas que tem um pai com
condição financeira boa, por que tem gente que nasceu em berço de
ouro, bem rico mesmo, não precisa realmente de uma faculdade grátis.
Eles estudam em colégio particular desde pequeno, o pai que não tem
condições não ia colocar. Tem pai que coloca o filho em escola
139
OLIVEIRA, Luís Cardoso de. Racismo, direitos e cidadania. Estudos Avançados. São Paulo, v. 18, n.
50, 2004, p.81-93. Disponível em: www.scielo.br/scielo.php. Acesso em: 05 mar. 2007.
140
Daniel Silva, 40 anos.
particular em determinado tempo, depois não dá mais. Eu coloquei a
Renata em uma escolinha particular, na pré-escola, porque não tinha
uma escola publica por aqui, mas mudou muita coisa depois que a
Renata nasceu. Coloquei a Elizangela também na pré-escola, mas eu não
tive condições de deixar minhas filhas até grande numa escola
particular. Por que eu coloquei na pré-escola? Não era por que eu tinha
condições, é por que eu não queria que minhas filhas ficassem em casa
sem aprender nada. Queria que em vez de ficar aprendendo besteira na
televisão elas colocassem a mente numa coisa melhor. Acho que o
governo deveria dar para aquele pai que nunca teve condições. (...) Tem
muita gente querendo estudar, mas não tem condições. Tem muita
gente. Se tivesse uma faculdade pública que não exigisse tanta coisa
para entrar, como a USP faz, minha filha já estava formada. Eu não
precisava estar fazendo hora extra como estou fazendo, trabalhando
direto com a deficiência que eu tenho, para pagar a faculdade da Renata
e da Elizangela.
Para Nice da Silva, que é professora e lida com a questão educacional em seu
dia-a-dia, as políticas afirmativas apresentam dois lados: por um, dá a chance ao negro de
ingressar em uma empresa ou Universidade, mas por outro, não deixa de ser uma forma
preconceituosa de ver o negro.
Eu tenho uma idéia mais ou menos assim: por um lado, acho que é
viável, mas por outro, é tentar mostrar que o negro é incompetente.
Porque eu falo por um lado? Se você for no mercado de trabalho você
sabe que vai ter menos chance do que um outro branco, a gente sabe que
é assim. Se tiver um gordo e um magro, uma recepcionista magra e uma
gorda, é óbvio que a magra de boa aparência vai ter 70, 80% mais
chance que a outra, vai ser assim. Ajudaria (ter cotas) por que seria
obrigatório ter um preto lá dentro, o mesmo que acontece nas
universidades. Na minha época, quando fiz a faculdade, sabe quantos
negros tinha na sala? Três. Só três, o resto tudo era filhinho de papai, era
assim. Eu fui de teimosa, porque condições eu não tinha.
Ela deixa claro que sua formação educacional e estrutura familiar não lhe deram
base que permitisse sua entrada em uma Universidade pública.
Maria Aparecida, da mesma forma, não entende o propósito das cotas. Para ela,
essa é uma forma que prejudica o negro, ao invés de ajudá- lo, pois limita o número da
entrada de negros na universidade.
Eu já ouvi falar (das cotas). Sou contra e acho que a igreja é contra, né?
Por que deveria ser igual para todos. Porque só duas? Só duas pessoas
negras podem entrar na faculdade? Então, essas cotas que falam aí não
têm uma porcentagem, então (...) acho que deveria ser igual para todos.
Veraldina também se expressou contra as cotas. Para ela, criar cotas é criar
desigualdade. Se os negros são como os brancos, não poderiam ter privilégios. Mas ela
também desconsidera a desigualdade estrutural e racial que subjugaram os negros
brasileiros.
Eu já ouvi falar. Eu acho que não tem que existir uma cota para o negro.
O negro tem que competir com todo mundo, por que tem que ter cota
para o negro? Por quê? Eles não podem disputar por igual? Eles não têm
a mesma inteligência? Têm. Então não há necessidade. Ele tem que
entrar pelo valor que tem, pelo que ele aprendeu, enfim, e não por que o
governo decide X tantos para negros. E o resto dos negros? Quer dizer
entra uma cota e a outra? Então entra o melhor, cada um tem que se
esforçar para ser melhor, para chegar lá. Eu acho isso um absurdo. Não
tinha que ter cotas não.
Suely é educadora e trabalha com crianças carentes da periferia. Ela entende bem
a realidade do negro pobre, mas se posiciona contra as cotas, uma vez que entende que as
políticas afirmativas negam a capacidade intelectual do negro, contribuindo para crença
de que o negro é incompetente. Ela entende a concorrência nas Universidades públicas
como oferecendo dificuldades iguais tanto para o negro quanto para o branco. Porém
reconhece que uma das grandes barreiras para um aluno pobre entrar em uma
universidade pública é a má qualidade das escolas municipais e estaduais. E uma saída
para resolver esse problema seria um melhor investimento no ensino fundamental e
médio, colocando-os em pé de igualdade com os colégios particulares.
Não sou a favor não, até por que, acredito na capacidade do negro. Ele
não precisa de uma cota reservada. Ele tem que acreditar mesmo nele,
investir nele e concorrer a estas vagas. Porque da mesma forma,
principalmente nas faculdades federais, públicas, que você não paga, a
concorrência é brava. Mas ela é brava tanto para negro quanto para
branco de classe inferior. Porque a gente está favorecendo uma classe?
De novo a gente está dizendo que ela é inferior, parece que ela tem
dificuldade de concorrer a alguma coisa. Mas também a classe menos
favorecida que são os pobres, que não tem condições de colocar seus
filhos em escolas graduadas e concorrer de igual para igual com aqueles
que têm. Eu acho que precisa melhorar nossas escolas públicas, que elas
possam dar para nossos alunos as mesmas capacidades às mesmas
condições de desenvolvimento que uma escola particular dá, para que
eles possam concorrer de igual para igual. Isso eu acho que vai dar
certo, a partir do momento que tivermos uma escola pública de ponta,
nossos alunos não vão precisar se socorrer a cotas.
D.W – Como denominação local não. Por quê? Porque nós pregamos a
igualdade, o ser humano como um todo. São positivas, são negativas, eu
não posso te falar isso. Não sei por que depende de cada contexto, de
cada região, inclusive depende muito dos negros, o interesse por essas
cotas ou não, depende muito deles. Não tem uma posição, porque a
posição da igreja é a igualdade, essa é a posição da igreja.
C.K – A igreja então não devia ter mesmo uma posição em relação às
cotas?
Explicamos a ela que por causa da mistura entre as ‘raças’ no Brasil, as pessoas
podem ter somente alguns traços de negro e se considerarem negros. Já que ela disse ter
sangue de negro, perguntamos se ela se sentia negra.
Eu não sei (risos). Agora você me pegou, eu nunca pensei nisso, mas eu
nunca pensei que eu sou uma negra, não. É até bom para eu pensar
daqui para frente, mas eu nunca pensei assim. Eu sempre me considerei
com uma pele amarela mais para branca.
As declarações que vamos ver abaixo deixam clara a falta de identificação com a
afrobrasilidade. Quando perguntamos sobre a autodefinição do colaborador, dando a ele
as opções oficiais 141 .
Eu não sei, eu vou pelo que eu ouço e vejo. Se eu não tiver enganado,
no meu documento consta como branco. Sou de cor morena, me sinto
moreno 142 .
No meu registro, na época colocavam cor, mas agora não colocam mais.
Mas lá no registro fala que eu sou parda. Eu me sinto parda. Meio
amarelada, (...) eu me sentiria meio branca (...) me sinto branca (risos).
Mas, aquela ali é pretinha!!! (aponta para filha em tom de brincadeira).
Nós aqui no Brasil não podemos nos sentir branco, preto, pardo porque
a gente é mestiço, tudo junto. Na minha família tem uma parte toda
morena como a Sara (filha), as pessoas falam que branco com cabelo
ruim é preto, tem essa confusão, mas eu me sinto branca. Às vezes estou
em um grupo e a pessoa grita “vem cá branquinha” outra ora diz
“moreninha”. Eu tenho uma colega que me chama de negra, ela fala
“vem cá negrinha” eu respondo que negrinha que nada, não sou
negrinha, mas é o jeito dela falar. Mas você está em um grupo, e as
pessoas te vêem um pouco branca, um pouco morena 143 .
Pelo que você vê é mais pardo né? Não sei. Uma vez fui fazer um
exame e a doutora me colocou como branco, eu não sou branco. Meu
pai veio de uma raça negra misturada com índio, e minha mãe veio de
uma raça árabe, mais moreno. Posso ser pardo né? O que você acha?
Branco, branco não. Sou mais misturado, mais para pardo. Preto não,
141
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas considera cinco categorias de classificação quanto à
característica cor ou raça: branca, preta, amarela (compreendendo-se nesta categoria a pessoa que se
declarou de raça amarela), parda (incluindo-se nesta categoria a pessoa que se declarou mulata, cabocla,
cafuza, mameluca ou mestiça de preto com pessoa de outra cor ou raça) e indígena (considerando-se nesta
categoria a pessoa que se declarou indígena ou índia).
142
Ademar, 58 anos.
143
Eliane Moura, 33 anos.
mais pardo mesmo. Se fosse não teria problema, mas eu não sou
completamente preto, sou uma mistura 144 .
144
Ademilton Santos, 52 anos.
145
SILVA, Elizete da. Cidadãos de outra Pátria: Anglicanos e Batistas na Bahia. 1998. Tese de doutorado
apresentada ao departamento de História da Universidade de São Paulo FFLCH – USP. São Paulo, 1998, p.
162.
da ala sulista. Portanto, possuíam uma mentalidade escravista, e buscavam dar ênfase na
conversão individual, na vida de oração e devoção e na ética pessoal. Porém como afirma
Duncan Reily, ficou faltando nessa vida cristã “a luta pela justiça e liberdade de todos 146 .”
146
SILVA, Elizete da. Cidadãos de outra Pátria: Anglicanos e Batistas na Bahia. 1998. Tese de doutorado
apresentada ao departamento de História da Universidade de São Paulo FFLCH – USP. São Paulo, 1998. p.
163.
147
ARISTÓTELES. Política. São Paulo: Martin Claret, 2001, p. 12.
148
REILY, Duncan Alexander. História documental do protestantismo no Brasil. São Paulo: ASTE, 2003.
p. 42.
149
BARBOSA. Jose Carlos. Negro não entra na igreja, espia da banda de fora: Protestantismo e
escravidão no Brasil império. Piracicaba: Editora UNIMEP, 2002.
posição das igrejas protestantes no Brasil Imperial, detectou que além de serem
proprietários de escravos sem qualquer constrangimento moral, possuíam muitas outras
preocupações, como disputar espaço com a religião oficial do império e garantir seu
terreno, entre outros. Mas no que tocava a escravidão e a situação da negritude, não foram
temas de seus interesses, tampouco assunto de suas preocupações.
Algumas atitudes em favor do escravo, por parte dos batistas, podiam ser
percebidas. Como o caso citado pela autora, de um escravo que freqüentava a igreja
batista de Salvador, mas foi proibido por seu ‘dono’ de assistir aos cultos. Diante dessa
situação, os membros da igreja decidiram comprar a liberdade do escravo. Mas essa
atitude, segundo a pesquisadora, não pode ser interpretada como uma posição política dos
batistas contra a escravidão, não houve nenhum tipo de ação coletiva nesse sentido. De
acordo com a autora, “a alforria do irmão escravo fazia parte de uma estratégia
evangelística e não uma ação política mais abrangente que questionasse o escravismo
enquanto sistema econômico baseado na propriedade de seres humanos, como mão-de-
obra servil 150 .”
Embora não se tenha nenhum indício de que houve algum tipo de manifestação
protestante a favor dos escravos negros e da abolição, podemos citar alguns casos
isolados de protestantes que tiveram documentada ação em favor do negro, não em
libertação coletiva, mas em favor de alguns indivíduos. Como foi o caso da educadora
metodista Marta Watts, que comprou a alforria da escrava Flora e a empregou no Colégio
Piracicabano, como cozinheira 151 . A documentação só diz que a escrava passou a ser
150
SILVA, Elizete da. Cidadãos de outra Pátria: Anglicanos e Batistas na Bahia. 1998. Tese de doutorado
apresentada ao departamento de História da Universidade de São Paulo FFLCH – USP. São Paulo, 1998, p.
170.
151
Ducan Reily apresenta na página 110 da obra citada o documento oficial da compra da escrava Flora em
20-o4-1875 “carta da liberdade da preta Flora”.
assalariada, pois ela já era de “serviços domésticos”. Não sabemos até que ponto houve
de fato libertação.
Dr. Robert Kalley e sua esposa Sarah Kalley fundaram uma escola dominical
para educação bíblica de crianças. Três semanas depois ampliaram a escola e abriram
uma classe de estudo da Bíblia para homens negros, cujo professor era o próprio Robert
Kalley. Douglas Nassif Cardoso, que pesquisou sobre a vida de Robert Kalley, mostrou
que o fato de um protestante abrir uma classe de estudo da bíblia para negros, 33 anos
antes da abolição da escravidão, era inédito 152 . Não sabemos quem eram aqueles negros,
de onde vinham e se eram livres ou escravos. Mas o fato era que Kalley era contra a
escravidão, e deixa claro em uma exortação que fez no ano de 1865, a um membro de sua
igreja que possuía escravos. Kalley diz que escravizar alguém é um roubo violento da
liberdade alheia de que todos nós temos direito, e que o senhor que escraviza alguém é
inimigo de Cristo e não pode ser ‘membro da Igreja de Jesus’ 153 .
Uma outra carta, dos poucos documentos selecionados por Ducan Reily sobre a
posição do protestantismo em relação à escravidão negra no Brasil, foi a do missionário
presbiteriano Emanuel Vanorden, que demonstra alegria com o fim da escravidão,
superestimando a participação da igreja protestante no incentivo para o fim da escravidão.
Para o missionário, a pregação da Bíblia e o ensinamento de Jesus de “amar o próximo
como a ti mesmo” fizeram uma revolução na mente e coração dos brasileiros, motivando
a atitude de findar a escravidão. Encerra dizendo: “agora que os escravos já obtiveram sua
152
CARDOSO, Douglas Nassif. Robert Reid Kalley: médico, missionário e profeta. São Bernardo do
Campo, São Paulo, 2001, p. 113.
153
Duncan Reily apresenta o documento completo da exortação de Kalley sobre a escravidão nas páginas
121-2.
liberdade tem que ter escola para eles e professores para eles, eles devem receber
instrução para serem conduzidos ao trono da graça 154 .” Sabemos que, de fato, a abolição
ocorreu por fatores econômicos, e que de nada tinham a ver com amor ao próximo. Pois,
se a abolição tivesse tido uma motivação emocional e religiosa, por certo os negros não
teriam sido jogados a sua própria sorte sem amparo do governo e da sociedade. O fato de
o missionário ressaltar que, agora que os negros estavam livres, deveriam ter escola e
ensinamento, soa um pouco incoerente, parece que somente a partir do momento em que
estavam livres é que mereceram atenção. Mas, e antes, não precisavam ser educados?
154
Duncan Reily apresenta o documento completo da Palestra de Emanuel Vanorden, missionário
presbiteriano na página 138.
155
SILVA, Elizete da. Cidadãos de outra Pátria: Anglicanos e Batistas na Bahia. 1998. Tese de doutorado
apresentada ao departamento de História da Universidade de São Paulo FFLCH – USP. São Paulo, 1998, p.
178.
Através de uma pesquisa, Marco Davi de Oliveira, em sua obra A religião mais
negra do Brasil, tenta responder qual é a religião representativamente mais negra do
Brasil e por quê? Descobre que a religião que mais negros possuí não são as religiões
Afro, a Igreja Católica nem os protestantes históricos, mas os pentecostais. Ele constata
que os negros brasileiros se converteram e passaram a fazer parte das igrejas pentecostais
em grande número nas últimas décadas. O que torna a igreja pentecostal a religião com
maior número de negros no Brasil.
Enquanto que nas igrejas históricas, saber ler e escrever era importante para a
compreensão da bíblia, nas igrejas pentecostais, mesmo sem saber ler ou escrever, o fiel
poderia liderar um grupo, se tivesse recebido o batismo com o Espírito Santo, pois esse
sim, era mais importante. Pois, com essa experiência eram vistos “como pessoas
espirituais, homens e mulheres de Deus 158 .” O grande paradoxo, no entanto, é que o
legado educacional foi deixado pelas igrejas históricas, pois construíram escolas, colégios
e faculdades, configurando uma importante contribuição à sociedade brasileira, mesmo
sabendo que esse esforços educacionais estavam voltados para as classe média e alta. As
igrejas protestantes históricas apresentavam grandes barreiras para a aproximação dos
mais pobres e negros.
156
OLIVEIRA, Marco Davi de. A religião mais negra do Brasil. São Paulo: Mundo Cristão, 2004, p. 49.
157
OLIVEIRA, Marco Davi de. A religião mais negra do Brasil. São Paulo: Mundo Cristão, 2004, p. 49.
158
OLIVEIRA, Marco Davi de. A religião mais negra do Brasil. São Paulo: Mundo Cristão, 2004, p. 59.
A grande maioria de negros adeptos das denominações pentecostais
sente-se bem nas igrejas que freqüentam por causa de uma liturgia mais
próxima de sua origem, ao passo que a liturgia das igrejas histór icas
geralmente traz elementos europeus que não se identificam com o jeito
de ser do afrodescendente159 .
Oliveira explica que falar de preconceito racial, tanto nas igrejas pentecostais
quanto nas históricas, é mexer em ferida antiga. Ou seja, falar sobre segregação racial,
racismo e preconceito nas igrejas sempre foi um tabu. Ele explica que, aparentemente,
mexer nessas questões é como tocar alguns ferimentos mal cicatrizados, certas mazelas
que insistem em incomodar a Igreja brasileira. Por isso, ainda hoje, as igrejas cultivam o
mito da igualdade racial:
Essa postura da igreja, que age como se de fato vivêssemos em harmonia e que
dentro da igreja a desigualdade racial desaparece, revela a face de um preconceito racial
mascarado. Embora as igrejas pentecostais abram espaços para os negros, não se pode
observar negros em grandes cargos de liderança entre os pentecostais.
159
OLIVEIRA, Marco Davi de. A religião mais negra do Brasil. São Paulo: Mundo Cristão, 2004, p. 51.
160
OLIVEIRA, Marco Davi de. A religião mais negra do Brasil. São Paulo: Mundo Cristão, 2004, p. 60.
161
OLIVEIRA, Marco Davi de. A religião mais negra do Brasil. São Paulo: Mundo Cristão, 2004, p. 91.
revelador de um mal-estar vindo dos protestantes europeus e norte-americanos, que
durante o processo de escravidão brasileira foram coniventes com políticas e práticas
sociais discriminatórias, opostas ao discurso cristão de igua ldade dos homens perante
Deus 162 . As questões da negritude eram vistas como um problema que só existia na
sociedade circundante, mas que não atingia a membrezia da igreja. Ora, a idéia de que o
racismo existe, é clara para os nossos entrevistados, mas também a idéia de que esse é um
problema que se concentra mais fora do que dentro da igreja é parte do que pensam os
entrevistados. Conversando sobre a problemática do racismo, eles deixam explicito que
esse é um problema que não ultrapassa as paredes da igreja, pois lá dentro não há
diferença de quaisquer gênero.
162
SILVA, Elizete da. Cidadãos de outra Pátria: Anglicanos e Batistas na Bahia. 1998. Tese de doutorado
apresentada ao departamento de História da Universidade de São Paulo FFLCH – USP. São Paulo, 1998, p.
161.
163
SILVA, Elizete da. Cidadãos de outra Pátria: Anglicanos e Batistas na Bahia. 1998. Tese de doutorado
apresentada ao departamento de História da Universidade de São Paulo FFLCH – USP. São Paulo, 1998, p.
161.
164
SILVA, Elizete da. Cidadãos de outra Pátria: Anglicanos e Batistas na Bahia. 1998. Tese de doutorado
apresentada ao departamento de História da Universidade de São Paulo FFLCH – USP. São Paulo, 1998, p.
161.
rádios cediam espaços aos negros e davam destaque a suas temáticas, como a questão da
discriminação, do racismo, da posição social do negro na atualidade, entre outros. A
Igreja Católica também participa deste debate. Nesse mesmo ano, a Campanha da
Fraternidade, inspirada na Teologia da Libertação, abre espaço para discutir a questão da
negritude. Toda essa trajetória resultou no nascimento da Pastoral Afro, no ano de 1989,
no bairro Bela Vista (popularmente conhecido como bairro do Bexiga), na paróquia
Nossa Senhora Achiropita. A pastoral deu origem ao movimento negro considerado um
dos mais significativos da cidade de São Paulo 165 .
Outra matéria, publicada no mesmo dia, traz um título bem sugestivo: Neto de
escravo tornou-se pastor ilustre. A reportagem é praticamente uma biografia em
homenagem ao pastor batista José de Souza Marques, cujo avô fora escravo. Não há
nenhum tipo de referência em relação aos seus avós, tão pouco sobre a escravidão. O
objetivo da reportagem foi o de falar sobre os feitos do pastor, como: fundou o Colégio
Souza Marques no Rio de Janeiro, foi presidente da Convenção Batista Brasileira e da
165
BORGES, Rosangela. Axé, madona Achiropita! Presença da cultura afro-brasileira nas celebrações da
Igreja Nossa Senhora Achiropita, em São Paulo. Ed. Pulsar: São Paulo, 2001.
Convenção Carioca, foi membro da Academia Evangélica de Letras, fundou e dirigiu o
jornal ‘Nova Era’ e a revista ‘Seleções brasileiras’, e em 1960 foi eleito para a Câmara
Estadual. O escritor da matéria encerra dizendo que o pastor José de Souza Marques
afirmou, com sua vida, uma verdade inconteste “que a cor da pele não é obstáculo a quem
deseja ser uma benção para a sociedade e para Deus”.
Do que foi dito até aqui, conclui- se que só é possível combater o racismo se
modificarmos nossos hábitos, comportamentos e costumes vigentes. É preciso provocar a
consciência do racismo. É por isso que, a nosso ver, tratar desse tema dentro de uma
comunidade religiosa se faz importante, uma vez que provoca discussão e reflexão em
torno de nossas práticas e pensamentos. E como nos ensina o professor Kabengele
Munanga, precisamos remover os obstáculos criados pelas ideologias racistas que foram
capazes de atingirem as bases populares, e convencê-las a criarem novas propostas para,
desse modo, não se tornarem sempre vitimas fáceis da classe dominante e de suas
ideolo gias 166 .
166
MUNANGA, Kabengele. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional versus identidade
negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2004, p. 13.
Partiremos para a última parte desse trabalho em que analisaremos os documentos
produzidos e, portanto, as falas de nossos colaboradores. Para interpretação dos
documentos nos apoiamos principalmente nas teorias de táticas e estratégia de Michel de
Certeau e na obra Dogmatismo e tolerância de Rubem Alves.
CAPÍTULO 3
Nisso não há judeu nem grego; não há escravo nem liberto; não há
homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus. Gálatas
3: 28167
167
BIBLIA. Português. A Bíblia Sagrada. Trad. João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do
Brasil, 1969.
168
JONSON, Allan. Dicionário de sociologia: Guia prático da linguagem sociológica. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 1997, p. 32.
igreja como um espaço de construção social no seu fazer cotidiano, onde os sujeitos não
são vistos, pela pesquisadora, como passivos diante da estrutura. Pretendemos entender
essa relação sujeito- instituição, como um processo em contínua construção, com a
inevitável presença de conflitos e negociações em função de circunstâncias determinadas.
169
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed.
Universidade/UFRGS, 2002. p.181.
desenvolvida no Canadá, Inglaterra e França 170 . No princípio recebeu muita resistência
por parte dos pesquisadores, pois a ciência havia se consagrado à palavra grafada,
desvalorizando, conseqüentemente, a oralidade 171 . A relação entre a palavra oral e a
escrita sempre foi conflituosa, devido suas distintas finalidades.
170
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. História Oral: 10 itens para uma arqueologia conceitual. Oralidades,
São Paulo, v.1, n.1, p.13-20, jan./jun. 2007, p. 20.
171
MEIHY, José Carlos Sebe Bom. Manual de história oral. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
172
FERNANDES, José G. Do Oral ao escrito: Implicações e complicações na transcrição de narrativas
orais. Outros tempos. Maranhão, v.2, n.2, 2005. p.156-167. Disponível em: www.outrostempo.uema.br.
Acesso em: 16 abril 2006.
Contemporânea do Brasil, que pertence à Fundação Getúlio Vargas (CPDOCO) no Rio
de Janeiro. Iniciou o projeto recolhendo depoimentos da elite política nacional.
O uso da História Oral no Brasil toma impulso nos anos 90. Um dos
responsáveis por sua visibilidade foi a Associação Brasileira de História Oral, criada em
1994, iniciando muitos pesquisadores ao estudo da oralidade.
A metodologia da História Oral será nosso ponto de partida, tanto por mediar
nossa produção de documentos quanto por nos ajudar na análise do material produzido.
A escolha deste método se fez pertinente por se tratar de um recurso que nos possibilita
escrever e analisar a história do tempo presente. E, por conseguinte, permite uma
produção historiográfica distinta da convencional, privilegiando os excluídos, dando luz a
personage ns que até então eram invisíveis para historiografia oficial, dando voz a
segmentos sociais que não tiveram acesso à produção de documentos escritos e cuja
cultura e cotidianidade podem ser facilmente captados através da oralidade.
173
ATAIDE, Yara Dulce Bandeira de. “Género, etnias y grupos excluidos en Salvador de Bahía.” In:
Historia Antropologia y fuentes orales. Barcelona, v.3, n.25, 2001, pp. 105-115.
Tradução da autora:
Esta metodologia permite novos padrões de relação, capazes de facilitar a aproximação e o contato entre o
investigador e a comunidade investigada, uma vez que estimula uma relação entre sujeitos sociais que se
abrem mais espontaneamente ao diálogo e a produção negociada de entrevistas e testemunhos, em um
tempo-espaço que tenta ouvir e entender o entrevistado segundo sua própria visão de mundo. Assim, este
novo referente deixa transparecer um grupo social diferente e uma nova forma de sentir-pensar-agir que o
investigador somente presente, mas não conhece nem experimenta.
As fontes orais dão conta dos significados mais do que dos eventos factuais. O
testemunho oral explora a imaginação e o simbolismo, dando luz às áreas inexploradas da
vida diária. Por essa razão, Alessandro Portelli acredita que as fontes orais são
importantes para tornarem visíveis às classes não hegemônicas.
Fontes orais são condição necessária (não suficiente) para a história das
classes não hegemônicas, elas são menos necessárias (embora de
nenhum modo inúteis) para a história das classes dominantes, que têm
tido controle sobre a escrita e deixaram atrás de si um registro escrito
muito mais abundante 174 .
O conceito de memória se torna crucial para nós, uma vez que fazemos uso da
memória do sujeito religioso – o negro batista – como fonte de investigação
historiográfica. Fazendo uso da leitura de Jacques Le Goff, interpretamos a memória
como propriedade de conservar certas informações, que nos remete, em primeiro lugar, a
um conjunto de funções psíquicas, das quais o homem pode atualizar impressões ou
informações passadas, ou que ele representa como passadas. A memória também tem a
função de ordenar os vestígios passados e reler esses vestígios, reinterpretando-os. Logo,
a memória não pode ser pensada como algo estático, fixo, pronto e acabado. Pelo
contrário, a memória é algo instável, maleável, viva, seletiva e, portanto, inacabada.
174
PORTELLI, Alessandro. “Forma e significado em história oral: A pesquisa como um experimento em
igualdade” In: Revista projeto história. N.14, PUC-SP, 1997, p. 37.
Quando evocamos nossas lembranças, podemos perceber que elas são reconstruídas e
sofrem interferências do contexto social, espacial, familiar, cultural e emocional, ou seja,
a memória individual e coletiva não são fechadas nem isoladas 175 .
175
HALBWACKS, Maurice. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990, p. 58.
176
LE GOFF, Jacques. História e memória. 3 ed. Campinas, Editora da UNICAMP, 1994.
177
A revista dos Annales fundada na década de 1929 pelos historiadores Marc Bloch e Lucien Febvre da
Universidade Estrasburgo. Pioneira por abordar a história de longa duração. A segunda geração formada
por Fernand Braudel e a terceira geração, também conhecida de Nova Historia foi formada por Michel
Foucaut e Jacques Lê Goff e Georges Duby. Uma das características iniciais dos Annales está na reflexão
dos historiadores tanto em relação a sua área de estudos, como sobre suas formas de trabalho. Preocupa-se
em tirar a história de seu isolamento disciplinar, e por isso pensar em História de forma abertas e suas
problemáticas e a metodologias de forma interdisciplinar.
por possuir facilidade em transitar nas diversas áreas do saber, tendo uma sólida formação
em Filosofia, Letras Clássicas, História, Teologia e doutorando-se em Ciências da
Religião na Sorbone. Destacou-se como um questionador da historiografia, propondo uma
nova maneira de se perceber a história em sua construção 178 .
178
BOGNER, Daniel. Presente rompido: mística e política em Michel de Certeau. Mainz: Matthias-
Grünewald-Verlag, 2002.
179
CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed.
Universidade/UFRGS, 2002. p.182.
alterando seu funcionamento. Isso de forma quase imperceptível. Operações entendidas
como “(...) quase microbianas que proliferam no seio das estruturas tecnocráticas e
alteram o seu funcionamento por uma multiplicidade de ‘táticas’ articuladas sobre os
‘detalhes’ do cotidiano (...) 180 .”
180
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: arte de fazer. Vozes: Petrópolis, 2007, p. 41.
181
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: arte de fazer. Vozes: Petrópolis, 2007, p. 46.
182
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: arte de fazer. Vozes: Petrópolis, 2007, p. 46.
faziam as leis e impunham suas formas de organização. Por outro lado, estavam os
pobres, os que sempre ‘levavam a pior’ e eram obrigados a obedecer sem contestação.
Embora essa realidade se mostre um tanto quanto conflituosa, os fracos – lavradores –
construíram uma realidade utópica, acreditando que no céu os seus inimigos seriam
punidos.
Esse apego religioso pode ser considerado como uma das táticas produzidas de
forma silenciosa. Os lavradores que aparentemente se conformavam com o autoritarismo
imposto pelos ricos e a polícia, na verdade, encontraram uma forma de resistir, mesmo
que essa tática não se mostrasse por meio de manifestações ou revoltas coletivas,
resistiam sem alterar o sistema. Utilizando o espaço da religião de forma não autorizada,
ou seja, modificando seu funcionamento, criavam um espaço utópico onde relatos
religiosos de milagres revelavam a vitória dos fracos no céu, e sucessivos castigos aos
inimigos. Nas palavras do autor, essa pode ser considerada uma das “mil maneiras de
jogar/desfazer o jogo do outro, ou seja, o espaço instituído por outros, caracterizam a
atividade sutil, tenaz, resistente, de grupos que, por não ter um próprio, devem
desembaraçar-se em uma rede de forças e de representações estabelecidas 183 .” A massa
silenciada então, utiliza-se de táticas para desviar a ordem efetiva das coisas e sua
representação se dá por meio da arte de fazer. Isso acontece quando é explorada por um
poder dominante ou negada por um discurso ideológico.
Será sob essa ótica que observaremos nossos interlocutores, como sujeitos
capazes de se movimentar utilizando o não espaço, no contexto da religiosidade e da
imposição da estratégia criada pela instituição, e que conseguem sobreviver utilizando-se
de táticas silenciosas.
183
Ibid., p. 79.
Sexo
homem homem
mulher
47%
53% mulher
Faixa Etária
21%
20 a 30 anos
37%
31 a 40 anos
41 a 50 anos
acima de 50 anos
5% 37%
29%
Pretos
Pardos
71%
184
Levamos em consideração a classificação utilizada pelos órgãos oficiais do Brasil, que classificam o
brasileiro em cinco categorias levando em conta à característica cor ou raça: branca, preta, amarela
(compreendendo-se nesta categoria a pessoa que se declara de raça amarela), parda (incluindo-se nesta
categoria a pessoa que se declara mulata, cabocla, cafuza, mameluca ou mestiça de preto com pessoa de
outra cor ou raça) e indígena (considerando-se nesta categoria a pessoa que se declarou indígena ou índia).
• A comunidade batista Maranata é composta por uma grande parte de
pessoas vindas do nordeste brasileiro. Nossos entrevistados, em grande maioria,
representam o estado da Bahia. Boa parte dos representantes do Estado de São Paulo são
as segundas gerações de migrantes também vindos dos estados de Minas e do nordeste.
Naturalidade
5%
5%
São Paulo
5%
37% Bahia
Minas Gerais
Pernambuco
Rio Grande do Sul
48%
Nível de escolaridade
28%
33% Ensino Fundamental
Ensino Médio
Ensino Superior
39%
17%
Católico
11% Batista
Assembléia de Deus
61%
11% Umbanda
186
ALVES, Rubem. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: edições Loyola, 2004, p. 30.
187
ALVES, Rubem. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: edições Loyola, 2004. p. 33.
Se pensarmos o protestantismo enquanto instituição 188 , o fiel responderá
produzindo comportamentos e bens, segundo as receitas monopolizadas por ela. As
instituições são cristalizações de uma sabedoria que não tem consciência de suas origens.
A relação do homem com o mundo não é direta, mas mediada pelas instituições. Quando
ela corresponde a essa expectativa, não é necessário questionamentos ou tentativas de
mudanças. A instituição faz uso de seus mecanismos para impor sua interpretação da
realidade e os comportamentos correspondentes.
Max Weber observou que, para os calvinistas, a prosperidade nos negócios era
sinal de benção divina. Já na América Latina, os protestantes evidenciam seu novo status
espiritual não pelo sucesso financeiro, mas por meio de virtudes morais, o que os tornam
diferentes dos demais. Quando perguntamos o que mudou na vida dos entrevistados após
a conversão, obtemos como resposta, não riqueza material, mas virtudes morais. Veja os
exemplos nas falas abaixo:
Coisa material eu não falo que mudou, eu não me apego em bens assim,
certo que é bom a gente ter, mas eu não me apego em bens materiais.
Assim, de ter, ter, a gente sempre trabalha num propósito assim, mas
não com ambição de querer ter e não atingir o objetivo. Eu não sou
acomodado, eu trabalho direto para conseguir as coisas, e se caso chegar
no final do mês e eu não conseguir, tudo bem. Eu estando com saúde e
meus filhos e minha esposa, já está de bom tamanho190 .
Mudou muita coisa (...) A paz que você sente para resolver as coisas,
antes eu queria resolver as coisas do meu jeitão, de dar o troco, eu agia
muitas vezes desse jeito, lógico, nunca falava para meu filho, se uma
criança bater você vai dar o troco, eu nunca ensinava isso, mas eu era
muito ignorante. Hoje eu não sou. Eu entendo, se a pessoa chegar e
conversar comigo, eu tenho facilidade de entender aquela pessoa, ou
188
Instituição no sentido de um mecanismo social que programa o comportamento humano de forma
especializada, o homem produz então, os objetos predeterminados pela ela.
189
Nice Conceição da Silva, 32 anos.
190
Humberto Moura, 39 anos.
crente ou não crente, mas tenho facilidade, agora tenho paz no meu
coração para tudo que eu vou resolver.191
191
Maria Aparecida Souza, 51 anos.
192
ALVES, Rubem. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: edições Loyola, 2004. p. 133-134.
nova escola de pensamento no país sob a liderança de Aureliano
Cândido Tavares Bastos, Caetano Furquim de Almeida e outros. Esse
novo grupo ensinava que o ‘progresso’ só poderia ter lugar no Brasil por
meio da imigração germânica e anglo-saxonica (isto é, protestante).193
Mas, como um grupo que se diz libertário e democrático pode ignorar a realidade
injusta e desumana da estrutura social, econômica e política na qual vivemos? Alves nos
ajuda a responder essa pergunta, explicando que a questão fundamental do protestantismo
está no seu individualismo, que, no nível articulado, parece defender a liberdade, mas na
realidade, contraditoriamente, se conforma com a estrutura dominante. A luta pela
liberdade íntima e individual, preciosa ao protestantismo, cria uma impossibilidade de
protestar contra as estruturas, pois o individualismo funcionaria, no nível social, como um
mascaramento da situação de repressão e como uma justificativa dessa mesma situação.
193
VIEIRA, David Gueiros. O protestantismo, a maçonaria e a questão religiosa no Brasil. Brasília:
Editora Universidade de Brasília, 1980, p. 372.
194
ALVES, Rubem. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: edições Loyola, 2004. p. 127.
dádiva de Deus. ‘O futuro a Deus pertence’. O individualismo produzido pelo
protestantismo latino americano dominou suas formas de pensamento, não permitindo
entender os problemas de natureza estrutural, mas os percebendo como um simples
agregado ou soma de problemas individuais. Por isso, a fórmula central de sua ética social
é “converta-se o individuo, e a sociedade se transformará195 .”
M.S – Para mim não existe não, pode existir para algumas pessoas, mas
para mim, não.
195
ALVES, Rubem. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: edições Loyola, 2004. p. 127.
196
Na entrevista Maria Souza conta o entusiasmo de sua filha quando era levada pelos tios para igreja, onde
participava da programação com muita alegria. Esse foi um dos fatores decisivos que a fez visitar a
Maranata. Nesse tempo, a igreja funcionava sem um espaço próprio. As reuniões eram feitas na casa do
membro fundador, conforme explicamos no capítulo anterior.
197
A União Feminina Missionária Batista do Brasil se designa por grupos de mulheres batistas que se
organizam para auxilio e motivação de projetos, com ênfase na educação cristã missionária, envolvendo
quatro faixas etárias (criança, adolescente, jovem e adulta), que abrange a igreja local, se estendendo para
atividades que englobam as igrejas batistas dos Estados e do país.
M.S – Acho que não, algumas pessoas tem esse lado, não sei. Quando a
pessoa é assim, eu acho que é uma pessoa que não busca a Deus no
coração.
M.S – Não tem, não pode ter, eu entendo que é pecado fazer isso.
M.S – Existe sim, por parte de algumas pessoas, mas não por mim, nem
por meus filhos, eu nunca ensinei isso para eles, de não ficar perto de
alguém porque é negro, e nunca vou fazer isso, mas existe sim. Na
igreja acontece sim, mas com pessoas que não conheceu o amor de Deus
de verdade, e que não tem Deus no coração. Uma pessoa que está assim,
não dá nem para explicar.
Depois de reforçar que ela não é preconceituosa, nem seus filhos, esclarece que,
no seu entender, ser racista é um pecado, e quem comete tal pecado, só pode ser por não
buscar a Deus de coração. Logo, esse é um problema individual, deixando claro que a
conversão é suficiente para mudá- lo. Observe a próxima depoente que comunga da
mesma idéia:
C.K - Porque você acha que na igreja não existe preconceito racial
se em todos os lugares existe?
R.A - Pelo menos eu não sinto, para mim não existe. Quando as pessoas
aceitam a Jesus, Jesus modifica o coração das pessoas e todos se tornam
iguais, então o que acontece? Elas não vêem a gente pela cor de pele,
elas vêem a gente pelo que a gente é, vê o coração, o interior e não o
exterior. Por isso que na igreja não tem. Deus transforma os corações
das pessoas e renova 198 .
198
Renata Alves, 24 anos.
Em um terceiro exemplo, percebemos essa idéia reforçada. Ou seja, o
entrevistado entende que dentro da igreja todos são iguais, não recebendo tratamento
diferenciado. Com isso, se houver preconceito, ele é interpretado como uma questão
individual. O problema do preconceito exis te, mas somente no ‘mundo’, fora da igreja.
L.A – Eu vejo que não, lá não tem discriminação de cor ou raça, todos
nós estamos ali para louvar e engrandecer o nome do Senhor. Na
Maranata não tem essa diferenciação de cor e raça. Todo mundo é igual
lá dentro.
C.K – Por que você acha que não existe desigualdade dentro da
igreja?
Para entendermos o porquê desse modo de pensar, temos que ter claro a oposição
que o protestante faz entre a esfera pessoal e a estrutural, em termos dualistas, ao invés de
dialéticos. Com essa visão dualista, não entendem que o sujeito se opõe ao mundo para
transformá- lo. Pelo contrário, entendem que o crente se opõe ao mundo e dele deve se
afastar. O dualismo não pretende resolver a oposição, mas perpetuá-la, intensificando-a
199
Leandro dos Santos, 27 anos.
ainda mais. A preocupação central fica na salvação da alma, já que o mundo está perdido.
Assim, para o protestante latino-americano, a pessoa não transforma o mundo, mas
rejeita-o. “Daí a formulação típica da eclesiologia dominante: a Igreja, como comunidade,
não participa das transformações socais. Sua tarefa é converter os fiéis e alimentar os
conversos”200 . Conseqüentemente, o mundo, como tal, e de forma específica o mundo
latino-americano, com seus valores, seu estilo de vida, e sua cultura, passa a ser
considerado mal.
Por isso, devemos entender que o problema do preconceito racial não ultrapassar
as paredes da igreja é um pensamento permitido na lógica do discurso ideológico
protestante. Afinal, o crente, sendo um forasteiro, um viajante, um peregrino, estando de
passagem neste mundo, tem como preocupação primordial a sua caminhada rumo à pátria
celestial e eterna, onde não haverá ma is dor nem choro. Os problemas ‘terrenos’, como a
política, a economia, questões sociais e raciais são jogados para um segundo plano, não
ganhando assim, importância significativa no discurso protestante.
Diante da realidade de nosso estudo, em que tomamos por base uma comunidade
de baixa renda, onde 58% dos entrevistados são moradores de favelas do entorno da
igreja, analisar a dinâmica de exclusão/inclusão social nesse micro espaço se faz
importante. A religião, mais do que um espaço do sagrado, ocupa também um papel
importante nessa dinâmica social, já que se torna fonte de solidariedade e integração
social, tanto no âmbito familiar quanto no de sociabilidade primária 202 . É no espaço da
igreja que os fiéis encontram ajuda espiritual, mas também material. Quando perguntamos
aos nossos colaboradores o que poderiam apontar como positivo na igreja Maranata, eles
200
ALVES, Rubem. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: edições Loyola, 2004. p. 131.
201
ALVES, Rubem. Dogmatismo e tolerância. São Paulo: edições Loyola, 2004. p. 132.
202
LAVALLE, Adrián Gurza; CASTELLO, Graziela. “As benesses desse mundo: associativismo religioso
e inclusão socioeconômica”. In: Novos Estudos CEBRAP n 68, 2004, pp. 73-93.
colocaram em primeiro lugar a união entre os irmãos, o que inclui a ajuda mútua entre os
fiéis, colaboração e cooperação tanto no âmbito emocional quanto material, como vemos
nos três exemplos abaixo:
M.S – Nossa, é muita coisa boa. Tem tanta coisa! A melhor é lógico que
é Deus. Mas ver os meus filhos no caminho do Senhor e estão até hoje,
eles permanecem firme com Deus, eu acho que foi os irmãos mais
antigos e o pastor Varela que ajudaram muito meus filhos. O pastor
Varela eu respeito muito e gosto muito dele, eu aprendi muita coisa com
ele e meus filhos aprenderam muita coisa com ele. Isso foi uma coisa
muito boa e eu nunca vou esquecer. Às vezes o pastor varela vinha aqui
em casa conversar com meus filhos, ele acompanhou a adolescência
deles. Isso foi muito bom, quando meus filhos estavam meio frios, não
no mundo, mas ele via e puxava a orelha, com a minha ajuda, eu dava
203
Rubens Pereira, 32 anos.
204
Eliane Moura, 33 anos.
um toque para ele e ele vinha rapidinho me atender. Eu tenho um grande
respeito pelo pastor Varela, até hoje. Ele me ajudou muito,
principalmente na adolescência da minha filha porque ela me deu um
pouco mais de trabalho, depois passou, não demorou muito não.
Naquela época que eles ficam assim querendo outra amizade, querer
arrumar namoradinho, começar com aquela paquerinha, então ela me
deu um pouco de trabalho. Com a idade de treze e quatorze anos, com
quinze já tinha passado. Foi uma fase, hoje eu entendo melhor, mas ela
foi a minha primeira filha então foi um pouco difícil, mas a gente vai se
acostumando, vai aprendendo e tendo experiência. Mas acho que isso
foi bom, hoje eu vejo meus filhos conversando um com o outro, dando
apoio, e eu vejo que tenho muito a agradecer a Deus em primeiro lugar e
aos irmãos que me ajudaram muito. A irmã Vera sempre orava pelo
Edgar porque ele era uma criança muito doentinha, ele ficou bom com
as orações. Isso foi uma coisa muito boa que aconteceu comigo na igreja
Maranata . Tem uma irmã, a Beatriz, que a gente era muito amiga, às
vezes eu pegava as crianças na escola e ficava na casa dela até de noite,
ela me acompanhava no médico. Hoje estou em falta com ela por causa
do meu tempo e porque cuido da minha mãe que está doente, mas
guardo ela no meu coração e outros irmãos da Maranata205 .
205
Maria Souza, 51 anos.
206
LAVALLE, Adrián Gurza; CASTELLO, Graziela. “As benesses desse mundo: associativismo religioso
e inclusão socioeconômica”. In: Novos Estudos CEBRAP n 68, 2004, pp. 73-93.
Pois um membro desempregado não tem um sustento próprio, mas também não pode
abençoar a casa do Senhor. Há um grande empenho da igreja em ajudar as pessoas que se
encontram desempregadas, tanto de forma objetiva quanto subjetiva: por meio de
indicação, informações sobre vagas trazidas pelos membros, reuniões de oração com o
propósito específico de interceder pelos irmãos desempregados, privilégio dado aos
membros por parte de empresários 207 ou micro-empresários membros da mesma
comunidade, e assim por diante. Foi isso que constataram Ronaldo Almeida e Andréia
Tiajaru: a igreja se torna uma rede social que beneficia seus fiéis concretamente:
Veremos isso a seguir, nas palavras de Nice, que veio do estado da Bahia, com a
perspectiva de que, vindo para São Paulo, pudesse ter uma melhoria de vida. Chegando
em São Paulo, ao conhecer a igreja batista Maranata, conseguiu, além do apoio afetivo,
que lhe foi importante na medida em que se encontrava na condição de migrante, um
emprego, suprindo uma de suas necessidades primordiais.
207
Classificamos como empresários todo o ramo de comerciantes e proprietários que propiciam
empregabilidade.
208
ALMEIDA Ronaldo de; D’ANDREIA, Tiajaru. Op. cit., pp. 95-106.
209
Nise Silva, 32 anos, entrevista realizada no dia 11-09.
mais sabedoria, até mesmo para as coisas práticas do dia-a-dia, como, por exemplo, saber
administrar o dinheiro que se ganha usando-o de forma consciente, um jeito diferente de
agir na vida, com mais responsabilidade e até garantindo a integridade da família. São
áreas da vida que, por mais subjetivas que pareçam ser, refletem na vida material e
objetiva do fiel. Os laços do crente com a igreja podem trazer benefícios tanto para ele
mesmo, que muda o rumo de sua vida, quanto para sua família, vizinhança e até mesmo
comunidade de fé.
Maria Coelho é uma senhora de 56 anos, viúva e com três filhos. Ela veio do
estado de Minas Gerais para São Paulo, na tentativa de ‘arrumar a vida’. Construiu uma
casa na favela e morou lá até se converter. Ao filiar-se a igreja batista Maranata, começou
a perceber os perigos da favela e sentir o desejo de não morar mais ali. Com a ajuda dos
irmãos da igreja, e por meio de um mutirão, construiu sua nova casa. Administrar seu
dinheiro de uma forma diferente possibilitou a compra do terreno e a construção de sua
casa, o que ela interpreta como um milagre.
Nossa! Mudou tanta coisa na minha vida! Tanta coisa! Olha, o que eu
tinha era um barraco lá na favela. Aí quando o Leandro nasceu a gente
começou a ver assalto na favela, tiroteio tudo aquilo me apavorou, e o
Leandro crescendo. Eu falei com a minha filha que a gente não podia
ficar aqui, e o Leandro não podia crescer no meio disso. Não é por que é
uma favela, é porque entra muita gente que não presta. Lá tem gente
boa, de família, mas tem muita gente que não presta. Meu filho ia
crescendo e vendo aquilo tudo. Eu explico para ele o que presta e o que
não presta, mas mesmo assim naquele lugar eles fumavam, escondiam
coisas na parede da casa da gente, meu filho via eles com revolver na
mão, “não, não pode” foi quando entrou Jesus verdadeiramente. “Eu não
posso, não posso ficar aqui”. Foi quando o pastor Varela falou que tinha
um terreno para vender. Você acredita que a gente nem colocou placa de
venda na casa, apareceu uma mulher não sei da onde e ela deu os 4.000
mil reais e ficou para pagar o resto depois, e ela depositou os 500 reais
depois sem a gente conhecer, foi por Deus, por Jesus! E eu comprei
aqui. Foi um milagre! Minha vida mudou completamente. Consegui
esse emprego, fui morar na casa da Lene e do Valter. O Valter é uma
benção na minha vida! Então assim, os irmãos da Maranata me
ajudaram, levantaram a minha casa, todos os irmãos me ajudaram, o
irmão Helder pegou a frente, um ex-namorado que eu tinha ajudou
também, o César, o Rubens, o Humberto, vários irmãos ajudaram a
fazer essa casa, hoje eu agradeço de coração a todo mundo que ajudou
porque foi muito bom. Hoje estou nessa casa sem acabar, mas pela
misericórdia ela é minha, eu ainda estou pagando porque ganho pouco,
mas não tenho o que me queixar. Jesus na minha vida mudou por
completo, não só eu, a Lene casou com o Valter e foi uma benção, e ele
trouxe nós todas, e nós fomos vendo que é só Jesus. Se não fosse Deus
acho que estaria no fundo do poço, porque eu não tinha nada. Tem gente
que pergunta se eu consegui mesmo comprar esse terreno e construir
com um salário desses. É pela misericórdia. E eu sou viúva vinte e
poucos anos, porque o meu patrão é muito bom para mim, eu tenho
problema nos meus dois joelhos e ás vezes eu vou trabalhar de muleta e
ele me deixa trabalhar.
Na igreja batista Maranata, como nas igrejas evangélicas em geral, há uma longa
tradição de proporcionar benefícios materiais de caráter privado aos seus fiéis, tais como
acessos aos recursos de determinadas redes sociais. A casa do exemplo acima citado foi
construída devido à cooperação dos membros da igreja, o emprego foi conseguido por
meio de um irmão de fé. Ou seja, trata-se de uma reciprocidade entre os próprios fiéis,
pautados no principio bíblico de ajudar primeiro os ‘irmãos de fé’. Sendo assim, é
possível se beneficiar da condição de filiado à igreja. A dimensão simbólica do sagrado e
do transcendente, embora seja o papel definitivo dessa instituição, não impede de
preservar e ampliar seus papeis funcionais, cujas implicações se refletem na vida prática
do fiel, propiciando laços de solidariedade econômica e forte capacidade de mobilização
interna.
Acho que não. Dentro da igreja eu não vejo isso. Pelo meu lado, eu sou
uma pessoa influente na igreja, tenho um cargo há muito tempo e as
pessoas me respeitam por isso, pelo que eu faço. Mas pelo fato de eu ser
negro tenho que mostrar isso em dobro, porque se acontecer algo de
errado as pessoas vão dizer “Ah, aquele neguinho, aquele negro,
fazendo um serviço de porco!” uma coisa assim.
Podem pensar assim. Isso já passou na minha cabeça, tenho que provar
em dobro a minha competência para assumir um cargo na igreja que me
foi colocado. Olhando as pessoas que chegou hoje ou está há uns cinco
anos ou até mais e sem fazer nada, só ficam no banco sem fazer nada,
sem dirigir estudos na escola bíblica, sem ser evangelista, sem ser uma
pessoa que organize o culto, ser uma pessoa que só fique no banco,
talvez sim. Talvez as pessoas podem ter essa discriminação “Ah, é um
negro!” não sei se falam nesse tom “um negro”, mas está ali e não faz
nada, talvez possa distinguir isso pela cor da pessoa. Eu já pensei nisso,
mas prefiro não pensar que seja assim. Eu me decepcionaria muito com
a igreja e com as pessoas que ali estão.
Olha, eu sinto que não. Algumas épocas atrás eu sentia muitas piadinhas
envolvendo a raça negra e eu achava um pouco desagradável, pejorativa,
até porque na brincadeira e na piadinha você muitas vezes diz coisas que
você pensa só que não tem coragem de dizer para não entrar em conflito
e você diz através de uma piadinha ou brincadeira pejorativa. Mas essa
pessoa que fazia essas coisas e eu não aceitava, não está mais aqui.
Espero em Deus que no lugar que ela esteja, não esteja fazendo mais
isso. Mas eu acredito que não há uma discriminação de raça. Mas
acredito que possa haver uma discriminação cultural. Não vejo isso em
relação à raça e sim à cultura. Assim: aqui é a panelinha dos
universitários, do pessoalzinho de nível superior. Falamos a mesma
língua, temos a mesma cultura mais elevada, então a gente se entende.
Existe algum padrão de pensamento, de comportamento, ás vezes se cria
um certo agrupamento em cima de uma questão cultural. Vamos
imaginar que você não é universitária, não tem nível superior, mas, se
veste assim, no mesmo estilo que eu, consegue se enquadrar no meu
padrão, mesmo que não seja de forma cultural, você tem algo dentro do
meus critérios classificatório, você se encaixa. Mesma faixa etária, se
veste muito parecido comigo, tem algumas falas, apesar de não ser
universitária, tem uma fala assim, como a gente, dá para te encaixar.
Então eu não acredito que é racial, é de cultura. Existem algumas
situações que eu percebo isso, se cria alguns grupos onde entra pessoas
que não tenha nível superior, mas que tenha alguma coisa que dentro do
meu critério é classificatório, e outros que não têm nível superior e
210
Escola Bíblica Dominical é um departamento especifico da igreja batista, onde os membros estudam a
bíblia de acordo com um planejamento preparado pela liderança, o que inclui escolha de material didático e
preparo de professores.
nenhum critério classificatório, não fazem parte de minha panelinha,
então não é uma questão da cor da pele, e sim de nível superior.
Quando indagamos se era possível coincidir das pessoas que ela classifica como
diferentes culturalmente, serem também negras, ela responde que é possível, uma vez que
a maioria das pessoas pobres e com pouca escolaridade, são negras:
Porque pelo que eu te falei, se perante Deus todos somos iguais, porque
teria que pregar uma coisa diferente, que existe uma raça afro, raças
diferente, sendo que na bíblia não existe raça, somos todos iguais. Eu
não vejo diferença, que há uma coisa diferente nisso do que a própria
Palavra disse211 .
Na próxima fala veremos que a depoente explica que pelo fato de entender que
para Deus todos são iguais, logo, não existe diferença racial na igreja, tornando
irrelevante qualquer discussão nesse sentido.
Não sei se isso seria bom, se fala muito do problema quando se tem ele,
não é verdade? Eu acho que é falado pouco por que a gente não tem esse
problema, esse não é o nosso problema maior. Se existe da parte de
alguém é uma coisa muito pequena que eu nunca percebi. Eu nunca fui
rejeitada, e nunca vi ninguém destratando ninguém. Acaba não sendo
um problema. A gente tem problemas maiores que o racismo. Acho que
é um assunto muito polemico. Talvez fosse bom numa união, numa
quarta feira, sei lá, mas só para falar e o pessoal ouvir, aí sim. Não vejo
como uma necessidade, se tivesse seria mais para acrescentar. Eu penso
que não pode ter isso dentro de uma igreja, se somos todos iguais
perante o Senhor, independente de nossa cor de pele, magro, gordo
enfim, não deve ter isso na igreja. Aos meus olhos não deveria ter, assim
como não deveria ter outros problemas, mas (...) Eu fico pensando que é
até por isso que não se fala, é uma coisa que não tem212 .
211
Sérgio Vieira, 25 anos.
212
Luciana Coelho, 35 anos.
de se libertar do mal, se livrar dos preconceitos, ganhar uma mente renovada, ver o
mundo de outra forma.
Mas que existe o preconceito existe, não vou fechar meus olhos e dizer
que não existe aí fora. A gente vê que existe muito preconceito no
trabalho, na rua, e não só de cor, mas a questão social da pessoa, por que
ele é pobre, por que ela é rica, porque ela é mais ou menos, porque ela
está suja, existe vários outros tipos de preconceito. Mas eu acho que na
igreja não deveria ser tocado esse tipo de assunto porque a partir do
momento que a pessoa está indo na igreja e tem sua vida
transformada, ela vai saber que para Deus não existe diferença, e se
para Deus não existe diferença porque para mim vai existir? Sendo que
Deus é o cabeça da igreja, eu não quero entender que tenha, mas talvez
exista algumas pessoas que tenha, talvez pessoas não transformadas por
Deus, pessoas que não estudam realmente a Palavra de Deus a fundo,
pessoas que tem um bloqueio enorme porque vê muita criminalidade
acontecendo e vê que 70%, não sei se existe um número, mas as pessoas
que fazem algum mal para outras são negras. E começam a associar
isso, é negro é bandido, e todos são maus. Eu quero crer que todos que
estão na igreja e são salvos por Jesus Cristo a visão muda 213 .
(...) a igreja está ali para estudar a bíblia o que acontecesse fora (...)
você vê que a igreja não se envolve com a política, não abre palanque
para deputado e senador vir pedir voto. Eu já presenciei muitas vezes
deputado vir na porta da igreja entregar o famoso santinho e querer uns
cinco minutos no púlpito da igreja para falar sobre a campanha, e eu vi
diversas vezes o pastor falar não. A igreja é um corpo fechado de Jesus
Cristo e que não abre para isso. E como não abre para política, não deve
abrir para esses pontos fora que não envolve muito a palavra de Deus,
racismo e outros tipos de assuntos. A partir do momento que as pessoas
são transformadas, elas mudam a visão, tem que mudar, se não mudar a
pessoa não é transformada. Uma coisa que leva dentro de si é que Deus
realmente transforma e a pessoa tem que ver que isso está errado. Agora
acontecer um estudo que não envolve a bíblia dentro da igreja, acho
difícil acontecer. Porque se não você abre espaço para outros estudos
que não envolvem muito a bíblia. Mas se usar a bíblia tudo bem, eu não
tenho muito base teológica para saber se isso é possível, se na bíblia
existe algum ponto para falar sobre isso, eu sei que existem pessoas de
várias etnias na bíblia no tempo das antigas e que um não gostava de
outros, mas se alguém pegar fundo e envolver no meio a coisa do
213
Sérgio Vieira, 25 anos. A palavra em negrito foi marcada pela autora com propósito de chamar a atenção
para sua explicação, e não, ressaltar uma mudança de expressão do depoente.
racismo eu acho que é cem por cento aprovado, que seja falado na igreja
sobre isso, não sobre o negro ou o branco, no geral um apanhado de
todos, e falar o que acontece e por que existe preconceito, porque não
deve mais haver o preconceito, e falar tudo isso junto com a palavra de
Deus.
Finalmente ele reconsidera e diz que falar sobre a questão negra pode ser até
interessante, explicar coisas fundamentais, como: porque existe o preconceito? Porque ele
não deve existir? Quais os males que causa à sociedade? Etc. Esses são pontos centrais e
essenciais sobre a questão da negritude. Mas a reconsideração do depoente é clara: essa
discussão só se torna relevante e legítima se for pautada na Bíblia. Esse é um assunto que
precisa ser legitimado pela Bíblia, sua existência por si só, não é suficiente.
De modo que nós não vamos resolver esse problema se não tratarmos o ser
humano. O ser humano precisa mudar. O ser humano só vai mudar quando ele entender
que precisa amar o próximo, e o próximo não é próximo porque ele é rico ou branco, o
próximo é próximo, semelhante, porque ele é igual a você, independente da cor ou não,
do terno ou da camisa rasgada. Ele é teu próximo, rico ou pobre ele é o teu semelhante. E
quando o ser humano não mudar o seu caráter, mudar a sua natureza, você pode continuar
conversando o resto da sua vida sobre isso, não vai mudar. O problema é brasileiro? É. O
problema é racial? É. O problema é desde sempre? É. Se você olhar na palavra de Deus
você vai ver escravos, se você for olhar a história secular você vai ver que os escravos
eram negros na grande maioria do tempo, então não é o problema de tratar esse assunto, o
problema é o ser humano. Todo o ser humano que é tratado no seu interior, ele muda a
sua configuração, ele muda os seus conceitos, os seus valores. Enquanto isso não
acontecer, não teremos solução para esse problema nem para outro. Falar sobre esse
assunto, na minha posição, é alimentar de uma forma até encoberta o racismo 214 .
Pedi que Sérgio me descrevesse como é ser negro no Brasil. Ele deixa claro que
sabe muito bem as limitações que sofre um negro brasileiro. Faz referência ao emprego,
pois passa por um momento difícil com o desemprego. Perceber a desigualdade racial por
meio da empregabilidade não é uma tarefa muito difícil, pois há dados que provam, sem
deixar dúvida, a existência do racismo.
Ser negro no Brasil é dureza, você vai fazer uma entrevista para um
emprego e vê que tem três brancos, um amarelo e cinco negros, vamos
supor, tenho certeza que por A+B, que a pessoa que vai selecionar ou
ver os currículos, vai começar a olhar não torto para o currículo dos
negros, mas com desconfiança, “acho que esse não vai passar!” então é
aquilo que eu falo, tem que provar em dobro ou talvez em triplo que
você é competente, que você pode. Não provar para si mesmo, mas para
as outras pessoas, e a gente vê que os cargos de altos executivos são
ocupados por brancos, negros são raríssimas exceções, ou você é muito
inteligente mesmo, muito esforçado, ou te m um padrinho muito
forte que te colocou. A gente tem um exemplo que foi o Celso Pita, o
primeiro prefeito negro de São Paulo, e a gente viu como ele foi
bombardeado pela mídia, pela imprensa, não só pelo fato de ser negro,
214
Pastor Danilo, 38 anos. Líder da comunidade.
215
LOURENÇO, Conceição. Racismo: a verdade dói. Encare. São Paulo: editora terceiro nome; mostarda
editora, 2006, p. 50.
mas pelo fato do desvio de dinhe iro e de conduta. E pelo fato dele ser
negro as pessoas bombardearam ainda mais do que outros políticos
brancos que tem mais renome na área política. Então ser negro no Brasil
é complicadíssimo, a gente tem que provar para gente mesmo que a
gente pode e para as outras pessoas também. Matando um leão a cada
dia. Falo isso por experiência própria, a gente vai procurar trabalho e a
pessoa vê que você é negro e duvidam de seu potencial e de sua
capacidade. Talvez por causa da nossa história, os negros fizeram
muitas coisas erradas, assim como os brancos, mas a maioria talvez 70%
fez muita coisa errada. Talvez pelas oportunidades que não tenham sido
dadas e pela falta de confiança ou até é dada à confiança, mas com o pé
atrás, e a pessoa acaba escolhendo o caminho errado. Ser negro no
Brasil é muito complicado 216 .
Na fala de Suely, se repete essa idéia de que é do negro a culpa por não ter
espaço na sociedade, pois é ele quem não busca seu espaço, é acomodado. Ela acredita
que o problema maior é que o negro não acredita em sua potencialidade e por isso a
sociedade não lhe dá oportunidade. Ela correu atrás de seu espaço e o conquistou por
mérito próprio. A questão do racismo é interpretada como um problema cultural, todavia,
com pouca ênfase.
Acho que a partir do momento que o negro tiver a consciência que tem
os mesmos direitos que qualquer pessoa, e que tem capacidade de
desenvolvimento intelectual como o de qualquer pessoa, acredito que
essas coisa vão mudar, porque ele vai começar a buscar o espaço dele e
não esperar que as pessoas dêem o espaço para ele. Acho que ele tem
que buscar seu espaço, mesma coisa que eu. Eu fui buscar meu espaço.
Independente de pensar assim: “será que vão te dar esse cargo?”Sempre
me preocupei com isso: ‘eu sou capaz e vou concorrer, se não for esse
cargo será o outro, mas eu vou concorrer para alguma coisa, e vou à
luta, não vou esperar que as pessoas, “ah, vamos dar uma oportunidade,
precisamos de tantas pessoas da pele negra para a nossa empresa não ser
caracterizada como uma empresa racista.” Não, não estou me
preocupando com essa coisa, eu vou atrás dos meus objetivos,
independente de minha cor de pele, porque tenho claro que isso não
faz diferença. Então, se há muitas vezes essa divisão, e se está
coincidindo dessas pessoas serem negras, é por essa questão, e não
racial. Realmente ela acredita que não tem oportunidade ou ela bateu em
muitas portas e foi rejeitada ou é comodismo mesmo da pessoa. Eu não
quero colocar a culpa da dificuldade dos negros atingirem alguns
patamares da hierarquia social por questão só da sociedade, tem uma
parcela de culpa da própria raça, por não acreditar nela mesma. Acredito
que existe uma parcela de culpa da própria raça. A partir do momento
que todo mundo acreditar mais, eu quero ver se vai ter esses obstáculos
e esses paredões. Não vamos ter, e se tiver, vai diminuir muito esses
obstáculos. Mas, se existe mesmo é por causa dessa questão. Realmente
é uma questão cultural217 .
216
Sérgio Vieira, 25 anos.
217
Suely da Silva, 43 anos.
Considerações finais
À primeira vista seria fácil afirmar que os negros, membros da igreja batista
Maranata não aceitam falar sobre a questão racial dentro da comunidade porque ignoram
sua existência. No entanto, observamos que o silêncio quase exigido sobre essa
problemática, muitas vezes é a única saída possível diante da realidade. Trata-se,
portanto, de escolhas possíveis dentro de um campo de possibilidades limitado pela
precariedade de informação e esclarecimento sobre o assunto.
Nossa conclusão é de que a questão racial pode ser entendida pelos fieis da
batista Maranata, de duas formas distintas: por um lado ignorando a existência do
racismo, como se todos os convertidos fossem livres desse ‘mal’. Por outro, o racismo é
percebido. Existe sim esse problema na igreja, porém, ele faz parte de um problema
individualizado, não é encarado como uma questão estrutural. Nas entrevistas percebemos
que o discurso racista difundido pela elite dominante, durante décadas, ainda se faz
presente na mentalidade dos brasileiros, tais como culpar o negro pela discriminação, o
julgando preguiçoso, desinteressado, acomodado, degenerado e assim por diante.
Notamos ainda a reprodução do discurso religioso, em que se acredita que, pelo fato da
igreja ser uma instituição com objetivos espirituais, seus membros, uma vez convertidos,
não reproduzem o ‘pecado’ do racismo. No entanto, entendemos que o negro, membro da
comunidade Maranata, não assimila passivamente os discursos impostos. Pelo contrário,
ele cria táticas que o auxiliam a viver dentro da comunidade sem modificá- la, mas de
forma resistente. De acordo com a teoria certeuriana, a cultura difundida e imposta pela
elite dominante não é recusada pelos meios populares. Mas a forma de ‘consumo’ é
manipulada e usada para fins diferente do esperado. Há, então, uma produção secundária
escondida por trás dos processos de sua utilização. Esta é a astúcia, ela é dispersa, mas ao
mesmo tempo ela se insinua silenciosamente e quase invisível. Essa é a forma encontrada
pelos consumidores de produzir (no sentido de criação) no espaço do outro, são maneiras
de empregar os produtos impostos por uma ordem dominante.
O fato dos membros batistas acreditarem que existe diferença social entre eles,
os coloca em contradição com a crença da existência de uma igualdade de todos. Mas, em
contrapartida, justificam essa igualdade criando uma espécie de ‘utopia’ celestial, pela
qual os crentes, como faz Deus, conseguem olhar para o próximo além do físico, social,
racial ou cultural, atingindo uma visão quase espiritual do outro, o que inclui ver a todos
sem distinção. Ignorar a questão racial é um meio de sobreviver. Percebemos que nas
falas foi comum a idéia de que acreditavam não haver preconceito, mas se tivesse,
preferiam não ‘ver’. Ou seja, fechar os olhos como um meio de escapar do real.
Embora pareça que a igreja viva uma realidade alheia ao mundo, foi possível
constatar o contrário. Não é possível viver dentro da igreja como se o mundo fosse algo
distante, como se a igreja não tivesse nada a ver com o mundo. O mundo alheio à igreja e
a igreja a ele. Antagonicamente, a igreja possui a capacidade de articular a esfera social, a
econômica e a espiritual em um mesmo espaço. Ao avaliar mais de perto esse grupo,
percebemos a clareza com que eles percebem a questão da hegemonia cultural como luta
social, construindo suas normas, valores e comportamentos claramente em oposição às
normas e valores propalados pelas classes dominantes, lúcidas de todas as condições que
lhes são impostas. Em seu cotidiano, lutam simbolicamente, resistindo, fingindo não ver,
ignorando sempre que possível a realidade para ter condições de uma inserção menos
dolorosa.
Para a discussão da negritude nas igrejas cristãs, Adriano Otto sugere repensar
seu ícone principal, Jesus Cristo. O autor trabalha a temática do nascimento de Jesus
como um modelo capaz de construir valores, identidade e auto-estima da pessoa negra.
“Toda cultura vai representar Jesus à sua própria imagem, ou seja, conforme os seus
próprios traços. Assim, terá um Jesus inculturado 218 .” Preocupado com uma teologia que
pense a partir do negro, o autor sugere que essa teologia deva ser amparada dentro da
cosmovisão do negro, respeitando e tomando como apoio seu aparato simbólico-religioso,
contribuindo para a auto-estima do negro e tendo como ponto de partida seus elementos
como, por exemplo, a dança e a música. “Cremos num Deus que dança. Daí as
reinvenções e adaptações de práticas culturais celebrativas no âmbito socioreligioso
218
OTTO, Adriano Enrique. “Nascimento de Jesus numa perspectiva negra”. In: Abrindo Sulcos: para uma
teologia afro-americana e caribenha. Organização de Maciel Mena López e Peter Theodore Nash. São
Leopoldo, RS, 2003, p. 183.
alimenta a discussão em nível da lingüística, como também a discussão sobre a adaptação,
aculturação, inculturação 219 .”
219
OTTO, Adriano Enrique. “Nascimento de Jesus numa perspectiva negra”. In: Abrindo Sulcos: para uma
teologia afro-americana e caribenha. Organização de Maciel Mena López e Peter Theodore Nash. São
Leopoldo, RS, 2003, p. 185.
popular não oferece meios para a transformação histórica. Essa interpretação olha de
modo deficiente para o processo de produção criativa do afro-descendente latino-
americano.
Pedro Leyva propõe que o estudo do negro na América Latina seja amparado por
três aspectos máximos: uma leitura interdisciplinar (o estudo da história com o auxilio da
psicologia, antropologia, sociologia, religião, etc); novos campos de investigação
(Mentalidades, Micro-História e Historia Cultural) e por fim, a ampliação das fontes de
investigação (passa a ser valorizado a Oralidade, a Literatura, a Iconografia, etc).
220
LEYVA, Pedro Costa. Historiografia Afro/negra: Una aproximación a un concepto de historia a partir
de las Consultas Internacionales de Teologia Negra efectuadas 1985, 1994, 2003. 2005. Dissertação de
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Entrevistas na integra
∗
Mais conhecida como Bola Branca, a empresa de ônibus, Viação Cidade Dutra, foi fundada na década de
1960, na região do Grajaú, zona Sul de São Paulo.
em mim. Sempre pensava em Deus, nunca esqueci dele. Uma coisa que eu sempre lembro, aqui era meu
quarto (apontou para a sala, onde estávamos) quando eu estava sozinha com a Renata, chorei muito a Deus,
ajoelhada na minha cama e pedia a Deus assim “Senhor, eu não quero acabar minha vida sozinha. Estava
com o pai da Renata. Eu não quero terminar sozinha, que o senhor possa arrumar para mim um marido
direito que seja fiel a mim, e que eu seja fiel a ele também, mas que ele goste mais de mim do que eu dele.”
E Deus mandou meu ex-noivo para mim e isso aconteceu. Mas mesmo, ele tendo um grande amor por mim,
mas eu sentia que estava faltando alguma coisa. Aí eu comecei a pensar muito em Deus, porque Deus não
deixa o servo dele de fora, o servo dele pode desviar, ainda mais porque ele sabe que eu não desviei porque
eu quis, quando estava no Rio eu ia para igreja, mas quando cheguei aqui não conhecia ninguém. Como eu
ia para igreja sozinha? Casada recentemente, recém casada com um marido, ia para rua para quê? Ia dar
confusão. Eu nem sabia onde tinha igreja. Mas o que aconteceu? Comecei a ficar incomodada. Falando com
Deus, um negocio começou a me incomodar, incomodar, e eu cheguei e falei assim: “eu preciso de Deus,
Deus está fazendo falta na minha vida, eu quero ir para igreja.” e eu lembro daquela época (...). O Lucio não
era contra que a gente fosse para igreja, ele era a favor de quem ia para igreja, aí, olha que coisa linda! Eu
não falei,“hoje eu vou para igreja”. Uma coisa começou a me despertar, a me despertar, minha filha do céu!
Eu tomei uma decisão durante a semana que eu iria à igreja no domingo. Vou à igreja. Cristina, minha filha!
O dia que eu falei que vou voltar para igreja, voltar para o senhor, eu comecei a chorar, chorava todos os
dias. De segunda-feira até o domingo, parecia que eram três anos, nunca chegava, de tanto que eu queria
que chegasse logo. Na sexta-feira, no sábado, mas eu queria que chegasse logo o domingo. Chegou o
domingo de manhã, mas tinha que ser no culto da noite, por que quando o pastor falar quem quer aceitar a
Jesus, quem quer se conciliar, eu vou. Fui para igreja, peguei os meninos e fui. Cheguei na igreja e comecei
a chorar o tempo todo, toda a mensagem eu chorava.
C.K - A senhora já conhecia a Maranata?
E.C - Não eu não conhecia, eu passei em frente da Maranata e vi que ali tinha uma igreja, mas eu nunca
olhava depois eu olho assim, era uma igreja batista. Depois que eu percebi que tinha uma igreja batista,
Deus começou a me despertar, a me despertar. Foi quando isso aconteceu. Foi quando o pastor Ananias
pregou, eu não lembro a pregação, e falou se tivesse alguém que quisesse aceitar a Jesus que fosse à frente.
Nem falou de reconciliação não hora, e eu falei, vai que ele não fala de reconciliação, eu vou é logo. Fui
chorando igual a um bebê, ele foi pregando e eu chorando, chorando, chorando, eu chorei a semana inteira.
Quando ele falou, eu fui lá na frente e falei que estava desviada do caminho do Senhor e queria voltar para
Jesus, e voltei para o Senhor.
C.K - Quanto tempo a senhora é membro da igreja Maranata?
E.C - (...) vinte anos.
C.K - A senhora gosta da igreja Maranata?
E.C - Sim eu gosto.
C.K - O que é a senhora acha que é positivo e negativo na igreja Maranata? Ou o que a senhora mais
gosta e menos gosta.
E.C - O mais positivo? O que eu mais gosto (...)? Gosto da pregação, que ela vem de encontro com as
nossas necessidades. Gosto do jeito que é organizado a escola dominical em departamentos. Gosto de tudo.
O menos positivo? Tinha que ser hoje? O mais negativo hoje? Eu posso falar (...) pelo que vejo hoje, no ano
que nós estamos, no mês em que nós estamos, hoje a igreja Maranata é assim, mas existe em todas as
igrejas, o joio e o trigo, existe muito amor na Maranata? Existe, mas eu creio que o amor da Maranata já foi
muito maior do que é hoje, eu vejo que existe falsidade. Hoje o ponto negativo que eu vejo é a falsidade. E
algumas falsidades, essas coisas eu não gosto, eu não me sinto bem. E hoje na Maranata tenho falado com
Deus para que ele me use lá dentro. Se for da vontade dele eu permanecerei lá, mas eu gostaria de sair da
igreja Maranata, não para ir para outra igreja batista. Hoje na Maranata com a convivência cristã na Palavra
e em comunhão com os irmãos entendi que não sou santa, tenho defeitos, mas meu espírito re ligioso é
outro. Diferente de algumas pessoas que estão congregando ali dentro. Em que termo? Eu amo dar uma
“Glória!”, eu amo dar uma “Aleluia!” eu sou batizada com o espírito santo, tem gente que pode achar que
eu não sou batizada. Eu falo em línguas e na igreja Maranata muitas pessoas não aceitam isso. Então,
quando chego lá me sinto muito oprimida, às vezes eu fico uma semana, vinte dias ou quinze dias sem ir lá,
e quando vou, depois do culto ou na hora do culto mesmo, eu vou falar com as pessoas e tem gente que fica
me olhando assim (...) não é que você julga, mas você tem o espírito santo e pelo olhar da pessoa você vê, o
olhar fala, não precisa abrir a boca para falar. Parece que tem gente que fala “nossa, quem é ela para falar
essas coisas, ela fica um mês sem vir à igreja e quer falar isso?” Às vezes tem gente que acha que eu estou
representando. Uma vez teve um culto no bairro ao ar livre, perto da casa da irmã Vera, um dos últimos
cultos, as pessoas aceitaram a Jesus, “Foi uma bênçãos!” Eu creio que foi o senhor que agiu. Veio um
cantor de fora, teve um pregador e tudo. Mas aí começamos a cantar um hino, um hino que eu cantava e
parecia que estava voando, flutuando, e chegou uma hora que eu não estava mais em mim, e comecei a falar
coisas que não eram de mim falar. Duas irmãs da igreja, não vou falar os nomes, falaram que eu estava
representado, e a Renata, minha filha ouviu e me contou. Isso me abateu muito, me deixou muito triste e
chateada. Só que essas duas irmãs, Deus trabalhou de maneira diferente, e a amizade delas que era muito
próxima se distanciou, uma delas não está vindo mais a Maranata, esta fora dos caminhos do Senhor. E
outros fatos foram acontecendo (...). Quando eu chego na igreja, vou para adorar ao Senhor, para prestar um
culto ao Senhor, louvar o Senhor, e quando chego lá eu começo a me purificar, a buscar e orar, deixar o
espírito santo agir em mim, e as lágrimas começam a descer eu não espero, as lagrimas dessem assim, sabe?
Tem gente que chega e fala assim “está sentindo alguma coisa? Está passando por alguma provação?” Isso
me deixa muito chateada, é o ponto negativo da igreja Maranata. É um ponto negativo, mas acho que não
deveria estar dentro da Maranata, acho que por isso tudo, eu que não deveria estar ali dentro, eu deveria
estar em outro lugar.
C.K – Existe uma relação de amizade e irmandade entre os membros da Maranata?
E.C - Eu creio que existe, não com todo mundo, estou falando por mim, e não de outras pessoas, eu creio
que existe. Tem irmãs que eu sinto que elas me amam e sinto uma amizade de muitos e muitos anos e nada
separa a gente. E jamais se alguém chegar, isso nunca aconteceu e não vai acontecer em nome de Jesus! Se
alguém disser alguma coisa que não é verdade para algumas dessas minhas amigas, elas não vão acreditar,
porque elas me conhecem e sabem quem eu sou e eu a mesma coisa. Se alguém disser alguma coisa delas
para mim, da mesma forma, não vou acreditar. É muito profundo o amor que eu tenho por elas e elas por
mim e não tem nada, nem barreira que acabe com nossa confiança e amizade. Amizade construída com
bom alicerce.
C.K – A senhora acha que existe algum tipo de diferença entre um membro negro e um branco na
Maranata?
E.C – (Risos) Bem, geralmente (risos) Negro e branco dentro da igreja? Acho que não por um lado, em
matéria de pastor. Eu creio que tem sempre o joio e o trigo. Existe o joio de várias maneiras diferentes,
existe o joio que tem aquela parte de não aceitar determinadas pessoas, não só pela cor, mas pela pessoa ser
financeiramente fraca, morar em lugares fracos, ser mais simples, do jeitinho dela. Existe. Essas pessoas são
cegas por que não vêem que Cristo age nos menores vasos, os que moram na periferia, os que são negros, os
que são simples e os que são financeiramente fracos, os que não estão todo dia com a roupa nova.
Acreditar na diferença social e não racial
C.K - Nos cultos, na escola dominical e em estudos bíblicos a questão racial é falada, é um assunto
trabalhado na igreja?
E.C - Olha, faz muito tempo que eu não estou indo a escola bíblica por que estou trabalhando muito,
fazendo muita hora extra, tenho ido às vezes, pouco. Quando eu ia, eles trabalhavam sim, mas você sabe
minha irmã, mesmo o pastor pregando, mesmo na escola bíblica dominical falando, sempre tem gente que,
até em outras áreas na vida dele, não deixa Deus agir, não deixa Deus trabalhar. Para a gente querer aceitar
até um irmão que pisou no nosso pé, que nos deixou muito chateada e brava não é fácil. Somos seres
humanos, não somos santos, não somos perfeitos, somos filhos de Deus, mas somos seres humanos, não
somos santos. Temos que orar e permitir que Deus aja em nosso coração para tirar aquilo que existe. Se nós
não deixarmos Deus agir na gente, nada é feito. Ele pode bater e bater na porta do nosso coração, mas ele
não entra, ele espera que a gente abra.
C.K - A senhora já ouviu falar sobre as cotas em universidades para negros?
E.C - Já ouvi falar depois do Lula, antes do Lula eu nunca ouvi falar dessas coisas.
C.K - A senhora sabe qual a posição da igreja batista em relação as cotas?
E.C - Como eu te falei, esses assuntos são tratados na escola dominical, o culto da noite é um culto
diferente. Como eu tenho ido pouco a escola dominical, depois do governo do Lula eu não sei se na escola
bíblica já falou, as vezes que eu fui à escola bíblica, eu nunca escutei sobre isso.
C.K - A senhora é contra ou a favor?
E.C - Eu sou a favor, não só para os negros, mas para todas as pessoas que tem desejo de estudar. Deveria
ter faculdade grátis para todos os que tem desejo de estudar. Acho que as pessoas que tem um pai com
condição financeira boa, por que tem gente que nasceu em berço de ouro, bem rico mesmo, e não precisa
realmente de uma faculdade grátis, eles estudam em colégio particular desde pequeno, o pai que não tem
condições não ia colocar. Tem pai que coloca o filho em escola particular em determinado tempo, depois
não dá mais. Eu coloquei a Renata em uma escolinha particular, na pré-escola, porque não tinha uma escola
publica por aqui, mas mudou muita coisa depois que a Renata nas ceu. Coloquei a Elizangela também na
pré-escola, mas eu não tive condições de deixar minhas filhas até grande numa escola particular. Por que
eu coloquei na pré-escola? Não era por que eu tinha condições, é por que eu não queria que minhas filhas
ficassem em casa sem aprender nada. Queria que em vez de ficar aprendendo besteira na televisão elas
colocassem a mente numa coisa melhor. Acho que o governo deveria dar para aquele pai que nunca teve
condições (...) Tem muita gente querendo estudar, mas não tem condições, tem muita gente. Mas aí eles
falam “se abrir, e aqueles que não terminaram o colegial?” problema daqueles que não acabaram o colegial,
tem outros que querem. Se tivesse uma faculdade pública que não exigisse tanta coisa para entrar, como a
USP faz, minha filha já estava formada. Eu não precisava estar fazendo hora extra como estou fazendo,
trabalhando direto com a deficiência que eu tenho para pagar a faculdade da Renata e da Elizangela.
C.K - A senhora acha que a igreja deveria trabalhar sobre a temática do preconceito racial, ou já faz
o suficiente?
E.C - Deveria fazer esse papel, e deveria também pregar sobre a pessoa fraca em condições financeira. A
esposa do pastor agora, a irmã Marta, faz um trabalho muito bonito com as crianças aqui do bairro, mas
como eu te falei, existe gente que não deixa Deus agir, tem gente que quando uma criança vai passar, eles
fazem assim (vira o rosto) parece que a criança tem lepra.
C.K - Mas porque a criança é pobre ou porque é negra?
E.C - Não, por que (...) que cor você é?
C.K - Eu me considero parda, sou descendente de negros.
E.C - Você é parda. Tem menina da sua cor que eu acho que é branca. Eu aprendi assim, hoje em dia
mudou muita coisa, hoje em dia todo mundo fala que tudo é negro, mas não sei porquê, antes não falava.
Antigamente, quando eu era pequena, na minha carteira (identidade) falavam “sua cor é parda”. Sempre
achei que eu era amarela, depois fiquei sabendo que o amarelo é o japonês. Se minha cor é parda, eu sempre
achei que quem era da sua cor, do cabelinho assim que nem o seu, era morena clara. Tem umas meninas
morenas claras ou até brancas, mas judiada, os pais não tem condição de dar um sapato, uma roupinha. Tem
mãe que é danada, não cuida dos cabelos, aqueles cabelos de fogo queimado, não penteia. Até outro dia
uma menina veio aqui para eu pentear o cabelo dela e fazer trancinha.
C.K - Qual a vantagem de ser negro no Brasil?
E.C - Eu não sei a vantagem de ser negro no Brasil, mas vou dizer uma coisa, eu amo a minha cor, sou feliz
com ela, não trocaria a minha cor com a de ninguém. Amo a minha filha que é mais negra do que eu, se
não, eu não tinha casado com um negrão. Amo a Elizangela, amo o Márcio. O Márcio é branco, né? Amo os
três filhos que eu tenho, sem distinção sem diferença, torço pelos três, e vou dizer uma coisa, eu só queria
uma coisa na minha vida se tivesse que mudar alguma coisa, mas sou feliz, só queria uma vista esquerda.
(pensando)
C.K - Então a senhora é feliz sendo negra?
E.C - Sou feliz, sou feliz com tudo que eu sou e tenho, acho que não deveria ter nem tudo que tenho. Tenho
um marido maravilhoso e filhos maravilhosos que me amam. Meu marido me ama, não tem gente boa sem
defeito, ele toma os “mé” dele, e as vezes fica um pouquinho chato. Mas ele me ama demais, leva café na
cama, da comida na minha boca, sou feliz. Tenho um emprego que nem sei se pedi a Deus, ele me deu
assim, passei no concurso público. Filha, eu sou feliz demais, não posso reclamar da minha vida não.
C.K - Como é ser negro no Brasil?
E.C - Ser negro no Brasil, como em outros países, é que os negros não aceitam os próprios negros, isso que
acho. O negro não aceita o próprio negro. Os próprios negros tem preconceito. E as pessoas brancas
também tem preconceito contra os negros, não é todo mundo. No mundo, todo mu ndo não é igual. Nós
temos cinco dedos na mão e cada dedo é diferente, um é magro outro mais grosso. No Brasil e no mundo é
assim também. Existem os brancos que são preconceituosos e os brancos que não são. Tem branco que
adota até negro, negrão. Existem negros preconceituosos e negros que não são.
C.K - Mas é difícil ser negro no Brasil?
E.C - É difícil por que existe o racismo, as pessoas falam que não, mas ainda existe o preconceito de negro.
Isso precisava acabar, já melhorou bastante, já melhorou muito, mas ainda existe. Quando o Lula falou que
iria ter uma cota para negros, para as pessoas terem direito a faculdade, assim para as pessoas negras e para
as pessoas pobres, por que existem as pessoas pobrezinhas que não tem condições financeiras e é branca.
Tem lugar que você chega e a família é toda branca, tem cada menina do olho bonito, tudo branquinha, mas
são tudo pobrezinhas, porque os pais não têm condições. Muita gente falou, até a televisão falou que não
aceitava, que não sei o quê, mas isso é um preconceito muito grande.
C.K - A senhora já sofreu algum tipo de preconceito?
E.C – Deixa eu lembrar (...) Por ser negra? (...) Eu acho que eu nunca sofri preconceito não.
C.K - Nem na igreja nem na sociedade?
E.C - Eu acho que não, nunca.
C.K - Essas são as perguntas que eu preparei, mas a senhora gostaria falar mais alguma coisa?
E.C - Eu queria falar sobre a minha filha. Acho que a minha filha já sofreu preconceito, ela é mais escura
do que eu, ela sofre preconceito desde pequenininha, desde o colégio, o pessoal falava que eu era a Xuxa e
o pai dela era o Pelé, ela vinha para a casa chorando. Mas as pessoas não olhavam que ela por dentro era
diferente, eu sempre falava, “filha, você pode ser negra por fora, mas por dentro você é linda, tem um
coração bonito!” Muita coisa que juntou e deixou a Renata um pouco como ela é hoje, foi por muita coisa
que a Renata Passou. A Renata dos meus três filhos, foi a que mais sofreu.
C.K - Até na igreja?
(a entrevistada se emociona bastante e eu desliguei o gravador)
E.C – Precisei de muita sabedoria para educar minha filha e mostrar para ela tudo diferente. Hoje muita
gente não a aceita, por isso que ela tem psicose disso, psicose daquilo, mas quem acompanhou desde a
barriga foi eu, a pessoa mais próxima dela, tirando Deus, a pessoa que mais a ama sou eu.
C.K - Esses que não aceitam sua filha também são da igreja?
E.C - Dentro da igreja teve algumas pessoas sim, mas não foi sério, Acho que é por que não gostam mesmo,
não posso dizer que é por causa da cor, não. Acho que não vai com a cara, é isso. O Preconceito pela cor,
em outros lugares sim, ela já levou. O que mais me chateia, eu sou negra, mas mais clara que ela, quando eu
chego num lugar que ela esta freqüentando, um lugar que a pessoa nunca me viu, mas ouviu falar de mim,
me deixe dar alguns exemplos, por que ela não é de freqüentar outros lugares, graças a Deus por isso. Ela
falava de mim no serviço para as amigas dela, quando e eu fui no serviço dela, “gente eu não sou tão clara
assim!”, as pessoas perguntavam “essa é a sua mãe?” Outro dia, foi no hospital, ela estava passando muito
mal e eu a levei no hospital onde trabalho. Levei numa doutora muito minha amiga, talvez ela não falou isso
por querer, mas a gente se sente mal com isso, é uma coisa que vem dentro de mim. Eu me sinto mal por
ela, não por causa de mim, como minha filha, ela podia ser toda preta, até os dentes, a sola do pé dela não é
branca, é meio roxinha, mas podia ser preta também, mas é minha filha, foi eu que gerei com muito amor,
gosto dela, tenho a maior paixão. Mas tudo bem, a doutora veio me perguntar se ela era realmente minha
filha, e para piorar, a Renata não tem meu sobrenome, o pai dela colocou só o nome dele, por que ele é
daquela família que quer que o nome da família vá pela eternidade, tradição, então a mulher casa e tira o
nome. Acho que ele pensava que quando a Renata casasse ela ia tirar o dele e deixar o meu, pelas
conseqüências da vida, entendeu? Por que eu fiquei sem ele, essas coisas todas, geralmente a filha mulher
fica do lado da mãe. Por isso ele colocou somente o nome dele, muita gente pensa até que ela não é minha
filha, isso me machuca muito. A doutora disse “essa é sua filha mesmo? mas é verdade? é sua filha de
verdade?” Agora a Renata está mais clara, um dia vou te mostrar uma foto dela quando bebê, ela era negra,
negra, negra, com o tempo ela clareou. O preto quando é escuro assim, geralmente, quando vai crescendo,
clareia mais. Ela clareou. Ser mãe não é fácil. Quando eu era pequena, nos dias das mães tinha uma poesia
que eu nunca esqueço, que minha colega falou, “ser mãe é desvendar fibra por fibra, ser mãe é sofrer”e
algumas coisas mais. E é verdade, a mãe sofre desde quando gera o filho, desde quando o filho cresce, o
filho pode casar e a mãe sofre. O filho nunca deixa de ser filho para mãe, mesmo quando ele morre, meu
filho morreu, meu filho João, morreu minha filha Maria, sempre penso neles. A mãe sofre muito, a boa
mãe, por que existem umas mães aí(...)
C.K – O IBGE classifica as pessoas como branca, preta, parda, amarela e indígena, como o senhor se
classifica?
A.S – Pelo que você vê é mais pardo, né?
C.K – O senhor acha que é pardo?
A.S - Não sei. Uma vez fui fazer um exame e a doutora me colocou como branco, eu não sou branco. Meu
pai veio de uma raça negra misturada com índio, e minha mãe veio de uma raça árabe, mais moreno. Posso
ser pardo né, o que você acha?
C.K – Eu gostaria de saber como o senhor se sente. O senhor não se sente branco?
A.S – Branco, branco não, sou mais misturado, mais para pardo.
C.K – Não preto?
A.S – Preto não, mais pardo mesmo. Se fosse não teria problema, mas eu não sou completamente preto, sou
uma mistura.
C.K - Onde o senhor nasceu?
A. S – Nasci na Bahia.
C.K - O senhor veio para São Paulo, quando?
A.S - Em 1995.
C.K - Por que o senhor veio para São Paulo?
A.S – Por que a situação lá ficou um pouco ruim, e tive que vim para cá. Não tinha muita intenção não,
depois dos quarenta, né?
C.K – Depois dos quarenta anos o senhor veio para São Paulo?
A.S – Eu tinha completado quarenta anos quando eu vim para cá.
C.K – O senhor criou sua família na Bahia, em que cidade?
A.S – A cidade chama Aurelino Leal, próximo a Itabuna.
C.K – Aí o senhor veio para São Paulo, para trabalhar?
A.S – É, eu vim porque eu tinha uma profissão, vim para executar ela, se eu não tivesse, não sei se eu viria,
uma pessoa depois dos quarenta anos para arrumar um emprego é meio difícil.
C.K – Qual a sua profissão?
A.S – Sou pedreiro.
C.K – Quando o senhor chegou em São Paulo veio morar direto nessa região, ou morou em outro
lugar?
A.S – Morei próximo a Vila Joaniza, próximo ao shopping Interlagos. Morei lá quase dois anos, aí surgiu
esse terreno. Minha cunhada que conhecia algumas pessoas aqui, informou a gente, e compramos aqui.
C.K – Era um lote de preço bom, melhor do que na Vila Joaniza?
A.S – Era. Lá já era construído, aqui era construído na redondeza, mas o lote não tinha casa. Na época saiu
R$ 6.000 reais à vista, se fosse comprar à prazo sairia por R$13.000 reais.
C.K – Hoje a região é mais valorizada?
A.S – É por causa da urbanização, pelo asfalto, água, esgoto, luz, tudo isso fez valorizar mais ainda. Mesmo
sem essas coisas já estava aumentando o preço.
C.K – O senhor já mora aqui há dez anos, o que o senhor pode dizer de positivo da região?
A.S – De positivo é que desde que eu estou aqui nesse local nunca teve nenhum crime ou uma briga que
causasse algum crime. É bem difícil você morar em São Paulo e não acontecer isso, nessa área aqui nunca
aconteceu isso, lá para baixo do outro lado, mas aqui não.
C.K – E de negativo nessa região?
A.S - De negativo são os bares, os motoqueiros, já melhorou, mas de negativo é isso.
C.K – O que é ruim nos bares?
A.S – O barulho de madrugada, o sono da gente vai embora, né?
C.K – Na questão de infra-estrutura urbana da região, o que precisa melhorar?
A.S – Melhorar sempre tem que melhorar, mas eu não tenho o que queixar. O transporte é bom, na avenida
tem ônibus para todos os lugares que agente queira ir.
C.K – O senhor usa com freqüência o transporte coletivo?
A.S – Não. Vou para o trabalho de carro, por isso eu não reclamo muito, mas quando preciso do ônibus eu
reclamo pela lotação no horário de pico e pela demora, mas isso é normal aqui em São Paulo. O que poderia
melhorar era o metrô nessa região, está chegando por aí, uma estação no bairro Grajaú e outra até o
Varginha, vai ajudar muito. melhorou bastante aqui desde que eu cheguei aqui.
C.K – Qual a sua escolaridade?
A.S – Eu conclui só o ensino médio.
C.K – Quando o senhor veio para São Paulo, já pertencia a igreja batista?
A.S – Toda vida eu sou batista. Me converti na igreja batista e permaneço até hoje.
C.K – Antes de ser batista o senhor não pertencia a nenhuma igreja?
A.S – Eu não era nada, se dizia católico, mas eu não afirmava nada.
A questão da identidade batista forte, antes não era nada.
C.K – Quando o senhor veio para São Paulo, já era batista?
A.S – Já tinha dezoito anos de batista.
C.K – Como o senhor conheceu a Maranata?
A.S - Veja bem, quando eu morava na Vila Joaniza eu pertencia a uma igreja batista de lá, mas quando vim
morar aqui nessa região, através da minha cunhada que já morava aqui de aluguel, e conheceu a Maranata
convidou a gente. Eu visitei algumas vezes a Maranata, mas como membro na Vila Joaniza, sem a intenção
de sair de lá. Mas como a Maranata era mais perto da casa da gente, e a gente tem que ficar onde é mais
perto da casa da gente, estou aí até hoje.
C.K – O senhor gosta da Maranata?
A.S – Gosto, apesar que sou aquele crente tradicional, não gosto de muito barulho, as vezes muda algumas
coisinhas e a gente vai suportando, né? (risos).
C.K - O que o senhor pode apontar de positivo na Maranata?
A.S – De positivo, sempre o ensinamento da bíblia. A escola bíblica dominical, a comunhão com o pessoal,
as pessoas são muito chegado a essa parte de comunhão, de acolher as outras pessoas, não posso dizer que
seja noventa por cento ou cem por cento, porque sempre tem aquelas pessoas mais achegada que você
conversa mais, que tem mais intimidade. Mas (...) não tenho o que dizer não.
C.K – O que não é muito positivo, ou que poderia melhorar na Maranata?
A.S – Perfeita ela não vai chegar nunca, poderia melhorar mais na área da evangelização, porque a função
principal da igreja hoje é a evangelização, e ela não tem um programa legal de evangelização, não vou dizer
que tem, ela não tem. Precisa ter um programa de evangelização e colocar em prática. Apesar de que temos
contribuído para missões estaduais e nacionais e outras missões, mas ela não tem assim um projeto de
evangelismo concreto, ela tem que melhorar nessa área. Está fazendo, mas precisa melhorar.
C.K – O que mudou na sua vida depois que o senhor se converteu?
A.S – Mudou minha timidez, eu era noventa por cento tímido. Hoje eu já me liberei dessa timidez uns
noventa por cento.
C.K – O senhor se converteu com quantos anos?
A.S – Com vinte e dois anos.
C.K – Coisas materiais mudaram na sua vida depois da conversão?
A.S – Sim, apesar que eu nunca fui aquela pessoa de esbanjar de gastar em vão aquilo que ganhei, mas
melhorou bastante, porque tudo que a gente ganha, procura aplicar no bem-estar, em casa, carro, nessas
coisas, então eu não tenho que reclamar hoje dessas coisas.
C.K – Antes de se converter o senhor não tinha essa visão?
A.S – Eu tinha, não completa com um pensamento positivo como tenho depois da conversão, agora tenho
um pensamento mais positivo sobre as coisas. Mas sempre eu tinha um pensamento positivo, apesar de eu
ter morado numa região que não dava essa condição da gente progredir em algumas coisas, mas eu sempre
pensei nesse ponto positivo.
C.K – Entre os membros da Maranata existe um sentimento de irmandade e amizade?
A.S – Não sei se existe, noventa por cento ou noventa e nove por cento, mas existe. Há aquelas
divergências, mesmo na igreja, mas eu creio que há. Apesar de que todo mundo vive no seu cotidiano e só
se reúne no domingo, então não tem muito que estar provocando problemas. Mas existe, mesmo cristão,
mesmo na igreja há divergências, né.
C.K – O senhor acha que existe alguma diferença de tratamento entre as pessoas pretas e pardas e as
brancas?
A.S – Na igreja? Não eu nunca percebi isso não.
C.K – Todo mundo é tratado por igual na Maranata?
A.S – Só no aspecto intelectual de formação que eu acho que não é tratado igual.
C.K – Como assim?
A.S – Se eu tenho uma formação elevada, eu tenho uma posição melhor, mas se eu não tenho estudos eu
não tenho posição.
C.K – O senhor acha que coincide de quem tem formação elevada ser branco e quem não tem ser
pardo e preto?
A.S – É, coincide porque (...) hoje mudou muito essa questão da discriminação, mas a maioria das pessoas
que tem formação universitária é branca.
C.K – Isso na Maranata?
A.S – Na Maranata também. Apesar da igreja batista ser considerada uma igreja com mais conhecimento e
formação. Pessoas com no mínimo ensino médio, uma coisa assim. Pessoas mais conhecedoras.
C.K - Mas mesmo assim existe essa diferença?
A.S – Sim, existe essa diferença.
C.K – O senhor já ouviu falar sobre política afirmativas para negros em universidade e empresas
privadas?
A.S – Sim, eu já ouvi falar e acho um absurdo, mas existe.
C.K – Porque o senhor acha um absurdo?
A.S – Por que trata as pessoas com desigualdade, por que se tem uma cota para um e não tem para outro, já
começa a tratar com desigualdade.
C.K – O senhor disse que normalmente são as pessoas brancas que freqüentam universidade, isso
porque ainda hoje os negros encontram dificuldade para entrarem em uma universidade.
A.S – É
C.K – Será que por meio das cotas não ajudaria esses negros a entrarem nas universidades?
A.S – Ajuda sim, por que antes não tinha essa política. Ajuda bastante, mas mesmo assim, não poderia
existir isso, as pessoas, independente da cor, deveriam ter o mesmo direito que o outro tem. Apesar de que
já estamos chegando a isso hoje, né? Se considerar as pessoas pela qualidade e não pela cor, mas mesmo
assim ainda existe o preconceito.
C.K – Mesmo assim o senhor acha que essa política de cotas não deveria existir?
A.S – Não, deveria ser uma coisa justa, o que existe para o branco, existisse para o negro também.
C.K – A universidade é para negros e brancos.
A.S – Sim, mas existe a cota só para negro. Ajuda, se fosse só pelas escolas, universidade, os negros ainda
estariam de fora das escolas, porque os brancos estariam em primeiro lugar, mas as cotas seriam boas nesse
sentido para ajudar, mas deveria ser permanente. E que acabe essa coisa de cota, se o negro tem condição de
entrar na universidade ele entra. Então a cota foi mais para pessoas que não tinha condições de entrar na
universidade né? Então valeu a pena né? A igualdade deve ser para todos.
C.K - O senhor acha que a Maranata tem alguma posição em relação a esse assunto?
A.S – Não sei, acho que não. Nunca foi discutido.
C.K – O senhor já ouviu falar na igreja, na EBD, união de treinamento ou pregação do pastor, sobre
o tema do racismo e do preconceito racial?
A.S – Não me lembro se falou. Se falaram não foi discriminando, mas no sentido de falar como as pessoas
discriminavam os negros. Se foi como um estudo normal, não discriminando as pessoas.
C.K – O senhor acha positivo falar sobre esse assunto?
A.S – Sim, acho bom falar sobre isso de uma forma positiva e não discriminando, uma crítica construtiva.
C.K – Como seria a crítica construtiva?
A.S – Em ajuda, procurar ajudar, principalmente o governo municipal ou estadual apoiando, né.
C.K – A igreja apoiando o governo?
A.S – Sim, a igreja apoiando.
C.K – O senhor acha que a igreja deveria falar mais sobre esse assunto?
A.S – Como na igreja não tem essa desigualdade, eu acho que não é tão necessário, porque pode
constranger alguém.
C.K – Como assim?
A.S – Pode ter algumas pessoas negras que não entendam bem o assunto e pensam que é discriminação,
mas pode também.
C.K – Mas se a igreja for falar sobre esse tema ela vai falar contra o preconceito...
A.S – Contra o racismo, porque ela não pode ter preconceito.
C.K – Claro, mas assim ninguém vai se sentir constrangido nem um negro.
A.S – É não vai, mas tem pessoas que entende a coisa por outro lado, tem que ser uma coisa bem explicado
bem legível se não pode trazer constrangimento.
C.K – Esse assunto é muito delicado?
A.S – Acho que sim.
C.K - Porquê?
A.S – Sim, porque pode haver algum mal entendido, é nesse sentido que falo. Em outro aspecto não acho
muito seria assim não.
C.K – O senhor acha que o negro no Brasil enfrenta problemas pela cor que tem?
A.S – Sim, tem muitos problemas, ainda existe o racismo, mesmo por dentro, sem ser uma coisa
esclarecida, porque já se caracteriza em crime, mas existe. O negro sofre. Por incrível que pareça existe.
C.K – E até dentro da igreja ele pode sofrer o racismo?
A.S – (pausa) Acho que pode, não deveria, é difícil acontecer, mas(...) pode acontecer. Alguém se julgar
superior, não esta isento disso não.
C.K – Nesses casos quando um membro sofre o preconceito seria bom esclarecer mais sobre esse
assunto?
A.S – Acho que já está bem esclarecido, só aquelas pessoas que vivem fora do contexto da cidade, vivem
isoladas, mas está bem esclarecido hoje sobre o racismo. Por dentro ainda existe o racismo.
Quem não tem esclarecimento tem preconceito.
C.K – Um estudo sobre esse assunto não ajudaria?
A.S – Uma pessoa com esse sentimento não sei se mudaria mesmo com um estudo, por que no caso ela já é
esclarecida. Mas ajuda...
C.K - Fale sobre sua trajetória, você nasceu em São Paulo, como chegou nessa região do Grajaú?
R.P - Eu desde pequeno nasci e fui criado aqui na região, só mudei de habitação praticamente. Meus pais
vieram para cá. Meu pai morava no Sumaré e minha mãe morava em Minas. Eles vieram para cá (São
Paulo), se conheceram e começaram a namorar e já mudaram para cá na região do Grajaú, moraram
próximo ao autódromo de Interlagos, depois foi vindo mais para cá para o fundinho. Cresci e me estabeleci
aqui, pretendo mudar, mas continuo aqui.
C.K - Qual a sua formação?
R.P - Tenho o segundo grau técnico, sou formado em técnico em segurança do trabalho, e pretendo fazer a
faculdade (...) mas, não sei quando.
C.K - Que faculdade pretende fazer?
R.P - Pretendo fazer alguma coisa na área da educação para que eu possa lecionar. História, eu gosto de
História, mas pode ser Geografia, não quero Matemática, não quero Português, quero algo que eu consiga
motivar as crianças ou quem está do meu lado, ao conhecimento da região que ele esta, da sociedade que ele
vive.
C.K - Seus pais estudaram?
R.P - Estudaram, mas só o ensino básico, ou menos que o básico, os dois foram até a quarta série, meu pai
acho que foi até a quinta série, minha mãe foi até a quarta série com certeza.
C.K – Qual é a sua profissão?
R.P - Autônomo, hoje sou taxista.
C.K - Como você já mora aqui há trinta e dois anos, diga os pontos positivos da região e os negativos.
R.P - Não tem poluição. (...) Não é que não tenha poluição, mas é que a poluição é menor, pelo fato da
gente não ter fábrica, os automóveis são em menor quantidade, apesar de ter bastante carro aqui também.
Mas a gente está cercado por duas represas, tem a represa Bilíngües e a Guarapiranga. Temos uma
quantidade, que está ficando pouca, mas razoável de verde, de árvores na região. Então é um ponto positivo,
não ter a poluição que se tem mais próximo do centro. E o negativo é exatamente por não estar próximo ao
centro, você não tem acesso a quase nada, não tem metrô, as condições de vida não são as melhores, demora
muito tempo para sair do bairro, para voltar para o bairro. Esta crescendo, mas ainda é muito pouco, não
tem acesso a cultura, não se tem teatro, o cinema é longe, o clube público é longe, tem o SESC, mas o
SESC eu acho que é pouco, os parques são todos longes também. O acesso e a divulgação são poucos aqui
na região, devia ter um acesso maior e uma divulgação maior, do que se tem de cultura na região. E por não
ter cultura, as pessoas acabam sempre indo para o outro lado, o da marginalidade, que é o outro lado ruim
também. Não tem cultura e a pessoa acaba indo para o lado da marginalidade, e tem muita violência no
bairro, você anda sempre acesso, ligado o tempo todo, esse é o ponto negativo da região de onde a gente
mora. Tem só a fórmula 1, mas não está no nosso nível, está muito acima, trezentos reais o ingresso,
ninguém daqui da região vai, só se for muito aficionado, eu gosto mas não tenho condição de ir.
C.K - Em relação a estrutura do bairro, luz, água, asfalto, esgoto...?
R.P - Luz e água nas regiões principais, o que são as regiões principais? São as ruas principais e suas
cercanias que saem de um lado e do outro, isso tem, saneamento básico, isso existe. Mas se você for mais
afundo, no bairro do Grajaú ou Cocaia ou aqui para trás, não existe. Existe luz, mas existe muito uma coisa
chamada ‘gato’, as pessoas puxam a luz de outro poste. E existe água, mas não existe o esgoto, cobra-se
pela água, cobra-se pelo esgoto, mas o esgoto não existe. Então as pessoas jogam seus lixos e aquilo que a
gente faz normalmente, vai tudo para o córrego. Então falta muito isso, falta isso de infra-estrutura, não é a
melhor. Tem luz e tem água, mas poderia ser muito melhor. É um bairro antigo, mas eu acredito que somos
um pouco esquecidos.
C.K - Você já foi de outra religião?
R.P - Bom, como quase todos desse país, Católico Apostólico Romano. Nunca entendi muito o que
significava isso quando pequeno, por que e nunca fui a igreja. A gente vai, tem aquela coisa que você não
entende muito, e é batizado. Não entende mesmo porque você é batizado neném, né?(risos) Mas tem a
primeira comunhão, a crisma, aquele monte de coisa da igreja Católica que são rituais que as mães e os pais
levam as crianças, mas as crianças na verdade, não entendem o porquê daquilo lá, muito do que está
acontecendo. Mas meus pais não iam a igreja, muito pouco, eu não tenho nem a lembrança de eu entrar com
meus pais em uma igreja Católica. Mais em casamento, mas aquela coisa muito rápida, muito mecânica, o
padre casa e esta quase dando um chute no noivo e na noiva, “olha, não joga muito arroz por que se não a
outra noiva vai escorregar”. Então eu tive isso até meus catorze anos, quando a gente começa a descobrir
realmente a vida. Fui convidado para ir a uma igreja evangélica, que não era grande como a igreja batista
que tem várias igrejas batistas, ou a Assembléia de Deus, mas era uma igreja única, com cerca de cento e
cinqüenta membros. Aceitei a Jesus lá, descobrir a razão da minha vida lá. Fiquei lá dez anos, e nesse meio
tempo conheci a minha esposa, ela já era da igreja batista. Daí eu conheci a denominação batista, por que eu
não conhecia, só via a placa da igreja, mas eu não conhecia, não sabia o que eles acreditavam, o que era
uma igreja batista. Depois desses dez anos, eu já estava casado, a gente preferiu sair da igreja pela distância,
mu ito longe vir de lá para cá, e aqui tinha uma igreja bem mais próximo, então a gente resolveu sair de lá e
vir para cá. Foi assim que eu conheci a igreja batista, através da Renata. Eu era Católico, depois fui para
uma igreja evangélica única, interdenominacional que é o nome, única só tinha (...) São duas uma igreja
aqui e outra em Atibaia, e de lá eu vim para a igreja batista, a Maranata.
C.K - Você gosta da Maranata?
R.P - Gosto. Tem erros, tem acertos como todas as igrejas. Tem defeitos como todas as igrejas, talvez eu
seja um defeito da igreja (risos) por que na verdade igreja são quatro paredes, ela não faz nada, os erros e
acertos são sempre nós, os seres humanos que fazemos. É uma igreja agradável, não é uma igreja grande, a
denominação é grande, mas a igreja, a nossa igreja é pequena, pequenininha, né? Estamos procurando
crescer, procurando sonhar, trabalhar para que ela cresça. Mas eu gosto, gosto bastante, estou satisfeito.
C.K - Quais os pontos positivos e negativos da Maranata?
R.P - De positivo (...). Vamos começar primeiro pelo positivo. De positivo, eu acho que a gente tem um
amor demonstrado ás pessoas que chegam à igreja. Pelo menos, se tenta acolher da melhor forma possível
as pessoas. Tenta ajudar através de alguns trabalhos sociais que são feitos, que talvez não sejam tão
divulgados na igreja, mas eles são feitos. Através de entrega de cestas básicas, não financeiro, por que a
gente não tem muito esse lado financeiro, mas através de alimento. Recentemente teve um acidente próximo
da casa de um irmão, explodiu literalmente a casa da pessoa, a igreja foi lá e reconstruiu a casa daquela
pessoa, tentou ajudar da melhor forma possível. Então, eu acho que aos poucos a gente está tentando se
engajar nesse trabalho, não só de evangelismo, mas também na parte social, por que é importante, não
tínhamos isso na igreja. Eu acho que a nossa igreja começou a despertar para isso um pouco, acreditar que
as pessoas não precisam só de Jesus, mas antes de Jesus, ou, junto com Jesus, elas precisam de uma base, de
melhorar um pouco a vida delas, não só a religião em si, mas elas precisam se sentir queridas, amadas,
precisam se sentir gente. Eu acho que na nossa região, muitas vezes, a gente sobrevive, não se sente gente,
se sente qualquer outra coisa, menos gente. De negativo (...) acho que a gente passou muito tempo longe de
quem realmente importa que são as pessoas. A gente ama muito quem está lá dentro da igreja, mas esquece,
muitas vezes, que tem muita gente fora da igreja. A gente perdeu muito tempo em não buscar essas pessoas
fora da igreja. Acho que esse foi um ponto negativo, ainda é, por que a gente não consegue mudar de um
dia para o outro, temos que acordar para isso, estamos tentado aos poucos acordar para isso. Eu acho que
esse é um ponto negativo da nossa igreja Maranata. Tem a questão de som, mas isso é uma questão pessoal,
né? Tem gente que gosta de uma música um pouco mais rápida, outros um pouquinho mais lenta, mais
baixa, um pouco mais alta, tem gente que acha que as mulheres deviam usar calça outros saia, então são
pontos assim, que se perde muito tempo discutindo e não se chega a lugar nenhum, eu acho que isso é
negativo na igreja, as vezes, tem muita comissão para isso, “ vamos ajudar fulano. Vamos. Mas porquê?”,
gasta-se uma hora discutindo e se perde, e não resolve nada. Na realidade a gente é muito prolixo,
conversamos de mais e agimos de menos, isso também é um ponto negativo na igreja. Todo mundo quer
ajudar, mas na hora de ajudar perde-se muito tempo planejando, mas agindo mesmo, gasta-se muito pouco
tempo, também é um ponto negativo.
C.K - Existe uma relação de amizade e irmandade entre os membros da Maranata?
R.P - Acredito que sim. Não da forma como poderia haver, maior, mas sim. Numa igreja que tem duzentos
membros, você pode conhecer os duzentos membros, mas você não vai ter amizade com os duzentos
membros. Vai ter amizade com vinte, que é dez por cento disso. E isso é um grande entrave na cabeça dos
mais velhos. Os mais velhos não conseguem aceitar muito o crescimento da igreja, eles estavam
acostumados com uma igreja de vinte e trinta membros, onde todo mundo se conhecia, às vezes até ia um
na casa do outro para ajudar a fazer alguma coisa ou para comer uma pizza ou para almoçar, havia muito
isso antigamente, hoje não há mais essa possibilidade de você conhecer a todos e ter amizade com todos. Há
amizade e há circulo de amizade na igreja, e a gente não pode cair pensando que é só “panelinha” que
existe. Não existem“panelinhas”, existem grupos de afinidades. Os adolescentes que gostam de música vão
se juntar para ouvir música, os que não gostam vão se juntar para fazer outra coisa, para jogar bola, fazer
outra coisa. Os mais velhos a mesma coisa, quem gosta de uma coisa vai se juntando, quem tem filho
adolescente normalmente se junta para comentar sobre filho, educação, quem tem filhos pequenos criança,
vai se juntar para conversar sobre bebês, sobre fraldas, essas coisas. E os jovens casados vão se unindo
também. Então você vê segmentos na igreja, não é como era antigamente numa igreja pequena onde todos
estavam sempre fazendo as coisas em comum, hoje existe amizade, mas mais segmentada, cada um faz no
seu bloquinho.
C.K - Existe diferença de tratamento entre um membro branco e um negro?
R.P - (risos) Ah! Eu acho que sim. Eu acho que sim. O amor cristão é cristão por parte de Deus, mas por
parte de nós homens, infelizmente, somos homens, e como humanos somos falhos e isso é uma falha que
não é só de Maranata, é uma falha que nós temos em nosso país. Nosso país é um país racista, e por ser
racista, dentro da igreja também há o racismo, mesmo que velado, há preconceito de cor, se ele é branco, se
ele é amarelo e principalmente se ele é negro. Se ele é negro e se veste não da forma como todos gostariam
que ele se vestisse, ele já ouvir as piadinhas, “tinha que ser preto mesmo”. Às vezes parece banal, mas para
quem ouve(...) Por que tem sempre essa mesma piada? “tem que ser negro”. A pessoa erra, e mesmo ela
sendo branca a piada existe “tem que ser coisa de preto”. Então você vê que se houvesse mudança de
atitude e pensamento a piada seria diferente, o jeito de falar seria diferente, poderia falar qualquer outra
coisa no erro, menos que o erro é coisa de preto, que é serviço de preto. Então, você percebe que isso está
incutido na pessoa e mesmo ela se convertendo a Cristo, isso está dentro dela, já vem arraigado, por que é
uma coisa que vem desde criança. A igreja não está preparada para mudar isso, as pessoas não se atentam
para isso. É uma coisa que há dentro da igreja, mas passa um pouco despercebido. Só quem está ali mesmo,
um pardo como eu, né? Que não se encaixa nem no branco nem no preto, é que consegue ver a diferença.
Você pega a piada e pergunta: “porque não fez a piada ao contrário, de branco, em vez de preto?” Então há
racismo sim. Eu vejo racismo, tanto de branco contra negros, quanto de negros para branco e de negro para
negro também dentro da igreja, faz a mesma coisa.
C.K – Ou na pregação do pastor, na escola bíblica ou em estudos bíblicos esse assunto aparece dentro
da igreja, é um assunto que se debate, ou é um tema ausente?
R.P - Totalmente ausente. Cem por cento ausente, (risos) duzentos, mil por cento ausente. Isso não se é
discutido, não é tema, não é debatido, não se dá importância, por que exatamente o que eu falei, é velado, as
pessoas fazem, mas não percebem que fazem, já está na raiz delas aquilo. Tem pessoas que são racistas,
mas ou tentam mudar ou tentam camuflar o seu racismo, dentro da igreja todo mundo é santo, mas e fora da
igreja?Fora da igreja é que você revela quem você verdadeiramente é. Nas pregações não acontece isso. O
que eu percebi uma vez foi uma frase infeliz que o pastor tentou corrigir. Frase infeliz porque nós estamos
em São Paulo, no Estado que ele veio, o Rio Grande do Sul, no caso do pastor Danilo. Uma vez falou de
negrinho, falou umas três ou quatro vezes, negrinho, negrinho, negrinho. Aí ele percebeu que caiu mal isso,
aí ele explicou que no Rio Grande do Sul, negrinho é moleque. Mas no Rio Grande do Sul, olha como isso é
arraigado, o Rio Grande do Sul é um Estado de branco, né? Não é um Estado onde tem negros (...) há
também como em todo país, há miscigenação, mas a cor predominante é o branco, então, a piada vai ser
sempre para o negro. Ele soltou no ar, falou umas três ou quatro vezes, mas depois ele percebeu onde
estava, a igreja que ele está, o contexto que ele está, e se corrigiu, e nunca mais ele voltou a fazer qualquer
menção sobre isso. Achei interessante isso dele, não se toca mais no assunto de racismo, mas eu percebi que
ele tocou no assunto, mas não por que ele quis, ele se corrigiu na verdade.
C.K - Você já ouviu falar sobre as cotas para negros, sabe qual a posição da igreja batista?
R.P - Não, não sei a posição. Não sei por que a gente não fala sobre isso, né? A gente comenta, eu comento
com minha esposa, posso comentar com a Claudia ou com amigos, mas não é comentado na igreja como
assunto da igreja, é assunto normal em conversa de amigos, mas assunto cristão, que a igreja está
preocupada com isso, de jeito nenhum, passa.
C.K - Você acha que nem deve existir uma posição da igreja?
R.P - Não. Não há posição.
C.K - Você é contra ou a favor?
Das cotas? É complicado, da forma como foi feito o negocio é meio esquisito, eu me encaixo no quê? Eu
sou pardo, eu me encaixo, tenho direito, mas e o filho do rico negro, que já tem toda a estrutura, ele não vai
ter muito mais chance do que o que está lá em baixo sem estrutura nenhuma? Então mudou o quê na
verdade? Mudou que o filho do rico tem oportunidade de entrar mais fácil, mesmo sendo negro, por que
existem negros que tem uma condição financeira melhor que os outros. Então não se é debatido. Minha
posição é (...) difícil, é complicado. Acho que da forma como foi feita gera mais racismo ainda,“poxa, só
entrou porque é preto” a gente ouve esse debate às vezes, não no meio acadêmico, por que não é minha
parte, mas como ou ouso muito o rádio, muita entrevista, essas coisas, você houve esse tipo de debate, as
pessoas falam, “só entrou porque é negro”. E eu acho que não é essa a intensão do governo, ou se é, foi é
muito bem feita, (risos) ás vezes a gente não pega do jeito que eles querem fazer, mas não deveria ser isso,
entrou porque é negro. Não deveria entrar por que é negro, deveria sim, uma outra forma, eu não sei qual a
forma ideal, mas essa forma que eles fizeram, cota de preservação ou de (...) não sei, não é o jeito mais
certo não. Acho que notas, avaliação de notas sempre é a melhor coisa, não preservar pela cor, acho que
isso só divide mais ainda a sociedade.
C.K - Em sua opinião essa questão da negritude, do racismo deveria ser melhor abordado na igreja?
R.P - Não que deveria fazer parte, mas olha, se a gente for pensar que Cristo veio para todos, e não fez
acepção de pessoas, pelo menos eu não consigo enxergar isso no evangelho. Ele não faz acepção de
pessoas, se é preto, se é branco ou amarelo, tanto faz. Se a gente for com um discurso desse na igreja, fica
meio que um contra senso com a Palavra de Deus. Você ficar sempre batendo nessa tecla de negritude, não
bate com o que você prega de que tem que haver união dos povos, de que para Deus todos são iguais.
Então, fica meio esquisito haver debate disso, ou haver bandeira, se a igreja levantar bandeira sobre
negritude, “poxa, mas e os outros?”, por que a igreja não levanta a bandeira sobre o pessoal de Haiti, a
bandeira sobre o que está acontecendo no Iraque? Vai levantar só a dos negros aqui da região? Sempre que
você levantar a bandeira de alguma coisa causa mais divisão. Acho que deve haver informação, não acho
que a igreja deva tomar partido da questão racial, por que isso não foi o principal tema de Cristo. Acho que
a igreja tem que estar consciente, que deveria conversar sobre isso, ver alguma coisa sobre isso, mas não
levantar bandeira, a não ser que entre a comunidade em que a igreja esteja incluída haja muito problema de
racismo na comunidade, aí a igreja tem que entrar com alguma coisa, com ação social para que reverta, para
mostrar para as pessoas que todos são iguais perante a Deus, branco, preto e amarelo. Mas se não houver
isso, se todos se aceitam ali na região normalmente, acho que não é a igreja que tem que levantar isso, acho
que às comunidades de bairro, cabem a elas isso, se não a gente vai se preocupar com a negritude ou com o
racismo e deixar de falar do principal que para nós é o evangelho.
C.K - Então a Maranata é um exemplo de uma igreja que não tem problema, e não há necessidade de
falar sobre racismo?
R.P - Não. Tem igrejas em São Paulo que são para negros, vamos dizer assim. É a igreja Pedra viva lá a
maioria é negra, e os bancos ou os pardos que vão lá não se sentem ofendidos por isso. O ritmo negro está
lá, mas não é um ritmo negro afro de axé, não, é o black mesmo, é mais o funck. Então as pessoas se
aceitam. Eu conheço essa igreja há quinze, dezesseis anos, e os pastores de lá não eram negros, eram
brancos. Não sei quem é que está lá hoje, o pastor Natinho tinha ido para Curitiba, não sei quem é hoje,
quem está na liderança da igreja hoje. Mas não era uma igreja dirigida por negros, era uma igreja dirigida
por brancos, mas o seu contexto e o ritmo que se fez lá acabou atraindo sempre os negros, então, você
percebe que lá não há esse problema. Eu não vejo eles levantando a bandeira da negritude ou do racismo, lá
tem bastante negros, mas todos se aceitam muito bem lá, tanto brancos como negros, eu acho que o
evangelho une as pessoas.
C.K - Quais as vantagens de ser negro?
R.P - Difícil por que eu não sou negro (risos) Difícil falar de vantagem (...). Deve ser sua próxima pergunta,
sobre as desvantagens, né? Mas vamos para as vantagens, eu não consigo encontrar muitas vantagens, não
consigo encontrar vantagem nenhuma de ser negro nesse país. Como eu disse é um país racista, então, não
vejo vantagem nenhuma de ser negro. Sinto vantagem na hora que você joga bola aí “poxa, ele corre mais
por que ele é negro, ta no sangue dele, a ginga” Mas qual a vantagem tem isso?(ironicamente) Manda o
outro treinar também que ele vai conseguir jogar do mesmo jeito. Então não vejo muita vantagem no nosso
país hoje ser negro. Se nós tivéssemos como nos Estados Unidos que há isso, produtos para negros,
produtos para brancos, talvez tivesse diferença, eu ter essa coisa de ser negro me trouxesse alguma
vantagem. Hoje eu não vejo vantagem nenhuma em ser negro ou ter a ascendência negra. Pelo contrário, eu
acho que a gente só tem desvantagem. Eu ter o pé na cozinha não tem vantagem não.
C.K - Então me dá alguns exemplos dessa desvantagem...
R.P - As desvantagens são várias, se você vai procurar um emprego e se tem um branco e um preto com o
mesmo currículo, o branco vai, o negro não vai. Se tivesse alguém para debater aqui comigo ele não ia
aceitar minha posição, e eu ia olhar bem para cara dele e ver se ele era branco ou preto, para ver o que ele ia
falar. Por que é muito fácil a gente ver debates e ver os brancos falando que isso não existe, mas eu queria
ver o outro lado, se ele tivesse na pele do negro indo procurar emprego e sentisse que na verdade, mesmo
ele tendo condições não se é dada a chance para ele. Isso aos poucos está mudando, por que nosso país é um
país miscigenado, então, os negros existem, estão aí, estão tomando seus lugares, até por falta de opção do
lado branco na verdade. Se casar um negro e um branco vai sair um pardo e não tem jeito a comunidade
cresce mesmo. Você entra em um shopping e tem lá um branquinho ou um branco vestido normalmente e
tem um negro o segurança não vai atrás do branco ele vai atrás do negro. Eu trabalho com táxi, à noite ou
qualquer hora do dia, se tiver uma pessoa branca dando sinal, você olha e pára. Se é um negro você olha e
pensa duas vezes antes de parar. Há isso. A aparência ela é muito em voga, o jeito de se vestir, pelo fato de
ser negro. Tem muitas desvantagens. É no emprego, é no shopping é na hora de comprar uma roupa, “isso
não fica bem para um negro” se você está dirigindo um carro, eu já percebi isso várias vezes, “só pode ser
um carro roubado, um preto dirigindo aquele carro? É roubado, não pode ser dele, por que ele não tem
condições de comprar” Então, há muitas desvantagens, assim como ele entra em uma loja para comprar
também, há desconfiança se ele vai pagar ou não, por que acham sempre que ele não tem condições de
pagar aquilo lá que esta comprando, o negro parece que nunca tem condições de nada nesse país. Na
verdade tem muita gente bem de vida e bem resolvida. Então tem muita desvantagem de ser negro.
Vantagem você não consegue enxergar muito não, mas desvantagens, bastante.
C.K - Você é feliz não sendo branco?
R.P - Eu sou, por que sou bem resolvido com a minha cor. Uma vez, essa coisa de shopping, uma vez eu fui
ao mappin, uma loja que não existe mais, e eu tinha o cartão de lá há anos. E eu fui ao mappin e foi muito
engraçado, entrei e percebi que o segurança falou no rádio e foi atrás de mim, eu mudei para o outro lado e
ele foi atrás de mim também, aí eu fiquei meia hora dando voltas no mappin sem comprar nada só para ver
até onde ele ia, até uma hora que eu dei a volta e parei na frente dele, e falei “aconteceu algum problema?”
ele ficou assustado, “não senhor” eu perguntei “tem algum problema comigo?” “não senhor”. “Então vamos
fazer o seguinte, chame o seu supervisor, que eu quero falar com ele.” “mas por que?” “Por que você está
me seguindo a loja inteira”. Ficou chato, muito chato. Eu sou muito bem resolvido com o que eu sou, e se
tiver que brigar com alguém pelo fato de ser negro, não tenho problema nenhum, vamos enfrentar, “está me
encarando por que eu sou negro ou tenho aparência de negro, vamos embora, não tenho nada a esconder de
ninguém”. Nasceu à filhinha de um amigo meu, do Leandro, e eu fui visitá-lo no hospital. E o Leandro tem
o pé na cozinha também, cabelinho sarara, negrinho também. E a gente foi subir, mas o elevador estava
demorando de mais, é a maternidade São Luiz. É uma maternidade boa. Mas foi muito engraçado, porque
demorou o elevador para subir e o Leo falou assim “vamos de escada, são cinco andares?”“então vamos de
escada Leo, vamos subir” A gente botou o pé na escada e no segundo andar tinha um segurança. Aí eu falei
para o Leo, “esta vendo Leo, você foi quer subir de escada, não pode subir de escada, pretinho subindo de
escada, já era, daqui até lá em cima eles vão seguindo a gente” Eles não seguiram a gente por que o rapaz
ficou constrangido. Mas foi aquilo que eu falei, eu enfrento. Quando eu vejo esse tipo de coisa eu falo
mesmo, que é para a pessoa se ligar que eu não devo nada para ninguém, e me sinto ofendido quando isso
acontece, não deixo passar, como se isso fosse normal, não é normal não pode ser normal. Infelizmente é
normal, mas não deveria ser normal, e eu não aceito isso, quando a pessoa faz comigo eu vou lá e falo e
tento tirar isso a limpo. E acho que essa deveria ser a atitude de todos, se sentiram ofendidos? Vai lá e fala
que só assim que a mudança, se deixar do jeito que está não há mudança.
C.K - A próxima pergunta você já respondeu, mas se quiser falar mais sobre o negro no Brasil... O
que é o negro brasileiro?
R.P - É uma pessoa batalhadora, mas como todo o brasileiro é um pouco covarde. Não se aceita muito,
deixa muito as coisas passarem. Por que eu digo que é meio covarde? Você que está fazendo história
(risos), se a gente for puxar a nossa raiz portuguesa a gente vê que os portugueses são medrosos são
covarde, não covardia de atacar os outros pelas costas, mas o de muitas vezes não enfrentar a situação,
deixar muito as coisas para última hora, deixar as coisas acontecerem. Isso veio lá dos portugueses, aí você
junta o fato de ser negro com o seu histórico com aquilo que é sua personalidade. Não é só por que você é
negro que você tem uma personalidade diferente, a personalidade vem de berço, do que seus pais te
ensinam, do que a sociedade te ensina. Então se a nossa saciedade é assim, medrosa, demora para tomar
algumas atitudes, imagine uma pessoa negra. Demora a se aceitar, demora para tomar atitude, demora para
lutar por aquilo que quer. Aceita muito, como todo brasileiro, e o negro pior ainda, aceita muito a situação
da vida como é, “eu sou negro mesmo não vou conseguir um emprego um pouco melhor” como já é tirado
de negro não estuda, não luta pelo que quer, aceita muito as condições que a vida impõe. Eu acho isso muito
ruim pela parte do negro, do negro brasileiro. Para um pouco de lutar, não deveria ser assim, deveria lutar
mais, tem tantos negros vencedores aí, aqui no Brasil mesmo, mas são poucos, minoria, não só no país. Tem
um esporte, não sei se você tem conhecimento, mas a fórmula1 tem o primeiro piloto negro da história, o
primeiro. A fórmula1 tem mais de cinqüenta anos, agora que foi ter o primeiro negro da história. Não sei se
deveria ter sido dado tanta ênfase a isso, como deu, acho que deveria ter sido tratado como uma coisa
normal, mas como foi o primeiro, dá-se uma ênfase. Eu acho que é isso que causa as diferença entre as
pessoas, a ênfase tanto de um lado quanto do outro. Dá ênfase de mais ao negro por ele ter conseguido,
como se aquilo lá fosse algo impossível. E não é impossível. Só não tinha chegado a hora de ninguém, ou
talvez pelo racismo ninguém tinha dado a oportunidade para um negro antes, e esse aí provou pelo talento e
pelas oportunidades que ele teve que ele conseguiu. Mas isso foi lá fora. Mas quando é que a gente vai ter
um piloto de formula1 negro, brasileiro? Eu acho que isso é muito difícil. Quando você vai ver um jogador
de tênis negro? Não vai. Agora você vai ver um jogador de futebol, de basquete, de vôlei de handebol, por
que são esportes populares, agora esportes de elite você não vai ver um negro de jeito nenhum, dificilmente
você vai ver. Então você vê que há realmente, tem alguma coisa errada com o nosso país que não vai ser um
ou outro que muda, só muda através do tempo, das pessoas se conscientizando. Sou feliz pelo que sou, mas
acho que os negros poderiam ser um pouquinho melhores do que são hoje.
C.K – Vamos começar por sua trajetória habitacional, onde você nasceu?
D.S - Na realidade eu nasci e me criei em Recife, Pernambuco. Aos vinte e um anos de idade recebi um
convite para vim morar em São Paulo. Aceitei o convite e vim. Por incrível que pareça, nunca passei
necessidade, e ao chegar em São Paulo, passei fome por não ter família. Mas graças a Deus, pela
misericórdia dele, hoje estou bem. Quando eu vim para São Paulo, vim direto morar no Jardim São
Francisco, no Guarapiranga. Treze anos depois eu passei a morar aqui no jardim Icaraí, estou aqui há seis
anos.
C.K - Como você veio para essa região do Grajaú?
D.S - Eu vim para cá através da Congregação onde eu era membro, filha da igreja onde hoje eu congrego, a
igreja Batista Maranata. E através do conhecimento que eu tinha com a igreja eu precisei mudar de lá e vim
morar aqui nesse bairro, onde se localiza a igreja Batista Maranata.
C.K – Agora sobre estudos, você estudou até quando?
D.S - Eu tenho só o ensino fundamental e agora estou fazendo aula de música, quero ser um professor de
música, se Deus quiser.
C.K - E seus pais, estudaram?
D.S - Meus pais (...)? Meu pai é natural da Paraíba, ele é paraibano, casou com a minha mãe e foi para
Pernambuco. Minha mãe é pernambucana, e não tem o mínimo de desejo de conhecer São Paulo, estão lá,
aliás, meu pai, porque minha mãe é falecida.
C.K - Eles estudaram?
D.S - Não. Meu pai tinha um estudo muito fraco, ele estudou até a quarta série. E a minha mãe, o estudo
dela era menos que o do meu pai, mesmo por que no tempo deles, exigiam mais o trabalho do que o estudo.
C.K – Qual a sua profissão?
D.S - Hoje minha profissão é ajudante geral. Eu trabalho também na área da construção civil,
principalmente, na reforma e pintura.
C.K - Você mora a pouco tempo nessa região do Grajaú, mas pode me dizer algumas coisas que você
acha positiva nessa região?
D.S - Olha, que eu não goste (....) a única coisa que precisaria melhorar mais na região, seria o aumento de
ônibus. Tem muita condução, mas pela quantidade de pessoas, pelos bairros que temos para frente até
Embú-Guaçu, Cipó, Parelheiros, a condução é pouca. Pelo valor da condução, nós como passageiros, como
ser humano também, em primeiro lugar, nós teríamos que ter um pouco mais de tranqüilidade para viajar de
ônibus. Principalmente, quando pega uma viagem de uma hora, uma hora e quarenta minutos, de pé no
ônibus não é fácil.
C.K - E o ponto positivo da região do Grajaú?
D.S - De bom, na região do Grajaú? Olha, tem muita coisa (...) partindo de lojas, bancos, hospital, posto de
saúde, assim, algumas coisas ainda favorece. Uma coisa que nós necessitamos também aqui é um projeto do
governo, mas não sei se esse projeto ainda vai ser concluído, não sei se está vivo ainda, é o trem, de
preferência como eles falam, daqui, Varginha até Santos, seria uma coisa que iria ajudar muito.
Principalmente, para as pessoas que não tem condições de possuir um veículo, e depende de ônibus para ir
para baixada.
C.K - Você já foi membro de outra religião ou denominação?
D.S - É o seguinte, quando eu nasci, meus pais já eram evangélicos, fui apresentado na igreja Assembléia
de Deus há quarenta anos atrás, graças a Deus por isso! Passei praticamente a minha vida, até os vinte anos
de idade, na Assembléia de Deus. Passei um tempo afastado da igreja, foi quando conheci a congregação da
igreja Batista Maranata, lá no jardim São Francisco. E foi através da vida do pastor José Antunes, que na
época era o pastor da igreja. Ele me fez uma visita, coisa que eu não esperava, eu achava isso impossível e
difícil, mas Deus sempre usa as pessoas. E através da pessoa dele eu passei a ter o conhecimento e o
acompanhamento com o pessoal da igreja Batista. E eu vi que, não falando mal de outras igrejas, mas o
carisma, o aconchego, a hospitalidade, a unanimidade em relação a comunhão, eu achei muito forte. E a
partir desse momento eu comecei a freqüentar a congregação Batista e me tornei membro, fui aceito por
aclamação na igreja Batista Maranata e até hoje graças a Deus.
C.K - Quantos anos você é membro da Maranata?
D.S - Nove anos.
C.K - Pelo intermédio da Congregação você conheceu a Maranata?
D.S - Conheci a Maranata. E fui aceito por aclamação na igreja batista Maranata, pela congregação ser filha
da Maranata.
C.K - Quais os pontos positivos e negativos da Maranata?
D.S - Coisa boa? São muitas (...) na realidade são muitas. Como eu já citei no inicio, começando pelo amor
para com o outro e a comunhão. Eu graças a Deus adquiri um conhecimento espiritual bem maior do que eu
tinha antes. Por um certo tempo eu levei o evangelho de Cristo por uma certa brincadeira, mas Deus me deu
oportunidade de conhecer mesmo, profundo, e através da igreja batista, conversando com um e com outro,
pessoas mais experiente. Um ponto super positivo na minha vida é o lado espiritual, conhecimento maior
que eu tive. Uma coisa que deveria mudar na igreja, não por ser um ponto negativo, mas eu acho que no
geral, eu creio que não só na Maranata, mas no geral de igrejas, é que nós como cristãos pensassem um
pouco em nossos primeiros irmãos, como escreveu o livro de Atos, Lucas, os nossos primeiros irmãos,
voltar ao primeiro amor, isso é uma coisa que a gente sente falta na igreja, quando se trata de cristão.
C.K - Como assim, você pode dar um exemplo?
D.S - Por exemplo, quando a gente aceita a Cristo, isso é no geral em todas as igrejas, parece que a gente
tem mais temor a Deus, a gente lê mais a bíblia, a gente ora mais, a nossa fé parece que é muito maior,
quando a gente passa a conhecer o evangelho de Cristo. Depois, com o tempo, nós os seres humanos,
começamos a colocar o nosso lado egoísta e esquecer um pouco de Deus. Nas orações, ora quando lembra,
pede, mas esquece de devolver, esse é um defeito como Cristão que nós temos, pedi, pedi, pedi e Deus
sempre abrindo a mão, mas a gente esquecendo de devolver a parte do Senhor, isso se torna geral em todas
as igrejas, todas as denominações.
C.K - E na Maranata, também?
D.S - Sim, sem dúvida. Eu to falando assim, primeiro da minha igreja, o que deveria voltar o que seria nesse
caso, não um ponto negativo, mas assim, uma aproximação maior de Deus, a começar comigo, né? E partir
para o corpo da igreja.
C.K - Você acredita que existe uma relação de irmandade e amizade na igreja Maranata?
D.S - Com algumas exceções sim, existe.
C.K - Não é todo mundo?
D.S - Não é todo mundo, mesmo porque ontem, é isso!? Eu dei um estudo na igreja falando justamente
sobre a igreja de Atos, que foram os nossos primeiros irmãos. Lá no tempo deles, não existia rico nem
pobre. E para Deus hoje, até hoje não existe classificação de pessoas. Deus ama a todos por igual, sem
colocar raça, nem cor, nem poder financeiro, nem empresário, nem pobre. Isso a gente vê que existe dentro
da igreja, algumas separações em relação a isso, isso também precisa mudar.
C.K - Existe alguma diferença entre os membros negros e os brancos?
D.S - Olha, durante esse tempo que estou na Maranata, eu não vi isso acontecendo.
C.K - Você acredita que não existe?
D.S - Como eu não vi, eu acredito que não existe. Pode ser que tenha acontecido, mas na minha presença
não, então eu creio que não existe.
C.K – Por quê você acha que isso não acontece na igreja?
D.S – Por que para Deus, eu já falei, para Deus nós todos somos iguais, Deus não separa nem cor nem
poder financeiro.
C.K - Para Deus sim, mas e para as pessoas?
D.S - Para as pessoas teria que ser a mesma coisa, porque se nós aceitamos a Cristo, temos que ser
imitadores dele, e como seus imitadores, ele não fez separação, e nós como cristãos, não podemos fazer
separação, não podemos ter isso em nosso coração.
C.K - Outro tipo de separação, mas não de cor de pele?
D.S - Aí existe, aí existe. Por exemplo, mesmo quando chega um jovem visitante na igreja dificilmente a
gente vê um jovem ou um adolescente se aproximando. Talvez não seja assim por acepção, mas por um
certo receio ou vergonha, não sei o que passa no coração deles. Mas geralmente a gente vê mais os adultos,
eu mesmo gosto de recepcionar as pessoas.
C.K - Mais em relação a quem chega de fora. Mas e em relação aos próprios membros?
Entre os próprios membros? (...) Eu acho que existe assim (...) devido a idade, os jovens e os adolescentes
não se misturam muito com os adultos, isso é uma coisa que existe não só na nossa igreja, mas no geral.
Mas isso é por causa da (...) eu creio assim (...) como a evolução está cada dia crescendo, devido a cabeça
entre alguns adultos e alguns adolescentes.
C.K - Nos cultos, escola dominical e estudos bíblicos a questão racial é falada?
D.S - Não. Não é comum, deveria acontecer, mas, como eu acabei de responder para você um tempo atrás,
como eu nunca presenciei esse tipo de discriminação na igreja, eu creio que na igreja não exista isso, por
não existir, não necessariamente está discutindo o fato.
C.K - Já ouviu falar sobre as cotas? Qual posição da igreja batista?
D.S - Algum tempo atrás eu ouvi na televisão, não só nas universidades, mas nas empresas. Eu ouvi mas,
não gravei, na empresa se não me engano, acho que um por cento, um virgula alguma coisa por cento.
Agora na universidade (....) Eu creio que há uma aprovação unânime em relação a isso (aprovação da
igreja), por que como eu falei nunca vi acontecer esse tipo de racismo dentro da igreja, e por ser igreja,
também existem negros dentro da igreja, e eu creio que é uma aprovação unânime da igreja em relação aos
negros tanto trabalharem quanto estudarem.
C.K - Você fala por você, ou já ouviu essa discussão dentro da igreja?
D.S - Nunca ouvi na igreja, estou deduzindo pelo que eu vejo. Eu sou a favor.
C.K - Em sua opinião essa questão do negro e do racimo deveria ser falado na igreja?
D.S - Deveria, acho que como acontece na televisão algumas reportagens, alguns eventos partindo dos
negros, acho que deveria ser um assunto não só na Maranata, mas em todas as igrejas no geral.
C.K - Mesmo você dizendo que não há esse tipo de problema na igreja?
D.S - Deveria, por que às vezes possa acontecer que na igreja tenha pessoas que tenham esse tipo de visão
em relação ao negro e por esse motivo que teria que ser um tema a discutir e mostrar para as pessoas a
igualdade do ser humano independente da cor.
C.K - Quais as vantagens de ser negro?
D.S - A simpatia, acho que os negros são pessoas simpáticas, uma coisa que mais uma vez eu vou ter que
tocar é em relação a música, os negrões cantam muito, são vozes assim excelentes, tanto aqui no Brasil
quanto no exterior, os negões cantam muito, então negro é negro.
C.K - Você é feliz sendo negro?
D.S - Sou muito feliz, porque em primeiro lugar eu creio que através da entrega da vida de Jesus na cruz,
Deus me escolheu para ser seu filho, para servir a Cristo, e o segundo que em todo lugar que eu chego eu
sou bem recebido, sou uma pessoa que sou suspeito para falar, mas eu converso com todo mundo, gosto de
brincar, gosto de ser extrovertido, e talvez por esse meu jeito...
C.K - Você nunca sofreu preconceito?
D.S - Nunca.
C.K - Nem dentro da igreja nem fora?
D.S - Muito menos na igreja.
C.K - Nesse contexto de Brasil, o que é ser negro aqui?
D.S - No Brasil, existe esse preconceito, existe. Principalmente eu vejo assim, na polícia a nossa área de
segurança aqui no Brasil, tem um certo suspeito com os negros, geralmente a maioria das pessoas que são
paradas para serem abordadas pelas polícias, a maioria são negros.
C.K - Aí há preconceito racial?
D.S - Eu creio que sim. E parte de algo que não deveria ser. Por ser segurança (...) de uma certa forma, a
segurança do país, eu acho que não deveria ter esse preconceito, e tem, existe, por que eu já presenciei
vários fatos.
C.K - Não com você?
Comigo não, com pessoas, não só com amigos, mas a gente esta todo o dia na rua e vê o que acontece, a
maioria das pessoas que são abordadas são negros.
C.K - Obrigada! As perguntas seriam essas, mas existe mais alguma coisa que você gostaria de dizer?
D.S - Falando do negro, seria essencial que não houvesse preconceito de hipótese nenhuma, não só aqui no
Brasil, mas no planeta, isso seria uma coisa essencial para todos os brasileiros e falando em relação ao
globo, para todo mundo. Ninguém ia se sentir humilhado, por que devido ao preconceito, existem
humilhações e muito grande, não são poucas, eu acho que isso em hipótese nenhuma deveria existir era, o
racismo.