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O engajamento político e epistemológico no ofício dos historiadores brasileiros profissionais

nos anos da redemocratização: uma reflexão sobre a fundação da historiografia brasileira


contemporânea (1975-1979)
Rodrigo Perez Oliveira1
Resumo
No Brasil e no mundo, a autoridade pública dos historiadores profissionais vem sendo questionada.
É certo que esse questionamento não uma novidade, pois pelo menos desde os anos 1970 a autoridade
do campo histórico é problematizada, muitas vezes pelos próprios historiadores, ou pelo menos por
alguns deles. Esse ambiente de questionamentos permitiu que vozes antes silenciadas pela
historiografia disciplinar encontrassem canais de expressão, como é o caso das narrativas relacionadas
ao movimento negro, feminista e LGBT, e às vítimas de eventos traumáticos. Todas essas narrativas
buscam legitimidade, em menor ou maior grau, na noção de “lugar de fala”. A novidade dos últimos
tempos é que essa multiplicidade narrativa, que antes era evocada em favor das agendas progressistas
e da defesa dos direitos humanos e da liberdade das minorias, vem sendo mobilizada por toda sorte
de revisionismos, que, entre outras coisas, negam o caráter autoritário e violento da Ditadura Civil-
Militar que governou o Brasil entre 1964 e 1985. Provocados por essa situação, os historiadores
profissionais, ou pelo menos alguns deles, cada vez mais exploram os canais de comunicação social
com o objetivo de confrontar esses revisionismos. Até aqui, esses esforços vêm apresentando
resultados bastante modestos. Neste artigo, meu objetivo é explicar aquela que me parece ser uma
(entre outras tantas) das causas dessa dificuldade de afirmação no debate público brasileiro de uma
autoridade disciplinar baseada no método histórico. Para isso, me debruço sobre o momento de
fundação da historiografia brasileira contemporânea, buscando compreender como se deu a
constituição da identidade teórica da historiografia que até hoje é chancelada como “profissional”.
Tomando como recorte os anos compreendidos entre 1975 e 1979, período de vigência do I Plano
Nacional de Pós-Graduação, estou interessado, especialmente, no comportamento político dos
historiadores profissionais, em como eles se engajaram nos debates públicos que estavam pautando
os primeiros movimentos da redemocratização do Brasil. Entre outras coisas, o IPNPG definiu a
universidade, através dos seus programas de pós-graduação, como o lugar social por excelência de
produção do conhecimento histórico. Acredito, e é essa a hipótese que apresento no texto, que os
fundadores da historiografia brasileira contemporânea nos deixaram dois legados, que apenas na
aparência são contraditórios entre si: um intenso engajamento epistemológico/temático e um tímido
engajamento político direto. Compreender como se deu a sobrevivência desses legados talvez nos
ajude a enfrentar os enormes desafios que se avizinham.
Palavras-Chave: Redemocratização Brasileira, Historiografia profissional, engajamento
epistemológico/temático, engajamento político direto.

1
Rodrigo Perez Oliveira é carioca, doutor em história social pela UFRJ e professor adjunto de teoria da história na
Universidade Federal da Bahia, atuando na graduação e na pós-graduação. Rodrigo Perez é autor do livro "As armas e as
letras: a Guerra do Paraguai na memória oficial do Exército Brasileiro (1881-1901)”, publicado em 2013 pela editora
Multifoco, e organizador do livro "Conversas sobre o Brasil: ensaios de crítica histórica", publicado em 2017 pela editora
Autografia. Os interesses de pesquisa do autor estão concentrados nas relações entre a epistemologia histórica e a história
política, sendo sua especialidade a história da historiografia e do pensamento político brasileiros, assuntos que já abordou
em uma dezena de artigos publicados em diversos periódicos especializados. Atualmente, Rodrigo Perez vem
desenvolvendo pesquisas sobre a historiografia brasileira produzida nos anos da redemocratização (1975-1990) e sobre a
experiência de crise institucional que desestabiliza a cena política brasileira desde 2013.
Introdução
Hoje mais do que nunca, há pessoas querendo coisas. No rastro desses centros ausentes e
metanarrativas ruídas, as condições do pós-modernismo produzem aquela multiplicidade de
relatos históricos que encontramos por toda a parte em nossas sociedades
democráticas/consumistas, uma massa de gêneros (histórias com grife) para usar e/ou abusar a
gosto. Nisso podemos identificar, por exemplo, as histórias dos historiadores (histórias
profissionais que tentam estabelecer hegemonia naquele campo de estudo, uma versão expressa
nas teses, monografias, artigos e livros), as histórias dos professores de escola (necessariamente
popularizações das histórias dos historiadores profissionais) e depois toda uma gama de outras
formas características que só podemos listar: relatos históricos para crianças, relatos da memória
popular, relatos de negros, brancos, mulheres, feministas, homens, relatos de herança cultural,
relatos de reacionários, elites marginais ets. Todos esses diversos constructos são influenciados
por perspectivas locais, regionais, nacionais e internacionais (JENKINS, 2007, p. 101).

Naqueles anos [década de 1970] todos nós estávamos interessados no desenvolvimento de uma
pesquisa engajada, amalgamada a atividades de assessoria aos trabalhadores. Pesquisa esta que
incluía, a princípio, a participação ativa desses trabalhadores, considerados, portanto, não como
meros objetos para as pesquisas dos intelectuais, mas como coparticipantes delas, como sujeitos
investigados e parceiros políticos dos ativistas intelectuais. Em outras palavras, a interação entre
campo intelectual e campo popular (ou campo do movimento sindical, mais especificamente)
era condição necessária à confecção de pesquisas de feitio não acadêmico, isto é, que fugissem
do caráter “neutro” ou distante da realidade – empírica – presente em trabalhos de padrão
universitário (MOISÉS apud PERRUSO, 2008, p. 151).

As duas citações servem como mote para a definição do conceito “engajamento”, que é central
na reflexão que desenvolvo neste artigo. Para o historiador inglês Keith Jenkins, a historiografia “pós-
moderna”2 tem o engajamento como premissa, pois na medida em que as “metanarrativas centrais”
fundadas pela modernidade ruíram no final dos anos 1960, emergiram diversos relatos que
representam interesses de sujeitos (mulheres, negros, comunidade LGBT e etc) antes silenciados por
uma historiografia branca, fálica e eurocentrada. Já o cientista político José Álvaro Moisés, em
entrevista concedida a Marco Antônio Perruso, comenta aquele que era o clima geral entre os
intelectuais brasileiros em atuação na década de 1970: a busca pelo engajamento, que se manifestou
não apenas na tematização daquilo que já na época ficou conhecido como “novo sindicalismo” 3, mas

2
Ao falar em “Pós-Modernidade”, Keith Jenkins se coloca na esteira das reflexões desenvolvidas por François Lyotard
no tão conhecido livro “A Condição Pós-Moderna”. Jenkins, lendo Lyotard, afirma que a pós-modernidade viu
testemunhar “a morte dos centros e demonstra incredulidade ante as metanarrativas. O que significam essas coisas? E
como podemos explica-las? Antes de mais nada, elas significam, que todos aqueles velhos quadros de referência que
pressupunham a posição privilegiada de diversos centros (coisas que eram, por exemplo, anglocêntricas, eurocêntricas,
etnocêntricas, logocêntricas, sexistas) já não são mais considerados legítimos e naturais (legítimos porque naturais), mas
temporários, ficções úteis para formular interesses que, ao invés de universais, eram muito particulares: já a “incredulidade
antes as metanarrativas” quer dizer que aquelas grandes narrativas estruturadoras (metafísicas) que deram significados à
evolução ocidental perderam a vitalidade. Após as proclamações oitocentistas da morte de Deus (a metanarrativa
teológica), ocorre também a morte dos substitutos temporais dele. O final do século XIX e o século XX assistiram a um
solapamento da razão e da ciência. O fenômeno que tornou problemáticos todos aqueles discursos, que se fundamentavam
nelas e tinham pretensão à verdade; todo o projeto do iluminismo (JENKINS, 2007, p. 95).
3
Segundo o historiador Marcelo Badaró Mattos, os trabalhadores diretamente envolvidos com as “grandes greves”
realizadas no final dos anos 1970 já se autorepresentavam como fundadores de um novo tipo de ação sindical,
independente da tutela do Estado, como havia sido, na avaliação desses trabalhadores, o sindicalismo corporativo
instituído no Estado Novo (1937-1945). “O novo sindicalismo demandava, obrigatoriamente, a construção alteridade, de
um velho sindicalismo, pecha que foi atribuída aos sindicados cooptados pela burocracia do Estado Novo” (MATTOS,
1988, p. 55).
2
também pelo interesse em travar contato com os trabalhadores através da assessoria ao movimento
sindical e pelo esforço em intervir diretamente nas grandes agendas abertas pela conjuntura da
redemocratização. Neste trabalho, estou interessado em examinar como os historiadores brasileiros
profissionais exercitaram esse duplo engajamento, que é ao mesmo tempo epistemológico/temático e
político, em um período no qual estava sendo fundada a historiografia brasileira contemporânea.

O aspecto mais importante a ser levado em conta por qualquer estudioso interessado na
história contemporânea da historiografia brasileira é que entre nós a cultura de pesquisa que definiu
a universidade (através dos seus programas de pós-graduação) como o lugar por excelência da
produção do conhecimento histórico foi institucionalizada em uma Ditatura Civil-Militar. A partir
dos primeiros anos da década de 1970 é possível perceber um esforço sistematizado e coordenado
diretamente pelo regime ditatorial no sentido da consolidação e da difusão do ensino pós-graduado
no Brasil. Esse esforço institucional, como não poderia deixar de ser, interferiu diretamente no
funcionamento dos diversos campos de estudos que na época constituíam a cena universitária
brasileira. A pesquisa que apresento neste texto está interessada, justamente, nos desdobramentos
desses esforços institucionais no campo da historiografia, especialmente naquilo que se refere ao
problema do engajamento político e epistemológico dos historiadores profissionais. Por isso, o recorte
cronológico que baliza a minha reflexão consiste nos anos de vigência do I Plano Nacional de Pós-
Graduação, que publicado em 1975 planejou as estratégias de desenvolvimento do setor até 1979.

O processo de redemocratização foi longo, começou em meados dos anos 1970 e se estendeu
até 1990, quando Fernando Collor de Melo, o primeiro Presidente da República eleito pelo voto direto
depois de mais de duas décadas de Ditadura, foi empossado. Tratou-se de um período marcado por
acalorados debates públicos, onde várias agendas estavam sendo disputadas pelos mais diversos
setores da sociedade brasileira. Como seria o ritmo da redemocratização? Quando as eleições diretas
seriam restabelecidas? Os militares voltariam, de fato, para a caserna? Os agentes públicos que
cometeram crimes em nome da segurança nacional seriam punidos? A nova constituição traduziria
os valores neoliberais em voga na época ou instituiria um pacto político baseado na ideia de bem-
estar social? Os chamados “novos movimentos sociais” seriam protagonistas no cenário que estava
sendo fundado ou seriam tutelados pelo Estado? Existiam condições políticas para a organização de
um governo popular, comandado pelo Partido dos Trabalhadores? Entender como os historiadores
profissionais se inseriram nessas discussões, como eles trataram esses temas, como essas disputas
configuraram a “topografia de seus interesses”, para falar como Michel de Certeau, é o objetivo
central da minha atual pesquisa, cujos primeiros resultados apresento neste artigo.

Estou partindo princípio, portanto, de que a historiografia profissional brasileira, tal como a
conhecemos hoje, tanto no que se refere à sua organização institucional como aos seus interesses
3
epistemológicos e políticos, nasceu no período da redemocratização, sendo o I Plano Nacional de
Pós-Graduação o seu marco de fundação. Acredito, então, que reconstruir esse cenário de fundação é
um passo imprescindível para os exercícios de autoavaliação que hoje, quando a autoridade
disciplinar do campo histórico é questionada no debate público, está na ordem do dia dos historiadores
profissionais brasileiros. Por que o tipo de historiografia que produzimos na universidade cada vez
mais interessa menos ao público não especializado? Será que o tipo de conhecimento histórico que a
experiência da redemocratização consolidou como “profissional”, com suas propostas de
engajamento político e epistemológico, ainda é capaz de cumprir o seu ideal de “função social”, tão
caro aos fundadores historiografia brasileira contemporânea?

A minha hipótese é que no seu berço, a historiografia brasileira contemporânea foi marcada,
tal como os outros campos disciplinares, por um rigoroso processo de institucionalização, que entre
outras coisas delimitou, à luz das formulações teóricas em voga na época, a hiperespecialização e o
empirismo como seus postulados teórico-metodológicos mais importantes. Essas formulações
teóricas inspiraram os historiadores na produção, prioritariamente, de estudos de caso, caracterizados
pelo rígido recorte cronológico e geográfico dos seus objetos de pesquisa, levando à interdição da
síntese, do estilo ensaístico, da diacronia de longa e média duração e da percepção de que a história
poderia ser uma “ciência social aplicada”, dificultando, assim, a mobilização do conhecimento
histórico para fins de engajamento político direto. Por outro lado, essa historiografia esteve
intensamente preocupada com o empoderamento dos chamados “novos sujeitos” (trabalhadores rurais
e urbanos), o que se desdobrou na rejeição aos paradigmas estruturalistas, acusados de eclipsarem a
atuação autônoma desses personagens. Essas tendências epistemológicas estavam se fortalecendo na
historiografia produzida no final dos anos 1970, mesmo que ainda não fossem completamente
hegemônicas. Ao longo da década de 1980, essa inflexão empírica e fenomenológica se consolidou
plenamente na agenda de trabalho dos historiadores profissionais, o que sugere um profundo
engajamento epistemológico com as pautas apresentadas pelas esquerdas internacionais pós-
stalinistas. O curioso, portanto, é que esse engajamento epistemológico tão intenso não foi
acompanhado por um engajamento político direto, na medida em que os historiadores profissionais
estiveram praticamente ausentes das instituições que no final dos anos 1970 mediaram o ativismo
político dos intelectuais, como, por exemplo, o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o
CEBRAP, fundado em 1969, e o CEDEC, Centro de Estudos de Cultura Contemporânea, fundado
em 1976. Essa tensão complementar entre um intenso engajamento epistemológico/temático e um
tímido engajamento político direto é o aspecto fundamental da análise das origens da historiografia
brasileira contemporânea que desenvolvo neste artigo.

4
Para organizar melhor a reflexão, divido o texto em três partes: primeiro, situo os esforços de
organização e fortalecimento da pós-graduação no projeto nacional-desenvolvimentista que
caracterizou o governo de Ernesto Geisel (1974-1979), o que convida ao diálogo com a renovação
interpretativa que caracteriza a atual produção historiográfica sobre a Ditadura Civil-Militar
brasileira. Em seguida, me debruço sobre o tema do engajamento político direto dos intelectuais nos
debates públicos da redemocratização, com o interesse de comparar o comportamento dos
historiadores profissionais com a postura adotada por outros estudiosos da sociedade, como
antropólogos, sociólogos, economistas, filósofos e cientistas políticos. Por último, problematizo
como no período em tela, a historiografia profissional ao mesmo tempo em que se acomodou às
diretrizes organizacionais estipuladas pelo Ministério da Educação do governo militar, definiu sua
identidade teórica no sentido de destacar o protagonismo político da sociedade civil e a agência dos
atores sociais subalternos, o que configura aquilo que considero ser um intenso engajamento
epistemológico/temático.

1.0 – O desenvolvimentismo do governo Geisel e a Publicação do I Plano Nacional de Pós-Graduação

Recentemente, a historiografia especializada na Ditadura Civil-Militar brasileira vem passando


por um importante movimento de renovação, que é atravessado por vigorosas polêmicas. Autores
como Carlos Fico, Daniel Aarão Reis, Renato Lemos e Rodrigo de Patto Sá Motta destacam as
continuidades entre a Ditadura Civil-Militar e a República popular que a antecedeu, assim como
lançam luz sobre as brechas de negociação e moderação abertas pelo próprio regime. No que se refere
especificamente às universidades, Rodrigo Motta afirma que

As universidades configuram espaço privilegiado para perceber as ambiguidades do regime


militar, bem como suas estratégias para aplacar os descontentes e seduzir as elites intelectuais.
Observando as políticas estatais para o ensino superior, notamos, em certas circunstâncias, que
a repressão foi temperada com estratégias de moderação. Para além da violência política, que
não pode ser minimizada, as relações da Ditadura com os meios acadêmicos foram permeadas
também por jogos de acomodação que transbordam a tipologia binária resistência X colaboração
(MOTTA, 2014, p. 55).

Como podemos perceber, o autor está sugerindo que as universidades não foram apenas
espaços de resistência, mas também de acomodação e até de colaboração tácita, uma vez que o regime
conseguiu cooptar importes quadros acadêmicos com medidas como a Reforma Universitária de
19684 e com a publicação do I Plano Nacional de Pós-Graduação, em 1975. A historiografia

4
Segundo Rodrigo de Patto Sá Motta, a Ditadura Civil-Militar se apropriou do projeto da Reforma Universitária, que era
uma demanda da esquerda no período anterior ao golpe de 1964. Ente outras coisas, esse projeto defendia o
estabelecimento da autonomia administrativa e intelectual para as universidades e a formulação de um plano de carreira
atrativo para os professores. O autor afirma que a Reforma Universitária que o regime implantou efetivamente em 1968
teve o objetivo de atenuar a crise estudantil e desmobilizar a resistência de professores e alunos. Nas palavras de Rodrigo
Motta, “A reforma resultou de uma decisão política do comando militar, imposta a uma comunidade acadêmica que, em
muitos casos, reagiu com perplexidade. Claro, os traços esquerdistas das demandas reformistas do contexto pré-64 foram
desconsiderados, mas alguns pleitos dos acadêmicos foram atendidos. O objetivo era conectar as universidades aos trilhos
5
universitária foi diretamente impactada pelas diretrizes e normas estabelecidas pelo IPNPG, o que
resultou, entre outras coisas, na burocratização do campo, com o estabelecimento de avaliações
externas e padronização de procedimentos5. O mesmo aconteceu com outros campos disciplinares,
tais como a sociologia, a ciência política, a economia e a antropologia. Nesta seção, meu objetivo é
examinar os esforços institucionais do governo Geisel no sentido da consolidação da pesquisa pós-
graduada no Brasil, chamando atenção, é claro, para os impactos dessas transformações no campo da
historiografia profissional.

1.1 – O nacional-desenvolvimentismo militar

O golpe civil-militar de abril de 1964 já foi amplamente abordado, tanto pelos estudos
desenvolvidos por historiadores e cientistas políticos como por crônicas e por relatos memorialísticos.
Em termos gerais, o tom interpretativo dos estudos especializados foi dado pelo livro “A Conquista
do Estado”, escrito pelo cientista político uruguaio René Dreifuss e publicado pela primeira vez em
1980. O estudo de Dreifuss mostra, através de um sólido trabalho de pesquisa empírica, como a
intervenção golpista foi o resultado de uma complexa conspiração que envolveu tanto lideranças
militares como lideranças civis, que organizadas no complexo IPES/IBAD6 desestabilizaram o
governo de João Goular, em uma ação que não deve ser interpretada como um simples golpe militar,
mas sim como um “movimento civil-militar, [pois] a rede política do complexo IPES/IBAD, assim
como oficiais pertencentes a outros grupos que foram ativamente aliciados, operava em sistema de
intensa cooperação com civis” (DREIFUSS, 1980, p. 362).

Segundo Daniel Aarão Reis, a Ditadura Civil-Militar “instaurou-se contra um determinado


programa – nacionalista e popular”, o que representou uma clara ruptura com a experiência política
anterior. Isso não significa, ainda segundo as considerações do autor, que permanências não possam
ser identificadas no exercício de comparação entre o regime instituído pelo golpe de 1964 e a
República popular que governava o Brasil desde 1946. Para Aarão Reis, portanto, “o que importa é
questionar o caráter excepcional da Ditadura, discutir se não há aspectos comuns entre os governos
pré-Ditadura e ditatoriais ou, ainda, como compreender melhor a inserção da Ditadura numa história

do projeto desenvolvimentista autoritário, mas a motivação política de desmobilizar o radicalismo estudantil e seduzir os
intelectuais foi fundamental” (p. 36).
5
Segundo Hostins (2006), uma das consequências do I Plano Nacional de Pós-Graduação foi a criação de mecanismos de
avaliação, o que foi feito pela CAPES já em 1976, que implemento um sistema de avaliação por pares. A primeira
avaliação foi realizada em 1978.
6
Segundo René Dreifuss, o Instituto Brasileiro da Ação Democrática (IBAD), foi criado em 1959 que sob a orientação
da CIA tinha o objetivo de desestabilizar os governos trabalhistas na arena da política formal. Já o Instituto de Pesquisa
e Estudos Sociais (IPES) foi no início de 1962 que tinha o objetivo de desenvolver pesquisas sociais que apontassem para
a incapacidade do nacional desenvolvimentismo trabalhista de promover o desenvolvimento do Brasil. O IPES foi
fundado, especificamente, para desestabilizar o governo de João Goulart.

6
mais ampla” (REIS, 2014. pp. 13-14). As políticas públicas planejadas e efetivadas para a
consolidação e ampliação da pós-graduação demonstram claramente como a ideia de que a Ditadura
Civil-Militar rompeu completamente com o desenvolvimentismo que caracterizou a República
Popular precisa ser matizada.

Alkimar Moura destaca as estratégias mobilizadas pelo governo Geisel para enfrentar os
primeiros efeitos do choque internacional do petróleo, que “manifestam uma forte preferência pela
substituição de importações e uma resistência à opção de reduzir o crescimento” (MOURA, 1990, p.
39). Para o autor, o II Plano Nacional de Desenvolvimento, publicado em 1975 e formulado para
delinear estratégias para o desenvolvimento nacional até 1979, representou o apogeu da história do
nacional-desenvolvimentismo brasileiro7, uma vez que

baseava-se fundamentalmente em um programa ambicioso de substituição de produtos


importados nos setores de matérias-primas básicas de bens de capital. Foram realizados
investimentos substanciais na produção interna de metais não ferrosos, ferro e aço, papel e
celulose, produtos petroquímicos e álcool carburante. O próprio Governo federal investiu
pesadamente na geração de eletricidade e desenvolvimento de sistemas de transporte e
comunicações, além de conceder incentivos fiscais, creditícios do setor privado e das empresas
estatais (MOURA, 1990, p. 32)8.

O nacional-desenvolvimentismo posto em prática por Geisel não ficou restrito ao plano das
macroestruturas econômicas, pois tomou como uma de suas prioridades, nas palavras de Thomas
Skidmore, “a promoção de uma distribuição de renda mais justa, o que requeria um alto crescimento
contínuo, para que ninguém perdesse em termos absolutos” (SKIDMORE, 1988, p. 31). A
sobrevivência e o fortalecimento do nacional-desenvolvimentismo podem ser observados, também,
no plano da política externa, como destaca Daniel Aarão Reis, para quem, sobretudo no governo
Geisel, foi recuperada, “por meio do pragmatismo responsável, a chamada política externa
independente, de tradição estadonovista e muito presente nos anos anteriores ao golpe” (REIS, 2014.
p. 25). O mais importante para a reflexão que estou desenvolvendo neste texto é que a consolidação
e ampliação da pós-graduação aconteceu nos quadros desse nacional-desenvolvimentismo, que,
segundo as considerações de Ricardo Bielschowsky, se fundamentava na ideia de que “o Estado
deveria exercer liderança estratégica para a promoção do desenvolvimento econômico, científico e
tecnológico” (BIELSCHOWSLY, 2000, p. 58).

7
Segundo Ricardo Bielchowski, o nacional-desenvolvimentismo deita suas raízes nos ano 1930, quando “a crise
econômica internacional, suas repercussões internas e a centralização política nacional posterior à Revolução de 1930
estão entre os principais fatores explicativos do surgimento dessa ideologia econômica, caracterizada pela definição do
Estado como o responsável direto pela promoção do desenvolvimento social, econômico e tecnológico”
(BIELCHOWSKI, 2000, p. 78).
8
A política econômica desenvolvida no governo Geisel foi objeto do rigoroso estudo de José Pedro Macarini, para quem
o I PND, publicado ainda no governo do General Médice foi mais um elemento de retórica política do que um guia efetivo
para as ações do Estado, o que somente aconteceria com o II PND. Nesse sentido, o governo de Ernesto Geisel, mais do
que qualquer outro, segundo Macarini, faz jus ao adjetivo “nacional-desenvolvimentista”.

7
1.2- A idealização e a publicação do I Plano Nacional de Pós-Graduação
Seria um equívoco afirmar que a política científica e tecnológica brasileira nasceu em 1975,
na ocasião da publicação do I Plano Nacional de Pós-Graduação. Na verdade, desde a década de 1950,
também à luz das ideias desenvolvimentistas, o Estado brasileiro já vinha investindo no setor9. Foi
nesse período, especificamente em 1951, quando o poder público se empenhava em modernizar a
estrutura produtiva brasileira, que foram criados a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de
Nível Superior (CAPES) e o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
(CNPq), que desde então constituem a base institucional para o desenvolvimento cientifico e
tecnológico brasileiro. A CAPES nasceu com a função de expandir e consolidar a pós-graduação
stricto sensu no país e o CNPq tinha a finalidade de promover e estimular o desenvolvimento da
investigação científica e tecnológica nos diversos domínios do conhecimento. Tudo isso estava sendo
pensado e planejado, como destaca Fernando Dantas, “em função das demandas dos setores
considerados estratégicos para a modernização da infraestrutura produtiva” (DANTAS, 2004, p. 163),
o que desde cedo impôs algumas dificuldades para as Ciências Sociais em geral, e especialmente para
a historiografia, que não era considerada uma área estratégica nem pela Fundação Ford, uma das mais
importantes instituições de fomento à pesquisa em ação no Brasil no período10.

Para Elizabeth Balbachevsky, contudo, para além desse nacionalismo estratégico, a Ditadura
Civil-Militar era movida por outros interesses nos seus esforços de consolidação da pós-graduação
nas universidades brasileiras.

A iniciativa do regime militar de implantação da pós-graduação brasileira reflete não só uma


percepção das potencialidades estratégicas desta alternativa avançada de formação, como,
também, uma alternativa doméstica e barata de qualificação dos professores das universidades
federais que, naquele momento, experimentavam forte expansão, assim como a cooptação de
lideranças acadêmicas com a promessa de melhores salários (BALBACHEVSKY, 2005, p. 47).

Uma breve análise do texto do I Plano Nacional de Pós-Graduação demonstra como os


pragmatismos estratégico-desenvolvimentista e político orientavam as iniciativas do poder público
para o setor. As funções do IPNPG eram fazer o diagnóstico do ensino pós-graduado brasileiro,
mensurar suas potencialidades tanto no ensino como na pesquisa e propor diretrizes e metas para o

9
Sobre a atuação da CAPES no fomento à pesquisa científica e sobre seus vínculos com a ditadura militar, remeto ao
leitor à dissertação de Caio Fernandes, defendida na Universidade Federal da Bahia em 2013.
10
Sérgio Miceli destaca a importância da Fundação Ford como agência de fomento à pesquisa no Brasil, na grande área
das ciências sociais, durante o período contemplado pela pesquisa que proponho neste projeto. Nas palavras do autor, “a
Fundação Ford teve importantíssimo papel na criação de uma comunidade acadêmica nas ciências sociais brasileiras.
Uma visão de longo prazo sempre prosperou em relação aos financiamentos, focando-se em instituições universitárias e
de pesquisa, capazes de formar profissionais úteis aos desafios do desenvolvimento” (MICELE, 1998, p. 58). Os estudos
históricos não foram vistos como prioritários pela Fundação Ford. Alguns dos autores cujos textos servirão como fontes
primárias na pesquisa que proponho neste projeto tiveram seus estudos pós-graduados financiados pela Fundação Ford.
Ver MICELI, Sérgio. A Aposta numa Comunidade Científica Emergente: a Fundação Ford e os cientistas sociais no
Brasil (1962-1992). São Paulo: Ed. FAPESP, 1998. p. 58.

8
sistema de pós-graduação até o ano de 1979. Nos termos do próprio documento, o objetivo máximo
do IPNPG era:

Transformar as universidades em verdadeiros centros de atividades criativas permanentes, o que


será alcançado na medida em que o sistema de pós-graduação exerça eficientemente suas funções
formativas e pratique um trabalho constante de investigação e análise em todos os campos e
temas do conhecimento humano e da cultura brasileira (I PNPG, 1975, p. 125)

Do ponto de vista estratégico e operacional, o IPNPG precisa ser situado nas diretrizes
estabelecidas no II Plano Nacional de Desenvolvimento, do qual falei há pouco. Seu objetivo era
fazer “evoluir o sistema universitário brasileiro para uma nova etapa, na qual as atividades de pós-
graduação tenham uma importância estratégica crescente” (IPNPG, 1975, p. 13). Havia, portanto, a
preocupação em consolidar o sistema de pós-graduação brasileiro, que mesmo datando dos anos 1950
ainda não estava, segundo a avaliação dos idealizadores do I PNPG, satisfatoriamente estruturado. O
documento é constituído por 57 páginas, estando dividido em quatro capítulos, sendo o texto final
assinado por Ney Braga, então Ministro da Educação e Cultura11.

A introdução do plano apresenta um vasto panorama da evolução do sistema de pós-graduação


brasileiro desde a sua fundação. O segundo capítulo, cujo título é “Análise da Evolução da Pós-
Graduação no Brasil”, está dividido em três partes, que descrevem as principais características das
atividades desenvolvidas, além de apresentar um diagnóstico a respeito dos principais problemas que
comprometiam a eficiência do setor. A primeira parte do segundo capítulo é a que mais me interessa
neste momento, pois temos aí uma série de informações relativa à universidade, cursos, áreas de
concentração, vagas preenchidas, número de professores e titulação docente. Ainda que o próprio
IPNPG admita que esse levantamento estatístico apresente falhas, os dados são fundamentais para

11
O Conselho Nacional de Pós-Graduação responsável pela primeira edição do documento foi presidido pelo próprio
Ministro Braga, tendo como Vice-Presidente João Paulo dos Reis Velloso, Ministro chefe da Secretaria de Planejamento
da Presidência da República. Integravam ainda o conselho, o Secretário- Geral do Ministério da Educação e Cultura, Euro
Brandão, o Presidente do Conselho Federal de Educação José Vieira de Vasconcellos, o Diretor do Departamento de
Assuntos Universitários Edson Machado de Souza, como secretário executivo, o diretor da Coordenação do
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior –MEC, Darcy Closs, o presidente do Conselho Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico, José Dion de Mello Teles, o secretário executivo do Fundo Nacional de
Desenvolvimento Científico e Tecnológico, José Pelúcia Ferreira, o presidente do Banco Nacional do Desenvolvimento
Econômico, Marcos Pereira Vianna, o reitor da Fundação Universidade de Brasília, Amadeu Cury, o reitor da
Universidade Federal de Minas Gerais, Eduardo Osório Cisalpino, o reitor da Universidade Federal de Pernambuco,
Marcionilio de Barros Lins, o reitor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Pe. Pedra Belisário Velloso
Rebello S. J., além do reitor da Universidade de São Paulo, Orlando Marques de Paiva. Já o grupo técnico responsável
pelo I PNPG era coordenado por Edson Machado de Souza, diretor geral do Departamento de Assuntos Universitários
(DAU) do MEC, sendo o conselho consultivo especial formado por seis integrantes, tendo ainda o paraibano Lynaldo
Cavalcanti de Albuquerque – considerado uma referência no setor de ciência, tecnologia e inovação do país – como diretor
Adjunto do DAU/MEC, o catarinense Amílcar Ferrari, do Departamento de Cooperação Técnica e Científica (FUNTEC)
pertencente ao então Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE), Luiz Fernando Salgado Candiota, da
FINEP/FNDCT, Lindolpho de Carvalho Dias, do CNPq e Darcy Closs, da CAPES/MEC. O texto do I PNPG foi escrito
por Álvaro Braga de Abreu e Silva, da UFES/DAU, Arsênio Oswaldo Sevá Filho da UFRJ/DAU, Márcio Quintão Moreno
da UFMG/DAU e Klinger Marcos Barvosa Alves, da UFES.

9
que tenhamos uma ideia da situação da pesquisa historiográfica universitária brasileira na época de
sua institucionalização a nível de pós-graduação.

1.3- A historiografia universitária brasileira nos tempos da institucionalização da pós-graduação


Em 1975, 1.740 professores trabalhavam nos 117 cursos de graduação em história existentes
no país, que atendiam a 14.500 alunos matriculados. Segundo o IPNPG, para que as metas de
expansão dos cursos de graduação no período 1975-1979 fossem atingidas seria a necessária a
formação de mais 1250 professores, o que representaria um crescimento de 71%. Era, justamente, por
conta dessa meta ambiciosa que a pós-graduação em história, entendida como o espaço de
qualificação para professores universitários, era vista como estratégica. Na época, não existiam cursos
de doutorado no Brasil e estavam disponíveis apenas 255 vagas para os cursos de mestrado,
distribuídas de maneira profundamente desigual no território nacional, já que 90% dessas vagas
estavam localizadas nas regiões sul e sudeste. Podemos perceber, portanto, que na esteira dos
investimentos na consolidação do ensino superior e da formação pós-graduada no Brasil, havia o
interesse do poder público em aumentar o tamanho da comunidade historiográfica nacional.

Nos anos 1970, historiografia brasileira já era uma senhora com mais de 130 anos, se formos
tomar a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, em 1838, como um marco de origem.
No entanto, de acordo com as considerações de José Roberto do Amaral Lapa, foi apenas a partir da
década de 1960 que aconteceu o desenvolvimento de uma “infraestrutura organizatória [e que] os
anos 1970 vão assinalar, como em nenhum outro momento de nossa história, um esforço sistemático
e centralizado de envergadura, na produção e reprodução do conhecimento histórico, que aliás
acompanhou o sucedido em outras áreas científicas” (LAPA, 1985, p. 37). Esses esforços
coordenados pelo poder público reverberaram na comunidade dos historiadores profissionais, o que
pode ser percebido pela organização de diversas entidades corporativas, como a ANPUH, criada em
1961 e reformulada no início da década de 1980, quando já se faziam sentir os primeiros efeitos da
expansão dos cursos de pós-graduação. É digno de nota também a grande quantidade de eventos
temáticos que passam a constituir o calendário anual dos historiadores profissionais brasileiros12.

12
Podemos citar como exemplos, os congressos e simpósios que foram realizados em grande quantidade a partir do final
dos anos 1970: a “Semana Nacional de História”, que começou a ser realizada em 1979, no Instituto de História e Serviço
Social de Franca, UNESP; o I Simpósio Nacional da História Antiga, realizado em João Pessoa, de 22 a 25 de agosto de
1983, que deu origem à Associação de Professores de História Antiga e Medieval; a I Semana Nacional de História da
América, realizada também na Paraíba, em 28 de maio a 1° de junho de 1984, que deu origem à Associação de Professores
de História da América (APHA). Em Brasília, em 1983, aconteceu o I Encontro de Estudos do século XVIII, tendo como
consequência a fundação da sociedade brasileira de Estudos do século XVIII, enquanto que em 1982 fora constituída a
Seção Brasileira da ADHILAC – Asociación de Historiadores Latinoamericanos y del Caribe.

10
Já em 1976, quando a CAPES começava a organizar os mecanismos de avaliação de área,
foram publicadas as diretrizes específicas para vários campos disciplinares. O documento “A Análise
da área de Pós-Graduação em História” é uma importante fonte para a compreensão das expectativas
que o Ministério da Educação e Cultura tinha para a historiografia profissional. Segundo o
documento, seria função do ensino pós-graduado em história “a capacitação de professores para
atuação nos níveis básicos e superior de ensino e o desenvolvimento de pesquisas que lançassem luz
sobre as especificidades da história e da cultura brasileira e da contribuição do Brasil para o conserto
geral das nações na história ocidental moderna” (MEC, 1976, p. 03). Como podemos perceber, o
programa governamental orienta a produção de uma historiografia de teor nacionalista, preocupada
em compreender as singularidades da formação nacional brasileira e comprometida com o conceito
eurocêntrico de “História Geral Ocidental”.

Em que medida os estudos historiográficos efetivamente desenvolvidos atenderam a essas


expectativas é o problema que examino na terceira seção deste artigo, através da análise dos trabalhos
publicados nos anais das ANPUHs realizadas em 1974, 1976, 1977 e 1979 e das dissertações de
mestrado e artigos produzidos no período aqui examinado. Alguns estudos apresentam um
levantamento preliminar desse material, como aqueles que foram desenvolvidos por José Roberto do
Amaral Lapa e por Diva Muniz e Eric Salles, que trataram do caso específico do Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade de Brasília, um dos primeiros a serem criados sob as
diretrizes do I PNPG. Amaral Lapa, Diva Muniz e Eric Salles apontam a predominância dos estudos
dedicados à “História Política Brasileira”, o que sugeriria a real efetivação das orientações
estabelecidas no documento publicado em 1976. Será mesmo?

2.0 – O engajamento político direto dos intelectuais nas grandes agendas da redemocratização

O problema do engajamento político direto dos intelectuais nas agendas públicas abertas pela
redemocratização já foi objeto de diversos estudos, que apresentam discordâncias interpretativas entre
si. Uma das principais referências para essa discussão é o livro “Os intelectuais e a política no Brasil”,
do cientista político francês Daniel Pécaut. Tendo como fio condutor da sua reflexão o problema do
engajamento dos intelectuais nas discussões públicas, Pécaut demonstra como entre os anos 1920 e a
década de 1980, os intelectuais brasileiros se envolveram nos grandes debates nacionais de diversas
formas, que foram se transformando à luz das circunstâncias. Para o período que estou examinando
neste texto, o autor afirma que, a despeito do regime militar ter sido instaurado em 1964, a repressão
atingiu diretamente a comunidade intelectual somente no último trimestre de 1968, quando “a censura
torna-se implacável e as sanções, terríveis. A imprensa, as editoras e a criação artística são submetidas
a um rolo compressor” (PÉCAUT, 1989, p. 289). Pécaut destaca, especificamente, o caso da extinção

11
da “Revista Civilização” e a perseguição a alguns professores universitários, como Florestan
Fernandes (1920-1995), Octavio Ianni (1926-2004) e Fernando Henrique Cardoso (1931).

Segundo Pécaut, a situação da comunidade intelectual se transforma sensivelmente após


meados da década de 1970, como resultado dos primeiros movimentos de relaxamento da repressão,
o que envolveu, como já sabemos, os esforços do regime ditatorial de cooptar os intelectuais com
reformas na estrutura universitária. Na sua análise, Daniel Pécaut destaca não somente a maior
liberdade de trabalho, mas também o aprofundamento da profissionalização dos intelectuais.
A referência à “profissionalização” assume uma importância crescente nas ciências sociais no
decorrer do período 70-80. A generalização dos cursos de mestrado e doutorado: a renúncia, pelo
menos declarada, a erigir as ciências sociais em “ideologia” da nação, à maneira isebiana, ou em
formulação de um “projeto nacional”; e a reapropriação do privilégio da produção teórica pelos
“especialista” universitários em detrimento dos militantes políticos, arrematam uma evolução
realizada desde 1964 (PÉCAUT, 1989, p. 168).

Pécaut considera uma “evolução” a consolidação da pesquisa científica universitária, que teria
redirecionado o rumo da história das ciências sociais no Brasil, até então, segundo o autor, marcada
pelo projeto de modernizar a nação a partir do autoritarismo do Estado. Esse mesmo assunto é tratado
também pelo cientista político Gildo Marçal Brandão, autor de um importante estudo sobre as
linhagens do pensamento político brasileiro. A exemplo de como faz Pécaut, Brandão também
considera os anos 1970 um momento fundamental para a história da intelectualidade brasileira, pois
foi nesse momento que se tornou
evidente que a associação “necessária” entre industrialização e democracia não passava de
“equação otimista”, a investigação sobre a natureza do Estado impõe-se, o exame das bases
conceituais do autoritarismo – formuladas em grande estilo no início da Era Vargas – vem para
primeiro plano, e a universidade vai deixando de sofrer a competição de agências produtoras de
ideias como as instituições e os partidos programáticos da velha esquerda (BRANDÃO, 2005,
p. 234).

No entanto, diferente de Daniel Pécaut, Gildo Brandão não interpreta a consolidação da


intelectualidade acadêmica, o que aconteceu através da expansão dos programas de pós-graduação na
grande área das ciências sociais e humanas, como uma evolução. Para o autor, a intelectualidade
acadêmica, “desejosa de estabelecer para si mesmo um lugar hegemônico na memória do pensamento
social brasileiro, relegou para um plano inferior a tradição ensaística”, o que somente seria revisado
na década de 1990, quando “a comunidade acadêmica [já amadurecida], consciente de sua própria
força pode, enfim, confessar suas dívidas intelectuais para com os ensaístas” (BRANDÃO, 2005, p.
234).
Já o sociólogo Milton Lahuerta aborda a cena intelectual brasileira nas décadas de 1970 e
1980 menos na esfera da universidade e mais a partir da atuação dos intelectuais em instituições como
o CEBRAP, o jornal alternativo “Opinião”, o MDB (Movimento Democrático Brasileiro), partido de
oposição institucional à Ditadura, a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e o

12
CEDEC, o que deu origem a uma nova oposição à Ditadura, que ao mesmo tempo criticava, também,
o populismo dos anos 1950 e 1960. Tal processo teria resultado no surgimento do “partido intelectual”
ou “da inteligência”, termo também utilizado por Daniel Pécaut. A formação desse partido intelectual
deu origem a uma situação
na qual os especialistas saem de seus afazeres e são impelidos a se defrontarem com problemas
políticos e/ou gerais. Os pressupostos intelectuais estavam mudando na sociedade brasileira.
Com o declínio da cultura política populista decaía também a posição de força dos intelectuais,
autoposicionados como o Estado diante da sociedade, de cima para baixo (LAHUERTA, 2001,
p. 20).

Lahuerta argumenta, portanto, que a ditadura alterou o “cotidiano das pessoas, inclusive dos
intelectuais, quebrando expectativas de vida”, o que levou esses letrados a desenvolverem “estratégias
de racionalidade limitada”, termo que também podemos encontrar nos estudos de Daniel Pécaut.
Assim, nos anos da abertura, foi inaugurada uma nova relação entre os intelectuais e a sociedade
de modo a ser fornecido um “mandato público” aos intelectuais, reativando os laços entre ciência
e política, mas de maneira diferente do vigente no pré-64. Assim, os intelectuais lutavam ao
mesmo tempo pela democracia e por condições adequadas à produção científica. Essa
institucionalidade acadêmica dominante teria estimulado o surgimento de abordagens
sociológicas privilegiadoras da análise das diversas instituições da sociedade civil. Por outro
lado, pode-se pensar que tal “mandato público” reforçaria a tendência de valorização dos
movimentos sociais da sociedade civil (LAHUERTA, 2001, p. 25).

Também Daniel Pécaut destaca o esforço dos intelectuais em se aproximarem da sociedade


civil no período da redemocratização. Ele destaca a junção de pesquisa acadêmica e política no
CEBRAP e no CEDEC, principalmente sob a forma de consultorias aos “novos movimentos sociais”,
que floresciam na época. O autor chama atenção também para a expressividade do marxismo
universitário junto à oposição e ao público letrado, a atuação política e profissional de entidades como
a Sociedade Brasileira de Pesquisa Científica, a SBPC, as diversas dualidades (PT x PMDB, basismo
x institucionalismo), a difusão da contracultura e da psicanálise, inclusive em contraposição à
massificação cultural. Como já comentei há pouco, uma das noções mais importantes mobilizadas
por Pécaut é a ideia de “partido intelectual”, “que reúne de fato uma faixa considerável das camadas
cultas, é portador de crenças comuns, define estratégias conjunturais, tem seus líderes e adquire um
caráter semi-organizado (...) o intelectual se reconhece agora como um ser de carne e osso, não sendo
tanto um ator que se coloca acima da sociedade” (PÉCAUT, 1989, p. 246). Por consequência,
jamais os intelectuais haviam manifestado, em tamanha proporção, o seu engajamento político
por meio da adesão a partidos políticos. E muitas vezes, as divisões do meio intelectual [se
davam] em função das preferências partidárias. Estava claro, portanto, que havia um sinal da
mudança na condição dos intelectuais e nas suas atitudes com respeito à esfera pública
(PÉCAUT, 1989, p. 260).

Pécaut está chamando a atenção para o fato de que no período sobre o qual estou me
debruçando surgem diversos polos de pesquisa que passam a atuar em termos acadêmicos e políticos
de modo muito significativo, com real capacidade de interferência naquilo que no início deste texto
13
chamei de “grandes agendas da redemocratização”. É o caso dos já citados CEBRAP e CEDEC, de
1977, do IDESP (Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo), de 1979, do
IUPERJ (de perfil mais puramente acadêmico, especializado em ciência política), de 1969, da Pós-
Graduação em Antropologia do Museu Nacional (no Rio de Janeiro, a primeira do país), de 1968, da
Pós-Graduação em Ciência Política da UFMG (a primeira do Brasil, de 1966), entre outros. Esses
polos de pesquisa receberam financiamentos de origens diversas, tanto públicos, como a Financiadora
de Estudos e Projetos, a FINEP, como privados, como a Fundação Ford, a Comissão de Justiça e Paz
da Igreja Católica e o Conselho das Igrejas Cristãs.
O que estou chamando neste texto de “engajamento político direto”, portanto, nada mais é do
que a atuação dos intelectuais brasileiros nessas instituições que Pécaut e Lahuerta conceituaram
como “Partido Intelectual”. Em relação a esse tipo de engajamento, estou muito seguro em afirmar
que os historiadores profissionais foram tímidos, pois, com raras exceções foram protagonistas nos
quadros dessas instituições, pelo menos no período aqui examinado. Sei bem que o engajamento
político pode acontecer à revelia das instituições, como mostra o movimento negro, que contou com
a participação de vários historiadores nas mais diversas regiões do Brasil ao longo dos anos 1980 e
1990. Esse tipo de engajamento também será problematizado na pesquisa que estou desenvolvendo,
sendo os resultados dessas reflexões oportunamente publicados. Por ora, neste texto, para o final da
década de 1970, estou operando com uma concepção bem circunscrita de “engajamento político
direto”, que se refere especificamente à atuação dos intelectuais nas instituições que na época, pelos
seus vínculos com os partidos políticos e com importantes lideranças políticas, foram influentes nos
rumos da transição da Ditadura Civil-Militar para a Nova República.
É importante deixar claro também que o conceito “Partido Intelectual” não é consensual na
bibliografia que tematizou a relação entre os intelectuais e a sociedade no período da
redemocratização. Bernardo Sorj, por exemplo, critica o conceito que é tão importante nas análises
desenvolvidas por Pecáut e Lahuerta. Segundo Sorj,
Embora desenvolvendo posições críticas e a defesa de valores como justiça social e democracia,
as análises dos membros do CEBRAP não procuram justificar estratégias partidárias específicas
ou confundir-se com grupos ou classes sociais, afirmando a especificidade do conhecimento
científico não subordinado a nenhuma doutrina ideológica ou linha partidária. (...) Ao não
assumir a postura de ‘procurador’ ou porta-voz da classe operária, do povo ou da nação, o
CEBRAP distancia-se claramente tanto da tradição leninista como isebiana, refletindo uma
postura mais ‘moderna’, na qual cada classe, grupo ou movimento social teria uma capacidade
própria de representação. Assim, num contexto em que amplos setores da intelectualidade
estavam engajados na resistência ao regime militar e na defesa de valores democráticos e de
justiça social, o CEBRAP não pretendeu em momento algum se transformar em centro
formulador de doutrinas ou ideologias, sendo seu impacto político dado pela capacidade de
oferecer sólidas análises do contexto social e político do país. (SORJ, 2011, p. 28).

Para Sorj, portanto, a cena intelectual brasileira nos anos 1970 apresentava mais rupturas do
que continuidades com a cena intelectual nos anos 1950 e 1960, principalmente naquilo que se refere
às relações entre os intelectuais e a sociedade civil. Sendo assim, o autor, se referindo especialmente
14
ao CEBRAP, questiona o real interesse dos intelectuais ali reunidos em “formular doutrinas e
ideologias” para interferir no arranjo político-institucional que então nascia. Apesar da crítica, Sorj
não nega a capacidade do CEBRAP de influenciar nos rumos da redemocratização, afirmando que
essa influência se dava pelas análises de conjuntura que os cebrapianos desenvolviam e acabavam
sendo mobilizadas pelas lideranças políticas, e não exatamente por uma convicção doutrinária e
ideológica. Nesse sentido, até mesmo a crítica de Sorj não nega aquilo que me parece ser uma das
principais características da redemocratização brasileira: nas palavras de Marco Antônio Perruso,
outro estudioso do assunto, “a auto representação dos intelectuais como atores vocacionados para a
intervenção social e política, o que aconteceu tanto na reorientação temática, que foi marcada por
uma inflexão empírica comprometida com a visão de mundo dos de baixo, dos subalternos, como na
aproximação direta com o novo sindicalismo, através de instituições como o CEBRAP e o CEDEC”
(PERRUSO, 2008, p. 73). No período que estou examinando neste artigo, a historiografia começou
a dar seus primeiros passos no sentido de um engajamento epistemológico, pautado pela “inflexão
temática e empírica” da qual fala Perruso. No entanto, o mesmo não aconteceu com o engajamento
político direto, com a atuação nos quadros do “Partido Intelectual”. Por que? Antes de examinar
especificamente o problema do engajamento político e epistemológico dos historiadores
profissionais, dedico alguma atenção à atuação dos outros estudiosos da sociedade, como cientistas
políticos, antropólogos, economistas, filósofos e sociólogos, que no final dos anos 1970 combinaram
o engajamento epistemológico com o engajamento político direto.
Seguindo a trilha de análise aberta por Lahuerta e Pécaut, trato agora da atuação dos estudiosos
da sociedade, membros dos mais diversos campos disciplinares que na época estavam tendo o seu
funcionamento regulado pelas diretrizes do IPNPG, na dinâmica interna do “Partido Intelectual”, que
tendo vínculos estreitos com os principais partidos políticos do sistema partidário brasileiro da
época13, buscava se afastar da herança dos chamados “estudos sociais populistas”, desenvolvidos,
especialmente, no Instituto Superior de Estudos Brasileiros, o ISEB14.

13
Segundo Marco Antônio Perruso, as instituições que na conjuntura da redemocratização mediaram o ativismo político
dos intelectuais possuíam vínculos estreitos com os principais partidos políticos da época. O CEBRAP, por exemplo,
tinha fortes vínculos com o PMDB, principalmente depois que Fernando Henrique Cardoso se tornou um político
profissional, sendo, portanto, a “ponte de ligação entre os intelectuais cebrapeanos e o pmdbismo” (PERRUSO, 2009, p.
54). Já o CEDEC foi criado em 1979 motivado, exatamente, por essa associação entre o CEBRAP e o PMDB, sendo uma
espécie de reação de alguns intelectuais à fisiologia cebrapeana. Esses intelectuais, nas palavras de Perruso, “cerraram
fileiras contra a intelectualidade brasileira que não se colocasse claramente, no interior do campo oposicionista à ditadura,
do lado dos movimentos sociais” (Idem, p. 134). Foi do CEDEC que saiu a maior parte dos intelectuais que, em fevereiro
de 1980, se envolveram diretamente na fundação do Partido dos Trabalhadores.
14
O ISEB foi fundado em 1953, reunindo intelectuais que antes integravam o grupo de Itatiaia. Formalizado em julho de
1955, por um decreto do governo interino de Café Filho, o ISEB alcançou grande nos meios intelectuais que se tornou
símbolo da síntese nacional-desenvolvimentista, antes de se tornar símbolo da síntese nacional-populista e, depois, da
síntese nacional-marxista. Para Daniel Pécaut, “a fundação deste instituto foi o coroamento de várias iniciativas por parte
de intelectuais desejosos de contribuir para a definição de um projeto coerente de desenvolvimento econômico, político
e social”. (PÉCAUT; 1990. p. 107). Nos anos 1970, o ISEB foi objeto de vigorosas críticas da sociologia universitária
uspiana, que foram sistematizados no livro “ISEB: Fábrica de ideologias”, de Caio Navarro Toledo, publicado pela
15
2.1- James Pinsky, Kazumi Munakata: as exceções que confirmam a regra15

Naquilo que se refere ao CEBRAP, destaco os “mesões” realizados entre 1975 e 1976, cujas
atas foram publicadas na íntegra no jornal “Opinião”. Os “mesões” eram reuniões periódicas que
aconteceram entre 1971 e 1976 e que, na interpretação de Bernardo Sorj, “desnudam a dinâmica
intelectual cebrapeana” (SORJ, 2001, p. 83). Os “mesões” reuniram sociólogos, cientistas políticos,
antropólogos, economistas e filósofos da UFRJ, do IUPERJ, da UFMG, da UNICAMP, da FGV, da
USP entre outras instituições universitárias, e mesmo tecnocratas. Os “mesões” eram uma espécie de
ritual intelectual obrigatório tanto do confronto à Ditadura como na crítica ao chamado “pensamento
populista”. O único historiador de ofício, vinculado a um departamento universitário de história, cuja
presença nessas reuniões é relatada nas atas publicadas é James Pinsky, que parece ser uma exceção
naquilo que se refere à timidez do engajamento político direto dos historiadores profissionais nas
agendas da redemocratização. Pinsky estava lá, nos quadros do CEBRAP, participando dos mesões,
que deram origem a importantes livros publicados na época, tais como “O Regime Político
Brasileiro”, de Fernando Henrique Cardoso, e “Além da Estagnação”, de José Serra e Maria da
Conceição Tavares. Os intelectuais reunidos nos mesões, e aqui outros nomes podem ser citados,
como o filósofo José Arthur Gianotti e o cientista político Francisco Weffort, estavam preocupados,
sobretudo, com aquilo que Fernando Henrique Cardoso chamava de “estratégias de ativação da
sociedade civil”, o que era visto por esses autores como condição imprescindível para a superação
tanto do autoritarismo corporativo getulista, que eles chamavam, pejorativamente, de “populismo”,
como do autoritarismo da Ditadura Militar. “Sociedade Civil” era o termo chave para esses autores,
o que explica os seus esforços de ida às bases dos movimentos sociais, num movimento de inflexão
empírica e engajamento que era, ao mesmo tempo, político e epistemológico/temático.
Mais do que nos mesões, a intervenção de Pinsky nos debates públicos da redemocratização,
o seu “engajamento político direto”, para me manter próximo à terminologia que estou mobilizando

primeira vez em 1978. Para o autor, Se se deve conceber que no terreno das ciências humanas (pela própria natureza de
seus objetos) é sempre problemático o estabelecimento de rígidas e definitivas demarcações entre discursos diversos (tais
como podemos encontrar, por exemplo, entre a astronomia e a astrologia ou entre a química e a alquimia) – impondo-se
assim, uma concepção não positivista de prática teórica (onde as relações devem ser pensadas dialeticamente e não de
forma puramente disjuntiva) – não se pode ignorar, contudo, a existência de discursos rigorosos e objetivos sobre a prática
social. Desta forma, a possibilidade efetiva de se alcançar razoável grau de objetividade sobre a prática histórica e social
permitiria afirmar que nem tudo é ideológico ao nível das ciências humanas e sociais. Aceitando-se tal formulação, poder-
se-ia igualmente desvencilhar-se das armadilhas perpetradas por relativismos e ceticismos epistemológicos diversos, bem
como das aporias e dos impasses teóricos em que incorreram aqueles autores do ISEB – mergulhados que estiveram em
terrenos extremamente movediços onde tudo se confundia, onde nada se distinguia. (Caio Navarro Toledo, citado por
CÔRTES; 2003. p. 44).
15
Outra exceção possível seria Marco Aurélio Garcia, um dos quadros intelectuais mais atuantes no CEDEC e na fundação
do Partido dos Trabalhadores. No entanto, no período que estou examinando neste artigo, Marco Aurélio Garcia não
estava vinculado a nenhum programa de pós-graduação em história. Tendo voltado do exílio no Chile em 1979, o autor
somente ingressaria no Departamento de História da USP em 1984. Por isso, não estou considerando-o como membro da
comunidade dos historiadores profissionais, tal como ela era constituída no final da década de 1970.
16
desde o início, foi contundente mesmo nas páginas da “Revista Debate & Crítica”, da qual o professor
do Departamento de História da USP foi fundador, idealizador e editor. A “Revista Debate & Crítica”
nasceu em 1972 por “iniciativa exclusiva de James Pinsky”, segundo o testemunho de José de Souza
Martins, com os objetivos de agrupar intelectuais que estavam sendo perseguidos pela Ditadura e de
“criar um elo formal entre os cassados e os que permaneceram na Universidade, em particular na
Faculdade de Filosofia” (MARTINS, 2002). Na sua primeira fase, o periódico teve vida curta, tendo
sido extinto pela censura no segundo semestre de 1975. A revista renasceu em 1976, com um novo
nome, “Contexto”, para burlar a censura, tendo se mantido com periodicidade regular até 1978,
quando foi definitivamente extinta. Nas páginas dessa publicação, encontramos um James Pinsky
trabalhando lado a lado dos mais influentes intelectuais da época, como Florestan Fernandes,
Fernando Henrique Cardoso, Octávio Ianni, Paul Singer (1932) e o baiano Thales de Azevedo (1904-
1995), um dos raros exemplos de intelectuais que fora do eixo RJ, SP, MG atuaram com relativo
protagonismo na dinâmica dos “Partidos Intelectuais”, o que sugere uma clara assimetria regional na
prática desse engajamento político direto.
Kazumi Munakata (1942) foi outra exceção ao tímido engajamento político direto que marcou
a atuação pública dos historiadores profissionais brasileiros na conjuntura da redemocratização.
Apesar de ser graduado em filosofia, na época aqui examinada, Munakata estava cursando o Mestrado
em História na PUC de São Paulo, o que justifica a sua caracterização como “historiador
profissional”. Escrevendo ainda nos anos 1980 sobre a atuação dos metalúrgicos na região do ABC
paulista, o sociólogo Éder Sader afirma que a participação de Kazumi Munakata no IV Encontro
Regional de História de São Paulo, realizado em 1978, foi um dos manifestos pioneiros do
compromisso político dos estudos sociais brasileiros com a tematização da ação dos trabalhadores.
Diz Sader que “Kazumi Munakata apresentou a proposta que se tornou tendência nos estudos
desenvolvidos posteriormente por sociólogos e cientistas políticos” (SADER, 1986, p. 82). De fato,
ao longo dos anos 1980, Munakata foi um importante estudioso da história dos trabalhadores, tendo
atuado, também, via CEDEC, como consultor do sindicado dos metalúrgicos.
O engajamento político direto de Jamens Pinsky, Kazumi Munakata precisa ser examinado
com cuidado, de modo que possamos visualizar a movimentação desses historiadores nos quadros do
“Partido Intelectual”, das instituições que no final dos anos 1970 estavam mediando o ativismo
político dos intelectuais. Não tenho espaço para fazê-lo aqui, neste artigo. Porém, acredito que os
dados apresentados até aqui sejam suficientes para afirmar que, com exceção desses dois nomes, os
historiadores profissionais em atuação naquele período nas universidades foram tímidos no que se
refere ao engajamento político direto, o que não significa apatia política, pois, como também já
mencionei, a historiografia produzida naqueles anos mostra uma clara disposição para o engajamento
nas agendas que orientavam as esquerdas pós-stalinistas. Na minha interpretação, tanto a timidez no
17
engajamento político direto como a contundência no engajamento epistemológico podem ser
explicadas, também, a partir dos ventos teóricos que na época começavam a soprar na historiografia
profissional brasileira. Apresento esta explicação na próxima e última seção.

3.0- O problema do engajamento político e epistemológico dos historiadores profissionais brasileiros


à luz dos postulados neohistoricistas
Eu acho que uma das grandes contribuições desse pensamento, desse tipo de elaboração, desse
tipo de pesquisa, é romper com o economicismo realmente avassalador e colocar na ordem do
dia a questão da criação, da construção autônoma dos trabalhadores e, de certa forma, do sujeito
humano em geral. Quer dizer, se colocou, se recolocou a questão do sujeito. Começam a aparecer
vários temas que antes eram homogeneizados com o rolo compressor ‘classe trabalhadora’. Eu
acho que isso foi bastante importante. Esse tipo de arejamento e a abertura para novos temas,
novas possibilidades de investigação. E o fim de uma certa centralidade em alguns temas únicos.
(MUTAKATA apud PERRUSO, 2009, p. 304).

Com essas palavras, Kazumi Mutakata, em entrevista concedida a Marco Antônio Perruso,
definiu a agenda da historiografia profissional que começou a se consolidar no final dos anos 1970.
Cada vez mais, os sujeitos interessavam aos historiadores, afirma Mutakata. Os mesmos sujeitos cujos
rastros acreditava-se terem sido ignorados pelo mecanicismo estruturalista marxista. Para Mutakata,
o “ambiente da redemocratização”, marcado pela força do “novo sindicalismo”, preparou o terreno
semântico para a recepção de autores até então pouco lidos no Brasil, como Edward Thompson,
Cornellius Castoriadis, Michel Foucault e Clifford Geertz, que tinha em comum, a despeito das suas
notórias diferenças, o interesse pela ação prática dos sujeitos históricos, o que significava certa
rejeição às análises estruturalistas16. É esse cenário teórico que configura aquilo que a partir de agora,
inspirado nas reflexões desenvolvidas por H. Aram Veeser, passo a chamar de “neohistoricismo”,
caracterizado, sobretudo, pela inflexão empírica e, no caso específico da historiografia brasileira
produzida nos anos da redemocratização, por um intenso engajamento epistemológico manifestado e
posto em prática no esforço de tematização dos “novos sujeitos”. Por outro lado, como já comentei
na introdução deste texto, esse intenso engajamento epistemológico, na medida em que suscitou a
produção de estudos de caso preocupados com objetos rigidamente recordados tanto cronológica
como geograficamente, interditou a síntese, a diacronia de média e longa duração e a própria noção
de “processo histórico”, o que dificultou a percepção de que os historiadores profissionais pudessem
ser úteis na assessoria direta aos movimentos sociais nascentes e efervescentes na época. Isso nos

16
Os trabalhos produzidos por Margareth Rago, por Asthor Antônio Dhiel e por Igor Guedes Ramos são importantes
referências para o estudo da historiografia brasileira contemporânea. Os três autores reconstroem o cenário de renovação
teórica que caracterizou os estudos historiográficos produzidos ao longo dos anos 1970 e 1980. Para Margareth Rago, os
principais trabalhos historiográficos publicados, sobretudo da década de 1980, evidenciam a preocupação dos
historiadores brasileiros com a “rejeição aos estruturalismos e com a ênfase da ação dos atores sociais subalternos”
(RAGO, 1999, p. 32), o que fez com que os trabalhos de Thompson, Castoriadis e Foucault fossem bem acolhidos na
cena historiográfica nacional. Os estudos de Asthor Dhiel também apontam para essa renovação conceitual, que o autor
caracteriza como “inflexão empírica”. Já a tese de doutorado de Igor Guedes Ramos apresenta uma um intenso trabalho
de pesquisa sobre a recepção de Thompson e Foucault na historiografia brasileiro nos anos 1980 e 1990.
18
ajuda a compreender, acredito, a pouca presença dos historiadores profissionais nos quadros do
“Partido Intelectual”. É como se os historiadores se considerassem, e fossem considerados pelo
restante da comunidade intelectual, como profissionais especializados exclusivamente no passado,
que devido ao breaking up time historicista, para utilizar o termo mobilizado por Berbe Bervenage e
Cris Lorenz, não eram vozes autorizadas para a intervenção política direta e tempestiva.

3.1 – Algumas considerações sobre a agenda teórica e política neohistoricista

O neohistoricismo não é um paradigma teórico criado deliberadamente para sugerir


abordagens no exercício da interpretação histórica, mas sim um conjunto de práticas intelectuais
diversas que pertencendo primeiramente ao campo dos estudos literários comungam a mesma rejeição
à rigidez conceitual atribuída às teorizações estruturalistas. Sendo assim, o próprio esforço de definir
o neohistoricismo, como alertou H. Aram Veerser, é um paradoxo, já que nenhum dos autores
neohistoricistas jamais esteve preocupado em delinear uma identidade teórica para si mesmo,
tampouco em fazer parte de um movimento intelectual. Tratava-se, tão somente, de estudiosos que
compartilhavam o apego pela empiria” (VEERSER, 1989, p. 07). Stephen Greenblatt e Catherine
Gallagher, autores que são reconhecidos como importantes representantes daquilo que se
convencionou chamar de “neohistoricismo”, dizem que

Jamais formuláramos um conjunto de propostas teóricas ou um programa articulado; não


esboçamos para nós mesmos, quanto mais para outros, uma sequência de perguntas a serem
necessariamente apresentadas em face de uma obra literária a fim de elaborar uma nova leitura
historicista; não poderíamos dizer a ninguém, em tom de desaprovação: você não é um
historicista autêntico (GALLAGHER &. GREENBLATT, 2005, pp. 11-12)

O neohistoricismo, então, deve ser examinado a partir da identificação dessas práticas


intelectuais compartilhadas, o que convida ao exame dos textos produzidos pelos autores previamente
considerados “neohistoricistas”. Essa análise foi feita por Veeser, para quem as práticas intelectuais
neohistoricistas são baseadas em algumas premissas, tais como: 1) Todo ato de expressão está
envolvido numa rede de práticas materiais, o que faz com que ele sempre seja insider, mesmo que
crítico ao regime de poder instituído. 2) Como consequência lógica da primeira premissa, todo ato de
denúncia mobiliza as ferramentas que ele condena e corre o risco de reproduzir as práticas que
denuncia. 3) Os textos literários e não literários circulam inseparadamente. 4) Não existe discurso
que permite acesso às verdades imutáveis ou expressões inalteradas da natureza humana. 5) O método
crítico e a linguagem adequada para descrever a cultura sob o capitalismo é parte da economia que
eles descrevem. 6) Tendo como grande inspiração teórica a proposta da “descrição densa”, sugerida
por Clifford Geertz, os estudos culturais devem sempre priorizar a empiria, evitando as abstrações
teóricas generalizantes.

19
Como podemos perceber, segundo as características inventariadas por Veeser, o
neohistoricismo combina aspectos políticos e epistemológicos, o que levou os seus críticos a
explorarem essa seara. M. A Abrams, por exemplo, no seu “glossário de estudos literários”, associa
o empirismo neohistoricista ao “quietismo político”, na medida em que “permitiu ao procedimento
hermenêutico desconsiderar a existência de elementos estruturais de dominação, como, por exemplo,
a luta de classes” (ABRAMS, 1988, p. 63). Na verdade, como argumenta Veeser, o que o
neohistoricismo questiona é a possibilidade de existência de uma crítica literária engajada (ou
revolucionária), pois “por mais crítica que seja a literatura, ela é sempre verbalizada nos termos da
linguagem formal, o que de alguma maneira alimenta o mesmo regime de poder que, por ventura,
esteja criticando” (VEERSER, 1989, p. 11). Ou em outras palavras: se a literatura não tem potencial
desestabilizador, o estudioso da literatura, no seu ofício, também não deveria assumir uma jornada
política de contestação que é estranha ao seu objeto de estudos.

O novo historicismo perturba especialmente o criticismo literário que insiste em dizer que a arte
deve atacar os poderes socialmente estabelecidos e a ordem econômica. Os estudos novo-
historicistas dos textos produzidos nos séculos XIX e XX estão comprometidos em mostrar que
o capitalismo e as relações de mercado metabolizam toda a arte assim como a vida (ABRAMS,
1988, p. 65).

A inflexão empírica nos estudos culturais foi apropriada pelo neohistoricismo literário, ainda
de acordo com as considerações de Abrams, na chave do “quietismo político” porque teria esvaziado
o potencial desestabilizador da crítica cultural, tomando como base o conceito de “cultura”
mobilizado por Clifford Geertz. Devido ao caráter empírico do modelo de análise formulado pelo
antropólogo norte-americano, o neohistoricismo teria ignorado as “grandes agendas
desestabilizadoras”, como aquelas que propunham a crítica das relações de poder estabelecidas a
partir dos conceitos estruturais. Temos aqui, então, a relação entre empirismo e quietismo político
que não me parece ser necessária, apesar de ser possível. Essa relação, portanto, precisa ser melhor
examinada, até para entendermos como os postulados teórico-metodológicos neohistoricistas foram
apropriados numa outra chave pelos historiadores profissionais brasileiros que viveram e produziram
na década de 1970, a quem, de forma alguma, a pecha de “quietismo político” pode ser atribuída, ao
menos não de forma tão rígida.

Já que o princípio teórico basilar do empirismo neohistoricista é o conceito de “cultura” tal


como foi definido por Clifford Geertz no mais que conhecido livro “A Interpretação das Culturas”,
de 1973, é importante dedicar alguma atenção à teoria antropológica formulada por esse autor. Geertz,
escrevendo em meio ao colapso das metanarrativas modernas, para falar como Lyotard, e em crítica
direta ao estruturalismo antropológico, fosse o de E. B. Tylor ou fosse o de Lévi-Strauss, propôs a
“redução do conceito de cultura a uma dimensão justa, que realmente assegure a sua importância
continuada em vez de debilitá-lo” (GEERTZ, 2008, p. 03). O autor está acionando um conceito de
20
cultura mais limitado e busca na teoria sociológica weberiana a formulação que lhe parece ser mais
adequada: aquela que define o “homem como um animal amarrado a teias de significados que ele
mesmo teceu” e a cultura “como sendo essas teias e a sua análise” (Idem). O tipo de análise cultural
proposto por Geertz, portanto, não consiste em uma “ciência experimental em busca de leis, mas em
uma uma ciência interpretativa à procura do significado” (Idem). Essa ciência interpretativa teria um
procedimento metodológico fundamental, que Geertz, retomando a sugestão feita por Gilbert Ryle,
chamou de “descrição densa”, entendida como a análise descritiva das práticas sociais buscando
interpretar o seu significado simbólico. Essa descrição, por definição, é um exercício empírico, o que
não quer dizer que não tenha implicações teóricas, como o próprio autor deixa claro.

As simulações-teóricas pairam tão baixo sobre as interpretações que governam que não fazem
muito sentido ou têm muito interesse fora delas. Isso acontece não porque não são gerais (se não
são gerais, não são teóricas), mas porque, afirmadas independentemente de suas aplicações, elas
parecem comuns ou vazias. Pode-se, e isso é de fato como a área progride conceitualmente,
assumir uma linha de ataque teórico desenvolvida em ligação com um exercício de interpretação
etnográfica e utilizá-la em outro, levando-a adiante a uma precisão maior e maior relevância,
mas não se pode escrever uma "Teoria Geral de Interpretação Cultural" ou se pode, de fato, mas
parece haver pouca vantagem nisso, pois aqui a tarefa essencial da construção teórica não é
codificar regularidades abstratas, mas tornar possíveis descrições minuciosas; não generalizar
através dos casos, mas generalizar dentro deles (Idem, p. 18).

A proposta de interpretação das práticas culturais apresentada por Geertz evoca uma ideia que
é muita cara aos autores neohistoricistas: a definição da cultura como um tipo de texto. Considerar a
cultura um texto, diz Geertz, significa entender que o trabalho do etnógrafo possui como objeto “uma
multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepostas ou amarradas umas às
outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de alguma
forma, primeiro apreender e depois apresentar” (Idem, p. 7). Se é assim, continua Geertz, o estudioso
dos fenômenos culturais deve, ao considerar a cultura um texto, “tentar ler (no sentido de "construir
uma leitura de") um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas
suspeitas e comentários tendenciosos, escrito não com os sinais convencionais do som, mas com
exemplos transitórios de comportamento modelado” (Idem, p. 7). Ao comentar a “prática do novo
historicismo”, Gallagher e Greenblatt aderem explicitamente ao projeto geertziano, argumentando
que

tratar a cultura como texto encerra o pressuposto hermenêutico capital de que se pode ocupar
uma posição de onde é possível descobrir significados que aqueles que deixaram traços de si
mesmo jamais teriam articulado. Explicação e paráfrase não bastam, buscamos algo mais, algo
que os autores por nós estudados não lograram capturar por falta de distanciamento de si próprios
e de sua época (GEERTZ, 2008, p. 19).

É, exatamente, o tratamento da cultura como texto o fundamento conceitual da primeira


premissa do neohistoricismo elencada por Veeser, que, como vimos há pouco, afirma que “todo ato
de expressão está envolvido numa rede de práticas materiais”. O empirismo neohistoricista, portanto,
não deve ser tratado como uma fenomenologia vulgar, mas sim como a percepção de que apenas o
21
estudo atento das práticas permite a compreensão do significado simbólico das ações dos atores
sociais e, por consequência, da lógica cultural dentro da qual se deu essa ação. Não se trata de
considerar a prática como um mero epifenômeno das estruturas, mas sim como a força de mobilização
de redes simbólicas, cujo significado, em última instância, é cultural.

Uma ciência experimental de teor empírico com pretensões teóricas propositalmente


modestas. Esse é o modelo de estudos culturais proposto por Geertz no início dos anos 1970 que
alcançou grande sucesso entre os estudiosos da sociedade, tornando-se o principal elemento da
identidade teórica do “neohistoricismo”. Como vimos, para os adversários dos estudos literários
neohistoricistas essa inflexão empírica se desdobrou em um “quietismo político”, o que não é
sinônimo de “conservadorismo político”. É como se o neohistoricismo fosse cético em relação a
qualquer possibilidade de mudanças estruturais no regime de poder instituído. Ou seja, não é que o
neohistoricismo defenda o establishment. Ele apenas não se manifesta contra ele, por acreditar que o
capitalismo tem grande capacidade de acomodar as suas tensões, tornando-as praticamente
inofensivas. Nesse caso, portanto, a empiria e a ênfase na interpretação do significado cultural dos
textos não deveriam atender a nenhum tipo de engajamento político. No entanto, é importante
destacar que a antropologia simbólica geertziana é um dos desdobramentos da inflexão empírica que
traduziu o questionamento das abordagens estruturalistas, e não exatamente a sua causa motora17. Os
estudos sociais e culturais já estavam flertando com o empirismo desde os anos 1960, como
demonstra, entre outros exemplos, as críticas de Thompson ao marxismo estruturalista de Louis
Althusser. Portanto, o neohistoricismo abordado por Veerser, por Abrams, por Galagher e por
Greenblatt não esgota as diversas possibilidades de manifestação dessa inflexão empírica tão
importante para os estudos sociais contemporâneos, já que se debruça apenas sobre a sua primeira
manifestação, aquela que se deu no campo dos estudos literários. No Brasil da redemocratização, no
que se refere à historiografia profissional, a empiria e as críticas à generalização estruturalista
estiveram a serviço, também, de uma contundente agenda política, o que configura aquilo que estou
chamando desde o início deste artigo de “engajamento epistemológico/temático”.

17
Vários estudiosos já se debruçaram sobre o problema da derrocada dos paradigmas estruturalistas, sendo que vários
deles associam essa transformação epistemológica a uma crise muito mais profunda, à crise do próprio projeto modernista
de progresso científico. François Lyotard, por exemplo, no mais que conhecido livro “A condição pós-moderna”,
argumenta que a crise dos estruturalismos está diretamente ligada à crise das “metanarrativas modernas” (progresso e
utopia temporalizada), o que fez com que surgissem novos relatos de legitimação do conhecimento, bem distintos
daqueles que caracterizaram a modernidade. Hans Jonas, preocupado em sugerir uma “ética da urgência e da
responsabilidade” compatível com a era da “técnica autonomizada”, afirma que ao longo do século XX, a crença do
homem moderno no potencial redentor da ciência foi esgotada pela experiência da catástrofe o que alterou a relação do
próprio com o conhecimento, levando ao descrédito toda “pretensão estruturalista”. Já autores como Hans Ulrich
Gumbrecht e François Hartog, interessados em examinar as representações da temporalidade na contemporaneidade,
sugerem, cada um a seu modo, que as mudanças no “Regime de Historicidade” resultaram no fim do “cronotopo
historicista”, apenas dentro do qual a ambição estruturalista teria lugar.
22
3.2 – Uma análise das fontes da historiografia profissional brasileira produzida nos anos da
redemocratização
Se, como mostrei há pouco, James Pinsky e Kazumi Mutakata foram exceções ao tímido
engajamento político direto dos historiadores profissionais brasileiros em atuação na década de 1970,
Manoel Nunes Dias, historiador “ultraconservador” nas palavras de Eder Sader, mostrou uma prática
de engajamento político direto a serviço da Ditadura civil-militar. Tendo sido interventor na USP
durante muito tempo, Manoel Dias foi transferido para o campus de Franca da UNESP em 1977, onde
no ano seguinte aconteceria o Encontro Regional de História de São Paulo. Manoel Dias proibiu a
realização do evento, que foi reorganizado às pressas e realizado em Araraquara. Kazumi Mutakata,
lembrando do imbróglio já no século XXI, testemunha que

aquele encontro já nasceu como uma resistência. (...) os organizadores ficaram alvoroçados,
queriam que eu desse entrevista (...), queriam anunciar uma nova historiografia surgindo e tal.
(...) um grande exagero, porque aquele era o primeiro trabalho acadêmico de um mestrando. Eu
nunca tinha escrito nenhum trabalho acadêmico. (...) A conjuntura permitiu esse alvoroço, né? E
aí de repente virou alguma coisa meio paradigmática, que eu não tinha nenhuma intenção.
(MUTAKATA apud PERRUSO, 2009, p. 274)

Marco Antônio Perruso discorda da modesta de Kazumi Mutakata ao afirmar que a fala do
historiador naquele encontro foi uma das “fontes cognitivas” do ativismo intelectual tão efervescente
na época. Segundo Perruso, nos anos 1970, os estudos sociais brasileiros experimentavam uma
intensa renovação conceitual que se manifestou na forma de uma “inflexão empírica” que, entre
outras coisas, criticou os estruturalismos. Como já sabemos, essa renovação conceitual foi alimentada
pela própria conjuntura política da redemocratização, que, conforme já comentei antes, trouxe à luz
do dia os movimentos sociais que reivindicavam a autonomia da sociedade civil e negavam a tutela
do Estado. Perruso não estabelece uma relação de causa e efeito entre esses dois movimentos e sugere
que a renovação conceitual (a inflexão empírica) foi alimentada pelo ativismo da sociedade civil, e
vice-versa. Trata-se, no argumento do autor, de um processo único que teve algumas “fontes
cognitivas”, que devem ser buscadas na década de 1970:

a primeira é constituída por sociólogos, a começar pelos trabalhos de Weffort a partir de 1971,
que tematizou as relações entre os sindicatos e a política e que se desdobrou nos trabalhos de
José Álvaro Moisés e de Verena Martinez-Allier. A segunda fonte cognitiva vem da antropologia
e sua busca pelo lugar simbólico onde os setores populares, em seu cotidiano, concebem a relação
e o conflito em torno do trabalho: bom exemplo são os estudos José Sérgio Leite Lopes. A última
fonte é trazida por historiadores criticando a “memória dos vencedores” e influenciados por
Marilena Chauí: Carlos Alberto Vesentini e Edgar De Decca e Kazumi Mutakata (PERRUSO,
2009, p. 67).

Temos aqui o nome dos principais intelectuais que, a partir da universidade e dos programas
de pós-graduação então em processo de institucionalização, direcionaram seus estudos aos “novos
sujeitos”. Não se tratou, apenas, do voluntarismo e do ativismo individual desses pesquisadores, mas
também de um esforço institucional levado a cabo pelos lugares dentro dos quais os estudos engajados
estavam sendo produzidos. No que se refere à sociologia, teve destaque a USP. Em relação à
23
antropologia, o principal centro de referência foi o Programa de Pós-Graduação sediado no Museu
Nacional (UFRJ). A ciência política teve no IUPERJ a sua morada. Já a historiografia encontrou na
UNICAMP o espaço que melhor acolheu a tal “inflexão empírica”.

A tese de doutorado de Igor Guedes Ramos demonstra como o programa de pós-graduação


em história da UNICAMP foi o principal lugar de produção dessa historiografia engajada e
interessada na tematização dos novos sujeitos, tendo contado com a liderança intelectual de Edgar
Salvadori de Decca, certamente um dos principais nomes desse conhecimento histórico engajado
produzido nos anos da redemocratização. Ramos argumenta que a dissertação de mestrado de
Margareth Rago, orientada por Decca e defendida em 1984, foi um dos marcos de fundação dessa
“operação historiográfica inovadora no uso das fontes e na postura ético-política” (RAMOS, 2014, p.
208). Sem querer negar a importância da década de 1980 e tampouco a centralidade da UNICAMP
para o engajamento epistemológico/temático dos historiadores profissionais, proponho um breve
recuo no tempo, à segunda metade da década de 1970, pois é aqui que encontramos os primeiros
indícios desse engajamento, que conviveu perfeitamente com as diretrizes organizacionais
estipuladas pelo I Plano Nacional de Pós-Graduação. Na prática, o autoritarismo desenvolvimentista
da Ditadura Civil-Militar permitiu aos historiadores contarem com uma sólida e eficiente organização
institucional, o que potencializou a produção dessa historiografia engajada, que, paradoxalmente, não
atendeu plenamente as demandas oficiais apresentadas pelo próprio I PNPG, que como mostrei há
pouco, pretendia fomentar uma historiografia de teor nacionalista. Mas essa historiografia era
engajada com quais agendas?

A década de 1960 foi marcada por uma intensa renovação na militância marxista
internacional. As lideranças que comandaram os movimentos radicais protagonizadas por jovens
estudantes em 1968 cada vez mais questionavam as organizações da esquerda tradicional. Nas
palavras de Paul Berman,

Os mais brilhantes jovens, filiados aos velhos partidos de esquerda ou às suas “seções de
juventude”, entraram em disputa com os líderes adultos de suas organizações. O debate cresceu
e tornou-se irascível. Finalmente, os adultos, irritados com os jovens a quem consideravam não-
cooperadores, expulsaram-nos das organizações da esquerda internacional -apenas para, alguns
anos depois, por volta de 1968, espirar pela janela e ver esses mesmos jovens criadores de
problemas liderando enormes passeadas pelas ruas (BERMAN, 1996, pp. 25-26).

Não se tratou apenas de um mero conflito geracional. O que estava em disputa era o conteúdo
programático que deveria orientar a atuação política dos movimentos de esquerda, em um momento
marcado pelas críticas ao comunismo stalinista e pela descolonização da África e da Ásia. Hannah
Arendt, que também examinou essa “nova esquerda”, afirma que o imobilismo burocrático soviético
e os movimentos anticoloniais trouxeram a “ação direta” para o primeiro plano das prioridades dessas
jovens lideranças, o que resultou no desenvolvimento de “teorias de lutas baseadas na ideia da contra
24
violência legítima”, que segundo a escritora alemã foi desenvolvida, principalmente, pelo martinicano
Frantz Fanon e pelo francês Jean Paul Sartre. Diz Hannah Arendt que ao longo da década de 1970,
“na Europa, na América Latina e nos EUA, a juventude socialista e comunista se lançou em uma
jornada de encontro “ao povo”, aos trabalhadores do campo e da cidade, com o objetivo de
compreendê-los, de entender o conteúdo prático de suas ações, fora da rigidez teórica do marxismo
ortodoxo” (ARENDT, 1994, p. 59). Era essa mesma busca pelo trabalhador que estimulou o
engajamento dos intelectuais brasileiros nos anos 1970. Nesse momento, os sujeitos a serem
compreendidos ainda não eram as mulheres, como seria ao longo dos anos 1980, quando podemos
perceber o boom dos estudos de gênero na historiografia brasileira. O interesse político e intelectual
estava nos trabalhadores, nas suas práticas mais cotidianas, nos seus valores. Por isso, o conceito de
“classe social” proposto por Thompson, como já demonstraram Margareth Rago, Igor Guedes Ramos
e Asthor Dhiel, foi tão bem recebido pelos historiadores brasileiros.

No recorte cronológico que estou examinando neste artigo, esse engajamento


epistemológico/temático começava a se manifestar na historiografia profissional, mesmo que ainda
não fosse completamente dominante, como seria nos anos seguintes. Carlos Fico e Ronaldo Polito
organizaram em 1994 uma série de dados sobre a pesquisa histórica desenvolvida no Brasil na década
de 1980 que consiste numa fonte valiosíssima para a minha pesquisa. Trata-se de um catálogo com
os títulos das dissertações de mestrado, dos artigos científicos e dos livros produzidos no período.
Ainda que a coletânea tenha o ano de 1980 como ponto partida, estou adotando o critério de que as
dissertações defendidas e os artigos publicados até 1982 estavam sendo escritos no final dos anos
1970, ou seja, no período em que estou interessado. Foram 77 dissertações das quais 46,
aproximadamente 60%, tematizam, de alguma maneira, a figura do trabalhador, seja o camponês, o
escravo ou o operário urbano. Em relação aos artigos, a incidência é um pouco maior, já que 66% dos
120 trabalhos publicados também se debruçaram sobre a temática. No que se refere aos livros, os
números são bem mais modestos, pois apenas 23% dos volumes publicados traziam as palavras
“trabalhador” ou “trabalho” nos seus títulos. Nesse tipo de suporte, ainda no final dos anos 1970, é
possível perceber a força das sínteses de história política brasileira e ocidental, o que nos leva a pensar
que os critérios do mercado editorial não eram os mesmos adotados pelos programas de pós-
graduação e pelos periódicos especializados. O funcionamento do mercado editorial dos livros de
história publicados no final dos anos 1970 ensejaria um estudo específico, pois suspeito que já nesse
período existisse certo distanciamento entre as agendas da historiografia profissional e as demandas
do público não especializado, distanciamento que nesse nosso século XXI parece ser cada vez maior.

Os anais das ANPUHs realizadas em 1976, em 1977 e em 1979 também sugerem o


fortalecimento progressivo do engajamento dos historiadores com as agendas das “novas esquerdas
25
internacionais”. O simpósio realizado em Aracaju, no ano de 1976, teve como tema a “propriedade
rural”. Segundo Eurípedes Simões de Paula (1910-1977), professor do Departamento de História da
USP e então Presidente da ANPUH, o tema se justificava pelo “interesse em investigar a distribuição
da propriedade rural, o que colabora para o entendimento do tipo de trabalho realizado no campo
brasileiro” (ANAIS DO VIII SNH, 1976, p. 13). Das 72 comunicações apresentadas, todas feitas por
professores universitários, 52, mais ou menos 73%, abordaram, de alguma forma, a figura do
trabalhador, fosse na idade antiga, na idade média, na idade moderna, ou na história do Brasil.

A tendência temática manteve-se no simpósio realizado em Florianópolis, em 1977, que


também foi presidido por Eurípides Simões de Paula e teve como tema o as relações entre o “Homem
e a Técnica”, o que “demonstra a continuidade dos interesses dos historiadores brasileiros pela
atividade do trabalho e pelo sujeito trabalhador, como já indicava o último Simpósio Nacional de
História” (ANAIS DO XIX SNH, 1979, p. 15). Dessa vez, foram 55 professores universitários
apresentando comunicações, entre as quais 36, aproximadamente 65%, abordaram diretamente o
personagem trabalhador, sendo 19 dessas apresentações dedicadas especialmente ao “trabalhador
brasileiro, que cada vez mais se apresenta como o objeto por excelência dos estudos históricos
brasileiros” (ANAIS DO XIX SNH, 1979, p. 18).

Já no simpósio realizado em 1979, em Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, dessa vez


organizada por Alice Píffia Canabrava, podemos perceber um deslocamento semântico no tema
central, propondo a discussão sobre “As relações entre o Estado e a Sociedade”, assunto que também
estava na agenda dos movimentos sociais que emergiram na conjuntura da redemocratização e que
“é tema dos mais relevantes para a transição que parece se avizinhar em nosso país (ANAIS do XX
SNH, 1979, p. 12). Das 63 comunicações apresentadas, 44 (69%) estiveram dedicadas à história do
Brasil. Tomando esse universo como totalidade de análise, 52% das comunicações mostraram a
preocupação em perceber, nos mais diversos períodos da história do Brasil, o lugar dos trabalhadores
(escravos, camponeses e operários urbanos) nessa relação de dominação e conflito entre o Estado e a
Sociedade.

Esse levantamento quantitativo dos artigos publicados, das dissertações de mestrado


produzidas e das comunicações apresentadas no simpósio da ANPUH no final dos anos 1970 é
importante porque nos possibilita uma visão geral dos interesses compartilhados pelos historiadores
profissionais em atuação na época. Os números mostram o fortalecimento crescente de uma agenda
temática dedicada ao problema dos trabalhadores, que foi desenvolvida, em frequência numérica nada
irrelevante, à luz de referências teóricas como Edward Thompson e Clifford Geertz, o que parece
apontar para a tal “inflexão empírica”, que segundo autores como Margareth Rago, Marco Antônio
Perruso e Igor Guedes Ramos estava mesmo se fortalecendo como tendência epistemológica nos
26
estudos sociais desenvolvidos na época18. Temos, portanto, o cruzamento de dois dados que parecem
confirmar parte da minha hipótese: no final dos anos 1970, fortalecia-se entre os historiadores
brasileiros a tendência de examinar empiricamente, o que na prática da pesquisa significava a rejeição
aos estruturalismos, o comportamento dos “atores subalternos”, dos trabalhadores escravos, rurais e
urbanos. Esse tipo de interesse temático ainda não era plenamente hegemônico nesse período, mas
estava em claro movimento de crescimento. No momento em que finalizo a escrita deste artigo,
começo a trabalhar com os dados relativos à década de 1980 e ao que parece a tendência se fortaleceu,
chegando também ao mercado editorial. Oportunamente, os resultados dessa nova etapa da pesquisa
também serão publicados.

Conclusão
É uma obviedade conhecida por qualquer graduando em história a afirmação de que a
historiografia é sempre filha do seu tempo, que as perguntas feitas pelos historiadores são
desdobramentos das questões que estão sendo disputadas pela sociedade dentro da qual eles
desenvolvem seus trabalhos. No entanto, não é nada óbvio o funcionamento dessa interlocução entre
o campo histórico e a sociedade, pois a forma como os historiadores interagem com as agendas
coletivas se transformam com o tempo, são dotadas de historicidade. Neste artigo, estive preocupado
em examinar a relação entre os historiadores profissionais brasileiros e a sociedade em dois momentos
diferentes: o primeiro, que serviu como gatilho para a reflexão que desenvolvi, é o tempo presente,
quando, ao que parece, estamos perdendo a disputa pela imaginação histórica coletiva. O segundo,
diretamente objetificado neste artigo, refere-se aos anos de fundação da historiografia brasileira
contemporânea, quando os debates da transição para a nova ordem democrática começavam a pautar
os interesses da historiografia acadêmica. Acredito, e esse é o núcleo duro da hipótese que apresentei
neste artigo, que uma coisa tem estreitas relações com a outra. Ou em outras palavras: as dificuldades
que hoje enfrentamos no debate público podem ser explicadas, também, pelo tipo de conhecimento
histórico que começamos a produzir no final dos anos 1970.

É que de alguma maneira, nós, os historiadores brasileiros contemporâneos, herdamos a


cultura de pesquisa, tanto no que se refere à sua organização institucional quanto às suas orientações
teóricas, que foi formulada e instituída nos anos da redemocratização pelo autoritarismo
desenvolvimentista da Ditadura Civil-Militar. Hoje, com raríssimas exceções, a pesquisa história é

18
Não foi tão simples examinar as fontes historiografias produzidas no Brasil dos anos 1970. Em relação às dissertações
de mestrado, foram pouquíssimos os trabalhos recuperados, pois, infelizmente, a maior parte dos volumes não se encontra
digitalizada e somente foi possível a acesso físico a poucos deles. O mesmo acontece com os artigos. Em relação às
comunicações apresentadas nos eventos ANPUH, a situação mostrou-se bem mais favorável, devido à digitalização dos
anais dos simpósios, que podem ser encontrados no site da instituição. Portanto, 43% das comunicações consultadas
referenciavam na sua bibliografia Edward Thompson e Clifford Geertz. Se formos isolar apenas as citações de Thompson,
o número cresce para 52%. Se fizermos o mesmo para as referências a Geertz o índice chega a 47%.
27
desenvolvida nas universidades, nos programas de pós-graduação em história, cujo funcionamento é
controlado e metrificado pela CAPES, o que em si, na minha avaliação, não é um problema, pelo
menos não dos mais graves. Mas não se trata, apenas, de uma questão organizacional. Herdamos
também certas convicções teóricas, que configuram nossos interesses e a forma como atribuímos
sentido ao nosso ofício. O impasse, acredito, está aqui.

Defini como “neohistoricista” o ambiente epistemológico em que se deu a fundação da


historiografia brasileira contemporânea. E acredito que somos neohistoricistas até hoje, na medida
em que a nossa agenda de trabalho ainda está muito próxima daquela que foi instituída na década de
1970: no geral, a ação dos “sujeitos subalternos”, continua a nos interessar. Continuamos
desconfiando dos estruturalismos e interditamos a síntese, o ensaio e a diacronia de média e longa
duração, o que dificulta a representação da historiografia no debate público como uma ciência social
aplicada. Já que nos consideramos profissionais especializados no passado (e cada vez mais
especializados), os temas tempestivos interessam apenas à área de especialização que aprendemos a
chamar de “história do tempo presente”. É como se os especialistas na escravidão colonial, ou na
cultura política imperial, ou mesmo nos primeiros e tropeçantes passos da República, não tivessem
nada a dizer sobre o presente, não tivessem com o que colaborar para o debate público. O breaking
up time historicista nos coloca, então, na confortável posição de quem objetifica o passado a partir de
um outro lugar, com o interesse exclusivo de compreender esse passado. Um passado que não vive
mais, que não teria nenhuma relação com o presente. O que tentei fazer neste artigo foi mostrar que
esta forma de pensar, e de agir, não é natural, que é histórica. E se é datada, se não é natural, é porque
é perfeitamente possível tratar o conhecimento histórico em outras perspectivas. Ao formular a
reflexão nestes termos, não estou abrindo mares nunca antes navegados, pois a própria experiência
de aguda crise institucional que vivemos aqui no Brasil desde 2013 vem aumentando o interesse dos
historiadores brasileiros pela participação no debate público e pelo problema da utilidade social do
conhecimento histórico19.

19
A atualização bibliográfica em tema tão contemporâneo é sempre um exercício difícil já que o tempo inteiro vem a
público um novo artigo, um novo livro. Por isso, nos limites da minha capacidade de acompanhar a constante renovação
bibliográfica, faço algumas menções aos trabalhos que, recentemente, vêm se debruçando, aqui no Brasil, sobre o
problema das relações entre os historiadores e a sociedade. Em artigo publicado em 2013, Jurandi Malerba abordou as
relações entre a história acadêmica e a história leiga naquilo que o próprio autor chamou de “public history”. Naquela
altura, quando a crise Brasileira ainda não tinha manifestado seus desdobramentos mais dramáticos, Malerba estava
interessado em investigar como o conhecimento histórico, no Brasil e no mundo, estava cada vez mais se tornando um
objeto de consumo e atraindo o interesse dos grandes grupos empresariais e da mídia. Seguindo a esteira aberta por
Malerba, Marcelo Abreu e Marcelo Rangel, em artigo publicado em 2015, analisam os impactos dos debates públicos
relativos ao conhecimento histórico no ensino disciplinar de história. Em artigo publicado também em 2015, Matheus
Pereira examina as disputas de memória a respeito da ditadura civil-militar brasileira e as dificuldades, seja da
historiografia profissional ou seja da Comissão Nacional da Verdade, em pautar a imaginação histórica coletiva. Já o
trabalho de Mara Rodrigues e Benito Schmidt tematiza os desdobramentos didáticos das discussões em teoria e
metodologia da história, apontando para a necessidade do fortalecimento da ideia de função social do professor de história,
28
O fato mesmo é que o tempo presente e o tempo futuro apontam para grandes dificuldades no
que se refere à sobrevivência da historiografia profissional: a drástica diminuição no financiamento,
a retirada da disciplina história do currículo obrigatório no ensino médio, os constantes ataques de
movimentos políticos e sociais como o “Movimento Brasil Livre” e o projeto “Escola sem Partido”,
os revisionismos das interpretações de temas sensíveis e traumáticos como a escravidão e a Ditadura
Civil-Militar que cada vez mais ganham espaços na imprensa tradicional e nas mídias digitais. A
historiografia forjada nos anos da redemocratização parece não estar conseguindo responder a esses
desafios. Por isso, e esse foi o meu principal objetivo neste artigo, é tão importante examinar a
fundação da historiografia brasileira contemporânea, compreendendo as suas premissas. Talvez daí
seja possível pensar em possibilidades de solução para os impasses em que vivemos e (por que não?)
praticar o tão aclamado exercício da autocrítica.

especialmente no ensino básico. Rodrigo Turin, tratando dos desdobramentos das mudanças nos regimes de
contemporâneos de temporalidade na historiografia profissional, problematiza a crise da autoridade dos historiadores no
debate público. Valdei Araújo, abordando especificamente a noção de “utilidade social do conhecimento histórico”,
propõe que o historiador faça as vezes de um “curador de memórias”, de modo que possa colaborar para a organização
narrativa e publicização dos diversos regimes de representação do passado socialmente distribuídos. Destaco também os
esforços de João José Reis, notório especialista na história da escravidão brasileira, em utilizar os meios de comunicação
social para apresentar ao público uma interpretação da história do Brasil baseada nesse “passado que se recusa a passar”.

29
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