Você está na página 1de 275

UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO

MUSEU NACIONAL
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

MORENA BARROSO MARTINS DE FREITAS

Coisas de Crianças: as ibejadas da umbanda

Rio de Janeiro
2021
Morena Barroso Martins de Freitas

Coisas de Crianças: as ibejadas da umbanda

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutora em Antropologia Social.

Orientadora: Profª Dra. Renata de Castro Menezes

Rio de Janeiro
2021
Morena Barroso Martins de Freitas

Coisas de Crianças
as ibejadas da umbanda

Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do título de Doutor(a) em Antropologia Social.

Rio de Janeiro, 29 de março de 2021.

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________________________
Profª. Dra. Renata de Castro Menezes
Orientadora
PPGAS/MN/UFRJ

Participação por videoconferência____________________________


Prof. Dr. Luiz Fernando Dias Duarte
PPGAS/MN/UFRJ

Participação por videoconferência____________________________


Prof. Dr. Edmundo Marcelo Mendes Pereira
PPGAS/MN/UFRJ

Participação por videoconferência____________________________


Profª. Dra. Roberta Bivar Carneiro Campos
PPGA/UFPE

Participação por videoconferência____________________________


Prof. Dr. Rodrigo Ferreira Toniol
PPGSA/IFCS/UFRJ
Deus nos dá pessoas e coisas, para aprendermos
a alegria… Depois, retoma coisas e pessoas para
ver se já somos capazes da alegria sozinhos…
Essa… a alegria que ele quer.

João Guimarães Rosa


Grande Sertão: Veredas.
AGRADECIMENTOS

À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), cujo apoio


financeiro possibilitou minha exclusiva dedicação ao doutorado, e às demais agências,
instituições e pessoas que seguem trabalhando pela garantia de uma educação pública, gratuita
e de qualidade.

À Renata de Castro Menezes, pelos ensinamentos em diversas aulas, palestras e reuniões, e pela
orientação sempre atenta e estimulante – e agradeço também por tudo aquilo que vivemos ao
longo dos últimos anos e que não cabe no Lattes.

Aos dirigentes e médiuns que abriram as portas de seus centros e casas e me permitiram
observar, ouvir e aprender sobre as Crianças, e sobre as coisas e pessoas que as fazem e cultuam.

Aos professores e professoras do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do


Museu Nacional, que tanto me ensinaram em salas de aula, reuniões de coordenação,
mobilizações e passeatas. Em especial, agradeço a Luiz Fernando Dias Duarte e Edmundo
Pereira por aceitarem o convite para a banca de defesa e pelos comentários que enriqueceram
esta tese e incentivam as reflexões que ainda estão por vir. Este agradecimento se estende a
Roberta Bivar Campos e Rodrigo Toniol, pela leitura atenciosa e pelos valiosos comentários.

Aos funcionários da secretaria do PPGAS – Adriana, Anderson e Marta – pelo atendimento


sempre prestativo e atencioso; e a Dulce, Márcio, Adriana e Fernando pela dedicação aos
professores, alunos e livros deste programa. A eles, elas e aos demais funcionários e servidores
do Museu Nacional, agradeço pelo empenho na reconstrução e reinvenção desta instituição após
o incêndio daquele fatídico domingo de setembro de 2018. O Museu Nacional vive!

À Lucas Freire, Everton Rangel, Bárbara Pires, Uliana Esteves, Carolina Castellitti, María
Rossi, Dibe Ayoub, Igor Rollemberg e Crenivaldo Veloso pelos cafés e conversas que
marcaram esses anos e as memórias no pátio, na Lygia Sigaud, na Castro Faria, na Roberto
Cardoso e no Flor da Amizade – e também pelas cervejas, danças e afetos além-Quinta.

À Edilson Pereira, Raquel Lima, Lívia Reis, Débora Simões e Luiz Gustavo Mendel agradeço
pelas reuniões, projetos e conversas que compartilhamos enquanto membros do GPAD/Ludens,
e que não se encerraram naquela acolhedora e saudosa salinha do terceiro andar do Palácio, mas
se estenderam pela rua do Ouvidor, pela Sapucaí, por Salvador.

À Julia, Bárbara e Lucas por me aguentarem todos esses anos falando e sofrendo pelos
trabalhos, monografia, dissertação e tese. Prometo, pelo menos tentar, mudar um pouco de
assunto.

À Flávia, Ademir e Tamyres pela companhia, risadas e aprendizados no Iphan.


À Vivi, Karol, Roberto, Clarissa, Aline, Pretinha, Márcia e Marta por fazerem o retorno a
Aracaju mais fácil e alegre, e por me lembrarem que aqui também estou em casa.

À Beth, João Antônio, Letícia, Circe e Vera por tanto carinho, acolhimento, risadas e comidas.

À Daniele, Tainá, Marion, Eleni e Elzi por serem minha família, e à Maria e Iria, in memoriam,
por serem matriz.

Aos meus pais, Lívio (in memoriam), Alberto e Reginaldo Daniel Flores, Ògún Tóòrikpè, por
guiarem meus caminhos neste e em outros planos.

À Cristina, sigo pedindo desculpas por usar o Freitas e agradecendo por tudo aquilo que me dá
e me ensina. Obrigada sempre, por tudo e tanto, mãe.

Ao Lucas, pelas leituras e comentários em cada fase deste percurso, por escutar as angústias e
insistir nos conselhos, pelo companheirismo e pelo amor. Obrigada por tornar tudo mais leve e
alegre.
RESUMO

FREITAS, Morena Barroso Martins de. Coisas de Crianças: as ibejadas da umbanda. Tese
(Doutorado em Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de
Janeiro, 2021.

Esta é uma tese sobre as ibejadas, entidades infantis da umbanda, apreendidas a partir de suas
coisas, que nos permitem pensar numa concepção de infância ideal e sagrada, marcada por
valores, como pureza, inocência e alegria; que se materializam em música, corpos, gestos,
roupas, brinquedos, doces. Para ver, conhecer e sentir essas Crianças, sentei-me nos bancos de
assistência de alguns centros de umbanda do Rio de Janeiro, conversei com médiuns, dirigentes
e consulentes e, considerando que os objetos religiosos circulam também por outros espaços,
percorri lojas de artigos religiosos e estive em uma fábrica de imagens. Dentro do campo da
antropologia, mais especificamente dos estudos da religião, este trabalho conforma-se enquanto
uma abordagem material dessas entidades e dos rituais nos quais elas se apresentam e onde
pessoas e coisas se mobilizam e são mobilizadas para ver, conversar, sentir e cultuar as alegres,
inocentes, puras, brincalhonas, comilonas, choronas, irritáveis e poderosas Crianças. Os pontos
cantados, imagens, roupas, gestos, brinquedos e doces pelos quais se espalham as ibejadas, são
também materializações de um sentimento, um estado de espírito: a alegria. Com as Crianças e
suas coisas, podemos compreender como a alegria é construída, sacralizada, cultuada e sentida.

Palavras-chave: ibejada, umbanda, materialidades religiosas, Crianças, alegria.


ABSTRACT

This is a thesis about the ibejadas, children entities of the Umbanda, apprehended from their
things, which allow us to think of an ideal and sacred childhood conception, marked by values
such as purity, innocence and joy; materialized in music, bodies, gestures, clothes, toys, sweets.
To see, know and feel these Children, I sat on the assistance benches of some Umbanda centers
in Rio de Janeiro, talked to mediums, leaders and consulters and, considering that religious
objects also circulate in other spaces, I went through religious articles stores and was in an
image factory. Within the field of anthropology, more specifically the studies of religion, this
work conforms as a material approach to these entities and the rituals in which they present
themselves and where people and things are mobilized and mobilized to see, talk, feel and
worship the joyful, innocent, pure, playful, comilone, crying, irritable and powerful Children.
The pontos cantados, images, clothes, gestures, toys and sweets through which the ibejadas are
spread, are also materializations of a feeling, a state of mind: joyfulness. With the Children and
their things, we can understand how joy is built, sacralized, worshipped and felt.

Keywords: ibejadas, umbanda, religious materialities, Children, joy.


Índice de imagens

Desenhos 1 e 2: Médiuns arrumando as coisas de suas Crianças no salão, antes do início da


gira. Luiz Gustavo Mendel, 30 de agosto de 2017 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 197

Figura 1 – Programação do CUCA de janeiro de 2017. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 99

Figura 2 – Croqui do CUCA. Morena Freitas, 2018 . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 100

Fotos 1 e 2: As imagens expostas nas lojas. Mercadão de Madureira, 2015. . . . . . . . . . . .p.152

Foto 3: Ainda no gesso branco, já se distinguem por seus vestidos, cabelos e conchas, as
meninas da praia. Mesquita, abril de 2016 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 155

Fotos 4 e 5: Meninos e meninas, já coloridos, com seus peixes e cascatas. Mercadão de


Madureira, 2014 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 155

Fotos 6 e 7: Preenchimento do molde com gesso ainda líquido, sobre fibras de vidro. Molde já
preenchido, em pé, durante a secagem do gesso. Mesquita, abril de 2016. . . . . . . . . . . . p. 161

Fotos 8 e 9: Imagem após ser retirada do molde e processo de pintura com pistola. Mesquita,
abril de 2016. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 162

Foto 10: Imagens de Cosme, Damião e Doum ao lado de um busto de pombagira. Mesquita,
abril de 2016 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 162

Foto 11: Congá principal do CUCA, arrumado e adornado para a gira festiva de 27 de setembro
de 2016 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 170

Foto 12: Detalhe do congá, com as imagens de Cosme, Damião, Doum e Crianças. . . . . p. 170

Foto 13: Congá principal da Taba Caboclo Sete Flechas, adornada para gira de 12 de outubro.
Edson Passos, outubro de 2016 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 171

Foto 14: Altar dedicado às Crianças de Tony, dirigente da Taba Caboclo Sete Flechas. Edson
Passos, Outubro de 2016 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 171

Fotos 15, 16 e 17: roupas de erê expostas em lojas do Mercadão de Madureira, em setembro de
2014 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .p. 183

Foto 18: os médiuns antes da chegada das ibejadas. Thiago Oliveira, 2015, Olaria. . . . . .p. 188

Foto 19: Os corpos já coloridos e agitados com a chegada das Crianças. Thiago Oliveira, Olaria,
2015 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 188

Fotos 20 e 21: arranjos de frutas e doces sobre bandejas enfeitadas com babados de papel
crepom. CUCA, 26 de setembro de 2016. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 237
Foto 22: As seis bandejas de doces, com a arrumação final, sobre a mesa, já no salão. CUCA,
26 de setembro de 2016 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 297

Foto 23: Todas as bandejas e cestas de frutas e doces, além dos sete bolos, um quindim, quatro
pratinhos de docinhos e três bandejas de queijadinhas. O banquete de doces servido aos pés das
Crianças. CUCA, 27 de setembro de 2016 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 238

Foto 24: Pedrinho abrindo os braços para uma criança, antes de entregar o saquinho. CUCA,
27 de setembro de 2016 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . p. 241
Ao longo desta tese, a formatação em itálico, além de indicar os vocábulos estrangeiros, ressalta
categorias, expressões ou conceitos propostos por mim ou por outros autores. O grifo em negrito
destaca expressões e categorias próprias do universo pesquisado. As aspas simples indicam os
títulos das obras referidas e as aspas duplas demarcam trechos de falas e citações incorporadas
ao texto. Para conferir fluidez à leitura, os trechos de obras em outras línguas foram livremente
traduzidos por mim e o extrato original transcrito em nota de rodapé.
SUMÁRIO

Introdução 15
Um estilo (coletivo e catártico) de conhecer as Crianças 24
Vestir saia e pesquisar umbanda 28
Estrutura da tese 30

PARTE I 34

1. As Crianças da umbanda 34
1.1 Doutrinas, orixás e guias da umbanda 35
1.1.2 Energia e trabalho 42
1.2 O universo do divino infantil 46
1.2.1 Por que Crianças? 47
1.2.2 Gemelaridade e a morte 56
1.2.3 Doum, o terceiro 61
1.2.4 Os erês 67
1.2.5 Doces e carurus 72

2. Coisas, lugares e tempos das ibejadas 78


2.1 Antropologias das materialidades 80
2.2 Abordagens materiais da religião 82
2.3 Giras festivas e sessões de consulta 90
2.4 Dos bancos da assistência 105
2.5 As coisas nas lojas e na fábrica 107

PARTE II 112

3. Crianças cantadas 112


3.1 Um ritual musicado 118
3.1.2 Uma gira de ibejada 124
3.2 As Crianças cantadas 130
3.3 O repertório dos pontos cantados: tradição, transmissão e criação 135
3.4 Os pontos cantados para além da gira 139

4. As imagens: uma iconografia das ibejadas 146


4.1 Uma iconografia dos cultos afro-brasileiros 147
4.2 As imagens de erê 150
4.3 Como nascem as imagens 160
4.4 Crianças no altar e no congá 167
5. Vestir, brincar, trabalhar 174
5.1 Vestir-se de Criança 176
5.1.1 As roupas de erê 178
5.1.2 A alegria nos corpos 184
5.2 Trabalhar e brincar 192
5.2.1 Coisas de trabalho 193
5.2.2 Consultas das ibejadas 200

6. Doces de Criança 265


6.1 Doce é comida? 215
6.1.1 Comida dos deuses 216
6.1.2 Açúcar 222
6.2 O banquete das Crianças 230
6.3 Dar, receber e comer doces 240
6.3.1 Sorrir e agradecer 240
6.3.2 Sabores e sentidos dos doces 244

Considerações finais 250

Referências Bibliográficas 257


15

Introdução

Em 2013, eu terminaria o domingo do dia das crianças na gira festiva em homenagem


a Cosme e Damião da Cabana Pai Miguel das Almas, um centro em Pechincha, zona oeste do
Rio de Janeiro.1 Seria um domingo de muito trabalho, muitos doces, alguns deslocamentos e
uma boa dose de ansiedade. Desde o início de setembro estávamos realizando o campo sobre
as festas de Cosme e Damião no Rio de Janeiro e até então eu já havia entrevistado compradores
em lojas de doces, acompanhado grupos de crianças que corriam atrás de saquinho, visto a
Vovó Cambinda dando doce num centro na Penha; mas seria minha primeira visita a um centro
de umbanda para ver uma gira em homenagem a Cosme e Damião, meu primeiro contato com
as ibejadas da umbanda, que até então eu só tinha visto em gesso e resina, nas lojas de artigos
religiosos do Mercadão de Madureira onde eram expostas nas vitrines as imagens de erê.
Como era nossa primeira visita ao centro, não sabíamos indicar ao taxista o ponto
exato da parada, mas não ficamos em dúvida por muito tempo. No portão azul de uma casa com
um grande muro branco havia uma placa que indicava o nome do centro e seu ponto riscado2.
Ao atravessar o portão, fiquei surpresa com o tamanho do lugar. A entrada do centro era em
declive e logo depois de atravessar o portão víamos, de cima, um grande quintal com várias
árvores e, além de uma grande casa, havia uma área coberta e delimitada por uma meia parede,
como uma espécie de alpendre, e uma grande cozinha aberta e coberta, com grandes mesas e
bancos. Ao lado da cozinha havia um altar, que era grande mas discreto, iluminado pelas velas
acesas aos pés de um grande cruzeiro, ao redor do qual estavam dispostas imagens de pretos-
velhos e Omolu.
A construção principal era um grande salão de paredes e pilastras verde-água e teto de
madeira. O espaço era bem iluminado, com lâmpadas branca e verde, e no teto, além dos
ventiladores, estavam pendurados cachos de bolas coloridas, borboletas, bambolês e fitas
coloridas. Logo na entrada estavam os bancos onde ficava a assistência, e entre eles se formava

1
Nesta ocasião, como em tantas outras, estava acompanhada de Renata Menezes e Lucas Bártolo; e havíamos
chegado até esse centro por indicação de uma antiga aluna da Renata, que trabalhava numa pesquisa de
mapeamento de casas de matriz africana no Rio de Janeiro, e enviou à Renata uma listagem com nomes e endereços
de alguns centros e terreiros que realizavam giras festivas em homenagem a Cosme e Damião.
2
Trata-se de uma representação gráfica de uma entidade, que traz os símbolos que a identificam e que revelam
sua linhagem e seu campo de atuação. O ponto riscado é delimitado por um círculo e dentro dele são dispostos as
retas, flechas, desenhos geométricos e demais símbolos representativos da entidade. O ponto riscado do Centro
Pai Miguel das Almas trazia como elementos estrelas, cruzeiros, setas em espiral e linhas onduladas.
16

um pequeno corredor que levava a um espaço maior, o salão, onde estavam os atabaques e, na
parede oposta à porta de entrada, o altar. Sobre ele estavam dispostas, em três níveis, imagens
de vários santos, sendo que Cosme e Damião estavam centralizados, no primeiro nível. Dos
dois lados do altar havia portas, que estavam fechadas – e pelo lado de fora era possível ver que
ainda havia um bom espaço atrás dessas portas. Na parede do lado esquerdo, na perspectiva de
quem está na porta de frente para o altar, havia pequenas prateleiras sobre as quais estavam
dispostas mais imagens de santos. Do lado direito, havia duas grandes janelas que davam para
a área externa. Nos cantos, na parte superior, havia caixas de som. Fiquei impressionada com o
tamanho do centro, porque até então só tinha visitado um pequeno, que funcionava na casa da
dirigente, em uma pequena sala.
Pelo espaço central circulavam pessoas vestidas de blusas, saias e calças brancas,
exceto uma mulher que estava bem colorida, com uma bata longa e uma calça de cetim
estampado com faixas coloridas, que pareciam um arco íris, de cores vivas e brilhantes. O
mesmo tecido também adornava sua cabeça, num torso que deixava de fora um longo rabo de
cavalo de cabelos loiros. Ela andava para lá e para cá, sobre um salto enorme, dando ordens e
mudando coisas e pessoas de lugar. Não permaneci muito tempo ali dentro, pois estava quente
e o espaço interno, apesar de grande, era bastante abafado, e ficar na área externa era mais
confortável e das janelas era possível acompanhar o que se passava ali dentro.
A gira demorou um pouco para começar. Quem puxava o canto era a mulher que estava
com a roupa toda colorida. Quase todo mundo acompanhava as músicas, e mesmo sem saber
cantar, juntava-me às palmas. Depois de algum tempo ali na janela batendo palma, percebi um
movimento atrás de mim, onde uma fila de pessoas passava em direção à entrada do salão. Uma
senhora com um andar desengonçado, uma mulher com uma faixa no cabelo carregando uma
cesta cheia de frutas, uma senhora com um boné virado pra trás, um rapaz com dentadura de
vampiro, um boné vermelho sobre a cabeça e vários fios de conta de pequenas miçangas
coloridas, carregando mais uma cesta repleta de doces; um rapaz alto, chupando chupeta,
trazendo sobre a cabeça uma cesta com cachos de uvas e pencas de banana; uma senhora com
uma bata de mangas bufantes, com muitos babados cor de rosa; uma mulher de maria-chiquinha
com pompons cor de rosa, de chupeta na boca, agarrada à uma boneca. Alguém – que não dava
para saber se era homem ou mulher – vestido de palhaço. Um homem carregando uma cesta
cheia de pisca-pisca; uma mulher, com um grande laço na cabeça de um tecido da mesma
estampa de sua jardineira; uma senhora de camisa branca enfeitada com laços rosas carrega um
prato de manjar, todo colorido e enfeitado; e passam várias mulheres com arcos de pisca-pisca
e estrelinhas, marias-chiquinhas, bonés coloridos com a aba para trás ou para o lado; um
17

homem, com blusa e macacão vermelhos, uma faixa amarrada na cabeça, na mão um barrete de
plástico imitando madeira (parecendo um adereço de uma fantasia dos Flintstones) e puxando
com a outra mão um caminhão vermelho sobre o qual está uma tartaruga de pelúcia. Uma
senhora vestida de azul que trazia à cabeça um pequeno baú de madeira, enfeitado com
desenhos de criaturas marinhas, uma mulher com uns óculos enormes e prateados, um rapaz
que chega agarrado a uma baleia azul de pelúcia. Eram as ibejadas que estavam chegando.
Eram muitas pessoas, na assistência, e muitas entidades, todas elas trazendo algo –
cestas com doces ou frutas, bonecas ou bichos de pelúcia, enfeites sobre a cabeça, chupetas e
colares. Eram muitos estímulos, várias cores e luzes, cheiros de doces e frutas, sons ( palmas,
atabaques, vozes). Quando voltei a olhar para o salão, o espaço estava completamente tomado.
Ninguém mais estava sentado nos bancos e no centro estavam todos as ibejadas que passaram
por mim, pulando, andando, sentados no chão de pernas abertas. Quase não se via o chão,
víamos várias cabeças coloridas pelos cestos repletos de frutas, doces, cores e luzes.
Enquanto todos cantavam e batiam palma, as ibejadas se abraçavam, cumprimentavam
pessoas da casa que não estavam incorporadas e também falavam com os convidados. As
entidades pareciam muito confortáveis, tomando o espaço, cumprimentando a todos, brincando
com seus bichinhos, carrinhos e bonecas. Enquanto cantavam, dançavam e pulavam, também
comiam. Além das comidas que traziam em suas cestas, circulavam bandejas com mais doces
e frutas entre eles, servidas pelos filhos da casa. Depois de muita cantoria e alguma comilança,
as ibejadas, sentadas, começaram a arrumar ao seu redor tudo aquilo que trouxeram consigo.
Algumas delas foram para o quintal e arrumaram suas coisas sobre esteiras estendidas sob as
árvores. Quando eles organizavam suas coisas, dispondo-as todas juntas, era possível ver a
quantidade de coisas que eles tinham, eram montes de frutas e doces e manjares e bolos; muitos
carrinhos e bonecas e bichinhos de pelúcia. Em meio a tantas ibejadas e coisas, o palhaço me
chamava bastante atenção.
No alpendre foi montada uma mesa toda enfeitada, como se fosse para uma festa de
aniversário infantil, cujo tema era palhaço, e sobre ela havia bolo e vários doces. Junto à mesa
havia uma cadeira, que também estava enfeitada. Além do palhaço ter uma estrutura maior que
as das demais ibejadas, ele também tinha mais coisas e sua vestimenta era mais elaborada. Se
muitos portavam um boné ou arco, uma roupa colorida ou alguns detalhes que enfeitassem a
vestimenta branca, o palhaço estava todo paramentado, da peruca ao sapato, tanto que não era
nem mesmo possível distinguir se ali havia um homem ou uma mulher. Ali naquele espaço
várias pessoas se juntavam numa fila, todos à espera do momento para falar com o palhacinho.
18

Em breve teriam início as consultas das ibejadas, e no salão a assistência formava uma
fila única, para onde eu fui. Quando era chegada sua vez, lhe perguntavam se você queria falar
com alguma entidade específica ou se queria ir para a ibejada que estivesse disponível; como
eu não conhecia ninguém, escolhi a segunda opção. Fui encaminhada a uma mulher, que vestia
uma jardineira rosa e tinha os cabelos presos em maria-chiquinha. Sentei-me à frente dela sem
saber o que fazer ou falar. Ela me recebeu com os braços abertos e aceitei o convite ao abraço.
Fui conduzida de volta à postura que assumi ao sentar, e ela mandou eu fechar os olhos e colocar
as mãos sobre os joelhos, com as palmas viradas para cima. Senti que suas mãos se
movimentavam ao redor de meu tronco, mas sem tocá-lo. Eu não vi o que ela fazia, mas senti
quando sua boneca de pano foi posta sobre minha cabeça. Mandou eu abrir os olhos e colocou
uma cocada branca e um pirulito em minhas mãos. Disse-me que o pirulito eu podia comer na
hora, mas na cocada eu deveria dar uma mordida, enquanto fazia um pedido, e depois deveria
deixar o restante da cocada em um jardim, em algum lugar com grama. Ela perguntou se eu
queria fazer alguma pergunta e eu disse que queria saber seu nome: Mariazinha da Beira da
Praia. Despedimo-nos com mais um abraço e segui andando pelo salão. Não falei com outra
ibejada, mas aceitei os doces que várias delas me ofereciam.
De volta ao quintal, outra ibejada chamou minha atenção. Ele estava sentado na esteira,
em um cantinho embaixo de uma árvore e tinha várias aranhas e outros bichos peçonhentos -
todos de plástico. Sobre a esteira também havia portes de doces, todos pretos, como bananadas,
cocadas escuras e balas de tamarindo. Tentei conversar com ele, mas pouco entendi o que ele
falava. Com a Mariazinha tive que me esforçar um pouco, mas compreendia o que ela dizia – e
por sorte não falamos muito. Mas com aquela ibejada eu não consegui estabelecer um diálogo.
Era uma fala enrolada e pouco articulada, gutural; eu conseguia ouvir apenas grunhidos. Não
entendi nada do que ele disse, mas aceitei os doces que me deu. A fila de pessoas querendo
falar com o palhaço seguia grande.
Eu fiquei impressionada com a quantidade de gente que havia ali. Eram muitas
ibejadas e pessoas, além de muito calor e um cheiro de doce que causava um certo enjoo.
Também observava como as pessoas abraçavam longamente as ibejadas, conversavam, davam
e recebiam presentes, numa interação descontraída, que para mim parecia inatingível. Eu não
sabia cantar as músicas, não conhecia aquelas entidades que estavam ali sendo celebradas, não
sabia como me portar e não entendia muito bem o que elas diziam e tampouco sabia sobre o
que deveria falar com elas. Meu constrangimento estava, portanto, intimamente associado ao
meu desconhecimento dos códigos daquela interação, que acabavam por não me permitir ter
uma aproximação afetuosa e familiar como as que observava. Eram quase dez horas quando,
19

depois de quase seis horas, deixamos o centro, cansados e com as bolsas cheias de balas,
pirulitos, doces e frutas.

* * *

No fim da tarde do último sábado do mês de outubro de 2017, eu e Renata fomos a


Olaria, para o Caruru de Crispim do Ilé Karikò Bàbá Obalúàiyé.3 Chegamos antes do início da
gira, que acontecia no terraço cujo acesso se dava por uma estreita escada. Logo na entrada, à
esquerda, havia duas filas de cadeiras de plástico, que comportavam cerca de doze pessoas,
destinadas aos convidados e onde algumas pessoas já estavam sentadas – havia mais gente que
no ano anterior, mas ainda assim havia cadeiras vazias. Dessa vez levamos doces e refrigerantes
para contribuir com a festa, entregues a um dos ogãs da casa, que nos recebeu e ficou
conversando conosco enquanto a gira não começava. O clima era tranquilo, todos estavam ali
no salão, convidados e filhos da casa, esperando o início da gira, mas tudo já parecia estar
arrumado. A mesa já estava adornada e parecia uma mesa de aniversário infantil, repleta de
bolos e bandejas de doces e balas. Os saquinhos estampados com os santos Cosme e Damião
indicavam para quem era a festa – mantendo a comparação com aniversário infantil, os
saquinhos se assemelham às lembrancinhas que costumam ser distribuídas aos convidados e
que, comumente, fazem referência ao aniversariante ou ao tema da festa.
Além do pai de santo havia dois ogãs, sete filhos da casa e na assistência éramos nove.
A gira teve início com o ponto para o defumador sendo entoado, enquanto a fumaça e o cheiro
das ervas tomavam o lugar e envolviam nossos corpos. Saudamos Exu, Oxóssi, Ossaim,
Obaluaiê – e neste momento todos os filhos pediram bênção ao pai de santo, filho deste orixá,
que como indica o nome do Ilé, rege a casa. Tocam para Nanã e começam a chegar os orixás,
que são despachados antes que o próximo seja saudado. Atabaques, palmas e vozes se juntaram
saudando Oxumaré, Xangô, Oxum, Iansã, Iemanjá e, por fim, Oxalá; quando alguns orixás
voltaram, dançaram no salão e saudaram os convidados, dançando à nossa frente e abraçando
algumas pessoas. Depois que todos foram embora, os ogãs anunciaram o intervalo.
Convidados e filhos da casa conversam, bebem água, vão ao banheiro e Nesse
momento em que todos circulam pelo terraço, é possível ter uma melhor dimensão de seu

3
No ano anterior eu já havia visitado a casa, na mesma ocasião, acompanhando a Renata, que também ia ao Ilé
pela primeira vez. O primeiro contato com os filhos dessa casa havia sido feito por ela, em setembro de 2016,
quando assistiu a uma gira festiva, no dia de Cosme e Damião, e acompanhou Ritinha em suas andanças pelas ruas
de Vila da Penha.
20

espaço. Alguns filhos da casa estavam numa pequena cozinha, num canto recuado à esquerda,
depois das fileiras de cadeiras da assistência. A mesa de doces estava posta perpendicular às
cadeiras, próxima a uma fonte, que era uma espécie de pequena gruta, onde havia um altar.
Depois da mesa, no canto esquerdo, havia um pequeno corredor que levava a um pequeno
quartinho e ao banheiro. No lado oposto às cadeiras havia uma porta que dava acesso a um
quarto, para onde alguns orixás foram levados para serem despachados. Ao lado da porta, do
lado direito, ficavam os dois atabaques. O espaço era pequeno, mas bastante confortável.
Já eram quase oito horas quando o pai de santo deixou o salão e adentra o quarto,
acompanhado por duas filhas, uma delas levando uma tigela de louça branca coberta por um
prato. De fora, podemos ouvir os sons de palmas e de vozes cantando, mas não era possível
compreender o que era entoado. Depois de um tempo, ouvimos uma voz que até então não
tínhamos escutado.
O pai de santo sai do quarto e podemos ver que ali não está mais a pessoa que vimos
antes. Com uma tigela de louça na cabeça e uma vara na mão, ele se dirige aos convidados e
diz “didê”, fazendo com os braços um movimento que nos comunica que devemos nos
levantar. Sua voz é infantil e o rosto se contorce todo para falar, seu corpo se movimenta de
uma maneira que parece, ao mesmo tempo, bruta, estabanada e brincante. Os ogãs começam a
tocar os atabaques e os filhos da casa batem palma e cantam “1,2,3,4,5,6 eu quero ver criança
na cabeça de vocês” – e nós os acompanhamos.
Aos poucos vamos vendo as Crianças chegarem na cabeça dos filhos da casa e
tomando seus corpos, que pulam e batem palma e esfregam as mãos no rosto ao receber as
entidades infantis. Quem não incorpora essas entidades, as serve. Enquanto as Crianças vão se
sentando no chão, os filhos da casa vão atendendo aos seus pedidos: enchem seus copos com
refrigerante, pegam seus brinquedos, arrumam seus cabelos. Enquanto as Crianças brincavam
no salão, vários pontos iam sendo cantados,

Lá no céu tem três estrelas


Todas três em carreirinha
Uma é Cosme e Damião, a outra é Mariazinha

Bahia é terra de dois, é terra de dois irmãos


Governador da Bahia é São Cosme e São Damião

Cosme e Damião
Ô Damião cadê Doum
Doum foi passear no cavalo de ogum
Dois Dois, sereia do mar
Dois Dois, mamãe iemanjá
21

Na Bahia tem um coco,


Coco que faz a cocada
Coco que faz o manjar
Para dar pra ibejada

Doum, Doum, Doum


Doum, Cosme e Damião
Doum, Doum, Doum
Brinca sentado no chão

Titia me deu cocada, titio me deu guaraná


Gostei foi do caruru que a mamãe mandou preparar
Mamãe me deu caruru, eu comi caruru de mamãe
Mamãe me deu caruru, eu comi caruru de mamãe

Depois de alguns pontos e brincadeiras, às Crianças foram entregues tigelas para que
elas as levassem, sobre a cabeça, até um pano estendido no centro do salão. Sobre o chão era
posta a mesa das Crianças, com caruru, frango desfiado com arroz, banana da terra frita, acarajés
e camarões. Enquanto as Crianças comiam, nós, os convidados, também fomos servidos.
No Ilé Asé Obalúàiyé ficávamos bem próximo às Crianças e, mesmo quando não havia
uma interação direta, era possível ver tudo o que elas faziam – exceto quando estavam dentro
do quarto, já que a porta era sempre fechada. Mas foi depois que todos comeram que pudemos
nos sentar e conversar com elas no chão do salão.
Ritinha nos mostrou seus brinquedos, contando que gostava muito de bonecas e de
panelinhas e se gabando da quantidade de coisas que tinha. O que estava ali não era nem metade
de todos os seus brinquedos, que lá na casa da Grandona – como ela chamava quem a recebia
– ela tinha uma caixa cheia com suas bonecas e panelinhas. Em sua breve vida terrena, Ritinha
teve uma infância muito pobre e passou fome; e depois que souberam de sua história, quem a
conhecia costumava lhe dar de presente panelinhas de brinquedo. Agora ela não só podia comer
tudo que quisesse, como poderia brincar de cozinhar. Mesmo com todos os seus brinquedos e
presentes, Ritinha reclamava que não recebia tanta atenção como a Rabuda – em referência à
pomba-gira que tomava o mesmo corpo que lhe recebia. Ritinha reclamava que todo mundo só
queria falar com a Rabuda, mas que ninguém fazia fila para falar com ela; e fazia questão de
dizer que não era menos importante que a Rabuda, que também tinha poder e sabia fazer as
coisas.
Uma das medidas dessa importância de Ritinha era, justamente, a quantidade de
brinquedos que tinha – pois significava que ela ganhava muitos presentes, por ser muito querida
por aqueles que a conheciam e muitas vezes o apreço sucede uma graça concebida, um pedido
realizado. Para não ficar com tanta coisa, a cada novo brinquedo que ganhava, Ritinha se
22

desfazia de um antigo, mas não necessariamente à mesma pessoa de quem havia recebido um
presente. E assim ganhei dela uma boneca que, pelo estado de seu vestidinho, parecia já antiga.
Perguntei se a boneca tinha nome e ela disse que não, mas que eu podia chamá-la de Ritinha,
pois assim não esqueceria de quem me deu o presente.
Jandirinha também nos mostrou seus bichos de pelúcia, mas era bem menos falante
que Ritinha. Não me deu tanta conversa, mas me deu um passe com um de seus bichinhos,
depois de me perguntar se eu estava formosa. Pegou em minhas mãos, juntando-as dentro das
suas e as beijou, dizendo que eu devia acreditar e que tudo ia ficar bem. Por fim, ofereceu-me
um camarão.
A Criança do pai de santo tinha uma fala mais embolada, que eu tive mais dificuldade
para entender. Ele falava enquanto comia ovos, que tirava da tigela branca que equilibrava sobre
a cabeça quando entrou no salão. Ao mesmo tempo que conversava com a gente ia falando
também com outras pessoas e assustando algumas com sua cobrinha de brinquedo, que passava
pela canela de quem caminhava por perto. Quando prestou mais atenção em mim, olhou-me de
cima a baixo e disse “você deveria estar de saia”. Chamou o ogã e disse a ele que eu já devia
estar de saia e trabalhando – e que eu sabia muito bem disso. Não se tratava simplesmente de
uma reprimenda à minha vestimenta, a saia que ele disse que eu deveria estar usando era uma
como as usadas pelas filhas da casa e o trabalho que eu devia, segundo ele, estar fazendo ali era
outro.
Voltei à cadeira para comer o pratinho que tinha recebido, com pedaço de bolo e
docinhos, e tomar guaraná. Moisés estava vendendo frutas, guardando seus ganhos na caçamba
de seu caminhãozinho. Ele ficava feliz com o tilintar das moedas, mas reclamava que ninguém
tinha trazido timoninho para brincar com ele e que era para ter timoninho nessas festas. Moisés
tinha razão, pois não havia nenhuma criança entre os convidados.
Quando é anunciado o momento da partida, todos reclamam que não querem ir, pedem
para ficar mais, dizem que foi muito rápido e que ainda querem brincar. Os ogãs deixam as
Crianças reclamarem um pouco, mas não demoram muito a puxar o ponto de despedida:
“Andorinha que voa voa/ Leva as Crianças pro céu, Andorinha/ Andorinha que voa voa/ Leva
as Crianças pro céu, Andorinha”. Entendendo que é chegada a hora, elas vêm se despedir dos
convidados, mandando muitos beijos. A Criança do pai de santo se despede e, com a tigela na
cabeça e sua vara na mão, retorna ao quarto. Alguns minutos depois, os corpos que antes
pulavam agitados agora parecem cansados. Os filhos arrumam suas batas e saias, ajeitando a
roupa, passam as mãos sobre os cabelos e com uma toalhinha secam o suor do rosto. O pai de
23

santo agradece o empenho e trabalho dos filhos da casa, a presença dos convidados, todos que
fizeram essa homenagem às Crianças; e dá por encerrada a gira.

* * *

Desde o primeiro contato com as ibejadas, elas chamaram minha atenção. Como
pesquisadora da festa de Cosme e Damião eu já estava habituada a ver (e comer) muitos doces,
mas nunca havia visto um ritual religioso onde o doce era a comida principal. Nunca tive um
contato próximo com a umbanda, mas nas poucas ocasiões em que fui a uma gira e nos diversos
relatos que li e ouvi sobre seus rituais era comum a referência aos exus, malandros, pomba-
giras, pretos-velhos e caboclos, aos charutos, bebidas e ervas; mas quase nunca estavam
presentes as ibejadas e seus doces e brinquedos. Depois de me debruçar, durante o mestrado,
sobre as crianças da festa do dia 27 de setembro, decidi que meu doutorado seria sobre as
ibejadas, as entidades infantis (e pouco conhecidas) da umbanda.
No meu primeiro contato com as ibejadas estranhei a profusão de cores, como o ritual
parecia uma festa de aniversário infantil, como as entidades chegavam carregadas de doces e
brinquedos, a interação próxima e afetuosa entre pessoas e entidades – e a quantidade de pessoas
que estavam ali, numa tarde de domingo, para ver e falar com as ibejadas. Como elas entendiam
aquela fala enrolada? O que conversavam e pediam àquelas entidades? Por que as ibejadas
tinham tantas coisas?
Depois de alguns anos assistindo a várias giras festivas e sessões de consulta, tendo
um contato mais próximo com as ibejadas, conversando com médiuns e assistentes, ajudando
nos preparativos da festa; fui entendendo um pouco melhor essas entidades e suas coisas. Ouvi
que a alegria era o grande poder das ibejadas, sobre a leveza que sentiam depois de uma gira,
sobre os pedidos pela saúde de familiares, pela proteção às crianças, por uma gestação tranquila,
por conselhos profissionais; aprendi a cantar vários pontos, observei e me envolvi nos trabalhos,
custos e cuidados da preparação de uma gira festiva; fui aprendendo a entender o que ouvia das
ibejadas, a conversar com essas entidades e ver o que as cores das roupas e brinquedos nos
diziam sobre cada ibejada e como essas entidades, ainda que pouco presentes – nos rituais dos
centros e, consequentemente, na literatura sobre eles –, têm seu lugar no panteão umbandista e
são cultuadas por diversas pessoas que acreditam na doçura, na leveza, na pureza e na alegria
das Crianças.
24

Nesta tese, apresento as ibejadas a partir de todas essas coisas que, desde o primeiro
momento, chamaram minha atenção. Ao longo deste trabalho, discuto como essas entidades
infantis nos permitem compreender uma infância idealizada, sacralizada e materializada em
cores, gestos e sabores que nos permitem ver e sentir as Crianças. A inocência, a pureza, a
doçura, a alegria, a manha, a jocosidade, a astúcia, a malícia e as brincadeiras são sacralizadas
nessas entidades infantis e se apresentam nos pontos cantados, nas imagens, nas roupas, corpos,
brinquedos e doces que compõem os rituais que cultuam e homenageiam as ibejadas. Mas antes
de apresentar as questões e autores que mobilizo a cada capítulo deste trabalho, gostaria de
trazer dois pontos que já se apresentam nesses relatos e que compoẽm um plano de fundo para
esta tese.

Um estilo (coletivo e catártico) de conhecer as Crianças

Em 2013 estava no primeiro ano do mestrado e enquanto membro de uma pesquisa


coletiva fiz meu primeiro campo. A pesquisa ‘Doces santos: reciprocidade, relações
interreligiosas e fluxos urbanos em torno à devoção a Cosme e Damião no Rio de Janeiro’
compreendia as festas que celebravam os santos gêmeos enquanto fatos sociais totais (MAUSS,
2003) que nos permitiam apreender relações de reciprocidade produzidas e reiteradas na festa,
as relações interreligiosas – por ser uma festa que se espalha por igrejas de distintas
denominações, centros e terreiros – e pensar a cidade do Rio de Janeiro a partir dos circuitos e
sociabilidades estabelecidas a partir daqueles que faziam e vivenciavam a festa (MENEZES,
2013).
Para dar conta da festa em suas múltiplas modalidades e escalas, desde sua concepção
a ‘Doces Santos’ se propunha um empreendimento coletivo. Esse método buscava atender às
demandas de uma pesquisa sobre festa, onde várias coisas e pessoas acontecem e circulam ao
mesmo tempo, e onde temos que, a cada momento, tomar a difícil decisão do recorte, que
sempre implica dar atenção a uma situação em detrimento de várias outras. Ao trabalhar
coletivamente, esse receio parece que, em certa medida, é apaziguado – o que escapou ao meu
olhar pode ter sido observado por outro membro da equipe, ou podemos ter visto a mesma
situação e contrastar nossas impressões. Assim, nos espalhamos por vários pontos da cidade e,
em um só dia, conseguimos ver o que um só pesquisador levaria anos para observar,
considerando que a festa acontece apenas uma vez ao ano.
25

Além de uma saída metodológica, a opção pela pesquisa coletiva revela-se também
como a escolha por um certo estilo de fazer antropologia. Ao relatarem suas experiências ao
longo de trinta anos inseridos numa pesquisa coletiva na zona da mata de Pernambuco, Sigaud
(2008) e Palmeira (2014) destacam a singularidade desse “modo de produção e acumulação”
que marcou suas trajetórias profissionais e a dos diversos pesquisadores que participaram desse
empreendimento e de tantos outros alunos que foram formados por esses professores no âmbito
do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional. Esse projeto gerou
inúmeros trabalhos – artigos, dissertações e teses – sobre plantation, relações de patronagem,
faccionalismo, eleições e diversos temas que comumente são agrupados sob a rubrica da
antropologia rural. De maneira mais ampla, essas pesquisas se inseriam também no campo da
antropologia da política e, neste escopo, foram surgindo outros trabalhos que não se restringiam
às sociedades camponesas, mas que levaram esse modo de produção e esse estilo de fazer
antropologia a outros domínios. Exemplo deste movimento são as pesquisas de mestrado e
doutorado realizadas por Renata Menezes (1996, 2004), ambas sob a orientação de Moacir
Palmeira, que transpuseram esse estilo de antropologia aos campos da religião e da festa e à
cidade do Rio de Janeiro. Nesse sentido, proponho aqui pensar que o caráter coletivo da
pesquisa Doces Santos revela a opção por um determinado estilo de fazer antropologia que
marca as trajetórias de sua idealizadora e coordenadora; do professor que a orientou durante o
mestrado e doutorado e, de maneira mais ampla, do programa onde ela se formou e ao qual está
vinculada a pesquisa. Por fim, passou a marcar também a trajetória dos pesquisadores que
iniciaram seus percursos antropológicos inseridos nessa pesquisa, dentre os quais me incluo.
Em ‘A collective ethnographer’, Sigaud ressalta alguns traços e dinâmicas desse estilo
e modo de produção (2008, p. 89-93), um fazer antropológico marcado pela atenção às
categorias locais e aos distintos sentidos que elas podem assumir. Mesmo em situações onde o
idioma seja o mesmo, o esforço em não assumir que determinadas palavras querem dizer o que
já sabemos que dizem, o empenho em compreender as categorias para além do óbvio. Um
exercício que não é feito somente em campo, no contato direto com os interlocutores, mas
também entre os pesquisadores; com a partilha e o acúmulo de sucessos, desafios, dúvidas,
inspirações e percepções. Momentos que a autora caracterizava como catárticos (SIGAUD,
2008, p.90) e que possibilitavam aos pesquisadores acelerar o tempo de descoberta.
No nosso caso, os momentos catárticos se davam nos percursos de ida e volta de uma
gira ou festa, no vagão do trem a caminho do Mercadão de Madureira, nos bancos da assistência
esperando o início da gira, nas visitas às lojas de vendas de doces em atacado; situações em que
compartilhamos receios, frustrações, descobertas, incômodos, dúvidas, espantos e entusiasmos.
26

Nas leituras e discussões dos relatórios de campo, era possível perceber as reflexões que o
campo suscitou em cada um e assim íamos acompanhando a construção de questões
particulares, como cada um ia encontrando seu tema de pesquisa dentro daquele projeto mais
amplo. Nesse processo criamos um corpus de dados sobre as festas de Cosme e Damião no Rio
de Janeiro, acumulando e compartilhando relatos, fotografias, vídeos, entrevistas e categorias;
e a partir desse acúmulo coletivo, fomos desenvolvendo nossas pesquisas, que se configuravam,
ao mesmo tempo, como recorte e desdobramento da Doces Santos.
O saquinho estampado com a efígie dos santos gêmeos e recheado de guloseimas é,
pelo menos no Rio de Janeiro4, o grande símbolo dessa festa, e o 27 de setembro é o grande dia;
mas as celebrações aos santos gêmeos não se encerram no dar e distribuir doces e tampouco
num único dia. Ao longo dos três anos da pesquisa pudemos compreender a festa para além do
momento da distribuição dos saquinhos e inseri-la num calendário de festejos que tem início
nas semanas que antecedem o dia 27 e se estendem até o fim do mês de outubro5. Visitamos
diversas lojas de venda de doces em atacado, identificando um circuito de doces percorrido por
aqueles que, entre cálculos financeiros e afetivos, elegem e compram os doces que serão
distribuídos (FREITAS, 2019). Acompanhamos o processo de montagem dos saquinhos e
percebemos o caráter coletivo dessa atividade, que se desenvolve numa espécie de ritual
familiar (MENEZES, 2016). Percebemos como a festa reconfigura dinâmicas socioespaciais,
estabelecendo e reafirmando relações de afeto e caridade, mas também reforçando e produzindo
aproximações e distanciamentos em interações que podem divertir ou amedrontar (FREITAS,
2015; BÁRTOLO, 2018b). Vimos como os santos são celebrados nas igrejas, com missas,
bolos, distribuição de doces e brinquedos; em centros e terreiros de umbanda e candomblé, e
também em cerimônias do Santo Daime. Visitamos uma igreja neopentecostal que promove um
evento no dia 27, para afastar as crianças das ruas e dos saquinhos dos santos gêmeos, mas sem
deixá-las sem doces. Vimos, ainda, Cosme e Damião se tornarem enredo de escola de samba e
desfilarem pela Sapucaí (BÁRTOLO,2018a).
Dentre os produtos dessa pesquisa, figura minha dissertação, intitulada ‘Entre doces
e crianças: a festa de Cosme e Damião no Rio de Janeiro’ (2015), onde tematizei as construções

4
Em contraponto a Salvador, por exemplo, onde o caruru é mais representativo da celebração aos santos
gêmeos.
5
Cerca de vinte pesquisadores de diferentes níveis de formação colaboraram ao longo dessa pesquisa,
que possui uma equipe permanente formada pela coordenadora Renata Menezes, por Lucas Bártolo
(doutorando PPGAS/MN/UFRJ) e por mim.
27

e demarcações da categoria “criança”. A partir de entrevistas com adultos nas filas das lojas de
doces e nos momentos de montagem e distribuição dos saquinhos, percebi que as crianças para
as quais eles faziam a festa tinham diversas nuances. E, no dia da festa, nas interações com
adultos, doces e brinquedos, as crianças também buscavam delimitar as fronteiras de sua própria
categoria. As crianças eram, portanto, centrais em minha dissertação. Mas foi somente no
último capítulo que falei das entidades infantis, considerando-as como “as outras crianças” que
também faziam parte da festa. Naquele momento, eu as pensava enquanto materializações das
crianças idealizadas pelos adultos que compravam os doces e davam os saquinhos; considerava-
as enquanto contraponto às crianças que corriam atrás de doce no dia da festa, que eram menos
vistas como doces e inocentes do que de mal educadas e carentes.
Para trazer essas “outras crianças” em minha dissertação, falei sobre uma gira que
havia visto num centro em Laranjeiras, em setembro de 2014, afirmando que ali era a primeira
vez que eu tivera contato com as entidades infantis da umbanda. Foi só agora, em 2020,
pensando em como introduzir esta tese, que me recordei que meu primeiro contato havia sido
em Pechincha, em outubro de 2013; eu não havia esquecido deste dia, mas não me recordava
que aquela era a data do nosso primeiro encontro. Ao remexer pastas e arquivos físicos e digitais
de meu campo de mestrado, não encontrei nenhum relatório mais detalhado dessa primeira gira.
Meus relatos terminavam no final da festa de um clube em Quintino, apenas mencionando que
de lá eu fui para o centro, mas sem muitos detalhes. Nessa primeira gira eu não sabia exatamente
o que estava vendo, sabia que era parte do campo da pesquisa, mas não necessariamente do
“meu” campo. Como estava interessada nas crianças da festa, concentrei-me em vê-las correndo
atrás de doce ou numa festa, como a do clube, que era feita para elas. Somente no ano seguinte
fui a uma gira compreendendo que as entidades que via ali também poderiam ser consideradas
crianças da festa; e só anos depois me dou conta que naquele domingo em Pechincha vi pela
primeira vez as Crianças que seriam o tema de minha tese.
Nos quatro anos entre o primeiro e o segundo relato que trouxe aqui, bastante coisa
mudou. As entidades deixaram de ser outras crianças para serem as Crianças, de contraponto
ao centro da análise. Neste processo mudaram meu olhar sobre elas e minha forma de estar na
gira, fui ficando menos inibida, começava a ficar mais confortável ao sentar-me junto com elas,
entendia melhor o que elas falavam, aprendi a cantar vários pontos. E, como busquei aqui
salientar, esse processo de ir encontrando e aprendendo sobre e com as Crianças foi coletivo e
catártico.
28

Vestir saia e pesquisar umbanda

A Criança do pai de santo da casa de Olaria, depois de um breve momento me


analisando de cima a baixo, disse que eu deveria estar de saia e trabalhando; ou seja, que eu não
deveria estar na assistência, de fora, mas sim fazendo a festa, de saia. Estar de saia significava
estar vestida como uma filha de santo – de camisu ou bata, ojá (torço) na cabeça e saia – e estar
trabalhando seria estar desempenhando as atividades que envolvem o preparo e realização da
homenagem às Crianças. Por fim, ele ainda me disse que eu sabia disso. Não fiquei surpresa ao
ouvir aquilo, não entendi o recado como um aviso para atender a um chamado das entidades,
ou uma revelação de uma relação que eu deveria estabelecer com a religião; para mim aquela
não era uma mensagem codificada ou indireta, mas bastante clara. Ali entendi que eu havia sido
identificada como uma filha de santo, como alguém que já tem e veste saias e que, naquele
contexto, poderia estar trabalhando de outra forma.
Eu já vestia saia antes mesmo de encontrar Cosme, Damião e as Crianças; e a minha
relação com os santos gêmeos e as entidades infantis foi, em certa medida, conformada pelo
meu vestir saia, isto é, pela minha inserção religiosa. Na pesquisa sobre a devoção a Cosme e
Damião no Rio de Janeiro, eu me dispus a correr atrás de doces com grupos de crianças por
bairros para mim totalmente desconhecidos, ir a igrejas e assistir às missas, observar giras em
centros de umbanda; mas nunca me mostrei disponível a fazer campo em um terreiro de
candomblé. O fato de eu ser uma filha de santo, quase recém nascida, impunha um limite ao
meu campo. Mesmo com essa relação posta desde o início, eu sempre me furtei do exercício de
pensá-la em profundidade, tomá-la enquanto questão que merecia um espaço de reflexão em
meu trabalho.
Decidi que a tese seria um momento de encarar essa questão6, depois de alguns anos
após minhas iniciações: enquanto filha de santo e como antropóloga (ainda que siga sendo
neófita em ambos domínios). Não pretendo, no entanto, fazer apenas uma confissão de minha
pertença religiosa, mas aqui exponho minha identidade religiosa por considerar esse movimento
necessário à compreensão de minha pesquisa, meu campo, meu olhar e as questões que produzo
e sobre as quais escrevo neste trabalho.
Bourdieu (1987) e Pierucci (1999) nos falam acerca das implicações que a pertença
religiosa dos pesquisadores, notadamente aqueles que se inserem no campo da sociologia da

6
Agradeço aqui as provocações de Luiz Fernando Dias Duarte e Patrícia Birman que, em meu exame de
qualificação, me indagaram sobre esse tema e me incentivaram a refletir sobre ele.
29

religião, pode ter sobre seus trabalhos. Para esses autores, o maior perigo é tornar impura a
pesquisa científica; o receio de que um sociólogo da religião, por ser religioso, acabe por não
fazer sociologia. Para mim as dicotomias ciência/religião e pureza/impureza apresentadas pelos
autores são um tanto rígidas e o receio pelo fim da ciência pura é um pouco exagerado; mas me
junto a eles na argumentação por uma relação crítica do pesquisador frente à sua religião e seu
trabalho. E, nesse sentido, a citação de Bourdieu parece-me bastante elucidativa;

Do obstáculo à objetivação, a pertença pode se tornar um adjuvante da


objetivação dos limites da objetivação, contanto que ela mesma seja
objetivada e controlada. É com a condição de saber que se pertence ao campo
religioso, com os interesses aferentes, que se pode controlar os efeitos dessa
inserção no campo e retirar daí as experiências e informações necessárias para
produzir uma objetivação não redutora, capaz de superar a alternativa do
interior e do exterior, da vinculação cega e da lucidez parcial (BOURDIEU,
1987, p. 112)

Menos do que uma tentativa de controle, procuro nesse exercício fazer da pertença
religiosa um ponto de reflexão, assumindo que pesquisar religião enquanto se é religioso tem
algum efeito. A partir do momento em que esse exercício é levado a cabo, a relação entre
pertença religiosa e pesquisa sobre religião torna-se menos conflituosa; ao invés da religião do
pesquisador invalidar seu trabalho, ela passa a ser, em sua pesquisa, fundamental – se não uma
questão autônoma, uma das lentes a partir das quais vemos nosso campo e fazemos nossas
leituras.
Afirmar-me enquanto candomblecista também é uma forma de não cair no que
Bourdieu define como jogo duplo, de quem pretende acumular as vantagens das práticas
científicas e religiosas, sem objetivar esta última. Segundo o autor, essa é uma ambiguidade
que a linguagem acaba por denunciar, quando no texto deixamos escapar a evidência de
intimidade com uma religião – e nesta armadilha já caí algumas vezes, ao naturalizar alguns
termos de meu universo religioso, escrevendo-os sem explicá-los.
Minha tese não é sobre as Crianças porque sou filha de santo, mas permaneci no campo
da umbanda por ser de candomblé. Desde que estive pela primeira vez num centro de umbanda,
fui percebendo diferenças – ou melhor, compreendia o que via a partir da experiência que tinha;
e, por esse lado, desde o início estabeleci algum nível de comparação. Perceber as diferenças
me permitiu ocupar esses espaços sem estar de saia, ouvir o atabaque sem “passar mal”, ver e
sentir as entidades sem o receio da incorporação. Pude, então, manter-me numa proximidade
distante, onde eu conheço e desconheço, sinto e não sinto; onde eu consigo estabelecer um
vínculo lúcido – e também encantado e sensível.
30

Estar num domínio que é próximo sem ser idêntico, pode gerar algumas confusões.
Algo que eu acredito saber o nome, descubro ser chamado por outro; o que penso ser indicativo
de alguma coisa, pode não significar nada – ou dizer qualquer outra coisa bem diferente. Às
vezes acho que sei cantar uma música e percebo que a letra é outra. Vejo uma entidade se
manifestar e não reconheço os gestos, precisando prestar atenção ao que é cantado no ponto
para saber quem estou vendo. Ainda que muitas vezes tratadas como próximas, ambas rotuladas
como religiões de matriz africana, umbanda e candomblé têm também suas distâncias – e temos
ainda as distâncias entre as linhagens, entre as casas que seguem uma mesma doutrina ou
tradição; o que acaba por tornar cada terreiro, ilé, cabana, centro ou tenda um caso singular.
Minha vivência no candomblé, portanto, não me ensina muito sobre as práticas da umbanda, ao
mesmo tempo que me permite acessar, em algum nível, um universo em comum.
Essa reflexão é também uma tentativa de juntar duas questões que me foram postas
pela banca de qualificação: a relação entre minha pertença religiosa e minha pesquisa; e o peso
das materialidades em meu trabalho. Não foi sugerido pela banca que essas duas questões
estivessem interligadas, mas para mim elas estão intimamente relacionadas. Minha atenção às
coisas foi uma maneira de dar conta do campo, a partir de uma outra posição que não implicasse,
necessariamente, um envolvimento maior, por exemplo, no cotidiano de um centro – um
caminho bastante comum nas etnografias sobre umbanda. Dos bancos da assistência,
acompanhando as giras e sessões de consulta, vendo como o espaço do salão ia sendo tomado
pelas coisas das ibejadas, percebendo como os corpos dos médiuns se preparavam para receber
as entidades e como se transformam quando elas chegavam, observando entidades e pessoas
interagindo nas consultas, falando eu mesma com as ibejadas, participando dos doces banquetes
ofertados às ibejadas; eu senti as ibejadas, experimentando suas cores, cheiros, gestos e sabores.
Uma etnografia do banco da assistência e sobre as materialidades das ibejadas não significa,
portanto, um olhar distante, não implicado e focado apenas nas coisas; mas uma abordagem
que, ao se aproximar daqueles que vão aos centros para ver e falar com as ibejadas, busca
compreender como essas entidades podem ser corporalmente experienciadas além do transe.

Estrutura da tese

Esta tese foi dividida em duas partes: se na primeira construo o objeto, na segunda
desenvolvo etnograficamente o problema proposto. Nesta introdução quis apresentar duas
questões que nortearam minha pesquisa, mas que não se autonomizaram como discussões
31

centrais desta tese e a elas não dedico nenhum capítulo específico. Nesse sentido, a primeira
parte também tem um caráter introdutório, pois nela apresento o problema, o escopo teórico e
o campo empreendido para realização desta tese. A segunda parte é mais etnográfica, e a partir
das giras, das lojas de artigos religiosos e da fábrica de imagens elaboro e desenvolvo as
questões deste trabalho, apresentando, a cada capítulo, um ângulo a partir do qual podemos ver
(e sentir) as ibejadas.
No primeiro capítulo, intitulado ‘As Crianças da umbanda’, veremos qual lugar as
ibejadas, esses espíritos que desencarnaram ainda na infância, que também são compreendidos
enquanto um tipo de manifestação específica, neste caso infantil; dentro do panteão umbandista,
uma religião de transe, onde a comunicação entre esta e outra esfera se dá (também, mas não
exclusivamente) na incorporação das entidades nos corpos dos iniciados (BASTIDE, 1973;
PRANDI, 1991b; MAGNANI, 1986). Apresento brevemente, a partir da literatura
antropológica e umbandista, algumas doutrinas e práticas que compõem esse universo da
umbanda (BROWN, 1985; BIRMAN, 1985; GOLDMAN, 1985; ORTIZ, 1991; FERRETTI,
2001; MAGGIE, 2001; GIUMBELLI, 2002; SILVA, 2005; SARACENI, 1996; NAVARRO,
2015) e, a partir de algumas entrevistas, falo quem são os Pedrinhos, Mariazinhas, Rosinhas,
Doum, Joãozinho e demais ibejadas às quais me dedico nesta tese. Para falar das ibejadas,
apresento outras entidades infantis cultuadas em centros, terreiros, igrejas e lares. Veremos
como Ibejis, Cosme, Damião, Doum, erês e ibejadas conformam um universo do divino infantil,
cultuado com muito açúcar e dendê. São todas Crianças divinas – e neste primeiro capítulo
também explico porque utilizo o termo em inicial maiúscula (Criança) para me referir a essas
entidades.
Em ‘Coisas, lugares e tempos das ibejadas’, apresento autores e questões que
enquadram esta tese e a localizam dentro do campo da antropologia (MENEZES, 2011; LIMA,
2014; PEREIRA, 2014; ENGELKE, 2012; KEANE, 2007, 2008; MEYER, 2019), além de
revelar os lugares onde vi e estive com as Crianças. Menos que propor uma exaustiva revisão
bibliográfica sobre abordagens antropológicas, a intenção é apresentar autores e autoras com
quem dialogo diretamente, que me forneceram conceitos, propostas metodológicas e me
apontaram caminhos, tanto na inserção no campo quanto na elaboração de questões a partir dos
dados etnográficos. Assim, este capítulo revela uma espécie de moldura (frame), que enquadrou
a elaboração e escrita desta tese, e que também guia sua leitura.
Em seguida, conto um pouco sobre os diversos centros em que estive, e em mais
detalhes apresento o Centro de Umbanda Caminhos de Aruanda (CUCA), um centro que, por
ter as ibejadas presentes ao longo de todo o ano, foi fundamental para que eu tivesse um contato
32

mais próximo e regular com essas entidades. Reflito sobre o os bancos de assistência dos
centros, um lugar de observação que considero bastante rentável por nos permitir pensar como
as entidades podem ser sentidas para além do transe religioso. Neste segundo capítulo veremos
ainda como, para apreender a vida social das coisas das ibejadas (APPADURAI, 1990;
KOPYTOFF, 1990), ampliei meu campo de observação às lojas de artigos religiosos e a uma
fábrica de imagens, onde pude perceber como as coisas são produzidas, manuseadas e
classificadas antes de chegar aos centros de umbanda.
A partir da leitura da primeira parte, espero que seja possível compreender que este é
um trabalho sobre as ibejadas, entidades infantis da umbanda, apreendidas a partir de suas
coisas, que nos permitem pensar numa concepção de infância ideal e sagrada, marcada por
valores, como pureza, inocência e alegria; que se materializam em música, corpos, gestos,
roupas, brinquedos, doces. Para ver, conhecer e sentir essas Crianças, sentei-me nos bancos de
assistência de alguns centros de umbanda do Rio de Janeiro, conversei com médiuns, dirigentes
e consulentes e, considerando que os objetos religiosos circulam também por outros espaços,
percorri lojas de artigos religiosos e estive em uma fábrica de imagens. Dentro do campo da
antropologia, mais especificamente dos estudos da religião, este trabalho conforma-se enquanto
uma abordagem material dessas entidades e dos rituais nos quais elas se apresentam e onde
pessoas e coisas se mobilizam e são mobilizadas para ver, conversar, sentir e cultuar as alegres,
inocentes, puras, brincalhonas, comilonas, choronas, irritáveis e poderosas Crianças.
Sempre que perguntava aos meus interlocutores quem eram as ibejadas e quais as suas
particularidades em relação a outras entidades, diziam-me que as Crianças eram alegres e que
seus poderes vinham daí, da alegria. Pureza e inocência também eram descritos como atributos
dessas entidades, mas só a alegria era acionada para qualificar tanto as Crianças quanto as suas
coisas. Ao longo da segunda parte desta tese, veremos como as músicas, imagens, roupas,
objetos e comidas das Crianças têm ritmos, cores, estampas e gostos alegres. Assim, ao
apresentar as ibejadas e suas coisas, estou a todo tempo discorrendo sobre a alegria, aqui
apresentada a partir das coisas pelas quais se espalha e se materializa.
Em ‘Crianças cantadas’, apresento os pontos cantados das ibejadas, compreendidos
enquanto um meio de comunicação ritual – notadamente, mas não exclusivamente, oral – que
relaciona pessoas e entidades. Ao aproximar os pontos cantados das preces, gostaria de voltar
minha atenção às expressões do ritual que, apesar de marcadas pela oralidade não se restringem
a ela e se estendem em palmas, vozes e atabaques, que aproximam pessoas e entidades,
reconhecem e cultuam os poderes dos orixás, pretos-velhos, caboclos, ibejadas. Neste quarto
capítulo, veremos que os pontos cantados, assim como as preces, não são apenas um tipo
33

narrativo, mas também pragmáticos, pois eles fazem as Crianças. Como veremos, nas giras as
ibejadas são ritualmente cantadas.
No quarto capítulo veremos as imagens das ibejadas. Como nasce uma imagem? De
que ela é feita e quem a faz? Como se escolhe uma imagem para sua Criança? Entre lojas de
artigos religiosos, uma fábrica de imagens e o congá, procuro responder a essas perguntas. Em
‘As imagens: uma iconografia das ibejadas’ perceberemos que ao longo de suas vidas as
imagens de erê transformam-se em imagem de ibejada, ganham nome próprio, tornam-se
singulares e sagradas, e, em gesso policromado, apresentam as Crianças.
No quinto capítulo, vestir, brincar e trabalhar serão tratados enquanto performances
realizadas entre pessoas, roupas e brinquedos, em contexto ritual. Considerar as giras de ibejada
enquanto performances nos permitirá pensar acerca dos comportamentos específicos,
convencionais e encorporados desse ritual, onde médiuns e assistentes transformam-se para
receber, ver e interagir com as Crianças. Para considerar essas performances faz-se, então,
necessário pensar que corpos são esses nos quais elas se ancoram. Os corpos – assim como as
roupas, brinquedos, doces – não são apenas objetos nas giras, mas são eles próprios sujeitos
nesses rituais, onde e a partir dos quais as Crianças se apresentam e trabalham-brincam-
trabalham.
Por fim, em ‘Doces de Criança’ veremos como as ibejadas podem ser pensadas
gustemologicamente (SUTTON, 2010), isto é, a partir do paladar e outros aspectos sensoriais
da comida, neste caso, os doces. Estes serão compreendidos enquanto parte do sistema culinário
das religiões afro-brasileiras e neste último capítulo veremos como eles circulam pelo centro
em dois dias: no dia 26 de setembro, acompanhando os preparativos da festa, e no dia 27,
quando são distribuídos saquinhos e realizada a gira festiva da ibejada, a noite do grande
banquete. Ao acompanharmos a cuidadosa tarefa de arrumar os doces e frutas, percebemos que
nas giras festivas impera uma estética dos doces, que nos permite conhecer e sentir as doces
ibejadas, sentindo seus sabores, cores, doçura, pureza e alegria.
34

PARTE I

1. As Crianças da umbanda

As ibejadas são uma das entidades que integram, junto a orixás, santos e guias, o
panteão da umbanda, uma religião afro-brasileira. Segundo Goldman (2009, p.106), essas
religiões são
[U]m conjunto algo heteróclito, mas certamente articulado, de práticas e
concepções religiosas cujas bases foram trazidas pelos escravos africanos e
que, ao longo da sua história, incorporaram em maior ou menor grau
elementos das cosmologias e práticas indígenas, assim como do catolicismo
popular e do espiritismo de origem europeia. Evidentemente, esses elementos
transformam-se à medida que são combinados, e vice-versa.

Essa denominação, ao invés de religiões de matriz africana, parece-me mais apropriada


aos caminhos que busco percorrer nesta tese, onde importam menos as possíveis origens no
continente africano do que os movimentos de assimilação, recriação e reinvenção que
caracterizam essas religiões, seus panteões e seus cultos em terras brasileiras.
A intenção deste capítulo é apresentar essas divindades – orixás, espíritos, santos,
manifestações – infantis, apontado aquilo que as distingue e aproxima, como mesmo sendo
diferentes, essas Crianças habitam um mesmo universo: divino, infantil, religioso e afro-
brasileiro. Ao apresentar as ibejadas junto aos santos e orixás gêmeos não pretendo aqui afirmar
que elas são uma espécie de desvirtuamento das entidades cultuadas nas igrejas e terreiros, que
são apenas uma combinação dos santos católicos e os orixás iorubá, ou uma versão dos erês dos
terreiros. A intenção é mostrar como essas diversas personagens – ibejada, erê, Cosme, Damião,
Doum, Ibeji – se aproximam e, neste contato, se reelaboram, mantendo entre si uma relação
(ora próxima ora distante, e por vezes conflituosa) de mútua influência. Veremos como essas
personagens estão presentes em centros, terreiros e igrejas (e em outros lugares por onde suas
coisas circulam) e como nestes trânsitos elas vão se transformando, tornando-se próximas sem,
no entanto, fundirem-se. Nas lojas de artigos religiosos, por exemplo, as roupas e imagens são
anunciadas como “de erê”, mas são compradas para vestir e apresentar as ibejadas que descem
nos salões de centros cujos dirigentes fazem questão de distinguir ibejada de erê. Mesmo com
as várias semelhanças entre essas entidades (e talvez justamente por isso) em muitos momentos
35

faz-se necessário distingui-las – mas em tantos outros, como veremos, a ambiguidade é bem-
vinda.
Para falar das Crianças e seus festejos, aciono narrativas mitológica, hagiográfica e
iconográfica, além de minhas experiências etnográficas e relatos de outros autores para
apresentar essas figuras e seus cultos. Cumpre destacar que meu intuito aqui não é apresentar
definições claras e estritas, mas falar dessas figuras sem escapar das ambiguidades que lhes são
características. A partir dessas referências vemos que a unidade compreende dois e ainda abarca
um terceiro, que entre a vida e a morte, o céu e a terra, estão as crianças e suas brincadeiras; e
que o brincar é, justamente, a potência desses seres e estados infantis que transgridem, mediam,
subvertem e divertem com açúcar e dendê.

1.1 Doutrinas, orixás e guias da umbanda

A umbanda é uma religião afro-brasileira, um culto de possessão, onde a comunicação


entre esta e outra esfera se dá (também, mas não exclusivamente) na incorporação das entidades
nos corpos dos iniciados (BASTIDE, 1973; PRANDI, 1991b; MAGNANI, 1996). O fenômeno
da possessão foi tematizado por diversos autores, notadamente por aqueles que se dedicavam
aos estudos das religiões afro-brasileiras no campo da antropologia. Inicialmente tratado como
doença mental (RODRIGUES 2010[1932], RAMOS 2001[1934]), o transe depois passou a ser
considerado um fato social, compreendido enquanto fenômeno normal, que proporcionava uma
inversão hierárquica, onde pessoas de classes sociais baixas e médias recebiam em seus corpos
poderosos deuses e neles se transformavam, assumindo no ritual um lugar de poder e prestígio
(BASTIDE, 2001 [1958]; RIBEIRO, 1952). Márcio Goldman (1985) sugere que, ao invés de
explicações médicas ou sociológicas, a possessão seria melhor compreendida a partir das teorias
do ritual e da noção da pessoa, posto que o transe é um rito e que nele a pessoa – o filho de
santo, o médium – é construída. E essa pessoa, ritual e lentamente construída, não é um
indivíduo, único e estável; mas uma pessoa múltipla, que em si comporta distintos deuses, que
vão sendo nela fixados em uma série de rituais, realizados ao longo de vários anos. Excluída a
possibilidade do transe ser uma patologia, a possessão seria um momento em que planos
distintos se aproximam, quando pessoas e deuses, marginais e poderosos, parecem fundir-se,
num processo que (re)constitui ambas partes. Nos salões dos centros de umbanda, comunicam-
se as esferas habitadas por orixás (Oxum, Iansã, Oxóssi, Ogum, Xangô, Iemanjá, Oxalá, Nanã,
36

Obaluaiê), guias (pretos-velhos, ibejadas, caboclos, boiadeiros, exus, pombagira, ciganos) e


pessoas.
Apesar de falarmos a umbanda, trata-se de uma religião que se subdivide em diversas
doutrinas e práticas, e em cada centro há ainda a possibilidade de combinações entre distintas
doutrinas e ainda outras religiões. Como diria Magnani (1996, p. 43), “não há uma umbanda
‘oficial’, com relação à qual as mudanças constituiriam deturpações; na realidade, cada terreiro
dispõe e combina, à sua maneira, em torno de alguns eixos mais ou menos invariantes”; ou seja,
o que vemos pelos centros são as (várias) umbandas. Há uma extensa bibliografia, produzida
por cientistas sociais e umbandistas, que apresenta distintos modelos organizacionais desta
religião, não sendo aqui meu intuito reproduzir essas obras, mas referenciá-las para aqui
apresentar, em linhas gerais, alguns pontos que nos ajudam a compreender esta tese.
Uma das formas em que essa religião se organiza é a partir das doutrinas, que
distinguem algumas noções e práticas. Alguns exemplos são a umbanda sagrada, esotérica
ou iniciática (SARACENI, 1996), mais próximas às práticas orientais, evocando conceitos
como prana e chakra (CARNEIRO, 2014, p. 99).7 Essa doutrina também costuma ser
relacionada aos movimentos da Nova Era (OLIVEIRA, 2014) e, atualmente, a referência desta
escola é a Ordem Iniciática do Cruzeiro Divino (OICD).8 Há também a umbanda omolocô,
também chamada de traçada ou umbandomblé, pelo imbricamento com o candomblé. Uma
referência dessa escola é Tancredo da Silva Pinto, ou Tatá Tancredo, que “ remetia-se à
religião como tendo uma origem no continente africano, mais especificamente em Angola,
buscando, assim, recriar uma umbanda africana no Brasil, diferente, portanto, da concepção de
uma umbanda mais afeita ao kardecismo” (BAHIA; NOGUEIRA, 2018, p. 54).
A chamada umbanda tradicional, para alguns considerada a matriz que deu origem
às demais doutrinas, caracteriza-se pela aproximação com o espiritismo kardecista, sendo a
caridade e o princípio evolutivo noções muito caras (CAVALCANTI, 1983) – e é desta vertente
que mais nos aproximamos nesta tese. Uma das figuras centrais é a de Zélio de Moraes, que
recebia o Caboclo das Sete Encruzilhadas, considerado fundador da umbanda, religião nascida

7
A umbanda esotérica consagrou–se como uma escola umbandista, com doutrina, ética e método próprios com a
obra de W. W. da Matta e Silva, que publicou livros como ‘Umbanda de todos nós’ (1956), 'Mistérios e práticas
na lei de umbanda’ (1962), ‘Doutrina secreta da umbanda’ (1967).
8
A OICD é dirigida pela Mãe Maria Elise Rivas, que sucedeu a Francisco Rivas Neto, legatário de Matta e Silva
até 2018, quando faleceu. Rivas Neto publicou uma série de livros sobre a doutrina e é fundador, em 2003, da
Faculdade de Teologia Umbandista (FTU). Para mais informações, ver o site oficial da OICD, disponível em:
https://www.oicd.com.br/.
37

em 19089. Para Emerson Giumbelli (2002), a figura de Zélio como fundador da umbanda é uma
construção recente e só aparece na bibliografia – umbandista e acadêmica – a partir dos anos
1960. Segundo o autor,
[S]eu [de Zélio de Moraes] reconhecimento como uma figura seminal da
constituição da umbanda encerra uma dupla ironia: a maioria das referências
é contemporânea ou posterior à morte de Zélio, que ocorreu em 1975, aos 84
anos de idade; e aponta para um interesse pela ‘fundação’ e pela "origem" de
"uma religião" exatamente quando a dispersão doutrinária e ritual e a divisão
institucional parecem se impor de modo inexorável.” (GIUMBELLI, 2002, p.
194).

Assim, a narrativa de fundação da umbanda não é única e consensual, havendo


disputas, no universo umbandista e no meio acadêmico, sobre datas e personagens; e o que
podemos afirmar é que a religião começou a ser praticada na primeira metade do século XX e
que Zélio de Moraes é uma das principais personagens dessa história. Outra figura importante
é a do Caboclo Mirim, que, incorporado no médium Benjamin Gonçalves Figueiredo, fundou
em 1924 a Seara Mirim, inaugurando a escola do Caboclo Mirim, que se distingue pelo uso de
fardas e pela classificação hierárquica em termos tupi-guarani.10
Essas distintas escolas muitas vezes também se organizam em associações e
federações, como a União Espiritista de Umbanda do Brasil. A UEUB, que se identifica como
casa mater da umbanda, remonta à Federação Espírita de Umbanda, criada em 1939, durante o
Estado Novo, com o objetivo de ser uma instituição mediadora entre os diversos templos e
tendas de umbanda, o Estado e a sociedade. Em 1941 a Federação organizou o Primeiro
Congresso Brasileiro de Umbanda, que pretendia unificar as práticas rituais e instituir uma
doutrina mínima, sob a inspiração do Caboclo das Sete Encruzilhadas. Em 1944, com o nome
União Espiritualista Umbanda de Jesus (UEUJ), a instituição editou o livro ‘O Culto de
Umbanda em Face da Lei’, obra que apresentava os direitos da religião umbandista perante à

9
Segundo Costa (2013), “ a despeito de Zélio de Moraes ser considerado o fundador da religião Umbanda, e de
seu surgimento ter se dado em 15 de novembro de 1908, alguns teóricos, como Diana Brown (1985), Emerson
Giumbelli (2002), Olga Gudolle Cacciatore (1977), Vagner Gonçalves da Silva (2005), André Droogers (1987) e
Renato Ortiz (1991) discordam dessa data, e apontam o seu aparecimento em direção às décadas de 1920 e 1930”
(COSTA, 2013, p. 94).

10
A doutrina dessa escola estabelece uma série de princípios morais e comportamentais para os médiuns, para que
eles possam trabalhar para – e não com – as entidades. Os graus dos médiuns são: Morubixaba (em tupi, “chefe
das tribos indígenas brasileiras”), Abaréguassú (em tupi, “homem mais elevado”), baré (em tupi, “Missionário –
Homem de Cristo – Homem Diferente – Um Padre”), Abarémirim (em tupi, “Sacerdote Menor”), Bojáguassú
(em tupi, “discípulo, súdito de nível considerável, nível maior”), Bojá (em tupi, “discípulo, súdito, servo de nível
médio”, sigla B) e Bojámirim (em tupi, “discípulo, súdito, neófito, iniciante”). Para mais informações ver o site
oficial da Tenda Espírita Mirim, disponível em https://tendaespiritamirim.org/.
38

Constituição e que foi entregue a Getúlio Vargas.11 Em 1949, agora como UEUB, foi criado o
‘Jornal de Umbanda’, primeiro periódico sobre o tema, que circulou até 1970.12 Muito ativa na
primeira metade do século XX, a UEUB passou por períodos de abandono, e entre a década de
1990 até início dos anos 2000, a instituição não teve uma administração e sua sede, no bairro
de Todos os Santos, estava praticamente abandonada. No início dos anos 2000, ao assumir a
presidência da associação, Pedro Miranda procurou revitalizar o espaço, estabeleceu um
conselho diretor para auxiliar na retomada das atividades da UEUB e nos cuidados com o
arquivo e documentação da entidade.
Aos poucos, Pedro Miranda foi angariando fundos para realizar reformas na casa e
conseguiu construir dois espaços para realização de eventos, que costumam ser alugados por
centros que ainda não possuem sede e também abrigam os eventos que reúnem os diversos
centros associados.13
Passemos agora à organização das entidades cultuadas pela umbanda, que classifica
seu panteão em, pelo menos, dois níveis. Os orixás seriam entidades maiores – e junto a eles
estão os santos católicos14 a eles relacionados –, forças naturais que irradiam energia, que
podem se manifestar neste plano, nos corpos dos médiuns, mas que não tiveram uma vida
terrena. Como me disse Gregório, dirigente do CUCA, “o orixá não passou pela vida. Essa é
uma diferença também do Candomblé. O Candomblé acredita nisso, que passou pela vida. Nós
não. O Orixá é energia. Ele é energia que rege. Então ele não passou, mas os outros guias
passaram”.15 Cada pessoa seria regida pela energia de um ou mais orixás, pois além do orixá

11
Informações consultadas no site da UEUB, disponível em: http://www.ceubrio.com.br/home.
12
Na Hemeroteca da Biblioteca Nacional tive acesso a algumas edições deste periódico. As edições tinham, em
média, oito páginas, com tiragem de cinco mil exemplares, que durante a circulação do periódico foram ora
vendidos nas bancas ora distribuídos pela UEUB. No jornal havia sessões de “carta dos leitores”, várias páginas
dedicadas a anúncios – em sua grande maioria de lojas de artigos religiosos – além das seções “Página do Lar”,
com artigos sobre cuidados com os filhos, notas sobre etiqueta social, curtas receitas, palavra-cruzada e dicas de
cuidado com a casa. Toda edição também tinha as seções “Notícias da União Espiritista” (que trazia relatos de
reuniões, novas filiações de tendas à União, convocatória para futuras reuniões etc), e “O que vai pelas tendas”,
que noticiava as festas realizadas nas tendas filiadas à UEUB, bem como as visitas feitas pelo conselho dirigente
da União às casas; Lourenço Velho assinava a coluna “O que falam de nós”, que costumava vir na última página.
13
Na sede da UEUB# vi giras festivas de ibejada das Tendas Espírita Pai Joaquim das Almas, Caridade Pai Oxalá,
Pai José de Aruanda, de Umbanda Pai Oxossi Caboclo Pena azul e do Centro de Umbanda Vovó Catarina das
Almas; todos centros que ainda não possuem sede própria. Atualmente a UEUB é comandada por Mãe Mandarino,
que sucedeu Gregório Brandão, dirigente do Centro de Umbanda Caminhos de Aruanda (CUCA) – que, como
veremos a seguir, é um centro fundamental em meu campo.
14
Ressalto que os santos são católicos porque adeptos das religiões afro-brasileiras também chamam de santo o
orixá.
15
Em entrevista realizada em abril de 2017.
39

de cabeça ou de frente, a pessoa ainda é fortemente influenciada por um segundo (e às vezes


três ou até sete), o juntó – uma composição também comum ao universo do candomblé
(GOLDMAN, 1985). Por isso alguns médiuns, quando perguntados de que orixá são filhos,
respondem: sou filho de Oxóssi com Oxum, sou filha de Ogum com Iemanjá; sendo citado
primeiro o de cabeça, depois o juntó. Identificar-se enquanto filho ou filha de um orixá é
também dizer um pouco (ou muito) sobre si, já que nessa relação os orixás imprimem em seus
filhos características comportamentais e físicas – filhas e filhos de Oxum são emotivos e
chorões, enquanto que Iansã e Ogum regem cabeças geniosas e ágeis; as filhas de Iemanjá
costumam ter seios fartos, os filhos de Xangô costumam ser homens grandes, altos e robustos.
Além de serem filhos dos orixás, médiuns e filhos de santo também são filhos daqueles que os
iniciam (pais e mães de santo, dirigentes) e também estabelecem essa relação de filiação à
própria casa, centro ou terreiro; sendo todos os filhos de uma mesma casa, irmãos.
Em alguns casos, por serem considerados energias maiores, os orixás não se
apresentam nos centros nos corpos dos médiuns, mas através de outras entidades que são por
eles regidas, os guias. Estes, ao contrário dos orixás, tiveram uma vida terrena. Não há como
nomear exaustivamente todos os guias, pois “a invenção, a recriação na umbanda são um
processo dinâmico e constante. Novas entidades, novas características, novos tipos estão
permanentemente em elaboração a partir da mesma matriz” (BIRMAN, 1985, p. 85); ou seja,
este panteão está sempre em crescimento, sendo a ele incorporadas novas entidades. Mas é
recorrente a afirmação de alguns guias considerados principais (e mais conhecidos): caboclos,
pretos-velhos, pombagiras, exus e ibejadas; que estariam presentes em todos os centros. Eles
correspondem respectivamente aos espíritos de índios, negras e negros, mulheres e homens das
ruas (prostitutas, malandros, delinquentes), e crianças que se manifestam nos rituais da
umbanda.
Destacaria aqui duas formas de interpretação dessas personagens. Para as escolas do
Caboclo Mirim e do Caboclo das Sete Encruzilhadas, o tripé da umbanda são os pretos-velhos,
os caboclos e as ibejadas. Na seção “entidades” da página oficial da Tenda Espírita Mirim,
lemos que esses três guias representam “ o desenvolvimento da vida, a pureza e a simplicidade.
A descoberta (infância – crianças); o amadurecimento a virilidade o destemor, a vontade, o
arrojo e a força (adulto – caboclos); e o amadurecimento, a sabedoria da vivência, a humildade
de quem já viveu muito, a experiência e o conhecimento (idade avançada – pretos-velhos) ”16.
Uma outra interpretação, muito recorrente nos trabalhos sobre umbanda entre os anos 1960 e

16
Disponível em: https://tendaespiritamirim.org/orixas/. Sobre esses guias, Cf: CONCONE, 2001; FERRETTI,
2001; HALE, 1997.
40

1990, era de que a umbanda seria um “paradigma da nação brasileira” (BIRMAN, 1985),
porque acolhia em seu panteão elementos socialmente marginalizados (BROWN, 1977;
BIRMAN, 1982; MAGGIE, 2001[1985]; ORTIZ, 1991; BANAGGIA, 2008). Neste culto,
personagens que na vida cotidiana eram excluídos, assumem um status divino. Vemos, portanto,
que os guias são entidades que correspondem ao ciclo da vida – infância, vida adulta e velhice
– e/ou a um paradigma da nação brasileira.
Todas essas entidades seriam ainda organizadas e classificadas em linhas, regidas por
orixás e santos, e falanges, compostas pelos guias (MAGNANI, 1986). A linha de Oxóssi, por
exemplo, seria regida pelo orixá e por São Sebastião, e composta pelas falanges de caboclos e
boiadeiros, espíritos que em sua encarnação neste plano viviam em áreas rurais. Oxóssi, então,
não se manifesta diretamente, mas está presente no corpo da médium que recebe uma cabocla
que trabalha em sua linha. Mas há também tradições onde as linhas são nomeadas pelos guias,
que podem trabalhar na energia de vários orixás. Na linha dos caboclos, por exemplo, estariam
os caboclos regidos por Oxalá, Oxóssi, Ogum (SARACENI, p. 47, 2014). Poderíamos dizer
que cada escola propõe uma organização das entidades, não sendo possível determinar uma
única conformação do panteão umbandista.
A escola Mirim “instituiu na sua Doutrina a expressão de Sete Orixás personificados
por vibrações manifestadas em diferentes formas no Plano Terrestre. Essas sete linhas derivam
do Triângulo da Vida: a representação da Lei de Umbanda pela vida da natureza com suas
aplicações – Ação, Reação e Continuação; Tupã, Oxalá, Iemanjá; Sol, Terra e Lua. Essa
manifestação vibratória se divide entre outros grupos ou falanges, possibilitando a expressão
de variáveis manifestações vibratórias” (NAVARRO, 2015, p. 27). A umbanda esotérica
promovida por Rubens Saraceni se dividiria em sete linhas, que “ não são sete orixás, mas sim
as sete Irradiações Divinas, que são sete vibrações de Deus que dão sustentação a tudo o que
existe em nosso planeta. [...]” (SARACENI, 2014b, p. 175-6). As linhas seriam: fé (Oxalá,
Logunã), amor (Oxum e Oxumaré), conhecimento (Oxóssi e Obá), justiça (Xangô e Iansã), lei
(Ogum), evolução (Obaluaiê e Nanã) e geração (Iemanjá e Omolu). Há ainda uma série de
outras linhas (puras, de energia, magnéticas) e nas linhas de ação e cruzadas estão os “espíritos
humanos integrados às hierarquias da umbanda” (SARACENI, 2014b, p. 336), como os pretos-
velhos, caboclos e ibejadas. Para Matta e Silva, outro doutrinador dessa vertente, propõe sete
linhas (ou vibrações): Oxalá, Iemanjá, Xangô, Ogum, Oxóssi, Yori e Yorimá [estes últimos
relacionados a Ibeji e Obaluaiê, respectivamente].
É possível ainda uma divisão das linhas por lado, da direita e da esquerda, separando
pretos-velhos, caboclos, boiadeiros, mineiros, crianças, marinheiros, ciganos, baianos e
41

orientais na direita; dos malandros, exus e pombagira, o povo de rua, da esquerda. Neste
modelo, vemos que na esquerda estão aquelas entidades cuja experiência na vida terrena foi
marcada pela rua, pelas contravenções; assim, na direita ficam as entidades mais “puras”,
enquanto a esquerda é o lugar da marginália (BRUMANA; MARTÍNEZ, 1991).
Essas classificações nem sempre são muito claras ou rígidas, e por vezes mais de um
tipo de ordenamento é aplicado em um centro; e “é bastante improvável que na prática cotidiana
da religião, a comunidade umbandista seja apresentada ou conceba dessa maneira os orixás e
seus respectivos locais e formas de atuação” (BERGO, 2011, p. 90).17 Dessas variações,
podemos perceber que é recorrente classificar os orixás, e às vezes os santos, como entidades
maiores e organizá-los acima dos guias – caboclos, pretos velhos, ibejadas, boiadeiros, exus,
malandros, pombagiras, ciganos – espíritos que já tiveram uma vida terrena. Todos os médiuns
têm seus orixás e seus guias, e com eles mantêm uma relação muito íntima e corpórea: os orixás
regem a cabeça, os guias se manifestam em seus corpos. Neste convívio, os médiuns têm muito
das entidades e os guias também têm muito de seus filhos, já que nessa relação ambos se
constituem (GOLDMAN, 1985).
As ibejadas seriam a manifestação de espíritos que desencarnaram ainda na infância
ou um tipo de manifestação específica, neste caso infantil. Nesta concepção, como me explicou
o dirigente do Cantinho de Cosme e Damião18, tenda que segue a Escola Mirim; as ibejadas são
espíritos de elevada curvatura espiritual que se manifestam de forma infantil para assegurar
que a mensagem seja passada da forma necessária. Nesse sentido, contrapõe-se à concepção
onde as ibejadas seriam espíritos que desencarnaram ainda na infância. As ibejadas não seriam,
portanto, espíritos infantis, mas sim espíritos evoluídos que se manifestam de forma infantil; é
uma forma de apresentação para o assistente que, por alguma razão, precisa acessar essa forma
para receber a mensagem – ou conselho – de que precisa. De todo modo, estamos falando de
espíritos que se manifestam em gestos, falas e coisas infantis. Geralmente, as ibejadas
pertencem a linha regida pelo orixá Ibeji, pelos santos Cosme e Damião; e são “uma verdadeira
‘multidão de entidades de natureza infantil’ que, sob presidência de Cosme e Damião,
constituem a ‘linha das crianças' '' (SERRA, 1978, p. 114).

17
Em outras palavras, Yvonne Maggie (2001, p. 24) nos diz: “ Foi muito difícil recolher precisamente essa
classificação, porque as pessoas falavam menos nas linhas e mais nos seus orixás. Não importava dizer de que
linha eram; falavam, por exemplo, "meu Xangô' ou "meu preto–velho". Isso é indicativo de que para os médiuns
desse grupo essa classificação ampla tinha pouca importância para o ritual propriamente dito”.
18
Em entrevista realizada em outubro de 2017.
42

Joãozinho, Mariazinha, Ritinha, Sereinha de Iemanjá, Doum da Cachoeira, Pedrinho


da Cachoeira, Flechinha da Mata, Rosinha da Cachoeira, Pedrinho da Praia, Folhinha da Mata,
Mariazinha da Cachoeira, Raio de Iansã, Estrelinha de Xangô, Joãozinho da Cachoeira,
Mariazinha da Beira da Praia, Rosinha da Cachoeira, Ventinho de Iansã, Rosinha da Pedreira,
Crispim da Mata, Estrelinha do Oriente, Pedrinho da Praia, Caboclinho da Beira da Mata,
Solzinho de Iemanjá, Doum da Cachoeira, Crispim da Cachoeira, Jandirinha e Moisés 19; esses
são alguns nomes de ibejadas que vi ao longo desses anos. O primeiro nome quase sempre está
no diminutivo e o sobrenome nos diz a quais lugares e entidades a ibejada pertence e
particulariza a entidade, mas não é indispensável, já que muitas ibejadas não têm sobrenome.
Há também ibejadas homônimas, sendo possível, por exemplo, que num mesmo centro
tenham dois Pedrinho da Cachoeira e três Mariazinha da Praia. Ainda que os dois Pedrinhos
tenham o mesmo nome e trabalhem na energia de Oxum, eles são ibejadas distintas. Como
vimos, nessa relação entre pessoa e entidade ambos se constituem e, por isso, mesmo que a
entidade seja aparentemente a mesma, ao se apresentar em dois corpos diferentes, elas se
distinguem. Não há, portanto, duas ibejadas iguais e cada pessoa tem uma ibejada que lhe é
particular.

1.1.2 Energia e trabalho

Como podemos perceber, é recorrente a noção de energia.20 As maiores, como as dos


orixás, se distinguem das energias dos guias, que tiveram uma vida terrena. O corpo dos
médiuns pode receber e manifestar a energia dos guias, mas não suportam as energias maiores
dos orixás, que conseguem se manifestar diretamente na natureza e indiretamente nas demais
entidades que regem. Além das entidades, as pessoas também têm energia. Nos centros é
recomendado aos assistentes não ficarem com os braços e pernas cruzados, para que não cortem
a corrente vibracional. Nas giras são acionadas as energias dos orixás, dos guias e das
pessoas, e todas essas energias conformam uma corrente vibracional que sustenta e faz esse
ritual. É preciso, portanto, que todos procurem sintonizar sua energia nessa vibração, e os

19
Este é um nome que me causou bastante estranheza. O conheci em 2016, depois de já ter visto várias outras
ibejadas, mas nenhuma com um nome como esse, tão bíblico.
20
Agora, para falar desta noção, tomo como referência o que ouvi e vi durante meu campo no CUCA, ou seja,
tomo como referência a noção de energia de um centro que segue a doutrina da umbanda dita tradicional, da
doutrina do Caboclo das Sete Encruzilhadas, muito vinculada ao espiritismo kardecista. Mais adiante, apresento o
CUCA em mais detalhes.
43

braços e pernas descruzados permitiram ao corpo se abrir para essa corrente vibracional. As
energias parecem ser etéreas – circulam pelo ar, são, em alguns momentos, invisíveis – ao
mesmo tempo que também materiais, porque se manifestam e circulam nos corpos, objetos e
lugares. As energias são individuais – de um orixá, de uma entidade ou de uma pessoa – e
também são coletivas, quando consideramos a corrente vibracional. Energia como algo que
se tem, se dá e se recebe. Poderíamos compreender a noção de energia relacionando-a à de axé,
muito cara às religiões afro-brasileiras, notadamente o candomblé; ou de mana, muito cara ao
campo antropológico.
O axé (em iorubá àṣẹ) é força vital, está nas pessoas, nos objetos, entidades e lugares;
algo que se tem (ou lhe falta) e que deve ser dado, recebido e retribuído e, para que se mantenha,
precisa estar em constante circulação. O terreiro de candomblé é o lugar de axé, uma casa de
axé (em iorubá, Ilé Àṣẹ). Axé também é uma expressão, usada como o “amém” ou o “assim
seja”. Já o mana,

[N]ão é simplesmente uma força, um ser, é também uma ação, uma qualidade
e um estado. [...] Diz-se de um ser, espírito, homem, pedra ou rito, que ele tem
mana. [...] Emprega-se a palavra mana nas diversas formas das diversas
conjugações, ela significa então ter mana, dar mana etc. Em suma, a palavra
compreende uma quantidade de ideias que designaríamos pelas palavras:
poder de feiticeiro, qualidade mágica de uma coisa, coisa mágica, ser mágico,
ter poder mágico, estar encantado, agir magicamente. [...] Ela realiza aquela
confusão do agente, do rito e das coisas que nos pareceu ser fundamental em
magia.” (MAUSS, 2003, p. 142-3)

Energia, axé e mana estão nas coisas e nas pessoas, aquilo que todos sentem, dão,
recebem e praticam. Em alguma medida, esses termos abarcam uma série de objetos, pessoas,
crenças e atos inexplicáveis, que não cabem em quaisquer termos que não esses.
A noção de energia parece ainda operar como um dos princípios classificatórios das
entidades no panteão umbandista. Os orixás, entidades de energias maiores, se distinguem dos
guias, de energias menores e associadas a uma vida anterior e terrena. As energias maiores se
manifestam na natureza, enquanto os corpos são capazes de receber e manifestar as energias
dos guias e das próprias pessoas. Tem energias boas ou ruins, da direita ou da esquerda,
desejáveis ou inoportunas, que devem ser absorvidas ou repelidas – em classificações sempre
binárias.
A energia das ibejadas é pura, alegre e doce. Rebeca, médium do CUCA, contou-me
que quando se sente muito alegre, rindo à toa e muito agitada já sabe que seu Joãozinho está
próximo. Não é uma sensação ruim, é uma alegria muito grande e que parece não ter motivo
44

aparente, ela sente e energia dele e “fica querendo brincar o tempo todo, que nem criança”21.
Os corpos dos médiuns se agitam ao receber as ibejadas, se curvam para frente e retornam dando
pulinhos, batem palmas, mandam beijos e se espalham pelo salão em gracejos, birras e
brincadeiras. A alegria das ibejadas também é sentida por aqueles que vão aos centros vê-las e
com elas conversar. Como veremos ao longo desta tese, a alegria das ibejadas se manifesta nas
giras festivas e sessões de consulta, em corpos, gestos e roupas, brinquedos, doces e pontos
cantados.
São as energias das entidades e das pessoas que guiam os trabalhos de um centro.
Trabalho é uma categoria amplamente utilizada e que possui diversos sentidos. Maggie (2001),
no glossário que encerra sua obra, nos aponta alguns:

TRABALHAR– Atuar (o médium) em estado de possessão, no terreiro ou fora


dele. TRABALHAR COM SANTO ENCOSTADO – Não atuar em estado de
possessão completo. O médium não é totalmente possuído pelo orixá.
TRABALHAR NA MACUMBA– Praticar a religião na qualidade de médium.
TRABALHAR NA UMBANDA– Trabalhar na macumba. TRABALHAR
NO CANDOMBLÉ– Ser médium de um terreiro que pratica esse tipo de
ritual. TRABALHAR NO SANTO – Ser médium de um terreiro. O ofício dos
médiuns que, em estado de possessão, permitem aos orixás atuarem na terra.
TRABALHAR PARA o MAL– Utilizar a possessão para praticar o mal de
forma consciente. Praticar atos de feitiçaria. Geralmente usado em sentido
acusatório. TRABALHO – a) Oferenda; feitiço. b) Ato praticado pelos
médiuns em estado de possessão. Pode ser usado para definir as sessões
propriamente ditas. TRABALHO FEITO – Feitiço” (MAGGIE, 2001, p. 153).

Esta noção será melhor discutida no quinto capítulo desta tese e, por ora, é importante
ressaltar que esta categoria é amplamente utilizada e abarca uma série de práticas umbandistas;
na verdade, quase tudo que se faz num centro é trabalho, e as Crianças também trabalham.
Como dito anteriormente, cada médium é filho/a de um orixá e também tem um guia
de frente – e o conjunto de orixás e guias regentes compõem a coroa do médium (MAGGIE,
2001, p. 142). Em muitos centros, só são guias de frente caboclos e pretos-velhos, que
costumam ser as primeiras entidades incorporadas e que abrem os trabalhos dos médiuns; ou
seja, as ibejadas não são guias da cabeça de ninguém e não costumam ser a primeira entidade
com a qual o médium trabalha, realiza consultas e dá passes – uma prática muito difundida
no espiritismo e na umbanda, realizada pela imposição de mãos. Pessoas e entidades dão os
passes e suas energias são doadas, ou passadas, a quem o recebe – assim como as energias
negativas deste são dissipadas. Trata-se, portanto, de uma troca de energias, entre quem dá e
quem recebe, em que ambas partes se afetam e por isso é preciso um certo nível de

21
Em entrevista realizada em junho de 2017.
45

conhecimento e inserção por parte dos médiuns para saber lidar com as energias daqueles que
vão aos centros para receberem um passe. Nas consultas, as entidades atendem os assistentes,
ouvem seus pedidos, fazem limpezas, dão conselhos e recomendam cuidados.
É comum, portanto, que a ibejada não seja a entidade de primeiro contato do médium,
a primeira a tomar seu corpo; geralmente elas chegam depois, quando o médium já está em seus
trabalhos de desenvolvimento. As sessões de desenvolvimento são rituais doutrinários, pois
como o próprio nome diz, é um trabalho para o desenvolvimento do médium e da entidade,
para que um vá se habituando ao outro. São ocasiões para que os médiuns aprendam a receber
suas entidades, e para que estas aprendam a se manifestar. Cabe aos dirigentes – guia e pessoa
– a condução desses trabalhos. As ibejadas, portanto, não guiam as cabeças dos médiuns e
tampouco são as entidades com as quais eles/as começam a trabalhar.
Muitos médiuns têm mais de uma ibejada. Sobre essa questão, Márcio, dirigente de
um centro em Colégio, bairro da zona norte carioca, nos conta o seguinte,

Eu por exemplo nunca incorporei uma ibejada feminina, sempre incorporei o


Zezinho que é a criança que tá comigo desde sempre; mas é possível que eu
tenha outra criança, mas eu não conheço. Mas eu já vi médiuns, inclusive
dentro do próprio CCD [centro que dirige], que recebem duas crianças, uma
menina e um menino, por exemplo. Há casos assim, mas você vê que de fato
tem uma criança que é mais frequente e a outra que vem eventualmente,
quando tem uma necessidade específica dela ali. Vou contar um caso. Aqui
por exemplo, tem uma pessoa que trabalha com uma menina, uma entidade,
uma ibejada feminina, e um menino, mas esse menino é de uma outra falange,
ele é um exu mirim. Então normalmente ele vem quando o bicho tá pegando,
quando precisa de um trabalho digamos, mais rascante. Ele chega, faz a parte
dele e vai embora. O trabalho do dia a dia é feito por uma menina e de repente
o menino chega pra algum tipo de trabalho ali (MIGOWSKI, 2017).

Por mais que haja mais de uma ibejada, uma costuma ser mais frequente, com quem
se trabalha mais diretamente. É possível que uma pessoa receba duas ibejadas meninas, dois
meninos ou uma menina e um menino. Essa segunda ibejada costuma aparecer em momentos
específicos e extraordinários, posto que a presença desta segunda Criança não é frequente.
Márcio citou o exemplo de uma médium do centro que em algumas ocasiões recebe, ao invés
de sua menina, um menino, um exu mirim. Sobre esse caso, gostaria de ressaltar alguns pontos.
Primeiro, explicar quem são essas entidades. Os exus são espíritos que na vida terrena tiveram
uma existência errante, tendo a rua como principal lugar. Os exus mirins seriam, portanto, a
manifestação de espíritos de crianças que viveram nas ruas. É menos comum que os exus mirins
sejam associados às ibejadas do que aos próprios exus; ou seja, comumente não pertencem à
linha das ibejadas, mas à dos exus – mas no caso de Cantinho de Cosme e Damião (CCD), os
46

exus mirins também são ibejadas. Segundo Márcio, assim como teriam Crianças da mata, da
cachoeira e da praia, teriam as ibejadas das ruas, os exus mirins.

Os mirins refletem a delinquência infanto-juvenil das crianças de rua, sem


disfarces ou recondicionamentos. Propõem-se como antípodas da beleza,
inocência e pureza infantil (típica das crianças da direita). Geralmente são
descritos como muito feios. A feiúra metaforiza esteticamente o lado errado
da vida pelo qual trafegam (ou trafegaram). [...] A médium do Girinho conta-
nos que ele, muito ágil, pode incorporar-se nela e ao mesmo tempo trabalhar
à distância. Faz sumir e aparecer coisas, como um saci. Adora chocolate preto
e fuma cigarro. Em vida praticava pequenos furtos pelas ruas e gostava disso.
O seu menino lhe passa algo leve, engraçado, bagunceiro, atentado, peste.
Relata-nos que ela também tem um lado mauzinho, atentado, mais exatamente
implicante do que malévolo, que se reflete na natureza dele. A energia dele é
a de transitar no submundo numa boa. Uma criança vivida, safo, safado, mas
não propriamente maligna nem malévola. (BAIRRÃO, 2004, p.63)

Os exus mirins se diferenciariam das ibejadas pela intimidade com a rua, com o
submundo; que lhes retira a inocência e pureza, e lhes tornam Crianças vividas, safadas. Essa
particularidade os torna mais adequados para lidar com certos tipos de trabalho e energias,
que nem sempre são as mesmas das ibejadas. Sempre quando perguntava sobre o que podíamos
conversar com uma ibejada durante a consulta, diziam-me que com elas poderíamos falar tudo
o que normalmente falaríamos com crianças – citavam como assuntos a serem evitados temas
como sexo e relações amorosas. Nestes casos, ou em situações que Márcio descreveu como
“quando o bicho tá pegando”, sendo necessário o trabalho de uma energia infantil, os exus
mirins seriam mais adequados.22 Cada guia tem uma energia (ou uma série delas) que mobiliza
em seus trabalhos e, em algumas situações, uma entidade pode ser mais adequada – e eficiente
– do que outra.

1.2 O universo do divino infantil

Para apresentar as ibejadas, além de trazer orixás e guias, e as noções de energia e


trabalho, preciso também falar em erês, Cosme e Damião, Doum, Ibeji. Todos esses termos
nomeiam entidades infantis que têm presença e são cultuadas em centros e terreiros, mas seria
tudo a mesma coisa? Se todos são entidades infantis cultuadas pelas religiões afro-brasileiras,

22
Nesta tese não me debruço sobre os exus mirins, considerando que o CUCA e outros centros identificam essas
entidades à linha de exu – na verdade o CCD é uma exceção a essa regra. Sobre essas entidades, Cf. CAMPELO,
2003.
47

são eles todos iguais? Se não o são, o que os difere? E por que se, mesmo diferentes, são
confundidos? A intenção deste item é apresentar essas divindades – orixás, espíritos, santos,
manifestações – infantis, apontado aquilo que as distingue e aproxima, como mesmo sendo
diferentes, essas Crianças habitam um mesmo universo: divino, infantil, religioso e afro-
brasileiro.

1.2.1 Por que Crianças?

Neste primeiro momento, gostaria de explicar porque ao longo desta tese escrevo
Crianças, assim com inicial maiúscula, e de que modo um termo utilizado inicialmente como
um recurso para clarificar a escrita, tornou-se expressão de uma questão central desta tese.
Como vimos no capítulo anterior, há uma série de outras entidades infantis do universo
pesquisado e as próprias entidades infantis do panteão umbandista, personagens desta tese, que
podem ser chamadas de erê, bejada e suas variações. Minha primeira preocupação era evitar
um texto confuso, que acionasse vários termos em referência a uma mesma entidade, e para
resolvê-la optei por me manter o mais próximo possível do campo, e a partir disso comecei a
escrever sempre “ibejadas”, tal qual utilizado no CUCA. Mas depois surgiu uma segunda
inquietação.
Diversos autores se referem às ibejadas como crianças, o que não causa nenhum
estranhamento quando estão falando apenas das entidades da umbanda, mas que provoca certa
confusão quando se trata de uma descrição do ritual, já que nas giras não vemos apenas essas
crianças. Em sua dissertação, ao tematizar as relações entre entidades e pessoas, Marilu
Campelo (1991) fala em crianças do céu e crianças da terra. Estas categorias pareceram–me
apropriadas quando escrevi minha dissertação, onde sugeri que as entidades se pareciam menos
com as crianças que acompanhei correndo atrás de doce do que com as aquelas descritas pelos
adultos; compreendendo as crianças do céu como materializações das idealizações que os
adultos tinham acerca das crianças da terra. Eram termos que funcionavam pontualmente, mas
que na tese se mostraram menos oportunos.
No CUCA, quando eles chamavam alguns filhos dos médiuns para entrar no salão na
gira de ibejada, falavam “vamos agora chamar nossas crianças materiais”, distinguindo-as das
crianças espirituais, as ibejadas. Opor crianças espirituais e materiais, apesar de serem
categorias próprias ao universo pesquisado, pareceu-me inapropriado numa tese que propõe
pensar as crianças espirituais justamente a partir de suas materialidades. Não se trata de opor-
48

me às categorias êmicas, tampouco questioná-las, mas de assumir que, pela discussão teórica
que aqui proponho, essas categorias poderiam causar certa confusão ao texto.
Comecei a escrever Crianças quando me referia às ibejadas, numa tentativa de
evidenciar sobre quem estava falando sem que fosse imprescindível um segundo termo.
Inicialmente inseria apenas uma nota de rodapé para pontuar que, quando grafado com inicial
maiúscula, o termo se referia às entidades. Mas no exercício da escrita fui percebendo que esse
recurso também explicitava questões centrais de minha tese.
Escrever Criança com inicial maiúscula me permite realçar a sacralidade e a distinção
dessa entidade espiritual sem deixar de evidenciar o fato de que o mesmo termo que se refere
ao “ser humano no período da infância”23 também faz referência às entidades infantis do
panteão umbandista. Ou seja, escrever Crianças salienta a ambiguidade do termo sem, no
entanto, provocar confusão aos leitores. Optar por uma distinção que se realiza em apenas uma
letra também me permite uma economia no texto, já que um segundo termo ou locução tornou-
se desnecessário para especificar sobre qual criança estamos falando, material ou espiritual, da
terra ou do céu – uma economia muito bem-vinda, sobretudo num texto monográfico onde essas
Crianças são centrais. A inicial maiúscula me permitiu, portanto, elaborar um texto mais claro
e conciso, e apresentar em um só termo uma questão que é relacional.
Nesta tese, em tanto escrever sobre as Crianças, acabo pensando também em crianças,
já que compreender essas entidades infantis nos permite pensar na sacralização de uma
determinada concepção de infância, que apesar de materializada nos rituais não se encerra nos
limites dos centros. Patrícia Birman (1995, 2005) nos fala sobre uma construção de gênero
fundamentada em valores e práticas religiosas, mostrando-nos como filhos e filhas de santo
constituem e experienciam seus gêneros e sexualidades no e a partir dos cultos aos orixás do
candomblé. Inspirada pela autora, procuro refletir não sobre uma elaboração de gênero, mas de
geração, pensando em como os valores e práticas da umbanda constituem um discurso sobre
infância que se materializa nos rituais e nas coisas que fazem e apresentam as ibejadas; e que
ultrapassa os espaços religiosos dos centros de umbanda e tem relação com um imaginário
social mais amplo sobre (C)crianças.
Quando perguntava a médiuns e dirigentes sobre as ibejadas, sobre o que elas
gostavam, como se comportavam e sobre o que era esperado de uma consulta com essas
entidades sempre me falavam, “elas gostam de brinquedos e doces, como as crianças”, “se

23
Como consta no dicionário Michaelis online, disponível em: http://michaelis.uol.com.br/moderno–
portugues/busca/portugues–brasileiro/crian%C3%A7a/.
49

comportam que nem criança pequena”, “com as ibejadas a gente pode falar sobre tudo aquilo
que podemos conversar com uma criança e elas são sinceras, que nem criança que quando a
gente vê já falou até o que nem devia”.24 Ou seja, eu ouvia a todo tempo que as Crianças eram
como crianças – mas também era óbvio que eu não estava falando em quaisquer crianças, mas
em Crianças sagradas. As ibejadas, portanto, nos permitem pensar como (C)crianças são
caracterizadas e consagradas, e quais qualidades da infância são sacralizadas nestas entidades.
Os pretos-velhos são reconhecidos pelas características que já estão expressas no
nome, a negritude e a senilidade são atributos dessas entidades que são consideradas sábias,
sabedorias adquiridas em uma vida longa e marcada por sofrimentos. Vovôs e vovós dão bons
conselhos, acolhem e também dão broncas. Por já terem tanto vivido sempre têm algo a dizer,
uma história ou uma cantiga que é também um ensinamento. Exus e pombagiras também são
experientes, menos pelo tempo do que pela intensidade da vida que levaram. As ruas, a noite e
os amores também ensinam, e a sabedoria e poder dessas entidades são associadas a essas
experiências. Dão bons conselhos amorosos, abrem os caminhos e ajudam nos momentos em
que estamos à beira de uma encruzilhada, sem saber por onde seguir. Caboclos e caboclas
trazem consigo os saberes ancestrais, daqueles que habitam as matas e conhecem os poderes
das plantas e ervas. Costumam falar pouco, mas seus conselhos são certeiros. Suas ervas curam,
limpam, protegem. Senilidade, raça, etnia, vidas mais ou menos errantes, determinadas
feminilidade e masculinidade, as ruas e as matas sacralizam essas entidades. No caso das
ibejadas, menos do que a vida, é a morte prematura que lhes confere sacralidade. Antes mesmo
que conheçam os pecados da vida, deixam este plano. As Crianças permanecem eternamente
na infância, período da vida que possui certa aura de sacralidade, marcado pela alegria, pureza
e inocência.
A sacralização da infância é um tema pouco explorado, mas trago aqui dois trabalhos
que nos ajudam a pensar este tema: a tese de Denise Duarte (2018) e o já afamado (criticado e
revisado) trabalho de Philippe Ariès (1986), que apesar de não tratar exaustivamente de
processos religiosos, aborda a consolidação de um determinado modelo e sentimento de
infância na sociedade moderna. Ariès (1986) tem uma proposta mais ambiciosa, que flutua entre
os séculos medievais e modernos, recorrendo a diversas fontes, como documentos, obras
literárias e pictóricas. Sem me ater aos detalhes da obra de Ariès, para evitar entrar em críticas

24
Essa última frase, mais específica, foi dita por Rebeca, médium do CUCA, durante uma entrevista que fiz com
ela antes de uma sessão de consulta do CUCA, em julho de 2017.
50

que já envolveram diversos historiadores, educadores e historiadores da arte;25 retomo aqui o


principal argumento do autor – e que ainda é considerado válido – de que, a partir do século
XVII, houve uma série de mudanças que colocaram a criança no centro da família, que passou
a se dedicar aos cuidados e à educação dos filhos. Ao surgir esse novo sentimento em relação
às crianças, estas passaram a ser insubstituíveis e a morte delas, que até então era tratada com
alguma indiferença, passou a ser um sofrimento e a criança, mesmo morta, tinha seu lugar no
seio familiar. Ambos trabalhos, apesar de bastante distintos, trazem informações importantes
para pensarmos em como as mudanças de sentimento em relação à morte infantil são reflexos,
causas ou consequências, de novas concepções, religiosa e social, sobre a infância.
Segundo Philippe Ariès (1986), na Idade Média as crianças quase não eram retratadas
e quando o eram, apareciam como adultos em miniatura. As representações mais próximas ao
que hoje consideramos como figuras infantis – que se distinguem dos adultos não só pelo
tamanho – começam a surgir no século XIII, nas pinturas de anjos e do menino Jesus.

Timidamente no início, e a seguir com maior frequência, a infância religiosa


deixou de se limitar à infância de Jesus. Surgiu em primeiro lugar a infância da
Virgem, que inspirou ao menos dois temas novos e frequentes: o tema do
nascimento da Virgem – pessoas no quarto de Sant’Ana atarefadas em torno da
recém-nascida, que é banhada, agasalhada e apresentada à mãe – e o tema da
educação da Virgem, da lição de leitura – a Virgem acompanhando sua lição
num livro que Sant’Ana segura. Depois, surgiram as outras infâncias santas: a
de São João, o companheiro de jogos do menino Jesus, a de São Tiago, e a dos
filhos das mulheres santas, Maria–Zebedeu e Maria Salomé. Uma iconografia
inteiramente nova se formou assim, multiplicando cenas de crianças e
procurando reunir nos mesmos conjuntos o grupo dessas crianças santas, com
ou sem suas mães (ARIÈS, 1986, p. 54-5)

Além dessas crianças, outras, geralmente nuas e enroladas em cueiros, apareciam em


algumas pinturas, mas não eram representações de personagens religiosos em sua infância, e
sim de almas. Em quadros e monumentos funerários, sobre o corpo do falecido era pintada ou
esculpida uma criança, geralmente carregada por dois anjos, que representaria a alma do morto,
em ascensão aos céus. Essa tradição pictórica estaria atrelada à concepção da infância como
período da vida mais próximo ao Reino dos Céus, e a alma dos bem-aventurados subiria, como
uma criança, aos céus, indicando a passagem da vida terrena rumo ao paraíso. Para Ariès (1986,
p. 22-3), os párvulos seriam símbolo de inocência e salvação, o que indicaria que a mensagem

25
Cf: HEYWOOD, Colin. Uma História da Infância: da Idade Média à Época Contemporânea. Porto Alegre:
Artmed, 2004; CUNNINGHAM, Hugh. Children and childhood in Western society since 1500. London: Pearson,
2005.
51

da morte deveria estar ligada mais a esperança no perdão dos pecados e de alcance do Paraíso
do que a aflição pela perda da vida terrena.
Em sua tese, Duarte (2018) se debruça sobre as práticas e crenças relacionadas à morte
infantil na sociedade mineira entre os séculos XVIII e XX. A historiadora analisa uma série de
documentações produzidas pelas paróquias locais e constata que só no início do século XX a
morte infantil passou da jurisdição eclesiástica ao seio familiar, ainda organizada a partir de
elementos religiosos. Segundo a autora, na tradição católica a infância sempre foi associada à
inocência e pureza.

A primeira fase da infância seria, portanto, a idade da pureza. Alguns textos


religiosos definiam os inocentes como os sujeitos que alcançariam a salvação
de suas almas, pois, sem a capacidade de dolo e, consequentemente, a ausência
de pecados – daqueles já batizados –, a assunção ao Paraíso seria garantida.
Os cânones do Concílio de Trento, contudo, não deixavam claro qual seria a
idade específica contemplada com essa prerrogativa. (DUARTE, 2018, p. 69)

Ao mesmo tempo que a infância era sagrada, o próprio nascimento era decorrente do
pecado original; mas ainda que frutos do pecado, as crianças não eram capazes de pecar, sendo
o estado infantil exemplar para a conduta dos homens. A inocência e pureza das crianças eram
exemplos de comportamento para aqueles que desejam entrar no Reino dos Céus. Na Bíblia, no
livro de Mateus, os discípulos ao perguntarem a Jesus quem é maior nos Reino dos Céus,
recebem como resposta,

Jesus chamou uma criança, colocou-a no meio deles e disse: “Na verdade vos
digo: se não vos converterdes e não vos tornardes como crianças, não entrareis
no Reino dos Céus. Portanto, aquele que se fizer pequeno como esta criança é
o maior no Reino dos Céus. E quem receber em meu nome uma criança como
esta é a mim que recebe. Mas se alguém for motivo de pecado para um desses
pequenos que creem em mim, melhor seria para ele que lhe pendurassem uma
pedra de moinho ao pescoço e o jogassem no fundo do mar. Vede, não
desprezeis algum destes pequeninos, porque eu vos digo que os seus anjos nos
céus sempre veem a face de meu Pai que está nos céus”. (Mt, 18, 2-10).

Menos do que uma devoção às crianças, havia uma sacralização do estado infantil,
caracterizado pela inocência e pureza, que poderia ser alcançado inclusive por adultos. Se o
corpo já chegara à fase adulta, era preciso que pelo menos a alma mantivesse o espírito infantil
para que o reino dos céus fosse o destino após morte. Mas algumas crianças também eram alvo
de devoção.
Ao tematizar as devoções mineiras entre os séculos XVIII e XX, Duarte nos mostra
como era comum a adoração às imagens de Maria e Jesus ainda crianças, “encontrado com
52

santos como Santo Antônio, com São José, mas, principalmente, ligado à figura da mãe Virgem
Maria, em invocações como Nossa Senhora do Terço, Nossa Senhora do Carmo, Nossa Senhora
do Rosário, Nossa Senhora do Bom Sucesso, Nossa Senhora do Parto, dentre outras” (p. 88).
Novamente, não eram exatamente devoções às crianças, mas à infância de personagens
religiosos, o estágio inicial de vidas que se tornaram santas.
No caso dos Inocentes Mártires, a devoção era às crianças, que foram mortas a mando
de Herodes.
A devoção aos Inocentes Mártires é, portanto, um exemplo das possibilidades
da infância se apresentar para a crença católica. As crianças com pouco tempo
de vida são consideradas naturalmente ausentes de mácula, e com isso
valoradas segundo a concepção religiosa. A incapacidade física de sua idade
não limitou, contudo, a possibilidade de serem símbolos da fé para a Igreja,
pois, foram assassinadas no lugar do Messias, permitindo que futuramente ele
difundisse a mensagem de salvação e foram, como ele, martirizadas. Desse
modo, essas crianças morreram pelo e como o Cristo, tornando-as essenciais
para que ele conseguisse cumprir sua missão. (DUARTE, 2018, p. 89)

Até aqui, vemos como as representações de figuras infantis não eram, necessariamente,
de crianças. Elas representavam a alma de adultos ou eram apresentações de um estágio anterior
da vida de personagens santificados; e só as crianças que morreram por Cristo chegavam a ser
objeto de devoção.
Foi só a partir do século XVII, quando passaram a ocupar uma centralidade no seio
familiar, que as crianças passaram a ser personagens importantes e, além de sua vida, suas
mortes também passaram a ter relevância. Até então, a perda de crianças, ainda durante a
gestação ou recém-nascidas, era muito comum e pouco relevante socialmente – uma dedução a
partir da ausência de registros dessas mortes em arquivos oficiais e familiares. Quando as
crianças passam a ser retratadas como figuras propriamente infantis nos quadros de família, as
mortes infantis também começam a ser registradas – ou seja, quando há uma valorização da
vida desses seres, há também uma mudança em relação à sua morte. Ao analisar uma série de
registros de óbitos de crianças em arquivos paroquiais, Duarte encontra diversos documentos
que se referiam às crianças como anjinhos.

A denominação “anjinho” tratava-se, portanto, de uma expressão que se referia


às almas dos pequenos saídos da vida brevemente, que por sua inocência eram
considerados como fortes intercessores. Essa terminologia foi utilizada tanto
pelos fiéis quanto pelos religiosos para aludir aos pequenos sem mácula, ainda
que, como apresentado, alguns sacerdotes a utilizassem para contestar a ligação
entre a alma da criança e os seres angelicais. O “anjinho” era, portanto, a criança
morta, cuja alma alcançou a salvação, sendo assim um bem-aventurado.
Segundo o Catecismo Romano, o bem-aventurado era aquele que vivia em
imensa felicidade no Reino de Deus, e o caminho para alcançar esse patamar
53

era possuir atributos como a piedade, a justiça e cumprir todos os deveres com
a religião. A felicidade alcançada na vida eterna consistiria na isenção de todos
os males e na posse de todos os bens, que seriam a visão de Deus e o fato das
almas se tornarem quase divinizadas (assim como teria sugerido São João),
pois, ao estarem desfrutando da presença do onipotente, acabavam tomando
uma aura divina, se parecendo mais com deuses do que com homens – ainda
que nenhum ser gerado seja comparável a Deus. ” (DUARTE, 2008, p. 144)

Essas crianças não tiveram tempo hábil para desenvolverem uma vida de ascese,
sacrifício, abnegação, caridade e bondade que geralmente são indícios de uma vida a ser
santificada. Mas também, no curto tempo que tiveram, não foram suscetíveis aos pecados e
profanações da vida. A interrupção da vida logo em seu início afasta as possibilidades de desvio
e a morte prematura perpetua a pureza e inocência.
Nesta época a religiosidade na primeira infância também passou a ser uma
preocupação, tornando-se imprescindível o batismo pouco depois do nascimento e, em caso de
um precoce falecimento, os cuidados voltavam-se às almas dos pequenos; “ foi como se a
consciência comum só então descobrisse que a alma da criança também era imortal. É certo que
essa importância dada à personalidade da criança se ligava a uma cristianização mais profunda
dos costumes” (ARIÈS, 1986, p. 61).
Pela proximidade com Deus, as crianças também seriam compreendidas como
intercessoras, sendo objeto de devoção daqueles que buscavam a benevolência e o perdão, que
dirigiam às crianças suas preces, para que elas intercedessem junto a Deus. Vemos, então, como
a partir das mudanças ocorridas no século XVII, quando se conformou um novo sentimento em
relação à infância (Ariès, 1986), a vida e a morte das crianças assumiram um novo lugar. Ainda
que um adulto pudesse almejar essa essência infantil, eram nas crianças que a alegria, inocência
e pureza indubitavelmente se apresentavam. No lugar de reverenciar a infância das almas ou
dos personagens santos, a infância das próprias crianças tornou-se relevante e, assim, elas
próprias passaram a ser objeto de devoção.
Menos do que a vida, parece ser a morte a conferir sacralidade às crianças, porque só
ela possibilita a eterna permanência na infância. É a supressão da vida logo em seus primeiros
anos que afasta, e até mesmo impede, o pecado, os vícios, as perversões. As crianças já nascem
puras, alegres e inocentes e para que elas permaneçam nesse estado sagrado é preciso que elas
não cresçam.
O surgimento de um novo sentimento, que Ariès (1986) definiu como paparicação,
em relação às crianças, que instituiu novas sociabilidades, muito atreladas a uma nova
concepção de educação, mais circunscrita à escola e ao seio familiar; enfim, uma valorização
54

das crianças e a gestão de uma série de cuidados e afetos voltados a elas foi consolidando uma
nova concepção de infância. Esse estágio inicial da vida passou a ser encarado como uma etapa
particular – os primeiros anos não seriam uma pré-vida, um ensaio para a vida adulta, mas uma
fase específica da vida. É claro que este é um processo, e um debate sobre ele, muito mais amplo
e até que a criança passasse a ser vista realmente como agente, e não apenas como um passivo
receptáculo, foram necessários mais alguns séculos (PIRES, 2010). Depois do reconhecimento
da infância como uma fase da vida específica e a estruturação de um sistema educacional
voltado às crianças, ainda teve um longo período em que as crianças não eram vistas como
agentes da cultura, mas índices delas; ou seja, no processo educacional (formal ou não), só
caberia às crianças a aprendizagem (de valores e práticas culturais) e nunca o lugar de produção
e ensino (COHN, 2002; CORSARO, 2005; PIRES, 2009; TOREN, 1990). Mas minha intenção
nesta tese não é tratar de educação infantil ou discutir a (inegável) agência das crianças nos
processos sociais; e sim pensar qual concepção de infância é sacralizada.
As obras de Ariès e Duarte nos ajudam a historicizar esses processos sociais e
religiosos que consagram uma determinada concepção, ocidental e cristã, de infância. A partir
disso, podemos perceber quais valores vão se consolidando como característicos das crianças,
intrínsecos à infância. Acionar essa literatura e as concepções que elas tratam faz sentido porque
elas embasam a umbanda; ou seja, essa infância pura, inocente, ocidental e cristã também faz
sentido na doutrina umbandista, sobretudo para algumas linhas, como aquela denominada como
umbanda tradicional, que se associa a alguns personagens do catolicismo e cuja doutrina é
fortemente relacionada ao espiritismo kardecista.
No ‘Livro dos Espíritos: princípios da doutrina espírita’ (KARDEC, 2004 [1857]), há
uma série de referências às crianças e à infância. A doutrina é apresentada a partir de perguntas
e respostas, divididas em quatro partes (I - das causas primárias, II - do mundo espírita, III - das
leis morais, IV - das esperanças e consolações), que se subdividem em capítulos, que por sua
vez possuem diversas seções. A seguir, trago alguns trechos em que são abordadas questões
relativas à infância, indicando a parte, o capítulo e a seção do extrato.

189. Desde o início de sua formação, goza o Espírito da plenitude de suas


faculdades?
“Não, pois que para o Espírito, como para o homem, também há infância. Em
sua origem, a vida do Espírito é apenas instintiva. Ele mal tem consciência de
si mesmo e de seus atos. A inteligência só pouco a pouco se desenvolve.”
190. Qual o estado da alma na sua primeira encarnação?
“O da infância na vida corporal. A inteligência então apenas desabrocha: a
alma se ensaia para a vida.”
55

(Parte II, Cap. IV: da pluralidade das existências, Seção: transmigrações


progressivas, p. 166)

197. Poderá ser tão adiantado quanto o de um adulto o Espírito de uma criança
que morreu em tenra idade?
“Algumas vezes o é muito mais, porquanto pode dar–se que muito mais já
tenha vivido e adquirido maior soma de experiência, sobretudo se progrediu.”
a) — Pode então o Espírito de uma criança ser mais adiantado que o de seu
pai? “Isso é muito freqüente. Não o vedes vós mesmos tão amiudadas vezes
na Terra?”
(Parte II, Cap. IV : Da pluralidade das existências, Seção: Sorte das crianças
após a morte, p. 171)

380. Abstraindo do obstáculo que a imperfeição dos órgãos opõe à sua livre
manifestação, o Espírito, numa criancinha, pensa como criança ou como
adulto?
“Desde que se trate de uma criança, é claro que, não estando ainda nela
desenvolvidos, não podem os órgãos da inteligência dar toda a intuição própria
de um adulto ao Espírito que a anima. Este, pois, tem, efetivamente, limitada
a inteligência, enquanto a idade lhe não amadurece a razão. A perturbação que
o ato da encarnação produz no Espírito não cessa de súbito, por ocasião do
nascimento. Só gradualmente se dissipa, com o desenvolvimento dos órgãos.”
Há um fato de observação, que apóia esta resposta. Os sonhos, numa criança,
não apresentam o caráter dos de um adulto. Quase sempre pueril é o objeto
dos sonhos infantis, o que indica de que natureza são as preocupações do
respectivo Espírito.
(Parte II, Cap. VII: da volta do espírito à vida corporal, Seção: a infância, 261–
2)

776. Serão coisas idênticas o estado de natureza e a lei natural?


“Não, o estado de natureza é o estado primitivo. A civilização é incompatível
com o estado de natureza, ao passo que a lei natural contribui para o progresso
da Humanidade.”
O estado de natureza é a infância da Humanidade e o ponto de partida do seu
desenvolvimento intelectual e moral. Sendo perfectível e trazendo em si o
gérmen do seu aperfeiçoamento, o homem não foi destinado a viver
perpetuamente no estado de natureza, como não o foi a viver eternamente na
infância. Aquele estado é transitório para o homem, que dele sai por virtude
do progresso e da civilização. A lei natural, ao contrário, rege a Humanidade
inteira e o homem se melhora à medida que melhor a compreende e pratica.
(Parte III, Cap. VIII – Da lei do progresso, Seção: estado de natureza, p. 444)

Como podemos ver, há referências às infâncias do espírito, dos homens e da


humanidade. A infância é caracterizada como um período marcado pelo instinto, pela pouca
consciência, pela imperfeição dos órgãos da inteligência; compreendida como ponto de partida
intelectual a moral. O corpo infantil pode apresentar algumas limitações ao espírito que nele
encarna, mas o próprio espírito de uma criança pode ser mais adiantado que o de um adulto.
Enquanto que numa concepção cristã católica a alma da criança era indubitavelmente mais pura
que a dos adultos, na doutrina espírita isso é uma possibilidade, não uma certeza. O que é certo
é que homens, espíritos e a própria humanidade, todos passam obrigatoriamente pelo estágio
56

infantil. Ao que parece, a infância é o período de aprendizagem, marcado por limitações (físicas
e intelectuais), mas também por uma maior abertura à recepção de ensinamentos, mais maleável
e, portanto, moldável. A infância é um estágio necessário a todo processo evolutivo, sendo o
ponto de partida deste processo, podendo ser um período já marcado por uma profunda
aprendizagem, ou ser apenas uma limitação a ser ultrapassada com a chegada das etapas
seguintes, no processo de maturação.
Nas ibejadas da umbanda vemos como essas concepções se fundem. As Crianças são
sempre qualificadas como inocentes e puras, mas se esses espíritos seguem incorporando e
trabalhando aqui na terra, é porque, ao mesmo tempo que já atingiram certo grau evolutivo,
ainda têm outros níveis a alcançar. Os espíritos, que se manifestam de forma infantil ou são eles
próprios espíritos que desencarnaram na infância, que incorporam nos corpos dos médiuns
numa gira de ibejada, trabalham por sua própria evolução, assim como pelo crescimento de
médiuns e consulentes.
Como veremos a seguir, no universo das entidades infantis que são associadas às
ibejadas não estão apenas os santos católicos e as infâncias da doutrina espírita, mas também
as entidades infantis das religiões afro-brasileiras. Além de inocentes, puras e imaturas, tais
quais as crianças sacralizadas pela concepção cristã, as ibejadas também são, como veremos ao
longo desta tese, glutonas, bagunceiras e, por vezes, um tanto desordeiras.

1.2.2 Gemelaridade e a morte

Em ‘Mitologia dos Orixás’, uma obra de referência que reúne cerca de 300 mitos dos
orixás numa das maiores coleções de mitos iorubanos e afro-americanos já publicadas
(HOFBAUER, 2001), Prandi (2001) nos traz sete mitos de Ibeji 26, cada um retratando um
episódio distinto. Minha intenção aqui não é me debruçar sobre esses mitos e analisá-los em
suas minúcias, mas sim destacar recorrências que nos permitam acessar o universo desses orixás
e quais características deles essas narrativas destacam.
Em todos os mitos os Ibejis são dois, orixás irmãos gêmeos. O nome, no entanto, é
apenas um, mas os verbos e artigos que a ele se relacionam são sempre flexionados no plural.

26
Número relativamente pequeno se compararmos com os 40 de Xangô ou os 20 de Oxum e Oiá (Iansã).
57

Em apenas um mito os nomes de cada um são mencionados: Taió e Caiandê 27 (PRANDI, 2001,
p. 370). Nos mitos, os Ibejis aparecem como filhos de Oxum, Oiá e Iemanjá com Oxóssi ou
Xangô; e há ainda um mito em que sabemos apenas que os gêmeos são filhos de um casal de
fazendeiros. Nas narrativas os gêmeos são crianças que gostam de brincar – e de tanto que
troçam, até com a morte eles brincam.
Em certa ocasião, os gêmeos salvaram a aldeia ao enganarem Icu, a morte. Muitos
habitantes já haviam sido levados por Icu e mesmo os sacerdotes, bruxos e adivinhos foram
vencidos pela morte; mas os Ibejis tinham um plano. Enquanto um se escondia no mato, o outro
ficava na trilha, onde Icu armara sua armadilha, tocando um tambor. Ao ouvi-lo, Icu pôs-se a
dançar. Sem que Icu percebesse, os irmãos trocavam de lugar e, quando um se cansava de tocar,
o outro assumia o tambor, e assim a música não cessava. Icu, mesmo cansada, não conseguia
parar de dançar e, quando já não aguentava mais, pediu que a música parasse. Os Ibejis
prometeram parar se Icu retirasse todas as armadilhas e, já exausta e sem escolha, Icu cedeu.
A morte é tema recorrente na mitologia dos gêmeos, e aparece ainda em outras três
narrativas. Em dois mitos um dos gêmeos morre e o que segue vivo procura uma maneira de
trazer o irmão de volta à vida. Em um dos casos, Orunmilá, a divindade oracular, diz que não
pode trazer o irmão morto de volta, mas transforma ambos em imagens de madeira e ordena
que elas permaneçam sempre juntas28; assim, os gêmeos não se separariam, não mais
cresceriam, e seguiriam sendo “dois gêmeos meninos brincando eternamente” (PRANDI, 2001,
p. 369). Num outro mito, o gêmeo morto é desenterrado por seu irmão, que o prende junto ao
seu corpo, para que sigam andando juntos pela cidade. A vida de um definha com a morte do
outro e os Ibejis precisam estar sempre juntos, e nem mesmo a morte é capaz de separá-los.
Há ainda a narrativa que conta sobre um casal de fazendeiros que vivia a perseguir os
macacos que devoravam sua plantação. Os videntes alertaram o fazendeiro, avisando que os
macacos eram poderosos e que poderiam, como retaliação à perseguição que sofriam, gerar o
nascimento de várias crianças que morreriam com pouco tempo de vida; mas o fazendeiro
ignorou tal aviso e seguiu com sua perseguição. Dois macacos entraram no ventre de uma das
esposas do fazendeiro, que tempos depois deu à luz os primeiros Ibejis que nasceram entre os

27
Em iorubá, Táíwò e Kéhìndé. Apesar de nascer primeiro, Táiwo é considerado o mais novo, aquele que veio
provar o mundo, e é seu choro que sinaliza a Kéhìndé que é seguro vir ao mundo. Apesar de ser o último a chegar,
Kéhìndé é o mais velho dos gêmeos. (VERGER, 1983; LAWAL, 2011; MONTES, 2011).
28
Sobre as imagens como forma de manter o vínculo entre os irmãos mesmo após a morte de um deles, Lawal
(2011, p. 91, tradução minha) diz que “uma escultura humana consagrada pode ser usada para reencarnar
metaforicamente a alma e depois funcionar como uma lembrança do falecido. Isto explica porque os memoriais
de gêmeos (ère ìbejì) são considerados vitais para a manutenção do vínculo espiritual entre um gêmeo sobrevivente
e seu parceiro falecido”.
58

iorubá 29. Pouco tempo depois, eles morreram; e depois tornaram a nascer e morrer por diversas
vezes. Só depois que o fazendeiro parou de perseguir os macacos, deixando-os comer de sua
lavoura, é que os Ibejis nasceram e vivos permaneceram. Nesse mito, os Ibejis eram abicus
mandados pelos macacos.
Pierre Verger (1983, p. 138) nos conta que os abicus são crianças que nasceram para
morrer, sendo esse termo a junção dos verbos iorubá nascer (abi) com o substantivo morte
(ìkú)30. Nos conta o autor que, entre os iorubá, quando uma mulher dá à luz um natimortos ou
crianças que morrem ainda muito novas, estes não seriam nascimentos de distintas crianças,
mas aparições de um mesmo espírito abicu; ou seja, é sempre a mesma criança que nasce e
morre e tornar a nascer e morrer. Os espíritos dessas crianças quando vêm à terra (àiyé), já
deixam o céu (òrun) com a promessa do retorno e anunciam qual o evento que marcará essa
volta – o primeiro contato com a mãe, os primeiros passos, o casamento marcado. Quem cobra
aos abicu o retorno no tempo que prometeram são as crianças que permaneceram na sociedade
do céu (egbé òrun), que vivem chamando aqueles que vieram à terra de volta ao céu para
brincar.
Não é preciso enfrentar vários lutos para identificar um abicu. Os oráculos, como o
Ifá31, também podem nos dizer que a criança que está por vir ou que acaba de nascer é um abicu
e, sabendo disso, é possível fazer oferendas às crianças do céu para que a recém-chegada à terra
aqui permaneça. Se conseguem descobrir a promessa feita ainda no céu, pode-se tentar enganar
os abicu, para que o momento do retorno nunca chegue, ou que passe despercebido. Se um
abicu promete retornar ao céu no dia em que marcarem seu casamento, os pais podem nunca
acertar os detalhes do matrimônio previamente, mandando a filha à casa do marido sem antes
avisá–la; neste caso, a abicu não percebe o momento em que se deu o evento que marcava seu
retorno ao céu. Passado o tempo ou acontecimento em que prometeram regressar, as crianças
da sociedade do céu vão perdendo o poder sobre os abicus, que acabam vivendo por muitos
anos após seu nascimento. Aos abicus costumam dar nomes que traduzam as súplicas para que

29
A associação entre os Ibejis e os macacos também se explica pelo fato do nascimento dos gêmeos ser
considerado anômalo, menos humano do que animal. Segundo Mourão (2015, p. 128), os gêmeos também são
chamados de Edunjobí, que significaria ‘parente de macacos’, mais especificamente os macacos da espécie
colobus, que costumam ter muitos partos duplos.
30
O termo em iorubá é grafado como àbíkú, mas opto por manter aqui o termo com a grafia adaptada à língua
portuguesa.
31
Além de um sistema divinatório, Ifá é também um culto, cujo sacerdote máximo é o babalawo (que em tradução
livre seria o pai do segredo). Ao invés dos búzios, o instrumento de consulta oracular é o opelê ifá, uma espécie
de terço composto por fios de metal ou palha da costa intercalados com sementes, como as de dendezeiro. Sobre
o Ifá, ver: BASCOM, 1984.
59

permaneçam na terra e as promessas de bons tratos, numa tentativa de fazer com que essas
crianças tenham uma boa vida na terra e não desejem retornar aos céus.32
Ibejis e abicus também se relacionam pelo fato de ambos serem nascimentos
excepcionais. O parto de abicus é um fenômeno particular e que merece atenção e cuidados,
assim como o nascimento de gêmeos, por ser pouco comum. Entre os iorubá, o nascimento de
gêmeos já foi considerado algo anômalo e monstruoso, e era, inclusive, comum que uma das
crianças fosse sacrificada, para que apenas uma permanecesse viva. Mas, o que era considerado
um infortúnio passou a ser apreciado como dádiva e os esforços se voltaram para manter vivas
as duas crianças. Lawal (2011) ressalta que entre os iorubá se acredita que todos temos um
duplo espiritual no céu, e o que particulariza os Ibejis é o fato do duplo espiritual também nascer
na terra. E como seria impossível distinguir o ser mortal do ser divino, ambos são tratados como
sagrados desde o nascimento. Abicus e Ibejis são crianças que demandam e merecem muitos
mimos e cuidados. Nascidos por milagre ou infortúnio, são crianças que vivem a brincar, na
terra ou no céu.
Monique Augras (1994) relaciona gêmeos e abicus pela dualidade que caracteriza
essas figuras. A partir de um referencial psicanalítico, Augras traz o tema do duplo, necessário
à constituição da identidade, onde o eu se realiza na relação dialética com o outro. No caso da
gemelaridade, o outro não seria o diferente, mas o idêntico; “o gêmeo é a encarnação viva desta
outra imagem do eu, postulado como negatividade necessária à afirmação da identidade. O
duplo gemelar afirma a realidade dos fantasmas, ao mesmo tempo que denuncia sua irrealidade,
pois é vivo, concreto” (Ibid., p. 76). O gêmeo constitui–se, portanto, enquanto pessoa ambígua,
sendo singular ao mesmo tempo que idêntico ao outro. Já a identidade dos abicus se conforma
na relação dessas crianças com a vida e a morte. As crianças que nascem já prometidas à morte
vivem o presente num modo passado, já nascem com a promessa do retorno, são marcadas por
uma dualidade que as mantém num constante estado de liminaridade. Ibejis e abicus são seres
ambíguos: os gêmeos são dois e são um, idênticos que são diferentes; os abicus vivem no
prenúncio da morte, vêm à terra, mas permanecem ligados ao céu.
Ibejis e abicus nos permitem apreender que a relação com a morte pode também ser
uma brincadeira. Icu foi ludibriada com música. Abicus enganam a morte e seguem brincando
na terra, esquecendo da promessa de retornar ao céu. Ao transformar os Ibejis em imagens de

32
Alguns exemplos de nomes dados aos abicus: Aiyédùn (a vida é doce), Akújí (o que está morto desperta),
Dúróoríìke (fica, tu serás mimada), Kòkúmó (não morra mais), Omotúndé (a criança voltou); (VERGER, 1983, p.
143-5).
60

madeira,33 Orunmilá permitiu que os gêmeos nunca deixassem de ser crianças. É no interromper
da vida de uma criança que se permite ao espírito a permanência na infância, sendo o céu o
lugar do eterno brincar. Os Ibejis vieram ao mundo para brincar, fadados a permanecer numa
eterna infância, ainda que, para isso, esteja também marcado um encontro com a morte – nem
que seja para fazê-la dançar.
Gostaria ainda de apresentar outros gêmeos que, consagrados pela tradição católica,
são divinos e também mantêm relação com as crianças. Nascidos na Arábia, por volta de 260,
Cosme e Damião eram os filhos mais novos de Teodota, que além dos gêmeos tinha ainda
outros três filhos. Enquanto os irmãos mais velhos se ocupavam do comércio, Cosme e Damião
dedicaram-se à medicina, cuidando dos doentes de sua aldeia natal, sem nunca cobrar por seus
serviços – e por isso também são conhecidos como os santos anárgiros34. O governador da
província, Lísias, ao saber das milagrosas curas dos irmãos, mandou chamá-los. Cosme e
Damião atribuíam a Deus as curas dos doentes que atendiam, confessando assim sua crença
cristã. Por isso, Lísias ordenou que os irmãos negassem sua fé e adorassem os ídolos; por não
obedecerem a esta ordem, foram condenados a diversas torturas. As mãos e os pés de Cosme e
Damião foram cravejados e, por não terem demonstrado dor, foram acorrentados e jogados ao
mar, de onde saíram carregados por um anjo, que conduziu os irmãos aos pés de Lísias. O
governador ordenou que os irmãos fossem queimados na fogueira, de onde foram, novamente,
resgatados por um anjo. Os gêmeos ainda foram crucificados em praça pública, mas as flechas
e pedras não os atingiam e ainda se voltavam contra quem as havia atirado. Por fim, Lísias
mandou decapitar os irmãos. A morte dos irmãos teria ocorrido por volta dos anos 300, sob o
império de Diocleciano, período marcado pela perseguição aos cristãos. São Cosme e São
Damião foram consagrados como santos mártires (FIGUEIREDO, 1953; GÉNOLI, 2011;
GIORGI, 2003; VARAZZE, 2003).
O transplante de uma perna cancerosa de um guardião da igreja em Roma dedicada
aos santos é um dos milagres mais conhecidos de São Cosme e São Damião, e foi, inclusive,

33
Sobre a forma dessas imagens, “normalmente uma figura de corpo nu e ereto, descalça ou ocasionalmente
usando um par de sandálias, e com os braços ao lado; um memorial típico de gêmeos, masculino ou feminino,
mede entre 15 e 28 centímetros de altura. A cabeça, com seu penteado elaborado, quase sempre domina a figura,
aludindo à sua importância como sede da alma e local de identidade, comunicação e percepção. O caráter
transcendental do falecido se reflete nos olhos salientes, em forma de amêndoa, nariz grande e achatado, lábios
salientes e corpo sem detalhes. A pequenez de um típico memorial é simbólica e funcional; por um lado, reflete o
fato de que, no passado, a maioria dos gêmeos morreu na infância; por outro, o tamanho pequeno facilita a
portabilidade, especialmente quando a imagem é dada ao gêmeo sobrevivente para brincar ou quando a mãe dança
com ele em homenagem ao gêmeo falecido” (LAWAL, 2011, p. 92. Tradução minha).
34
Palavra derivada do grego, em que “a(n), privativo, e árguros, dinheiro” (Augras, 2005, p. 94).
61

retratado em alguns quadros;35 e na Europa, o culto aos santos era bastante ligado, justamente,
ao ofício da medicina. O culto a Cosme e Damião dava-se, sobretudo, nas associações médicas,
sendo os santos considerados patronos desta profissão. Teve mais notabilidade a Confrérie de
Saint-Côme et Saint-Damien, que funcionava nas dependências da igreja dedicada aos santos,
em Paris, no século XVIII (NICAISE, 1893). Já em Coimbra, para obter o título de doutor, era
preciso pagar uma taxa à Irmandade de São Cosme (FALCI, 2002, p. 138). Mas há também
registros de um culto distinto em Portugal, mais associado a toscas capelas do que aos suntuosos
prédios das confrarias e academias, localizado em pequenas aldeias, onde os nomes dos santos
eram mais associados ao nascimento de gêmeos do que aos grandes e renomados cirurgiões
(CARVALHO, 1928). 36
No Brasil, São Cosme e São Damião chegaram em 1535, quando foi erguida nas terras
da capitania de Duarte Coelho uma igreja em homenagem aos santos 37. Por aqui, o culto aos
santos parece nunca ter sido unicamente associado ao ofício da medicina e, como afirmam
diversos autores, o culto católico aos santos sempre foi, em território brasileiro, fortemente
influenciado pelo culto africano aos orixás gêmeos e, talvez por isso mesmo, mais associado às
crianças e à gemelaridade do que às artes da cura.

1.2.3 Doum, o terceiro

Em ambas narrativas, dos orixás iorubá e dos santos católicos, os gêmeos têm outros
irmãos. No caso de São Cosme e São Damião, a hagiografia menciona os nomes de Ântimo,
Leôncio e Euprépio (VARAZZE, 2003), os outros três irmãos dos gêmeos médicos. Na série

35
‘A cura de Justiniano por São Cosme e São Damião’ (1430-40) de Fra Angelico e ‘Um sonho de sacristão: São
Cosme e Damião realizando uma cura milagrosa através do transplante de uma perna’ de Mestre de Los Balbases
(1495). Os outros milagres atribuídos aos santos gêmeos foram: retirar uma serpente que havia entrado no corpo
de um camponês e libertaram uma mulher do diabo (VARAZZE, 2003).
36
Ramos (2001, p. 302) diz que na Itália o culto a Cosme e Damião tinha “evidente significação fálica”, com uma
devoção significativa de mulheres estéreis, acionando como referência a obra ‘Les divinités génératrices: le culte
du phallus chez les anciens et les modernes’, de Jacques Antoine Dulaure (1805). Câmara Cascudo, em seu
“Dicionário do Folclore Brasileiro” (1988, p. 259), também menciona essa característica, associando o culto à
Cosme e Damião ao “culto dos deuses da reprodução, fecundação, germinação e moléstias sexuais como era
notório nos ex–votos fálicos, existentes na sua igreja em Isernia, Molisa, na Itália”. Aqui no Brasil há quem recorra
aos santos gêmeos para pedir filhos ou a proteção de uma gravidez já em curso, uma devoção que acredito ter
menos a ver com alguma significação fálica do que com o fato dos santos serem aqui identificados como protetores
das crianças..
37
A igreja matriz da cidade de Igarassu, no estado de Pernambuco, é, segundo o Instituto do Patrimônio Histórico
Artístico Nacional (Iphan) a mais antiga em funcionamento no Brasil. A igreja atualmente tem missas semanais,
aos domingos, e, após a missa, são celebrados os batismos.
62

de quadros de Fra Angelico, que retratam os suplícios pelos quais os santos mártires passaram,
os gêmeos estão sempre acompanhados por outras três figuras38. Mourão (2015, p. 37) chama
atenção para o fato de que nesses quadros Cosme e Damião são retratados como dois jovens
adultos idênticos, com as mesmas vestes e feições, enquanto os outros três irmãos são diferentes
entre si, e todos são menores que os gêmeos, destacando-se entre eles o menor, que parece ser
ainda criança. A partir dessas narrativas hagiográfica e pictórica, podemos inferir que os irmãos
de Cosme e Damião são três homens, todos nascidos após os gêmeos.
Sobre os irmãos dos Ibejis sabemos um pouco mais. Retomando as narrativas
apresentadas por Prandi (2001), há um mito que nos revela os nomes dos três irmãos dos Ibejis:
Idoú, Alabá e Odobé. Nos conta Augras (1994) que o nascimento de gêmeos instaura uma
ordem significativa na sucessão familiar, e os que nascem após o parto gemelar devem receber
nomes específicos. Assim, o menino que nasce logo após os gêmeos chama-se Idoú; à menina
que o sucede será dado o nome de Alabá; e seu irmão mais novo será Odobé. O nascimento de
gêmeos pode ser uma bênção, mas também pode trazer maus augúrios; de toda sorte, quando
ocorre um parto duplo, uma nova ordem (ou desordem) se instaura.

Egbé tinha dois filhos, eram filhos gêmeos.


[…]
Egbé tinha um problema com os filhos.
As crianças eram levadas, como todas as crianças,
e gostavam de brincar com fogo.
Os gêmeos traquinas traziam fogo para casa
e o fogo incendiava o lar de Egbé.
[…]
Egbé vivia em sobressalto,
experimentando as mais inquietantes emoções,
sempre com o coração batendo forte e apressado.
[...]
Egbé consultou o babalaô
e ele disse a ela que tivesse outro filho.
O terceiro filho veio
e apaziguou os irmãos gêmeos.
O irmão dos Ibejis foi chamado Idoú.
Seu temperamento tinha a combinação
do espírito de seus irmãos mais velhos. (PRANDI, 2001, p. 373-4)

Segundo Peek (2011, p. 15), em muitas culturas africanas há a menção à importância


da criança que nasce após os gêmeos e, em alguns contextos, a unidade gemelar já compreende

38
Fra Angelico, (1395-1455) foi beatificado em 1982, e por isso é também conhecido como Beato Angelico.
Segundo Mourão (2015, p. 35), ele é “um artista que se destaca pela especial contribuição à história da iconografia
dos santos gêmeos, visto que traz à visualidade com preciosismo narrativo quase todos os momentos da hagiografia
dos referidos santos”.
63

um terceiro, pois os gêmeos precisam ter um irmão mais novo. O nascimento que sucede o parto
duplo é necessário para restabelecer a ordem “normal”. E é com este poder que Idoú, o terceiro,
nasce: o poder de salvar a mãe da loucura, apaziguar os Ibejis, restabelecer a ordem abalada
pelo nascimento dos gêmeos.
Se no mito acima Idoú apaziguou os irmãos, há um outro caso em que o terceiro é a
causa da briga entre os Ibejis. Oxum, depois de já ter vários filhos, rejeitou o menino nascido
após os gêmeos. Enjeitado, Idoú passa a viver na cabeça de seus irmãos, ora na cabeça de Taió,
ora na de Caiandê, e os Ibejis, atormentados pelo irmão, viviam brigando entre si. Com a ajuda
de nove espelhos, Oxum conseguiu ver onde estava o egum (espírito) de Idoú e acabou
sacrificando um dos gêmeos, como forma de evitar que o outro enlouquecesse. Idoú vinga-se
da rejeição instaurando a desordem, atazanando a cabeça dos gêmeos, levando a mãe à loucura
(PRANDI, 2001, p. 369-70).
Uma figura peculiar que é fundamentalmente ambígua e anômala, que vive a trapacear,
que domina a arte da metamorfose, que tem a capacidade de inverter uma situação, que difunde
as mensagens dos deuses, que vive a equilibrar-se entre o sagrado e o lascivo, ora pendendo
mais para um lado ora para o outro. Uma figura que encarna o papel de mediador, o emissário
dos deuses e dos homens, o transgressor que exacerba e supera os dilemas. Assim são descritos
os tricksters, heróicos e trapaceiros personagens míticos, literários, sagrados e profanos
(HYNES & DOTY, 1993; QUEIROZ,1991)39. Mas também são características que definiriam
muito bem Idoú.
O filho que nasce após os gêmeos é um trickster. O irmão mais novo dos Ibejis é, assim
como os gêmeos e os abicus, uma figura ambígua, que veio ao mundo para, a partir da
desordem, restaurar uma ordem perdida. O terceiro que transgride e reordena a unidade
gemelar. Entre brincadeiras e trapaças, Idoú transpõe tabus e inverte situações 40. Idoú traz
consigo a loucura que apazígua, ou a paz que enlouquece, sua mãe e irmãos. Esse terceiro que
em África se chama Idoú (Ídówù), aqui no Brasil é mais conhecido como Doum.

39
Ambas obras (HYNES, DOTY, 1993; QUEIROZ,1991) nos dão acesso a uma revisão da literatura mais clássica
sobre o tema, retomando as discussões no campo da antropologia que relacionam essa figura aos heróis do
repertório mítico de indígenas norteamericanos (LOWIE, 1909; EVANS-PRITCHARD, 1967). A obra organizada
por Hynes e Doty ainda nos permite acessar uma produção mais recente, com trabalhos que discutem a figura do
trickster em distintos contextos, como o africano e japonês, e a relacionam com diferentes personagens, como
santos e xamãs.
40
Por essas características, Idoú acaba por ser muito semelhante à Exu, o ambíguo e trapaceiro mediador entre
deuses e homens. Não é meu intuito aqui desenvolver essa discussão, para isso, ver: WESCOTT, 1962;
PEMBERTON, 1965; TRINDADE 1982; 1985.
64

Falarei desse terceiro aqui no Brasil a partir de suas representações escultóricas.


Montes (2011) e Mourão (2015) analisaram diversas imagens dos santos gêmeos 41 e nos
demonstram como aqui no Brasil foi produzida uma dupla representação dos santos, ora
apresentados como médicos adultos ora como duas crianças. As imagens que trazem dois jovens
médicos idênticos seriam a representação de uma narrativa hagiográfica, católica e europeia.
Essa iconografia cristã retrata Cosme e Damião como dois adultos, portando trajes romanos
(com sandálias, túnicas e longos mantos), capa, esclavina e cajado. Seus atributos costumam
ser a palma do martírio e, sobre uma mesinha posta entre os dois, os instrumentos cirúrgicos e
livros. Entre as imagens da coleção, essas que trazem os jovens médicos costumam ser mais
eruditas, identificadas pelos cuidadosos entalhes, vestes ornamentadas, os detalhes em dourado,
as pinturas em vermelho e verde, cores que simbolizam o martírio e a redenção (MONTES,
2011).
Mas, como nos conta Mourão (2015), a maior parte das imagens da coleção
Pomerantzeff não retratam esses jovens médicos, mas sim meninos rechonchudos, toscamente
entalhados, com vestes curtas em tons de rosa e azul. Essas imagens de duas crianças idênticas
estariam mais associadas às narrativas africanas e, para ambos autores, as transformações nas
representações escultóricas dos santos gêmeos aqui no Brasil seriam índice da presença da
cosmologia negra no imaginário religioso católico. Mourão (2015) ressalta ainda o fato de a
coleção ser formada majoritariamente por imagens de culto doméstico, “ou seja: tal produção
não passava pelo crivo oficial do catolicismo, mas pelo afeto e compreensão cosmológica da
população” (ibid., p. 88). Junta-se a isso o fato de parte significativa da coleção ser de origem
baiana, ou seja, oriundas de um território onde distintas cosmogonias coexistiam.
Ambos autores nos mostram que as mudanças na iconografia dos santos são indícios
de que aqui no Brasil São Cosme e São Damião são menos associados ao exercício da medicina
do que às crianças, o que, por sua vez, evidenciaria que nas imagens dos santos gêmeos também
estavam os gêmeos orixás. Outro traço que marcaria essa relação entre as duas narrativas é
Doum, que tomou o lugar da mesinha sobre a qual eram dispostos os livros e instrumentos
médicos. O terceiro, idêntico e menor, aqui posto entre os gêmeos.

41
As imagens são parte da coleção de Ludmilla Pomerantzeff, que é composta por cerca de 1.200 peças de
imaginária sacra e dentre elas cerca de 300 são representações dos santos gêmeos. Maria Lúcia Montes analisou
as 300 imagens quando realizou a curadoria da exposição ‘Cosme e Damião: a arte popular de celebrar os gêmeos’,
realizada entre 27 de setembro de 2010 e 30 de janeiro de 2011 no Museu Carlos Costa Pinto, em Salvador. Mourão
debruçou–se sobre as imagens da coleção durante sua pesquisa de doutorado, e sua tese, defendida em 2015 no
Programa de Arte e Cultura Contemporânea da UERJ, intitula–se ‘De médicos a meninos: vitalidade gemelar na
escultura doméstica popular dos santos Cosme e Damião no Brasil’.
65

Outro elemento que não deixa dúvidas sobre a força interventora da cultura
iorubá por sobre a produção escultórica devocional de Cosme e Damião no
Brasil é a presença de Doum, acréscimo artístico notado em cinco diferentes
obras do século XIX na coleção. Rechaçado pela Igreja Católica que, não
consegue abarcar o irmão mais jovem de Ibeji à iconografia de Cosme e
Damião, Doum, assim como a infantilização dos irmãos, é selo irrefutável da
intervenção da africanidade sobre a imaginária cristã. Como pudemos ver, sua
presença pode não ocorrer nos espaços oficiais do catolicismo, mas o mesmo
não pode ser dito dos lares católicos e de outros segmentos religiosos, que
generosamente oferecem abrigo ao terceiro e sem constrangimento o colocam
no lugar de Euprépio, Leôncio e Ântimo, nomes esses completamente
desconhecidos pela grande maioria dos brasileiros. (MOURÃO, 2015, p. 116).

Doum seria índice da associação entre os cultos aos santos e aos orixás, uma terceira
narrativa que funde outras duas já existentes, a mediação entre as tradições iorubá e católica, a
figura que não pertence aos espaços e narrativas oficiais, mas que é reverenciada nos altares
domésticos. Doum é o terceiro que, posto entre os dois irmãos, confere ambivalência à imagem,
que passa a ser representação de santos e orixás, tendo lugar em altares e congás.
Falar dessa relação entre Cosme, Damião e Ibejis acaba por nos levar a uma
encruzilhada, tanto por ser um ponto de confluência de dois caminhos distintos, quanto por nos
levar a um dilema, quando precisamos decidir qual caminho seguir. Ao falar do encontro de
diferentes cosmogonias, em figuras oriundas de tradições distintas que num novo contexto se
fundem e se transformam, em santos católicos que passam a ser cultuados como orixás iorubá;
um caminho que parece se impor é o do sincretismo. Ao mesmo tempo que parece ser o percurso
óbvio, costuma também ser a vereda evitada, pois o termo que é ordinariamente acionado, é
também categoria amplamente problematizada.
Amit (2015) propõe uma crítica ao movimento que, para defender um novo conceito,
esvazia outros já existentes, caracterizando-os enquanto obsoletos e afirmando a
impossibilidade que eles têm em apreender a realidade. Para a autora, refinar um conceito não
implica, necessariamente, na criação de um alternativo. Há a possibilidade de tomar conceitos
já existentes enquanto conceitos bons para pensar e, sob esta ótica, os conceitos serviriam
menos como prescritivos e mais enquanto molduras que nos permitem enquadrar determinado
objeto ou situação. Além disso, a autora sugere que nos afastemos de conceitos totalizantes,
ressaltando o caráter limitante da conceitualização; ou seja, nenhum conceito – novo ou
obsoleto – dará conta de tudo e, assim, melhor seria nos aproximarmos dos conceitos parciais
(partial concepts). Considerando essa proposta como um bom caminho a ser trilhado, não vou
66

aqui desconsiderar o conceito de sincretismo, mas irei apontar o que dele me serve para pensar
nas Crianças desta tese.42
Segundo Araújo (2011, p. 126),

Apesar das diferentes concepções do termo sincretismo nas ciências da


religião e/ou na teologia, o que está em jogo relaciona-se à questão de como
lidar com a alteridade ou, dito de outro modo, como lidar com diferentes
formas de ver o mundo e vivenciar experiências de caráter religioso.

Este capítulo e, de maneira mais ampla, essa tese assumem um caráter sincrético ao
apresentar algumas formas – ora mais distintas ora mais semelhantes – de ver, compreender,
cultuar e experienciar as Crianças. A moldura do sincretismo pode nos ajudar a perceber as
continuidades e descontinuidades nas devoções e representações dessas Crianças. Pensar na
figura de Doum e pô-la em relação com Idoú é uma maneira de pensar em como novas figuras
são incorporadas a um sistema, percebendo as formas dessa interação e ressaltando as
porosidades que permitem que duas (e três e quatro e mais) narrativas distintas se encontrem e,
a partir dessa confluência, se modifiquem e produzam um terceiro – que não se conforma
necessariamente em uma síntese das partes que o compõem (MUNANGA, 1989; NOVAES,
2011; PRANDI, 2011; SANCHIS, 2011).
Nesse universo do divino infantil vemos como as distintas passagens e combinações
dificultam a percepção de fronteiras e limites, onde, menos do que cosmologias fechadas,
vemos como esse repertório sobre Crianças vai se conformando num processo em que distintas
personagens e doutrinas são postas em relação de mútua influência. Ibejis, erês, Cosme,
Damião, Doum e as ibejadas habitam um mesmo universo, sendo todas entidades infantis cujos
cultos se espalham por centros, terreiros, igrejas e casas.
A ideia, portanto, não é afirmar que as ibejadas são entidades sincréticas porque são
resultado da mistura de duas ou várias religiões (SANCHIS, 1994, p. 6) e que neste processo
uma religião se sobrepôs a outra. Os espíritos infantis da umbanda são nomeados em referência
aos orixás, celebrados no dia dos santos gêmeos – que tiveram sua iconografia transformada
pela aproximação com os gêmeos iorubá –; iguais e diferentes aos erês, que, como veremos,
não são nem santos, nem orixás. Há, portanto, um intenso movimento combinatório entre essas

42
Não vou aqui empreender uma revisão bibliográfica sobre o conceito e para tal exercício o texto de Ferreti
(1995), ainda que defasado, segue sendo uma referência. Uma edição de 2011 do periódico Debates do NER traz
diversos artigos que contribuem e atualizam alguns debates sobre o conceito, bem como propõem outras questões
e novos caminhos.
67

personagens em que todas as partes parecem sofrer influência uma das outras e que, nos cultos,
ora se aproximam ora se distanciam, em movimentos que não são necessariamente conflituosos.
Nas doutrinas religiosas, que prescrevem crenças e práticas, estão mais presentes as
delimitações e distinções, mas na religião vivida o médium do centro umbandista tradicional
compra a imagem de sua ibejada na loja que a anuncia como “de erê” e faz a festa do dia 27 de
setembro com muitos doces e caruru. O que importa é cultuar as Crianças.

1.2.4 Os erês

Além de Cosme, Damião, Doum e Ibejis, preciso também falar dos erês. Para isso,
seguirei neste exercício cuja finalidade não é propor uma definição única e conclusiva, mas que,
ao se afastar das totalidades, busca abarcar e explorar as ambiguidades. Para falar dos erês,
retomarei caminhos trilhados por aqueles que já produziram algum tipo de definição dessas
personagens, para que possamos compreender não o que é um erê, mas o que um erê pode ser:
um orixá, um estado de transe, uma entidade infantil. Um termo que, como veremos, ora é
abrangente e nomeia diversos seres e estados, ora é acionado para, justamente, marcar
diferenças.
Citarei aqui autores considerados clássicos de uma literatura sobre religiões afro-
brasileiras, suas formas de organização e de culto aos santos e orixás (RODRIGUES, 2010
[1906]; RAMOS, 2001 [1934]; CARNEIRO, 1948; RIBEIRO, 1957; BASTIDE, 2001 [1958]).
Ainda que esses autores já tenham sido revisitados, com críticas e reverências, recorro a eles
por muitos de seus relatos ainda serem pertinentes para apresentar os erês e, mais adiante,
ilustrar o culto a esses santos e orixás no Brasil – e também por faltarem fontes mais recentes
que se dediquem a esse tema. Cosme, Damião, Ibejis e erês ainda são pouco tematizados, sendo
dedicadas a eles apenas breves menções, mas são raros os autores que os tomam como centro
da análise – a dissertação de Ordep Serra (1978) é, nesse sentido, pioneira; mas poucos seguiram
essa trilha (LÜHNING, 1993). Para outras discussões que proponho nesta tese, a referência a
trabalhos mais recentes é imprescindível; mas para este momento, torna-se incontornável a
menção a esses autores, cujos relatos não são tão anacrônicos quanto a data de publicação possa
sugerir. Concordando que algumas discussões e termos acionados pelos autores merecem
contestação e atualização, debruço-me aqui sobre o que julgo pertinente ao que proponho neste
68

capítulo: as descrições e definições de erê e das cerimônias, rituais e comidas que fazem e são
feitas no culto e celebração aos gêmeos.43
Como nos lembra Capone (2011), uma das primeiras referências aos erês estaria na
obra de Arthur Ramos, ‘O Negro Brasileiro’, publicada em sua primeira versão no ano de 1934.
Na classificação dos orixás por “ordem de importância cultural”, o Erê está na categoria
“outros” e é identificado como um orixá, filho de Xangô (RAMOS, 2001[1934], p. 49). A obra
contém uma série de imagens, muitas delas fotografias de peças da coleção particular do autor.
A figura sete é uma fotografia de três estatuetas de madeira: uma, a maior, seria a representação
de Xangô, identificado pelo machado duplo (oxê), insígnia deste orixá; as outras duas estatuetas
são menores e idênticas, e se assemelham às descrições das representações dos orixás gêmeos,
já aqui descritas anteriormente. Na legenda, o autor as identifica como “Xangô e Erê”. Na figura
40, temos “Exu e Erê”, onde podemos ver uma estatueta que representa o “orixá fálico” e outras
duas, de mesmo tamanho, que também parecem ser representações de Ibeji, essas um pouco
mais ricas em detalhes do que as da figura precedente. Em Ramos, portanto, Erê é grafado com
inicial maiúscula e no singular; nomeia um orixá que tem relação com Xangô e é representado
por duas estatuetas de duas figuras idênticas.
Na segunda edição de sua obra, revista e ampliada, Ramos reage às críticas que recebeu
após a publicação da primeira edição.44 Na versão de 1940 há uma nota de rodapé que diz “para
alguns negros, Erê não é um orixá; é apenas uma espécie de espírito inferior, que acompanha o
‘santo’ ou orixá” (ibid., p.49). Ramos não deixou de afirmar que Erê era um orixá, e tampouco
modificou as legendas das figuras; mas acrescentou essa nota que trazia uma outra possível
definição de Erê.
Em seu ‘vocabulário de termos usados nos candomblés da Bahia’, Édison Carneiro
(1948, p. 121) define erê como “nome genérico de um espírito inferior, um companheiro da
filha [de santo], que geralmente se representa pelos gêmeos, Cosme e Damião principalmente.
Este erê suaviza as obrigações da filha em relação ao seu orixá”. Carneiro define os Ibêje como

43
Ao longo deste item opto por manter a grafia utilizada pelo autor ao qual faço referência, para destacar que além
das distintas definições, são também várias as possibilidades de grafia dos termos que nomeiam essas personagens.
44
Uma das mais duras críticas à obra de Ramos foi sobre a abordagem psicanalítica na análise dos dados
etnográficos e o prefácio da edição de 1940, é uma resposta de Ramos a essas críticas. Na segunda edição, que
tornou-se definitiva, é suprimido o subtítulo “etnografia religiosa e psicanálise”. A introdução da primeira edição
de ‘O negro brasileiro’ foi reproduzida numa edição de 2007 da Revista Latinoamericana de Psicopatologia
Fundamental, e as notas de Guilherme Gutman apontam as principais modificações – supressões, adições e
redirecionamentos analíticos – entre a primeira e segunda edição da obra. Ver: RAMOS, Arthur. O negro
brasileiro: etnografia religiosa e psicanálise. Rev. latinoam. psicopatol. fundam. São Paulo , v. 10, n. 4, p. 729–
744, Dec. 2007. Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1415–
47142007000400015&lng=en&nrm=iso>.
69

“espíritos inferiores, orixás-meninos, coletivamente chamados êrês ou os meninos […]. Surgem


sempre depois da manifestação de qualquer orixá, como um período de transição para o estado
normal, pois os negros acreditam que todas as pessoas que têm santo têm também um erê”
(ibid., p. 49). Sobre o culto aos gêmeos em um terreiro de candomblé, Carneiro conta que “os
erês têm uma festa especial – a corda de Ibêje” (ibid., p. 50). Como podemos ver, Édison
Carneiro ratifica e amplia as definições de Ramos. Em ‘Candomblés da Bahia’ os erês (agora
grafados com inicial minúscula e no plural) são, além de orixás e espíritos inferiores, um estágio
de transição e o coletivo de Ibêje.
Segundo Bastide (2001[1958], p. 212),

Há em língua iorubá a palavra ‘ere’, que significa ‘estátua’; ora, sabe-se que
os Ibejis são sempre representados por duas estatuetas, uma em geral feminina
e a outra masculina. […] Compreende-se então que os negros digam aos
brancos que pedem informações: os Ibejis são eres. Querem dizer que são
estatuetas.

As definições de Ramos e Carneiro poderiam, portanto, ser resultado de uma escuta


que, ao confundir dois termos, acabou por identificar Erê e Ibejis, tornando–os termos
sinônimos. Para Stefania Capone (2011), a confusão inicial de Ramos pode ser considerada um
mal-entendido produtivo, já que, no Brasil, essa associação de crianças divinas de distintas
tradições acabou por estabelecer uma forma muito particular de cultuar as Crianças. Mas nem
sempre essa confusão é bem-vinda, e, para alguns, é preciso estabelecer algumas diferenças.
No glossário da obra ‘O candomblé da Bahia’ (2001[1958]), Bastide define os erês
como: “ 1) espírito infantil que acompanha as divindades e os homens; 2) tipo de transe infantil”
(ibid., p. 309). Erês não são orixás como os Ibêji. É no capítulo intitulado ‘A estrutura do transe’
que os erês vão aparecer, compreendidos enquanto um dos estágios da estrutura proposta por
Bastide. Esta estrutura decompõe-se em três fases: o primeiro momento é intermediário, entre
o estado normal e o transe, e pode ser tão rápido a ponto de passar despercebido. A fase extática
é o ápice, a fase mais longa e todos anseiam por ver os orixás nos corpos de seus filhos. Após
o transe, quando o orixá é despachado, há a terceira e última fase, o estado de erê.
Essa “espécie de transe infantil” (ibid., p. 194) que se caracteriza por ser mais doce e
suave que a possessão pelo orixá, é um estágio de transição que permite ao filho de santo ter
uma passagem mais gradual entre o êxtase e o retorno à consciência. Nesse estágio os filhos de
santo comportam-se como crianças e se comunicam em linguagem infantil. Em muitas ocasiões
o estado de erê é bastante breve, um fenômeno fugaz, que, assim como o estágio que precede o
70

transe, pode passar despercebido ou ser visto por poucos. Mas em algumas ocasiões o estágio
de erê é o ápice do ritual.

Parece que nesse ponto houve influência de uma analogia: os Gêmeos são
crianças e os erês são espíritos infantis. Procurou-se transformar a festa dos
Ibêjis, que era uma festa sem transes, de vez que os gêmeos não ‘baixam’ na
Bahia, em uma festa da mesma natureza que a dos outros orixás, isto é, toda
pontuada de possessões. (BASTIDE, 2001[1958], p. 212)

Os Ibêjis não baixam e pouco se sabe sobre a manifestação desses orixás em filhos de
santo45. Nas celebrações aos orixás gêmeos, os espíritos infantis que se fazem presentes são
os erês. Nas festas do dia 27 de setembro, os Gêmeos são celebrados, como veremos adiante,
com caruru, doces, brinquedos e brincadeiras; numa festa repleta de crianças e erês. Nessas
ocasiões, a possessão que deveria ser apenas um estágio intermediário torna-se o clímax do
ritual.
Outra situação em que a presença dos erês é marcante é durante o processo de iniciação
de filhos e filhas de santo. A dissertação de Ordep Serra, intitulada ‘Na trilha das crianças: os
erês num terreiro angola’ (1978), analisa a figura dos erês a partir do papel que desempenham
no rito iniciático. Como disse anteriormente, na literatura sobre as as religiões afro-brasileiras,
poucas são as obras que se detêm sobre os santos e orixás gêmeos e as demais entidades e
estados de transe a eles associados; e, nos poucos casos em que são mencionados, os autores
passam mais tempo trilhando as possíveis relações com as tradições do continente africano do
que nos oferecendo descrições etnográficas de situações em que essas Crianças se fazem
presentes. Nesse sentido, a dissertação de Serra é bastante significativa, não só por nos oferecer
descrições dessas entidades, mas por considerar que o problema dos erês não é apenas uma
singularidade ou algo à parte do candomblé, mas um fenômeno central e estruturante desse
culto.
Só quem é iniciado tem santo e só quem tem santo tem erê. Este nasce no processo de
iniciação, quando nasce também a iaô46 e seu santo. Este distingue-se do orixá por ser único e

45
Afirmativa que diz respeito, sobretudo, aos terreiros de nação nagô; já que em outras tradições pode haver a
possessão por Ibeji. Capone (2011, p. 294) menciona que na tradição angola os ibejis são conhecidos como vunji,
e havia um iniciado de vunji no terreiro de Joãozinho da Goméia, no Rio de Janeiro.
46
Iaô é o nome dado ao/à filho/a de santo que passou pelo processo de iniciação, também conhecido como feitura
de santo. O termo deriva do iorubá Ìyàwó, que pode ser traduzido como senhora (Ìyà), ou mãe, do segredo (awó).
71

particular; no processo de iniciação não se faz o orixá, mas o santo.47 O erê é uma espécie de
acompanhante do santo, que é dele independente, mas a ele está associado.

O erê é definido, em princípio, como uma entidade independente, mas vários


fatores o assimilam ao santo ‘nascido’ (feito), em consequência do enlace
místico entre o orixá e sua iaô. A irredutível individualidade desta assinala de
um modo notável santo e erê; mas a ambos se atribui, por outra parte, o mesmo
sexo e o mesmo caráter divino do orixá. (SERRA, 1978, p. 60)

Um dos índices da assimilação entre santo e erê são os nomes que estes recebem:
Lutador é nome do erê de uma filha de Roxo Mukongo (Ogum), Mimosa é o erê de uma filha
de Dandalunda (Oxum), é chamado de Cajadinho o erê de um filho de Lembarenganga (Oxalá)
(ibid., p. 64). Os nomes dos erês fazem, portanto, alusão a características ou insígnias dos orixás
que regem o/a filho/a de santo.48
O erê é também um mediador entre a iaô e seu santo. A iaô deve obediência aos seus
iniciadores, devem falar somente o essencial, sempre pedir a benção aos mais velhos, obedecer
todas as ordens recebidas, e caso não o façam são castigadas, e desempenhar as atividades que
lhes são atribuídas – iaôs trabalham muito e em silêncio. Os santos também são disciplinados,
mas ao invés de pedir benção e receber castigos, são eles que abençoam e castigam. Santo e iaô
são tratados com respeito e circunspeção. Os erês estão entre essas duas figuras: trabalham, mas
também brincam; abençoam mas também devem pedir bênção; recebem e dão castigos. Entre
a seriedade com que se trata o santo e a submissão da iaô, há a jocosidade do erê. Os erês, como
os santos e orixás, têm caráter divino, mas, por serem crianças, também devem obediência aos
mais velhos.
Nesse caráter infantil do erê há também um viés pedagógico. Ao erê são dadas lições
que ensinam ao santo e a iaô como portar-se, num processo de aprendizagem caracterizado
menos pela austeridade do que pelo caráter espirituoso. A infância, do erê e da iaô, como estágio
de aprendizagem – e também da brincadeira e obediência.
Ao erê cabe também o papel de mensageiro. O silêncio é imperativo aos iaôs e os
santos não costumam falar. São os erês que recebem e dão os recados, que comunicam as
mensagens entre santo, iaô e demais filhos e filhas da casa.
Como aponta Serra (1978, p. 71-2), os erês são, acima de tudo, seres ambíguos,

47
Sobre o processo de feitura e o nascimento do santo e do/a filho/a de santo, Cf. Goldman, 1985.
48
E, como vimos no capítulo anterior, o nome das ibejadas também faz referência aos orixás que regem seus
trabalhos – que pode, ou não, ser o mesmo orixá de frente do médium.
72

Eles são fortes (possuem extraordinária resistência física) mas fracos


(irritáveis, chorões); poderosos e submissos, perigosos e dependentes,
irascíveis e joviais, ‘dengosos’ e agressivos, temíveis e intimidáveis, sublimes
e ridículos, ingênuos e maliciosos, ineptos para procriar (figuram-se meninos)
mas doadores de fertilidade, combinam clarividência (podem prever o futuro,
etc) e a ignorância (até sua fala reduz-se, quase, a um tatibitate, e a cada passo
eles manifestam desconhecer as coisas mais elementares) – e assim por diante.

A ambiguidade característica dos erês nos impede de chegar a uma única definição,
mas também não precisamos reter tudo que foi acima exposto. A noção de que os erês são
espíritos inferiores, por exemplo, não se mantém, assim como a concepção que define erê como
orixá. Mas a ideia proposta por Édison Carneiro, que define erê como uma espécie de
substantivo coletivo, parece-me pertinente. Bastide (2001[1958]) e Capone (2011) recorrem a
Herskovits (1948) e Verger (1954,1983) para retomar transes e entidades infantis e seus cultos
em África; e ainda que alguns caminhos e relações possam ser retraçados, o que fica patente é
a plasticidade que esse termo assume em terras e cultos brasileiros, ao se moldar e nomear
distintos seres e estados, que se aproximam por serem, em alguma medida, infantis. Como nos
diz Serra (ibid., p. 80) “o significado mais amplo atribuído na língua ritual dos candomblés à
palavra erê é 'criança'''.

1.2.5 Doces e carurus

As homenagens a Cosme, Damião, Doum, Ibejis e outras Crianças costumam ser


repletas de comidas, com banquetes de quitutes salgados e doces – muitos doces. Como afirmei
em outra ocasião (FREITAS, 2015), a narrativa hagiográfica não nos diz muito da relação entre
santos e crianças, mas no dia 27 de setembro essa relação é evidente. Nas ruas, praças, casas,
igrejas e terreiros vemos que o culto a Cosme e Damião é uma grande celebração às crianças (e
às Crianças). E, como veremos adiante, as comidas que celebram os gêmeos também tecem,
estabelecem, constroem, ao mesmo tempo que explicitam e visibilizam as relações entre santos
e orixás, doces e dendê.
Em ‘Os Africanos no Brasil’, no capítulo intitulado ‘Sobrevivências religiosas:
religião, mitologia e culto’ Nina Rodrigues (2010 [1906]) trata do culto aos gêmeos. O autor
não nos diz muito sobre os orixás, mas nos conta sobre o culto, que ele afirmava ser o mais
73

disseminado na cidade Salvador e que não fica restrito à população negra africana, como se
poderia supor, pois se sabia “de famílias brancas, de boa sociedade baiana, que festejam Ibeji,
oferecendo às duas pequenas imagens de São Cosme e São Damião sacrifícios alimentares”
(op. cit., p. 225). Rodrigues também nos conta que era costume entre as famílias que tinham
gêmeos oferecer um banquete com “iguarias da Costa” e “manjares africanos”. Pelos relatos
do autor, podemos perceber a popularidade e o caráter doméstico dos festejos do dia 27 de
setembro e da relação próxima entre santos e orixás, já que na data consagrada pelo calendário
católico; ou seja, embora o festim, a comensalidade fosse uma característica das festas de santo
católicas, eram as comidas dos orixás que alimentava os santos e as pessoas.
No ‘quadro do sincretismo afro-católico no Brasil’, Arthur Ramos (2001[1934], p.
136) aponta a relação de identificação entre os quatro gêmeos ao indicar os Ibeji como
correspondentes de São Cosme e São Damião. A partir de um artigo publicado na edição de 27
de setembro de 1928 do jornal baiano ‘A Tarde’, Ramos nos traz uma crítica à devoção baiana
que tomava os médicos sírios por crianças. Dizia o artigo que a falta de erudição e de
conhecimento da hagiografia dos santos era a causa dessa confusão entre santos e orixás. Com
um tom de reprovação, o artigo ainda contava como o culto aos santos pouco passava pela
igreja, já que a missa era apenas uma pequena parte da celebração, cujo ápice tinha lugar nas
casas de família, onde se ofertavam os banquetes e eram realizadas as festas que adentravam a
noite com violas, pandeiros e danças (ibid., p. 300). Ramos ainda nos oferece mais detalhes
sobre as iguarias que eram ofertadas para repasto dos santos: caruru, efó (refogado de verduras
– mostarda, bertalha ou taioba – no azeite de dendê, com amendoim e camarão seco), abalá49 e
bobó.
Essa dimensão de banquete festivo doméstico, que caracteriza a celebração aos
gêmeos, também é retratada por Édison Carneiro (1948, p. 57), que elenca os quitutes servidos
no festim: “caruru, feijão fradinho, abará, acarajé, galinha de xinxim, acaçá, banana da terra em
azeite de dendê, milho branco, inhame, farofa de dendê, pipocas, pedaços de cana e de coco,
aluá (garapa de cascas de abacaxi em infusão ou de gengibre com rapadura) ”. Todas essas
iguarias eram servidas, aos santos e aos convidados, no “caruru dos meninos”. O prato a base
de quiabo, camarão e dendê tem uma espécie de relação metonímica com as demais iguarias, já

49
No dicionário Aurélio, abalá aparece como sinônimo de abará, que consiste na massa do acarajé (feijão fradinho
triturado com cebola), batida com camarão seco, envolta na folha de bananeira e cozida no vapor (disponível em:
https://www.dicio.com.br/abala/). Mas Raul Lody (2003, p. 35) define abalá como um doce feito à base de uma
massa, que pode ser de milho verde ralado ou de aipim, misturada ao leite de coco, sal e açúcar, enrolada na palha
do milho ou na folha de bananeira e cozida em água fervente.
74

que se convenciona chamar por caruru a refeição composta por todos esses quitutes. O caruru
é dos meninos Cosme, Damião, Doum e seus outros quatro irmãos Alabá, Crispim, Crispiniano
e Talabi (AUGRAS, 1994; MONTES, 2011; LOPES, 2012) e, de forma mais ampla, refere-se
também às crianças, que são as principais convidadas da festa, servidas antes dos demais
comensais. Segundo o costume, o caruru é ofertado em uma gamela a um grupo de sete meninos
que, sentados ao chão, comem o caruru com as mãos50; e só depois os outros convidados são
servidos. Segundo Bastide (2001[1958], p. 197), “no intervalo que medeia entre o caruru das
crianças e o caruru dos adultos, todos vão juntos até o altar de Cosme e Damião para render
graças aos santos e para dançar”. Os adultos comem sentados à mesa e entre eles há sempre o
risco de receber uma porção de caruru com um quiabo inteiro, o que significa a obrigação de,
no ano seguinte, ser o anfitrião do caruru. Este, portanto, não é só uma iguaria ou um prato, é
também um evento de devoção e sociabilidade, onde familiares, amigos e vizinhos comem,
rezam, cantam e dançam em homenagem aos meninos.51
Gostaria de destacar o relato e as considerações de René Ribeiro (1957) acerca do
protagonismo das crianças nas celebrações do dia 27. Saindo do contexto baiano, o autor nos
traz relatos das festas de Ibeji em terreiros de xangô52 em Recife, cerimônias que ele denomina
como candomblé miniatura. Nestes rituais, as crianças desempenham as atividades religiosas
que, normalmente, caberiam aos adultos. No dia que antecede a festa, são os adultos os
responsáveis pelo sacrifício dos animais ofertados aos orixás, pelo preparo dos alimentos e pela
arrumação do terreiro. Mas no dia 27 são as crianças que tocam e dançam – e também
incorporam os orixás, algo que não é comum, mas que nessa data chega a ser incentivado. Neste
candomblé miniatura, as crianças também brincam; folguedos e brincadeiras de roda permeiam
o ritual e se integram ao sagrado. Os orixás gêmeos são cultuados com atabaques, danças,
comidas e brincadeiras. Para Ribeiro (op. cit., p. 142), é justamente essa penetração das
brincadeiras no ritual que permite à festa dos Ibejis não se limitar ao espaço do terreiro,

[...] aqui o candomblé vai para a rua, transborda da casa de culto e se faz
aceitável através da realização de jogos competitivos infantis conhecidos e
sancionados pela sociedade larga, como permitindo aos vizinhos

50
Pierre Verger registrou esse momento, em Salvador, entre os anos de 1948 e 1952. A foto está disponível na
fototeca da página da Fundação Pierre Verger (http://www.pierreverger.org/br/acervo–
foto/fototeca/category/502–cosme–et–damien.html).
51
O caruru também é muito presente nas celebrações à Santa Bárbara e Iansã, festejadas em Salvador no dia 4 de
dezembro. Cf. MENDEL, 2020.
52
Como são genericamente chamados, em Pernambuco, os locais de culto do candomblé.
75

confraternizarem amplamente com os membros do culto e influírem no


desenvolvimento de atividades não rituais.

A rua é um espaço sagrado, santuário de entidades que pertencem às esquinas, praças,


vielas, estradas, encruzilhadas. No entanto, diversas práticas rituais foram exiladas desses
espaços públicos e ficaram restritas aos espaços dos terreiros. A rua não deixou de abrigar o
sagrado, mas foi tornada espaço proibido para alguns cultos e diversos rituais consagrados aos
orixás, inquices, caboclos, pretos-velhos, encantados, pombagiras e exus; religiões e religiosos
passaram a ser alvo de repressão, muitas vezes incitada, exercida e legitimada pelo Estado. O
relato de Ribeiro nos permite compreender a potência da brincadeira. É enquanto jogo infantil
que o ritual atravessa o portão, que o candomblé se torna aceitável aos olhos daqueles que não
o praticam; na rua os devotos brincam enquanto cultuam, os orixás são celebrados e as crianças
se divertem.

Para Ribeiro, as cerimônias de Ibeji em Recife evidenciavam a penetração do folclore


luso-brasileiro no terreiro de xangô, enquanto em Salvador ocorria o movimento inverso. Na
capital baiana o culto africano se dilatou pela cidade, levando práticas e comidas dos terreiros
de candomblé às casas de famílias baianas. Ambos movimentos resultam numa festa que se
espalha por terreiros, ruas e casas; onde práticas e costumes de um domínio penetram nos
demais, conformando uma festa doméstica com comida de terreiro, um ritual com brincadeiras,
uma festa na rua que reúne vizinhos e filhos de santo.

No Rio de Janeiro as festas em celebração aos santos gêmeos também se espalham por
ruas, casas e terreiros; mas ao invés de se lambuzarem no dendê, as crianças se melam com os
doces. A festa de Cosme e Damião é no dia 27, mas seus preparativos se desenrolam nas duas
semanas que antecedem a data. Desde o início de setembro podemos perceber algumas
mudanças nas lojas de doces: começam a ser expostas caixas de maria mole e suspiro, e,
próximo a elas, os saquinhos estampados com a efígie dos santos gêmeos. Quando a grande
data se aproxima, o movimento nas lojas se intensifica e nas longas filas podemos ver carrinhos
cheios com balas, pipoca doce, cocada, suspiro, paçoca, pé de moleque, pirulito, maria-mole,
doce de abobora, amendoim, bananada, bombom, jujuba, chiclete, doce de leite, cocô de rato,
doce de batata doce, pé de moça, torrone.
A montagem dos saquinhos é feita poucos dias antes ou mesmo na véspera da
distribuição. É preciso que tudo esteja pronto antes do grande dia, mas sem muita antecedência,
para não correr o risco de melar o saquinho, já que muitos doces não são embalados
76

individualmente e a primavera carioca não costuma ser de temperaturas muito amenas. A tarefa
de preencher os saquinhos com os doces comprados é costumeiramente desempenhada em
grupo, geralmente familiar. Os sacos e caixas de doces são ordenados sobre uma superfície –
de uma mesa, sofá ou mesmo no chão – e se estabelece uma espécie de linha de montagem,
onde cada um fica responsável por colocar nos saquinhos um ou mais tipos de doces. Não há
um máximo de doces a serem colocados num saquinho – e há distintos tamanhos de saquinho
–, mas um mínimo é estabelecido: sete tipos de doce. Alguns variam os doces a cada ano, outros
mantêm a composição todos os anos e há aqueles que inovam sem se afastar da tradição, pois
há sempre um doce que não pode faltar no saquinho. A composição do saquinho depende de
diversos cálculos, que envolvem não só a contabilidade financeira, mas também computam
gostos e afetos – a cocada está mais cara esse ano, mas não pode faltar; o doce de abóbora era
o preferido na infância e por isso tem que estar no saquinho, o bombom não é tradicional mas
alegra a criançada. Cada saquinho é singular, e cada família monta o seu.53
O dia 27, ou o sábado que o sucede, é um dia doce.54 As crianças saem de casa com suas
mochilas e vão para as ruas em grupo, comandado pelo mais velho ou por um adulto. Cada
grupo define seu trajeto: tem os que não podem ir muito longe e circulam pelas ruas próximas,
há aqueles que, ao contrário, têm de se afastar de casa e se deslocam para os bairros onde têm
os bons saquinhos; outros definem o circuito a partir das relações pessoais, indo às casas de
conhecidos que já sabem que vão dar doce; e há ainda aqueles que não definem um trajeto e
vão apenas se guiando pelos gritos “aqui tem doce!”. As praças se configuram como locais de
descanso e brincadeira, e nos bancos vemos as crianças contando seus saquinhos. Além disso,
as praças também são um ponto estratégico, para dar e receber os saquinhos, já que quando o
movimento pelas ruas fica fraco é para as praças que as crianças se dirigem e este é o local que
muitos doadores elegem para distribuir seus saquinhos, de carro ou a pé.

53
Sobre como podemos compreender a compra de doces e a montagem de saquinhos enquanto uma espécie de
ritual familiar, ver MENEZES (2016). Sobre o circuito de doces produzidos na e pela festa e os cálculos financeiros
e afetivos que envolvem a compra de doces, ver FREITAS (2019).
54
Cumpre destacar que a festa não é única e se espalha pela cidade de distintas formas. Se em alguns bairros é
impossível passar o dia 27 sem ver uma criança carregando seu(s) saquinho(s), em outros pontos da cidade a festa
é inexistente, ou pelo menos invisível. Em minha dissertação falei sobre a experiência de observar a festa em três
bairros distintos da cidade, entre as zonas norte e sul (FREITAS, 2015). Ao longo da pesquisa coletiva,
intensificamos nosso campo por bairros da zona norte, mais especificamente: Vista Alegre, Irajá, Penha, Olaria e
adjacências. Neste momento, é sobre este recorte espacial que falo. Em relação à data da distribuição, tem quem
não abre mão de dar o saquinho no dia 27, mesmo quando a data cai em dia de semana – e há aqueles que não
deixam de pegar doce no dia, ainda que isso implique em faltar aula; mas é comum que o sábado que sucede o 27
seja também um dia de distribuição de doces. Para uma compreensão mais abrangente dessas festas em suas
distintas modalidades no Rio de Janeiro, Cf. MENEZES; FREITAS; BÁRTOLO, 2020.
77

Nas últimas horas de sol, são abertos os portões das casas que, além dos saquinhos,
oferecem uma mesa com bolo e outros doces. Essa festa ganha contornos de festa de aniversário
e há quem cante os parabéns aos santos antes de partir o bolo e distribuir os saquinhos. As festas
seguem pela noite, quando são abertos aos convidados os enfeitados salões dos centros de
umbanda – e os detalhes dessas festas veremos ao longo desta tese. Entre saquinhos, bolos,
ruas, praças e casas as crianças passam o dia 27 correndo atrás de doce.
Nessas ocasiões são celebrados Cosme, Damião, Doum, Ibeji, ibejadas e erês, as divinas
Crianças. Nesses cultos são associadas entidades infantis de distintas tradições, conformando
práticas muito particulares de devoção às Crianças. Sagradas porque morreram poucos anos
após o nascimento, porque já vieram à terra com um encontro marcado com a morte, que lhes
sentencia à eterna infância, estágio inicial e sagrado da vida. Fadadas a permanecerem puras,
inocentes, brincalhonas, irritáveis, choronas, trapaceiras, comilonas e alegres, as Crianças são
cultuadas para que nós possamos, ainda que momentaneamente, retomar o contato com a
infância, relembrar a potência da alegria e não esquecer que, mesmo diante da morte, podemos
(e, quiçá, devemos) brincar.
78

2. Coisas, lugares e tempos das ibejadas

Neste momento apresento ainda autores e questões que atravessaram meu olhar em
campo e minha escrita, que me ajudaram a elaborar e desenvolver as questões aqui abordadas;
e que nos permitem localizar este trabalho dentro do campo da antropologia. A ideia não é
propor um enquadramento55 rígido e definitivo, mas evidenciar ao leitor pressupostos teóricos
que embasaram minha etnografia e a escrita desta tese. Menos que propor uma exaustiva revisão
bibliográfica sobre essas abordagens antropológicas, apresento aqui autores e autoras com quem
dialogo diretamente, que me forneceram conceitos, propostas metodológicas e me apontaram
caminhos.
As ibejadas poderiam ser apresentadas de algumas maneiras, considerando as
abordagens já exploradas por diversos autores que se inserem no campo de estudos das religiões
afro-brasileiras. Eu poderia tentar me aproximar de um centro, buscando participar de seu
cotidiano e a partir dessa experiência apresentar o que ouvi e vi dessas entidades. Também
poderia fazer uma revisão bibliográfica mais extensa, trazendo como as ibejadas foram
apresentadas por outros autores e autoras, inclusive em obras escritas por umbandistas. Em certa
medida, eu percorri esses caminhos.
Depois de passar alguns anos vendo as ibejadas somente em ocasiões festivas, uma
vez ao ano, consegui encontrar um centro onde essas entidades se apresentavam mensalmente
– o que é um caso bastante singular – e estive neste centro regularmente durante pouco mais de
um ano.56 A partir disso, fui percebendo como essas entidades, apesar de serem reconhecidas
como importantes e poderosas, não estão muito presentes no cotidiano dos centros e que não
seria necessariamente uma convivência mais próxima que me permitiria um melhor acesso a
elas. As ibejadas também não são personagens muito exploradas nas literaturas antropológica
ou umbandista, e geralmente são brevemente mencionadas e descritas, lhes sendo dedicados
uns poucos parágrafos ou páginas. E, ao longo desta tese, procuro acionar e fazer referência a
esses trabalhos, reconhecendo que, apesar de poucos, eles existem; afinal, para afirmar a
originalidade desta tese ao tomar as ibejadas como personagens centrais, eu não preciso
produzir apagamentos daqueles que já se dedicaram, ainda que timidamente, a essas entidades.

55
Bateson assim esclarece o que entende por “frame”: “[...] um enquadramento é metacomunicativo. Qualquer
mensagem que explícita ou implicitamente defina um enquadramento, ipso facto, dá as instruções ao receptor ou
o ajuda em sua tentativa de compreender as mensagens ali incluídas” (BATESON, 1972, p. 188).

56
No capítulo seguinte apresento os centros e demais lugares onde estive com as ibejadas e suas coisas.
79

Assim, optei por tratar dessas entidades a partir dos rituais onde elas se apresentam
publicamente, ocasiões onde não só os médiuns se dedicam a essas entidades, mas também os
consulentes se dirigem até os centros para ver e falar com elas. Desde a primeira gira festiva
de ibejada em que estive, em 2013, chamou minha atenção a quantidade de coisas que faziam
aquele ritual. O espaço era enfeitado por muitos cachos de bolas coloridas, iluminado por luzes
também coloridas, algumas paredes adornadas com enfeites de tecido rosas e azuis, cores que
também ornavam o congá. Quando as entidades eram chamadas, os médiuns adentravam o salão
com seus corpos também coloridos por bonés, arcos, lacinhos, colares, pulseiras, óculos de
brinquedo; e muitos desses acessórios além de coloridos, ainda eram iluminados, com luzes
piscantes. Ainda traziam consigo várias outras coisas: cestas cheias de frutas e doces, carrinhos,
bonecas, bichos de pelúcia. As ibejadas iam se espalhando pelo salão e pelo quintal, e
demarcavam seus lugares estendendo um pedaço de pano ou uma esteira sobre o chão, e ali iam
colocando suas frutas, doces e brinquedos. Era uma verdadeira profusão de cores, luzes, frutas
e doces. Percebi como a presença das ibejadas era realizada em diversos objetos e como nesses
rituais brinquedos e comidas circulavam entre entidades e seus consulentes. Quando comecei a
considerar que minha tese seria sobre as ibejadas, pensei que poderia falar delas a partir de suas
coisas.
Além dessa primeira impressão etnográfica, havia também um outro impulso que me
motivava a pensar nas coisas dessas Crianças57. A reflexão sobre materialidades já se
apresentava no trabalho de Renata Menezes e em dissertações e teses que ela orientou; ou seja,
eu estava em um grupo de pesquisa onde as materialidades religiosas – corpos, roupas, imagens,
ex–votos – já eram tematizadas. Em ‘A imagem sagrada na era da reprodutibilidade técnica:
sobre santinhos’, Menezes (2011) reflete sobre as formas de interação em torno dos santinhos,
compreendidos como compósito texto-imagem, e nos fala da rentabilidade dos objetos nos
estudos da devoção.

[...] muitas vezes focalizar a análise em objetos revelou-se um artifício


metodológico para abordar a devoção, já que, nessa área, limites óbvios
pareciam se impor à observação participante e à entrevista. Pois como se
pergunta o indizível ou como se observa o invisível? Muitas vezes é preciso
aceder a expressões materiais que visibilizem emoções, entidades,
cosmologias, para compreender as relações mais profundas articuladas em
torno de elementos de cultura material. A capacidade de condensação de
determinados objetos – que concentram ações e significados – torna-os pontos
estratégicos para a análise de expressões religiosas (MENEZES, 2011, p. 46)

57
No capítulo seguinte, explico melhor o uso deste termo com inicial maiúscula quando me refiro às entidades.
80

As questões que atravessavam o percurso de estudos no campo da antropologia da


devoção empreendidos por Renata Menezes, também foram analisados e desdobrados em
trabalhos realizados sob sua orientação. Em sua dissertação, Lilian Gomes (2011)
problematizou a devoção ao Padre Libério a partir de eventos, personagens e objetos, numa
cidade do interior de Minas Gerais, refletindo sobre o papel dos objetos – lembrancinhas,
santinhos, estátuas – no processo de atualização da memória desse sacerdote. Já em ‘A
peregrinação das coisas’, tese defendida em 2017, Gomes analisa a trajetórias de objetos
comumente classificados como devocionais – imagens de santos, ex-votos – em situações que
não se restringem ao culto religioso; problematizando a circulação desses objetos por coleções,
lojas, museus entre colecionadores, galeristas, artistas e estudiosos. Raquel Lima (2014), a
partir da perspectiva da antropologia da devoção – sob a qual os estudos de cultos aos santos
são articulados aos debates antropológicos mais amplos a partir de uma abordagem etnográfica,
atenta às interações e formas nativas de classificação que operam nas práticas devocionais –
analisa as diferentes modalidades de contato entre devotos e Santa Rita, muitas vezes a partir
de objetos constituintes de seu culto, como as imagens da santa e as rosas vermelhas. A Semana
Santa de Ouro Preto é vista por Edilson Pereira (2014) com um teatro da religião, no qual
pessoas, figuras e imagens produzem uma memória sobre Cristo na ocasião do ritual, cuja
realização envolve imagens, corpos, roupas e cores. Havia, portanto, uma série de questões e
referências bibliográficas sobre materialidades religiosas que já estavam, em alguma medida, a
meu alcance.
As coisas estão nesta tese desde o título, evidenciando a centralidade das
materialidades em minha compreensão das ibejadas, o que nos permite localizar este trabalho
no campo de estudos cuja abordagem da religião é material. Assim, faz-se necessário melhor
apresentar esse campo, alguns de seus autores e conceitos, que emolduram esta tese – desde o
campo até a leitura, passando pela elaboração das questões e análises aqui desenvolvidas.

2.1 Antropologias das materialidades

Em ‘Anthropology: a practice of theory’, Herzfeld (1997) discute as constantes


mudanças no campo da antropologia, os diversos momentos de crise da disciplina e como, a
partir das críticas que emergem nesses contextos, novas questões e abordagens vão surgindo.
Interessa-me neste artigo a importância que o autor confere ao trabalho de campo, que a cada
crise se reinventa e se fortalece, e que é do próprio campo que emergem as crises, mas também
81

as saídas; ou seja, temas e teorias surgem e caem, mas o trabalho de campo permanece como
cerne – o que Strathern definira como o empirismo radical que caracteriza a antropologia
enquanto disciplina (FIORI et alli., 2015).58 Haveria, portanto, um constante movimento que
nos leva do campo à teoria, desta ao campo – ou podemos evitar dicotomias e pensar num
continuum – onde a experiência etnográfica sempre nos impõe desafios, levando a novas
leituras, outros modos de escrita, à reelaboração ou criação de antigos e novos conceitos.
É, portanto, comum que a disciplina seja pensada a partir de viradas, que marcam os
movimentos que fazem emergir novas críticas, questões e abordagens, e que vão, a cada década
– ou menos – reconfigurando o campo da antropologia (ORTNER, 2011). Para citar algumas,
poderíamos mencionar a virada simbólica e interpretativa, que conferia à antropologia o papel
de interpretar a cultura, seus símbolos e os modos como os atores sociais veem, sentem e
compreendem o mundo em que vivem (GEERTZ, 1973; RABINOW & SULLIVAN, 1987); a
pós e decolonial, que procura pensar nos efeitos do opressivo domínio colonial, na necropolítica
dos estados, buscando desconstruir os discursos e estruturas coloniais, propondo novas
epistemologias, relevando a existência e a importância das filosofias e teorias não-ocidentais
(ASAD, 1973; BHABHA, 1998; BAYLY, 2016); a ontológica, crítica de conceitos
considerados fundantes da disciplina, como sociedade e cultura, afasta-se das dicotomias
ortodoxas e traz a diferença – de mundos, de modos, de corpos, de falas – para o centro da
disciplina (VIVEIROS DE CASTRO, 1998, 2014; HEYWOOD, 2017); e, a que aqui mais nos
interessa, a virada material.
Nas últimas duas décadas a literatura sobre as materialidades vem se multiplicando,
em diversos campos e disciplinas das ciências humanas. No caso da antropologia, fala-se em
uma retomada, já que as materialidades estão presentes desde o nascimento da disciplina.
Durante a expansão colonial do ocidente, havia uma preocupação com as coleções, as
classificações e estudos de artefatos, considerados como indícios e vestígios das culturas
primitivas, provas empíricas para teorias evolucionistas e difusionistas (TILLEY, 2006). A
prática do colecionismo conferiu uma nova cientificidade a um saber já estabelecido,
inaugurando a possibilidade de ver – e até mesmo tocar – naquilo sobre o que se lia ou ouvia
falar. Surge, então, um discurso acerca de um saber que pode ser, materialmente, possuído,
experimentado, transportado, exposto (FINDLEN, 1994). A aquisição e a produção do saber se
ressignificam e assumem novas práticas e formas, pois, como afirma Carla Dias (2005, p. 27),
“ter a posse do objeto, reter sua materialidade, significava apropriar–se de símbolos exteriores

58
Para discussões sobre etnografia, ora pensado como teoria ora como prática e/ou método; Cf: CLIFFORD, 1986;
GUPTA & FERGUSON, 1997; PEIRANO, 1994, 2014; HOWES, 2018.
82

ao próprio universo de signos a partir da materialidade de um Outro, de um mundo distinto


‘natural’ ou ‘cultural’”.
No campo da religião, a cultura material também foi tematizada desde os primeiros
estudos, como na obra de Tylor, ‘Primitive Culture’ (1871). Nesta, a materialidade religiosa era
compreendida enquanto índice da crença, marcadamente nas religiões primitivas, fetichistas,
de povos que se encontravam num estágio de desenvolvimento mental que não distinguia a
coisa/pessoa de sua representação, e que precisava de pedras, imagens e demais objetos para
cultuar seus deuses. Para Tylor, a religião moderna seria imaterial, sendo exemplar desse
processo evolutivo o protestantismo. Ou seja, as materialidades religiosas também eram
suportes que supostamente comprovavam teorias evolucionistas daqueles que vislumbravam
um futuro sem religião – e sem coisas.
Nesses movimentos da disciplina, as teorias e argumentos evolucionistas e coloniais
vêm (felizmente) sendo criticado, e, na virada material, as coisas nos ajudam a (re)pensar
processos e conceitos fundantes da disciplina, problematizando (e descolonizando) museus e
coleções (FABIAN, 2010; PEREIRA, 2019), patrimônio e identidades (GONÇALVES, 2007;
LIMA FILHO, 2015), agência (INGOLD, 2006, 2012), arte (GELL, 2018; HEINICH,
SHAPIRO, 2012), memória (STALLYBRASS, 2008; IRELAND & LYNDON, 2016).

2.2 Abordagens materiais da religião

No campo da religião, a retomada das materialidades pode ser compreendida como um


movimento crítico à uma abordagem sempre ocupada com o abstrato, o desencarnado, o
intangível; que imputava ao atento escrutínio do antropólogo a tarefa de visibilizar o invisível.
Em contraposição a uma noção mentalista de religião, muito associada à tradição protestante,
diversos autores vêm repensando o lugar das coisas no fazer e viver religioso.
Para Matthew Engelke (2012, p. 209),

Toda a religião é material. Toda a religião tem de ser compreendida em relação


às mídias ou à sua materialidade. Isto inclui necessariamente uma
consideração de coisas religiosas, e também de ações e palavras, que são
materiais, não importa quão rapidamente passem da vista ou do som para se
dissiparem no ar. Mas a parte difícil é a compreensão do que precisamente
constitui a materialidade das religiões materiais, o que torna a materialidade
religiosa ou significativa ou religiosa, e segundo quem.59
59
No original, “ all religion is material. All religion has to be understood in relation to the media or its materiality.
This necessarily includes a consideration of religious things, and also of actions and words, which are material no
83

O autor, que abre e encerra seu artigo afirmando que toda religião é material, nos fala
do crescente interesse dos estudiosos da religião no entendimento que as materialidades podem
nos oferecer sobre as experiências e práticas religiosas, nos permitindo uma abordagem da
religião que não se encerra no problema da crença. Uma vez que admitimos que toda religião é
material, e que a experiência religiosa se dá com e através das coisas, nos resta compreender
quais as materialidades – objetos, artefatos, gestos, imagens, palavras, modos de falar – que
apresentam ou representam Deus, deuses, espíritos, deidades, ancestrais.
Engelke destaca duas abordagens que vêm se destacando nesta retomada dos estudos
das materialidades religiosas, uma que compreende as coisas enquanto partes de uma ideologia
semiótica, e outra que enquadra a materialidade enquanto mídia. A seguir, mobilizo dois autores
cujas obras podem ser consideradas sínteses dessas abordagens.
Assim como Engelke, Webb Keane (2008) também afirma que as religiões sempre
envolvem materialidades.

As religiões podem nem sempre exigir crenças, mas sempre envolverão


formas materiais. É nessa materialidade que elas fazem parte da experiência e
provocam respostas, que têm vidas públicas e entram em correntes contínuas
de causas e consequências. [...] Em primeiro lugar, as formas materiais não só
permitem novas inferências, mas, como objetos que perduram no tempo,
podem, em princípio, adquirir características não relacionadas com as
intenções de usuários anteriores ou com as inferências que deram origem no
passado. [...] O testemunho oral vem a ser inscrito; os textos escritos podem
ser beijados, velados, usados no pescoço como um talismã, transformados em
cinzas para serem engolidos. As ofertas esperam altares, altares suportam
imagens, imagens entram nos mercados de arte, objetos de arte desenvolvem
auras. [...] Tentar eliminar a materialidade da religião, tratando-a, sobretudo,
como prova de algo imaterial, como crenças ou experiências anteriores, é
correr o risco de negar as próprias condições de socialidade. (KEANE, 2008,
p. 124) 60

matter how quickly they pass from sight or sound to dissipate into the air. But the difficult part comes in
understanding what precisely constitutes the materiality of material religions, what makes religious materiality
either significant or religious, and according to whom”.
60
No original, “Religion may not always demand beliefs, but they will always involve material forms. It is in that
materiality that they are part of experience and provoke responses, that they have public lives and enter into
ongoing chains of causes and consequences. [...] First, material forms do not only permit new inferences, but, as
objects that endure across time, they can, in principle, acquire features unrelated to the intentions of previous users
or the inferences they have given rise in the past. [...] Oral testimony comes to be inscribed; written texts can be
kissed, enshrouded, worn about the neck as a talisman, rendered into ashes to be swallowed. Offerings expect
altars, altars support images, images enter art markets, art objects develop auras. [...] To try to eliminate the
materiality of religion by treating it as, above all, evidence for something immaterial, such as beliefs or prior
experiences, risks denying the very conditions of sociality”.
84

As materialidades, além de serem fundamentais às práticas religiosas, permitem que a


experiência religiosa adquira novos sentidos e formas. Ou seja, nas formas materiais as religiões
perduram e se modificam, são constantemente atualizadas. A partir das materialidades,
podemos compreender o caráter social e histórico das religiões, e tratá-las enquanto imateriais
é, justamente, abrir mão desta compreensão, negando condições que são fundamentais às
práticas religiosas. Em sua abordagem, Keane busca compreender como as contingências das
materialidades são centrais para o que determinados signos comunicam (ENGELKE, 2012, p.
220).
Para realizar esse empreendimento, Keane cunha os conceitos de forma semiótica e
ideologia semiótica.61 Uma forma semiótica seria composta por coisas como sons das palavras,
gêneros de discurso, dinheiro, animais, músicas, corpos, gestos, roupas; enfim, uma série de
materialidades que são acionadas para elaborar e comunicar determinados sentidos e conceitos
(KEANE, 2007, p. 5-6). A ideologia semiótica

[R]efere-se aos pressupostos subjacentes sobre o que as pessoas consideram


que são sinais, a quais funções os sinais servem, e que consequências podem
produzir. Esses pressupostos variam consoante os contextos sociais e
históricos. Mas a ideologia semiótica enquanto tal não é uma espécie de falsa
consciência, nem é algo que algumas pessoas tenham e outras não. Pelo
contrário, a ideologia semiótica manifesta a reflexividade que é inerente à
capacidade geral de utilização dos signos humanos (KEANE, 2018, p. 65)62

Em outras palavras, a ideologia semiótica seria um argumento sobre os tipos de coisas


que as coisas são, o que elas podem representar, e como, dentro de um sistema ordenado e
hierárquico, as coisas se relacionam umas com as outras (ENGELKE, 2012, p. 218). Este
conceito nos permite pensar não só nas relações entre as coisas que compõem uma determinada

61
Pelos conceitos do autor, é perceptível a influência de Charles Peirce (2010) em sua obra. A semiótica peirceana
seria, antes de mais nada, uma teoria sígnica do conhecimento, uma filosofia científica da linguagem, uma doutrina
formal de todos os tipos possíveis de signos; que ao contrário da linguística não se resumiria à linguagem verbal e
compreenderia que todos os atos e práticas sócio–culturais são significantes (SANTAELLA, 1983). Ao explicar a
influência da semiótica peirceana sobre abordagem de Keane, Engelke (2012) afirma que Peirce, ao contrário de
Saussure, considera não somente a materialidade dos signos, mas também o papel dessa materialidade no processo
de significação, além de atentar às conexões materiais entre os signos. Assim, a abordagem de Keane enfatiza não
somente algumas propriedades materiais de certos signos, mas como as contingências dessa materialidade são
centrais para o que determinados signos comunicam, e como essas contingências nem sempre são previsíveis ou
controláveis.
62
No original, “Semiotic ideology refers to people’s underlying assumptions about what signs are, what functions
signs serve, and what consequences they might produce. Those assumptions vary across social and historical
contexts. But semiotic ideology as such is not a kind of false consciousness, nor is it something that some people
have and others do not. Rather, semiotic ideology manifests the reflexivity that is inherent to the general human
sign–using capacity”.
85

forma semiótica, mas na relação entre distintas formas semióticas, que nos enseja compreender
as materialidades sem descolá-las de seus contextos de poder e disputa. Em seu trabalho na ilha
de Sumba, na Indonésia, Keane analisa as compreensões de espírito e matéria de calvinistas
holandeses e católicos, tradições cristãs com formas semióticas distintas. Para Keane interessa
compreender como, neste contexto missionário de conversões religiosas, as pessoas ordenam
as palavras e as coisas que constituem uma forma semiótica, como as pessoas reagem às
propriedades materiais e formais das palavras e das coisas e quais os dilemas morais que
emergem da utilização de uma forma de semiótica e das disputas entre formas distintas. Para o
autor, há também uma dimensão histórica a ser levada em conta, tanto pelo fato das formas
semióticas serem indícios das histórias de determinados povos e práticas, quanto por serem elas
próprias manipuladas para a construção de um determinado pressuposto histórico. Para Keane,
portanto, o estudo das materialidades religiosas nos permite historicizar as religiões e considerá-
las enquanto parte, por vezes central, de disputas políticas (aqui compreendidas em seu sentido
mais amplo, e não apenas institucional).
Desta perspectiva, parece-me particularmente rentável pensar como as materialidades
são imprescindíveis ao fazer e viver religiosos, e como essas práticas elaboram formas
semióticas que relacionam e ordenam variadas coisas que, enquanto um conjunto, comunicam
as concepções de uma determinada religião. Sua abordagem também nos permite compreender
que essas formas não são estáticas, já que as coisas estão sempre recebendo e assumindo novas
características, formas e sentidos. E para pensar nesses processos desestabilizadores, nos quais
coisas inicialmente pensadas e produzidas num contexto vão se transformando enquanto
circulam entre lugares e pessoas, o conceito de qualisign parece-me bastante profícuo.

[…] qualisign refere-se a certas qualidades sensórias de objetos que têm um


papel privilegiado dentro de um sistema maior de valor. A ideia de qualisign
é que o significado é suportado por certas qualidades para além das suas
manifestações particulares. [...] os qualisigns devem ser encarnados em algo
em particular. Mas assim que o fazem, estão de fato, e muitas vezes de forma
contingente (e não por necessidade lógica), ligados a outras qualidades – a
vermelhidão numa maçã vem acompanhada de forma esférica, peso leve, e
assim por diante. Isto aponta para um dos efeitos óbvios, mas importantes, da
materialidade: a vermelhidão não pode manifestar-se sem alguma
incorporação que a ligue inevitavelmente também a algumas outras
qualidades, que podem tornar-se fatores contingentes mas reais na sua vida
social. (KEANE, 2003, p. 414) 63

63
No original, “qualisign refers to certain sensuous qualities of objects that have a privileged role within a larger
system of value. The idea of qualisign is that significance is borne by certain qualities beyond their particular
manifestations. […] qualisigns must be embodied in something in particular. But as soon as they do, they are
actually, and often contingently (rather than by logical necessity), bound up with other qualities — redness in an
apple comes along with spherical shape, light weight, and so forth. This points to one of the obvious, but important,
86

Como disse anteriormente, pretendo mostrar ao longo desta tese como as qualidades
das Crianças, notadamente a alegria, manifestam-se em distintas materialidades e, neste
processo, vão se relacionando a outras qualidades. A alegria das ibejadas quando incorporada
nas imagens, associa-se ao gesso, às tintas coloridas e brilhantes, aos detalhes incrustados desde
o molde ou adicionados pelos compradores devotos. Nas roupas a alegria é estampada, é leve,
de algodão; e nas comidas a alegria ganha sabores, outras texturas. Em cada coisa a alegria se
manifesta e, assim, vai se associando, inevitavelmente, a outras qualidades. A alegria
característica dessas entidades é vista nos corpos dos médiuns quando eles começam a pular e
rodar, e ouvida nos pontos cantados que são entoados e tocados nas giras, acompanhados pelas
palmas que agitam os corpos de médiuns e assistentes; associando-se a gestos e sons. Veremos,
portanto, como pontos cantados, imagens, roupas, brinquedos e doces são materialidades
indispensáveis ao culto umbandista às ibejadas, e como entre lojas e centros essas coisas passam
de mercadoria a objetos rituais, sendo escolhida a partir de diversos preceitos e crivos, vão nos
apresentando essas Crianças e, na circulação entre pessoas e entidades, comunicam pedidos,
conselhos e agradecimentos.
Pessoas, corpos, objetos, imagens e textos são coisas que tornam a religião
tangivelmente presente, que nos permitem pensá-la para além dos domínios do privado e do
invisível. A questão da gênese da presença a partir das mídias é central na abordagem material
da religião de Birgit Meyer.

Proponho seguir novas trilhas, permitindo–me estudar a religião por meio


do vetor das práticas, ou seja, dos atos concretos que envolvem pessoas, seus
corpos, objetos, imagens, textos e outros meios através dos quais a religião
se torna tangivelmente presente. Uma abordagem material tem como ponto
de partida a compreensão de que a religião se torna concreta e palpável por
meio das pessoas, de suas práticas e do uso de objetos, e é um componente
essencial das estruturas de poder (MEYER, 2019, p. 163)

Para realizar este empreendimento, Meyer propõe ferramentas metodológicas,


cunhando alguns conceitos que operacionalizam essa abordagem material da religião, e que
servem como enquadramento para observações e reflexões da pesquisa de campo. Para a autora,
a religião pode ser compreendida enquanto um conjunto de práticas e ideias, específicas e
autorizadas, que pretendem transcender o ordinário. Mas essas práticas e ideias não são
abstratas, não pertencem a um outro mundo ou plano inacessível; elas podem ser observadas e

effects of materiality: redness cannot be manifest without some embodiment that inescapably binds it to some
other qualities as well, which can become contingent but real factors in its social life.”
87

descritas quando levamos a sério o fato de que essas práticas e ideias são materialmente
fabricadas, num processo onde objetos e pessoas (e entidades e energias e espíritos e santos e
divindades) se constituem mutuamente.

Para compreender melhor a forma como a mediação religiosa funciona, cunhei a


noção de ‘forma sensorial’. Esse conceito refere-se a uma configuração de mídias
religiosas, atos, imaginações e sensações corporais no contexto de uma tradição
ou grupo religioso. Autorizadas e autenticadas como mensageiros do que está
além, as formas sensoriais têm o duplo aspecto de delinear ou moldar a mediação
religiosa e de alcançar certos efeitos ao serem realizadas. Assim, as formas
sensoriais são ‘configurações’, na medida em que direcionam aqueles que
participam delas sobre como proceder, além de serem ‘performances’, na medida
em que efetuam ou fazem presente o que elas mediam. (MEYER, 2019, p. 190)

As mídias fabricam presenças extraordinárias, permitem que o além, o sagrado, o


divino sejam vistos, sentidos, tocados, ouvidos, experienciados por e nas pessoas. Imagens de
santos, textos sagrados, hinos de louvor, óleos de unção, pedras de assentamentos de orixás,
corpos, que recebem caboclos ou são preenchidos pelo Espírito Santo; em princípio, tudo pode
conformar-se em mediador religioso, desde que assim seja reconhecido e autorizado. Um
conjunto de mídias religiosas autorizadas, atos, imaginações e sensações configura a forma
sensorial de um determinado grupo religioso. A forma sensorial seria, além de configuração,
performance: é modulação, diretriz e prática que presentifica e torna sensível o outro mundo.
Com as formas sensorial e semiótica, compreendemos que a religião não é invisível,
que o fazer e o viver religioso se realizam entre e nas pessoas, entidades, deuses, espíritos e
coisas. Estas precisam ser compreendidas em sua aparência, materiais, cores e sentidos, que
não são estáticos, posto que as formas são mutáveis, moduláveis e sensíveis. As coisas, além
de nos permitirem pensar nos contextos históricos e políticos da religião, nos ensejam a senti-
la. A religião material é também sensível.
O som dos atabaques e das palmas, os pontos cantados, as ervas, o cheiro do
defumador, as cores dos balões, as imagens, as flores no altar; os bolos e balas, as frutas, o
guaraná, a água de coco, o gosto doce; os carrinhos, bonecas e ursos de pelúcia; as saias,
macacões, vestidos, bonés, arcos; os corpos. Tudo isso compõe a forma sensorial da umbanda,
todas essas coisas presentificam as Crianças e nos permitem sentir seus sons, cheiros, gostos,
cores, gestos, vozes.
No caso das religiões afro-brasileiras, é difícil falar de seus cultos sem mencionar as
diversas coisas que nele circulam, mas nem sempre eles assumiram o mesmo lugar nas obras
daqueles que se debruçaram sobre o estudo dessas religiões. Inicialmente, os otás (as pedras
88

onde são assentados os orixás), as ferramentas, os alguidares, as comidas, os atabaques, as


roupas; eram descritas enquanto coisas peculiares, características de religiões fetichistas,
animistas, negras (RODRIGUES, 2010 [1932], RAMOS, 2001 [1934]). A partir dos anos 1970,
o que parecia preocupar os antropólogos que estudavam candomblé e umbanda eram as relações
(e tensões) entre as religiões o estado, as organizações dos terreiros e centros, as formas de
reprodução social e conflitos de poder (DANTAS, 1988; BROWN, 1985; BIRMAN, 1995); e
as coisas apareciam timidamente – mas estavam lá. Yvonne Maggie (2001), por exemplo, teve
que mencionar os cachimbos e bengalas dos pretos-velhos, os cocares dos caboclos, as jóias e
roupas brilhantes das pombagiras; mas essas coisas pareciam não ser tão significativas (pelo
menos para os/as antropólogos/as) para falar em conflitos, hierarquias e disputas de poder.
As coisas, tão centrais nos rituais e práticas das religiões afro-brasileiras, eram apenas
mencionadas, relegadas a um segundo plano, por vezes detalhadamente descritas, mas não
problematizadas. Mais recentemente, muitos pesquisadores e pesquisadoras vêm se debruçando
sobre as coisas que fazem e são feitas nos rituais, e – muitas vezes acionando conceitos como
agência, mediação e materialidade – dando voz a elas.

A voz das coisas está nas suas qualidades ou propriedades sensíveis. Embora
estas sejam compreendidas pelo corpo na percepção – corpo e coisa têm
estruturas correspondentes –, não são o simples decalque das capacidades
perceptivas do corpo ou o termo final de um projeto corporal. As qualidades
da coisa significam-se umas às outras, remetem a outras coisas e a seu entorno.
[...] A voz das coisas está nas suas qualidades sensíveis. Essa afirmativa
mostrou-se ao mesmo tempo reveladora e enganosa. Reveladora porque
permitiu uma retomada interessante do tema do diálogo com as coisas,
situando-o na experiência sensível. Enganosa porque, assim colocada, pode
conduzir à ideia de que as coisas são entidades discretas, autocontidas,
portadoras de um número dado de qualidades ou características mais ou menos
fixas. (RABELO, 2014, p. 229)

Ouvir e sentir as coisas nos permite compreender como a partir de conjunto de


materiais se fazem os orixás e as relações entre eles e as pessoas (MARQUES, 2018), acessar
uma filosofia política afro-brasileira (ANJOS, 2008), pensar nos trânsitos de objetos religiosos
entre locais de culto e museus (LODY, 1995; SANSI, 2013); enfim, as coisas têm muitas vozes
e falas.
Para Severin Fowles (2016), os estudos de cultura material emergiram como uma
resposta ao cansaço da linguagem e da metáfora, mas também uma saída à crise de
representação dos anos 1980 e às críticas pós-coloniais que dela surgiram. A partir das
dificuldades em lidar com culturas não-ocidentais, antropólogos começaram a pensar sobre os
89

rendimentos de se explorar objetos, considerando que estudar as coisas era mais seguro do que
estudar pessoas, já que as coisas não criticariam o lugar de objeto, e não sujeito, de análise –
assegurava, sobretudo, a autoridade etnográfica, que parecia estar evaporando. O movimento
de aproximação das coisas seria concomitante ao afastamento das pessoas enquanto objetos de
estudo. E, segundo o autor, a aproximação das coisas também seria uma saída para os/as
antropólogos/as cujas pesquisas se realizavam em contextos controversos – quando ninguém
fala com você, resta ficar atento aos objetos. Ainda mais recente é uma abordagem que subjetiva
as coisas, transformando-as em quase-pessoas e aproximando a antropologia das discussões
filosóficas e ontológicas.

Se a autoridade das reivindicações antropológicas sobre os sujeitos humanos


foi corroída pelas críticas pós-coloniais da segunda metade do século XX, e
se o estudo de objetos não-humanos surgiu como uma saída metodológica que
salvou a autoridade erudita ao orientar as suas práticas objetivas para águas
mais seguras, então a nova antropologia ontológica demonstra até que ponto
esta estratégia se tornou bem sucedida. Ocidental os antropólogos são agora
capazes de afirmar uma autoridade ainda maior do que alguma vez foi possível
nos velhos tempos da etnografia colonial. (FOWLES, 2016, p. 24)64

Essa crítica leitura de Fowles sobre a retomada das materialidades no campo da


antropologia – assim como os demais autores aqui mencionados – parece-me um instigante
lembrete de que coisas não são sujeitos humanos e de que as abordagens materiais não devem
ser um subterfúgio para nos afastarmos das pessoas – e das críticas que delas podemos receber.
Porém, diferentemente do que pensa este autor, o foco nos objetos não necessariamente nos
facilita a pesquisa e nos livra das controvérsias – o que é bem demonstrado por Sansi (2013),
que nos permite acompanhar os diversos lugares, sentidos, pessoas e disputas envolvidos no
processo de classificação de um objeto religioso (neste caso uma pedra, um otá65) dentro de um
museu. Se as coisas, como afirma Rabelo (2014) falam, elas não o fazem sozinhas e suas vozes
precisam ser escutadas junto às das pessoas que as fazem e as manipulam; e coisas e pessoas
também podem nos contradizer, nos criticar. Apesar das coisas serem o grande mote desta tese,
elas aqui são consideradas em suas relações com médiuns, dirigentes, assistentes, vendedores,
compradores e fabricantes que as põem em circulação e as dotam de usos e sentidos.

64
No original, “ If the authority of anthropological claims about human subjects was eroded by the postcolonial
critiques of the latter half of the 20th century, and if studying non–human objects emerged as a methodological
way-out that salvaged scholarly authority by steering its objectifying practices into safer waters, then the new
ontological anthropology demonstrates just how successful this strategy has become. Western anthropologists are
now able to assert even greater authority than was ever possible in the old days of colonial ethnography.”
65
Por meio de uma série de ritos, uma pedra recebe o axé de um orixá e torna-se um otá, onde a divindade se faz
presente.
90

Parece-me também um estímulo para pensarmos no lugar de observação que assumimos


ao considerarmos uma abordagem material. Bastaria sentar e ver as coisas em circulação? O
que vemos das coisas é o mesmo que fazem delas? Ou seja, vemos as coisas do mesmo modo
que as pessoas que as estão mobilizando? A seguir, apresento os lugares por onde vi as Crianças
e suas coisas, e busco refletir sobre minha pesquisa a partir dos bancos da assistência.

2.3 Giras festivas e sessões de consulta

Como vimos na introdução desta tese, desde 2013 frequento giras festivas de ibejada.
A primeira que vi foi em 2013, na Cabana Pai Miguel das Almas, em Pechincha, realizada no
dia 12 de outubro, dia das crianças. Na maioria dos centros de umbanda, as ibejadas só
aparecem, publicamente, uma vez ao ano, na gira festiva – mas as entidades também podem
aparecer pontualmente em algum outro trabalho interno, ou mesmo em ocasiões fora do centro,
por alguma necessidade ou especificidade do médium. Pela relação com os santos Cosme e
Damião, as giras festivas de ibejada têm como uma das datas de referência o dia 27 de
setembro, podendo ser realizadas na própria data ou no final de semana subsequente. Outra
referência é o dia das crianças, pelo fato da gira ser também uma festa das Crianças. Alguns
centros também têm o dia 25 de outubro, dia de outros santos irmãos, Crispim e Crispiniano,
como data para realização da gira festiva. Entre 2013 e 2018, setembro e outubro conformavam
um período de intensificação da pesquisa, em que eu não só acompanhava as giras, mas também
seus preparativos.
Ao longo desses anos estive em centros grandes e pequenos, vi giras com muitos
médiuns e assistentes, onde era possível contar mais de cem pessoas; mas também estive em
giras mais íntimas, que juntavam cerca de vinte pessoas, já contando os filhos e os visitantes da
casa. Além de distintas proporções, também eram distintas as práticas. Centros mais próximos
ao candomblé, onde eram entoados cantos em iorubá e servido o caruru, outros mais próximos
à chamada umbanda tradicional; um outro ligado ao Primado de Umbanda, escola do Caboclo
Mirim; giras com e sem atabaque, umas mais sóbrias, outras mais agitadas, algumas com muitas
coisas e comidas, outras frugais. Estive inclusive em giras de centros que ainda não tinham nem
sede própria e, filiados à União Espiritista de Umbanda do Brasil (UEUB), realizavam seus
trabalhos na sede da entidade.66 Mas nem tudo é distinção, há também muitas semelhanças

66
Mais adiante falarei um pouco mais sobre a UEUB.
91

entre as casas e as giras festivas, e entre os centros se as formas dos rituais eram bastante
distintas, as ibejadas e suas coisas eram bem parecidas.
Uma gira festiva de ibejada se parece muito com uma festa de aniversário infantil.
Geralmente há uma mesa ornamentada, onde são dispostos o(s) bolo(s), bandejas de doces e
frutas. As cores azul e rosa são muito presentes, mas algumas festas também são temáticas e aí
são coloridas a partir das personagens escolhidas como tema da festa: já vi de Chaves, da Turma
da Mônica, de Minions. Em alguns casos, a mesa é posta sobre o chão, sobre um pano estendido
aos pés do congá. A gira tem início com a saudação aos guias da casa, alguns pontos cantados
e orações, e às vezes, antes de chamarem as Crianças, também saúdam os orixás. As Crianças
já chegam pulando, mandando beijinhos, querendo brincar e a elas são servidos guaraná, água
de coco, frutas, doces e entregues seus brinquedos. É comum que as Crianças interajam com a
assistência, mandando beijos, oferecendo um doce ou uma fruta e também realizando suas
consultas. Os doces que são servidos às ibejadas também são oferecidos à assistência, que às
vezes também recebe um saquinho de Cosme e Damião.67
Abaixo, uma tabela com os centros em que estive para assistir a gira de ibejada.

Ano centro – localidade – data

2013 Cabana Pai Miguel das Almas – Pechincha – 12/10

2014 Casa de Francisco de Assis – Laranjeiras – 24/09


Cantinho de Cosme e Damião – Colégio – 11 e 12/10

2015 Casa de Francisco de Assis – Laranjeiras – 24/09


Tenda Caboclo Boiadeiro – Olaria – 27/09

2016 C.U.C.A – Vila Kosmos – 27/09


Tenda Caboclo Boiadeiro – Olaria – 01/10
Taba Caboclo Sete Flechas – Edson Passos – 16/10
Ilé Karikò Bàbá Obalúàiyé – Olaria – 29/10

2017 Tenda Espírita Humildes de São Sebastião – Humaitá – 26/09


C.U.C.A – Vila Kosmos – 27/09
Ilé Karikò Bàbá Obalúàiyé – Olaria – 30/09
U.E.U.B – Todos os Santos – 23 e 27/09; 08/10
Cantinho de Cosme e Damião – Colégio – 11/10

67
Esta é uma descrição muito sucinta de um ritual sobre o qual iremos falar detalhadamente ao longo da segunda
parte desta tese.
92

2018 C.U.C.A – Vila Kosmos – 27/09


Inzo Ria Ngunsu – Nova Iguaçu – 29/09

Minha inserção em cada um desses centros foi distinta. Na Cabana Pai Miguel das
Almas e na Casa de Francisco de Assis estive apenas como assistente, observando as giras,
realizando consulta com uma Mariazinha na Cabana (na Casa de Francisco de Assis as Crianças
não realizam este trabalho, mas há passes, realizados pelos médiuns). Estes são centros
grandes, com muitos médiuns e visitantes, sendo possível uma presença mais anônima e sendo
menos fácil um contato mais direto com os dirigentes.
Na gira festiva da Cabana Pai Miguel das Almas havia muita gente, mais de duzentas
pessoas, o centro era bastante grande, com um amplo salão e uma grande área externa. Os
pontos eram entoados por uma mulher, que cantava num microfone – tinham várias caixas de
som espalhadas pelos ambientes interno e externo – e era acompanhada pelos atabaques, cujo
toque também era amplificado pelas caixas de som. As Crianças iam entrando no salão em fila,
vinham da parte de trás da casa, e já chegavam carregando suas cestas, brinquedos, frutas,
doces; todos enfeitados com coloridas roupas, bonés, colares de pirulito. Sobre o chão do salão
e do jardim, estendiam panos e esteiras e iam organizando suas coisas, arrumando seus lugares
e se preparando para receber seus consulentes. No limite entre a assistência e o salão, ficavam
alguns médiuns da casa, que conduziam os consulentes às Crianças – nos perguntavam se
queríamos falar com alguma ibejada específica ou nos encaminhavam para quem estava livre.
Depois que entrávamos no salão, podíamos falar com mais de uma ibejada e delas recebíamos
algum doce, uma bala ou uma fruta – além de um passe, um abraço, um conselho.
Na Casa Francisco de Assis não havia muita interação com as Crianças, tampouco
havia atabaque, e os pontos eram acompanhados só pelas palmas. Inicialmente ficamos –
lembrando que em muitas dessas ocasiões não estava sozinha, mas enquanto membro de uma
equipe de pesquisa – sentadas na última fila e só depois conseguimos nos sentar mais à frente
e ver melhor o que acontecia. As Crianças brincavam pelo salão, conversavam umas com as
outras, algumas ficavam fazendo graça pra assistência, jogando bala na cabeça das pessoas.
Abundantes eram as bandejas de doces que circulavam com suspiro, maria-mole, cocada
(branca, rosa e azul), pé-de-moleque, paçoca, doce de leite, torrone, bombom, balas, pirulitos,
peitinho (maria-mole em formato de suspiro), marshmallow, doce de abóbora, bananada, bala
de coco, copinho de bananada, geleinha bala líquida e jujuba. Além disso, ainda foram servidos
dois bolos – um de chocolate e outro recheado com ameixa. Para matar a sede depois de tanto
93

doce, vinham os copos de guaraná. Vimos várias pessoas que iam guardando os doces numa
sacola plástica dentro da bolsa – e fizemos o mesmo.
Na Tenda Caboclo Boiadeiro tivemos um maior contato com a dirigente da casa, a
quem apresentamos nossa pesquisa, e estivemos por mais de uma vez acompanhando tanto a
gira quanto a distribuição de doces e brinquedos que eles realizam na manhã do dia 27 de
setembro. A Tenda tem cerca de 15 filhos e funciona sob a direção de uma mulher, Mariana,
nos fundos de uma residência; trata-se, portanto, de um centro pequeno. No dia da gira o portão
fica aberto e as pessoas vão chegando durante o ritual. Parece ser uma festa entre amigos, as
pessoas chegam e vão cumprimentando quem já está presente e acenam também para os
médiuns – ou, a depender da hora, chegam já com as Crianças presentes, que reconhece o
tiozinho ou tiazinha mais atrasados. Ao mesmo tempo que isso dava uma sensação de
proximidade, também parecia instaurar uma certa distância, pois ali parecíamos os únicos
estranhos. As ibejadas circulavam entre a assistência, mas como não havia um momento
específico de consulta – as pessoas simplesmente adentravam o espaço do salão e iam conversar
com as Crianças – , eu não cheguei a falar diretamente com nenhuma delas. A música e a comida
são muito presentes, pois neste centro são tocados os atabaques e há tanto a distribuição de
doces quanto de salgados – geralmente há um intervalo antes da chegada das Crianças, quando
é servido um cachorro-quente ou salgadinhos; e num dos anos em que estive lá também foi
servido caruru.
No Ilé Karikò Bàbá Obalúàiyé chegamos por redes pessoais, de conhecidos próximos
que conheciam um ogã da casa, e já chegamos, eu e Renata, identificadas. Esta é uma casa
pequena, com cerca de dez filhos, e os visitantes costumam ser poucos e conhecidos. A entrada
é muito discreta, sendo uma pequena quartinha no portão o indicativo que ali é um espaço
religioso. Não estamos falando, portanto, de uma casa onde é possível entrar sem ser notado ou
convidado. Pelas pequenas proporções do espaço e da gira, além de termos um contato mais
próximo com o dirigente e os médiuns, a interação com as ibejadas também é maior. As
Crianças ficam sentadas e brincando pelo salão, e não há fila ou senha para consulta, e pudemos
sentar e conversar com os erês, como lá são chamadas as Crianças. Pelo nome e o termo pelo
qual chamam as Crianças, percebemos que essa casa tem uma relação mais próxima com o
candomblé, o que também é perceptível na primeira parte da gira, quando cantam, em iorubá,
para os orixás.
Na Tenda Espírita Humildes de São Sebastião não pude assistir a gira festiva do dia
27, pois era no mesmo horário da do CUCA; mas ajudei na organização da tarde do dia anterior.
Cheguei a este centro a convite de um interlocutor membro da casa, Victor Lobisomem,
94

cordelista e devoto de São Cosme e São Damião que havia entrevistado no início de 2017.
Passei uma tarde enchendo bolas, arrumando-as em cachos, pendurando–os nas paredes do
salão; e montando saquinhos de doces. Neste dia também conversei com Dona Dalvina,
dirigente da casa, que me contou sobre Mariazinha e Zezinho, suas Crianças.
No Cantinho de Cosme e Damião (CCD) estive em 2014, ainda no campo da
dissertação, quando acompanhamos a gira festiva do dia 11/10, que além de celebrar as
Crianças comemorava o aniversário de fundação da casa; e também vimos e participamos da
festa de dia das crianças que eles realizam no dia 12 de outubro, data em que distribuem
centenas de brinquedos, kits de alimentos e material escolar, bolo, sorvete, refrigerante; enfim,
fazem uma grande festa. Esta experiência foi bastante importante em meu mestrado e é descrita
e analisada em minha dissertação (FREITAS, 2015). Em 2017 retornei ao CCD, para entrevistar
Márcio, seu dirigente, agora apresentando minha pesquisa de doutorado e querendo saber mais
das ibejadas. O CCD segue a doutrina do Primado da Umbanda, suas giras não têm atabaque –
mas há uma outra espécie de instrumento percussivo, um tambor que é mais largo e curto que
um atabaque, tocado sentado. Como é uma casa de Cosme e Damião, eles abrem e encerram o
ano com uma gira de ibejada, mas estas são apenas interna, sendo pública apenas a gira festiva
realizada no dia 11 de outubro onde as ibejadas realizam consultas.
Em 2017, decidi que sairia do CUCA mais cedo, para ver algumas giras na UEUB,
onde já tinha ido no dia 23 e ainda iria no dia 08 de outubro – na página de Facebook da UEUB
eles divulgaram toda a programação de giras festivas das ibejadas. 68 As giras que assisti ali69
eram muito parecidas com as que vi em outros centros, com decorações que remetiam à festa
de aniversário infantil, com mesas decoradas, bolos e bandejas de doces coloridos, cachos de
balões coloridos pendurados nas paredes e teto; a diferença é que ficavam à vista muitas sacolas
e caixas. Em um dos dias que estive lá, cheguei um pouco mais cedo, e consegui ver os filhos
do Centro de Umbanda Vovó Catarina das Almas terminando de arrumar as coisas, retirando
das sacolas as caixas de docinhos e balas, arrumando a toalha e as bandejas sobre mesa,

68
No dia 22/09, a Tenda Espírita Filhos de Oxalá realizou festa e consulta com ibejada. No dia seguinte, 23/09, A
Tenda Espírita Pai Joaquim das Almas realizou sua festa de 10h às 15h30. Em 27/09 realizaram suas festas, à
noite, a Tenda Pai José de Aruanda e a Tenda de Umbanda Pai Oxossi Caboclo Pena azul. No dia 28/09, foi o dia
da festa da Tenda Espírita São Miguel Arcanjo e Caboclo Aymoré. Na manhã do dia 30, foi a gira de ibejada do
Centro de Umbanda Vovó Catarina das Almas e à tarde a da Casa de Umbanda Sabedoria das Matas. Em 03/10,
foi a festa do Centro Espírita Caboclo Três Estrelas, no dia 07/10 a da Casa de Caridade Estrela Guia; e o ciclo se
encerrou no dia 15/10, com a festa da Tenda Umbandista de Amor e Caridade do Caboclo Sete Flechas.

69
Como dito anteriormente, na sede da UEUB vi as giras de ibejada das Tendas Espírita Pai Joaquim das Almas,
Caridade Pai Oxalá, Pai José de Aruanda, de Umbanda Pai Oxossi Caboclo Pena Azul e do Centro de Umbanda
Vovó Catarina das Almas.
95

enchendo as bolas e colando-as na parede, organizando sobre as cadeiras os brinquedos das


Crianças. Era como se num mesmo espaço e num curto período de tempo fosse possível ver
uma festa sendo arrumada, realizada e finalizada; um processo que nos centros que possuem
sede costuma levar três dias: a arrumação na véspera, a realização da festa no dia e a arrumação
pós-festa no dia seguinte. O tempo da festa, portanto, era bastante distinto.
No Inzo Ria Ngunsu, um terreiro de Angola70 que também trabalha com umbanda,
estive a convite de um amigo, filho da casa. Fui apresentada como amiga, não como
pesquisadora interessada nas ibejadas. Lá vi a festa das Crianças, conversei com Rosinha, comi
muitos doces e bebi muito guaraná. Foi a última gira de ibejada em que estive, que me pareceu
uma despedida do campo, numa participação um pouco menos atenta e preocupada em tomar
notas.
Em todos esses casos, as ibejadas só aparecem publicamente uma vez ano. Em 2016,
eu conheci o CUCA, onde as ibejadas apareciam mensalmente, em sessões de consulta. Pelo
lugar que ocupa em meu campo e nesta tese, o CUCA precisa ser apresentado em mais detalhes.
Marilene Lima e Gregório Brandão se conheceram no Centro Espírita Caminheiros da
Verdade, fundado na década de 1930, no Engenho de Dentro.71 Quando decidiram dar início às
suas atividades próprias, realizaram algumas giras na mata, no Alto da Boa Vista, com cerca de
vinte médiuns. Em 22 de maio de 2005, o Centro de Umbanda Caminhos de Aruanda (CUCA)
realizou sua sessão inaugural, numa noite de quarta-feira, no Templo a Caminho da Paz
Cantinho de Pai Cipriano, sob o comando de Pai Joaquim de Angola e Vovó Cambinda da
Cachoeira, os pretos-velhos de Gregório Brandão e Marilene Lima; tendo São Francisco de
Assis como mentor espiritual e padrinho. Gregório disse que tinha horror à expressão “terreiro
de fundo de quintal” e que, por isso, ele e Marilene prezam, desde o início, pela oficialização
do centro, que sempre foi bem documentado em registros, atas e estatutos; mas depois da
documentação e da primeira sessão, ainda não tinha um local para a realização de suas
atividades. Para tentar solucionar essa questão, o dirigente do Cantinho de Pai Cipriano
apresentou Marilene e Gregório a Pedro Miranda, presidente da União Espiritista de Umbanda

70
Também chamado de Bantu, é uma das nações do candomblé. Enquanto no Ketu, outra nação, a língua litúrgica
é o iorubá, no Angola é o kimbundo, uma das línguas da família linguística nígero-congolesa. Nessa tradição são
cultuados os inquices, como Matamba, Kaiango, Katende, Ndanda e tantos outros. Cf. SERRA, 1978;
GOLDMAN, 1984; PRANDI, 1991a; LOPES, 2006.
71
Em entrevista concedida em abril de 2017 Gregório me contou a história do CUCA, que aqui procuro resumir,
sem deixar escapar os detalhes que me foram apontados como significativos.
96

do Brasil (UEUB). Em 2005, quando Marilene e Gregório procuraram auxílio, foram acolhidos
pela UEUB, onde passaram a realizar suas sessões semanais, nas noites de quarta-feira.
Nos sete meses em que permaneceu na sede da UEUB o CUCA seguia crescendo,
chegando a ter 40 médiuns, e apenas uma sessão por semana não dava conta dos trabalhos que
precisavam ser feitos. Marilene e Gregório, com o auxílio dos médiuns, alugaram um galpão
em Vicente de Carvalho, na avenida Martin Luther King Júnior, onde permaneceram por cinco
anos e tiveram de deixar o espaço quando as obras do BRT foram iniciadas nesta região. Em
dezembro de 2010, já com mais de 160 médiuns, os dirigentes decidiram que era hora de
adquirir uma sede própria. Atualmente, o centro localiza-se na zona norte do Rio de Janeiro, no
bairro de Vila Kosmos, próximo à estação de metrô de Vicente de Carvalho.72
A atual sede do CUCA já havia abrigado, durante sessenta anos, a Tenda Espírita
Estrela do Mar, cujas atividades foram encerradas em 2004, quando os dirigentes já não tinham
condições de seguir com as atividades. O imóvel foi comprado de porteira fechada, o que
significa que as imagens e demais elementos ritualísticos também foram adquiridos – dentre
elas, as de Cosme, Damião e Doum, que até hoje estão no congá do CUCA73. Para Gregório, a
aquisição desse imóvel “foi uma junção de egrégoras espirituais74, né? A casa encerrou suas
atividades materialmente e uma outra casa jovem deu prosseguimento. As egrégoras se
juntaram e a gente tá levando esse trabalho adiante”. Para o dirigente, o CUCA já nasceu grande,
com o propósito da caridade irrestrita, cujo objetivo era ser “um grande hospital de médiuns,
um grande hospital para a mediunidade”.
A partir desta história gostaria de destacar algumas características que nos permitem
compreender este centro que se conformou em um lugar significativo em minha pesquisa.
Podemos perceber uma linhagem do CUCA, sempre associada a centros e instituições ligados
à chamada umbanda tradicional. Ainda que haja muita margem para variações doutrinárias,
com o surgimento de diversas linhas, cujos rituais e doutrinas sofrem influências de várias

72
O CUCA deixou de ocupar a sede da UEUB, mas seguiu filiado à instituição, e Gregório Brandão chegou a
assumir, entre 2014 e 2019, o comando espiritual da UEUB. Gregório e outros médiuns do CUCA ainda participam
ativamente da instituição, cujos eventos também são divulgados no calendário mensal do CUCA.
73
No capítulo quarto desta tese, quando falo das imagens das ibejadas, na Foto 11 podemos ver o congá do CUCA
adornado para a gira festiva de ibejada, e na Foto 12 vemos em mais detalhes as imagens de Cosme, Damião e
Doum, herdadas da Tenda Espírita Estrela do Mar.
74
Conforme o dicionário Michaelis, os significados de egrégora são: a) “aura de um local onde ocorrem reuniões
de grupo”; b) “aura de um grupo de trabalho”; c) “somatório de energias mentais, criadas por grupos de pessoas
ao se concentrarem com força vibratória”. Disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno–
portugues/busca/portugues–brasileiro/egr%C3%A9gora/; acesso em 29/08/2017.
97

outras práticas religiosas (BIRMAN, 1985; MAGNANI, 1986); há também aqueles que se
apresentam ou se definem como sendo tradicionais, que procurariam manter doutrinas
hierarquia e práticas que associam aos tempos primordiais da religião. Nesses casos, há sempre
a referência ao mito fundador, cujo personagem principal foi Zélio de Morais, o pioneiro da
umbanda, uma religião assentada nos valores da caridade e da fraternidade e cujos pilares são
os caboclos, pretos-velhos e ibejadas (GIUMBELLI, 2002).
A preocupação com a oficialização do centro e produção de documentação (atas,
estatutos, registros), nos diz da organização do CUCA, que preza pela hierarquia, onde cada
membro tem uma função – espiritual e social. Desde o início, Gregório e Marilene
preocuparam-se em encontrar um lugar apropriado para desenvolver suas atividades, que
sempre foram mantidas com regularidade; e, como veremos adiante, o centro possui um intenso
(e organizado) calendário. A relação com esses centros e instituições tradicionais também
imprimiram a seus dirigentes uma atenção especial aos aspectos doutrinários. O CUCA
apresenta-se como uma instituição “espiritual, doutrinária e caritativa”.
Os trabalhos espirituais são ofertados, gratuitamente, às segundas, quartas e sábados;
além das giras festivas que são realizadas em datas que podem não cair nestes dias da semana.
Toda segunda-feira, às 18h, ocorrem as preces aos desencarnados, que duram cerca de duas
horas. Às quartas-feiras são realizadas as sessões de consulta, que têm início às 19h e se
estendem até, aproximadamente, às 23h. As sessões de sábado têm início às 15h e duram, em
média, cinco ou seis horas. Além das consultas, costumam ocorrer as correntes, que são
sessões onde as entidades baixam, permanecem um tempo no salão do centro e energizam o
local e os presentes. Também são oferecidos serviços de ambulatório, como aplicação de
reiki75 e outras terapias orientais (cristaloterapia, radiestesia e reflexologia).
Outro viés do trabalho caritativo são as campanhas de doação de cestas básicas que,
atualmente, atendem cerca de 80 famílias que moram em comunidades próximas, que recebem
mensalmente a doação de alimentos. Estes provêm de doações, e nos bancos da assistência
vemos avisos que informam sobre a campanha do centro e que pedem a contribuição de um
quilo de alimento àqueles que frequentam a casa.
São os médiuns que mantêm o centro, tanto espiritualmente – em seus trabalhos –
como financeiramente. As contribuições mensais dos médiuns variam entre R$20,00 e
R$100,00,76 sendo a cota estipulada pelos próprios contribuintes. Alguns médiuns da casa, que

75
Uma técnica, de origem japonesa, de imposição de mãos a partir da qual é transferida a energia vital universal.
76
Há, no entanto, algumas contribuições pontuais que ultrapassam esse valor; mas atenho–me aqui às informações
que me foram dadas como sendo o regular.
98

têm renda muito baixa ou não possuem renda, auxiliam com serviços, como o de limpeza do
centro e o trabalho na loja e na cantina. Estas são atividades que também geram renda para o
centro, com a venda de artigos religiosos e realização de bazares, no caso da lojinha; e com a
comercialização de comidas e bebidas, na cantina. Os frequentadores do centro também podem
fazer suas contribuições, que inclusive são estimuladas a cada divulgação da programação, onde
há no canto inferior a frase “ajude o CUCA a ajudar você”, sob a qual são indicados os dados
de uma conta bancária.
Para tornar-se médium da casa é necessário fazer o curso de umbanda, que tem
duração de 12 meses, com aulas aos sábados e/ou domingos, com duração de três horas. A cada
ano, ao divulgarem a abertura de uma nova turma, informam dos custos (R$ 50,00 que cobrem
a inscrição e o material, que é uma apostila) e avisam: aqueles que concluírem o curso serão
cadastrados num quadro de reserva; ou seja, o curso é pré-requisito para tornar-se médium, mas
esse ingresso não é imediato. Atualmente o centro tem cerca de 130 médiuns ativos e 40 na
“fila de espera”. Além desta formação, o trabalho doutrinário também se realiza na
evangelização, destinada às crianças e adolescentes, filhos e filhas dos médiuns e
frequentadores do centro, oferecidas às quartas e sábados, durante as sessões. Eventualmente
também promovem seminários e palestras sobre a doutrina umbandista.
Às segundas-feiras, em alguns meses semanalmente, em outros a cada 15 dias; são
realizadas as sessões de desenvolvimento, conduzidas pelos dirigentes – guias e pessoas.
Dentre os participantes, a maior parte é de médiuns mais novos, que entraram na casa há cerca
de dois ou cinco anos, e que ainda estão se desenvolvendo. Gregório sempre está presente, mas
Marilene participa em poucas ocasiões. 77
Estamos, portanto, falando em um centro que já atua há um certo tempo e cuja história
o relaciona com centros e entidades fundamentais na história da umbanda no Rio de Janeiro;
com um expressivo número de médiuns e um intenso calendário de atividades e ações
caritativas que o tornam referência para a comunidade do entorno. A seguir, vemos um croqui
que elaborei ao longo do tempo em que frequentei o CUCA (Figura 2) – pois alguns espaços,
como o segundo andar, só pude ver depois de atingir certa intimidade com o centro, seus

77
Estive em duas sessões de desenvolvimento de ibejada, e em ambas havia menos de dez pessoas, contando com
Gregório, e duraram pouco mais de uma hora. Nem todos os médiuns receberam suas Crianças e do que pude
perceber de diferente nessas ibejadas de médiuns mais novos, é que elas parecem um pouco mais calmas, menos
falantes. Como nesta tese debruço-me sobre os rituais públicos onde as Crianças se apresentam, não me detenho
neste ritual, mas eventualmente o referencio.
99

dirigentes e médiuns – e um exemplar da programação que mensalmente é divulgada (Figura


1), a partir da qual discutiremos em mais detalhes as atividades do CUCA.

Figura 1: Programação do CUCA de janeiro de 2017.


100

Figura 2: Croqui do CUCA


101

Ao fim de cada mês, uma programação como esta é enviada por e-mail aos cadastrados
e também são impressos vários exemplares, disponíveis no mural esquerdo, logo à entrada do
centro. Logo acima, vemos o emblema do centro, seus endereços e os nomes dos seus diretores,
bem como sua descrição enquanto “instituição Espiritual, Doutrinária e Caritativa”. Do lado
esquerdo, são sempre divulgadas a programação de segundas, quartas e sábados. Cumpre
ressaltar que o horário das sessões de quarta-feira foi modificado, e atualmente têm início às 19
horas, para que terminem mais cedo, considerando a segurança de todos, já que muitos se
utilizam de transportes públicos. Logo abaixo, há um quadro explicando como é realizada a
distribuição de fichas para os atendimentos espirituais realizados nas sessões de consulta78.
No quadro “participe!” são divulgados eventos da UEUB ou do próprio CUCA, quando
realizam festas ou eventos beneficente fora do centro, como o “comida de boteco” realizado em
novembro de 2017. Por fim, no canto inferior direito são informados os dados bancários para
as doações.
Minha primeira visita ao centro foi em julho de 2016, quando fui a uma sessão de
consulta de ibejada. Em agosto, quando estávamos a um mês da gira festiva, aproveitei a
ocasião para falar com Marilene, apresentando minha pesquisa, demonstrando meu interesse
em acompanhar as giras de ibejada e pedindo permissão para me apresentar a médiuns da casa
e conversar com consulentes. A partir desta ocasião, passei a frequentar a casa mensalmente,
durante pouco mais de um ano. Para melhor entendermos esse intenso calendário e a presença
das entidades ao longo do ano, descrevo na tabela abaixo as atividades realizadas ao longo do
ano de 2017, destacando a presença das ibejadas e as giras festivas, que anualmente são
realizadas na mesma data.

JANEIRO FEVEREIRO MARÇO ABRIL

Sessões de quarta: Sessões de quarta: Sessões de Quarta Sessões de quarta:


25/01– Consulta com 08/02 –consulta com 08/03– consulta com exus 05,12,26/04 – consulta
caboclos e pretos-velhos caboclos e pretos-velhos e pombas gira com caboclos e pretos-
15/02– consulta com 15/03– consultas com velhos (3)
Sessões de sábado: ibejada caboclos e pretos velhos 19/04 –consulta com
21/01– gira e consulta 22/02– consulta com exus 22/03 – consultas com Ibejada
com Exus e pombas gira caboclos e pretos velhos
28/01– corrente ibejada e 29/03– consulta com Sessões de sábado:
consulta com caboclos e Sessões de sábado: ibejada 01/04– corrente zé
pretos-velhos. 04/02– descarrego com pilintra e malandros e

78
No capítulo 6, veremos em mais detalhes como é uma sessão de consulta de ibejada no CUCA.
102

ogum e consultas com Sessões de Sábado consulta com exus


Gira festiva: caboclos e pretos velhos 11/03– corrente com povo 08/04– corrente
20/01 – Oxóssi 18/02– bate–folha com do oriente e consultas marinheiros e baianos e
caboclos e consultas com com caboclos e pretos consulta com caboclos e
Outros povo cigano velhos pretos velhos
29/01 –Festa de Oxóssi da 18/03– corrente de Xangô 29/04– corrente povo do
UEUB Gira festiva e consultas com povo oriente e consultas com
01/02 – festa de cigano povo cigano
marinheiros e baianos 25/03– corrente de
boiadeiros e consultas Gira festiva
Outras: com caboclos e pretos 15/04 – festa da
22/02 –Segurança velhos pombagira
espiritual de carnaval 23/04 – festa de ogum
Corrente de Xangô (São
José) – 19/03

MAIO JUNHO JULHO AGOSTO

Sessões de quarta: Sessões de quarta: Sessões de quarta: Sessões de quarta:


03,10,17 e 31/05– 07 e 21/06– consulta com 05/07– consulta com Exus 02/08– consulta com exus
consulta com caboclos e caboclos e pretos-velhos 12 e 19/07– consultas 09 e 23/08– consulta com
pretos-velhos (4) (2) com caboclos e pretos- caboclos e pretos-velhos
28/06– consulta com velhos (2) (2)
Sessões de sábado: povo cigano 16/08– corrente de Omulu
06/05– corrente de exu e Sessões de Sábado: - “banho de pipoca”
consulta com exus e Sessões de Sábado 01/07– consultas com 30/08– consulta com
pombas-gira 03/06– descarrego com caboclos e pretos velhos ibejada
20/05– Bate-folha com ogum e consultas com 08/07– corrente do povo
caboclos e consultas com caboclos e pretos-velhos do oriente e consultas Sessões de Sábado:
caboclos e pretos-velhos 10/06– bate folha com com povo cigano 12/08– descarrego com
27/05– corrente das iabás caboclos e consulta com 15/07–corrente do zé ogum e consultas com
e consultas com ibejada ibejada pelintra e malandros e caboclos e pretos-velhos
17/06– corrente de consultas com caboclos e 26/08– corrente com povo
Giras festivas: marinheiros e baianos e pretos-velhos cigano e consultas com
13/05 – festa dos pretos- consultas com caboclos e 29/07– bate–folha com caboclos e pretos velhos
velhos pretos velhos caboclo e consulta com
22/05– festa do CUCA ibejada Giras festivas
24/05 – festa do povo Giras festivas 19/08 – festa de iemanjá
cigano 13/06– festa de exu Giras festivas 19/08 – festa de omulu
24/06 – festa do povo do 01/07 – festa de
oriente boiadeiro
24/06 – bênção das 26/07– festa de Nanã
chaves de cera

SETEMBRO OUTUBRO NOVEMBRO DEZEMBRO

Sessões de quarta: Sessões de quarta: Sessões de quarta: Sessões de quarta:


06/09– consulta com 04/10– gira de preto 01/11–consulta com povo 06 e 13/12– consulta com
povo cigano velho cigano caboclos e pretos-velhos
13 e 20/09 –consulta com 11 e 18/10– consulta com 08 e 22/11–consulta com (2)
caboclos e pretos-velhos caboclos e pretos velhos caboclos e pretos-velhos
(2) (2) (2) Sessões de Sábado:
25/10– consulta com 29/11– consulta com 02/12– corrente de
Sessões de Sábado: ibejada ibejada marinheiros e baianos e
02/09– corrente de zé consultas com exus
pilintra e consultas com Sessões de Sábado: Sessões de Sábado: 09/12– sessão de praia
exus 07/10– corrente e 04/11– consulta com exus 16/12– gira de
09/09– corrente do povo consultas com exus 25/11 – corrente com encerramento de 2017
do oriente e consulta com 14/10– corrente com povo do oriente e consulta
103

caboclos e pretos-velhos povo do oriente e com caboclos e pretos- Giras festivas:


23/09– corrente dos consulta com povo velhos 04/12– Iansã
pretos velhos e consulta cigano 08/12– Oxum
com caboclos e pretos- 21/10 – bate–folha com Giras festivas
velhos caboclos e consultas com 02/11– sessão da
30/09– gira de caboclo caboclos e pretos-velhos saudade
15/11 – Festa da
Giras festivas umbanda
27/09 – festa de ibejada Giras festivas
30/09 – festa de xangô 04/10 – homenagem a
São Francisco de Assis
(benção dos animais)
28/10 – festa de zé
pilintra e malandros

Além de termos dimensão do intenso ritmo dos trabalhos do centro, podemos também
perceber a presença das entidades nas atividades que o centro realiza ao longo do ano. Durante
os primeiros sete anos, o CUCA promoveu apenas consultas mensais com caboclos e pretos-
velhos; em seguida, tiveram início as consultas com exu. Gregório não soube me precisar há
quanto tempo exatamente começaram as consultas com a ibejada, mas certamente já foi na sede
atual, e em 2016 tiveram início as consultas com o povo cigano. Atualmente, ao longo do ano
são realizadas sessões de consulta com caboclos, pretos-velhos, exus, pombagiras, ibejadas e
povo cigano; e além das giras festivas destas entidades, também são homenageados os orixás,
o povo do oriente, boiadeiros, malandros, marinheiros e baianos.
Caboclos e pretos-velhos são as entidades mais presentes, que não só realizam
consultas mensais como chegam a fazer cinco sessões de consulta num só mês. Os exus, que
foram a segunda entidade a oferecer consultas no centro, também são presentes e realizaram
consultas em todos os meses, exceto em junho; dessas 11 sessões, em três as pombagiras
também deram consulta. As ibejadas também realizam consultas mensais, exceto em janeiro e
dezembro, que são meses com menos atividades, e em setembro, mês em que são celebradas
em gira festiva – e é justamente pela significativa e frequente presença da ibejada nesse centro
que ele tornou-se central para minha pesquisa e, consequentemente, nesta tese. O povo cigano
também realiza consultas durante quase todo o ano, além da corrente e da gira festiva. O povo
do oriente, boiadeiros, zé pilintras, malandros, marinheiros e baianos são festejados e
participam de correntes, porém são entidades que ainda não realizam consultas na casa.79

79
Digo “ainda” porque, durante minha entrevista com o dirigente da casa, ele disse que, muito provavelmente,
haverá o momento em que todas as entidades que são cultuadas na casa terão também suas sessões de consulta,
porém para tudo há seu momento. O Povo Cigano, por exemplo, começou a dar consultas recentemente, em 2016.
104

Nos dias em que o centro promove atividades abertas ao público, circulam entre 100 e
300 pessoas, sendo que as giras festivas certamente têm público maior e mais flutuante. Nas
sessões de consulta, costumam estar presentes entre 30 e 50 médiuns e na assistência entre 50
e 80 pessoas – tomando como base as giras de ibejadas que vi. Consulentes, médiuns e pessoas
do centro com as quais falei sempre me dizem que as sessões mais cheias são as de consulta
com exus, que também mobilizam maior público na gira festiva. Gregório estima que a média
de atendimentos mensais do CUCA oscila entre 2000 e 2500 pessoas.
Além de acompanhar os preparativos das giras festivas de ibejada de 2016 e 2017, nos
16 meses em que frequentei o CUCA estive em 15 sessões – consulta, festiva e corrente – de
ibejada, e, para ter algum contraponto, também estive em consultas e festas de caboclos, pretos-
velhos e exu, como podemos ver nesta tabela que segue.

Data sessão/gira Data sessão/gira

27/07/2016 Consulta com ibejada 10/06/2017 Bate–folha com caboclo e consulta com
ibejada

27/08/2016 Bate–folha com caboclo e consulta com 13/06/2017 Festa de exu


ibejada

27/09/2016 Gira festiva de ibejada 27/07/2017 Consulta ibejada

15/10/2016 Bate–folha com caboclo e consulta com 27/08/2017 Bate–folha com caboclo e consulta com
ibejada ibejada

28/01/2017 Corrente de ibejada e consultas com 27/09/2017 Gira festiva ibejada


pretos-velhos e caboclos

15/02/2017 Consulta com ibejada 15/10/2017 Bate–folha com caboclo e consulta


ibejada

29/03/2017 Consulta com ibejada 04/11/2017 consulta exu

12/04/2017 Consulta com caboclos e pretos-velhos 29/11/2017 consulta ibejada

19/04/2017 Consulta com ibejada 27/09/2018 Gira festiva ibejada

27/05/2017 Corrente de iabás e consulta com ibejada

Neste centro, estabeleci uma relação mais próxima, tendo maior contato com os
dirigentes e médiuns da casa e também com as atividades ali desenvolvidas. Durante dois anos
105

ajudei na organização da festa, quando pude observar e aprender os cuidados e técnicas que
envolvem a arrumação de uma gira festiva. Conversei mais de uma vez com Marilene e
Gregório, fiz algumas entrevistas com médiuns da casa, também já cumprimentava alguns
assistentes que, assim como eu, sempre estavam na gira de ibejada. Mas boa parte do tempo em
que estive no CUCA, assim como nos demais centros, permaneci nos bancos da assistência.

2.4 Dos bancos da assistência

Comecei a pensar em bancos como lugar de campo quando li ‘La religion de près:
l’activité religieuse en train de se faire’, de Albert Piette (1999). Criticando uma antropologia
da religião que se ocupa apenas dos rituais e festas, Piette propõe uma abordagem cujo enfoque
seja o cotidiano da religião, pois seria no cotidiano, nas pequenas e habituais tarefas que a
religião – e o religioso – também é feita. Para ele, os antropólogos deveriam tratar o catolicismo
como fazem com outras religiões, distantes e exóticas, e considerá-lo em suas minúcias, em sua
banalidade – que deveriam ser observadas com ares de estranheza. Piette realizou seu campo
em uma paróquia francesa, onde acompanhava diversas atividades, dentre elas reuniões
semanais, às quais assistia sentado num banquinho no canto da sala. Sobre seu lugar em campo,
o autor nos diz o seguinte,

O nosso lugar acabou por ser irrelevante, como se os cristãos da diocese


escolhida nem sequer procurassem tirar partido da nossa presença. [...] A
nossa posição periférica nas reuniões, que consiste em registar o que aí foi
dito, nunca foi discutida. E a reunião decorreu normalmente da mesma forma
como se não estivéssemos presentes.
[...]
Uma etnografia de ação não pode consistir numa observação distante da
situação e que nos faça ver o comportamento no horizonte da cultura como
um modelo explicativo para a mesma. Pelo contrário, exige uma posição
próxima da situação observada, no limiar da situação observada – poderíamos
falar de uma etnografia introdutória – sem que o observador participe, como
membro, nas interações ordinárias das pessoas. (PIETTE, 1999, p. 15-8)80

80
No original, “ notre place fut à la limite sans pertinence, comme si les chrétiens du diocèse choisi ne cherchaient
(même) à profiter de notre présence. [...] Notre position périphérique en réunion, consistant à noter ce qui s’y
disait, n’a jamais été discutée. Et la réunion se déroulait tout à fait normalement de la même façon que si nous
n’avions pas été présent. [...] Une ethnographie de l’action ne peut pas consister en une observation éloignée par
rapport à la situation et qui fait voir les comportements à l’horizon de la culture comme modèle explicatif de ceux-
ci. Elle exige au contraire une position proche de la situations observée, au seuil de celle–ci – nous pourrions parler
d’ethnographie liminaire – , sans pour autant que l’observateur participe, comme membre, aux interactions
ordinaires des gens. Elle consiste concrètement à suivre à la trace et donc de très près des acteurs différents dans
une même situation ou les mêmes acteurs dans des situations différentes.”
106

A proposta que Piette apresenta logo na introdução de sua obra pareceu-me


interessante em vários aspectos – a religião enquanto prática cotidiana, o campo próximo e
constante, a centralidade das descrições na etnografia, a proposta de pensar um Deus
etnografado – , mas fiquei com um pé atrás com essa presença tão discreta dele no campo.
Afinal, às reuniões paroquiais que ele assistia não compareciam muitas pessoas, eram grupos
que reuniam cerca de dez, vinte pessoas – como a presença de uma pessoa, não pertencente à
paróquia, sentada e calada num canto da sala enquanto todos discutem, pode ser ignorada?
Como é possível estar nesta situação e não se engajar em nenhuma interação?
Em meu campo, nos centros menores, nunca consegui sentar no banco da assistência
sem ser, em algum momento, notada. Se eu mesma não me apresentasse a alguém do centro,
num intervalo ou num momento mais calmo da gira alguém vinha falar comigo – o que
aconteceu, por exemplo, nas giras que assisti na UEUB. Nos centros maiores, realmente era
possível estar entre os demais assistentes sem ser notada, mas para isso era preciso participar
da gira.
Como veremos nos próximos capítulos, numa gira comemos, bebemos, falamos,
cantamos, batemos palmas. A assistência é – e deve ser – parte ativa do ritual, estando também
engajada na prática religiosa. As atividades que não devem envolver pessoas que não são
médiuns do centro são realizadas internamente, mas a partir do momento em que são abertas, é
esperada a participação da assistência. Há, inclusive, uma série de recomendações para que essa
participação ocorra de forma apropriada. É preciso fazer silêncio, concentrar–se, evitar mexer
no celular, deve-se evitar roupas curtas, decotadas e de cores escuras. Em alguns centros
sugere–se que os sapatos sejam retirados e chamam a atenção para que braços e mãos não
estejam cruzados, para que assim, a energia do ritual flua pelos corpos de todos os presentes.
Ou seja, para mim o banco da assistência nunca foi um lugar de uma presença quase invisível
e não participativa.
Permanecer na assistência, participando como parte e não como alguém próxima ao
ritual desde o salão, ou seja, mais próxima dos médiuns, foi um lugar que encontrei para pensar
as ibejadas para além da incorporação; ou melhor, compreender como essas entidades também
são sentidas e experienciadas por quem não as incorpora.81 Assim, além de considerar que as
coisas são fundamentais para a realização dos rituais e para apresentação das ibejadas, a
assistência também é parte relevante do ritual e ocupando esse lugar é possível compreender

81
Mas vale ressaltar que em muitas ocasiões pessoas da assistência também incorporam.
107

como as entidades podem ser sentidas – em nossos corpos, mãos, ouvidos e bocas – por outros
meios que não a incorporação.
Mesmo o banco sendo um lugar de observação bastante rentável, é claro que também
se faz necessário sair dele. Primeiro, para mim sempre foi muito importante, além de não
permanecer no banco de um só centro, frequentar outros lugares por onde as coisas que vejo
nos centros também circulam.

2.5 As coisas nas lojas e na fábrica

Por compreender que as coisas possuem uma vida social (APPADURAI, 1990;
KOPYTOFF, 1990), considerei necessário ampliar meu campo para outros espaços por onde as
imagens, roupas e doces das Crianças circulam, a fim de apreender como elas são nomeadas,
expostas, adquiridas; enfim, como é a vida dessas coisas em outros espaços, fora de um contexto
ritual, além dos centros de umbanda. Como afirma Kopytoff (1990, p. 92-93),

Ao se fazer a biografia de uma coisa, far-se-iam perguntas similares às que se


fazem às pessoas: quais são, sociologicamente, as possibilidades biográficas
inerentes a esse status, e à época e à cultura, e como se concretizam essas
possibilidades? De onde vem a coisa, e quem a fabricou? Qual foi a sua
carreira até aqui, e qual é a carreira que as pessoas consideram ideal para esse
tipo de coisa? Quais são as ‘idades’ ou as fases da ‘vida’ reconhecidas de uma
coisa, e quais são os mercados culturais para elas? Como mudam os usos da
coisa conforme ela fica mais velha, e o que lhe acontece quando sua utilidade
chega ao fim? [...] Cada biografia é feita a partir de alguma concepção prévia
sobre o que deve ser focalizado”.

A concepção prévia que me guiou às lojas e à fábrica era a de compreender como as


coisas eram produzidas e comercializadas antes de chegar aos centros, quais eram os caminhos
percorridos pelas imagens, roupas e doces antes de assumirem seu lugar no salão, no altar ou
no congá. Como nasce uma imagem? De que ela é feita e quem a faz? Como se escolhe uma
imagem e as roupas para sua Criança? Ao longo de suas vidas essas coisas passam de imagens
de erê à imagem de ibejada, ganham nome próprio, num processo que as singularizam e
sacralizam.
Bourdieu (2002) nos chama atenção para o fato de que uma biografia é sempre uma
construção, um artefato, uma elaboração de uma sucessão de fatos articulados numa linearidade
que procura ordenar uma vida que, na realidade, se dá de forma descontínua, imprevista e
aleatória. O autor ressalta que há formas mais e menos ilusórias de construir essas narrativas
108

biográficas. Uma forma de tentar compreender uma trajetória é considerar os campos pelos
quais ela se desenrola, os agentes envolvidos e as posições que um determinado agente ocupa
simultaneamente; ou seja, considerar a superfície social sobre a qual uma vida se desenrola.
Ainda que aqui estejamos falando da vida de coisas, busco elaborar essas biografias
considerando os lugares por quais as coisas circulam, os materiais a partir dos quais são feitas,
quem as produz, como são classificadas nessas diversas esferas e por distintos agentes, quais
os usos e significados que lhes são atribuídos. Pensar, enfim, nas trajetórias dessas coisas a
partir dos lugares que elas ocupam e das pessoas que as criam, manipulam e classificam.
No caso das imagens das Crianças, sobre as quais nos debruçaremos no quinto
capítulo, um lugar significativo para compreender como essas coisas são criadas, como nascem
as ibejadas em gesso policromado, visitei uma fábrica de fundo de quintal, assim qualificada
por uma de suas donas e gerente, Rosemere; localizada num bairro residencial de Mesquita,
município da Baixada Fluminense.82 Um terreno não muito grande, com a maior parte coberta
sob a qual foram construídas uma pequena cozinha, um alpendre e, ocupando a maior parte, um
galpão, repleto de mesas de madeira e estantes de ferro onde, respectivamente, trabalham os
funcionários e são armazenadas as imagens já prontas, mas ainda sem pintura. Entre um
telefonema e outro, Rosemere me contou sobre a fábrica e sua produção.
Ela gerencia o negócio familiar há quinze anos, posto que assumiu após a morte de seu
pai. Ele cuidou dos negócios nos quinze anos anteriores, e começou a trabalhar com imagens
quando adquiriu o terreno e os equipamentos de um outro senhor, que ali já fabricava imagens.
Entre um dono e outro, ao longo dessas mais de três décadas, o espaço e a produção não passou
por muitas mudanças – são as mesmas estantes, muitos moldes são os mesmos e alguns
funcionários também estão na casa desde o início.
Na fábrica pude acompanhar os processos que dão formas e cores ao gesso, que,
inicialmente líquido, solidifica-se e torna visível os caboclos, pombagiras, exus, malandros,
pretos-velhos, diversos santos e Crianças cultuadas em lares e centros, altares e congás. Nesses
espaços onde são produzidos artigos religiosos também podemos observar como o calendário
litúrgico dos centros e terreiros não ordena somente a vida dos pais, mães, dirigentes, filhos,
filhas e médiuns; mas também aqueles que têm como renda a comercialização desses artigos –
e que, como veremos, muitas vezes nem mesmo acreditam nas entidades cujas imagens

82
Desde o primeiro contato telefônico, Rosemere se mostrou bastante disponível e disse que já tinha recebido
outros pesquisadores. Quando cheguei à fábrica descobri que já havia visto aquele lugar: era a mesma fábrica das
fotografias de Mourão (2012), um dos pesquisadores que ela já havia recebido.
109

produzem e vendem. Da fábrica, as imagens saem envoltas em folhas de jornal e vão parar nos
altares, congás e prateleiras das lojas.

Grande parte dos objetos litúrgicos presentes nas religiões afro-brasileiras


pode ser encontrada atualmente nas lojas e mercados de artigos religiosos.
Muitos destes centros comerciais tornaram-se famosos pontos de encontro do
povo-de-santo, tal como acontece com seus congêneres africanos que propicia
o lazer e circulação das pessoas, além da venda e compra de mercadorias. A
visão de que a loja por vender objetos litúrgicos por si mesma já possui algum
axé demonstra a conexão entre as visões de mundo africana e brasileira.
(SILVA, 2008, p. 107)

No Rio de Janeiro, o Mercadão de Madureira é um dos locais de referência no


comércio de artigos religiosos dos cultos afro-brasileiros e foi lá que vi pela primeira vez as
imagens e roupas “de erê”, como são anunciadas. Pelas galerias do Mercadão, chamaram minha
atenção as vitrines de lojas com várias imagens de Cosme, Damião e Doum rodeados por
crianças e balas. Tirei várias fotos e em algumas lojas perguntava de quem eram aquelas
imagens, ao que ouvia “são dos erês”, “são as Mariazinhas e Pedrinhos”. À época, em 2014, eu
estava atrás de doces e me contentei com aquelas vagas respostas. Desde então voltei diversas
vezes ao Mercadão, tirei várias outras fotos e fiz muitas outras perguntas sobre aquelas imagens
e roupas, que depois passaram a ser foco de minha atenção.
Em 18 de dezembro de 1959, foi fundado o Entreposto Mercado do Rio de Janeiro,
que ficou popularmente conhecido como Mercadão de Madureira; mas sua história remonta ao
ano de 1914, quando teve início uma pequena feira livre no bairro de Madureira, no local onde
hoje funciona a quadra da escola de samba Império Serrano. Desde o início do século XX, esse
era um importante polo comercial da cidade do Rio de Janeiro fornecendo inicialmente
mercadorias que abasteciam os comércios, com a oferta de hortaliças, legumes, ervas diversas
e animais vivos de variadas espécies (MARTINS, 2009). Para Pereira (2015), foram justamente
os animais vivos que atraíram para o Mercadão os adeptos de religiões afro-brasileiras. Entre
as décadas de 1940 e 1950, diversos terreiros de candomblé se fixaram na zona norte da cidade
e os pais, mães e filhos de santo recorriam ao Mercadão para adquirir os animais necessários
aos seus rituais. Posteriormente foi surgindo a demanda por materiais de barro, como
alguidares, e fios de conta;

Assim, fica claro que, para o Rio de Janeiro, o Mercadão de Madureira foi a
solução para a aquisição de produtos de origem africana e também um local
de religiosidade afro-brasileira. Os produtos que, no século XIX, faziam parte
da pauta de comercialização entre o Brasil e a África passam a ter um novo
polo de venda não mais correlato às regiões portuárias, mas sim interiorizado
110

no município do Rio de Janeiro e longe de possíveis perseguições que


ocorreram até meados da década de 1970. (PEREIRA, 2015, p. 340)

A relação entre esse local e os cultos afro-brasileiros, é também marcada pela Festa de
Iemanjá, que começou a ser realizada como forma de agradecimento pela reconstrução do
Mercadão após o incêndio ocorrido em janeiro de 2000. Desde 2003, no dia 29 de dezembro é
realizado um cortejo, quando a imagem de Iemanjá percorre, junto aos comerciantes e devotos,
a cidade, de Madureira a Copacabana (BAHIA, 2018). Em 2014, o Mercadão foi reconhecido
como Patrimônio Cultural Carioca de Natureza Imaterial pela Lei Nº 5679/2014, que afirma ser
o Mercadão um dos últimos grandes mercados ainda em atividade no Rio de Janeiro
(VIGORITO, 2016).
Atualmente, o Mercadão abriga cerca de 600 estabelecimentos e por suas galerias
vemos lojas de cosméticos, brinquedos, papelaria, materiais de limpeza, artigos de festa, etc;
além do pavilhão das ervas e, próximo a ele, os estandes de venda de animais vivos. No site,83
quando fazemos uma pesquisa das lojas por setor, encontramos 20 estabelecimentos de artigos
religiosos. Na aba do site que abriga a galeria, podemos ver álbuns com fotos de eventos
promovidos ou realizados no Mercadão, como a já mencionada Festa de Iemanjá e Dia das
Crianças. Ainda que não tenha um álbum intitulado “Cosme e Damião”, os santos gêmeos
também são celebrados pelas galerias do Mercadão.
Ao longo desses anos de pesquisa, em diversas ocasiões estive no Mercadão, em
muitas das vezes durante o mês de setembro, quando via cartazes e adesivos pelos corredores e
escadas que desejavam um feliz dia das crianças e, logo abaixo, os escritos “Cosme e Damião
- Doces - Balas - Brinquedos”; que nos falavam sobre as comemorações e produtos que marcam
o período. Nas lojas de artigos de festas, além das mesas montadas com decoração de palhaços
e personagens de desenhos infantis, vi também painéis decorativos com a efígie dos santos
gêmeos e sacolinhas – como as que envolvem os doces distribuídos pelas ruas no dia 27 de
setembro – dispostos sobre mesas adornadas com toalhas verde e vermelha; que compunham
um cenário semelhante a uma festa de aniversário infantil que teria Cosme e Damião como
tema.
Nas lojas de artigos religiosos, as vitrines são arrumadas como altares, com as imagens
de Cosme, Damião e Doum e aos seus pés pratinhos com balas, pirulitos, maria-mole e copinhos
de guaraná. Ao lado dos santos gêmeos, as Crianças, ou melhor, as imagens de erê. Nas lojas
de tecidos e roupas de religiões afro-brasileiras, logo à frente estavam as araras que expunham

83
https://mercadaodemadureira.com/
111

e anunciavam as promoções de roupas de erê. Vemos, portanto, que, pelas galerias do


Mercadão, este é um período marcado pelas comemorações às (C)crianças e pelas coisas a elas
associadas.84
Como podemos ver, apesar da centralidade do ritual, não me restringi a essa ocasião
para atentar às coisas das Crianças. Na fábrica e nas lojas pude observar como as imagens e
roupas das ibejadas são produzidas e classificadas por aqueles que as fazem e comercializam,
e compreender quais os caminhos que elas percorrem antes de chegar aos salões dos centros.
As giras festivas e sessões de consulta foram por mim observadas e vividas desde os bancos
da assistência, um lugar desde o qual pude perceber como as entidades são experienciadas por
aqueles que as sentem, mas não as incorporam. Assim, veremos que os artigos religiosos têm
uma vida antes das lojas onde são comercializados e que, nas giras e consultas, as entidades
são sentidas além do transe.

84
Nas lojas de artigos religiosos, as vitrines vão mudando conforme o calendário das casas de cultos afro-
brasileiros. A partir de diversas conversas com vendedores e visitas ao Mercadão, temos o seguinte calendário: em
janeiro, as vitrines são para Oxóssi e caboclos, em tons de azul e verde, e também saem muitas roupas brancas,
pois muitas casas fazem o ritual das águas de Oxalá; maio é mês das celebrações aos ciganos, cores vibrantes e
muito brilho, e pretos velhos, muito identificados com o xadrez em preto e branco; de junho a agosto muita coisa
para Xangô, Omolu e Exu, em tons de vermelho e terracota; agosto e setembro eram das Crianças, rosa e azul e
estampas infantis, de personagens, bonecas, carrinhos e comidas; novembro e dezembro saíam as roupas para as
yabás – Oxum, Iemanjá e Iansã – , muito azul, rosa, vermelho e amarelo.
112

PARTE II

3. Crianças cantadas

Como expliquei anteriormente, nesta tese debruço-me sobre as ibejadas e suas coisas
em rituais públicos; ou seja, sobre o que os visitantes e consulentes de um centro veem – e
ouvem e provam e fazem e sentem – das Crianças. Neste momento, detenho-me sobre os pontos
que são cantados e ouvidos em todas as giras festivas e sessões de consulta, e que também nos
permitem conhecer e sentir as Crianças.
Antes de tudo, faz-se necessário distinguir o ponto cantado do riscado. A primeira
diferença já é óbvia: um é cantado, realizado em vozes, palmas e atabaques; e o outro é riscado,
com pemba85 sobre o chão. Ambos podem ser considerados expressões que presentificam e
identificam as entidades.
Os pontos riscados são combinação de diversos elementos que, juntos, identificam
uma determinada entidade.

Pontos riscados são desenhos feitos com pemba formando um conjunto de


sinais cabalísticos (mágicos simbólicos) como flechas, traços, cruzes, círculos,
estrela de David, corações, etc. O ponto riscado pode aparecer em duas
situações: na primeira, antes da chegada da entidade com o objetivo de chamá-
lo ao mundo terreno, e na segunda quando o ponto é riscado pela própria
entidade no momento em que é incorporado como forma de identificação. Para
os umbandistas o ponto riscado possui um grande significado, pois através
dele as entidades contam sua história, além de ser entendido como uma prova
de incorporação: se o espírito não estiver bem incorporado ele não saberá
riscar seu ponto.” (BORGES, 2006, p. 48-49).

Cruz, flechas, estrelas, coração, ondas, espada, tridente, lua; são alguns dos elementos
que podem compor um ponto riscado. A própria entidade, incorporada no médium, risca sobre
o chão seu ponto, que depois passa a identificá-lo, e volta a ser desenhado em momentos futuros
– é comum, por exemplo, que os centros escolham como emblema o ponto riscado da entidade
dirigente da casa, exibidos nas frentes dos centros, nas placas que os identificam.

85
Pemba é um giz de calcário, que pode ter diferentes cores, usado ritualisticamente. Com a pemba riscam-se,
além dos pontos, as mãos dos médiuns ao entrar no salão, as imagens e outros objetos; assim, coisas e pessoas
estão prontas para adentrar os espaços e tempos dos rituais.
113

Ao riscar seu ponto a entidade se apresenta, mas não a qualquer um, já que é necessário
um determinado saber para ler e interpretar essa imagem. Em sua dissertação, Linconly Pereira
(2012) tenta compreender como se dão as relações de ensino, aprendizagem e interpretação dos
signos presentes nos pontos cantados e riscados, a partir de sua inserção no campo umbandista
de Fortaleza. Um interlocutor do autor, Pai Valdo de Iansã, assim explica o ponto riscado,

[...] é como se fosse uma carta, um símbolo, um brasão do preto–velho.


Naquele brasão ele tá se identificando, sua origem, qual é, pra que é que ele
serve e o que é que ele tá fazendo, é como se ele tivesse escrevendo uma carta.
Então, são símbolos, são signos, né? É, do preto-velho você identifica a cruz,
representando que ele trabalha na Linha das Almas, que ele foi um espírito
que sobreviveu a um sofrimento material. Tem, geralmente, tem o cachimbo,
que vai representar nada mais do que a sabedoria. O rosário vai representar
que ele é um espírito evoluído, né? Então, todo ponto riscado traz toda uma
história, é como se fosse um livro que ele tá, uma carta que ele tá lhe passando,
ele tá dizendo o que é que ele faz. É engraçado que o ponto riscado, ele, de
acordo com o que ele tá riscado, você vai identificar o tipo de vela que você
tem que acender, o tipo de bebida que você tem que usar e o tipo de trabalho
que você tem que assinar. (PEREIRA, 2012, p. 123)

Por mais que alguns elementos possam ser, individualmente, identificáveis; a relação
entre eles e a construção/identificação de uma narrativa a partir desses elementos não é nada
óbvia. Posso ver um ponto riscado com uma flecha e umas ondas, e pensar que se trata do um
ponto de caboclo que tem alguma relação com o mar; mas nada saberia sobre cor de vela ou
tipo de bebida que a entidade aprecia e com as quais trabalha. Não basta, portanto, saber que
cruzes identificam pretos-velhos, flechas, caboclos, e tridentes, exus e pombagiras; é preciso
saber ler a narrativa que os elementos combinados contam, da história e do culto das entidades.
O ponto riscado, portanto, pode até ser visível e público, o que não significa que ele – e a
história que ele conta – seja acessível.
Durante uma entrevista, Gregório, do CUCA, explicou-me sobre a riscagem do ponto.

O que é riscagem de ponto? É o guia que riscou ponto, ele se apresenta às


entidades dirigentes e ele se coloca a disposição para o trabalho. E aí aquele
médium se torna um médium de consulta. [...] eu tenho aqui alguns pontos que
foram das últimas sessões, então ó [mostrando-me um papel com um ponto
riscado] esse é um ponto da Cabocla Jurema. Então ela risca esse ponto e
explica pro Seu Ubirajara, que é o Caboclo dirigente incorporado, ela explica
o que significa as flechas, a espiral, a estrela. Ela explica e ele aprova e aí
pergunta o nome dela e ela fala o nome e a linha de trabalho. Aí no final da
sessão, onde todo mundo já subiu [ou seja, os médiuns saem do transe] e só
fica a entidade dirigente, ele chama essa médium, no caso, para o meio do
terreiro, pede pro ogã do terreiro tocar um ponto da Cabocla Jurema, a Cabocla
Jurema volta e aí faz uma apresentação pra todo mundo. Pra sociedade do
114

CUCA. Ou seja, aí todo mundo sabe que, a partir de hoje, essa entidade é uma
entidade de consulta.

Desta descrição podemos compreender que a riscagem do ponto é um ritual privado,


reservado aos médiuns da casa86, e que ela marca uma passagem, pois ao riscar seu ponto a
entidade mostra que está preparada para trabalhar, para participar das sessões públicas e atender
os consulentes. Entendemos também que o ponto riscado precisa ser explicado e aprovado, ou
seja, a entidade tem de se apresentar para as entidades guia da casa, contar a elas sua história e
a partir daí receber a permissão para dar início aos seus trabalhos. Antes que a entidade se
apresente ao público mais amplo, aos consulentes, ela se apresenta à sociedade do centro.
Quando perguntei ao Gregório sobre os elementos que compõem os pontos riscados
das ibejadas, ele me respondeu que as Crianças costumam se apresentar com coração, estrela,
sol, ondas, flechas, flores; e que as ibejadas nunca são as primeiras entidades a riscar o ponto.87
Estava curiosa porque em campo nunca vi um ponto riscado de ibejada. Como elas não são
entidades guias, seus pontos riscados não se transformam em emblema do centro. E nas giras
nunca vi nenhuma ibejada riscando seu ponto – mas também não vi outras entidades o fazendo.
Mas, se não vi pontos riscados, ouvi muitos pontos cantados.
Os pontos cantados conduzem os rituais, as vozes, palmas e atabaques anunciam o
início da gira, louvam santos, orixás e guias; chamam as entidades para o salão, embalam suas
danças e trabalhos e também anunciam o momento de partida. Nos pontos cantados ouvimos
nomes das entidades, seus lugares de origem e culto, do que gostam, seus poderes. Se nos
próximos capítulos debruço-me sobre aquilo que vejo (e como) nas giras, aqui falarei sobre o
que ouço e canto durante esses rituais.
Sandro Mattos, autor de ‘O livro básico dos ogãs’ (2005, p. 57-8), afirma que

[O]s pontos ou “curimbas” são verdadeiras preces cantadas que mostram a fé


e a magia da umbanda [...]. São, sem nenhuma dúvida, importantíssimos para
a harmonização e eficácia dos trabalhos dentro do terreiro. Esses cânticos não
devem ser entoados apenas da boca pra fora [...]. É preciso, antes de tudo,
sentir em sua alma aquilo que está sendo entoado. O som produzido pelo bater
das palmas também ajuda na marcação e produz uma forte irradiação no local.
Assim, o bom senso determina que os integrantes da gira aprendam a
acompanhar cada toque do ogã, criando uma harmonia geral entre canto,

86
Comumente nas chamadas sessões de desenvolvimento, apresentadas anteriormente.
87
Porque as ibejadas, como vimos na primeira parte, nunca são entidades guia dos médiuns. Quem primeiro risca
o ponto, é a entidade guia, que também é a primeira a começar a trabalhar.
115

instrumentos e palmas, completando o conjunto de sons que vibram com as


forças dos orixás.

Seguindo a definição proposta pelo ogã, aqui também gostaria de compreender os


pontos cantados enquanto preces.

Prece

1. Palavras que se dirigem a Deus ou a diferentes divindades, agradecendo


algo ou solicitando ajuda; oração, reza.

2. Mensagem fixa, de conteúdo diverso, que se dirige a Deus ou a outras


divindades:

3. Pedido insistente; rogo, súplica.88

Os pontos cantados podem ser entendidos, portanto, enquanto mensagens, dirigidas


às divindades, emitidas em vozes, palmas e atabaques. Para Maurice Bloch (1974) o canto,
assim como a dança, é um meio de comunicação ritual, cuja linguagem é bastante particular. O
ritual é uma ocasião onde as formas de comunicação linguística não são ordinárias, mas sim
estilizadas, notadamente o discurso e o canto (ibid., p. 56). Não podemos, portanto, pensar
somente naquilo que é dito, mas na forma – as palavras usadas, as entonações, as pausas, os
gestos – em que dizemos.
A ideia de pensar o ritual a partir da linguagem já estava proposta na inacabada tese
de doutorado de Marcel Mauss (1968[1909]), quando o antropólogo se dedicou ao estudo da
prece. Segundo o autor, a prece seria um fenômeno religioso particularmente interessante por
combinar crença e rito. Seria um rito por que é um ato, realizado às coisas sagradas; e também
crença por ser uma expressão (falada) de pensamentos (MAUSS, 1968[1909], p. 6). Mauss
também ressalta o caráter comunicacional da prece ao tomá-la como fala que pressupõe uma
escuta, já que ela é direcionada aos deuses, para quem comunicamos desejos, temores, crenças,
agradecimentos. A expectativa da escuta envolve também um anseio pela resposta. Espera–se,
portanto, que a oração tenha um efeito – que, além de escutada, seja atendida.

Ao conceber a palavra como ato que produz efeito, e que visa uma
determinada finalidade, o ensaio de Mauss é precursor ao trazer ideia de que
o ritual pode ser pensado a partir da linguagem, considerada como portadora

88
Conforme definição do Dicionário Michaelis Online, disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-
portugues/busca/portugues-
brasileiro/prece#:~:text=Dicion%C3%A1rio%20Brasileiro%20da%20L%C3%ADngua%20Portuguesa&text=1
%20Palavras%20que%20se%20dirigem,ao%20seu%20anjo%20da%20guarda.
116

de eficácia. A prece associa assim ação e pensamento, uma vez que participa
ao mesmo tempo da natureza do rito e da natureza da crença: rito, pois é ato
realizado tendo em vista coisas sagradas; crença, na medida em que toda
oração exprime um mínimo de ideias e sentimentos religiosos. (HAIBARA &
OLIVEIRA, 2015)

Uma das questões que Mauss pretendia responder em sua tese era sobre a eficácia
dessas palavras: por que os deuses respondiam? Como as palavras das pessoas tinham efeito
sobre os deuses? Haveria na prece um tom imperativo, que denotaria essa demanda por uma
resposta, e também uma espécie de encantamento, onde a fala (das pessoas) levaria à ação (dos
deuses). Em suma, os dois principais fenômenos da prece seriam a eficácia e a relação entre
homens e deuses (MAUSS, 1968[1909], p. 73).
Ao revisitar a obra inacabada de Mauss, João de Pina Cabral (2009) propõe uma
resposta para o questionamento que fascinava Mauss,

[S]e os deuses respondem é porque os deuses entendem e, se entendem, é


porque sabem o que é a minha alegria e o meu sofrimento. Ora, se eles
partilham desses paradigmas afetivos é porque, em muitos aspectos, partilham
da minha condição. [...] O que todas essas entidades partilham é o fato de nos
entenderem e, por isso, sentirem por nós; estarem dispostas a responder sem
para tal necessitarem de um interesse imediato. Só assim é possível conceber
que o nosso pedido as possa levar à ação. (CABRAL, 2009, p. 25)

Assim como em outras relações comunicacionais, é necessário que emissor e receptor


compartilhem os códigos da mensagem, para que ela seja devidamente entendida. Na prece,
pessoas e entidades se comunicam, se aproximam, partilham códigos e paradigmas, inclusive
(e talvez, sobretudo) afetivos.
Bastide (2006, p. 166) amplia a definição de Mauss ao afirmar que a oração89 “é uma
comunicação que pode se dar através de objetos, gestos, palavras, no mais das vezes por uma
combinação dos três, entre os homens e as forças sobrenaturais, dentro de uma relação
estabelecida como assimétrica”. A comunicação entre pessoas e entidades seguia sendo o foco,
mas agora não realizada só na linguagem oral, mas também nas coisas e nos corpos; “ em suma,
não podemos definir a oração como um simples rito oral; trata-se de um rito total que engloba
a totalidade do homem orante ” (ibid., p. 157-8).

89
Cumpre destacar que o texto original de Roger Bastide, intitulado L ́expression de la prière chez les peuples
sans écriture, foi traduzido como “A expressão da oração nos povos sem escrita”; enquanto La prière de Mauss é
referenciado como “A prece”. Em português, oração, prece e reza são sinônimos, correntemente acionados
indistintamente, como neste texto.
117

Nas preces pessoas e entidades se aproximam, as pessoas comunicam seus anseios e


pedem que os deuses ajam. Entre o sagrado e o profano há um canal de comunicação que nos
permite um encontro com o sagrado, que nos escuta e nos atende. Pelo seu caráter comunicativo,
a prece seria um esforço para superar a assimetria fundante, que separa pessoas e deuses,
profano e sagrado; “a oração é uma troca, um dom seguido de um contradom, o que – sem
jamais chegar a uma relação igualitária – ainda assim homogeneiza em certa medida os seres
em contato” (BASTIDE, 2006, p. 174).
Seguindo as definições aqui apresentadas, gostaria de compreender os pontos cantados
como preces. Como veremos, no início das giras do CUCA ouvimos ave-maria, pai-nosso e a
oração de São Francisco de Assis (esta entoada ritmicamente enquanto as primeiras são apenas
faladas); que já são tradicionalmente reconhecidas como orações. Ao aproximar os pontos
cantados das preces, gostaria de voltar minha atenção às expressões do ritual que, apesar de
marcadas pela oralidade não se restringem a ela e se estendem em palmas, vozes e atabaques,
que aproximam pessoas e entidades, reconhecem e cultuam os poderes dos orixás, pretos-
velhos, caboclos, ibejadas. Os pontos cantados, assim como as preces, não são apenas um tipo
narrativo, mas também pragmáticos, pois eles fazem as Crianças. Fazem as entidades presentes,
como no caso dos pontos de chamada, e fazem também as qualidades dessas entidades. Nas
giras, as ibejadas são ritualmente cantadas.
Quero dizer com isso que, além de cantar as ibejadas, os pontos constroem essas
personagens, seus nomes, gostos, comportamentos. Essas cantadas preces apresentam e
presentificam as entidades, as aproximam das pessoas e fazem a gira acontecer. Não há,
portanto, como falar dos rituais da umbanda sem mencionar esse aspecto musical.
Num primeiro momento, veremos como os pontos cantados são fundamentais para
realização de uma gira e é a partir da música que descrevo esse ritual a partir de uma sequência
dos pontos que o marcam, do ponto do defumador ao da partida, passando pela saudação a
diversas entidades. Em seguida, detenho-me nos pontos cantados das ibejadas, a partir dos quais
vamos conhecendo melhor essas Crianças e suas coisas, sobre as quais nos deteremos nos
capítulos seguintes desta tese. Por fim, procuro extrapolar os limites da gira e do centro, para
pensar em como os pontos também são música, popular e brasileira, que não são cantados
apenas pelo povo de axé.
118

3.1 Um ritual musicado

Neste primeiro momento, falaremos dos pontos cantados considerando-os como parte
fundamental dos rituais de umbanda.90 Os cantos entoados em saudação às entidades são
acompanhados pelas palmas e, em alguns centros, também pelos atabaques91. Não há gira sem
ponto cantado. O primeiro é o ponto do defumador, entoado quando é realizada a defumação
do espaço e das pessoas, que dá início à gira; e após o qual são entoados tantos outros em
homenagem às entidades que regem o centro e seus filhos. Os pontos ainda chamam as
entidades ao salão, assim como anunciam a hora de sua partida. Ogãs92, filhos da casa e as
próprias entidades puxam cantos que louvam e nos contam sobre aqueles que são cultuados.
Alguns pontos são mais curtos, outros mais longos, uns cantados por todos, outros menos
conhecidos. Os pontos embalam e ordenam os rituais, nos falam sobre sequências e qualidades
dos cultos e das entidades.
Para Seeger (2008, p. 239), “ uma definição geral de música deve incluir tanto sons
quanto seres humanos. Música é um sistema de comunicação que envolve sons estruturados
produzidos por membros de uma comunidade que se comunicam com outros membros”. Os
pontos cantados, enquanto preces musicais, nos permitem pensar numa comunicação entre
membros de uma comunidade que é composta por pessoas e entidades; ou seja, estamos falando
de uma música produzida por pessoas que se comunicam não só entre si, mas também, e
sobretudo, com as entidades que cultuam.
Nesse sentido, a música é, além de um sistema de comunicação, uma expressão
religiosa de um culto que se realiza com/em atabaques, palmas e vozes.

90
Há quem se refira aos pontos cantados como curimbas, chamando de curimbeiro quem toca o atabaque. O
termo curimba derivaria de kuimba, que em quimbundo significaria cantar (BORGES, 2006, p.6). No ‘Dicionário
de cultos afro-brasileiros’, Olga Cacciatore (1977, p. 95) define curimba os cânticos religiosos dos cultos afro-
brasileiros, que pode ter origem do iorubá – ko (cantar) + orin (canção) + ba (realmente) – ou do quimbundo
kuimba, cantar.
91
Geralmente são tocados dois ou três atabaques, e os toques são executados com as mãos, sem o auxílio das
varetas (aguidavi) como ocorre nos terreiros de candomblé.
92
Ogã (ou ogan), ou curimbeiro, é aquele responsável pelo toque dos atabaques nos centros e terreiros.
Geralmente essas pessoas – no candomblé esse cargo é exclusivo aos homens, enquanto na umbanda mulheres
também tocam – não incorporam, mas há também exceções que, “lógico que fazem parte de uma minoria, porém
é possível, pois as pessoas podem desenvolver vários pontos receptivos ao mundo da espiritualidade (chakras). É
importante salientar que, quando começam a sentir a irradiação de seus Guias, devem pedir autorização para deixar
o atabaque e incorporar-se aos outros membros da gira, prevenindo assim acidentes ou outros problemas durante
a sessão” (MATTOS, 2016, p. 42). Ou seja, normalmente quem está responsável pelo toque do atabaque não
incorpora e, caso isso ocorra, outra pessoa deve assumir seu posto; do que podemos entender que entidades não
tocam os atabaques – e certamente há uma exceção a esta regra.
119

No âmbito das religiões afro-brasileiras aqui discutidas, a música e a dança


nunca devem ser consideradas como absolutas e por si só ou, para esse efeito,
como a l'art pour l'art. Cumprem sempre certas funções, enquanto expressão
sensória e material do espiritual e do mítico; de modo que, sem dúvida,
pertencem aos meios mais importantes de expressão religiosa.93 (PINTO,
1991, p. 75)

A música aqui não será compreendida em partituras e minúcias técnicas,94 mas a partir
de um contexto ritual onde as palmas e vozes – muitas vezes acompanhadas pelos atabaques –
permitem que homens, mulheres, caboclos, orixás e pretos-velhos mantenham uma relação de
trocas sensoriais e musicais. Nas giras há todo um universo sonoro que deve ser apreendido em
seu conjunto: a letra que é cantada, o toque do atabaque, as palmas, os gestos e comportamentos,
as coisas que são manipuladas no fazer musical e religioso. A música está nas vozes, na vibração
do chão produzida pelo toque do atabaque e pelas ondas sonoras emitidas pelas caixas de som,
nos movimentos dos braços, nas palmas.
A execução dos pontos é fundamental para garantir o bom andamento de uma gira e
uma boa execução é coletiva. Além de curimbeiros, médiuns e entidades, a assistência também
canta os pontos e faz a gira. Ou seja, uma boa gira é aquela onde todos batem palmas
acompanhando o toque do atabaque e cantam acompanhando o curimbeiro. As vozes, palmas
e atabaques estabelecem uma sonoridade ao ritual e preenchem o salão com vibrações sonoras
e sagradas, que aproximam as pessoas das entidades.
A tese de José Jorge de Carvalho, defendida em 1984, foi um dos primeiros trabalhos
a se debruçar sobre o repertório musical de religiões afro-brasileiras, neste caso, o xangô de
Recife. Carvalho correlaciona rituais e cantos e afirma que “ a identidade de cada ritual está
dada justamente pela maneira muito particular pela qual são combinados, em sua realização,
diversos tipos de cantos rituais” (CARVALHO, 1991, p. 5). São diversos os tipos de cantos:
para o sacrifício, para temperar as oferendas, para os orixás, para o ori95, para o ebó, para a
feitura do santo; mas o repertório de cantos é relativamente limitado e entre um ritual e outro

93
Tradução minha, no original: “Within the scope of the Brazilian religions discussed here, music and dance are
never to be considered as absolute and on their own or for that matter as l'art pour l'art. They always fulfil certain
functions as a sensualized expression of spiritual and mythical material so that, without doubt, they belong to the
most important means of religious expression”.

94
Ressalto que a questão aqui apresentada é apenas um recorte e, como tal, deixa de fora diversos aspectos que os
pontos cantados permitiriam discutir. Aspectos mais técnicos dos cantos e toques, estruturas textuais das letras,
processos de ensino e aprendizagem; enfim, há uma série de questões que poderiam ser exploradas por abordagens
da antropologia sonora ou da etnomusicologia, mas que escapam ao recorte e na abordagem aqui proposta, que
mesmo não sendo exaustiva é pertinente.
95
Ori é a cabeça, o guia, a intuição, o destino, onde está assentado nosso orixá e por isso há uma série de cuidados
específicos ao ori.
120

pode haver apenas uma música diferente. E se há um tipo de canto para cada ocasião, há também
o perigo de entoar cantos fora de determinados contextos: as músicas de um axexê (ritual
fúnebre) só podem ser cantadas neste ritual, e os cantos de sacrifício só devem ser entoados no
momento certo. O canto, assim como o toque do atabaque, chama e comunica às entidades, e é
preciso estar atento para quando, quem e o que estamos anunciando num cantar.
Ao mesmo tempo que a música é sempre presente no ritual, ela também é envolta em
mistério, já que é preciso atingir um determinado nível de conhecimento para conseguir
identificar as diferentes músicas e arranjá-las de acordo com cada ritual.

Iniciamos este estudo utilizando o ritual como um guia para a compreensão da


música. Podemos fazer agora o caminho exatamente inverso: é a música que
nos faz ver algo da natureza do ritual que não se mostrava com muita clareza.
Nesse jogo entre criação e repetição, mistério e revelação, informação e
banalidade, destruição e negação, o ritual se sobressai justamente por ser a
garantia de presença da forma, enquanto mantém seu fundamento
desconhecido. Quando este fundamento é investigado e exposto inteiramente,
declina o ritual. Ritualizar uma forma é ocultar uma parte do seu significado,
é revesti-la de convenções que fazem preservar sua força expressiva. É o ritual
o reino da opacidade por excelência. (CARVALHO, 1991, p. 21)

Os pontos cantados devem ser harmoniosamente executados não apenas para uma
apreciação estética, mas porque a música é parte integrante do ritual, tendo ela também sua
função. Como nos diz Tiago Oliveira Pinto (1997, p. 28),

A música religiosa ressoa nas mais diversas ocasiões e lhe são atribuídas
várias funções. Dentro do candomblé, histórias míticas relativas ao panteão de
orixás (ou santos) tornam-se sensualmente experimentados através da música
e da dança; desta forma a música e a dança tornam possível o conteúdo direto
com o espiritual. A prática musical também serve muito para além da mera
glorificação de uma divindade. Através da música, alguém elogia a esfera
espiritual em que se estimula o estado-de-santo e assim simula a criação de
uma ligação a um tal estado. 96
Em seu artigo, Oliveira Pinto analisa um ritual de ebó97, que exemplifica
concretamente aquilo que Carvalho apontara sobre o xangô de Recife, mas agora num terreiro

96
Tradução minha, no original: “Religious music resounds at the most diverse occasions and is given various
functions. Within candomblé , mythical stories (lendas) concerning the pantheon of orixás (or santos ) are made
sensually experienceable through music and dance; in this way music and dance make possible direct content with
the spiritual. Musical practice also serves far beyond the mere glorification of a deity. Through music, one praises
the spiritual sphere in that one stimulates the estado-de-santo and thus simultaneously the creation of a connection
to such a state”.
97
Uma oferenda – que pode ou não incluir comidas, animais, objetos ou uma combinação de tudo isso – dedicado
a um orixá ou entidade, realizado com um intuito. Um ebó pode ser realizado em agradecimento ou súplica,
podendo ser individual ou coletivo. Alguns ebós devem ser realizados no próprio espaço do centro ou terreiro,
outros devem ser feitos em matas, encruzilhadas, cachoeiras e praias. Costuma-se falar em arriar um ebó, quando
as oferendas são colocadas no local indicado, e em despachar um ebó quando as oferendas são suspensas do
121

baiano de candomblé de caboclo.98 Partindo do pressuposto, afirmado pelo próprio autor, que
nada do que é feito ou manipulado nesse ritual é arbitrário, objetos, comidas, cores e músicas
acionados para a realização do ebó – cujo objetivo era afastar um espírito que estava
provocando convulsões em um menino – são descritos. Ao longo de seu texto, vemos como o
início, o ápice e desfecho do ritual é marcado por diferentes cores, músicas e gestos. O ebó
começa com toques mais lentos, cores claras e ervas, entoando pontos para Ogum e pedindo
pela purificação do menino. O ápice do ritual é quando o galo, envolto num pano preto, é
sacrificado para Exu, sob o rápido e forte toque do atabaque. Por fim, a mãe de santo fecha o
corpo do menino, banhando-o com água e ervas, acendendo uma vela e entoando mais pontos
para Ogum, pedindo que o orixá proteja o menino (Ibid., p. 25). Cores, elementos e toques
marcam a ordem ritual, e as ações têm relação com as músicas, que vão descrevendo o que está
sendo feito, o que está para acontecer e o que se deseja com aqueles movimentos e elementos.
Ambos autores nos falam da importância das músicas nos rituais e como estes são
marcados – seus tipos e suas sequências – pelos cantos e toques que são entoados e executados.
Mas enquanto Oliveira Pinto afirma que as músicas vão nos informando do que está
acontecendo ou anunciam o que está para acontecer, Carvalho nos fala da opacidade do ritual e
das músicas que o compõem; isto porque os cantos tratados pelos autores são entoados em duas
línguas – o português, no caso do candomblé de caboclo baiano, e o iorubá no xangô de Recife.
As músicas conduzem o ritual, cultuam os orixás, descrevem ações; mas nem sempre
compreendemos o que está sendo cantado – e entender aquilo que é cantado nos permite
compreender de outra forma aquilo que estamos vendo.
Na umbanda os pontos são cantados em português, o que nos permite compreender
aquilo que ouvimos sobre as entidades cultuadas e os momentos dos rituais – o que não significa
dizer que porque entendemos o que está sendo cantado estamos compreendendo tudo que se
passa – , mas é possível acompanhar o ritual pelos discursos cantados nos pontos. E se sabemos
que a eficácia do que é dito não é necessariamente atrelada à compreensão do que se diz e escuta
(LÉVI-STRAUSS, 1996); também é preciso admitir que entender o que se ouve e ser capaz de
repetir e cantar tem um efeito. Ou seja, o fato dos pontos serem cantados em português podem

lugar onde foram inicialmente colocadas e levadas a outro local determinado pelo orixá, entidade ou responsável
pela condução do ritual. Uma filha de santo grávida, por exemplo, pode arriar um ebó para Oxum, pedindo
proteção à sua gestação, aos pés do assentamento do orixá, que depois (no dia seguinte ou no terceiro dia) deve
ser despachado numa cachoeira.
98
Comumente, nos terreiros de candomblé, de tradições ketu, angola ou jeje, são cultuados apenas orixás, inquices
ou voduns; mas há diversos casos onde são também cultuadas entidades geralmente associadas ao panteão
umbandista, como nos terreiros de candomblé de caboclo.
122

tanto ser um fator desencadeador de uma forte emoção, quanto uma condição facilitadora para
o aprendizado das letras.
Segundo Maurice Bloch (1974), nos rituais a comunicação é estilizada não só no
discurso, mas também no canto e na dança. Música e dança seriam, portanto, centrais na
realização e na análise do ritual, porque são as vozes e os corpos que articulam os argumentos
do discurso ritual. Ao prestarmos atenção no que é dito e nas formas faladas, vamos percebendo
as modulações sonoras e gestuais que nos ajudam a compreender o ritual e aqueles que nele
falam e dançam.
Cada entidade tem seu repertório de música e dança: letras, toques e movimentos que
caracterizam as deidades. As letras dos pontos e os movimentos das danças nos contam sobre
as entidades e nos permitem vê-las e ouvi-las. Uma dança cujos movimentos são rápidos e bem
marcados nos mostram que Iansã é forte e ligeira, enquanto Nanã, uma senhora, é vista em
movimentos lentos e pesados. As letras de vários pontos nos contam sobre a vaidade de Oxum,
cuja beleza se espalha em rios e cachoeiras. As músicas também demarcam momentos do ritual:
seu início e fim, a chegada e partida das entidades, o que se pretende com determinado ritual.
Quando atentamos aos gestos e sons, nos chama atenção a repetição do que é cantado
e dançado. O repertório musical e gestual é relativamente limitado, havendo uma série de
músicas e danças que são repetidas várias vezes ao longo de uma mesma cerimônia. O
argumento de Bloch é de que a comunicação ritual é singular e não podemos compreendê-la
como qualquer discurso e, assim, a repetição no ritual assume um sentido próprio.

Se pensarmos no que se está a passar como argumento, como está implícito


na análise formal ou lógica, a repetição é mera redundância. Se, contudo, não
estamos a lidar com um argumento, mas com uma experiência total, a
repetição é a única possibilidade de ênfase. Uma afirmação congelada não
pode ser expandida, só pode ser feita repetidamente e repetidamente. A
repetição lembra-nos que não estamos lidando com um argumento, uma vez
que um argumento é uma base para outro argumento, e não a base para o
mesmo argumento novamente.99 (BLOCH, 1974, p. 76)

Os atos performativos (AUSTIN, 1990), diferente dos enunciados que se valem do uso
referencial da linguagem, isto é, eles são eficazes porque fazem aquilo que dizem. O “eu aceito”
no momento do casamento para Austin talvez seja equivalente ao “Ogum te abençoe” do pai de

99
No original, “If one thinks of what is going on as an argument as is implied by formal or logical analysis,
repetition is mere redundancy. If, however, we are not dealing with an argument but with a total bonded experience,
repetition is the only possibility for emphasis. A frozen statement cannot be expanded, it can only be made again
and again and again. Repetition reminds us that we are not dealing with an argument, since an argument is a basis
for another argument, not the basis for the same argument again”.
123

santo aos seus filhos, o “eu prometo” do devoto; são enunciados que não só transmitem uma
informação mas fazem – casam, abençoam, prometem. Nos rituais, os atos performativos além
de eficazes são repetitivos. A repetição não é apenas uma redundância, mas uma ênfase que
produz um efeito, que permite que aquilo que é dito seja também realizado. Para que os atos
sejam performativos e não apenas constatativos (AUSTIN, 1990), ou seja, para não sejam meras
descrições, mas se conformem em ações, eles precisam ser repetidos.
Trazendo essa problemática para discutir festas e rituais no sudeste brasileiro, Wagner
Chaves (2014) se detém sobre os aspectos sonoros das folias100 de São Francisco (MG),
considerando os cantos enquanto atos performativos. Porque enunciam o que está sendo feito e
anunciam o que está para acontecer, os cantos performam e fazem o ritual. O canto seria uma
“modalidade de vocalização que articula som/palavra, ritmo/melodia, texto/música, os cantos
de folia, situam-se na fronteira entre fala e som, linguagem e música” (CHAVES, 2014, p. 254),
um modo de discurso – repetitivo, memorizado, formalizado, rimado, afinado, melódico e
performativo. Nas folias, o canto articula relações sociais e culturais, aproxima o céu e a terra,
e constrói a presença do santo.

O santo não apenas é a motivação para a organização de uma folia, como sua
presença é invariavelmente anunciada nos primeiros versos dos cantos que
acontecem na chegada do grupo ritual à casa dos devotos. Desse modo, do
ponto de vista dos participantes do ritual, seria impensável uma folia sem a
presença do santo. (CHAVES, 2014, p. 250)

Os cantos anunciam a chegada da folia, apresentam foliões e anfitriões, abençoam,


agradecem, se despedem. Mas o canto não é feito só de palavras cantadas, “os gestos, as
posturas e as atitudes corporais, os deslocamentos no espaço e a manipulação de objetos, como
a bandeira, ao lado dos aspectos vocais e orais, eram constitutivos do canto como um evento
comunicacional” (CHAVES, 2014, p. 272).
Trouxe aqui os cantos das folias porque eles em muito se assemelham aos pontos
cantados das giras, que também fazem o ritual e constroem as entidades e as fazem presentes
no salão. E os pontos cantados também são compostos por gestos, posturas, objetos, cheiros,

100
O autor assim descreve esse ritual: “ Em torno dos dias de Santos Reis (6 de janeiro), São Sebastião (20 de
janeiro), São José (19 de março), Bom Jesus (6 de agosto), Nossa Senhora Aparecida (12 de outubro), Santa Luzia
(13 de dezembro), entre outros, é comum encontrarmos nas cidades e nas roças, nos beira-rios e nas imensidões
do cerrado grupos pequenos e grandes de cantadores e tocadores realizando um giro ritual em honra do santo.
Geralmente movidos pelo cumprimento de uma promessa de algum devoto, os foliões — como são chamados os
integrantes dessa equipe ritual — se reúnem e, juntos, se deslocam a pé, de ônibus, caminhão ou, de acordo com
o lugar, a cavalo por um território, visitando as casas dos moradores, levando bênçãos, cantos, músicas e danças
em troca de comidas e bebidas, consumidas na visita, assim como donativos (ofertas de alimentos, bebidas,
dinheiro e outros bens), usados na realização da festa do santo” (CHAVES, 2014, p. 251).
124

sabores; que repetidamente fazem/são feitos a/na gira. Um ponto de chamada, que convoca as
entidades ao salão, é repetido até que elas cheguem; e só então passamos a outro ponto. É
preciso que as pessoas batam palmas e repitam algumas vezes a mesma música para que as
entidades as escutem, atendam ao chamado e, finalmente, cheguem ao salão. A repetição de um
enunciado garante sua eficácia e para que a prece seja ouvida e atendida, ela precisa ser dita
mais de uma vez. Veremos, a seguir, o que é repetidamente cantado e feito numa gira de ibejada.

3.1.2 Uma gira de ibejada

Para conhecer as Crianças assisti a uma série de giras, em distintos centros; mas para
apresentar este ritual gostaria de propor uma descrição que compreendesse o que venho
observando nesses últimos anos. Ao descrever as folias de Urucuia (MG), Luzimar Pereira
(2014) aciona duas categorias locais – sistema e fundamento – para apontar as semelhanças e
diferenças entre as folias observadas. O fundamento nos permitiria perceber a unidade entre as
folias, o que faz com que todas as folias sejam apenas uma; enquanto o sistema revelaria o que
é particular a cada folia, apontando para as variações. A partir dessas duas categorias, Pereira
nos mostra como é possível elaborar um modelo que compreenda vários eventos, que abarque
semelhanças e distinções, num esforço em não considerar a festa apenas como um imenso
evento desfragmentado e impossível de ser recomposto. Mais uma vez inspirada por um
trabalho sobre folias, pretendo elaborar uma descrição da gira que me permita analisar esses
eventos a partir de recorrências e não apenas como eventos isolados e distintos entre si. A
seguir, descrevo um modelo de gira de ibejada, composto a partir das giras que observei, e,
quando necessário, pontuo traços característicos e distintivos de alguns centros visitados.
Assim que chegamos ao centro e nos sentamos nos bancos ou cadeiras destinadas à
assistência, é comum vermos avisos recomendando silêncio. Como estamos aqui tratando do
ambiente sonoro das giras, é interessante pensarmos no lugar do silêncio neste ritual. As palmas,
o som do atabaque e o canto são sonoridades incentivadas na gira, mas a conversa, o som do
falatório, não. O silêncio deve preceder a gira, indicando a concentração que nos prepara para
o ritual. Devemos desligar os celulares, evitar conversar sobre assuntos mundanos, nos
concentrarmos naquele espaço, para que possamos entrar na vibração daquele ambiente e das
entidades que em breve serão chamadas. O silêncio marca a entrada no centro e nos prepara
para o ritual, nos afasta da rua e do mundo, para que possamos nos concentrar nas entidades
125

que mais tarde encontraremos. Dificilmente há um silêncio absoluto, mas é perceptível o


esforço em falar mais baixo. Antes das palmas e dos cantos, temos o silêncio.
Logo antes da gira começar, é comum que o/a dirigente da casa se dirija aos assistentes.
Costumam dar avisos de ordem prática – pedem silêncio e concentração, que desliguem os
celulares –, apresentam novos membros da casa, agradecem a presença de todos, dão informes
sobre as próximas atividades e desejam uma boa gira a todos.
O primeiro ponto entoado é para o defumador.

(1) Defuma com as ervas da jurema


Defuma com arruda e guiné (2x)
Alecrim, benjoim e alfazema
Vamos defumar, filhos de fé

(2) Entrei lá na mata e pedi


Que a Jurema desse folhas para mim (2x)
Ela me deu e eu aqui estou
Com as folhas da jurema fazendo defumador (2x)
Eu defumo, eu defumo, vamos defumar
Eu defumo, eu defumo, com as ervas de Oxalá

(3) Para o mal sair e a felicidade entrar (2x)


Tô defumando, estou incensando (2x)
A casa do meu pai oxalá (2x)
Nossa Senhora incensou esse congá (2x)
Eu incenso, eu incenso a nossa casa
Eu incenso, eu incenso esse congá (2x)

(4) Cosme e Damião, a sua banda cheira (2x)


Cheira a cravo, cheira a rosa
Cheira a flor de laranjeira (2x)

Esses são quatro pontos que ouvi várias vezes101, mas a cada gira apenas um ponto de
defumador é entoado, sem acompanhamento de palmas ou atabaque; sendo o quarto ponto
específico para as giras de ibejada, enquanto os demais podem ser entoados nesta e outras
ocasiões. O mesmo ponto é repetido várias vezes, enquanto o defumador passa pelo salão,
envolve os médiuns em sua poderosa fumaça e depois segue para assistência, onde todos devem

101
A internet me ajuda muito a recompor algumas letras que só consegui pegar pela metade e no YouTube consigo
ouvir vários pontos, ter acesso a canais de ogãs e centros que divulgam diversos pontos cantados e ensinam os
tipos de toque. Para que o leitor possa ouvir algum desses pontos, elaborei uma playlist no YouTube, que pode ser
acessada em: https://youtube.com/playlist?list=PL67ew2zPmNeEgxi6iBju_u3tZCupBmFWP. Dentre os vídeos
selecionados, em alguns ouvimos uma versão ligeiramente distinta da que aqui apresento, porque ainda que recorra
à internet, o que vejo em campo segue sendo minha referência; isto é, sigo pensando a partir dos pontos que ouvi
nos centros que visitei e transcrevo aqui as letras que ouvi sendo cantadas nas giras observadas.
126

“pegar” um pouco da fumaça para si – estendemos os braços, com as palmas das mãos voltadas
para cima, em direção ao defumador e depois passamos as mãos sobre a cabeça e o corpo, nos
envolvendo naquela espessa e cheirosa fumaça.
A fumaça vem de dentro do incensário – de metal, com tampa e uma alça –, onde uma
mistura de ervas e carvão é queimada. Como nos dizem os pontos, arruda, guiné, benjoim,
alecrim, alfazema, cravos, rosas e flores de laranjeiras são algumas das ervas e flores secas que
compõem as misturas dos defumadores. As músicas também nos falam da cabocla Jurema,
entidade das matas, de onde vêm essas poderosas ervas e flores. A defumação dá início a gira
preparando o espaço e nossos corpos para o ritual, as ervas dadas pela Jurema têm o poder de
limpar, de dissipar energias negativas – “para o mal sair e a felicidade entrar”. Por isso o
defumador passa por todo o espaço e segue para a rua, levando o mal para fora, e lá fica até que
a brasa apague. O início da gira, além de um som, tem um cheiro.
Quando aqueles que levaram o defumador retornam ao salão, batemos palmas e
dizemos, “salve o defumador!”. Damos as costas para o congá e nos voltamos em direção à
porta.
(5) Lá na beira do caminho
Esse congá tem segurança (2x)
Na porteira tem vigia
à meia-noite o galo canta (2x)

(6) Lá na porteira eu deixei meu sentinela (2x)


Eu deixei seu tranca-rua
Tomando conta da cancela

Seguimos cantando sem bater palmas, e agora saudamos a porteira e seu guardião, exu.
O silêncio e a concentração que são pedidos desde que chegamos, já vão nos afastando da rua
e nos aproximando do momento sagrado do ritual. O defumador nos limpa, carrega as energias
negativas e as leva para a rua. Agora nos voltamos para o portão, esse lugar limítrofe, que separa
a rua do centro, as energias negativas das positivas, o profano do sagrado;102 e saudamos quem
o guarda. Reconhecemos o poder do sentinela, que nos resguarda e protege, quem vigia a
porteira e proíbe a entrada do indesejável. Saudamos exu e a porteira para garantir que, aqui
dentro, estamos limpos, envoltos em energia positiva, prontos para a gira.
Como disse anteriormente, em alguns centros, notadamente aqueles cuja doutrina
umbandista é mais próxima ao espiritismo kardecista, como no CUCA, algumas orações

102
Nas discussões sobre essas distinções espaciais, simbólicas e rituais, sempre ecoam as obras de Van Gennep
(1978 ) e Da Matta (1987).
127

espíritas são enunciadas. Rezamos o pai-nosso, a ave-maria e a oração de São Francisco de


Assis.
(7) Pai nosso, que estais no céu,
Santificado seja o vosso nome!
Venha a nós o vosso Reino!
Seja feita a vossa vontade,
Assim na Terra como no céu!
O pão nosso, de cada dia, dai-nos hoje!
Perdoai as nossas dívidas,
Assim como nós perdoamos
Aos que nos devem.
Perdoai-nos as ofensas
Como nós perdoamos aos que nos ofenderam.
Não nos deixeis cair em tentação,
Mas livrai-nos do mal
Assim seja!

(8) Ave Maria cheia de graça,


O Senhor é convosco.
Bendita sois vós entre as mulheres e
Bendito é o fruto do teu ventre Jesus.
Santa Maria mãe de Jesus.
Rogais por nós os pecadores.
Agora e na hora de nossa passagem.
Assim seja!

(9) Senhor, fazei-me instrumento da Vossa paz.


Onde houver ódio, que eu leve o amor.
Onde houver ofensa, que eu leve o perdão.
Onde houver discórdia, que eu leve a união.
Onde houver dúvidas, que eu leve a fé.
Onde houver erro, que eu leve a verdade.
Onde houver desespero, que eu leve esperança.
Onde houver tristeza, que eu leve alegria.
Onde houver trevas, que eu leve a luz.
Ó Mestre, fazei que eu procure mais:
Consolar que ser consolado;
Compreender que ser compreendido;
Amar que que ser amado.
Pois é dando que se recebe.
É perdoando que se é perdoado.
E é morrendo que se vive para a vida eterna.

Nos centros onde essas orações não são feitas, passamos da saudação da porteira às
louvações, agora acompanhadas por palmas e atabaques, às entidades guias da casa. Há ainda
outra particularidade: nos centros em que a gira das ibejadas é festiva e essas entidades
aparecem apenas uma vez ao ano, antes de chamá-las ao salão, todos os orixás e demais
entidades são saudados e seus pontos cantados são entoados; enquanto que no CUCA, após a
128

saudação aos pretos-velhos, guias da casa, já chamamos as Crianças. Como acima trouxe as
orações, a seguir veremos um ponto de cada orixá, seguindo a ordem em que são saudados.

(10) eu tenho sete espadas pra me defender


eu tenho Ogum em minha companhia (2x)
Pai ogum é meu pai
Pai ogum é meu guia

(11) Quem manda na mata é Oxóssi


Oxóssi é caçador
Oxóssi é caçador
Ouvi meu pai assobiar
Ele mandou chamar
É na Aruanda auê
É na Aruanda auá
Seu pena verde de Umbanda
Ele mandou chamar

(12) Na força das almas vem vibrando


Quando a lua cheia iluminou
E brilha no cemitério
Clareando a cruz maior
Atoto, Atoto, Obaluae
Atoto, Atoto, a cruz maior eu adorei

(13) Marê, Marê, Marê


Marê, Marê
Marê, Marê, Oxumarê
Ele gira no tempo
Ele gira no sol
Na força da natureza
Ele é Oxumarê

(14) Saravá Nanã,


Ô Nanã Buruquê
A sua saia é roxa
O seu telhado é de sapê.

(15) a cachoeira da mamãe oxum


É tão bonita que dá gosto de ver (2x)
As águas rolam, as águas brilham
Mas que beleza minha mãe, que maravilha (2x)

(16) Vento, que ventania


Iansã é nossa mãe
Santa bárbara é nossa guia

(17) E vem, vem, vem e vem beirando o mar


E vem a mãe Sereia para todo o mal levar
Chegou, chegou, chegou a mãe sereia
Para todo o mal levar
E foi , foi, foi e foi beirando o mar
E foi a Mãe Sereia para todo o mal levar
129

(18) ele bradou na aldeia,


Bradou na cachoeira
Em noite de luar
No alto da pedreira
Vai fazer justiça
Pra nos ajudar
Ele é xangô da pedreira
Nasceu na cachoeira
Lá no jurema

Ogum, Oxóssi, Omolu (Obaluaiê), Oxumaré, Nanã, Oxum, Iansã, Iemanjá e Xangô
são louvados com cantos e palmas – e, quando há atabaques, com seus respectivos toques. A
quantidade de pontos entoados varia bastante. Geralmente são cantados dois até que os orixás
comecem a baixar, e quando eles chegam mais alguns pontos são entoados até que partam; e
daí cantamos para o orixá seguinte. Se não há um filho de algum orixá presente, ele não se
manifesta, e são cantados apenas um ou dois pontos para saudá-lo. Omolu, Oxumaré e Nanã,
por exemplo, costumam aparecer menos e ficam pouco tempo, então ouvimos menos pontos
desses orixás; enquanto que Oxum, Ogum e Iansã costumam demorar um pouco mais e para
eles cantamos por mais tempo.
Ogum é orixá guerreiro, e com suas sete espadas nos defende, Oxóssi é o caçador de
Aruanda, Omolu é um orixá mais velho, associado aos cemitérios e às almas. Oxumarê é do
arco-íris, do céu, do tempo, da natureza; enquanto Nanã é da terra, da lama, do sapê. Das
cristalinas águas da cachoeira vem Oxum, Iansã é trazida pela ventania e Iemanjá é a sereia do
mar. Por fim, saudamos Xangô, orixá da justiça que habita a pedreira. Ouvimos e cantamos
sobre os poderes dos orixás, seus lugares de origem, suas cores e enquanto cantamos vemos
como os orixás também aparecem nos corpos. Ogum com seus movimentos de guerra, Oxossi
com seu arco e flecha, Omolu e Nanã, mais velhos, se movimentam pesadamente, encurvados.
Oxum e Iemanjá, fleumáticas, têm movimentos suaves, enquanto a ventania de Iansã pode ser
vista nos enérgicos movimentos de mãos e braços. O corpo que recebe Xangô também se
movimenta energicamente, os braços e mãos que se cruzam e descruzam em frente ao tronco.
Enquanto os corpos dos médiuns se movimentam conforme os orixás que recebem, nós, na
assistência, também não paramos de nos movimentar, num incessante bater das palmas. Depois
de cantar e dançar para todos os orixás, há uma pequena pausa, antes de chamarmos as entidades
para as quais a gira é dedicada.
130

3.2 As Crianças cantadas

No mesmo artigo em que Thiago Oliveira Pinto (1991) afirma a importância da música
nos rituais das religiões afro-brasileiras e descreve as músicas e danças da Iansã, Omolu,
Oxumaré e Oxum, relacionando o temperamento desses orixás com as características rítmicas
dos toques e movimentos, o autor também descreve uma festa de erê em um centro de umbanda
de São Paulo. Segundo ele, nessas ocasiões a música não tem importância e os movimentos, ao
invés de ordenados, coreografados e ritmados, são desarticulados. Mas o autor ressalta que,
guardadas as diferenças dessas expressões, ambas produzem a ordem sagrada.

O meio de expressão mais importante, o emprego (música e dança) parece ser


irrelevante. A única música ouvida é produzida por pequenos assobios e
flautas de plástico trazidos pelos visitantes como presentes para os erês e com
os quais as crianças gostam de brincar. A dramatização permanece assim
restrita aos seus elementos teatrais mais essenciais. (PINTO, 1991, p. 85)

Apesar de concordar com a descrição dos movimentos – realmente numa gira de


ibejada podemos falar menos em dança do que em movimentos desarticulados – , em relação à
música o que pude observar nesses anos é que nas giras de Criança também tem atabaque e
muito ponto cantado. Minha intenção aqui não é inventariar todos os pontos que já ouvi nessas
ocasiões, mas trazer aqueles que nos permitem conhecer um pouco mais dessas entidades.

(19) Papai me mande um balão


Com todas crianças que tem lá no céu
Tem doce papai, tem doce mamãe
Tem doce lá no jardim

(20) 1,2,3,4,5,6
Eu quero ver criança na cabeça de vocês

(21) Voa voa andorinha...voa voa bem ligeiro


Traga Pedrinho e Cosminho para brincar no terreiro
Passando na cachoeira me traga linda rosinha
Passando lá pela praia me traga mariazinha
Voa voa andorinha...voa voa e vai buscar
As crianças para a umbanda
A festa vai começar

(22) Hoje tem alegria, hoje tem alegria


Hoje tem alegria
No dia de hoje
Hoje tem alegria

(23) Quem vem, quem vem lá de tão longe


São os anjinhos que vêm trabalhar
131

Ô dai-me forças pelo amor de Deus, meu pai


Ô dai-me forças para os trabalhos meus

Esses são alguns pontos de chamada das ibejadas. Como vimos anteriormente, os
pontos cantados nos contam da sequência ritual e os pontos são classificados segundo esse
critério; temos, assim, pontos de defumação, de abertura, de chamada, de sotaque (que são
puxados pelas próprias entidades, em situações específicas, quando querem dar algum recado
ou dançar alguma música), descarrego, doutrinação, subida e encerramento (BORGES,
2006). Como o nome já indica, os pontos acima são entoados para chamar as ibejadas ao salão.
Pedimos que papai lá do céu nos mande as Crianças e, para atraí-las, falamos dos doces
no jardim. Fazemos a contagem para que as ibejadas cheguem, e podemos vê-las nas cabeças –
e nos corpos – dos médiuns. Algumas Crianças já são chamadas pelo nome: Pedrinho,
Cosminho, Rosinha, Mariazinha que vêm da cachoeira, da praia e do céu, já que são trazidas
pelas andorinhas, para a festa do terreiro, um dia de alegria. Mas nem sempre as chamamos
para brincar, porque os anjinhos também trabalham. Esse último ponto é entoado nas sessões
de consulta do CUCA, quando as ibejadas são chamadas para dar consultas.
Os pontos são repetidos até que as ibejadas comecem a chegar – ou seja, a chamada é
repetida até que seja escutada e atendida, até que faça efeito. Há uma ordem para essa chegada,
e primeiro vemos as Crianças dos dirigentes do centro. Em alguns casos, essas ibejadas têm até
músicas próprias, como o Pedrinho de Gregório, dirigente do CUCA.

(24) Quem vem escorregando na água azul da cachoeira


Dizendo que é peixinho e gosta de brincadeira (2x)
É o Pedrinho, menino levadinho
Que traz do céu a cor do seu chapeuzinho
Ai iê iê, ai iê iê
Ai que criança linda que mamãe Oxum me deu103

Logo em seguida chegam as ibejadas dos médiuns mais antigos e, por último, vão
chegando as dos mais novos – ou seja, há um ordenamento na descida das entidades que segue
a hierarquia dos médiuns, do mais velho ao meis novo. Enquanto nós, da assistência, cantamos
e batemos palmas, as Crianças quando chegam também batem palmas, nos mandam beijinhos,
pedem a bênção – “bença, tiazinha!”. 104

103
Este ponto é de autoria de Léo Batuke, curimbeiro do CUCA e professor de percussão. Em 2017 entrevistei
Léo Batuke, e sobre nossa conversa falarei mais adiante.
104
Tiazinha e tiozinho são todos aqueles que as Crianças identificam como sendo adultos. São assim chamados
os médiuns não incorporados que auxiliam as ibejadas e também os consulentes.
132

Sobre os lugares dessas Crianças, céu e jardim também são mencionados em outros
pontos, assim como o mato e a Bahia.

(25) Lá no céu tem três estrelas


Todas três em carreirinha
Uma é Cosme e Damião
A outra é Mariazinha

(26) Fui no jardim colher as rosas


E a vovózinha deu-me as rosas mais formosas
Cosme e Damião,
Ô Doum, Crispim e Crispiniano
São os filhos de Ogum

(27) Taca fogo no mato que ele vem

(28) Bahia é terra de dois


É terra de dois irmãos
Governador da Bahia
É São Cosme e São Damião

Nesses pontos vemos como São Cosme e São Damião também são cantados durante
as giras das ibejadas. Os santos estão no céu com as Crianças, são filhos de Ogum e
governadores da Bahia, terra dos santos gêmeos. Dentre esses pontos, o mais agitado é o
terceiro, que é também o mais repetitivo, já que tem apenas um verso. Numa gira ouvi
Jandirinha reclamando ao escutá-lo: “desse eu não gosto”, “fogo no mato não”. Jandirinha, que
também vem do mato, filha do papai Oxóssi, protestava enquanto outras Crianças
aproveitavam o toque mais rápido para pular e correr pelo salão. Em diversos momentos, vemos
como as ibejadas reagem aos pontos cantados, e assim percebemos quais os preferidos de cada
Criança.

(29) Mariazinha da beira da praia


Como é que sacode a saia?
É assim, é assim, é assim
É assim que sacode a saia

Este é um exemplo de um ponto que, quando entoado – e é difícil ter uma gira em que
ele não o seja – é celebrado. As meninas, e não só as Mariazinhas da Beira da Praia, dão
pulinhos, batem palmas e seguram as pontas das saias, mostrando-nos como são rodadas.
Os doces, mencionados desde o início da gira, como atrativos para chamarmos as
ibejadas; também aparecem em diversos outros pontos. Como veremos no último capítulo desta
tese, doce é comida de Criança e numa gira de ibejada não faltam suspiros, balas, pirulitos, bolo
e guaraná. Os doces são ofertados às Crianças, mas quem está na assistência não passa vontade.
133

Com os doces também circulam pedidos, agradecimentos, cuidados e proteção – um saquinho


de bala de coco é dado à Mariazinha, em agradecimento ao nascimento de uma criança na
família, Pedrinho oferece um suspiro ao seu consulente, recomendando que ele faça pedidos
enquanto o doce derrete na boca. A doçura e o poder das Crianças são materializados nos
diversos doces que circulam numa gira. Nos pontos cantados ouvimos sobre o que as Crianças
gostam, acessamos um repertório gastronômico das ibejadas, aprendemos sobre elas. Nesse
sentido, os pontos também são parte da doutrina umbandista, porque nos ensinam sobre as
entidades, seus poderes e o que podemos ofertá-las.

(30) Bolo, pipoca, pirulito e guaraná


Oni ibejada quero ouvir vocês cantar

(31) Na bahia tem um côco,


Côco que faz a cocada
Côco que faz o manjar
Para dar pra ibejada
Doum, doum, doum
Doum, Cosme e Damião
Doum doum, doum
Brinca sentado no chão

(32) Tem bala de coco e peteca


Deixa a ibeijada brincar (2x)
Hoje é dia de festa
Ibejada vem saravá

Como vimos acima, os anjinhos são chamados para comer doces, brincar e trabalhar.

(33) Ele foi doutor, ele foi doutor


Ele me curou
Numa brincadeira ele me curou
Ele me curou
Eram três crianças, eu me lembro bem
o terreiro em festa, alegria tem
Vieram de um a um
Eram Cosme, Damião e Doum

Os trabalhos das Crianças são rápidos, e por isso é preciso ter cuidado com o que se
pede a elas – para não acabar recebendo o que não se quer. Para questões de saúde, dizem que
as Crianças são muito eficazes, e seus doces e brinquedos são instrumentos de cura. Brincadeira
e trabalho se superpõem numa gira de ibejada, já que as Crianças trabalham brincando e na
brincadeira estão trabalhando; e os carrinhos, bonecas, frutas e doces curam, protegem as
crianças – as que já nasceram e aquelas que estão por vir – , ajudam na busca por trabalho,
aliviam as preocupações e renovam a esperança daqueles que enfrentam alguma adversidade.
134

Muitos pontos nos falam sobre as ibejadas, mas são poucos aqueles em que são as
próprias Crianças que falam, e quando o fazem, elas falam para fazer manha e bagunça.

(34) Se não me der guaraná,


Vou chorar, vou chorar (2x)

(35) Titia me deu cocada


Titio me deu guaraná
Gostei foi do caruru
Que a mamãe mandou preparar
Mamãe me deu caruru
Eu comi caruru de mamãe

(36) Eu quero doce, eu quero bala


Eu quero mel pra passar na sua cara

(37) Eu vi Doum na beira d’água


comendo arroz, bebendo água
Eu vi Cosme e Damião na beira d'água
comendo arroz, bebendo água
Eu vi (nome da ibejada) na beira d’água
comendo arroz, bebendo água

Ameaçam chorar se não receberem o que querem, e pedem doces para fazer bagunça
– apesar de não ser algo incentivado, não é algo incomum vermos balas sendo jogadas numa
gira. Além dos doces e guaraná, as Crianças também gostam de caruru, que comem com as
próprias mãos – para completar a lambança dos doces, um pouquinho de dendê. Além de nos
dizer sobre o que as Crianças gostam e quais os seus poderes, vemos que os pontos também
cantam sobre o comportamento dessas entidades.
Depois de comer, brincar, trabalhar, fazer manhas e graças, é chegada a hora de partir.

(38) Andorinha que voa, voa


Leva as crianças pro céu, andorinha (2x)
Voa, voa, andorinha
leva as crianças pro céu, andorinha

A andorinha que trouxe as ibejadas, também as leva de volta ao céu. Mas assim como
fazem manha para ganhar o que querem, as Crianças também reclamam quando chega a hora
de partir. Pedem para ficar um pouco mais, se recusam a ir embora, pedem para cantar outro
ponto. Aos poucos vão aceitando que é hora de partir, e entregam seus brinquedos, bonés,
colares, chupetas, pulseiras; mandam beijinhos para a assistência, se despedem e se deixam
levar pelas andorinhas. Os médiuns voltam a si, e os corpos que minutos atrás estavam
saltitantes agora parecem cansados. Com uma salva de palmas, falamos em coro “salve a
135

ibejada” e a gira é encerrada, com o agradecimento pelo bom andamento dos trabalhos e o
desejo de um bom retorno a todos.
Em resumo, vemos que os pontos cantados apresentam as Crianças – seus nomes,
gostos e comportamentos – , suas relações com outras entidades e lugares, quase sempre com
o uso de diminutivos: papai, anjinhos, titia. Os pontos também nos permitem perceber algumas
distinções: os mais rápidos agradam mais aquelas que são agitadas, enquanto as mais quietinhas
e meigas preferem os pontos mais calmos. Na execução dos pontos cantados, os ogãs também
vão estabelecendo o ritmo do ritual, momentos mais ou menos efusivos, de chegada ou de
partida, para animar as brincadeiras ou embalar os trabalhos.

3.3 O repertório dos pontos cantados: tradição, transmissão e criação

Os pontos que trouxe aqui foram escutados mais de uma vez e em diversos centros,
salvo algumas exceções, como no caso de pontos específicos de entidades da casa; e além dos
aqui transcritos não escutei muitos outros. Léo Batuke, curimbeiro do CUCA, contou-me que
boa parte dos pontos que toca nas casas são, como ele chamou, os tradicionais, que ouve desde
pequeno e aprendeu com outros ogãs; o que nos leva a pensar que há um repertório limitado de
pontos cantados.
Léo Batuke considera o CUCA a sua casa, mas ele também frequenta diversos centros
e terreiros, onde toca em giras e xirês. Léo me contou que é curimbeiro desde pequeno e para
ele a curimba é sustento, espiritual e financeiro – ele recebe para tocar em outras casas, em
eventos e festivais de curimba105, e também pelas aulas que oferece; além de manter um canal
no YouTube, onde divulga seu trabalho e ensina alguns toques e pontos.106 Muitos centros não
têm curimbeiros próprios, e quem toca nas giras são ogãs convidados (ou contratados), sendo
comum que os ogãs rodem por diversas casas.
Em sua dissertação sobre o fazer musical nos centros umbandistas da cidade de São
José dos Campos, Guilherme Davino (2020) chama atenção para a escassez de ogãs em São

105
Sobre os quais falaremos mais adiante.
106
O canal ‘Umbanda vamos falar' “tem como objetivo levar entretenimento aos praticantes e simpatizantes da
umbanda. Tratamos de variados temas sobre a umbanda através de vlogs, sem a pretensão de ensinar numa
linguagem didática, mas sim passar experiências vividas por Leyd [que é esposa de Léo] e Léo em suas trajetórias
na religião, somadas também à forma particular de entender sobre tais questões, sempre respeitando as diferenças
de formas de culto em cada casa, porém frisando a lei primordial da Umbanda, que é a prática de caridade. Outro
conteúdo importante são os diversos pontos cantados que são lançados no canal, no intuito de levar mensagens
espirituais da umbanda” (conforme consta na aba “sobre” na página do YouTube).
136

José dos Campos, “evidenciada por médiuns e cambonos, sem formação de ogã, assumindo a
curimba, e pela procura dos centros umbandistas joseenses por professores de curimba de fora
da cidade” (p. 25). No Rio, como me falou Léo Batuke, já há alguns professores de curimba
que ele considera bons e com fundamento; mas ainda são muitos os centros e terreiros sem
ogã. O toque dos atabaques não pode ser executado por qualquer um – tampouco de qualquer
maneira – , é preciso, além de uma indicação dos guias, espirituais e materiais, saber tocar.
A família de Léo era espírita, como ele me disse, e seus pais e avós sempre
frequentaram a umbanda e, desde os primeiros anos de vida, Léo gostava “da parte mais musical
da gira”. Vendo as giras Léo começou a imitar os movimentos dos curimbeiros, ensaiando em
atabaques imaginários. Antes de realmente tocar num atabaque, ele aprendeu os movimentos
das mãos e braços. Depois deixaram ele se aproximar dos atabaques, e começou a tocar em
algumas sessões internas do centro. Com uns 10, 13 anos começou a tocar nas giras e desde
então ele não parou. Quando este aprendizado baseado em longos anos de observação e
imitação não é possível, recorre-se às aulas de curimba.
Durante sua pesquisa com ogãs de dois centros em Fortaleza, Leonardo Almeida
(2015) registrou os áudios de diversas giras que posteriormente eram editados, fragmentados,
classificados e salvos em arquivos específicos. Quando ia entrevistar os ogãs ele usava as
gravações e os ogãs, ao ouvirem os toques, pediam uma cópia. Começaram a circular entre os
ogãs pen drives com as gravações feitas por Leonardo.

Além de contribuir para compor o banco de dados do ogã, os áudios também


eram utilizados por Francisco como instrumento de autoanálise. Para os ogãs
do Abassá de Omolu e Ilê de Iansã, um bom ogã deve saber o toque a ser
utilizado para cada entidade, bem como a combinação de toques utilizados
para cada linhagem de entidades. Além de ser necessário conhecer os guias
espirituais dos participantes do ritual, é preciso dominar os ritmos, pronunciar
bem a letra do ponto cantado, saber o momento de cantar com mais força
ereduzir a intensidade do toque dos tambores para que seja possível ouvir os
médiuns cantando, entre outros aspectos. A partir daquele momento, tendo em
mãos diversos registros em áudio, seria possível avaliar sua performance em
casa, concentrado em seu escritório, e não dependendo unicamente das críticas
ou sugestões feitas, por exemplo, pelos médiuns do terreiro ou por outros ogãs,
entre outros meios. Caso a memória lhe faltasse, seria possível acessar aos
arquivos. Também não foram raras às vezes em que Francisco fez comentários
sobre os pontos gravados, tomando-os como exemplo para explicar ou
justificar caracteres de sua performance. (ALMEIDA, 2015, p. 71)

O autor discute como seus registros de campo produziram uma nova mídia que passou
a circular entre os ogãs e que impactou nas práticas de seus interlocutores. Os ogãs começaram
137

a usar as gravações para aprender novos toques, decorar letras de pontos, perceber onde estavam
errando; tornaram-se meios de aprendizagem para os ogãs. Muitos curimbeiros
aprendem a tocar ouvindo e vendo gravações de giras, que circulam em pen drives, cds, dvds,
áudios de WhatsApp e vídeos no YouTube. Como já disse, assisti a alguns vídeos para entender
melhor a diferença entre os toques, escutar pontos, ver giras; e em muitos vídeos li comentários
como “ muito obrigado estava com dificuldade,por isso quando eu ia tocar pro Santo os Ogãs
não deixavam agora eu sei tocar”107, “gostaria de agradecer ao canal, sou do candomblé e sou
um ogã suspenso108 faz pouco tempo. Esse canal tem me ajudado muito com as cantigas e
toques, os vídeos são de ótima qualidade!”109. Vemos, portanto, que os ogãs aprendem a tocar
de diversas formas e em distintos meios.
Sobre o que aprendeu e ensina, Léo diz que procura “passar pra frente” todo o seu
repertório, que ele diz ser composto pelos toques e pontos tradicionais, tudo aquilo que ouve,
toca e canta “desde sempre”. Congo, Congo de Ouro, Cabula, Ijexá, Nagô, Barravento são os
toques básicos, sobre os quais são feitas as variações, como os repiques,110 e a partir deles toca-
se para todos os guias e orixás. Não é possível listar dessa forma os pontos cantados, que são
muito mais numerosos e para cada guia e orixá há uma série de pontos a serem cantados.
Quando tento entender melhor o que seriam esses pontos tradicionais, Léo me explica que são
aqueles que escuta nas giras desde pequeno, que todos sabem cantar, “são aqueles que ninguém
estranha quando ouve”, os pontos que você pode cantar em diversas casas – o que nos leva a
pensar que alguns pontos que não podem ser cantados em todas as casas. Em alguns centros
costuma-se cantar algumas músicas populares como se fossem pontos, nas giras de ibejada de
alguns centros, por exemplo, cantam cantigas de roda, mas não há um consenso sobre isso.

107
Comentário publicado no video ‘Aula de atabaque - Ritmo Ijexá (Demonstração)’, publicado em 28 de outubro
de 2014 no canal ‘Umbanda Vamos Falar’, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=38OtDSPFTos&list=PLR1onEysQMxhe6r7sIVePhD0ABj47Umqj&index=
10.

108
Para tornar-se ogã no candomblé é preciso ser suspenso, o que significa ser indicado por algum orixá,
manifestado no corpo de um filho de santo ou por meio de algum oráculo, para ocupar este cargo. Assim como os
adoxus, aqueles que recebem os orixás em seus corpos, os ogãs também passam por um processo ritual e de
reclusão que confirma essa suspensão.
109
Comentário publicado no vídeo ‘Escola de ogans - toque congo de ouro’, publicado em 17 de maio de 2016
no canal ‘Pontos de Umbanda’, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=KuuVHky8I5E
110
“Para além de simplesmente repetir o padrão rítmico de um toque durante toda a duração de um ponto cantado,
se espera de um ogã que execute variações rítmicas e fraseados que se diferenciem do padrão original do toque.
Essas frases e variações rítmicas realizadas no atabaque são chamadas de repiques ou contratempos. Na umbanda
os repiques e contratempos podem preencher a linha rítmica entre as repetições do padrão ou, simplesmente, florear
o toque.” (DAVINO, 2020, p. 23).
138

Tony, dirigente de um centro da baixada fluminense,111 acha que numa gira só se deve cantar
os pontos, porque são músicas específicas das entidades e, portanto, sagradas. No ritual não
haveria espaço para cantigas populares. Léo também diz que evita tocar qualquer coisa que não
seja ponto cantado, e só o faz se o/a dirigente da casa faz um pedido específico.
Outros pontos que não são cantados em quaisquer centros são aqueles compostos para
uma entidade específica. Léo Batuke já compôs vários pontos para diversas entidades, para as
ibejadas já compôs ponto para o Pedrinho da Cachoeira, do dirigente do CUCA, e para a Julinha
da Praia, a ibejada de sua esposa. Para testar um ponto, Léo primeiro toca no CUCA, para ver
como as Crianças reagem, se aprovam a composição feita em sua homenagem. Se as entidades
aprovam – se animam com o ponto, dançam, cantam e batem palmas – Léo incorpora o ponto
ao seu repertório e o toca nas giras dedicadas a essas entidades. Há, portanto, um espaço para
inovações e ampliação do repertório dos pontos cantados, sobretudo nos centros onde há um
curimbeiro compositor.
Sobre os toques, Léo me disse que basicamente todos os pontos de ibejada são
executados a partir de dois toques: samba cabula e congo de ouro112. Ambos são parecidos,
sendo cabula mais simples e o congo de ouro um pouco mais rápido: o samba cabula é tum ta
tum ta tum tum ta ta tum tum tum, enquanto que a do congo de ouro é tum ta ta tum ta ta tum,
como o congo, mas com alguns repiques. Ou seja, mesmo que, por vezes, possa parecer que
estamos durante toda a gira escutando uma mesma música, há uma variação entre os toques
executados.
Numa gira de ibejada, o repertório além de ser limitado e um tanto repetitivo, é – e
como não seria? – infantil. Nas letras acima, vemos que o diminutivo é constantemente usado
(papai, anjinhos, titia, menino levadinho) e para cultuar as Crianças cantamos como se também
fôssemos crianças. Em alguns pontos estamos falando com as Crianças, em outros falamos
delas e em alguns casos são elas que falam conosco. Além de infantil, vemos que os pontos são
descritivos e pragmáticos, nos contam das ibejadas, seus gostos e comportamentos; e também
fazem as ibejadas presentes nas cabeças e corpos dos médiuns, a Mariazinha rodar a saia, a
andorinha levar as Crianças de volta aos céus. Os pontos também doutrinam entidades e

111
Em entrevista realizada em junho de 2017.
112
Outros toques muito executados, para os pontos de preto-velho, exus, boiadeiro e demais entidades, são o
congo, nagô, ijexá, samba e barravento. Além do canal de YouTube do próprio Léo Batuke, ‘Umbanda vamos
falar’ (https://www.youtube.com/c/LeoBatukePontosUmbanda/featured), no canal ‘Pontos de Umbanda’ há uma
playlist ‘escola de ogans’ (disponível em: https://www.youtube.com/playlist?list=PLuC-
i9OgqAOqifqgX7WbrIl3HrzAE8s80) onde podemos ouvir cada tipo de toque.
139

pessoas, médiuns, ogãs e assistência; que tocando e cantando aprendem sobre as entidades e
seus cultos.

3.4 Os pontos cantados para além da gira

Nesta seção, gostaria de falar um pouco sobre a presença dos pontos cantados em
outros espaços e ocasiões que não os centros e giras, para pensarmos na presença das entidades
cultuadas nas religiões afro-brasileiras em outros contextos, e se e como as Crianças aparecem
nesses outros circuitos.
Além de curimbeiro em diversos centros, Léo também marca presença nos festivais
de curimba.113 Em 2012, ele ganhou um dos troféus de um festival bastante expressivo, o
Prêmio Atabaque de Ouro, pelo ponto ‘Vó Toninha, velha mandingueira’, dedicado a uma
preta-velha. Todo ano Léo participa do evento, às vezes defendendo um ponto de sua própria
autoria, outras tocando junto com outros amigos.
A primeira edição do Prêmio Atabaque de Ouro foi realizada em 2005. Idealizado por
Marcelo Fritz114, o evento é organizado pelo Instituto Cultural de Apoio e Pesquisa às Tradições
Afro (ICAPRA), também fundado por Fritz, em 1999.115 Anunciado como ‘o maior encontro
de curimba do Brasil’, o Prêmio Atabaque de Ouro atualmente reúne curimbeiros de todo o
país.116 Com o sucesso do evento, já em sua segunda edição o prêmio contou com participantes
de outros estados e atualmente é um concurso entre campeões regionais de diversos estados -

113
Como o nome diz, estes festivais dedicam-se à divulgação e premiação de curimbeiros e curimbas, e, de
maneira mais ampla, promovem a cultura religiosa afro-brasileira, seus agentes e produtos.
114
O Babalorixá Marcelo Fritz de Oxaguiã, dirigente do Àṣẹ Ogbojú Fire Ìmò ̣ Ògún Ọya, é uma figura conhecida,
sobretudo pelo povo de axé, e, além de conduzir programas de rádio e um canal no YouTube, assume também
cargos políticos. Já atuou na prefeitura de São João do Meriti, assumindo a pasta de combate à Intolerância
Religiosa no município, onde já foram noticiados diversos casos de ataques a centros e terreiros#; e também já
concorreu nas eleições estaduais e municipais, para os cargos de deputado e vereador.
115
Sediado em São João do Meriti, na baixada fluminense, região metropolitana do Rio de Janeiro, O ICAPRA,
além de promover diversos eventos, tem, desde 2006, uma publicação própria, o “Jornal ICAPRA”. Com
distribuição gratuita, o jornal mensal circula por diversas lojas de artigos religiosos, já que muitas de suas páginas
são tomadas por anúncios desses estabelecimentos, e contém notícias sobre eventos que promovem e discutem as
religiões afro-brasileiras e divulga de festividades realizadas em centros e terreiros do Rio de Janeiro.
116
Apesar da atuação de Fritz e de mais de uma década do Prêmio Atabaque de Ouro e do Jornal ICAPRA, é
bastante difícil encontrar informações sobre a publicação e o evento - o instituto não tem, por exemplo, um site
próprio. Pela internet, encontramos informações dispersas, como vídeos no YouTube, postados pelos próprios
participantes do concurso, alguns exemplares digitalizados do jornal e notícias, geralmente publicadas pelo Jornal
Extra, sobre o evento e sobre o próprio Marcelo Fritz. A partir dessas fontes, tento falar um pouco mais sobre o
Atabaque de Ouro.
140

na última edição, realizada em agosto de 2019, o evento reuniu os vencedores de concursos do


Rio de Janeiro, São Paulo, Mato Grosso, Rio Grande do Sul e Paraná. Cada edição do evento,
considerado o Oscar da Curimba117, presta uma homenagem a uma personalidade do povo de
axé, tem um padrinho ou madrinha – já ocuparam esse posto Alcione, Elymar Santos, Leci
Brandão, Dona Ivone Lara – e chega a reunir até cinco mil pessoas. As categorias premiadas
são: torcida, coreografia, intérprete, curimbeiro, figurino, festival, voz veterana, revelação,
melhor letra e campeão dos campeões. No evento, é realizada também uma feira, onde são
expostos e comercializados diversos produtos - cd’s e dvd’s, canecas, camisetas, tecidos e
roupas, instrumentos etc.
Na edição de setembro de 2019 do Jornal ICAPRA, no artigo intitulado “glamour,
emoção e coroação nos 20 anos do ICAPRA e na 15ª edição do Prêmio Atabaque de Ouro” 118
temos alguns dados que nos dão uma noção do tamanho do evento: público de três mil pessoas,
elenco de 300 integrantes (intérpretes, compositores, bailarinos, curimbeiros, maquiadores), 50
expositores na feira. Em vídeos disponíveis na plataforma YouTube, podemos ver as
apresentações, que chegam a reunir 30 pessoas no palco: além dos curimbeiros e do/a intérprete,
há um grupo de dançarinos que completam a performance; todos com figurinos que fazem
referência à entidade para qual o ponto é cantado. Estamos, portanto, falando de um evento de
grandes proporções, que reúne umbandistas, candomblecistas e músicos de diversos estados do
país.
No evento, a maior parte dos pontos são dedicados a exus, pomba-giras e pretos-
velhos119. Já receberam o prêmio de melhor letra pontos compostos para Maria Farrapo, Maria
Padilha, Rosa Negra, Caboclo Gira Mundo, Oxum. Léo Batuke lembra que já teve um ponto de
Criança no prêmio, não se recorda o ano, mas tem certeza que não saiu vencedor. Na internet,
vi várias fotos e vídeos de apresentações onde diversas entidades e orixás estavam presentes no

117
https://extra.globo.com/noticias/rio/sem-apoio-da-prefeitura-do-rio-trofeu-atabaque-de-ouro-volta-para-
baixada-
23076215.html#:~:text=Ricardo%20de%20Ogum%2C%20de%20Quintino%2C%20no%20Rio%2C%20ficou%
20com,pessoas%20%C3%A0%20quadra%20da%20Tradi%C3%A7%C3%A3o
118
Edição digitalizada disponível em: https://issuu.com/viviana.assuncao/docs/jornal_icapra_119.
119
Tentei recompor os pontos apresentados no evento a partir dos cd’s de algumas edições do prêmio e dos vídeos
encontrados no YouTube pela chave de busca “atabaque de ouro”, mas é difícil conseguir informações sobre as
edições passadas. Não há um canal que reúna informações sobre todas as edições. Alguns grupos que se apresentam
no festival possuem páginas em redes sociais onde publicam vídeos de suas apresentações, o que nos permite saber
de algum ponto apresentado em determinado ano, mas não dos vencedores da edição.
141

palco, e encontrei apenas um registro de um ponto dedicado às Crianças: a apresentação de


Márcio Barra-Vento, em 2016, que cantou o ponto ‘Brincadeira de Roda’.120
Márcio subiu ao palco vestindo um macacão azul e um boné verde, perguntando à
plateia, “quem quer bala?”, enquanto jogava balas do palco. “A ibejada também é um espírito
de luz, tiozinho”, disse ele logo antes de começar a cantar, inicialmente sem acompanhamento
dos atabaques.

(39) Tem criança na roda


Tem criança na gira
Nós vamos festejar
Hoje tem alegria (2x)
Pode brincar menino
Pode brincar, menina
Só não pode brigar
Hoje é só alegria
Vamos brincar de ciranda
Vamos pular amarelinha
Inocência e amor, é o que se irradia (2x)
Pega pra mim um docinho
Me dá um guaraná
Hoje é dia de festa
Vem criançada brincar

Na segunda vez, começam os atabaques e entram os dançarinos. As mulheres vestiam


bata e saia, com uma armação embaixo, e os meninos macacão, camiseta e boné; todos
descalços. Traziam consigo bolas grandes e algumas foram jogadas para a plateia. As mulheres
estavam com os cabelos presos em maria-chiquinha e traziam bonecas, com as quais brincavam
durante a apresentação. Não havia coreografia, eles ficavam a correr e pular pelo palco, às vezes
brincando uns com os outros, jogando bola. Durante toda a apresentação, jogavam balas e
pirulitos para a plateia, que não parecia acompanhar a animação de quem estava no palco - não
é possível ouvir muita gente cantando ou batendo palmas, o que é bastante perceptível em outras
apresentações que vi. Em comparação a outras apresentações, os figurinos também eram bem
mais simples, e se em muitos casos percebemos que há uma coreografia, que começa mais
simples até chegar ao ápice; na apresentação de Márcio Barra-Vento o ritmo era o mesmo, não
havendo nenhum momento de destaque.
Nesse prêmio, os grupos que se apresentam e o público parecem ser, majoritariamente,
formados por adeptos das religiões afro-brasileiras. No palco e na plateia estão médiuns,
dirigentes, pais e mães de santo, ogãs e curimbeiros que têm intimidade com as entidades para

120
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uaBW-nikGvQ
142

quem cantam e dançam. Ainda que não estejamos falando em um momento estritamente ritual,
circunscrito ao espaço do centro ou terreiro, ainda estamos entre um público religioso. E como
são cantadas e vistas essas entidades por quem não é de axé, do santo?
Considerando que símbolos, valores e artefatos comumentes associados à esfera
religiosa também atuam e transformam as esferas político-sociais (BIRMAN, 2003), gostaria
de pensar em como os pontos cantados foram, em determinados contextos, considerados não
apenas como música de centro e terreiro, mas como expressão da cultura popular brasileira.
Para falar em como determinados toques, orixás e entidades foram aparecendo em discos,
programas de rádio e televisão, trago dois personagens que me ajudarão a falar de momentos
em que a música, as danças, as roupas e as comidas dos terreiros e centros se conformaram
como elementos da cultura brasileira e atingiram um público que não se restringia ao povo de
axé.
No período que convencionou-se chamar de Estado Novo, o governo buscava
estabelecer uma identidade genuinamente nacional, a partir da valorização e promoção de
diversas práticas culturais que invocassem um sentimento de unidade nacional. À época, o rádio
conformou-se como um importante meio para propagar e divulgar tudo aquilo que manifestasse
essa brasilidade. As religiosidades afro-brasileiras, ora vistas como exemplares dessa
identidade nacional ora consideradas amostras do atraso cultural, estavam presentes em
diversos programas de rádio, jornais e discos na primeira metade do século XX, sobretudo a
partir de 1930. Nesta época, J.B de Carvalho era uma figura de destaque.
João Paulo Batista de Carvalho (1901-1979), também conhecido como o batuqueiro
famoso, gravou, junto ao conjunto Tupy, cerca de 70 discos, muitos deles totalmente dedicados
aos pontos cantados.

Caboclo Vira Mundo e Ogum Rompe-Mato eram as entidades que J. B. de


Carvalho cultuava na umbanda. Antes de se converter a esta religião, no
entanto, o cantor fora policial e dizia ter participado de muitas diligências
feitas aos terreiros. Numa delas teria sido baleado e, a partir desse episódio,
passado a sentir sensações pelo corpo, sinais de sua mediunidade, que foi,
então, desenvolvida num terreiro de umbanda da Praça Onze, no Rio de
Janeiro. Destas entidades afirmava ter recebido a incumbência de ser o porta
voz da umbanda, papel que desempenhava por meio da música. Durante seu
programa de rádio algumas pessoas no auditório entravam em transe em razão
das orações e dos pontos de umbanda cantados. Por este motivo, o cantor
chegou a ser preso. Nas décadas de 1930 e 1940, J. B. de Carvalho gravou
grandes sucessos de carnaval, mas foram os batuques de terreiro que
marcaram sua carreira. [...] Ainda que passível de polêmicas, o registro destes
gêneros demonstra o reconhecimento e a importância que vinham assumindo
como estilos próprios no mercado fonográfico a partir dos anos de 1930.
(AMARAL & SILVA, 2006, p. 197)
143

Até os anos 1970, J.B de Carvalho lançou diversos singles que faziam referência às
entidades da umbanda – ‘Caboclo do Mato’ (1937), ‘Ponto do caboclo Rompe Mato’ (1940),
‘Pai Xangô/São Jorge Guerreiro’ (1942), ‘Salve Ogum’ (1952), ‘Mãe d'água’ (1953), ‘Pai
Xangô’ (1955)121 – muitos deles depois relançados em LPs, como os intitulados ‘Umbanda’
(1955), ‘Melodias da Umbanda’ (1960), ‘Macumba, Canjerê, Candomblé’ (1970), ‘J.B de
Carvalho e seu terreiro’ (1970), ‘E Parrei Iansã’ (1974) e ‘Na gira dos exus’ (1974).122 São
diversas as músicas dedicadas aos caboclos, São Jorge, Ogum, Iansã, exus, sendo alguns pontos
cantados como os executados nas cerimônias dos centros e terreiros, e outras versões
estilizadas. Nenhum de seus discos foi dedicado exclusivamente às Crianças, mas apesar de não
aparecerem logo no título, elas foram cantadas em algumas faixas.

(40) Papai mandou as criancinhas


Apanhar as flores no jardim
Lá tem rosas para Cosme e Damião
Pra Crispim e Crispiniano tem jasmim
Hoje tem alegria no céu
Também na terra e no mar
Com as flores do jardim
Vamos todos festejar
(Cosme e Damião, J. B. de Carvalho e Rossini Pacheco, 1955)

(41) Doum, onde tá Cosme e Damião, Doum?


Doum, onde tá Crispiniano e Crispim?
Tá tá tá no terreiro
Tá tá tá no terreiro
Forma a roda e deixa as crianças saravá
Doum, onde tá Mariazinha , Doum?
Doum, onde tá Paulinho, Doum?
Tá tá tá no terreiro
Tá tá tá no terreiro
Forma a roda e deixa as crianças saravá
(J. B. de Carvalho, 1960)

(42) Andorinha que voa, voa andorinha


Andorinha de Nossa Senhora, andorinha
voa, voa, voa andorinha
Pede paz pra nossas crianças, andorinha
voa, voa, voa andorinha
Saúde para nossos filhinhos, andorinha
voa, voa, andorinha
Dinheiro que estou precisando, andorinha
121
Discografia de J.B. de Carvalho disponível em: http://dicionariompb.com.br/j-b-de-carvalho/discografia
122
Para ver outros álbuns e informações sobre faixas e ano de lançamento, ver:
https://www.discogs.com/pt_BR/artist/3699953-J-B-De-Carvalho?limit=50&page=1. Alguns discos estão
disponíveis no YouTube, publicados em diversos canais, facilmente encontrados quando buscamos por “J.B. de
Carvalho”.
144

voa, voa, voa andorinha


Tira olho de gente ruim, andorinha
voa, voa, andorinha
Traz sorte de felicidade
saúde pra quem tá doente
(Aniversário das Crianças, J.B. de Carvalho, 1970)

Pelos relatos de pessoas que incorporavam as entidades durante os programas do J.B


de Carvalho, temos uma ideia de que o famoso batuqueiro cantava os pontos tais quais eram
entoados nos terreiros, invocando ali no estúdio as entidades que eram chamadas ao salão. Mas
nos discos que ouvi não reconheci nenhum ponto, o que nos leva a pensar na tradição
mencionada por Léo Batuke – os pontos que chamam e embalam as brincadeiras das Crianças
hoje são cantados desde quando? Não há exatamente uma resposta para essa pergunta, mas é
interessante para pensarmos nas estabilizações e inovações nesses rituais, questão que também
se apresentará quando falarmos, nos capítulos seguintes, nas imagens e roupas das Crianças.
Nas décadas de 1970 e 1980, depois de um período marcado por boleros e uma forte
influência da música norte-americana, as religiões afro-brasileiras voltaram a ser tematizadas,
e além de aparecem em músicas também marcaram presença em novelas, filmes e enredos de
escolas de samba (AMARAL & SILVA, 2006).123 Um discurso que, assim como na década de
1930, não estava presente só nos meios de comunicação, mas que era promovido pelo próprio
Estado – e de maneira bastante similar.

É por meios do mecanismo de reinterpretação que o Estado, através de seus


intelectuais, se apropria das práticas populares para apresentá-las como
expressão da cultura nacional. O candomblé, o carnaval, as reisadas, etc, são
desta forma, apropriados pelo discurso do Estado, que passa a considerá-los
como manifestação de brasilidade. (ORTIZ, 1985, p. 140)

As referências às religiões afro-brasileiras pareciam agora mais estilizadas. Os pontos


cantados não eram gravados tal qual eram executados nos rituais, mas apareciam como
referências para diversas músicas, que citavam orixás, entidades, práticas, comidas e lugares –
feitiço, ebó, encruzilhada, caruru, acarajé –, além das referências estéticas que marcavam capas
de discos, apresentações e figurinos. Entre as personagens deste movimento, que buscava

123
Cumpre ressaltar que, desde a década de 1960, a temática racial já era apresentada nos desfiles das escolas de
samba, quando “a indumentária que representava personagens negros nos desfiles deixou de ser vinculada à figura
do escravo para remeter ao poder vinculado à sua origem africana” (BÁRTOLO, 2018, p. 175). Mas entre 70 e 80
o discurso foi mais uma vez reconfigurado, agora mais relacionado à valorização das culturas africanas. (Cf.
SIMAS & FABATO, 2015; CAVALCANTI, 2015).
145

incorporar elementos das religiões afro-brasileira às letras, performances e figurinos, podemos


mencionar Clara Nunes, como caso paradigmático deste processo.124

Clara Nunes acabou por transladar para o universo do show business,


elementos significativos da umbanda e do candomblé. Ela tornou público o
uso religioso de guias e pulseiras, objetos utilizados na religião, elementos
performáticos contidos nos rituais religiosos (danças dos orixás, gestos e
postura corporal usados em momentos específicos dos rituais etc.), entre
outros. (BAKKE, 2007, p. 93)

Em seus discos, performances e entrevistas, Clara Nunes estava sempre de branco,


com roupas que lembravam àquelas usadas nos centros e terreiros, cantava e saudava orixás e
entidades, reproduzia os movimentos corporais das danças rituais. Com seu sucesso, Iansã,
Ogum, Iemanjá, Xangô, Logun Edé, Pai Joaquim, Vovó Maria eram cantados por muitas
pessoas que não eram de axé, ou mal conheciam as religiões e rituais afro-brasileiros sobre os
quais cantavam. Mas mesmo nos tempos em que caboclos, exus, pombagiras e orixás eram
cantados e dançados em rodas de samba, na Sapucaí e em programas de rádio e televisão; as
ibejadas eram pouco citadas.
A presença das Crianças em espaços não religiosos não difere muito do que
percebemos nos próprios centros e terreiros. Comumente, os rituais dedicados às ibejadas
acontecem uma vez ao ano e em muitos terreiros os erês só chegam ao final das festas, quando
os convidados já partiram e acabam sendo vistos só pelos filhos da casa. Ao que parece, para
conhecer as Crianças é preciso ter uma relação mais íntima com esses cultos – dificilmente o
primeiro contato de uma pessoa com a umbanda, por exemplo, será numa gira de ibejada. Se
alguns orixás e entidades são cantados e dançados em palcos e praças, com holofotes e grande
produção, por cantores e cantoras de renome acompanhados de um grande público; as Crianças
têm uma presença discreta e mais restrita aos limites dos espaços religiosos.
Minha intenção nesta tese é, justamente, dar visibilidade a essas Crianças, cuja alegria
e doçura se apresentam em músicas, imagens, roupas, brinquedos e doces; e pensar como as
ibejadas sacralizam uma determinada concepção de infância – doce, inocente, alegre, pura –
que ultrapassa os limites dos centros e terreiros, já que as Crianças do céu em muito se parecem
com as crianças da terra.

124
Para uma análise mais detalhada, com referência a diversos outros artistas cujas composições e repertório
ilustram esse movimento, ver AMARAL & SILVA, 2006.
146

4. As imagens: uma iconografia das ibejadas

Como vimos, em alguns casos o termo erê é usado em sua acepção mais ampla. Se em
conversas com médiuns e dirigentes ouço que é preciso saber as diferenças entre as entidades
infantis da umbanda e do candomblé, nas prateleiras e vitrines das lojas de artigos religiosos,
as imagens, velas, fios de conta, ibás125 e roupas são anunciados, genericamente, como de
erê126. Neste capítulo, nos deteremos sobre uma das modalidades desses artigos religiosos: as
imagens.
Assim como fiz em relação aos pontos cantados, para compreender as imagens foi
preciso ir além dos centros de umbanda e, por isso, visitei lojas de artigos religiosos e uma
fábrica de imagens, onde pude observar as condições de produção e circulação desses objetos
que materializam e apresentam as Crianças – e, assim, vemos como a umbanda e suas entidades
não se encerram em giras, festas e consultas; mas se espraia por um universo mais amplo.
Para pensar a vida dessas imagens, sem me prender à ilusão de uma sucessão
cronológica linear, de início, meio e fim (BOURDIEU, 2002); recorro à ideia de cadeia
operatória.127 Schlanger (2005) nos dá um breve histórico deste conceito, considerando-o
enquanto abordagem prática e conceitual, e defende que

A abordagem da cadeia operatória pode contribuir para os estudos


contemporâneos da cultura material, equilibrando principalmente o foco em
considerações puramente ideais e simbólicas, com o reconhecimento dos
aspectos materiais mais mundanos das atividades cotidianas. Além disso,
como as cadeias operatórias são essencialmente não lineares e entrelaçadas,
seu estudo pode ajudar a superar a divisão entre produção e consumo, a
apreciar as histórias de vida que se cruzam com os objetos em movimento,
enquanto realizações simultaneamente sociais, técnicas e simbólicas.
(SCHLANGER, 2005, p. 20-1). 128

125
Trata-se de um conjunto de peças, de louça ou barro, que abrigam assentamentos dos orixás. Geralmente é
composto por uma bacia que contém uma sopeira, oito pratos pequenos e quartinhas. Os ibás costumam ter cores
e detalhes alusivos a entidade que abriga: o ibá de Oxum tem detalhes em dourado, o de Iansã é adornado com
borboletas. O ibá de erê costuma ser de barro e colorido.
126
Ao longo desta tese, a formatação em itálico, além de indicar os vocábulos estrangeiros, ressalta categorias,
expressões ou conceitos propostos por mim ou por outros autores. O grifo em negrito destaca expressões e
categorias próprias do universo pesquisado. As aspas simples indicam os títulos das obras referidas e as aspas
duplas demarcam trechos de citações incorporadas ao texto.

127
Além da noção de vida social (APPADURAI, 1990; KOPYTOFF, 1990), como já dito na primeira parte desta
tese.

128
No original, “ The chaîne opératoire approach can thus contribute to contemporary material culture studies,
notably by balancing a focus on purely ideational and symbolic considerations with the recognition of the more
mundane material aspects of everyday undertakings. Moreover, as chaînes opératoires are essentially ‘non-linear’
147

As vidas das imagens podem também ser pensadas a partir de uma cadeia operatória,
na qual se inserem diversos lugares, materiais e pessoas. Entre as prateleiras das lojas, fábrica,
altares e congás129, as imagens vão assumindo diversas formas e cores, são precificadas,
adornadas e nomeadas; em certa medida, podem ser várias as vidas de uma imagem.
Poderíamos elaborar essa biografia a partir do (suposto) início, o nascimento das imagens; mas
opto aqui por retomar a ordem estabelecida por minha etnografia, e parto das lojas para chegar
aos altares e congás, passando pela fábrica – mas, antes disso, gostaria de apresentar uma
questão que atravessa este capítulo.

4.1 Uma iconografia dos cultos afro-brasileiros

Para tratar das imagens de erê, falarei de santas e citarei autores que se dedicam a temas
relacionados ao culto e iconografia cristãos; o que revela a riqueza deste campo de estudos e a
falta de referências sobre as imagens da umbanda e, de forma mais ampla, sobre as coisas que
fazem e são feitas nos cultos afro-brasileiros. Mas ainda que as coisas não sejam as mesmas,
algumas questões são pertinentes e conexões podem ser estabelecidas, sem que, no entanto, não
nos esqueçamos do que é distinto.
Nina Rodrigues (2006[1900]) já atentava para a centralidade das coisas nos cultos, e
denominava de animismo fetichista o culto às pedras, árvores e objetos; e Bastide descrevia o
candomblé baiano enquanto conjunto de homens, coisas e orixás (1958, p. 70). Ainda que,
desde os primeiros estudos, se reconheça a centralidade das coisas nesses cultos, essa cultura
material ainda é pouco abordada e, quando o é, não são as coisas em si que estão no centro da
análise.
[...] essas explicações buscariam algo “externo” aos próprios materiais e suas
forças para explicar as relações que lhes são constitutivas. Nessa perspectiva,
as ferramentas de orixás seriam meras “substâncias materiais” que
representariam algo, seja a força dos orixás, a ancestralidade africana, o
sincretismo, a sociedade etc. O problema dessa abordagem, tão comum nos
estudos sobre a cultura material das religiões de matriz africana no Brasil , é
que ela deixa de lado o que as próprias pessoas dizem e fazem com os
materiais e suas relações, tratando-as ora como ingênuas, por acreditarem estar
adorando pedras ou ferros, ora como ignorantes, por não saberem o suposto

and dovetailing, their study can help overcome the divide between production and consumption, and appreciate
the intersecting life-histories of objects-in- motion as simultaneously social, technical and symbolic
accomplishments”.
129
O congá é o altar de um centro de umbanda, onde são dispostas as imagens das diversas entidades cultuadas,
bem como velas, flores, incensos e demais coisas que também fazem o culto. Neste lugar, concentram-se as
energias mobilizadas na prática religiosa, bem como as apresentações das entidades que ali são reverenciadas.
148

“real significado de suas insígnias”. Voltamos, assim, ao eterno problema do


fetichismo. (MARQUES, 2018, p. 225)

Se, por um lado, relacionar santos e orixás, catolicismo e umbanda pode ser retornar
alguns passos atrás na discussão sobre religiões afro-brasileiras; recorrer à bibliografia sobre
iconografia cristã pode ser uma forma de dar luz à novas questões sobre imagens,
assentamentos, ferramentas, louças e pedras de entidades, espíritos, orixás, voduns, inquices e
demais entes e coisas que fazem e são feitos nos cultos afro-brasileiros. Deixar de buscar
origens e supor relações com outras imagens, objetos e representações já existentes para refletir
sobre como e quem fazem essas coisas, como são classificadas e manipuladas, seus contextos
de uso, os lugares por onde circulam; enfim, reconhecer que essas coisas têm vidas próprias aos
cultos por onde circulam e atuam.
Pensar sobre as imagens – de santos ou outras deidades – é também refletir sobre as
interações que as pessoas têm com essas apresentações.

As observações feitas na igreja de Santa Rita, no Rio de Janeiro, reforçam o


que a história do culto aos santos, com suas variações, tem mostrado desde
seus primórdios: que os devotos tratam as imagens e também as relíquias
como se fossem pessoas, e não como algo que evocaria ou representaria os
santos, mas que os “presentificariam”. No entanto, os devotos lidam com uma
concepção de presença que é ao mesmo tempo simples e complexa: para uns,
é uma imagem na qual estaria Santa Rita, mas, na visão de outros, é uma não
imagem, “como se fosse” pessoa. Sob esse aspecto, o termo “como se”
apresenta-se como um recurso de linguagem que permite marcar a
ambiguidade de não ser, mas parecer ser, ao mesmo tempo em que nos remete
para a ambivalência de ser e não ser. […] Os devotos, padres, entre outras
pessoas, dão significados múltiplos, ambivalentes e às vezes ambíguos para
as imagens de Santa Rita, mostrando que este processo de personalização é
complexo e aciona jogos metafóricos e/ou metonímicos, evidenciando que os
processos de produção simbólica envolvem a utilização de figuras de
linguagem, com as quais tais processos se articulam, complexificando-se.
(LIMA, 2015, p. 143)

As classificações e predileções dos devotos, as maneiras pelas quais eles chamam e


tocam nas imagens de Santa Rita, permitiram a Lima complexificar a noção de presença dos
santos nas imagens. Estas são Santa Rita, ao mesmo tempo que são como se fossem; ou seja,
são sem sê-lo. Nas metáforas e metonímias acionadas pelos devotos ao falarem sobre a santa e
de suas relações com ela e suas imagens, percebe-se como essa personalização é complexa e a
concepção de presença é ambígua. Aqui, busco compreender como as Crianças vão, em
sucessivas etapas, se apresentando nas imagens; como cores e materiais vão se sobrepondo a
brancura do gesso e construindo e particularizando uma ibejada. Na loja, uma imagem
149

anunciada como “de erê” não apresenta uma ibejada específica. O processo de personalização
de uma imagem envolve uma série de critérios e cuidados, gestos e coisas que vão construindo
ali a presença de uma Criança.
Acionando as noções de vida social das coisas (APPADURAI, 1990; KOPYTOFF,
1990) e cadeia operatória (SCHLANGER, 2005), busco ampliar os campos de observação,
indo à fábrica e as lojas, para compreender não só como médiuns escolhem e interagem com as
imagens de suas Crianças, mas também como quem fabrica e vende classifica e interage com
essas coisas. Assim poderemos ver que as imagens também são arte, trabalho, mercadoria.
Essas noções também me permitiram apreender a materialidade e os materiais dessas imagens:
gesso, fibra de vidro, tinta, pedrarias, conchinhas, carrinhos e estilingues também constroem a
realidade nas e a partir das imagens que nos apresentam as Crianças.
Ao discutir arte e agência, uma das proposições de Gell (2018) é a de que obras de arte
são fonte e alvo de agência social. Uma discussão reveladora deste viés das imagens, ícones e
outras obras de arte seria aquela sobre idolatria, pois “em nenhum outro lugar imagens são mais
obviamente tratadas como pessoas humanas do que no contexto de culto e cerimônia” (ibid., p.
155). Dentre os vários exemplos aos quais o autor recorre para desenvolver seu argumento, é
citada a escultura Tangaroa (chamado de A’a em rurutu), das ilhas Austrais.

Um dos atributos mais impactantes de tal escultura é o modo como as


características do deus são representadas por pequenas figuras que repetem,
em miniatura, a forma integral da divindade. O deus faz brotar pequenos
deuses por toda sua superfície: matematicamente, trata-se de um fenômeno
semelhante ao tipo de figura conhecida como “fractal”, uma figura que
demonstra a propriedade da autossimilaridade em diferentes escalas de
ampliação/miniaturização. [...] A principal particularidade do A’a é o modo
explícito pelo qual essa imagem de uma divindade “singular” representa o
deus como um aglomerado de relações entre homúnculos (literalmente). Ao
fazê-lo, o A’a neutraliza o contraste entre um e muitos, e também entre interior
e exterior. [...] Como tal, ela espelha tanto a noção de personitude como de
agregado de relações externas. [...] Não podemos individuar o A’a do mesmo
modo que costumamos individuar pessoas - isto é, por meio da identificação
das fronteiras da pessoa com as fronteiras espaciais de seu corpo - porque o
A’a não possui tais fronteiras. (GELL, 2018, p. 211-214)

Gell ainda evoca obras da Antiga Grécia e a Idade Média para discutir a tensão que
algumas imagens apresentam entre interior e exterior, uni e multiplicidade. Mas achei que o
exemplo polinésio e sua fractalidade melhor se relacionavam às discussões dessa tese. Em uma
só imagem é possível perceber as relações que as ibejadas mantêm com distintos tempos e
espaços, e como cada elemento da imagem vai construindo a singularidade de uma Criança. O
anacronismo dessas imagens, que nos levam a décadas passadas, quando, possivelmente,
150

viveram os espíritos das ibejadas. As flores, grama, peixes, pedras e cascatas que nos falam de
lugares sagrados, de origem e destino dessas Crianças. Uma mesma estatueta de gesso
policromado faz referência a várias ibejadas e ainda assim pode também ser a apresentação de
uma Criança que é única.
Mas além disso, a presença das Crianças também se espalha em outros materiais, em
outras coisas, cores, sabores e gestos. Nas roupas, acessórios, corpos, brinquedos e doces
também estão as ibejadas. Cada uma dessas mídias como parte deste agregado que presentifica
as Crianças. As imagens são, portanto, parte da forma sensorial (MEYER, 2019, p. 190) que
também presentifica as Crianças em roupas, corpos, gestos, brinquedos e doces. As ibejadas se
distribuem em diversas mídias nas e através das quais elas são construídas e presentificadas.
Nessa forma sensorial as fronteiras não são claras e a distribuição é também um espalhamento,
que nos permite acessar as Crianças por/em vários sentidos (significados e sensações).

4.2 As imagens de erê

Nas lojas, as imagens são expostas junto a diversos outros artigos: velas, incensos,
colares de contas, alguidares, quartinhas, búzios, ferramentas de orixás, livros, cds, atabaques,
agogôs, etc; que geralmente são agrupados por tipo ou material – prateleiras com as imagens
de entidades e santos, os fios de contas costumam ser expostos pendendo em varais sobre os
balcões, onde também ficam miudezas, como búzios, brincos e colares, defumadores, incensos;
artigos de barro em estantes mais próximas ao chão, onde ficam os pesados alguidares; estantes
com cds e livros. Periodicamente essas coisas vão sendo rearranjadas pelas lojas, os artigos
relacionados com os santos, orixás e entidades celebrados no mês saem das prateleiras e ganham
destaque. Quando falamos das Crianças e de suas coisas, esse movimento se dá entre agosto e
setembro.
Nesses meses, nas vitrines ou dentro mesmo das lojas, são expostas imagens de Crianças
e dos santos gêmeos, arranjadas como se estivessem num altar; ou melhor, as vitrines e
expositores transformam-se em uma espécie de altar dedicado a Cosme, Damião, Doum e as
Crianças. Há pratinhos ou pequenos alguidares com balas, pirulitos, cocada, suspiro e maria
mole; copinhos de guaraná, velas e fios de conta rosa e azul, coloridos ibás de erê e, por vezes,
alguns brinquedos, como bolas de gude e estilingues.
As imagens variam entre 15, 30, 40 e 60 centímetros, sendo as de um metro mais raras.
As meninas portam vestido: acinturado, com manga bufante e saia rodada ou em camadas de
babados; ou um modelo mais reto e curto. Podem ser com ou sem gola, sendo esta quadrada ou
151

boneca. Nos vestidos acinturados, é comum ter uma faixa e um laço. As roupas variam entre as
cores rosa, azul e amarelo; adornadas em prata ou dourado. Há uma imagem de uma menina
mais roliça, que parece ser bem nova; que está de pé, com os braços cruzados às costas, a barriga
ligeiramente inclinada à frente e a cabeça baixa. As outras imagens parecem de meninas mais
velhas, com uma silhueta mais alongada. Em pé, as meninas têm as mãos ocupadas, a puxar a
saia do vestido, que se estica numa meia circunferência; ou, à altura da cintura, carregam algo
- uma pedra, conchas, um peixe, uma pomba branca ou flores em ramo ou numa cesta. Os
cabelos podem ser curtos ou longos, soltos e enfeitados por presilhas, ou presos em maria-
chiquinha. Algumas estão descalças e outras calçam sapatos tipo boneca e meias.
Os meninos vestem short, com ou sem blusa, e calças, sempre com blusa e às vezes com
cinto; ou macacão, que pode ser acompanhado de um colete. Alguns portam uma boina ou
carregam em uma das mãos um chapéu. Geralmente, têm a mão direita sobre o coração e a
esquerda junto ao corpo e carregam peixes, pedras ou uma rede de pescar. Há também meninos
sentados, de pernas dobradas e juntas, com as mãos sobre os joelhos. As cores das roupas e
chapéus são azul, branco e amarelo, também adornados em dourado ou prata. Quando estão
calçados portam meias, sempre brancas. As bases das imagens, de meninos e meninas, também
são pintadas em verde, marrom, cor de areia; e, não raro, possuem alguns detalhes, como
conchas, pedras, um tronco ou uma pequena cascata.
152

Fotos 1 e 2: As imagens expostas nas lojas

Morena Freitas. Mercadão de Madureira, setembro de 2015.

Schimitt (2007) ressalta que,

É certo que a imagem é sempre imagem de alguma coisa. De onde a ilusão de


que basta nomear o que ela representa para ter dito tudo da representação. Mas
a verdadeira questão não está aí, e as próprias imagens conseguem mais de
uma vez nos lembrar que sua função é menos representar uma realidade
exterior do que construir o real de um modo que lhe é próprio. (ibid., p. 27)

Para que, então, descrevi todos esses detalhes? O que eles podem nos dizer sobre a
realidade que é própria às Crianças? Como veremos, são os detalhes que particularizam as
imagens. Se as imagens apresentam as ibejadas em geral, é a partir dos detalhes que vão sendo
construídas determinadas Crianças. Ao longo deste capítulo, vamos compreendendo como uma
imagem de erê torna-se a apresentação de uma Criança específica, quais os processos, pessoas
e categorias vão construindo essas entidades, a partir e com as imagens.
Em seu campo numa igreja dedicada a Santa Rita no centro do Rio de Janeiro, Raquel
Lima (2014) ficou curiosa ao perceber que alguns devotos, depois de se dirigirem a todas as
imagens da santa, retornavam a alguma imagem, onde permaneciam mais tempo.
153

Homens e mulheres aproximavam-se, nela tocavam, beijavam-na diretamente


ou então beijavam suas próprias mãos e depois as encostavam na imagem,
como se entregassem o beijo à santa. [...] Em meio à realização desses gestos
pelos fiéis, reparei numa senhora que se dirigiu à uma imagem de Santa Rita
que fica no altar perto da porta da entrada principal da igreja: olhou a santa,
passou a mão em seus pés, voltou com a mão, tocando-a em seu próprio corpo;
depois, dali, olhou para outra imagem de Santa Rita, localizada no altar-mor,
que estava mais distante e no alto; a seguir, foi até uma terceira Santa Rita
colocada em outro altar nos dias da novena, onde a tocou e à sua fita; enfim,
a devota retornou para aquela imagem na qual tinha ido inicialmente e, de
novo, a tocou e rezou. Quando perguntei por que ela havia se dirigido a todas
as imagens de Santa Rita, ouvi como resposta: “eu rezei para todas”.
Continuei: “mas a senhora já tinha ido naquela imagem ali, não é?”, apontando
para a santa da entrada da igreja; e então ela disse: “eu voltei na de sempre,
porque nela eu me sinto melhor. Eu não consigo ficar sem vir nesta santa
daqui”. Sua resposta me pareceu bastante instigante, posto que sinalizava uma
questão importante: a de que alguns devotos teriam preferência por
determinadas imagens da santa. Essa constatação, por sua vez, gerou outras
indagações: por que eles escolhem uma santa específica para se relacionar se,
a princípio,seriam todas Santa Rita? Elas seriam igualmente a mesma Santa
Rita? (ibid., p. 80)

A partir desse caso, a autora reflete sobre as formas de interação entre devotos e as
imagens da santa, e sobre como estas eram classificadas por aqueles que frequentavam sua
igreja. Se todas eram Santa Rita, quais eram os critérios para eleger, entre as seis imagens
dispostas pela igreja, uma favorita? Muitos preferem aquela com a qual pode-se ter um contato
mais próximo, outros além da proximidade consideram também a estrutura que torna mais
confortável os momentos passados junto à santa – a imagem da sacristia, por exemplo, é
preferida por aqueles que se utilizam do genuflexório. Ao mesmo tempo em que reconheciam
que todas as imagens eram da mesma santa e a todas tratavam como se fossem Santa Rita, os
devotos, a partir de distintos critérios, classificavam e estabeleciam hierarquias entre as
imagens.
No caso das Crianças, e de outras entidades da umbanda, há um limitado repertório de
imagens para um ilimitado universo de entidades.

Com a exceção de numerosos tipos de espírito que aparecem muito pouco nos
terreiros e com grande indefinição de suas características, tais como ondinas,
sereias, guias hindus, estrelas de guia, padres, enfermeiros, anjos e almas,
entre outros, são doze as suas categorias mais freqüentes, em ordem
decrescente: caboclos (índios), pretos-velhos (escravos), baianos (nordestinos,
que podem ser também cangaceiros), exus (espíritos demoníacos), pombas-
giras (prostitutas), crianças, boiadeiros, marinheiros ou marujos, oguns (o
orixá africano, identificado a São Jorge), Zés Pilintras (malandros), ciganos e
médicos. Há infinitos espíritos individuais em cada uma destas categorias (por
exemplo: o Caboclo Urubatão, a preta-velha Mãe Joana, o baiano Gerônimo,
etc.), além de espíritos individuais de categorias mistas, como a pomba-gira
154

cigana, o exu-mirim, o preto-velho baiano, entre outros. (NEGRÃO, 1996, p.


82)

Como nos diz Negrão (ibid.), e como já vimos anteriormente, há uma infinidade de
entidades que integram o panteão umbandista, que está em constante ampliação e
transformação. Além disso, em cada categoria existem “infinitos espíritos individuais”. As
ibejadas são, portanto, inumeráveis, mas o repertório das imagens de Crianças não é infinito.
Na estatutária umbandista o caso não é de uma mesma entidade ter diversas imagens, mas numa
mesma imagem ser possível que diversas entidades se apresentem. Ainda que sejam casos
distintos, em certa medida quase inversos, a pergunta de quais critérios guiam a eleição de uma
imagem ainda é pertinente, ainda que deva ser posta de outra maneira: se as ibejadas são várias
e cada Criança é única, como escolher uma imagem dentre as possibilidades de um limitado
repertório? E quais são as interações que se mantêm com a imagem eleita?
São justamente a partir dos detalhes, como cores, roupas e outros entalhes que se elege
uma imagem para uma Criança. Ao compreendermos que essas imagens são uma espécie de
compósito, que reúne diversas informações sobre as entidades que nela podem se apresentar,
cada detalhe vai construindo a Criança: seu gênero, sua idade, sua cor preferida, seus locais de
atuação e culto. Diversos elementos que vão sendo introduzidos, desde a fabricação até o altar
ou congá, detalhes que vão sendo acrescentados em sucessivas etapas das vidas dessas imagens,
ao longo das quais vão se singularizando.
Em gesso, ainda branco, é possível distinguir menino de menina, vestido de calça,
concha de pedra (Foto 3). Os elementos da natureza – peixes, pombas, pedras, flores, cascatas
– retratam os lugares de onde vêm essas Crianças e com os quais elas se relacionam, e
geralmente estão presentes desde os moldes. Esses são elementos que nos dizem dos lugares de
onde vêm e onde atuam as ibejadas que ali se apresentam: matas, praias e cachoeiras são locais
onde essas entidades habitam e a flora e fauna também têm poderes. A partir desses detalhes,
podemos saber à qual linha a Criança se aproxima: uma menina que carrega uma pedra e tem
ao lado uma cascata, é próxima à mamãe Oxum; um menino com um peixe entre as mãos, é
da praia e próximo à Iemanjá; as pedras podem fazer referência à pedreira de Xangô.
155

Foto 3: Ainda no gesso branco, já se distinguem por seus vestidos, cabelos e conchas, as
meninas da praia.

Morena Freitas, Mesquita, abril de 2016.

Fotos 4 e 5: Meninos e meninas, já coloridos, com seus peixes e cascatas.

Morena Freitas, Mercadão de Madureira, setembro de 2014.


156

Conchas, peixes e flores também indicam locais possíveis para o culto a essas
entidades: podemos colocar num jardim um pratinho com doces ao Pedrinho da Mata, à beira
de uma cachoeira alguma fruta para Ritinha da Cachoeira. Esses detalhes também nos falam
sobre o destino dessas imagens caso elas rachem ou quebrem. Estas imagens, quando
danificadas, não podem ir para qualquer lixo, afinal, como me disse uma senhora com quem
conversei numa loja, não se tratava de qualquer pedaço de gesso ou resina. Conforme me foi
informado, “as Crianças devem retornar para seus lugares”; isto é, uma imagem quebrada da
Mariazinha da Praia deve ser despachada na areia, próximo ao mar e com ela devem ir alguns
doces, para que “não falte nada durante a caminhada” de seu retorno.
Para Belting (2010, p. 11)

As imagens contêm momentos de uma narrativa, embora elas mesmas não


sejam narrativas. A criança no colo de sua mãe e o homem morto na cruz
recordam os dois pontos focais de uma vida histórica, [...] tornam possível a
recordação na e por meio da imagem. A imagem, contudo, só é compreensível
por meio de seu reconhecimento a partir das Escrituras. [...] Os santos eram
lembrados não só por meio de suas lendas, mas também por seus retratos.

O autor nos fala como nas imagens e retratos são fixados momentos de uma narrativa,
passagens de uma vida passada, e santificada, que devem ser lembradas. Ao ver uma imagem,
a pessoa se recorda da história de quem ali foi retratado. As imagens condensariam tempos
distintos, materializando o fato passado para que ele seja continuamente lembrado e, portanto,
esteja sempre presente.
No caso das imagens de erê, além de uma condensação de tempos, poderíamos pensar
também nos lugares retratados: de onde vêm, onde atuam e para onde devem seguir. Na
estatutária da umbanda são conjugados a imagem humana – estereotipada, numa personificação
que não é realista, mas uma espécie de arquétipo – e elementos cósmicos, representados nas
cascatas, conchas, peixes e pedreiras. Nessas imagens, metáforas e metonímias, mítico e
humano, as forças cósmicas da natureza e das pessoas são elementos condensados e
materializados em gesso policromado – a pintura introduz, através de outros materiais como a
tinta, uma outra camada de distinção.
Os detalhes das imagens – desde os entalhados no gesso aos que sucessivamente vão
sendo adicionados, pela pintura e demais intervenções – vão tornando visíveis as características
das Crianças que ali devem se apresentar. Baseando-se não em escrituras, mas no que se sabe
sobre a ibejada, o comprador ou compradora deve atentar a esses detalhes, para que na imagem
escolhida esteja devidamente apresentada a sua Criança.
157

Em sucessivas etapas essas imagens vão se particularizando, tornam-se singulares. Nas


lojas as imagens são etiquetadas, às vezes com informações que vão além dos preços, que lhes
dão nomes próprios. Meninas com vestido e colares de conchas prateadas são identificadas
como Mariazinha da Beira da Praia, meninos em pé ao lado de uma pequena cascata são
Pedrinho da Cachoeira, meninas de vestido rosa são etiquetadas como Rosinha. Nas lojas de
artigos religiosos, portanto, algumas imagens de erê já vão sendo nomeadas. O dono de uma
loja disse-me que etiquetava as imagens com os nomes de erês já conhecidos, porque às vezes
tem algum comprador que “não é muito entendido” e precisa de ajuda. Há compradores que
vão à procura de uma imagem sem saber muito bem de quem, o que pode ocorrer com alguém
que não tem uma relação muito íntima com a entidade mas que, por algum motivo, deve, ou
quer, render-lhe alguma homenagem. Para os mais íntimos, deve-se levar em consideração tudo
que se sabe sobre a entidade para escolher a imagem mais adequada.
Além dos elementos já entalhados no gesso, há a possibilidade de pequenas
intervenções sobre as imagens, que as tornam ainda mais singulares. Em uma loja conversei
com uma senhora que estava comprando uma imagem para sua Mariazinha da Praia. Como ela
me disse, Mariazinha da Praia existem muitas, bem como são várias as imagens dela que
encontramos pelas lojas; no entanto, a Mariazinha da Praia dela era única e igual a ela não
existia outra e isso deveria estar marcado na imagem. Ao saber do que sua Criança gosta,
escolhe-se o que deve ser acrescentado à imagem; no caso dela, iria botar mais um brilhinho,
uma conchinha de verdade e alguns grãos de areia. Para ela, a imagem de sua Mariazinha era
como, ela mesma disse, uma bonequinha, que precisava de enfeites e cuidados.
Vamos, então, percebendo as intervenções que vão caracterizando uma imagem, para
que ela deixe de ser de erê e passe a ser de uma determinada Criança. O vendedor ao expor as
imagens em sua loja, já produz alguma distinção ao etiquetá-las com nomes, ressaltando as
características que já estão presentes na imagem. Após a compra a imagem pode receber novos
elementos que a tornam ainda mais singulares, intervenções que só podem ser feitas por aqueles
que já mantêm alguma intimidade com as entidades e sabem o que lhes agrada, e assim sabem
como adicionar outras coisas à imagem para que sua Criança fique ainda mais presente naquela
imagem; para que ali seja possível saber de onde ela vem, com o que gosta de brincar, com que
lugares e outras entidades mantêm relação.
Ao acompanhar os preparos e realização de uma procissão em homenagem à Nossa
Senhora dos Desamparados em uma cidade espanhola, Albert-Llorca (1995) faz uma
comparação entre vestir a santa e brincar de boneca, ao descrever como a imagem da santa é
arrumada e dizer que as camareras “esquecem, visivelmente, enquanto vestem (como pequenas
158

meninas que brincam com a boneca?) que a Nossa Senhora é apenas uma coisa” (ibid., p. 5).
Ao afirmar que as camareras esquecem, a autora pressupõe que, em algum momento, aquelas
mulheres consideraram que a imagem de Nossa Senhora era “apenas uma coisa”. Ao comparar
o ato das mulheres em vestir a santa com o ato infantil de brincar de boneca, Albert-Llorca
parece ignorar que na brincadeira pode haver seriedade e que bonecas também podem não ser
“apenas coisas” – e não só para meninas.
Ao propor uma reflexão a partir do famoso episódio da restauração do Cristo de Borja
– quando, em 2012, Cecília Giménez restaurou uma imagem de Jesus do séc. XIX, no Santuário
da Misericórdia, localizado em uma pequena igreja em Saragoça – Renata Menezes chama
atenção para o fato que os

Devotos mantêm relações com as imagens que envolvem proximidade,


manuseio, deslocamento, exposição às intempéries, em atos como pegá-las,
beijá-las, molhá-las, movê-las. (...) Nesse sentido, a intenção de D. Cecília
seria menos a de realizar uma “restauração” da imagem de Ecce Homo, e mais
como a de exercitar seus cuidados com o Cristo de sua igreja, uma limpeza
daquele jesuizinho abandonado na parede, coitado, tão largado e tão sujinho,
desbotado, tornado indigno (e o uso dos diminutivos aqui é intencional, pois
tenta provocar uma sensação de proximidade e intimidade que se encontram
descritas nas etnografias sobre devoção). Há uma certa singeleza no gesto da
senhora espanhola que a aproxima de outras senhoras e senhores de outros
lugares: pessoas que bordam roupas, que confeccionam perucas em cabelo
natural, que doam seus cabelos para isso, que vestem as imagens de procissão
para suas saídas, que as enfeitam como fitas e flores de seus quintais, que
conversam com elas, etc. (MENEZES, 2013b, p. 255)

Nesse sentido, enfeitar a imagem como se ela fosse uma bonequinha é cuidar dela,
estar atenta aos detalhes, reconhecer que ali se apresenta alguém com quem se mantém uma
relação de carinho, cuidado e devoção. Quando a senhora com quem conversei me falava de
como iria enfeitar a imagem de sua Mariazinha, descrevendo-a como sua bonequinha, ela não
estava a me dizer que a imagem era apenas uma coisa. Comparar a imagem da Mariazinha com
uma boneca pode revelar o cuidado, o zelo e a intimidade. Como veremos mais adiante, no
brincar pode haver muita seriedade, e os brinquedos não são “apenas coisas”. O brincar de
boneca não é esquecer-se que ali está uma coisa, é atribuir à boneca outros sentidos – e vale
ainda ressaltar que, para os adultos, as bonecas já podem ter outros sentidos e usos que não se
resumem ao brincar, podendo ser uma boneca uma recordação ou um item de uma coleção, o
que já pressupõe outras possíveis relações com esse objeto.
Os enfeites e outras intervenções são feitas como forma de singularizar as imagens,
numa tentativa de tornar possível que uma imagem comum possa ser a apresentação de uma
159

entidade tão querida e particular. Como disse anteriormente, há um repertório limitado de


imagens, pelos altares-vitrines das lojas vemos que as imagens se repetem, e um mesmo modelo
só vai mudando de cor: das roupas, dos cabelos e da pele. Os vendedores e gerentes me falavam
que não costumava haver muita diferença nos modelos comprados de um ano para outro, as
imagens eram sempre as mesmas130, às vezes encontravam alguma coisa diferente – imagens
com pequenas aplicações, como aviamentos de babados, pedrarias, glitter. Percebemos, então,
que além de limitado, o repertório das imagens parece ser estabilizado, ou seja, não sofreu
modificações ao longo dos anos.
Ao pensar em referências que me ajudassem a descrever essas imagens sem recorrer a
fotografias delas, vinha-me à cabeça uma revista que tive quando pequena, com várias bonecas
de papel e suas roupinhas, que era um fascículo de uma dessas coleções à venda em bancas de
jornal. Ao procurar na internet por “bonecas de papel” vi que algumas realmente se
assemelhavam às imagens de erê, sobretudo as que eram, ou imitavam ser, de publicações dos
anos 1950 e 1960. Conversando com Renata Menezes sobre essas semelhanças entre as imagens
de erê e as bonecas e desenhos de décadas passadas, ela chamou a atenção para o caráter
anacrônico dessas imagens. Se mais uma vez comparamos as imagens às bonecas, elas não se
parecem muito com bonecas atuais – a não ser que as comparemos aos modelos com uma
estética retrô.
O estilo datado e anacrônico não é exclusivo das imagens de erê, as de malandro, por
exemplo, evocariam a Lapa dos anos 1930 e os malandros que por lá circulavam com calças e
paletó e sapatos brancos, de camisa listrada ou colorida e um chapéu sobre a cabeça (ROCHA,
2006). Poderíamos, portanto, pensar que o imaginário umbandista costuma fazer referência ao
passado, aos tempos originários da religião e aos anos vividos, antes do desencarne, pelas
entidades hoje cultuadas. Nas imagens, portanto, os tempos e lugares das Crianças se
apresentam – uma infância, ao estilo dos anos 50 e 60, eternizada em meio à natureza.
Pensando em como poderia entender melhor esse repertório das imagens, considerei
que pudesse ser rentável chegar até quem fabrica as imagens, para compreender como são

130
O que é considerado bom quando as vendas não saem conforme o esperado. Entre final de julho e início de
agosto, os pedidos pelas imagens de erê começam a ser feitos, nas lojas do Mercadão, o pedido costuma ser entre
40 e 50 imagens, a maioria de 15 e 30 centímetros; em algumas lojas que visitei no centro, o pedido costuma ser
menor, assim como as vendas. Como não há alteração entre um ano e outro, o que não foi vendido pode ir para o
estoque e retornar ao altar no ano seguinte.
160

elaborados os modelos, quem os faz e desde quando o fazem assim. Das galerias do Mercadão
fui, então, à fábrica de imagens.131

4.3 Como nascem as imagens

A fábrica gerenciada por Rosemere132 produz imagens de santos e entidades em gesso


policromado, de 30, 40 e 60 centímetros, e um metro de comprimento; que são distribuídas em
diversas lojas de artigos religiosos do Rio de Janeiro e vendidas diretamente a alguns centros e
terreiros. As imagens são produzidas ao longo do ano com uma sazonalidade marcada pelo
calendário litúrgico das casas cariocas de religiões afro-brasileiras133. Como Rosemere
explicou, em janeiro são produzidas imagens de São Sebastião e índios (caboclos), em abril
São Jorge, em maio os pretos-velhos e os ciganos, junho é o mês de Antônio, Pedro, João134 e
todos os exus. Julho é um mês fraco, e a produção é de Sant’Ana e de outras imagens para
reposição de estoque; mas as vendas são piores em agosto, mês que é de Omolu, Roque, Lázaro
e Onofre. Em setembro são feitas as Crianças, Cosme, Damião e Doum e Miguel Arcanjo;
outubro e novembro a produção é pequena, para reposição de estoque e em dezembro a fábrica
não funciona. Algumas imagens são produzidas ao longo do ano, como as de Iemanjá, exus e
pombagiras; e há também, como veremos mais adiante, peças que são produzidas sob
encomenda e que não seguem, necessariamente, esse calendário.
O processo de confecção de uma peça envolve algumas etapas, mas não é demorado;
em dois dias de trabalho podem ser confeccionadas cerca de 30 peças. Primeiro, dilui-se o gesso
em água, formando a pasta que irá preencher os moldes de borracha. Para imagens pequenas e
com muitos detalhes, o molde é totalmente preenchido com gesso; o mais frequente é que as
peças sejam ocas e os moldes são preenchidos em rolagem – quando se joga uma camada de

131
Consegui o contato da fábrica com um gerente de uma loja do Mercadão. Não era fácil conseguir um contato
nas lojas que vendiam imagens, falavam que compravam de um revendedor e que nem sabiam de onde vinham –
mas também não me davam o contato do tal revendedor. O primeiro contato que consegui foi de um senhor, que
me atendeu por telefone, mas não permitiu que eu visitasse a fábrica e também se recusou a uma conversa mais
longa. Os caminhos para se chegar a uma fábrica parecem não ser muito acessíveis, talvez por envolver algum tipo
de ilegalidade trabalhista; o que nos leva a pensar que não se trata de um ramo com grandes empresas.
132
Este local já foi apresentado na primeira parte desta tese, no capítulo ‘Lugares e tempos de pesquisa’.
133
Destaco aqui que são casas do Rio de Janeiro, porque em outros estados podem ocorrer relações entre santos e
guias e orixás que resultem num calendário distinto.
134
Aqui escrevo como Rosemere falou, sem botar o São antes dos nomes.
161

gesso, rola o molde e espera secar; e depois adiciona-se mais uma camada e repete a rolagem.
O molde, depois de preenchido com gesso e fibra de vidro (Foto 6), é envolto em jornal e
barbante, para uma primeira secagem. Depois que a imagem é retirada do molde, vai para uma
segunda secagem (Foto 7), que pode ser ao ar livre, quando a temperatura está alta e a umidade
baixa, ou próximo ao fogo. Em minha primeira visita, em fim de abril de 2016, logo na entrada
da fábrica havia uma roda de imagens de pretos-velhos, pombagiras e exus ao redor em torno
de uma pequena fogueira. Já secas (Foto 8), as imagens são lixadas e desbastadas, eliminando
as pequenas imperfeições e dando acabamento aos detalhes. As imagens podem ir para as
prateleiras das várias estantes do galpão (Foto 10) ou passam para a pintura, primeiro à jato
(Foto 9), nas duas cores de base que cobrem por completo o branco do gesso; e depois com
pincel, quando são desenhados olhos, bocas, cabelos, roupas e adornos. Já coloridas e secas, as
imagens são enroladas em jornal e levadas às lojas e centros.

Fotos 6 e 7: Preenchimento do molde com gesso ainda líquido, sobre fibras de vidro. Molde já
preenchido, em pé, durante a secagem do gesso.

Morena Freitas, Mesquita, abril de 2016.


162

Fotos 8 e 9: Imagem após ser retirada do molde e processo de pintura com pistola.

Morena Freitas, Mesquita, abril de 2016.

Foto 10: Imagens de Cosme, Damião e Doum ao lado de um busto de pomba-gira.

Morena Freitas, Mesquita, abril de 2016.


163

Para a execução desses processos a fábrica conta com seis funcionários fixos e, em
épocas de mais movimento, são contratados temporariamente pessoas para os retoques,
lixamento, montagem e pintura de pistola; atividades que, se comparadas aos demais processos,
exigem menos habilidade. Todos os funcionários fixos eram evangélicos, assim como muitos
temporários.
Enquanto Rosemere atendia o celular que não parava de tocar, eu aproveitava para
observar a fábrica e conversar com os funcionários, acompanhando as etapas da produção.
Sentei-me ao lado de Ângela, funcionária da fábrica, enquanto ela pintava imagens de São
Lázaro e Miguel Arcanjo. Também evangélica, ela me contou que não havia conflito entre sua
religião e o fato de passar o dia entre imagens de santos e entidades de umbanda, porque aquele
era o seu trabalho e aquelas eram apenas imagens. Ângela disse que respeitava quem
acreditava naquelas imagens, mas para ela era apenas gesso, e a ela cabia pintar; não atribuía
poder algum a elas. Seria um problema ir ao terreiro, lá as imagens são diferentes, mas na
fábrica eram um produto, um trabalho, de gesso e tinta. Um dos escultores converteu-se há
pouco tempo, antes frequentava centros, mas, como me disse, nunca foi de umbanda. Gostava
de desenhar e considerava seu trabalho artístico, “faço desenhos, crio imagens. É arte,
trabalho”. Seu trabalho era desenhar, e produzir arte não era um interdito, não contrariava sua
prática religiosa. Para os funcionários não parecia haver conflito entre suas práticas religiosas
e seu trabalho, mas Ângela contou que na igreja evita falar onde trabalha, não dá muitos
detalhes, “porque tem gente que vê problema”.
Para esses trabalhadores, conceber e produzir imagens de santos e entidades é um
trabalho, com contornos artísticos, e as próprias imagens, produtos. Em certa medida, pode ser
considerado um trabalho alienado, no sentido em que quem produz as imagens não as consome
e com elas não se identifica. Ângela trabalha pintando imagens sacras que não pertencem à sua
experiência religiosa, Luciano desenha entidades com as quais não (mais) se relaciona. O que
é produzido no trabalho não pertence às suas vidas pessoais, e ao dizerem que as imagens que
produzem e pintam são apenas gesso, desenho e trabalho, reforçam esse afastamento. Mas
também podemos pensar, como sugere Maggie (1986, p. 74) que “a repressão aos cultos afro-
brasileiros e às religiões mediúnicas inscreve-se na lógica da crença. Em primeiro lugar porque
os diversos segmentos da sociedade brasileira, embora tendo participação diferenciada na
crença, acreditam e temem o feitiço”. Pensando aqui não diretamente na repressão, mas na
deslegitimação, é preciso dizer que a imagem não possui nenhum poder para que seja possível
passar o dia manipulando-a sem que isso seja uma afronta à sua própria religião; mas a
necessidade de negar a possibilidade de poder às imagens pode ser o reconhecimento que, ainda
164

que em outros lugares, como nos centros, essas entidades se fazem presentes e exercem seus
poderes.
Uma das formas de afastar as imagens de sua acepção religiosa é considerá-las como
arte.
Como as pessoas fazem ou criam coisas que passam a ser vistas como obras
de arte? Em outras palavras, quando há artificação? Como, por meio desse
nexo de ação e discurso, as pessoas fazem ou criam coisas que gradativamente
passam a ser definidas como obras de arte? [...] A artificação é um processo
dinâmico de mudança social, por meio do qual surgem novos objetos e novas
práticas e por meio do qual relações e instituições são transformadas. [...] Não
buscamos definir o que é a arte e nem como ela deve ser considerada, mas
como e sob quais circunstâncias ela ocorre. Queremos mapear os processos
por meio dos quais objetos, formas e práticas são construídos e definidos como
obras de arte e também queremos ver quais as consequências deste surgimento
(HEINICH; SHAPIRO, 2013, p. 14-5)

Diversos autores discutem sobre a relação entre religião e arte a partir de objetos e seus
trânsitos entre locais de culto e coleções – domésticas ou museais – refletindo como esses
objetos tensionam fronteiras classificatórias e espaciais (SCHMITT, 2007; SILVA, 2008;
BELTING, 2010; CONDURU, 2013; GOMES, 2017).

Cada cena de artificação, cada campo da pesquisa, foram ocasiões de


descoberta de processos que funcionam não de maneira definitiva e unívoca,
mas em permanentes oscilações, suscitando aos colecionadores estratégias e
ajustes constantes. A maneira como esses dispositivos foram analisados
tornou possível considerar a artificação como um movimento de cruzamentos
dinâmicos, definido, antes de tudo, pelos fluxos e tensões. (NOTTEGHEM,
2012, p. 62)135

Notteghem (2012), a partir de uma exposição temporária, um altar doméstico e a


reserva de uma igreja, nos mostra como a artificação é um processo dinâmico, que mobiliza
diversas justificativas para reconfigurar objetos, que que passam de relíquia ao relicário, de
objeto de devoção à objeto de arte. Movimentos esses que são marcados pelo fluxo, já que um
objeto pode flutuar por distintas classificações e lugares.
Sansi (2013) nos conta sobre a primeira vez que viu uma otã – pedras que integram os
assentamentos dos orixás do candomblé –, exposta em um museu de Salvador. Em seu artigo,
o autor vai nos contando dos vários processos, inclusive judiciais, através dos quais instituições

135
No original, “ chaque scène d’artification, chacun des terrains d’enquête, ont été l’occasion de découvrir des
processus fonctionnant non pas de manière définitive, univoque, mais en des oscillations permanentes, et suscitant
des stratégies et des ajustements constants de la part des collectionneurs, faiseurs d’art ordinaires. Le regard porté
sur ces dispositifs a permis de considérer l’artification comme un mouvement de franchissement dynamique, défini
avant tout par les flux et les tensions qui le portent”.
165

museais e adeptos do candomblé disputavam e decidiam a quem pertencia a pedra, quem


poderia vê-la, qual seu lugar apropriado; que, por fim, levaram a pedra ao porão do museu.

Por que afinal a otã não pode ser vista? Porque o assento da otã marca um
evento singular. Uma otã não é simplesmente feita por um ritual de
consagração, mas, antes disso, ela é resultado de um evento único, em que o
sacerdote do candomblé, pessoa que possui um dom, reconhece o santo na
pedra. Esse ato de reconhecimento é uma visão original e fundadora. Ao
esconder a pedra, consagrá-la, a mãe de santo tenta fixar esse evento para que
ninguém mais possa, por sua vez, se apropriar da otã. O valor da otã não é só
atribuído arbitrariamente, e não pode ser simplesmente subtraído pelos
humanos. A densa e complicada história da otã do Museu Estácio de Lima
não pode ser rapidamente destruída e sua presença material não pode ser
facilmente apagada (ibid., p. 120)

Apesar de estarem falando de distintas tradições religiosas, vemos que Sansi (2013) e
Notteghem (2012) podem dialogar. O otã depois de circular por diversos lugares e
classificações, acabou por não ser nem objeto de culto nem de arte. Alguns fluxos têm seus
limites, movimentos podem ser irreversíveis – mas até que se chegue a um limite, há um longo
caminho. Há ainda que considerar a historicidade inscrita na materialidade.
Sansi (2013) nos chama atenção para o fato de que alguns processos de classificação
dos objetos os marcam e tornam impossíveis alguns movimentos. A pedra ao ser consagrada
tornou-se um otã, e por mais que tenha passado anos entre coleções e museus, recebendo
números de registros e etiquetas de exposição, não deixou de ser um objeto de culto; ao mesmo
tempo que também ficaram ali marcadas as passagens pelos circuitos museais, o que não
permite que o otã volte aos assentamentos.
Em ambas discussões, vemos como alguns objetos podem flutuar entre as categorias
da religião e da arte, podendo por vezes estar num entrecruzamento desses dois mundos,
pertencendo a ambos ou num limbo entre eles. As passagens pensadas foram entre templo,
museu e casa e aqui gostaria de acionar a fábrica como mais um lugar pelo qual essas coisas
circulam e são classificadas.
Luciano classifica o trabalho de conceber, desenhar e esculpir imagens de entidades
como arte. Ao artificar o produto de seu trabalho, Luciano parece estabelecer um
distanciamento entre as esferas da arte e da religião, considerando as imagens menos como
objetos de um culto, que não é o seu, e mais como criação artística. Ao artificar as imagens,
Luciano não pretende que elas se tornem objeto de museu, mas sim estabelecer com elas uma
relação possível e não conflituosa. Mas a necessidade em categorizar as imagens que desenha
e esculpe enquanto arte, pode ser também uma tentativa de retirá-las do campo religioso.
166

Como vimos anteriormente, a umbanda é um sistema religioso aberto, e seu panteão


está em constante aprimoramento e expansão, sendo sempre possível que novas entidades sejam
a ele incorporadas (BIRMAN, 1983; PRANDI, 1991; SILVA, 2005; MOURÃO, 2012). É
possível, então, que nas lojas não se encontre uma imagem adequada, seja porque os modelos
disponíveis não atendem a uma demanda específica da entidade, ou porque ainda não há uma
forma que a represente.136 Em sonhos, visões ou em recados que dão quando se manifestam, as
entidades costumam mostrar e falar sobre suas formas e cores, e como querem se apresentar. É
a partir do relato de um sonho ou do recado de uma entidade, Luciano elabora o desenho,
buscando atender ao que fora descrito pelo cliente adequando às possibilidades do gesso. As
imagens já nascem, portanto, num imaginário religioso e a história dessas coisas já é, desde o
início, marcada. Ao artificar seu trabalho, Luciano tenta embutir nessa materialidade um outro
sentido – que não necessariamente a impedirá de assumir outros ao longo de sua vida – com o
qual consegue lidar melhor.
Para que o desenho se realize em escultura, é preciso que ele seja aprovado pelo
médium, pela entidade e por Rosemere – para ela há um limite que, quando ultrapassado, pode
desvirtuar a entidade. Antes que a arte de Luciano ganhe tridimensionalidade, ela deve ainda
passar pelo centro. Entre o recado, o desenho e a escultura, a imagem já é classificada, em suas
circulações pelos universos onírico, da fábrica e do centro. E, nesse processo, há ainda que
considerar que essas imagens são também mercadoria.
O mercado religioso pode ser pensado em duas acepções. Há uma série de lojas de
artigos religiosos, por onde circulam livros, cds e dvds, velas, incensos, roupas, imagens, óleos
e, eventualmente, serviços. Consomem esses artigos aqueles que têm, ou experienciam
momentaneamente, alguma religião e, nesse mercado, o consumo pode ser também uma prática
religiosa (GIUMBELLI, 2005; ORO, STEIL, 2003). Além das trocas comerciais que envolvem
artigos considerados religiosos, o mercado religioso pode também ser considerado enquanto
um campo onde diversas religiões se relacionam – de forma mais ou menos conflituosa – e elas
próprias são os bens a serem consumidos (PRANDI, 2004). Mudanças neste mercado religioso
acabam por afetar os mercados onde artigos religiosos são comercializados.
Rosemere atribui ao crescimento do neopentecostalismo o constante decréscimo na
produção e lucro de sua fábrica. A cada ano as vendas diminuem, já que o aumento da religião
neopentecostal está intimamente relacionado à decadência da umbanda e, consequentemente,

136
Na maioria das vezes, o pedido por alterações ou por uma nova escultura é para as imagens de exus e
pombagiras. Sobre como são concebidas diversas representações dessas entidades, ver Mourão, 2012.
167

ao baixo rendimento de sua fábrica ao longo dos últimos anos - além da perceptível mudança
no quadro de seus funcionários, quase todos evangélicos.137 Enquanto mercadorias, as imagens
circulam entre as lojas de artigos religiosos e, mais amplamente, no mercado religioso, onde o
crescimento de um pode implicar na diminuição da clientela do outro. Como nos diz Kopytoff
(1990, p. 89)

[...] a mesma coisa pode, ao mesmo tempo, ser vista por uma pessoa como
uma mercadoria, e como uma outra coisa por outra pessoa. Essas mudanças e
diferenças nas circunstâncias e nas possibilidades de uma coisa ser uma
mercadoria revelam uma economia moral subjacente à economia objetiva das
transações visíveis

Na fábrica as imagens são mercadorias, mas também são apenas gesso, arte,
trabalho. Ao longo do processo de produção de uma imagem, que envolve uma série de etapas,
técnicas, materiais e pessoas; ela passa por diferentes sistemas classificatórios, que não apenas
se sucedem, mas que podem se combinar, superpor, agregar às formas de qualificações das
imagens que não se resumem ao seu valor econômico e objetivo. Do recado da entidade ao
desenho, há a mediação e interpretação do escultor, que dá forma ao discurso e realiza o sonho;
para passar do desenho à escultura tridimensional, é preciso ter aprovação da entidade e da dona
da fábrica, que julgam se a representação está adequada. Os funcionários da fábrica classificam
as imagens que manipulam, reconhecendo e retirando seus poderes, tornando possível o contato
contínuo e diário com elas.

4.4 Crianças no altar e no congá

Enroladas em folhas de jornal e barbante, as imagens saem da fábrica e vão para as


lojas ou são entregues diretamente a quem as encomendou. Depois de todo o processo que

137
Em 2009 a fábrica, que hoje conta com seis funcionários, tinha 29; cortes que foram impostos pela considerável
diminuição da demanda e, de forma mais ampla, do mercado religioso afro-brasileiro, o que Rosemere compreende
como consequência das mudanças no campo religioso. O crescimento das religiões neopentecostais, a relação
destas com as religiões afro-brasileiras e a consequente reconfiguração no campo religioso brasileiro são temas
discutido por diversos autores (MARIANO, 1999; BIRMAN, 1996; MAFRA,2001; ALMEIDA, 2009;
SILVA,2007;SANCHIS, 1997). Por outro lado, isso não implica necessariamente numa diminuição do número de
adeptos às religiões afro-brasileiras, como nos mostram Duccini e Rabelo (2013) ao destacarem uma recuperação
no crescimento das religiões afro-brasileiras, que entre os Censos de 2000 e 2010 tiveram um incremento de 12,5%.
Prandi (2013) ainda chama atenção para o fato do subdimensionamento, e sugere que os adeptos às religiões afro-
brasileiras correspondem ao dobro do que fora apontado pelo Censo. Para mais dados e discussões sobre as
transformações na filiação religiosa a partir dos dados do Censo e uma reflexão sobre o papel dessa estatística para
as ciências sociais da religião, ver TEIXEIRA; MENEZES, 2013.
168

confere ao gesso forma, rigidez e cor, as imagens estão (quase) prontas para ocupar seus lugares
em altares e congás, onde estarão acompanhadas por outras imagens, entidades e coisas.
Os altares domésticos podem ser compreendidos como espaços de uma religiosidade
íntima e familiar, onde imagens, velas, santinhos, terços, guias, fotos e demais objetos
compõem um sacrário, visível e oficial, que cultua santos, entidades e pessoas (DUARTE,
2006). Comumente, as imagens desses altares são de santos e entidades com os quais as pessoas
da casa mantêm alguma intimidade, advinda de uma devoção que perdura por gerações ou por
alguma relação mais particular e recente. Nesses sacrários, as coisas são organizadas seguindo
uma lógica afetiva, subjetiva e religiosa bastante variável.
Ao escolher uma imagem para o seu altar doméstico, considera-se as entidades que
são recebidas ou com as quais se mantém uma relação próxima e afetiva, construída nas idas e
consultas nos centros e terreiros. Reservar um lugar no altar doméstico a uma imagem é também
abrir as portas da casa para que ali se faça presente determinada entidade - e não costumamos
abrir a porta para estranhos. Às imagens podem juntar-se alguns objetos, comidas e bebidas:
uma cachaça próxima a exu, um charuto para o caboclo, rosas para pombagira e doces e
brinquedos para ibejada.
Nos altares, assim como acontece nas lojas, imagens e coisas podem ser rearranjadas
ao longo do ano. Traz-se à frente do altar a foto de um familiar no mês em que é recordado seu
nascimento ou falecimento, passa a ter destaque a imagem do santo ou entidade durante o mês
em que é celebrado. Ao longo desses anos de pesquisa pude ver alguns, poucos 138, altares
domésticos arrumados para a celebração do dia 27 de setembro, com os santos gêmeos, às vezes
acompanhado de Doum e das ibejdas, e seus pratinhos de doces e copinhos de guaraná.
Desde o processo de escolha, uma imagem vai deixando de ser mercadoria para tornar-
se um objeto singular, sagrado, de culto; e entre a loja, ou fábrica, e o altar e congá, ainda pode
haver um processo que reforça essa passagem. Médiuns e dirigentes me falaram que, nas lojas,
as imagens não tinham nenhum poder. O banho de ervas e o risco de pemba consagram a
imagem; a água e as ervas lavam, o calcário marca a base da imagem, que, agora, é poderosa.
Até que uma imagem torne-se de uma Criança ela é moldada, lixada, colorida, escolhida,
adornada, lavada e marcada; uma série de processos, materiais e pessoas que transformam e
sacralizam.

138
Como destacam Duarte (2006) e Menezes (2016) não é fácil o acesso aos lares e aos rituais domésticos e
familiares, e na pesquisa Doces Santos muitas vezes nosso limite eram os portões das casas.
169

Nos centros costumamos ver muitas imagens, mas se nos altares domésticos a
disposição segue princípios afetivos, nos congás a ordenação segue um padrão hierárquico e
cosmológico. Comumente, os congás têm mais de um nível, nos quais

[...] as divindades são ordenadas segundo seu grau de desenvolvimento


espiritual. No topo desta pirâmide encontra-se o panteão católico representado
por estátuas de santos e santas aos quais preferencialmente a devoção negra
se dirige como Nossa Senhora do Rosário, Santa Ifigênia, São Benedito, São
Jorge, Santo Antônio, São Sebastião e Santa Bárbara. Abaixo deste estão os
orixás que na umbanda são versões próximas dos santos católicos. Os pretos-
velhos e caboclos são entidades intermediárias possuindo algum grau de
evolução devido aos sofrimentos pelos quais passaram na terra. Na base desta
pirâmide estão as entidades associadas às trevas, ao vício e aos prazeres do
corpo: trata-se dos marinheiros, boiadeiros, baianos, ciganos e sobretudo os
exus e pombagiras. (SILVA, 2008, p. 106)

É comum também que as imagens ocupem distintos espaços. Exus, pombagiras,


malandros, obaluaê e o cruzeiro das almas costumam ficar mais próximo à entrada do centro.
A distância entre exus e pombagiras em relação às demais entidades, que pode ser
compreendida pela dicotomia entre casa e rua (BIRMAN, 1995), não é apenas simbólica, mas
também espacializada. Mais próximo à rua ficam também as energias da morte, relacionadas a
obaluaê e às almas.
No salão ficam as imagens de caboclos, pretos velhos, ibejada, marinheiros,
boiadeiros, ciganos, santos e Jesus – sempre vivo, e não crucificado. O congá pode ser único e
central, ou podem haver distintos congás, um para cada grupo de entidades. A disposição e
tamanho das imagens também nos permitem acessar as entidades que regem o centro e seus
dirigentes.
170

Foto 11: Congá principal do CUCA, arrumado e adornado para a gira festiva de 27 de
setembro de 2016.

Morena Freitas, CUCA, 2016.

Foto 12: Detalhe do congá, com as imagens de Cosme, Damião, Doum e Crianças.

Morena Freitas, CUCA, 2016.


171

Foto 13: Congá principal da Taba Caboclo Sete Flechas, adornada para gira de 12 de outubro,
em 2016.

Morena Freitas, Edson Passos, outubro de 2016.

Foto 14: Altar dedicado às Crianças de Tony, dirigente da Taba Caboclo Sete Flechas.

Morena Freitas, Edson Passos, outubro de 2016.


172

Nas fotos acima podemos ver duas composições de congá e como são adornados e
rearranjados para celebrações às Crianças. No CUCA, os rearranjos costumam ser feitos no
centro do congá, nos segundo e terceiro níveis - considerando que o primeiro seja o mais alto,
onde estão as imagens do Sagrado Coração de Jesus, Nossa Senhora da Conceição, São
Francisco de Assis e Santa Bárbara. A imagem de Cosme, Damião e Doum está no centro do
congá por ocasião da data; um lugar que São Jorge ocupa em abril, Iemanjá em fevereiro. A
imagem dos três irmãos tem, no mínimo, 60 anos e é uma das que ficou como herança do centro
que antigamente ocupara a mesma casa139. Para a gira festiva de 2016 as imagens foram
restauradas, tinham acabado de receber nova pintura, processo pelo qual elas são submetidas a
cada, mais ou menos, cinco anos.
À frente de Cosme, Damião e Doum estão o Menino Jesus de Praga, um pequeno São
Francisco de Assis (um tanto infantilizado) e as Crianças: um caboclinho, duas meninas e um
menino da cachoeira, e três meninos sentados, sendo uma das imagens maior; todos sobre um
pano rosa claro enfeitado com uma fita de cetim azul clara. O dirigente do CUCA me disse que
são imagens que alguns filhos da casa levaram para compor o altar em agradecimento à sua
própria ibejada, ou a outra que lhe tenha atendido um pedido. Já eram imagens antigas, que
“sempre estiveram ali”.
Embaixo, nas laterais sempre ficam Santo Antônio e os pretos-velhos, à esquerda da
foto; e São Sebastião e os caboclos, à direita. Ao centro, vemos São Jerônimo acompanhado de
Pedrinho e Mariazinha, imagens das Crianças dos dirigentes, que comumente estão no segundo
nível do congá. São Jerônimo também está em destaque porque ao dia 30 de setembro é
realizada a gira festiva de xangô.
Na Foto 13 vemos um congá bem distinto. Tony, dirigente da casa, já tinha há alguns
anos o sonho de ter um congá que celebrasse as águas e iemanjá, que se concretizou dois anos
antes. A casa é regida pelo caboclo Sete Flechas, mas Iemanjá é importante na vida espiritual
de Tony, “além de ser linda”. A taba fica em cima da casa de Tony, no segundo andar construído
inteiramente para isso. Além desse congá, há um pequeno quarto dedicado aos exus e
pombagiras e, logo ao lado, outro dedicado a sua pombagira, Maria Mulambo. Há ainda
pequenos altares: um dedicado aos ciganos, outro aos pretos-velhos, um para as ibejadas de
Tony e uma para o caboclo Sete Flechas e sua imagem de um metro e sessenta centímetros.
Nesses altares dedicados a uma entidade particular, ou grupo delas, são dispostas
outras coisas além das imagens. Junto às imagens de Rosinha da Cachoeira e Tinoco, como

139
Como vimos anteriormente, quando foi apresentado o CUCA.
173

podemos ver na Foto 14, foram postos carrinhos, estilingues, uma garrafinha de guaraná e uma
pequena cascata. As coisas são de Tinoco, a ibejada principal de Tony, quem realmente aparece;
Rosinha tem uma presença menos visível e mais particular.
No congá principal, estão diversas imagens - muitas delas encomendadas diretamente
à fábrica de Rosemere - que vão mudando de lugar ao longo do ano. Ocupam sempre os mesmos
lugares que estão sobre as prateleiras - o Sagrado Coração de Jesus e, da esquerda para direita,
Sant’Ana, São Miguel Arcanjo, Nossa Sra. da Apresentação, Santa Apolônia, Santa Joana
D’Arc e Nossa Senhora Aparecida - e a imagem de iemanjá, ao centro do pequeno laguinho e
sobre os peixinhos cor de laranja.
Nesse registro de outubro de 2016, no primeiro patamar, ao redor de iemanjá, estavam
as Crianças, Cosme, Damião e Doum - que em junho, quando estive lá pela primeira vez,
estavam bem afastados, na extremidade, à esquerda, onde nesta foto estão os caboclos. São
Jorge, Santa Bárbara, pretos-velhos, caboclos, São Sebastião e São Jerônimo vão, ao longo do
ano, ocupando diversos lugares nesse congá.
Os congás nos permitem perceber as entidades e guias que atuam e dirigem um centro,
da concepção estética dos dirigentes, e sua organização e decoração nos indicam os
homenageados do dia ou mês. Os níveis e localização do congá e dos altares nos dizem sobre
hierarquias, lugares e datas do panteão e da cosmogonia umbandista. Próximo à porta exus,
pombagiras e demais energias e entidades das ruas; acima de todos, Jesus, ao centro entidades
importantes e festejadas.
Entre setembro e outubro os congás são coloridos, de azul e rosa, com tecidos e bolas.
Cosme, Damião, Doum e as Crianças ganham centralidade no espaço que dividem com santos,
santas, caboclos e pretos-velhos que, ao longo do ano, também têm seus dias de centralidade.
Nos centros, durante as giras, podemos ver melhor, nas interações entre coisas e
pessoas, como as Crianças se apresentam em distintas mídias e como elas se relacionam. A
seguir veremos como às imagens juntam-se brinquedos e outras coisas que durante a gira são
manipuladas pelos médiuns, e como estes têm seu corpo transformado e colorido para receber
as Crianças.
174

5. Vestir, brincar, trabalhar

Neste capítulo, como o título anuncia, trataremos das roupas, vestidas pelos médiuns,
e dos brinquedos das ibejadas, com os quais as Crianças brincam e trabalham. O que não está
expresso no título é que este capítulo é também sobre performances e corpos. Vestir e trabalhar
serão aqui tratados enquanto performances realizadas entre pessoas, roupas e brinquedos, em
contexto ritual.
A performance pode ser compreendida, como nos diz Diana Taylor (2013), ontológica
e epistemologicamente.

Performance, em um registro, é o objeto de análise dos estudos de


performance que envolvem comportamentos teatrais, ensaiados ou
convencionais adequados à ocasião. Essas práticas são geralmente separadas
daquelas à sua volta para constituírem objetos de análise distintos. [...] Dizer
que alguma coisa é uma performance constitui uma afirmação ontológica. Em
outro registro, ‘performance’ também constitui uma lente metodológica que
permite aos estudiosos analisar eventos enquanto performances. Entendê-los
como performances indica que a performance também age como
epistemologia. A prática encorporada junto e atrelada aos discursos culturais,
oferece um modo de conhecimento. A relação é/como ressalta o entendimento
da performance como algo simultaneamente ‘real’ e ‘construído’, como
práticas que reúnem o que historicamente foi separado como discursos
distintos, supostamente independentes, ontológicos e epistemológicos. (ibid.,
p. 10)

Ao longo deste capítulo a performance será acionada menos enquanto conceito


prescritivo e mais como lente – em outras palavras, mais epistemológico do que ontológico – ,
que nos dará determinado foco e enquadramento. Considerar as giras de ibejada enquanto
performances nos permitirá pensar acerca dos comportamentos específicos, convencionais e
encorporados desse ritual, onde médiuns e assistentes transformam-se para receber, ver e
interagir com as Crianças. Como veremos adiante, as giras são rituais com uma performance
marcada, um comportamento codificado, que transforma as pessoas e presentifica as Crianças
(SCHECHNER, 2012). Nessas performances, os corpos, de médiuns e assistentes, engajam-se
na experiência multisensorial dessas entidades (LANGDON, 2006). Performance aqui não será
acionada para distinguir realidade e encenação, ator e plateia, real e construído, e tampouco
para pensarmos na performatividade enquanto qualidade do discurso e da linguagem
(AUSTIN,1975; BUTLER, 1993; BAUMAN&BRIGGS, 1990). Nas giras de ibejada as
performances são faladas, mas também vestidas e gesticuladas, têm formas, cores, sons e
sabores; aqui estaremos, portanto, pensando mais na qualidade encorporada da performance.
175

Para considerar essas performances faz-se, então, necessário pensar que corpos são
esses nos quais elas se ancoram. Miriam Rabelo (2011) propõe uma abordagem que
compreenda o corpo nas práticas religiosas não como uma entidade delimitada, mas espalhada
por espaços e objetos. Para a autora,

Superar a dicotomia entre sujeito e objeto envolve conduzir a análise não só


em direção a uma redefinição do subjetivo pela mediação do corpo, mas
também rumo a uma reflexão que recupere os nexos entre corpos, lugares e
coisas na dinâmica da experiência social. Isso envolve colocar seriamente a
pergunta: o que é mesmo o corpo de que estamos falando? [...] o corpo não é
uma entidade fechada ou separada do seu entorno por contornos bem
definidos. Estende-se para fora, abre-se aos lugares e sintoniza-se às coisas e
pessoas que constantemente o solicitam. Incorpora objetos e, não raro, é
incorporado a séries de objetos. Seu alcance e suas fronteiras são móveis –
não preexistem à ação ou ao movimento, mas definem-se nele. (ibid. , 2011,
p. 26)

Nas giras de ibejada, os corpos se estendem pelo salão e demais espaços do centro e
em roupas, acessórios, tecidos, brinquedos, objetos, doces. Em outras palavras, Csordas (2008)
também ressalta que a atenção ao corpo exige também um olhar (e sentir) ao mundo que este
corpo está.

Porque a atenção implica tanto um envolvimento sensorial como um objeto,


devemos salientar que a nossa definição se refere tanto à assistência "com"
como à assistência "ao" corpo. Em certa medida, devem ser ambos. Atentar a
uma sensação corporal não é atentar ao corpo como um objeto isolado, mas
sim atentar à situação do corpo no mundo. A sensação envolve algo no mundo,
porque o corpo "já está sempre no mundo". (CSORDAS, 2002, p. 244)140

Os corpos – assim como as roupas, brinquedos, doces – não são apenas objetos nas
giras, mas são eles próprios sujeitos nesses rituais, onde e a partir dos quais as Crianças se
apresentam. O mundo da gira, no qual estão os corpos dos médiuns e consulentes, é composto
por coisas e entidades, sons e cheiros que também envolvem os corpos e são por eles sentidos
– e estar atento aos corpos e coisas da gira significa considerar que meu corpo também está, em
situação de trabalho de campo, sentindo essas entidades, este ritual. Neste capítulo, veremos
como o vestir e o trabalhar das Crianças são performances encorporadas em coisas e pessoas
que interagem para presentificar as ibejadas e fazer o ritual.

140
No original, “Because attention implies both sensory engagement and an object, we must emphasize that our
working definition refers both to attending "with" and attending "to" the body. To a certain extent it must be both.
To attend to a bodily sensation is not to attend to the body as an isolated object, but to attend to the body's situation
in the world. The sensation engages something in the world because the body is "always already in the world."
176

Primeiramente, trataremos o vestir enquanto prática performática que nos permite


pensar nas roupas de erê que recobrem e transformam os corpos dos médiuns adultos, e nas
cores, gestos e estampas que nos permitem acessar e experienciar essas entidades infantis.
Vistas nas lojas, as roupas nos permitem compreender os critérios e crivos que guiam a escolha
da roupa de uma Criança. Nas giras, veremos como as roupas vestem e são vestidas e como,
além dos tecidos e estampas, vão aparecendo os gestos, sons, cores e sabores das ibejadas.
Nas sessões de consulta, poderemos observar como o espaço é reordenado para a
chegada das Crianças. Antes do início das sessões, vemos os médiuns arrumando as coisas de
sua Criança, preparando cuidadosamente o espaço onde mais tarde receberá os consulentes.
Nestas ocasiões, as ibejadas são chamadas para trabalhar e o trabalho dessas entidades
realiza-se no brincar. Nas consultas pessoas e entidades se relacionam com pedidos,
agradecimentos, abraços, beijos, suspiros, peras, guaraná.

5.1 Vestir-se de Criança

No verbete “tecido e vestuário” (cloth and clothing) do “Handbook of material


culture” (TILLEY, 2006), Jane Schneider afirma que

O tecido e o vestuário constituem a categoria mais ampla imaginável de cultura


material, cobrindo um domínio espacial que se estende desde os quilômetros de
têxteis produzidos anualmente à mão ou na fábrica até ao vestuário mais íntimo
do corpo humano, e um domínio temporal cujos primeiros momentos, perdidos
para a arqueologia devido à má preservação, datam do pré-neolítico. Dentro da
categoria estão incluídas as dualidades familiares ao pensamento social ocidental:
produção versus consumo; utilidade versus beleza; o presente versus a
mercadoria; comunicação simbólica versus a materialidade de cores, desenhos,
formas e texturas. (SCHNEIDER, 2006, p. 203)141

As roupas, portanto, nos permitem discutir produção, consumo, classe, economia


globalizada e ritual, onde as compreendemos a partir de sua espiritualidade e estética. Por serem
categorias bastante amplas e já estabelecidas, muitas vezes são acionadas entre um pólo ou
outro das dualidades que conformam o pensamento social ocidental, deixando pouca margem

141
Tradução minha, no original : “Cloth and clothing constitute the widest imaginable category of material culture,
covering a spatial domain that extends from the miles of textiles annually produced by hand or factory to the most
intimate apparel of the human body, and a temporal domain whose earliest moments, lost to archaeology because
of poor preservation, pre-date the neolithic. Encompassed within the category are the familiar dualities of Western
social thought: production versus consumption; utility versus beauty; the gift versus the commodity; symbolic
communication versus the materiality of colors, designs, shapes, and textures”.
177

para as ambiguidades e ambivalências que essas materialidades também portam e a partir das
quais podemos inferir uma série de questões. Mas na verdade, as roupas podem ajudar na
ultrapassagem dessas dicotomias, porque elas podem ser úteis e bonitas, simbólicas e materiais,
coisa e pessoa.
Cumpre sempre lembrar que Marcel Mauss (1924) já postulava essa conjunção de
coisas e pessoas, ao afirmar que na coisa dada estava imbuído o espírito do doador e que, nas
coisas trocadas, confundiam-se pessoas e espíritos. No caso das roupas, essa aproximação de
coisas e pessoas, como afirma Stallybrass (2008), é transformadora: “a mágica da roupa está no
fato de que ela nos recebe: recebe nosso cheiro, nosso suor; recebe até mesmo nossa forma”
(ibid., p. 10). A coisa roupa absorve a presença da pessoa que a veste, e assim a roupa transmuta-
se em um tipo de memória, ao tornar presente, pela forma e pelo cheiro, quem faz-se ausente.
As roupas vestem corpos e vão por eles sendo transformadas - e o contrário também acontece,
os corpos também se transformam pelas roupas - adquirindo suas formas e movimentos. Nas
roupas, portanto, confundem-se corpos e tecidos, pessoas e coisas, presença e ausência.
As roupas também transformam ao provocarem emoções e comportamentos. Ao nos
falar das roupas dos foliões de uma cidade do interior fluminense, Gilmar Rocha (2014) nos
mostra como, junto às máscaras de adereços, as vestes são parte de um sistema de objetos que
constituem identidades culturais e possibilitam experiências cosmológicas.

No caso da folia, vestir o uniforme ou a farda significa realizar um ato ritual


no qual o indivíduo penetra, temporariamente, num outro mundo passando a
viver, fenomenologicamente, uma história mítica permeada de obrigações,
tabus, perigos, emoções, sacrifícios, aventuras. [...] podemos dizer que a
indumentária do folião é uma espécie de “coberta d’alma” que lhe dá proteção
e lhe impõem uma persona. Assim, vestir o uniforme ou a farda na folia,
portanto, uma “roupa especial” investida de valor simbólico e ritual é, na
verdade, vestir um tipo de “pessoa”. (ROCHA, 2014, p. 13)

Segundo Rocha, as roupas dos foliões são animadas porque têm ânima e vesti-las é um
ato ritual que implica a adoção de um outro comportamento – e, nesse sentido, vestir-se é
performar uma personagem, uma entidade. Ao vestir a farda, veste-se um tipo de pessoa, veste-
se (de) o folião. A performance seria uma extensão da indumentária, que tem início no vestir,
quando o corpo é recoberto e transformado, e a partir daí assume-se a nova identidade, um outro
gestual. Com as roupas, as pessoas performam e ritualizam identidades.
Ao nos falar da noção de roupa nas ontologias amazônicas, Viveiros de Castro (1996)
nos traz uma outra dimensão do vestir enquanto ato transformador. Entre os ameríndios, a roupa
seria, ela própria, um corpo. Ao vestir-se como um animal, a pessoa não estaria tentando
178

encobrir a forma humana, mas sim ativar naquele corpo os poderes animais. As roupas seriam
instrumentos para acessar um outro - mundo, forma, pessoa, animal - e “o que se pretende ao
vestir um escafandro é poder funcionar como um peixe, respirando sob a água, e não se esconder
sob uma forma estranha” (CASTRO, 1996, p. 133). As roupas seriam meios que nos permitem
ser um outro, ativando em nós qualidades que, sem a roupa, não possuímos.
Para Karen Hansen (2004), o vestir (to dress) deve ser compreendido enquanto prática
incorporada, que nos permite levar em conta não só o que é vestido, mas quem veste e a forma
como é vestido, ressaltando tanto as propriedades materiais quanto as habilidades expressivas
das roupas e do vestir. Tal ato implica, portanto, um corpo e uma coisa, que são, ao mesmo
tempo, objetos e sujeitos. O que seria, então, vestir-se de Criança?
As roupas são materialidades aqui consideradas sempre em estreita relação com as
pessoas – que as vendem, compram, vestem e as veem sendo vestidas. Com as roupas de erê
os corpos dos médiuns se transformam: ganham cores, estampas, gestos. Vestir-se de Criança
é acessar um outro, sagrado e infantil, é tornar visível, colorida a alegre presença das ibejadas.
Vestir-se de Criança é performance ritual, realizada por pessoas e coisas, corpos e roupas e
acessórios. Os macacões, saias, arcos e bonés estampados com carrinhos, doces, bonecas e
barquinhos não escondem os corpos adultos dos médiuns, mas os transformam e nos permitem
vê-los de outra maneira, colorida e infantil. As roupas são meios para que médiuns e assistentes
recebam (no sentido de incorporar e de dar as boas vindas) e experienciem as Crianças.
Para falar em vestir, é preciso falar também no que é vestido: as roupas de erê.
Voltemos, então, às galerias do Mercadão de Madureira, para vermos como são expostas e
escolhidas as roupas, e quais critérios envolvem a seleção de tecidos e estampas. Em seguida,
vamos às giras, quando as roupas são vestidas. Na gira, quando vemos os médiuns trocarem de
roupa, percebemos que seus corpos estão se preparando para a chegada da ibejada; assim como
nós, sentados na assistência, passamos também a olhar de outra forma para esses corpos, que
agora portam trajes infantis. Vemos as Crianças, chamadas pelo atabaque e pelo canto,
chegando nos corpos que se curvam e, depois, saltitam. Cabeças, pescoços e braços são
coloridos por arcos, bonés, chupetas e pulseiras. Podemos ver, finalmente, como roupas e gestos
transformam corpos e presentificam as Crianças.

5.1.1 As roupas de erê

Saias, batas, vestidos, calças curtas, camisetas, macacão e jardineira (ou salopete) são
peças que conformam o vestuário das Crianças. As batas são peças comuns, mas as demais
179

costumam distinguir o gênero: saia, vestido e jardineira são roupas de menina; calça, camiseta
e macacão vestem os meninos - ressaltando que aqui estamos falando do gênero das Crianças e
não dos corpos que as recebem142. As peças costumam combinar entre si: saia e bata ou macacão
e camiseta, com cores e estampas semelhantes. Fitilhos de cetim e bordados de renda dão
acabamento e adornam as roupas. Para completar o conjunto, pequenas bolsas, de alças longas
para serem usadas transpassadas, complementam o conjunto.
Sobre os materiais dessas roupas, descobri nas visitas ao Mercadão e em conversas
com vendedores que os tecidos mais utilizados são o tricoline e o gorgurinho, ambos compostos
por algodão e poliéster, tendo o tricoline maior concentração de algodão e, por isso, sendo um
pouco mais caro. Outra distinção é a textura: enquanto o tricoline é um tipo liso de fazenda, o
gorgurinho costuma ter pequenas ondulações. Com menos frequência, encontramos roupas de
cetim, outro tecido barato, que, apesar de ser mais brilhoso, é menos colorido, já que a variedade
de estampas é bem reduzida. Esses tecidos são bastante comuns, utilizados para a confecção de
cortinas, capas de almofadas, bolsas e, claro, roupas (ainda que este não seja seu uso mais
corrente). Com isso quero destacar que não é, necessariamente, o tecido que particulariza ou
sacraliza essas roupas, uma vez que estamos falando em materiais socialmente neutros
(SCHNEIDER,1987, p. 414) - ao contrário de outros materiais, como a palha da costa143.
Como ocorre com as imagens, as roupas de erê também passam, entre setembro e
outubro, à frente das lojas, onde as araras repletas de saias e macacões expõem as peças e
anunciam as promoções. Uma saia já pronta costuma sair pelo mesmo preço de cinco metros
de tecido, quantidade necessária para a confecção de uma saia rodada, faltando ainda
contabilizar os aviamentos e a mão de obra da costura. É, portanto, mais prático e barato
comprar as roupas já prontas144, mas nem sempre essas peças atendem às demandas dos
compradores.

142
Uma mulher que recebe um menino, veste-se com calça ou macacão; mas nunca vimos um homem recebendo
uma menina e usando vestido ou saia de Criança - mas já vi em uma ocasião um homem vestindo uma saia, ao
receber uma pomba-gira.
143
Fibra de ráfia, muito utilizada no candomblé, na confecção de vestimentas de orixás como omolu, ewá, oxumaré
e nanã; e é matéria prima de alguns artigos utilizados pelos neófitos, como o contraegum (ikan), um fio de palha
da costa trançado que, amarrado aos braços, afasta os espíritos dos mortos.
144
Na maior loja de roupas e tecidos do Mercadão, perguntei a um vendedor sobre o fornecimento dessas roupas
já prontas, ao que ele me respondeu que todas as roupas são confeccionadas em duas fábricas de “fundo de quintal”.
Em outras lojas, menores, responderam-me que trabalhavam diretamente com uma ou duas costureiras. Em
nenhuma loja consegui o contato dessas fábricas ou costureiras. O vendedor de uma loja me disse que o dono
evitava dar o contato por receio de algum concorrente roubar sua fornecedora, um outro comentou que era difícil
conseguir falar ou visitar essas pequenas confecções, pois costuma haver o receio de que seja fiscalização
trabalhista - o que também ocorre, como vimos, com as fábricas de imagens.
180

Enquanto eu conversava com um vendedor sobre tecidos e preços, chegou uma cliente
que desejava catorze metros de tricoline, de fundo rosa e estampado com abelhas e coroas, pois
na semana anterior havia sonhado com isso e já tinha ido a várias lojas atrás de um tecido com
essas características. A festa já estava próxima e ela até já tinha comprado uma saia, mas depois
do sonho entendeu que ia ter que providenciar outra roupa. O vendedor lhe respondeu que nunca
tinha visto tecido com essa estampa, mas ela disse que seguiria procurando, pois “tinha de
achar” em algum lugar – um "ter” que parecia denotar um misto de esperança e obrigação.
Para o vendedor aquele era um exemplo de gente que “aloprava” com as estampas e
exagerava na quantidade de tecido. Sua autoridade julgadora, segundo ele, legitimava-se pela
experiência no comércio de tecidos e pelo fato dele ser filho de santo. Mas ele dizia que tentava
ver esses pedidos com olhar comercial, porque se fosse se basear nos preceitos que segue em
seu terreiro, ele ia deixar de vender muita coisa. Já teve gente pedindo mini saia para Mariazinha
e cliente que “não sabe do corpo que tem” e se esquece que a entidade é infantil mas o corpo já
tem mais idade e “não cabe ficar usando coisa curta”. Apesar de não concordar com muitos
pedidos, ele procurava ser discreto nos comentários, mas às vezes, quando sentia o cliente mais
aberto a opiniões, acabava dando seus palpites, baseando-se no que achava ser o mais respeitoso
às entidades.
Em alguns casos, a definição da roupa escapa do âmbito da relação entidade-médium.
Na Taba Caboclo Sete Flechas, o dirigente Tony estabelece uma espécie de uniforme para as
giras festivas, pois acha que esteticamente fica mais agradável que todos estejam vestindo
roupas parecidas. Para cada festa do calendário litúrgico ele escolhe uma cor – em 2016, quando
acompanhei a gira das Crianças de seu centro, a cor era o verde, que tingia as batas dos filhos
e filhas da casa.145 Havia possibilidade de variação nas saias e calças e, nestas peças, as cores e
estampas eram escolhidas a partir dos gostos do médium e das entidades. Conversei com uma
médium que, apesar de não gostar da combinação de verde e amarelo, teve de ir com uma saia
estampada com bonequinhas, cuja principal cor era, justamente, o amarelo, a favorita de sua
Criança. Um homem contou-me que havia escolhido para sua calça um tecido de fundo verde
e estampado com carrinhos por considerar a combinação com a bata, já que sua Criança ainda

145
Neste ano, era todas realmente iguais, já que o próprio Tony confeccionou as roupas dos médiuns, todas com
o mesmo tecido – um cetim verde bandeira. Mas esse foi o primeiro ano que isso aconteceu, fato que deve-se à
situação de desemprego do Tony, que pôde dedicar-se somente às atividades do centro e com isso tinha mais tempo
para costurar; além disso, a atividade também lhe rendeu algum dinheiro, pois as peças foram cobradas aos
médiuns.
181

não tinha manifestado nenhuma preferência por cor e, por ser menino, certamente gostaria de
carrinhos.
A uniformidade das roupas também podem assumir outros sentidos que não o estético.
Há centros que utilizam uniforme (às vezes chamado de fardamento), onde as entidades não
vestem roupas específicas, apenas adornos, como no caso que veremos mais adiante. Um dos
dirigentes de um centro em Colégio disse-me que a doutrina que segue opta pelo fardamento
justamente para evitar o exagero, o supérfluo. Para ele, as entidades não precisam de nada para
se fazerem presentes e realizarem seus trabalhos. Não é que as roupas e demais acessórios
atrapalhem, mas às vezes “tiram o foco do que é essencial”. As Crianças de sua casa têm seus
brinquedos e acessórios, mas aos médiuns são recomendadas cautela e parcimônia na escolha e
compra de coisas para as suas Crianças, e, sobretudo, cuidado para não confundir os seus
próprios desejos com as vontades das entidades, que dificilmente precisam de tantas coisas.
Quando têm seus desejos atendidos, as Crianças demonstram seu agrado. Num centro
em Nova Iguaçu, conversei com uma alegre Rosinha da Cachoeira que me mostrava, toda
sorridente, a roupa nova que haviam feito para ela. Um conjunto de bata e saia cor de rosa,
estampado de rosas e adornado com pequenas rosas de cetim. Rosinha contou-me que a roupa
estava exatamente como ela havia pedido e que aquela era sua roupa mais bonita.
Há também algumas Crianças que gostam de roupas e acessórios bastante específicos.
Em 2013, num centro localizado em Pechincha, assistimos – eu, Renata e Lucas – a uma gira
de ibejada realizada no dia das crianças. O centro era grande e havia muita gente, tanto no salão,
na parte coberta, quanto no quintal. Havia também muitos médiuns que, com a chegada das
Crianças, se espalharam pelo salão e quintal, com suas coisas e comidas, prontos para
receberem visitantes e consulentes. Uma Criança chamava atenção pela fila que se formava
para pessoas que queriam com ele se consultar e pela roupa que vestia. Era um palhaço: com
peruca colorida, macacão e sapatos grandes e coloridos – uma roupa que poderia ter sido
especialmente confeccionada de acordo com as especificidades necessárias, ao mesmo tempo
que poderia ter sido comprada em uma loja de fantasias. Num canto, embaixo de uma árvore,
estava sentada uma ibejada que chamou minha atenção pelas poucas e escuras cores de suas
roupas e coisas. Ele tinha muitas bananadas e balas de coco, e como brinquedo tinha aranhas,
morcegos, cobras de plástico; e ainda usava uma dentadura plástica de vampiro – o que tornava
ainda menos compreensível sua fala. No meio de tantas cores, luzes, brilhos, bonecas e
bichinhos de pelúcia, chamaram minha atenção essas duas Crianças: uma por ter poucos
brinquedos, uma roupa simples e ser, de alguma forma, sombria; e a outra por, mesmo naquela
182

situação, parecer exageradamente colorida – e pelo fato de não parecerem estar vestidas como
as demais Crianças.
Algumas roupas e acessórios expressam não só o gosto das entidades por determinadas
cores, mas também o desejo de serem, elas próprias, outros. A ibejada com dentadura de
vampiro não era a encarnação de um espírito que em vida terrena fora um vampiro; mas ali
estava uma Criança que gostava de brincar com os afiados dentes de plástico. Os médiuns
adultos se vestem de Crianças e estas, por sua vez, também se vestem de um outro e, nesse
aspecto, o vestir é também uma brincadeira. O médium não está brincando de ser Criança, mas
esta veste-se para brincar, de ser palhaço ou vampiro. Há, portanto, uma distinção entre o vestir
do médium e o da ibejada, que vão sobrepondo ao corpo (do médium) camadas de roupas e
acessórios, e sobre o outro surge ainda um terceiro: o médium que se veste de Criança que se
veste de palhaço.
Há ainda um ponto que gostaria de ressaltar. Como disse anteriormente, nas imagens
vemos Crianças um tanto anacrônicas, com estilo datado, que remete a décadas atrás. Mas, nas
roupas, podemos perceber – nas cores, estampas e formas – atualizações. Há roupas, por
exemplo, com estampas de personagens de filmes e desenhos infantis, ilustrações que atualizam
a apresentação da Criança. Ao compararmos as imagens de gesso policromado e as roupas de
tricoline ou gorgurinho coloridos e estampados, podemos comparar representações e
apresentações que presentificam Crianças em formas e cores de distintas temporalidades.
Relacionar essas coisas nos permite pensar nas representações estabilizadas dessas entidades,
que ocupam altares, congás, vitrines e prateleiras; e nas inovações nas apresentações dessas
Crianças em araras, corpos e salões dos centros de umbanda. As imagens e roupas de erê
colorem nas giras os altares e os corpos, aproximam temporalidades distintas e nos deixam ver
Crianças de agora e de outros tempos.
183

Fotos 15, 16 e 17: Roupas de erê expostas em lojas do Mercadão de Madureira

Morena Freitas, Mercadão de Madureira, setembro de 2014.


184

Como podemos ver, a escolha de uma roupa pode seguir uma série de critérios. Pode-
se considerar a economia, financeira e de esforços, ao escolher dentre as roupas já prontas qual
a mais adequada à sua Criança. Por vezes o critério é menos individual, e obedece às diretrizes
do centro, comum a todos os seus membros – mas quase sempre há nesses casos uma margem
para algumas peças ou detalhes que podem ser escolhidos a gosto do médium ou de sua Criança.
Cores e estampas conferem singularidade às roupas, que deixam de ser genericamente de erê,
para ser, por exemplo, da Rosinha. As escolhas vão passando por diversos crivos: do vendedor,
de quem costura, do dirigente da casa e da Criança; havendo sempre o perigo de transgredir os
limites - de preço, de respeito às entidades, de obediência aos pedidos das Crianças, de
atendimento às ordens superiores. As roupas, assim como as imagens, materializam gostos,
desejos, ordens e diretrizes; que conferem tonalidade e formas às Crianças e suas giras – para
onde seguimos agora.

5.1.2 A alegria nos corpos

As giras são rituais ordenados, coletivos e performáticos (TAMBIAH, 1985;


PEIRANO, 2002), que além de uma temporalidade própria, possuem e produzem uma
realidade outra, à parte daquela vivida cotidianamente; e nestas situações as pessoas podem,
ainda que temporariamente, experimentar uma transformação, performar um outro. Como dito
anteriormente, performance é um conceito, e de maneira mais ampla, um termo que pode ser
usado em vários contextos e compreendido de distintas formas. Por mais que não seja simples
acioná-lo, o conceito de performance tem, como nos lembra Taylor (2013, p. 16), sua
rentabilidade, “uma vez que o termo implica simultaneamente um processo, uma práxis, uma
episteme, um modo de transmissão, uma realização e um meio de intervir no mundo, ele em
muito excede as possibilidades de outras palavras oferecidas em seu lugar”. Por isso, como já
dito, não pretendo utilizá-lo de maneira prescritiva, mas enquanto uma lente que me permite
enxergar certos traços e contornos e, portanto, faz-se necessário trazer alguns autores que
conformam a curvatura dessa lente e o qual o foco que ela me proporciona.
Schechner (2012) relaciona performance, jogo e ritual numa abordagem que ao invés
de propor rígidos limites, aponta as possibilidades de espalhamento e espelhamento entre e por
esses domínios.
185

[...] uma definição de performance pode ser: comportamento ritualizado


condicionado/permeado pelo jogo. Rituais são memórias em ação, codificada em
ações. Rituais também ajudam as pessoas (e animais) a lidar com transições
difíceis, relações ambivalentes, hierarquias e desejos que problematizam,
excedem ou violam as normas da vida diárias. O jogo dá às pessoas a chance de
experimentarem temporariamente o tabu, o excessivo e o arriscado. Ambos, ritual
e jogo, levam as pessoas a uma ‘segunda realidade’, separada da vida cotidiana.
Esta realidade é onde eles podem se tornar outros que não os seus diários. Quando
temporariamente se transformam ou expressam um outro. Por isso, ritual e jogo
transformam as pessoas, permanente ou temporariamente. [...] Na religião, rituais
dão forma ao sagrado, comunicam doutrina e moldam indivíduos dentro de
comunidades. Rituais religiosos são claramente marcados. Nós sabemos quando
nós os performamos. (SCHECHNER, 2012, p. 50)

Langdon (2006) analisa os estudos de performance desenvolvidos no Brasil, a partir


das publicações, mesas redondas e grupos de trabalho propostos e realizados por pesquisadores
que se debruçam sobre o tema. Tal estudo se propunha identificar as abordagens teórico
metodológicas da noção de performance nos estudos antropológicos brasileiros, que se apoiam
notadamente sobre as obras de Victor Turner, Richard Schechner, Walter Benjamin, John
Austin, Stanley Tambiah; enquanto são poucas as citações à vertente analítica representada por
Richard Bauman e Charles Briggs, referências comuns nas pesquisas norte-americanas. Ao
fazer uma revisão das diversas definições de performance propostas pelos autores que aqui são
recorrentemente citados, Langdon destaca algumas qualidades que relacionam distintas
abordagens, dentre as quais menciona: o fato de serem situações que põem a experiência –
pública, momentânea e interativa – em relevo; e a dimensão multisensorial, por vezes
sinestésica, dessa experiência vivida por corpos engajados.
A partir disso, o que aqui gostaria de salientar ao pensar as giras de ibejada enquanto
rituais onde as Crianças são performadas, são os comportamentos codificados com os quais os
corpos se engajam para que, durante a gira, médiuns e assistentes possam experienciar, ainda
que temporariamente, as Crianças. Nesta sinestésica performance, os corpos, ao invés de pré-
determinados, se constituem na interação com as coisas, como as roupas e brinquedos. Pessoas
e coisas estão engajadas na performance das ibejadas e a atenção à forma sensorial (MEYER,
2019) desses rituais nos permite compreender como as Crianças são experienciadas pelos
sentidos, considerando não somente os corpos que se engajam no transe, mas também naqueles
que, sentados nos bancos da assistência, veem e sentem as ibejadas. Observando os corpos dos
médiuns durante as giras, como percebemos que ali começam a se fazer presentes as Crianças?
Para Mauss (2003 [1935]), o corpo é “o primeiro e mais natural objeto técnico, e ao
mesmo tempo meio técnico, do homem” (p. 407). A técnica seria um ato tradicional e eficaz, e
as técnicas do corpo seriam “as maneiras como os homens, de sociedade a sociedade, de uma
186

forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo” (p. 401): comer, andar, nadar, agachar, correr;
nada disso é natural, são todas técnicas corporais. Em ‘As técnicas do corpo’, o autor sugere
princípios de classificação dessas técnicas: por sexo, por idade, rendimento e transmissão das
técnicas; e propõe ainda uma “enumeração biográfica das técnicas do corpo”. Nesta, as técnicas
são enumeradas em função do acompanhamento de um indivíduo no decorrer da sua vida:
nascimento, infância, adolescência e fase adulta (sendo esta a mais detalhada), vendo técnica
“onde geralmente se vê apenas a alma e suas faculdades de repetição” (p. 404). Inspirada por
essas reflexões que relacionam idade física e um determinado repertório gestual, interessa-me
pensar em como um corpo adulto recebe um espírito infantil, e como se comporta a partir desse
momento. Quais seriam as técnicas de um corpo infantil? E em quais gestos um corpo adulto
se infantiliza?
Além de uma performance da infância, gostaria de também pensar sobre uma
performance da alegria.

[…] todas as expressões coletivas, simultâneas, de valor moral e de força


obrigatória dos sentimentos do indivíduo e do grupo, são mais que meras
manifestações, são sinais de expressões entendidas, quer dizer, são linguagem.
Os gritos são como frases e palavras. É preciso emiti-los, mas é preciso só
porque todo o grupo os entende. É mais que uma manifestação dos próprios
sentimentos, é um modo de manifestá-los aos outros, pois assim é preciso
fazer. Manifesta-se a si, exprimindo aos outros, pois assim é preciso fazer. É
essencialmente uma ação simbólica. (Mauss, 1979[1921], p. 153)

Mais uma vez recorro a Mauss (1979[1921]), que, a partir do caso dos rituais funerários
da Austrália, discutiu como expressões de sentimentos não são apenas um fenômeno individual,
mas coletivo, simbólico e comunicacional. Para que a mensagem emitida seja corretamente
interpretada, há um modo de manifestar os sentimentos. No nosso caso, como a alegria se
manifesta? E, mais especificamente, como os corpos manifestam a alegria que sentem ao
receberem as ibejadas? Da assistência, além de entender que nos corpos dos médiuns estão as
alegres ibejadas, muitas pessoas também passam a sentir, elas próprias, alegria.
Pensando em técnicas corporais e expressões obrigatórias de sentimentos, gostaria de
pensar em como a alegria deve ser manifestada para que aqueles sentados na assistência possam
sentir a alegria das Crianças que tomam os corpos dos médiuns. Os pulinhos, beijinhos, o rodar
da saia, risadas e gritos expressam a tão evocada alegria das Crianças. E como estamos aqui
falando de uma abordagem material, consideramos que as cores e estampas das roupas das
Crianças são parte fundamental nessa performance das alegres ibejadas. As Crianças são
inegavelmente felizes porque suas roupas e os corpos que as vestem têm cores, estampas, falas
187

e gestos que convergem com o que imaginamos ser expressões da alegria. Há uma série de
coisas na forma sensorial da umbanda que presentificam as ibejadas e nos permitem sentir –
ver, tocar, degustar, ouvir – a sagrada alegria das Crianças. Nas giras de ibejada, os corpos e
outras coisas performam (um estágio de) a vida e um sentimento, a infância e a alegria.
Vejamos, então, como as ibejadas são performadas nas giras.
Em 2016 assisti a uma gira de ibejada em Olaria, bairro da zona norte do Rio de
Janeiro. Durante a primeira parte da gira, a dirigente da casa vestia uma saia branca de tecido
brilhoso e adornada por rendas e fitilhos – sob a qual pareciam estar anáguas bem engomadas
que conferiam uma estrutura firme e volumosa –, uma bata rendada e a cabeça enrolada num
torso também branco.146 Depois de um primeiro momento, quando defumaram o ambiente e
deram início à gira, saudando entidades e orixás, houve um intervalo, durante o qual nos foram
oferecidos refrigerante, cachorro-quente e pipoca. Quando terminamos de comer, os médiuns
estavam com outras roupas. A dirigente agora vestia um macacão azul e, sobre a cabeça, um
boné da mesma cor, com a aba virada para trás. Seu corpo era agora mais visível, assumira outra
forma – víamos suas pernas e o macacão era justo ao seu corpo, não havia mais o volume e o
arredondado das anáguas e da saia. Estava também mais colorido, porém menos adornado.
Junto com a bata, a saia e o turbante, foram as rendas, os fitilhos e o brilho; havia ido também
uma certa aura de autoridade – já que uma roupa com brilho e tão adornada (in)vestia alguém
de importância, em contraste às demais saias e batas que eram mais simples. A mulher seguia
sendo a dirigente da casa, mas agora, vestida num macacão azul de calças curtas, ela não parecia
se distinguir de seus filhos; em certa medida, ela não parecia mais uma mãe, mas uma Criança,
um menino.
Antes mesmo das ibejadas chegarem, desde que adentram o centro os corpos dos
médiuns já vão se transformando. Costuma-se tomar um banho, às vezes com algumas ervas,
após o qual são vestidas as roupas do centro ou terreiro – saia e bata ou camisu, calça e camiseta
ou bata, às vezes há também um torço que envolve as cabeças das mulheres ou filá (uma espécie
de gorro) sobre a cabeça dos homens; roupas que podem ser brancas ou coloridas e sobre as
quais ainda são postos os fios de conta. Na passagem da rua ao espaço religioso o corpo se
transforma, as roupas de rua são tiradas, é preciso uma limpeza que remova resíduos da rua
antes do início das atividades religiosas.

146
No ano anterior ela já estava com uma roupa mais simples e, ao invés da saia, estava de calça, como podemos
ver na Foto 18.
188

Foto 18: Os médiuns antes da chegada das ibejadas.

Thiago Oliveira, 2015, Olaria.

Foto 19: Os corpos já coloridos e agitados com a chegada das Crianças.

Thiago Oliveira, Olaria, 2015.


189

No caso acima, vemos um segundo momento dessa transformação: os corpos que antes
já estavam preparados para gira, têm agora uma nova roupa que os torna preparados para
receber as ibejadas. As roupas que usaram no primeiro momento poderiam ser usadas em
quaisquer outras giras de pretos-velhos ou caboclos, porém as de agora especificam que naquele
dia as entidades homenageadas são as Crianças – o que já está indicado na decoração do espaço,
na mesa de bolo e no ambiente de festa de aniversário infantil. Os corpos dos médiuns estão
ainda mais preparados para receber as ibejadas e os assistentes também já começam a antever
as entidades infantis. As Crianças ainda não tomaram os corpos dos médiuns, mas eles já estão
vestidos com as suas roupas - o espaço e os corpos já foram transformados para recebê-las.
Nos centros onde é estabelecido o uso de uniformes, o movimento é um pouco distinto
- já que as roupas sempre são as mesmas. A maior transformação dos corpos é depois que
chegam as entidades, e além das roupas, vemos como os arcos, bonés, colares, pulseiras, que
comumente são tratados enquanto acessórios são, na verdade, fundamentais. Além disso, antes
de vermos as cores das Crianças, vemos seus gestos.
O etnopsicólogos Barbosa e Bairrão (2008) fazem uma análise do movimento em giras
umbandistas, utilizando o método Laban, “que visa analisar, segundo elementos de esforço, a
movimentação corporal, assim como a tonicidade muscular, em relação ao peso, tempo, espaço
e fluência” (ibid., p. 225). A partir da análise da gravação dos rituais, procuram estabelecer
padrões nos movimentos dos corpos incorporados, buscando compreender as linguagens
corporais desse culto e suas entidades. Vejamos o que nos contam sobre as ibejadas:

As crianças têm uma forma peculiar de movimentar-se, específica e diferente


de todas as outras classes de espíritos. Elas se movimentam, caminham e
dançam, como se fossem crianças pequenas “estilizadas”, no sentido de
fazerem movimentos exagerados, maiores do que uma criança real faria. [...]
Uma característica interessante da movimentação das crianças é sua falta de
acompanhamento do ritmo da música. Todas as outras entidades que dançam
o fazem, o que auxilia a passar a impressão de uma criança “de carne e osso”.
Quando as crianças dançam, batem palmas e pulam descoordenadamente em
relação à música e com vivacidade, passando a impressão de alegria e
excitação transbordantes do corpo. Geralmente não ficam em pé por muito
tempo. Ficam sentadas e arrastam o corpo para movimentar-se. Têm uma
movimentação livre, no sentido de não apresentar padrão. Engatinham, ficam
deitadas, rolam no chão, pulam, pegam nos pés, balançam o tronco, brincam,
levantam os braços. (BARBOSA & BAIRRÃO, 2008, p. 230)

Este artigo chamou minha atenção por ser um dos poucos a descrever o movimento
das Crianças. Como já afirmei em outros momentos, as ibejadas não costumam receber muita
atenção e nas poucas linhas que lhes dedicam são mencionados os doces e o seu peculiar
190

comportamento, muitas vezes expresso na reduzida afirmação de que são adultos agindo como
crianças.
É interessante a mencionada estilização do comportamento infantil, que seria
exagerado pelas Crianças – o que é particularmente notável quando as vemos em interação com
crianças. Mas haveria uma maneira de um corpo adulto portar-se de maneira infantil que não
fosse estilizada? Os autores não chamam de estilizado o movimento dos pretos-velhos, mas ao
vermos essas entidades também podemos pensar que é uma estilização da senilidade, afinal
nem toda velhice é, por exemplo, corcunda. Com isso, quero destacar que sim, podemos
perceber nos corpos dos médiuns uma estilização do comportamento infantil, mas o mesmo
ocorre com outras entidades; o que nos leva a pensar que o comportamento ritualizado e
codificado que nos permite acessar o outro (SCHECHNER, 2012) é marcado por uma demasia,
que amplifica as características das entidades, nesse caso, infantis. Ou seja, não basta dizermos
que os médiuns quando tomados pelas ibejadas se comportam como crianças - é preciso dizer
que se comportam como Crianças.
Entre o toque dos atabaques e a dança das Crianças realmente parece haver ritmos
distintos. Os pulos, as danças e palmas parecem, inclusive, quase independentes da música -
pois muitas vezes o movimento segue quando a música para, e nos centros onde não há
atabaque, as Crianças também pulam e rodam. É interessante essa ideia da excitação que
transborda do corpo, que poderia nos levar a pensar em como a alegria é expressa por esse
gestual que, ao menos parece, desmedido. A alegre dança infantil não é coreografada, com
movimentos e ritmos precisos; seus movimentos podem, ou não, ser acompanhados por música,
mas não se prendem a ela. Apesar de livre, a movimentação tem seu padrão – afinal, podemos
perceber semelhanças na desordem, todos se comportam de maneira parecida. A alegria infantil
pula, saltita, roda, dá cambalhota e também se senta, reduzindo-se ao balançar dos braços e
troncos. A alegria não é coreografada, mas tem seu, excitante e transbordante, repertório
gestual. Ainda que, como mencionam os autores, há também as Crianças que passam mais
tempo sentadas, tendo os movimentos mais restritos aos braços.
A alegria tem seus gestos e também seus acessórios e cores, que não estão apenas em
roupas. Sobre a cabeça dos meninos, são postos bonés. As meninas colocam arcos ou têm seus
cabelos presos em maria-chiquinha, com prendedores coloridos. Nos pescoços, são pendurados
colares compridos, compostos por chupetas de várias cores. Nos pulsos, coloridas pulseiras. As
Crianças se arrumam com a ajuda dos filhos da casa que não incorporaram, que ficam pelo
salão auxiliando as ibejadas, entregando-lhes seus enfeites, brinquedos, doces, frutas,
refrigerante e água de coco. É evidente – e colorida – a diferença entre quem está ou não
191

incorporado; os corpos que permanecem brancos e eretos, distintos daqueles que tornaram-se
saltitantes, rosas, vermelhos, azuis, verdes, amarelos.
As Crianças gostam de mostrar suas coisas. Meninas gostam de rodar a saia, esticá-las
pelas pontas mostrando como é rodada, meninos mostram seus carrinhos e bichinhos. Gostam
de receber presentes, elogios e comida. Podemos ver como as coisas e os atos de mostrá-las
aos adultos deixam as ibejadas alegres.
Doum, a ibejada da dirigente do centro de Olaria, ficou muito feliz com um caminhão
que acabara de ganhar. Pediu que amarrassem um barbante na frente dele para que pudesse
puxá-lo. Depois de dar algumas voltas, parou em frente ao caminhão e tentou pôr o pé dentro
da caçamba, mas logo lhe chamaram atenção. Disseram que ele não podia subir nele, que ia
quebrar o brinquedo novo. Doum, emburrado e de braços cruzados, começou a reclamar. Dizia
que ele era pequeno, “ela [a médium] que é grandona”; “eu cabo [sic] no caminhão”. Doum
tentava argumentar que ele podia entrar na caçamba, que ele era pequeno e cabia lá; enquanto
reclamava do corpo que lhe recebia, falava que era grande, que tinha que comer menos.
Em uma das giras que fui no CUCA, conversei com uma Ritinha que apontava para
uma imagem e dizia “eu sou igual a ela”. À minha frente eu via uma senhora, que já parecia ter
mais de sessenta anos, bem magra, com pouco mais de 1,50m de altura e cabelos bem curtinhos
e castanhos. Ritinha apontava para a imagem de uma Criança com vestido rosa, cabelos loiros
e compridos amarrados em maria chiquinha, que carregava uma cesta de flores. Ritinha estava
num corpo enfeitado com colar de chupetas e cabelos com presilhas rosas, mas quis me mostrar
que ela não tinha cabelo castanho e curto, mas loiro e comprido.
O corpo de Luciana, dirigente do centro em Olaria, mudou para receber Doum. Bata,
saia e turbante brancos foram trocados por um macacão e um boné azuis. Sua entonação mudou,
e quando Doum se fez presente sua fala estava um pouco enrolada. Seu corpo se movimentava
de outro jeito, sua postura era outra. Ainda assim, Doum chamara atenção que o corpo que
víamos não era o dele.
Ao longo do texto, falei em corpos de médiuns e roupas de Crianças, numa forma de
explicitar que, ainda que sobrepostas, são duas partes que não se confundem. O corpo vestido
não é o corpo da ibejada, mas o corpo do médium vestido de Criança, como nos lembram Doum
e Ritinha. Vemos as Crianças naqueles corpos, mas nunca exatamente como elas são - a
começar pelo fato de serem corpos adultos. As roupas transformam os corpos, os tornam mais
infantis, para que ali cheguem e sejam vistas as ibejadas. O adulto que ali estava torna-se menos
presente, agora que o corpo se movimenta de outra maneira, desordenada e colorida. A entidade
192

infantil faz-se presente, podemos ver e sentir sua alegria, mas segue havendo algo que não
podemos enxergar.
As imagens são mais parecidas com as Crianças, mas é nos corpos dos médiuns que
elas ganham movimento. Nas cores e estampas das roupas e acessórios vamos descobrindo seus
gostos. Em cada coisa vamos conhecendo e vendo uma parte dessas entidades, percebendo
como se movimentam, qual a cor de seus cabelos, das brincadeiras que gostam, dos doces e
frutas de seu agrado.

5.2 Trabalhar e brincar

Como vimos, no CUCA as sessões de quarta-feira são sempre de consulta, que


também podem acontecer aos sábados, após as correntes. Nas sessões de consulta pude ter um
contato regular com as Crianças e, a cada mês, descobrir um pouco mais de seus gostos, gestos,
paladares, brincadeiras e trabalhos. Ao longo do ano, portanto, as Crianças trabalham, pelo
menos, nove noites e é sobre esse trabalho que agora iremos tratar.
Conforme informam na programação que enviam por e-mail e disponibilizam na
página do facebook e no mural do centro, as sessões de consulta das quartas-feiras têm início
às 19 horas e para os atendimentos espirituais é necessário pegar a ficha, às 17h45, e antes
delas a pré-senha, a partir das 16h30. Para garantir a pré senha, é preciso ir ao caixa e falar com
seu Edmilson, que anota os nomes numa folha, dividida em duas colunas: em uma quem vai se
consultar pela primeira vez, e na outra estão os demais consulentes. Estes recebem um número,
pelo qual serão chamados mais tarde e o novo consulente recebe uma carta de boas-vindas,
onde são apresentadas algumas regras do centro. Passado esse procedimento, a pessoa pode
esperar pelo início da sessão no centro – onde pode ficar sentada nos bancos do salão ou
naqueles dos corredores laterais – ou pode sair e retornar antes do início da sessão, a fim de
trocar sua pré-senha pela ficha.
A troca das pré-senhas pelas fichas é feita pelo dirigente e um auxiliar. De uma
mesinha, à esquerda da entrada do salão, chamam os nomes da lista de primeira consulta. Essas
pessoas formam uma fila para receber a ficha – que é uma espécie de crachá, com uma cordinha
para ser posta em volta do pescoço – de cor azul onde, com letras vermelhas, tem o nome de
uma entidade, um número e o nome de um médium. Quem escolhe a ficha de primeira consulta
é Gregório, que indica a entidade que atenderá o visitante. O número indicado no crachá, que
vai de 1 a 4 (somente uma vez vi um número 5), informa sua ordem na fila de atendimento de
193

cada entidade. Depois dos visitantes novos, são chamados, agora pelo número, os demais
consulentes.147 Para estes, é possível escolher com qual Criança ou médium gostariam de se
consultar.
A distribuição das fichas, peças fundamentais para garantir o direito à consulta com
uma entidade, é uma atividade que tem hora para começar - geralmente depois do horário
indicado, tendo início a partir das 18h – e se desenrola durante toda a sessão. Em alguns dias
há fila de espera, então é preciso aguardar até o último momento para a redistribuição as fichas
de quem estava na pré-senha mas acabou não aparecendo. Há dias que são também distribuídas
fichas de passe, para quem não deseja – ou não conseguiu – a consulta. Na ficha do passe não
consta nome de nenhuma entidade, apenas um número; ou seja, a pessoa terá que ir em quem
tiver livre para lhe atender, sem poder escolher. Os passes eram dados pelas mesmas entidades
que davam consulta, sendo que eles só começavam depois de feitas todas as consultas; e
também fui a giras em que as Crianças responsáveis pelos passes ainda não davam consultas –
já recebi, inclusive, passe148 de uma ibejada que ainda nem estava autorizada a dizer seu nome.
A seguir veremos como as ibejadas vão se fazendo presentes antes mesmo do início
das sessões, quando suas coisas começam a tomar o espaço do salão, que vai sendo colorido
pelos médiuns que arrumam brinquedos, doces e objetos que mais tarde serão usados pelas
Crianças em seus trabalhos. As consultas das ibejadas nos permitirão ainda pensar sobre as
noções de trabalho e brincadeira nesse contexto ritual, e nas interações entre entidades e seus
consulentes, que trocam entre si pedidos, agradecimentos, cuidados, doces e presentes.

5.2.1 Coisas de trabalho

Numa quarta-feira de fevereiro de 2017, sentei-me no primeiro banco da fila à direita


e, como não havia cortina entre a assistência e o salão, pude ver em detalhes os médiuns
montando as coisas de suas Crianças. Na parede lateral, ao lado da porta direita, Rebeca estava
terminando de arrumar as coisas de Joãozinho da Cachoeira, sobre um pano vermelho, uma

147
A média de pessoas que frequentam essas sessões de quarta oscila na faixa dos 60 – o dia que vi mais vazio
tinham 55 pessoas e no dia mais cheio 72. Geralmente a lista dos de primeira vez não ultrapassa as 15 pessoas,
mas na primeira sessão que fui (julho/2016) eram 30 novos consulentes. O número de médiuns que realizam
consulta flutua entre 10 e 20 (na sessão com mais médiuns, eram 47), e há ainda os auxiliares .

148
Como vimos no primeiro capítulo, o passe é uma prática muito difundida no espiritismo e na umbanda,
realizada pela imposição de mãos.
194

mistura de brinquedos, figuras de santos, guloseimas e acessórios. Eram quatro carros grandes,
dois médios e um pequeno, um avião, uma espada, uma imagem de São Jorge e outra de Nossa
Senhora, três balas rosas intercaladas entre quatro balas de coco, um boné, um copo com tampa
e canudo, um cordão de chupetas, um pote em formato de bola, aberto e cheio de balas. Tudo,
assim como o pano, era vermelho.
Próxima à Rebeca, Ana Maria estava começando a arrumar as coisas de sua
Mariazinha da Beira da Praia. Antes dela chegar, seu lugar já estava marcado com uma caixa
rosa, adornada com conchas coladas na tampa. Ana Maria ainda trouxe duas sacolas cheias.
Primeiro, estendeu um pano branco, brilhoso e com as bordas enfeitadas com pequenas flores
rosas e brancas, mantendo certa distância da outra médium que, próxima a ela, também estava
a arrumar as coisas. Ana Maria parecia inquieta, a todo tempo passava as mãos sobre a cabeça
e encarava as coisas na caixa, como se estivesse pensando no que faria com elas. Puxa da caixa
um fio de contas rosas e o dispõe sobre o pano, delimitando um retângulo. Este espaço é
preenchido com duas tigelas de louça branca, um pires e um copo de vidro, todas as peças
enfeitadas com pequenas conchinhas; havia ainda um objeto redondo e pequeno, também
adornado com conchas, que depois descobri ser um porta incenso. Retira da caixa uma grande
estrela do mar, uma pequena tesoura de plástico rosa e azul e uma vela; objetos que também
dispõe dentro desse retângulo delimitado pelo fio de conta. Ela passa um tempo ajeitando essas
coisas e as mudando de lugar. Ela sente falta de um pires e pergunta para a senhora ao lado se
ela teria algum para emprestar – a resposta é negativa. Ela sai com o copo nas mãos, duas rosas
(ainda embrulhadas no papel) e diz que vai pedir a Gregório. Pouco tempo depois volta com o
copo cheio d'água com as duas rosas (uma branca e outra rosa) dentro, e o pires na outra mão.
Retira da caixa cor de rosa um pote (como aqueles de coleta de material para análise
laboratorial), cheio de areia, bastante úmida. Tomando seu próprio corpo como ponto de
perspectiva, ela coloca o pires que acabara de conseguir do lado direito; sobre ele despeja areia
e sobre a areia coloca uma das duas tigelas brancas e enfeitadas. Do lado oposto, coloca a outra
tigela (sem nada embaixo) e coloca um pouco de areia dentro dela. Salpica areia por todo o
pano branco e tampa o potinho. De uma das sacolas ela retira uma garrafa com água (suponho
que seja do mar) e despeja na tigela onde acabara de colocar areia. Sobre o pires enfeitado de
conchas, afixa a vela azul e rosa, queimando o fundo dela com fósforo – o que só consegue
fazer depois de cinco tentativas. Demora um tempo para definir onde o copo com as rosas e a
estrela vão ficar. Por fim, nesse espaço delimitado pela conta rosa fica com a vela centralizada
entre as duas tigelas; um pouco mais atrás, está o copo com as flores e nele a estrela do mar
encostada. A tesourinha fica centralizada na frente – alinhada ao copo – e o porta incenso fica
195

no canto direito, alinhado com a tigela sobre o pires, e nele é posto um incenso de jasmim, ainda
apagado.
Terminado esse retângulo, começa a preencher seu entorno. Ela tira de uma das sacolas
uma cesta, com cinco bonecas e as coloca sobre o pano. Da caixa rosa, tira conchas de variados
tamanhos, três peixes coloridos de plástico e oito pequenas bonecas-sereias. Ela vai arrumando
e rearranjando esses objetos várias vezes, até conseguir uma disposição que lhe agrade. Todas
as sereias são postas sentadas sobre conchas, algumas entre as pernas das bonecas maiores.
Depois que consegue achar um lugar para todas as coisas, volta à caixa rosa de onde tira um
borrifador de perfume para bolsa e um vidrinho, com um líquido. Passa este para o borrifador,
a fim de espirrá-lo sobre o pano e todos os objetos que estão sobre ele – sinto um cheiro de
alfazema. Da outra sacola retira um saco de bala de coco, que abre e coloca sobre a tigela que
ainda estava vazia sobre o pires com areia. As balas restantes deixa no saco e o coloca na cesta
onde estavam as bonecas, onde ainda coloca um saco de marshmallow, uma garrafinha de
guaraná e um copinho rosa (com tampa e canudo). Tira de dentro da sacola uma pequena
maletinha rosa e roxa, onde estavam pedaços de papel, presos num clips, com pequenos textos
digitados. Quando ela termina de arrumar as coisas já são 19h15 e, enquanto eu passara os
últimos trinta minutos observando Ana Maria e as coisas de Mariazinha, outros 13 médiuns já
tinham arrumado as coisas de suas Crianças em outros pontos do salão.
Depois de alguns meses frequentando as sessões de consulta, já era possível identificar
quais os médiuns mais presentes e como os lugares de suas Crianças eram demarcados no salão.
Ao lado de Mariazinha ficavam Rosinha e Joãozinho, todos da Cachoeira. No mesmo lado do
salão ainda ficavam Estrelinha do Oriente, com seu grande copo roxo e da mesma cor uma
garrafa térmica, suspiro, cocada e bala de coco, tudo disposto sobre um pano branco; Pedrinho
da Praia tinha peixes de vários tamanhos e uma baleia, todos de pelúcia, conchas, três peões de
madeira, um boné branco e uma prancheta, arrumados sobre um tecido azul; as coisas do
Caboclinho da Beira da Mata eram dispostas sobre uma esteira, de bordas verdes. Ele tem
apenas um coco verde, que posiciona no centro, distribui ao seu redor uma série de macaquinhos
de pelúcia, que se entrelaçam pelos braços, e uma tigela com algumas uvas verdes. Do banco,
ainda era possível ver as coisas de Solzinho de Iemanjá: tigela e copo azuis, assim como o pano,
incenso e uma caneca de louça branca.
À frente do congá ficavam as Crianças dos dirigentes, mas a Mariazinha de Marilene
quase nunca dava consulta às quartas. As coisas de Pedrinho da cachoeira eram um bonequinho
196

loiro com camisa vermelha, um boné azul, um cabuletê149, tigela e copo azuis, pêras e uvas;
tudo disposto sobre um pano azul.
Na lateral esquerda do salão ficavam o outro Pedrinho da Cachoeira, que tinha uma
tigela de louça branca, uma caneca azul, uma garrafinha de água de coco, uma bola azul, três
pêras, dispostas em círculo também formado por três suspiros grandes e no centro cachos de
uvas verdes. Ao seu lado, sobre um tecido todo colorido, eram dispostos um grande peixe de
pelúcia rosa e azul, duas bonecas de pano com vestidos rosa, sendo um deles florido, um copo
e uma garrafinha de plásticos rosa e uma pequena prancheta; coisas de Rosinha da Cachoeira.
O ursinho de pelúcia verde, o copo grande e verde e o macaquinho de pelúcia vermelho de
Crispim da Mata ficavam sobre um tecido azul e vermelho. Outra Rosinha da Cachoeira tinha
seu copo com água, três rosas brancas e uma vela azul e rosa dispostos sobre um tecido todo
branco.
Antes mesmo do início da sessão, vemos o espaço do salão ser transformado, com os
coloridos panos que sobre o chão são estendidos e com os brinquedos, objetos, frutas e doces
que sobre eles são dispostos. Nessas coisas e nos cuidadosos manuseios que as arrumam, vemos
como as Crianças já começam a se fazer presentes antes mesmo de chegarem nos corpos dos
médiuns, como elas já começam a ocupar o espaço que é preparado para recebê-las e arrumado
para que ali elas possam trabalhar. Vimos como o lugar da Mariazinha da Beira da Praia tem
areia, conchas, água salgada, cheiro de alfazema, é cor de rosa, habitado por bonecas sereias,
envoltas na fumaça do incenso de jasmim. No seu cuidadoso manuseio, Ana Maria faz ali no
salão uma praia para sua Mariazinha trabalhar, o Caboclinho tem sua mata, Pedrinho sua
cachoeira. Os lugares das Crianças têm cores, cheiros e texturas que representam as linhas e
energias às quais as entidades se associam; isto é, esse conjunto de coisas vão formando
compósitos que identificam e classificam as ibejadas e as relacionam com outras entidades e
orixás.

149
Cabuletê é um pequeno tambor com cabo e dois coquinhos presos em sua lateral.
197

Desenhos 1 e 2: Médiuns arrumando as coisas de suas Crianças no salão, antes do início da


sessão de consulta no CUCA. Luiz Gustavo Mendel, 30 de agosto de 2017.150

150
No CUCA havia diversos avisos proibindo o registro fotográfico e, por isso, sempre evitei fotografar as giras
festivas e sessões de consulta. Em agosto de 2017, o antropólogo Luiz Gustavo Mendel Souza me acompanhou a
uma sessão de consulta e produziu esses desenhos, ajudando-me a ter alguma ilustração deste momento. Em sua
tese, Souza (2017) já havia elaborado ilustrações sobre os foliões da Bandeira Nova Flor do Oriente, em São
Gonçalo (RJ); e proposto reflexões acerca do uso deste material enquanto dado etnográfico. Agradeço a ele por ter
aceito meu convite e por ter me cedido suas ilustrações.
198

Susanna Rostas (2013) nos fala sobre as danças dos concheros, realizadas em
pequenos municípios próximos à Cidade do México, em datas comemorativas como o dia dos
finados e da Virgem Guadalupe. Rostas divide a prática dos concheros em dois momentos: a
dança e a vigília que a antecede, relevando como as coisas são fundamentais nessas práticas.
As flores e velas da vigília, e a concha (instrumento musical) e roupas dos dançarinos são as
materialidades com as quais essas práticas rituais estão indissociavelmente enredadas. As coisas
são tão importantes quanto as pessoas na realização desses rituais, mas as coisas só são
importantes canais para o contato com o espiritual ao serem manipuladas pelas pessoas. Ou
seja, a agência espiritual das coisas não é algo inerente ao objeto, mas produzida na interação
entre coisas e pessoas.
Carrinhos, bichinhos de pelúcia, bonecas de pano, copos de plástico e tigelas de louça
não são inerentemente objetos rituais. Num quarto de criança, na loja de brinquedos, nas
prateleiras de armários de cozinha ou de lojas, essas coisas assumem outros significados e são
manipuladas de outra maneira. Ali no centro eram coisas que pertenciam a uma determinada
Criança, guardadas em caixas e sacolas específicas, cuidadosamente arrumadas sobre um pano
e não jogadas sobre o chão. Além de uma série de outras materialidades que vão atribuindo
outros sentidos a essas coisas, as formas como as pessoas com elas interagem também modulam
o status desses objetos. Percebemos que há uma série de atos e deslocamentos espaciais e
gestuais que vão transformando esses objetos óbvios e cotidiano em coisas sagradas, que
integram altares, constituem territórios sagrados onde as entidades se apresentam e atuam.
Porque toda essa montagem é parte fundamental desse ritual, este não começa apenas
às 19h como consta no informe, mas tem início quando os portões se abrem, os nomes são
postos nas listas, e as coisas vão sendo arrumadas no salão. Ao vermos como Ana Maria arruma
as coisas da Mariazinha, o tempo que passa a montar e remontar composições, as diversas
materialidades – vidro, plástico, areia, perfume, incenso, vela, conchas – que são manipuladas,
compreendemos que para que a consulta seja realizada é preciso, antes, arrumar o lugar de
trabalho de Mariazinha da Beira da Praia – ou transformar um espaço do centro em praia, assim
como outras partes do salão vão se transformando em mata, cachoeira. E como, neste ato de
arrumar, o ritual já está começando e as ibejadas já se fazem presentes, tomando conta do espaço
do salão. Sobre as áreas delimitadas pelos panos (quadrados, que medem cerca de
60cmX60cm), vamos vendo os locais onde mais tarde estarão as Crianças das águas e matas,
que gostam de azul, roxo, vermelho e rosa; que irão comer pêras, uvas, suspiros e balas. Pelo
salão vão sendo arrumados os lugares de cada ibejada, demarcados pelas suas coisas e cores.
199

Sobre cores, Diana Young (2006) nos ajuda a pensá-las enquanto materialidades,
considerando-as não enquanto raios de luz, mas tomando-as quando incorporadas em coisas.

As cores podem ser combinadas para interagir umas com as outras produzindo
um efeito de vivacidade e movimento. As cores animam as coisas de várias
maneiras, evocando o espaço, emitindo brilho, dotando as coisas de uma aura
de energia ou de luz. Inversamente, as cores são também capazes de camuflar
as coisas no meio do seu contexto. As cores constituem emblemas de
identidade e ligam categorias de coisas de outra forma díspares - autocarros
vermelhos, pássaros vermelhos, fruta vermelha, digamos - em redes
analógicas em expansão. As cores podem transformar coisas e sequências de
transformações de cor empregadas para representar a temporalidade. As cores
estão também ligadas à expressão emocional. Por último, no fenômeno
conhecido como imagens mentais coloridas sinestésicas está ligado a outras
sentidos, e não apenas os visuais - normalmente sonoros, odor e tactilidade.
(Ibid., p. 173)151

As coisas e suas cores estruturam o saber e afetam as formas de ser e estar no mundo.
É preciso considerar que as cores são expressões comunicativas potentes, que afetam e
transformam coisas, pessoas e eventos. Além disso, as cores têm uma rentabilidade analítica ao
nos permitir unir sob uma mesma identidade coisas que pertencem a categorias distintas,
ampliando possibilidades de estabelecer analogias a partir de suas cores.
As cores nos permitem conhecer as Crianças, seus gostos, lugares, afinidades.
Pedrinho é um menino que vem da cachoeira, rodeada pela vegetação, e seus brinquedos, copos,
tigela e comidas são azuis e verdes. O Joãozinho da Cachoeira de Rebeca gosta de tudo
vermelho porque é a cor de São Jorge, seu “papai ogum”. Nas giras onde se fazem presentes as
ibejadas, o espaço do salão se transforma, o chão que antes era branco vai tornando-se colorido,
dividido em pequenos espaços que vão sendo tomados por coisas coloridas de azul, verde, rosa,
vermelho, amarelo.
Coloridos carrinhos, bichinhos, bonecas, copos, panos, doces e frutas são coisas
fundamentais para a realização das consultas de ibejadas. Os médiuns dedicam tempo e
cuidados na arrumação das coisas de suas Crianças, para que depois elas possam tomar seus
corpos e trabalhar. Cores que não fariam tanto sentido se não estivessem em brinquedos, frutas

151
Tradução minha, no original: “Colours may be combined to interact with one another producing an effect of
vivacity and movement. Colours animate things in a variety of ways, evoking space, emitting brilliance, endowing
things with an aura of energy or light. Conversely colours are also able to camouflage things amidst their context.
Colours constitute badges of identity and connect otherwise disparate categories of things – red buses, red birds,
red fruit, say – in expanding analogical networks. Colours can transform things and sequences of colour
transformations employed to represent temporality. Colours are also linked with emotional expression. Lastly, in
the phenomenon known as synaesthesia coloured mental imagery is linked with other senses, not just the visual –
commonly sound, odour and tactility”.
200

e objetos; coisas que só se tornam fundamentais nessa prática por serem manipulados nesse
contexto, por médiuns que se preparam para, em seguida, receber “os anjinhos que vêm
trabalhar”.

5.2.2 Consultas das ibejadas

Com o salão já arrumado para o início da sessão, ouvimos o primeiro toque de sinal
(como aquele que soa nos teatros e nos avisam que o espetáculo está para começar), que anuncia
o início da palestra. Começam os “quinze minutos de sabedoria”, uma leitura, de uma parábola
ou trecho do evangelho de Kardec, seguida de algumas reflexões sobre o texto, com
ensinamentos sobre amor ao próximo, perdão conhecimento, evolução; propostos pelo médium
responsável pela atividade – a cada semana alguém torna-se responsável por esse momento,
conduzido pelos membros mais antigos do centro. Quando a palestra termina, o segundo sinal
soa.
Gregório começa a defumar o salão e os médiuns deixam o salão e formam uma fila
no corredor entre os bancos. Depois Gregório chama três médiuns que ficarão na entrada do
salão: um segura o defumador, outro fica com a pemba (que riscará a mão de todos os médiuns)
e um terceiro com um copo d’água. Todos levantamos e entoamos um ponto de defumador.
Os médiuns entram no salão: tocam a mão no chão e na cabeça, estendem as mãos para serem
riscadas pela pemba, passam pelo defumador e depois pelo copo d’água. Seguem para o
congá152, altares laterais (ciganos), altar de São Jorge, altar de São Jerônimo, para salvar as
entidades; e depois ds espalham pelo salão, ficando próximos às coisas que mais cedo
arrumaram.
Depois que todos os médiuns entram, o defumador passa pela assistência e, quando
esse vai para o portão, ficamos todos de costas para o altar e virados em direção à porteira.
Entoamos o ponto até que os médiuns voltem ao salão. Voltamo-nos para o congá e damos uma
salva de palmas: “salve o defumador”. Tornamos a nos voltar para a porteira e saudamos exu.
Voltamos a ficar de frente para o altar e duas preces são entoadas: Pai Nosso e Ave Maria.
Depois todos damos as mãos para a prece de São Francisco de Assis. Em seguida são saudados
com salvas de palmas os Anjos da Guarda, Caboclo das Sete Flechas, fundador da Umbanda e

152
Que já vimos no capítulo anterior, Foto 11.
201

grande guia. Cantamos ainda para Pai Joaquim e Vovó Cambinda153, e Gregório pede que a gira
e os trabalhos corram bem. Salvamos a ibejada, entoamos o ponto e batemos palmas para
chamá-las.
Vimos como os brinquedos das ibejadas tomam conta do salão antes mesmo das
Crianças tomarem os corpos dos médiuns e, como podemos ver, elas são chamadas para
trabalhar. Quando me falam do poder das Crianças, mencionam o poder de suas brincadeiras, a
partir das quais trabalham, o trabalho das ibejadas seria brincar; ao mesmo tempo, durante as
giras e sessões já ouvi algumas Crianças reclamando que estavam cansadas, porque já haviam
feito “muito trabalhador”. Nas giras de ibejada, trabalho e brincadeira ora se confundem, ora
são atividades distintas. Vejamos, portanto, como podemos pensar nesses rituais a partir dessas
categorias.
Para Turner (2015), a separação entre trabalho e brincadeira se deu após a Revolução
Industrial e, desde então, o tempo se divide em dois: o tempo do trabalho e o do não trabalho,
e neste há o tempo de lazer – que inclui a brincadeira, mas não se resume a ela. Nesta divisão,
o lazer pressupõe o trabalho, uma vez que é preciso que exista o tempo do trabalho para que
possa haver o lazer, não sendo possível uma viver apenas em tempos de lazer. Antes dessa
separação, o trabalho tinha uma outra conotação, onde “a principal distinção é entre trabalho
sagrado e profano, e não entre trabalho e lazer” (TURNER, 2015, p. 40). A liturgia da Grécia
pré-cristã era um trabalho, o especialista em rituais entre o ndembu era um trabalhador, no
Bhagavad Gita o sacrifício religioso é um trabalho. Neste “trabalho dos deuses” e nos trabalhos
humanos e sagrados havia espaço para a brincadeira, para o lúdico;

[...] esses aspectos lúdicos ou de brincadeira do mito ritual são, como diz
Durkheim, ‘ de la vie sérieuse’, ou seja, estão intrinsecamente conectados com
o ‘trabalho’ da coletividade no desempenho de ações simbólicas e na
manipulação de objetos simbólicos. [...] A brincadeira, portanto, é levada a
sério e tem de acontecer dentro dos limites. (TURNER, 2015, p. 42)

Ainda segundo ele, em tempos pré Revolução Industrial não haveria fronteiras rígidas
e bem delimitadas entre os tempos de trabalho e de lazer; organização que, nas sociedades já
industrializadas, segue sendo uma realidade nos contextos rituais, onde a brincadeira é parte
fundamental do ritual, que é considerado um trabalho. Se há doutrinas religiosas que sacralizam

153
“Pai joaquim ê ê/ Pai Joaquim ê á/ Pai Joaquim veio de Angola/ Pai Joaquim veio de Angolá” e “Ecoou, um
canto vindo de longe, ecoou/Um lindo dia uma luz no céu brilho/Sob a Estrela Guia, iluminada chegou A preta
velha de Aruanda, luz divina/Recebeu de Oxalá o nome Vovó Cambinda”. Como vimos no primeiro capítulo, Pai
Joaquim de Angola e Vovó Cambinda da Cachoeira são os pretos-velhos dirigentes do CUCA.
202

o trabalho, como o calvinismo analisado por Weber, há também aquelas que reconhecem a
sacralidade da brincadeira. Nestes casos, a brincadeira é obrigatória àqueles que fazem e
participam do ritual, ao contrário do lazer, que é sempre opcional. Levar a sério o trabalho
industrial é reduzir ao máximo o lazer, enquanto que a seriedade do ritual realiza-se no brincar.
Radcliffe-Brown (1973) nos permite pensar na brincadeira que estabelece e mantém
os vínculos, sendo parte constitutiva de uma determinada relação. Em algumas relações a
brincadeira é obrigatória e a zombaria não deve ser fonte de aborrecimentos, mas de atualização
e reforço de laços. A recusa da brincadeira é a recusa da própria relação e do jogo social. Os
parentescos por brincadeiras também nos mostram como a ordem e a hierarquia podem ser
mantidas pela jocosidade e como o brincar também é ordenador de sentidos e relações.
Para Bateson (1972), o brincar estabelece um tipo específico de relação e de
comunicação. Nas brincadeiras e jogos as ações assumem sentidos muito particulares, distintos
daqueles que teriam em outros contextos. Quando assumimos que estamos num jogo,
afirmamos que nossas ações não querem dizer aquilo que poderiam denotar. O soco da
brincadeira não é o mesmo da briga - se quem dá e quem recebe o soco estiverem brincando.
Nos jogos e brincadeiras estabelece-se uma relação mapa-território,

[...] a relação mapa-território: o fato de uma mensagem, de qualquer tipo, não


consistir naqueles objetos que denota ("a palavra 'gato' não nos pode
arranhar"). Em vez disso, a linguagem transporta para os objectos que denota
uma relação comparável àquela que um mapa transporta para um território. A
comunicação denotativa, tal como ocorre a nível humano, só é possível após
a evolução de um conjunto complexo de regras metalinguísticas (mas não
verbalizadas) que regem a forma como as palavras e as frases devem ser
relacionadas com objectos e acontecimentos. Pelo que foi dito acima, parece
que o jogo é um fenômeno em que as ações de "brincar" estão relacionadas
com, ou denotam, outras ações de "não brincar". Encontramo-nos portanto em
jogo com uma instância de sinais que representam outros eventos, e parece,
portanto, que a evolução do jogo pode ter sido um passo importante na
evolução da comunicação. (BATESON, 1972, p . 140)154

154
Tradução minha, no original: “the map-territory relation: the fact that a message, of whatever kind, does not
consist of those objects which it denotes (“The word `cat’ cannot scratch us”). Rather, language bears to the objects
which it denotes a relationship comparable to that which a map bears to a territory. Denotative communication as
it occurs at the human level is only possible after the evolution of a complex set of metalinguistic (but not
verbalized) rules which govern how words and sentences shall be related to objects and events). It appears from
what is said above that play is a phenomenon in which the actions of “play” are related to, or denote, other actions
of “not play.” We therefore meet in play with an instance of signals standing for other events, and it appears,
therefore, that the evolution of play may have been an important step in the evolution of communication”.
203

Um outro contexto que também seria marcado por essa relação é o do ritual. Nas
brincadeiras e nos rituais, portanto, algumas ações nem sempre denotam aquilo que poderiam
denotar.
Ismael Pordeus Jr. (1993) discute o trabalho em um contexto religioso particular, bem
próximo ao desta tese: o da umbanda, mais especificamente, da “macumba cearense”.
Ratificando o que já fora apontado por Turner, nessa religião a noção de trabalho não segue a
lógica urbano-industrial e se refere “a toda e qualquer atividade levada a efeito, tanto em nível
coletivo, no terreiro, como em nível de médium ou indivíduo” (ibid, p. 77). Cura, incorporação,
oferendas e despachos, as giras: tudo é trabalho. O autor aciona a figura do malandro como
exemplar para pensar e explorar os sentidos e usos dessa categoria. O malandro, símbolo maior
da vagabundagem e por isso mesmo socialmente marginal, é nos terreiros figura central, sendo
uma das que mais trabalham, já que as suas giras costumam ser as mais cheias, com muitas
pessoas que vão com eles se consultar. E, para o autor, ampliar a categoria de trabalho atrelando-
a à magia e tornar o malandro um “operário”, foi uma (dentre outras) forma que umbanda
acionou para legitimar suas entidades155 e, assim, suas práticas. Se nas ruas e nas letras de
sambas os malandros eram a antítese do trabalho, nos terreiros eles são os trabalhadores por
excelência.
Nas giras de ibejada a brincadeira é parte intrínseca do ritual, assim como o trabalho.
A jocosidade é característica dessas entidades e nas brincadeiras são estabelecidas e mantidas
as relações de afetos e cuidados entre pessoas e Crianças. Mas as brincadeiras das ibejadas são
sérias e são trabalho. Médiuns e consulentes me falam que as Crianças trabalham brincando,
que suas consultas são alegres; mas as ibejadas reclamam quando fazem muito trabalhador e
pedem para brincar; ou seja, em alguma medida distinguem as duas atividades. Nas giras de
ibejada, trabalho e brincadeira ora se confundem ora se diferenciam. Proponho que pensemos
esses momentos não a partir do movimento entre os tempos do trabalho e do lazer, trabalhador
e brincadeira, mas em um só tempo, do trabalho-brincadeira-trabalho.
Esse continuum me permite pensar mais afundo sobre essas categorias e seus sentidos
na umbanda e, mais especificamente, nas giras de ibejada. O trabalho, por exemplo, pode ser
pensado em dois níveis. Num cenário mais amplo, tudo na umbanda é trabalho e, portanto,

155
O autor pensa na umbanda em seu contexto de criação, na década de 1930, e na relação dessa religião com a
sociedade mais ampla, que vivia sob o Estado Novo um período de desenvolvimento econômico, marcado por uma
moralidade onde o trabalho era altamente valorizado; numa abordagem próxima a diversos outros autores que
pensavam sobre os processos de legitimação e institucionalização da umbanda no contexto do Estado Novo
(BROWN, 1977; ORTIZ, 1984; BIRMAN, 1985).
204

quaisquer rituais e práticas no contexto da umbanda podem ser compreendidos enquanto


trabalho.156 Na doutrina umbandista, o trabalho é muito associado a uma noção de evolução:
através dele se evolui espiritual e pessoalmente. O trabalho pela evolução é contínuo, realizado
nos estudos da doutrina, na presença nas atividades do centro, nas condutas cotidianas
adequadas aos preceitos. As giras de ibejadas, festivas e de consulta, são, portanto, rituais de
trabalho. Mas, nesse contexto, o trabalho tem uma particularidade: ele é realizado no brincar.
As Crianças, como as demais entidades e pessoas umbandistas, trabalham; mas elas o fazem
brincando. O bater de um ramo de folhas sobre o corpo é um trabalho do caboclo, as aulas no
curso de formação ao sábado de manhã é um dos trabalhos que Kátia desenvolve no CUCA,
fazer uma oferenda a pombagira numa encruzilhada é um trabalho, quando Doum arrasta um
caminhão pelo salão durante a gira ele está trabalhando. Tudo que se faz na umbanda é
trabalho, mas o único trabalho que é brincadeira é o das Crianças.
Trabalho-brincadeira-trabalho marca também a dinâmica do ritual. A sessão tem início
com uma série de louvações feitas com poucos sorrisos e sérias feições. Quando as ibejadas
tomam os corpos dos médiuns começam as risadas, gritinhos e estalos de beijos; cores, sons e
gestos jocosos. Passamos do trabalho à brincadeira. Quando começam a anunciar no microfone
as primeiras fichas para consulta, algumas Crianças começam a reclamar que vão ter que fazer
trabalhador. Da brincadeira ao trabalho. Um consulente, durante o atendimento, recebe sua
própria ibejada, e a Criança que antes atendia a pessoa, cumprimenta alegremente a entidade
que chega. Voltamos à brincadeira. Durante toda a sessão há trabalho e brincadeira e trabalho
e brincadeira e trabalho.
Essas passagens, no entanto, não são tão marcadas, mas sutis e contínuas. Nesses
rituais não há distinção e tampouco uma igualdade entre trabalho e brincadeira; as pessoas, as
coisas e as ibejadas estão a todo tempo trabalhando-brincando. Em um ou outro momento,
geralmente marcado pelas falas das ibejadas, ficam mais claras as passagens. Nos rituais das
Crianças trabalho é brincadeira, brincadeira é trabalho e as coisas são brinquedos e objetos
rituais.
As ibejadas não demoram a chegar e tomar os corpos dos médiuns. Como vimos, as
Crianças chegam pulando e mandando beijos estalados e já começam a mexer nas coisas que
antes vimos serem arrumadas. Colocam os bonés sobre a cabeça, os colares no pescoço, pedem
para que os copos sejam cheios com refrigerante ou água de coco e pegam suas bonecas e
carrinhos. As Crianças se cumprimentam, se abraçam, rodam umas com as outras. Pedem

156
Ver Capítulo 1, quando faço referência aos sentidos deste termo identificados por Yvonne Maggie (2001, p.
153).
205

benção aos médiuns da casa e também aos santos dos altares e congá. Algumas ibejadas também
dão passes e conversam com os médiuns, a quem oferecem uma fruta ou bala. Enquanto tudo
isso acontece, alguém do salão vai puxando alguns pontos cantados, acompanhados pela
assistência, que canta e bate palmas.
Cerca de vinte minutos depois da chegada das Crianças, começam a anunciar no
microfone o início das consultas. Numa quarta-feira de agosto de 2017, Gilmar, responsável
pela chamada, anuncia três vezes “Sereinha de Iemanjá, médium Luciana, número um”,
chamando o primeiro consulente dessa Criança. Na terceira vez, Sereinha, que estava ao lado
de Gilmar, fala “eu vou voltar pro barco. Não tem trabalhador. Vou brincar”. Pouco tempo
depois teve de ir trabalhar, já que a consulente com a ficha de número dois estava presente.
Para entrar no salão, o/a consulente deve retirar os sapatos, relógio, colares, pulseiras
e brincos grandes. Caso esteja com uma blusa ou vestido inapropriado, com um grande decote
ou de alças muito finas, recebe um jaleco para se cobrir. A ficha é entregue a Gilmar, e um
médium lhe acompanha até a Criança.
Na primeira quarta-feira de agosto de 2016 fiz minha primeira consulta com uma
Criança do CUCA. Naquele dia eu estava ansiosa. Cheguei às 16 horas e eram 20h30 quando
escutei Gilmar anunciando “Ventinho de Iansã, médium Vera Lúcia, número um”. Retirei meu
relógio, deixei a bolsa sobre o banco, levantei, me dirigi à entrada do salão e fui conduzida por
um senhor até Ventinho de Iansã. Ela tinha um arco com um grande laço de pelúcia laranja,
várias pulseiras amarelas, uma chupeta branca e carregava no braço esquerdo uma boneca que
tinha um vestido laranja. Ela me abraçou, beijou minhas mãos, me colocou em frente à ela e
pediu para que eu fechasse os olhos. Passou sobre e ao redor de minha cabeça uma bolinha de
plástico, iluminada e que piscava – o que eu podia perceber mesmo de olhos fechados. Pediu
que eu abrisse os olhos e com a mão direita – a boneca ainda estava no braço esquerdo – me
mostrou uma cestinha, e falou para eu pegar um doce. Peguei um suspiro. Ela me perguntou
algumas coisas, porém eu não entendia o que ela falava, mas compreendi quando ela perguntou
“e veio aqui pra quê?”. Respondi que queria saber sobre meu trabalho. Ventinho disse que se
eu gostava de fazer escrevedor era pra continuar e que trabalho não era problema para mim
não. Dizia ela que o meu problema era que eu não me abria para os outros, enquanto esfregava
sua bolinha colorida e piscante sobre meu peito. Ela me abraçou, colocou outro suspiro direto
em minha boca e me deu um pirulito, que eu só deveria comer quando estivesse “fazendo
escrevedor”, pro trabalho ser mais doce. Abraçou-me mais uma vez e disse pra gente rodar
junto, pois ela gostava de rodar. Abriu um sorriso e perguntou se eu estava feliz, ao que respondi
que sim. Ela soltou uma gargalhada e beijou minha mão. O senhor me acompanhou até a
206

mesinha onde ficava o Gilmar, e eu deveria deixar o salão virada de frente para o altar. Virei-
me e voltei ao meu lugar. Minha primeira consulta com ibejada durou pouco menos de vinte
minutos.
Em abril de 2017 botei novamente meu nome na lista para consulta, e agora que não
era mais a primeira, eu podia escolher a Criança. Só que no mesmo dia realizei uma entrevista
com a médium Rebeca, e apenas no fim de nossa conversa pude pegar a ficha para a única vaga
livre, com o Pedrinho da Cachoeira, o do Luís, não o do dirigente. 157 Com a ficha dois de
Pedrinho, fui chamada depois da primeira consulta, que durou mais de meia hora. Fui conduzida
até Pedrinho e disseram para eu me sentar no chão, em frente a ele. Pedrinho me pediu um
abraço e mandou eu ficar segurando sua bola, com as duas mãos, enquanto fosse mentalizando
meus pedidos. Ele pegou sua tigela branca, que estava cheia de água e com uma pedra no fundo.
Comecei a sentir um cheiro de cânfora. Depois de uns bons minutos, ele retira a bola das minhas
mãos, as pega com as suas e me pergunta como está a minha caminhada pela Terra. Eu respondo
que está tudo bem. Ele me pergunta se eu estou feliz, ao que respondo que sim. Ele se vira para
trás e pega sua caneca, que me entrega e pede para que eu dê um gole – era água de coco, com
uma uva verde no fundo. Ele pede que eu feche os olhos e sinto respingos de água em meu
rosto. Pedrinho pega a caneca de volta e me pergunta se quero saber algo, aí eu começo a falar.
Digo que vou fazer um trabalho sobre as Crianças e gostaria de saber se teria algum problema.
Ele me pergunta "como assim? um trabalho? o que é isso?". Digo que vou escrever sobre a
ibejada e ele pergunta "vai escrever sobre mim, tiazinha?" e começa a ficar agitado – segue
sentado, mas suas pernas começam a balançar e suas mãos gesticulam acima da cabeça. Eu
respondo que sim, escreverei sobre ele e ainda pergunto sobre o que deveria falar dele. Pedrinho
me diz que tenho que falar dos seus peixinhos, são vários e ficam em roda lá na cachoeira de
mamãe Oxum. Eu tenho que falar sobre eles.
Pergunto se, além dos peixinhos, devo falar de mais alguma coisa. Ele me diz que
tenho que falar de amor e renovação. Ele começou a falar que Oxum era renovação, a renovação
pelo amor. Oxum vivia na cachoeira, que é o encontro das polaridades positiva e negativa que
regem o cosmos, e as águas da cachoeira se movimentam pelo encontro das polaridades. O que
gera movimento é o amor, e movimento é renovação. Eu precisava falar de renovação e de
amor. Jesus também era renovação e seu amor renovou toda a Terra. Eu perguntei quantos anos
ele tinha, ao que ele respondeu que tinha seis, e eu comentei que ele era muito esperto para a

157
Como já dito anteriormente, é comum que em um centro haja mais de uma ibejada com o mesmo nome. No
caso do CUCA são dois Pedrinho da Cachoeira.
207

idade que tinha. Ele começou a contar a história de Pedrinho, em terceira pessoa, falando-me
que Pedrinho quando estava na terra, encarnado, era “gente grande que não sabia amar”.
Morreu tiozinho grande, mas mamãe Oxum deixou ele voltar como Criança, para aprender a
amar. Pedrinho agora deveria passar essa mensagem de amor e transformação, para seguir seu
caminho; e seguiria para sempre como Criança, mas já tinha aprendido a amar, porque agora
era puro e sabia do amor e da inocência. Tudo isso foi dito de maneira bastante clara, sua fala
não era em tatibitate e Pedrinho tinha apenas um tique de fala - repetia “beja” incessantemente,
o que não me permitiu pensar em nenhum significado específico da palavra, que parecia ser
apenas uma expressão conectiva.
Pedrinho disse que me daria uma coisa que iria resumir tudo que me disse. Virou-se
para trás e retornou com uma pera, que colocou dentro das minhas mãos. Aquele fruto era a
renovação da terra, que gerou a árvore que deu aquele fruto e que depois daquele fruto viriam
outros: “tudo brota da terra com amor e renovado, transformado”. Pedrinho perguntou se tinha
mais alguém na minha casa e eu disse que morava sozinha. Então ele falou que no amanhecer
seguinte eu acordaria, pegaria a pera e cortaria em seis pedaços e mostrou-me como eu deveria
primeiro cortá-la em dois e depois cada metade em três. O primeiro pedaço eu comeria, pedindo
que minha vida fosse renovada; os demais pedaços eu levaria comigo para onde fosse. Eu
poderia dar esses pedaços para outras pessoas, mas o último deveria ser comido por mim.
Perguntou se eu tinha entendido e respondi que sim. Pedrinho me deu um abraço e quando eu
já estava levantando ele me perguntou como eu ia fazer o trabalho e lembrar de tudo. Eu disse
que escreveria tudo que ele me disse, depois que saísse dali. Ele perguntou se eu voltaria, ao
que respondi positivamente e ele me pediu para não esquecer do Pedrinho. Perguntou se eu
estava bem e mandou eu ir em paz. Fiquei com Pedrinho quase meia hora.
Em agosto consegui pegar uma ficha para me consultar com a Mariazinha da Beira da
Praia, aquela cujas coisas já vimos sendo arrumadas. Já havia tentado me consultar com ela
outras vezes, mas suas fichas eram disputadas, só não acabavam antes que as do Pedrinho de
Gregório – ou seja, ela era a segunda Criança mais procurada da casa. Assim que cheguei,
Mariazinha me abraçou e perguntou "tá preocupada? Senti que tá preocupada". Pediu para que
eu sentasse à sua frente e colocou uma boneca na minha cabeça e falou que eu a deixasse ali,
trabalhando. Espirrou um perfume em suas mãos e mandou eu respirar fundo, inalando aquela
fragrância. Suas mãos eram postas sobre meu nariz, para que eu inspirasse, e enquanto
circundavam minha cabeça, eu deveria expirar. Mariazinha falava "inspira luz, solta problema".
208

Sentia o perfume de alfazema. Ela repetiu esses movimentos três vezes e perguntou se eu estava
melhor. Quando respondi que estava mais calma e ela disse "quero feliz, calma não". Espirrou
perfume agora na minha mão e pediu para que eu inalasse, agora só uma vez. Tirou uma pulseira
de bolinhas peroladas de seu braço e me deu, falou que era um presente e disse que ninguém
deveria tocar nela. Depois disso, perguntou o que eu queria saber. Disse que queria falar sobre
o meu trabalho, que estava falando sobre as Crianças e queria saber se tudo bem. Ela pediu para
eu esperar e levantou, foi para o meio do salão. Fiquei olhando e percebi que ela foi falar com
Gregório (que já não era mais Pedrinho). Mariazinha falou que tenho que falar com o Pedrinho,
que é Criança grande; ela sabe das coisas, mas ele sabe mais, então primeiro falo com ele – o
que já havia feito. Daí ela começou a falar que eu me cobro demais, que tenho que ser mais
carinhosa e me preocupar menos, muito menos. Ela disse que eu deveria escutar menos os
outros e ouvir meu coração; se eu estiver bem, posso fazer tudo, não importando os outros. Ela
perguntou "você quer falar da gente?" e quando eu disse que sim, ela falou "então pronto". Me
perguntou se eu sentia a energia dela e ao dizer que sim, ela ficou feliz e me deu um abraço.
Disse mais de uma vez que eu devia me preocupar menos, perguntou se eu estava bem e se
despediu de mim.
Ao longo desses anos conversei com outras Crianças, mas aqui trouxe esses três
relatos, todos no CUCA, durante as sessões de consulta. Minha atitude aparentemente passiva
e um tanto rígida nessas ocasiões eram fruto do nervosismo que me tomava nos dias em que eu
ia fazer uma consulta. Chegava muito mais cedo, escolhia a roupa com cuidado para não estar
com nada inapropriado, escolhia um sapato que fosse fácil de tirar e calçar. Eu nunca sabia
muito bem o que perguntar e ficava esperando que nem me pedissem para falar nada, que eu
basicamente não tivesse que fazer ou falar nada durante a consulta – o que demonstra minha
falta de intimidade com esse momento, já que as pessoas vão às sessões de consulta justamente
para falar com as Crianças, enquanto eu queria apenas ouvi-las. Com um certo receio da
situação, eu queria que as entidades conduzissem aquela interação. Por nunca saber muito bem
sobre o que falar, sempre acabava perguntando sobre o trabalho e o que eu deveria falar sobre
as Crianças. Com Ventinho e Mariazinha fiquei nervosa, mas a consulta do Pedrinho me
surpreendeu. Eu não esperava aquele discurso doutrinário e tão bem articulado de uma ibejada.
Tomar um gole de água de coco, ter uma bolinha piscando passando sobre a minha cabeça, não
entender direito o que as Crianças falam, ganhar uma pulseira de pérola ou ter de segurar uma
boneca, tudo isso para mim era possível numa consulta; mas aquela conversa sobre renovação,
209

polaridades, amor, evolução soava estranha. Com Pedrinho entendi que a consulta, além de
pedidos e conselhos, também é um momento de ensinamento, de doutrinação.
Mas se eu ficava nervosa e não sabia sobre o que falar, muitas pessoas vão a gira já
sabendo o que querem falar com as ibejadas. Em diversas ocasiões conversava com outros
consulentes, que me contavam das motivações para estarem ali numa sessão de consulta. Às
Crianças pediam proteção para uma pessoa enferma, a bênção de uma gestante, calma e
tranquilidade para uma criança muito agitada que não ia bem na escola e ajuda para conseguir
emprego. Evitavam apenas falar em coisas muito tristes ou mais ligadas às “relações de cunho
sexual”, como me disse uma senhora. Camila contou-me que um dia estava muito triste, tendo
pensamentos muito ruim, “de morte”, e foi conversar com o Joãozinho da Cachoeira. Assim
que Joãozinho a abraçou, começou a chorar e não parou. A médium que auxiliava a ibejada o
consolava, Camila foi levada até a sala de D. Marilene. Camila me disse que naquele dia
aprendeu que não era bom falar com Criança com muita tristeza, que era ruim para ela e para a
entidade, que não sabia lidar com isso - Joãozinho não atendeu mais ninguém naquela noite.
Depois da primeira consulta, é possível escolher com quem queremos falar. Há quem
escolha pelo médium, enquanto outros escolhem a Criança. Seu Francisco, com quem conversei
numa tarde de maio de 2017, contou-me que já ia ao CUCA há muitos anos e já sabia de quais
médiuns gostava. O seu preferido era o André, e Francisco sempre escolhia sua entidade para a
consulta, fosse ibejada, caboclo ou exu. De ibejada, gostava também da Rosinha de Márcia,
enquanto achava a Mariazinha de Ana Maria, com quem falei, muito “cheia de coisa” (no caso,
ele estava falando que ela não era de fácil trato, um tanto antipática), o que não lhe inspirava
muita confiança.
As pessoas com quem conversei gostavam de ir às consultas de ibejada para se
sentirem mais leves e alegres. Consideravam os trabalhos das Crianças rápido e eficiente, além
de alegre. Eram consultas em que riam, comiam doce e saíam sempre melhores do que
chegaram. Uns só frequentavam o CUCA, outros iam também a outros centros. Não conversei
com ninguém que se consultasse apenas com as Crianças, e também procuravam exus, pretos-
velhos e outras entidades para pedidos e conselhos.
A fala de Pedrinho nos ajuda a compreender os trabalhos das ibejada e da umbanda. O
espírito que agora se manifestava como Criança, em sua vida terrena fora adulto. Como não
aprendera a amar, retornava agora infantil, puro e alegre, evoluindo em sua caminhada e
ensinando aos outros sobre o amor e renovação que estava a aprender. As ibejadas, como já
210

vimos, junto aos caboclos e pretos-velhos estão no tripé que sustenta a umbanda e, dentre essas,
são as entidades mais próximas aos orixás, justamente por sua pureza. As Crianças são mais
puras por terem morrido antes mesmo que pudessem ser corrompidas. Retornar como ibejada
foi o caminho para Pedrinho aprender a amar, de maneira pura e inocente, como não conseguira
em sua vida terrena.
Na consulta com Mariazinha, podemos perceber que, entre as Crianças há também
uma hierarquia. O Pedrinho de Gregório já é Criança grande, sabe mais que Mariazinha. Esta,
por sua vez, sabe mais que outra Criança que ainda não diz seu nome e não dá consultas, apenas
passes. Há ainda a hierarquia determinada pelos consulentes, que elegem seus médiuns e
entidades preferidos, estabelecendo com quais se identificam e em que confiam mais ou menos.
Além do indicativo das fichas de consulta que primeiro se esgotam, podemos
identificar quais as Crianças mais prestigiadas por suas coisas. É comum que nas consultas e
giras festivas as ibejadas ganhem presentes e várias das coisas que usam em seus atendimentos
foram recebidas como agradecimento. Uma Criança com muitas bonecas, carrinhos, pulseiras,
colares, arcos e demais adereços coloridos e brilhantes é, provavelmente, uma ibejada querida
e poderosa, que já ajudou muitos de seus consulentes a alcançar uma graça ou um pedido. As
coisas das entidades são, além de instrumentos de trabalho, signos de seu reconhecimento
(CARDOSO; HEAD, 2015, p. 180).
Nas três ocasiões acima descritas, recebi alguma coisa das Crianças: um suspiro, um
pirulito, uma pera, uma pulseira. É comum que consulentes também ganhem presentes, que
geralmente vêm com recomendações de uso e consumo. Ao deslizar um suspiro pelo corpo de
uma pessoa, a Criança está fazendo uma limpeza, afastando tristezas e doenças, trazendo
alegrias e bem-estar. O consulente pode receber uma fruta, um doce, uma pulseira; e levam
consigo algo, que estende a consulta. Além daquele momento, passado ali no salão do centro,
os conselhos e recomendações da ibejada seguem com os consulentes, nessas coisas que eles
receberam: uma fruta que deve ser consumida em algum momento específico, um doce que
deve ser posto em algum lugar ou comido posteriormente, um banho que deve ser tomado
depois.
Com brinquedos e comidas as ibejadas trabalham, atendem aos pedidos de seus
consulentes, que levam consigo aquilo que receberam das Crianças: a alegria, o cuidado, um
conselho e uma fruta. Uma consulta com uma Criança tem cheiro, som, toque, cor, sabor.
Sentimos o perfume de alfazema e o cheiro de refrigerante, ouvimos os pontos cantados, as
palmas, os beijos e o tatibitate; os corpos se abraçam e se tocam, vemos as cores dos brinquedos,
211

dos panos, roupas, acessórios, brinquedos, flores; sentimos a doçura de um suspiro e no gole de
água de coco.
Ao longo deste capítulo, vimos como o vestir e o trabalhar-brincar-trabalhar das
Crianças são performances encorporadas, realizadas na relação entre pessoas e coisas. Ao invés
de pensar na incorporação dessas entidades, busquei pensar nas encorporações das ibejadas; ou
seja, como essas Crianças se espalham por roupas, brinquedos, doces e corpos para brincar e
trabalhar. Tratar da encorporação ao invés da incorporação nos permite falar dessa experiência
das entidades que certamente envolve o transe, mas não se resume a ele. Além disso, podemos
deslocar o foco e nos centrarmos menos nos corpos que incorporam, e mais nos corpos das
próprias entidades, corpos que assumem diversas dimensões, cores, formas e materiais; corpos
ilimitados, mas não etéreos. As Crianças encorporam em distintos meios e seus corpos estão
sempre a se espalhar, sem chegar a um contorno final. As próprias ibejadas nos lembram que
aquilo que vemos é sempre uma parte. Tudo é escolhido de acordo com os gostos e prescrições
das ibejadas e por mais que Rosinha esteja na saia, na bata, na boneca, na imagem e num corpo
físico, ainda assim há sempre uma parte dela não que podemos ver - ou que não vemos como
é. As Crianças estão em todas as suas coisas, mas também as extrapolam.
Por estarem em diversas formas e cores, vamos vendo as ibejadas chegarem enquanto
os médiuns arrumam as coisas, que além de serem mídias que presentificam essas Crianças são
também instrumentos de trabalho, com e a partir dos quais consulentes e entidades se
relacionam. As sessões de quarta-feira são frequentadas por aqueles que querem falar
diretamente com as entidades. Além dos pedidos, conselhos e recados falados, o trabalho das
Crianças também se realiza em beijos, abraços, pulseiras, suspiros, velas, areia, carrinhos,
cânfora, balas, alfazema, bichinhos de pelúcia e frutas. Os corpos e as práticas das ibejadas se
espalham e se realizam nas coisas.
Na relação com as coisas, as pessoas se transformam. As roupas quando vestidas
colorem e estampam corpos, ativando nos adultos o infantil; com o vestir surgem outros gestos,
que tornam ainda mais evidentes as transformações, a presença de um outro que há pouco não
estava ali. Ao receber um suspiro de uma Criança, levamos para casa uma proteção, uma parte
do que foi vivido na noite de quarta-feira se estende a outros dias da semana, e no suspiro está
a leveza que procurávamos na consulta com uma ibejada.
As coisas também passam por transformações. Um tricoline estampado é comprado
para tornar-se a roupa de uma Criança, deixa de ser apenas um tecido para ser a realização de
um recado recebido em sonho. O carrinho vermelho comprado numa loja de brinquedos é
guardado numa caixa junto a uma espada, outros carrinhos e a imagem de São Jorge. O carrinho,
212

por ser de Joãozinho da Cachoeira, não é apenas um brinquedo, mas um objeto ritual, com o
qual Joãozinho brinca e trabalha, diverte-se e limpa as más energias de seus consulentes. É na
relação entre pessoas e coisas que as Crianças encorporam e performam suas brincadeiras,
alegrias, trabalhos, cuidados e doçura.
213

6. Doces de Criança

Neste capítulo, falarei sobre a comida das Crianças. Cocada, bolo, pirulito, suspiro,
bananada, paçoca, bala, pé de moleque, maria mole e outras guloseimas compõem o banquete
dedicado às ibejadas.158 Uma das discussões que proponho neste capítulo é pensar como essas
materialidades, aqui pensadas como comida, podem ajudar a construir, ou a compreender, quem
e como são as ibejadas.
A segunda questão que aqui exploro refere-se ao lugar do doce nos rituais. Dentre as
diversas discussões e abordagens do campo que convencionou-se chamar de antropologia da
comida159 (MINTZ; DU BOIS, 2002) ou antropologia da alimentação (CONTRERAS;
GRACIA, 2005), há diversos autores que nos falam sobre a centralidade e abundância das
comidas em rituais das religiões afro-brasileiras, bem como dos preceitos no preparo e consumo
de carurus, acarajés, xinxim de galinha, feijoada. Mas, haveria lugar para o doce nesse sistema
culinário afro-brasileiro (GOLÇALVES, 2004; BITAR, 2011) ? Doce é, afinal, comida de
santo?
O açúcar já foi considerado, antropológica e sociologicamente, enquanto unidade de
análise para pensar economia, relações de poder e classes, sistemas de produção, hábitos
alimentares e culturais, identidades regional e nacional de sociedades cuja economia já foi, ou
ainda é, baseada na plantation (MINTZ, 1985; FREYRE, 2007[1939]); mas, na literatura sobre
as religiões afro-brasileiras, seu lugar nos rituais ainda é pouco abordado – ao que parece,
orixás, santos, espíritos, entidades e encantados preferem os sabores salgados. Já o paladar das
Crianças, como veremos, é bastante açucarado e é com doces que essas entidades recebem
homenagens, pedidos e agradecimentos. Aqui, ao tratar dessa parte importante dos rituais
ligados às Crianças da umbanda, tentaremos também pensar os doces enquanto parte do(s)

158
Muitos dos doces da gira festiva de ibejada são os mesmos que preenchem os saquinhos de Cosme e Damião.
Balas, pipoca, cocada, suspiro, paçoca, pé de moleque, pirulito, maria-mole, doce de abobora, amendoim,
bananada, bombom, jujuba, chiclete, doce de leite, cocô de rato, doce de batata doce, pé de moça, torrone; foram
doces listados pelos 161 compradores que entrevistamos em 2013, no âmbito da pesquisa ‘Doces Santos’. Há uma
série de classificações que operam na escolha dos doces que serão distribuídos no dia 27: mais sofisticados, os
mais em conta, o preferido das crianças e os tradicionais – e sob esta rubrica são mencionados suspiro, doce de
leite, pipoca, cocada, pé de moleque, maria-mole, paçoca, bananada e jujuba (FREITAS, 2019). Assim, os doces
das Crianças são os mesmos que no dia 27 são dados às crianças.
159
Ao longo desta tese, a formatação em itálico, além de indicar os vocábulos estrangeiros, ressalta categorias,
expressões ou conceitos propostos por mim ou por outros autores. O grifo em negrito destaca expressões e
categorias próprias do universo pesquisado. As aspas simples indicam os títulos das obras referidas e as aspas
duplas demarcam trechos de citações incorporadas ao texto.
214

sistema(s) culinário(s) das religiões afro-brasileiras, no qual se relacionam com outros


elementos e comidas, como o dendê e a feijoada, que alimentam entidades e pessoas.
Ao falar sobre a comida em três situações de análise – uma unidade doméstica, numa
festa de casamento e dentro de um templo –, Appadurai (1981) nos mostra que cada uma delas
tem suas formas e regras para circulação e consumo de comida, e que cada contexto suscita
distintas inquietações. Para o autor, ao nos perguntarmos o que as ações envolvendo comida
podem dizer, para quem e em qual contexto dizem e quais as consequências deste “discurso”;
podemos compreender os alimentos enquanto poderosos dispositivos semióticos, cujas formas
materiais constroem e reificam relações de produção, poder, mercado, intimidade,
solidariedade, identidade; sendo, portanto, a comida um fato social condensado, plástico e
mobilizador de fortes emoções (APPADURAI, 1981, p. 494).
Aqui, veremos como os doces circulam pelo centro em dois dias: no dia 26 de
setembro, acompanhando os preparativos da festa, e no dia 27, quando são distribuídos
saquinhos e realizada a gira festiva da ibejada, a noite do grande banquete. Ao acompanharmos
a cuidadosa tarefa de arrumar os doces e frutas, percebemos que nas giras festivas impera uma
estética dos doces. Na entrega de saquinhos, na tarde do dia 27, vemos como as crianças
interagem com Pedrinho da Cachoeira, Criança do dirigente, e como entre elas são trocados
doces e sorrisos, gratos e zombeteiros. É à noite, durante a festa, que o grande banquete é
servido e podemos ver e sentir toda doçura das Crianças. Ao longo deste capítulo, veremos
como as ibejadas podem ser pensadas gustemologicamente (SUTTON, 2010), isto é, a partir do
paladar e outros aspectos sensoriais da comida, neste caso, os doces. A doçura das Crianças é
colorida, melada e estética.
Em ‘A estética da persuasão’, Birgit Meyer (2018) propõe, a partir de estudos sobre o
pentecostalismo, uma retomada da estética no estudo da religião, considerando-a como central
“para a formação de modos coletivos e individuais de ser e pertencer” (p. 14). Antes de tudo,
segundo a autora, é preciso retomar a compreensão da religião como estética, sendo esta
considerada em seu sentido mais amplo.

Baumgarten [filósofo alemão do século XVIII] defendia um entendimento


amplo da estética no sentido de aisthesis, que se refere à capacidade humana
de perceber o mundo com seus cinco sentidos e interpretá-lo através dessas
percepções. Esse entendimento amplo foi subsequentemente estreitado e a
estética acabou sendo um tanto confinada à esfera autônoma da arte e do belo,
que se tornou o domínio privilegiado para o discurso sobre o corpo e as
sensações na sociedade moderna.
[...]
A arte invocou um novo tipo de sensus communis distinto da – e
potencialmente substitutivo para a – religião (como o romantismo enfatizou).
215

A arte e a religião (no sentido de religiosidade mágica) têm em comum a


mobilização de sensações e experiências que se localizam no corpo e
contrastam com o pensamento racional. Em outras palavras, os discursos
modernos sobre a estética e a religião do tipo da religiosidade mágica estão
inscritos no dualismo entre corpo e mente. Tais discursos reconhecem a
importância dos sentidos, mas ainda os vêem como subordinados, se não
inferiores, ao pensamento racional. Ao incluir a estética nesse dualismo,
perde-se o significado mais amplo de aisthesis que engloba os sentidos e o
conhecimento. (p. 23-4)

Aqui, a estética dos doces será compreendida em seu sentido mais amplo. Como as
demais coisas apresentadas nesta tese – pontos cantados, imagens, roupas, brinquedos – os
doces nos permitem conhecer e sentir as ibejadas, experienciá-las sinestesicamente, sentindo
seus sabores, cores, doçura, pureza e alegria.

6.1 Doce é comida?

Desde que começamos a pesquisar a festa de Cosme e Damião paira a dúvida: doce é
comida? Para muitos, doce é um agrado, um supérfluo, sempre bem-vindo pelas crianças. No
dia 27 de setembro, elas passam o dia correndo atrás de saquinhos e devorando doces, mas
ainda assim há a pausa para o almoço. Há quem goste de dar junto com os doces um salgadinho,
“para alimentar”. Quando a distribuição de saquinhos é parte de uma ação compreendida como
assistência ou caridade, distingue-se doces de alimentos, e junto com os doces são doados
biscoitos e leite. Havia, portanto, sempre uma dúvida em como classificar esses doces.
Seguindo a distinção proposta por Gonçalves (2004), para quem o alimento é mais associado à
fome e ao ato de suprir uma necessidade fisiológica, enquanto a comida é associada ao paladar
e à constituição de culturas e identidades; poderíamos dizer que doce é comida que não
alimenta.
Ao falar sobre ibejadas, essa dúvida permanece. As Crianças comem doces e frutas,
poucas são as que comem alguma coisa salgada; doce é, portanto, comida de Criança. Ao
pensarmos nos doces enquanto comida dessas entidades, aproximamo-os às chamadas comidas
de santo. Na literatura sobre comida em religiões afro-brasileiras muito se fala sobre dendê,
camarão seco, acarajé, quiabo, caruru, pimenta, feijoada, galinhas, bodes, cabras; mas e os
doces? A pergunta, então, se recoloca: doce é comida de santo?
A seguir, veremos como alguns autores se posicionam na construção de um campo de
análise sobre comidas nos rituais afro-brasileiros – e como nesta bibliografia as cozinhas dos
terreiros de candomblé são mais privilegiadas que as dos centros de umbanda – e as questões
216

que elas suscitam; em seguida, trago autores que se debruçaram sobre o açúcar e os doces
enquanto temas de análise para sociologia e antropologia. Minha proposta é juntar esses dois
fios e pensar como uma historicização da produção e consumo de açúcar pode nos ajudar a
compreender como ele marca o paladar brasileiro e os doces, de tão significativos, chegam a
ser sagrados, alimentando pessoas e entidades nas giras das Crianças da umbanda.

6.1.1 Comida dos deuses

Os deuses são grandes comilões. Os mitos que relatam suas vidas estão cheios
de comezainas pantagruélicas, de voracidade homéricas. Portanto não há nada
de espantoso, quando penetramos no peji dos orixás, em ver ali a abundância
de pratos, de cores ou de formas diversas, segundo os deuses e contendo
iguarias saborosas. [...] Os deuses não são apenas comilões, mas também finos
gourmets. Sabem apreciar o que é bom e, como o comum dos mortais, não
comem de tudo. (BASTIDE, 2001, p. 331-2)

Diversos autores já trataram das comidas feitas nas cozinhas de centros e terreiros,
ofertadas aos pés dos congás, pejis, encruzilhadas, árvores; que alimentam orixás, espíritos,
entidades e pessoas. Além das comidas serem centrais nos rituais das religiões afro-brasileiras,
elas são também abundantes – mas não é porque se come muito que se come de tudo.
Poderíamos pensar em sistemas culinários das religiões afro-brasileiras, considerando que,

Os "sistemas culinários" estão intimamente integrados a determinadas


cosmologias, unindo a pessoa, a sociedade e o universo, e identificando a
posição e o comportamento do ser humano nessa totalidade. As preferências
alimentares, os modos de cozinhar, as formas de apresentação dos alimentos,
as maneiras de mesa, as categorias de paladar ou gosto, todos esses elementos
inter-relacionados compõem um código cultural por meio do qual mediações
sociais e simbólicas são realizadas entre os seres humanos e o universo. Como
estágios em um longo e complexo processo, esse sistema opera uma
importante transformação simbólica da natureza à cultura, da fome ao paladar,
do alimento à comida, e da comida às refeições, assim como opera mediações
não menos importantes entre distintos domínios sociais e culturais
(GONÇALVES, 2004, p. 47)

Tabus alimentares, preceitos nos preparos, ingredientes específicos, formas e


utensílios próprios de fazer e servir, prescrições para o consumo; todas questões pertinentes ao
pensarmos em como as comidas circulam e alimentam entidades, espíritos, orixás, inquices,
voduns, encantados e pessoas. Mesmo um visitante, numa festa ou giras em terreiros e centros,
perceberá a presença da comida - em um lanche ou refeição oferecidas nos intervalos ou ao fim
da festa, pelas gamelas e travessas com diversos quitutes aos pés dos altares ou pejis, ou que
217

são carregadas às cabeças dos filhos e filhas da casa antes de serem entregues às entidades. É
difícil imaginar um ritual sem comida; e, de modo mais amplo, pensar nessas religiões sem
tematizar suas comidas e seus sistemas culinários.
Para descrever o candomblé, Donald Pierson (1945) elaborou uma tabela onde
identifica os orixás, seus fetiches, insígnias e “alimentos sagrados”. Nesta coluna da tabela,
temos cabras, pombos, bodes, tartarugas, galo, milho, tainha, feijão, cerveja, vinho branco,
caruru, acaçá, farofa, dendê; cada orixá com seus alimentos e bebidas específicos. Xangô come
galo, tartaruga, bode e caruru; iemanjá, pombo, milho, galo e bode castrado; tainha, cabra,
galinha e feijão alimentam oxum; e exu “come tudo” (ibid., p. 345). Algumas dessas comidas,
bem como suas receitas, também foram listadas na obra póstuma de Manuel Querino, “A arte
culinária na Bahia” (1928). Já na década de 1920 era possível perceber como as comidas que,
inicialmente pertenceriam ao sistema culinário dos candomblés, não se restringiam às cozinhas
dos terreiros e eram também servidas às mesas das casas e restaurantes na Bahia.

É notório, pois, que a Bahia encerra a superioridade, a excelência, a primazia,


na arte culinária do país, pois que o elemento africano, com a sua
condimentação requintada de exóticos adubos, alterou profundamente as
iguarias portuguesas, resultando daí um produto todo nacional, saboroso,
agradável ao paladar mais exigente, o que excede a justificada fama que
precede a cozinha baiana. Fora o africano o introdutor do azeite de cheiro, do
camarão seco, da pimenta malagueta, do leite de coco e de outros elementos,
no preparo das variadas refeições da Bahia ( QUERINO, 1957 [1928], p. 23).

O dendê160, o camarão seco e a pimenta, tão utilizados nas iguarias dos orixás,
passaram a identificar, mais amplamente, a culinária baiana. Mas como vimos, além dos
ingredientes, sabores e receitas, um sistema culinário também se caracteriza pelos modos de
fazer, de apresentar, de comer. Nesse sentido, o caruru do cardápio do restaurante não é o
mesmo ofertado a xangô - como diria Vivaldo da Costa Lima, “ hoje, os homens comem a
comida estilizada dos santos” (COSTA LIMA, 1997, p. 324). Desde a escolha dos ingredientes
à forma de sacrificar e tratar dos bichos, passando pelas mãos eleitas para temperar, cortar e
cozinhar, até os utensílios e as apresentações dos pratos na hora de servir; tudo isso singulariza
uma comida e caracteriza um sistema culinário.

O animal sacrificado passa das mãos do achôgun para as da cozinheira que vai
preparar o alimento dos deuses. Moela, fígado, coração, pés, asas, cabeça e,
bem entendido, o sangue, pertencem de direito aos deuses; mas o resto do

160
Tão fundamental é o dendê que mereceu uma etnografia particular. Na obra “Tem dendê, tem axé: etnografia
do dendezeiro” (1992), Raul Lody pensa as religiões afro-brasileiras e, de modo mais amplo, a cultura brasileira,
a partir deste óleo, extraído do dendezeiro, árvore sagrada e da qual se aproveitam não só os frutos, mas também
as folhas, palhas e sementes.
218

animal não é atirado fora, é cozido e parte dêle será posta em travessas ou em
pratinhos diante das pedras ou dos pedaços de ferro pertencentes às divindade.
[...] mas a cozinheira, que se chama iya-bassê ou abassá, e que naturalmente
não deve nesse momento estar menstruada, não se limita a preparar o animal
sacrificado; cozinha também tantos pratos quantos forem os deuses chamados
no decorrer da cerimônia, o amalá de Xangô, o xinxim de galinha de Oxun, o
arroz sem sal de Oxalá, etc. Alimenta então sucessivamente as diferentes
pedras sagradas. O resto do alimento será consumido no fim da cerimônia
pelos fiéis, e até mesmo pelos simples visitantes. (BASTIDE, 2001, p. 21)

Não só há uma forma correta de realizar o sacrifício, como há, na hierarquia dos
terreiros, um cargo a ser ocupado por aqueles que são, reconhecidamente, aptos para realizar
tal atividade. O mesmo ocorre na cozinha, onde a cozinheira também tem seu lugar na
hierarquia, o que lhe confere poder e responsabilidade, bem como alguns interditos. Separam o
que cabe aos orixás, e o que será servido aos demais filhos da casa e convidados. Para ser
comida de santo é preciso muito mais que dendê - que apesar de ser sempre lembrado como
característico, não pode ir em toda comida, pois é quizila161 de alguns. Vemos então que a partir
da comida pessoas e entidades se relacionam e se distinguem - a cada orixá, uma comida, e o
que se oferece a eles não é a mesma comida que alimenta os homens, estes se distinguem pela
aproximação que podem, ou não, ter com os animais, a cozinha e o preparo da comida. Mas
esta também aproxima, já que toda essa comida preparada é também consumida, e a
comensalidade é parte fundamental do ritual.

A comida é chave importante para entendermos o tipo de relacionalidade que


vigora no candomblé – uma relacionalidade que envolve misturas,
transformações, fluxos.[...] além de oferecer entrada à ontologia do
candomblé, a comida é também porta de acesso à ética que lhe é própria: afinal
o preparo, oferta, distribuição e consumo do alimento são definidores da
complexa dinâmica de cuidado que modula a vida no terreiro. [...] os percursos
da comida delineiam um campo de ação ética em que fruição estética e
julgamento moral, exercício da agência e submissão, dispêndio de energia e
entrega passiva são dimensões entrelaçadas e reversíveis. (RABELO, 2014, p.
107)

Para nos falar melhor dessa abordagem que considera a comida como chave para
compreender ontologias e éticas próprias ao candomblé, Miriam Rabelo (2014) nos traz três
rituais onde estão, em distintas formas e fluxos, presentes comidas. No ebó162 feito para

161
Atos e alimentos que são interditos a alguns orixás e seus filhos. Alguns já são conhecidos, como a quizila de
oxalá com dendê, e já entram para a vida de um filho de santo quando este descobre qual é seu orixá. Outras
quizilas são particulares, comunicadas pelos jogos de búzios aos iniciados. As interdições podem ser momentâneas
ou para toda a vida.
162
Uma espécie de oferenda aos orixás, feita, muitas vezes, com o intuito de limpar o corpo e afastar alguma
energia.
219

iemanjá, as comidas eram passadas pelos corpos ajoelhados à beira do mar, e o que não ficava
grudado ao corpo, era levado pelas ondas. No bori163, há uma mesa repleta de comidas, como
xinxim de galinha, acaçá, manjar de coco, frutas; que alimentam o ori – a cabeça, centro do
ritual – sendo depositadas diretamente sobre a cabeça, e também as pessoas que fazem parte do
ritual, para quem são servidas as iguarias em pratos, de onde deve-se comer diretamente com
as mãos. Nos assentamentos, as comidas são oferecidas aos pés dos orixás em louças e gamelas,
em arranjos cuidadosos, que conferem beleza ao banquete servido.
Nos casos trazidos por Rabelo, podemos compreender distintos fluxos das comidas,
que circulam por corpos, ondas, cabeças, mãos, pratos, mesas, gamelas e louças. Através da
comida os laços entre orixás e pessoas, entre a pessoa e sua cabeça, entre pai ou mãe e filhos e
filhas são estabelecidos e reforçados. As comidas mobilizam pessoas que são responsáveis pelo
seu preparo e oferta, ambas atividades que requerem uma série de cuidados; e mobilizam
também os orixás, que recebem, junto com as comidas que lhes agradam, os pedidos e
agradecimentos daqueles que lhes alimentam. A comida nos rituais alimenta, embeleza,
vincula, aproxima e distingue, e circula entre mãos, panelas, gamelas, louças, pratos, corpos,
bocas, cabeças e nessa circulação vemos suas cores, sentimos seus cheiros, sabores e texturas.
Os autores trazidos até aqui estão falando, mais especificamente, de comidas de orixás
e da Bahia164, mas seus apontamentos também são pertinentes para comidas de entidades,
espíritos, inquices, voduns e encantados, de outras regiões e cidades do Brasil. Mas se há
aproximações, há também distinções. No caso das comidas dos centros de umbanda, certamente
são menos marcadas pelo dendê e camarão seco, ainda que esses sigam presentes.
Na umbanda, a comida parece não ter a mesma centralidade que no candomblé – ou
pelo menos os antropólogos não dão a mesma atenção às comidas do centro como àquelas feitas
nas cozinhas dos terreiros. Na literatura são menos detalhadas as referências aos banquetes das
giras festivas, ocasiões muitas vezes marcadas pela fartura. Nos centros, as comidas também
costumam ser abundantes, as mesas são fartas, os pratos servidos são cheios, não se deve sair
com fome de uma gira. Nessas ocasiões de festiva comensalidade, as portas dos centros são
abertas e há expressiva presença de convidados.

163
Trata-se de um ritual para alimentar a cabeça. Para tornar-se filho de um terreiro, usar um fio de contas
devidamente lavado e as roupas comuns à casa, é preciso fazer um bori. Mas há também outros momentos em que
o ritual é feito, segundo as necessidades e indicações dos orixás.
164
Para uma revisão mais detalhada da bibliografia sobre o tema, ver a dissertação de Rafael Camaratta Santos
(2018), que a partir de sua etnografia no Ilé Axé Opô Afonjá, em Salvador, analisa a circulação de comida nos
rituais privados e públicos, considerando a comida enquanto mediadora nas relações entre pessoas e orixás.
220

O banquete é sempre um momento importante e concorrido, sobretudo em


ambientes mais pobres, constituindo elemento imprescindível, mesmo quando
não há grande fartura. A festa é também um momento de abertura do terreiro
à comunidade mais ampla, contando com a presença de amigos e
colaboradores. Torna-se assim uma oportunidade de reconhecimento público
da casa, de seus dirigentes e das entidades sobrenaturais homenageadas. Fato
a ser destacado nestas festas de terreiro é o montante de despesas efetuadas, e
o luxo das vestimentas e das mesas de doce (FERRETTI, 2011, p.246)

Vemos, então, que a partir da comida o centro também constrói sua reputação. A
realização de giras festivas com fartos banquetes é uma forma não só de celebrar e cultuar as
entidades, mas também de adquirir reconhecimento público e ser prestigiado. E, além de ser
trabalhoso, o preparo desses banquetes é também custoso. É costume que, além de recolher as
contribuições dos filhos da casa, sejam feitas campanhas de arrecadação de dinheiro ou
alimentos para realização das giras. A comida é, portanto, coletivamente custeada, preparada e
consumida; e no preparo e realização do banquete estreitam-se ou têm início as relações entre
o centro e seus visitantes.
Se anteriormente falamos das semelhanças entre os cardápios dos terreiros e
restaurantes baianos, no Rio de Janeiro também há um prato que tanto caracteriza a culinária
regional quanto a religiosa: a feijoada. Feijão preto cozido com carne seca, pé, orelha e rabo
de porco, toucinho, linguiça e paio; acompanhado de arroz branco, couve refogada, farofa e
laranja. Esta poderia ser uma descrição do prato tipicamente carioca165, que caracteriza não só
a culinária do Rio de Janeiro, mas tornou-se também referência nacional. Uns dizem que o prato
foi criado nas senzalas, elaborado pelos escravos que ficavam com as partes menos nobres do
porco; para outros o prato teria relação com preparos europeus, como o cassoulet francês. Como
diria Maria Eunice Maciel, “ qualquer que tenha sido sua origem, o fato é que a feijoada ficou
estabelecida como o ‘prato nacional’ [...] e a polêmica sobre a feijoada interessa não pelo que
possa tra­zer acerca de suas origens, mas, sobretudo, por existir” (MACIEL, 2004, p. 33). Ou
seja, interessa menos saber das origens desse prato do que reconhecer que há essa disputa e que,
ao fim, a feijoada tem seu lugar no imaginário e no prato do brasileiro.166

165
Cumpre ressaltar algumas variações possíveis. Em outras regiões, como no nordeste, a feijoada é feita com
outros feijões e carnes, que são cozidos também com legumes, como abóbora e quiabo. Além disso, cada vez mais
restaurantes oferecem em seu cardápio a versão vegana do prato, com tofu defumado ao invés das carnes. Nem
toda feijoada é, portanto, carioca e mesmo que o feijão seja preto, pode ser sem as carnes.
166
Sobre o lugar desse prato enquanto símbolo não só da nacionalidade brasileira, mas da cultura negra, e como
este prato nos permite pensar em identidades nacionais, relações raciais e racismo; ver FRY (1982, 2001).
221

Em suas distintas variações, a feijoada está na mesa das casas e restaurantes, em


versões mais simples ou completas, em ocasiões mais ou menos comemorativas; nas quadras
das escolas de samba, servida nos eventos festivos, e nos centros de umbanda.

Vovó contava uma estória no meio de uma prece, ao mesmo tempo em que suplicava
a Nosso Sr. do Bonfim em nome de sua audiência, os filhos de santo. Mas ao continuar
sua estória, ela também lhes dizia que tinha sido seu suor escravo que havia temperado
a feijoada que os alimentava física e espiritualmente naquela festa de preto velho.
(CARDOSO, 2013, p. 53)

Abril e junho são meses de feijoada nos centros de umbanda. A comida celebra e
alimenta os ogum e pretos-velhos, nas giras festivas realizadas nas datas em que também são
homenageados São Jorge e Santo Antônio. Catar o feijão, dessalgar as carnes, cortar a couve.
As longas horas com os panelões, de ferro ou de barro, no fogão à gás ou à lenha, para o lento
cozinhar do feijão e das carnes. Muitos quilos de arroz e farinha, dúzias de laranjas. O preparo
da feijoada costuma levar muitas horas, e é realizado a muitas mãos, em sua maioria femininas.
Antes de ser repartida entre todos, reza-se perante as panelas e, em muitas ocasiões, são as
próprias pretas-velhas, auxiliadas por cambonos, que servem o prato que alimenta os corpos e
espíritos de seus filhos e convidados (FONTES, 2016).
Além das feijoadas para ogum e pretos-velhos, as festas de exu também costumam ser
bastante cheias, de gente, de comida e também de bebidas e cigarrilhas. Nessas ocasiões, as
entidades costumam beber e fumar mais que comer e a ocasião da comensalidade é mais
reservada aos momentos em que não se fazem presentes os exus e pomba-giras, como intervalos
ou mesmo ao fim da gira. Um churrasco ou mesmo um buffet self-service (CAMPOS; MAIA,
2016) é o momento de celebração entre assistentes e médiuns, ao fim de uma noite de trabalhos.
As giras de ibejada são um caso um tanto particular, pois a comida que circula nesses
rituais por vezes nem são exatamente reconhecidas enquanto comida. Cocada, suspiro, bolo,
pirulito, bala e frutas são alguns dos itens do cardápio das Crianças. Considerando que, como
veremos mais adiante, o doce banquete das ibejadas é zelosamente organizado, seu preparo
envolve uma série de cuidados e que há também entre os doces os preferidos e os interditos,
doce aqui é comida – comida de Criança.
222

6.1.2 Açúcar 167

Que é doce, afinal? Dizem os dicionários que é aquilo que tem um sabor como
o de açúcar ou de mel; e que, assim sacarino, não é amargo, nem salgado, nem
picante; e – ainda – a composição que é temperada com açúcar, mel ou outro
ingrediente sacarino. À base dessas composições é que, para o sociólogo da
cultura, há uma doçaria, uma confeitaria, uma pastelaria, uma estética da
sobremesa com implicações socioculturais: toda uma parte da arte-ciência
com um estilo, uma etiqueta, uma forma de ser alimentação sendo também
recreação que a diferencia da outra; que vem se constituindo em objeto
autônomo de estudo etnológico e de estudo histórico para começar a ser já –
mais do que isto – objeto de estudo sociológico. Há uma sociologia do doce à
parte de uma sociologia de arte da cozinha e do que esta arte – mais vasta –
implica de sociocultural. (FREYRE, 2007 [1939], p. 57)

Gilberto Freyre nos propõe considerar o doce enquanto mote de análise, defendendo
um campo da sociologia que se dedique aos sabores e estilos do fazer e comer doces,
reconhecendo que a partir da doçaria podemos compreender uma determinada sociedade, sua
história e seus hábitos, que envolvem esse tipo de alimento, mas a ele não se resumem, e se
estendem a outros domínios da vida social. Considerando válida a proposta de Freyre, trago
aqui sua obra junto à de Mintz (1985) para ilustrar como esses autores elaboraram discussões
em torno do açúcar a partir de distintos casos e escalas168. Essas duas obras nos ajudam a refletir
sobre processos históricos que constroem socialmente um gosto, um paladar local e nacional; e
a compreender como nas Américas o açúcar e a plantation são um produto e um sistema de
produção fundamentais, a partir dos quais é possível discutir formas de trabalho, economia,
classe, dieta, identidade, estética, sociabilidade e rituais dessas sociedades. A partir do açúcar
distingue-se a metrópole da colônia, os ricos dos pobres, as crianças dos adultos.
Como veremos, alguns dos doces que hoje são servidos nas giras festivas de ibejada
eram doces de pobres, de rua, de comer com a mão, feitos e consumidos pelas classes
subalternas. A feijoada e o dendê sobre os quais falamos anteriormente, eram prato e ingrediente
de pessoas negras e pobres, pratos de estratos subalternos que nas cozinhas de centros e terreiros

167
Neste item, aplico e desdobro em meu estudo de caso a análise multi-escalar e as referências bibliográficas
propostas por Renata Menezes no bloco "açúcar", do curso "Sobre comida", ministrado por ela no
PPGAS/MN/UFRJ, no segundo semestre de 2016.
168
Sobre como distintas escalas constroem diferentes realidades sociais, Revel (1998, p.13) nos diz que “
reconhecer que uma realidade social não é a mesma dependendo do nível de análise - ou da escala da observação
- em que escolhemos nos situar. Fenômenos maciços, que estamos habituados a pensar em termos globais, como
o crescimento do Estado, a formação da sociedade industrial, podem ser lidos em termos completamente diferentes
se tentamos apreendê-los por intermédio de estratégias individuais, das trajetórias biográficas, individuais ou
familiares. [...] a escolha não é alternativa entre uma abordagem que privilegia a identificação de sistemas
simbólicos gerais, quando não universais, e uma outra que tentaria perceber o que acontece no processo inacabado
de uma história. Mas é bom reconhecer que as duas operações induzem a construções diferentes do social”.
223

conformam-se em comida sagrada, compartilhada entre deuses e pessoas; e que acabaram


conformando-se como símbolos nacionais. Os sistemas culinários afro-brasileiros sacralizaram
comidas e ingredientes de classes socialmente marginalizadas, e o exercício que aqui proponho
é o de compreender os doces como parte desse processo. A umbanda sacralizou uma doceria
popular, ofertando cocadas e manjares às Crianças, materializando nos doces a inocência,
pureza e doçura dessas entidades.
Partindo da mais distante para a mais próxima, apresento a seguir as duas obras
mencionadas, partindo da Inglaterra para depois chegarmos ao Brasil e aos engenhos de
Pernambuco. Mintz (2001) descreve sua obra ‘Sweetness and Power: the place of sugar in
modern history’ (1985) como “um estudo da sacarose, que procurou relacionar as colônias às
metrópoles europeias, os escravos do Novo Mundo aos proletários do Velho” (MINTZ, 2001,
p. 36). A sacarose, ou açúcar comum, branco, de mesa – e não a lactose ou a frutose, outros
tipos de açúcares – é a unidade de análise de Mintz, que a partir dela vai relacionar Caribe e
Inglaterra, a produção de cana de açúcar na colônia e os produtos que chegavam à metrópole e
seus impactos nos hábitos alimentares ingleses. O açúcar, antes um item de luxo pelo alto custo
e escassa produção, passou a ser, graças à exploração do fértil solo caribenho, abundante; e,
com isso, tornou-se item básico da dieta do trabalhador britânico.
Essa relação entre produção da colônia e consumo da metrópole, levou Mintz (1985)
a questionar algumas concepções;

Só quando comecei a aprender mais sobre a história do Caribe e mais sobre as


relações particulares entre plantadores nas colônias e banqueiros, empresários
e diferentes grupos de consumidores nas metrópoles, é que comecei a pensar
no que era realmente a "demanda", no que seria considerado "natural", no que
se entende por palavras como "gosto" e "preferência", e mesmo "bom".
(MINTZ, 1985, p. XXI) 169

O gosto pelo açúcar, o adocicado paladar britânico, não poderia, então, ser explicado,
apenas, biologicamente. Uma série de pesquisadores norte-americanos falavam em uma
predisposição do paladar dos mamíferos pelo gosto doce, já que por milhões de anos este sabor
indicava o que podia ser comestível. Os bebês, por exemplo, podem contorcer o rosto em caretas
ao experimentar o azedo gosto do limão, mas não estranham, e frequentemente apreciam, o
dulçor de uma banana. Para Mintz tal argumento poderia até explicar, de forma bastante

169
No original, “ Only when I began to learn more Caribbean history and more about particular relationships
between planters in the colonies and bankers, entrepreneurs, and different groups of consumers in the metropolises,
did I began to puzzle over what ‘demand’ really was, to what extended it would be regarded as ‘natural’, what is
meant by words like ‘taste’ and ‘preference’ and even ‘good’”.
224

genérica, porque comemos alimentos adocicados; mas isso não seria suficiente para
compreendermos porque determinadas pessoas consumiam açúcar em grande quantidade e
cotidianamente, enquanto outros raramente comiam. Assim, para o autor, uma antropologia do
açúcar (MINTZ, 1985, p. 6) deveria explorar seus sentidos e usos, suas formas de produção,
uma cronologia de seu consumo, e buscar compreender como a adição ou retirada de
determinados elementos da dieta afetam as socialidades da alimentação de um país. Nesse
sentido, o açúcar deveria ser pensado em relação ao trabalho escravo, ao sistema colonial,
considerando fluxos transnacionais de mercadorias, técnicas de conservação de alimentos, usos
medicinais, rituais e cerimônias, elite e classe trabalhadora, chá, café, chocolate. Em sua obra,
temos acesso a uma história econômica e social do açúcar na Inglaterra, seus usos e sentidos.
Por volta dos anos 1100 o açúcar foi introduzido na Europa, figurando junto a outras
especiarias, como pimenta, noz moscada e cardamomo; todos ingredientes exóticos, raros e
caros, usados em pouca quantidade e restrito a poucos. À essa época, o açúcar não era sinônimo
de doçura e tampouco pensado em relação de oposição ao sabor apimentado; e ao invés de ser
ingrediente de receitas de doces, era utilizado nos preparos de carnes, aves, peixes e vegetais.
No século XVI o consumo de açúcar ainda era restrito às elites, mas seu custo já era um pouco
mais baixo e sua produção mais abundante, agora advinda de diversas colônias. Além de
especiaria, o açúcar também passou a ser usado como decoração. Misturado a óleos, como o de
amêndoas, e goma xantana, o açúcar era ingrediente principal de uma espécie de pasta, que a
princípio podia ser moldada, mas que depois de um tempo tornava-se rígida. Em grandes e
suntuosos banquetes da nobreza britânica, entre um prato e outro, eram trazidas à mesa
esculturas de edificações, animais e objetos que podiam, e deviam, ser admiradas e consumidas.
Assim, os doces começaram a ter destaque nas refeições, agradavam ao paladar e aos olhos,
perfumavam o banquete e, entre um prato e outro, prestavam homenagens e distraíam os
convidados. Ao tornar-se mais abundante, o caráter conservante do açúcar também passou a ser
explorado. Frutas e vegetais tornavam-se mais duráveis quando imersos em caldas ou
salmouras. O açúcar além de temperar e decorar, também conservava e transformava os
alimentos – frutas tornavam-se geleias, vegetais adquiriam durabilidade e novos sabores em
salmouras agridoces.
Em todos esses usos, quanto mais refinado, melhor era considerado o açúcar. Quanto
mais branco, mais puro, mais saboroso e mais adequado ao consumo. Essa associação entre a
brancura e a pureza seria decorrência de um uso do açúcar que antecedeu os já citados. Antes
de ser condimento, decoração e conservante; o açúcar era remédio, indicado para indisposições
de humor, problemas digestivos e fadigas, o açúcar branco e refinado estava na composição de
225

diversos xaropes e elixires. Tomás de Aquino considerava que o açúcar era menos alimento do
que medicamento, e que, portanto, durante os períodos de jejum era permitido a ingestão de
açúcar, já que o ingerir era como tomar um remédio (MINTZ, 1985, p. 99). O açúcar assumia,
portanto, diversos usos e sentidos, mas ainda não era concebido como um alimento.
Somente enquanto adoçante, consumido também nas casas das classes trabalhadoras,
é que o açúcar passou a ser alimento, e de necessidade básica. Entre a elite, o açucareiro passou
a compor as mesas arrumadas para o chá da tarde, um hábito que envolvia uma série de rituais,
do preparo ao consumo. Para o proletariado, o chá não era apenas um lanche ou evento social,
mas muitas vezes era uma refeição e nesse contexto o açúcar não só adoçava como também
tornava a bebida mais energética. Abundante e, agora, barato, o açúcar passou, no século XIX,
a ser consumido em altas quantidades e as famílias mais pobres comiam cada vez menos pães
e carnes e consumiam cada vez mais açúcar.

Durante dois séculos, a cana-de-açúcar baniu implacavelmente o mel, o açúcar


de bordo, a alfarroba e todos os outros adoçantes, exceto para produção de
especialidades enfrentando seu principal desafio, açúcar de beterraba, apenas
em meados do século XIX. As plantações de cana-de-açúcar, junto com as
fazendas de café, as destilarias de rum e as lavouras de tabaco, instigadas pelo
chá da China, dissolveram as fronteiras entre o alimento e a droga,
estimulando apetites dos novos proletários, e facilitando o sucesso do
capitalismo nas terras do coração da Europa. (MINTZ, 2001, p. 33)

Mintz pensa o açúcar em relação ao mel e variados adoçantes, a outros produtos como
café e chá, enquanto parte de um mercado global que relacionava metrópoles e colônias. Entre
1600 e 1850, o açúcar foi adquirindo outros usos e sentidos: de artigo de luxo a item de
necessidade básica do proletariado, de especiaria a carboidrato; o açúcar antes de ser adoçante
foi condimento, medicamento e decoração. Pode até ser que o gosto por doce seja generalizado
e decorrente de algum imperativo biológico, mas a doçura do paladar britânico é passível de ser
histórica e economicamente contextualizada. Com o aumento da produção de cana de açúcar
pela mão de obra escravizada no Caribe, o açúcar passou a circular em grandes quantidades na
Inglaterra e, assim, tornou-se produto barato e passou a ser uma das bases da alimentação do
proletariado. Ao perder seu glamour e tornar-se produto comum, os usos do açúcar passaram a
ser menos ritualizados e estéticos, eram outros os valores atribuídos a esse produto, agora menos
bonito e caro – e cada vez mais doce.
A sociologia proposta por Freyre é ainda mais doce que a antropologia de Mintz.
‘Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste do Brasil’,
publicado pela primeira vez em 1939, foi, segundo o próprio autor, “a primeira tentativa, em
226

qualquer país, de uma sociologia do doce” (FREYRE, 2007, p. 23). Para Freyre, a arte dos
doces caracteriza a civilização brasileira e foi, junto à arquitetura das casas-grandes e engenhos,
uma das primeiras realizações culturais de portugueses em solo brasileiro. Na culinária feita no
Brasil, tradições lusas se juntavam à ecologia e aos valores locais e assim iam sendo criados
dulcíssimos quitutes. Este país seria uma civilização do açúcar e o paladar brasileiro
historicamente doce.
O açúcar passou a dar renome ao chamado Brasil. Mais do que nome: renome.
O Brasil, terra do açúcar, tornou-se mais famoso que o Brasil, terra de madeira
de tinta. Mais famoso, mais importante e mais sedutor: no açúcar estava uma
fonte de riqueza quase igual ao ouro. [...] Pode-se já falar de um paladar
brasileiro histórico e - é possível - também tropical ou ecologicamente
condicionado; e como tal, ao que parece, predisposto a estimar o doce e até o
abuso do doce. [...] Esse seu gosto de doce é, para outros paladares europeus
excessivamente doce. Um doce - o da preferência brasileira - como que
barroco e até rococó em termos que se transferissem das artes plásticas e da
música à arte talvez mais sensual da sobremesa. (FREYRE, 2007, p. 27)

Assim como Mintz, Freyre também procura contextualizar o paladar brasileiro e evoca
a ecologia e também a economia. Além do solo brasileiro, notadamente das terras nordestinas,
serem propícios ao plantio da cana de açúcar, esta tornou-se mais rentável que o pau-brasil. Se
Mintz nos falava do consumo de açúcar na metrópole, Freyre nos fala sobre esse consumo nas
próprias colônias, e como aqui também podemos pensar nos seus usos e sentidos – e abusos.
Além de uma sociologia, há também uma geografia do doce, e nela o Nordeste é o
coração da dulcíssima civilização brasileira. As cozinhas das casas-grandes dos engenhos
nordestinos, especialmente os pernambucanos, eram o lugar de excelência das geleias,
compotas, bolos, biscoitos, manjares, alfenins.
Freyre também nos traz os utensílios dessas cozinhas: panelas e tachos de ferro e barro,
gamelas e colheres de pau, quenga de coco (uma concha feita com a casca do coco), ralador de
coco, pilão. Os papeis rendados que envolviam e decoravam os doces, as louças usadas para o
serviço, as palhas de milho e folhas de bananeira que envolviam pamonhas e tapiocas.
Ambos autores recorrem aos livros de receitas para falar dos usos e preparos de açúcar
e pratos (nem sempre doces), mostrando-nos a relevância deste material enquanto fonte de
pesquisa. Nos livros de receita podemos encontrar dados que nos ajudam a historicizar os
hábitos alimentares de um determinado país ou região, e são fonte a partir das quais podemos
compreender como se constituem os paladares nacional e regional. Além de dados e receitas,
esses livros, e as comidas, também são fonte de memórias e afetos;

Há um gosto todo especial em fazer preparar um pudim ou um bolo por uma


receita velha de avó. Sentir que o doce cujo sabor alegra o menino ou a moça
227

de hoje já alegrou o paladar da dindinha morta que apenas se conhece de


algum retrato pálido mas que foi também menina, moça e alegre. Que é um
doce que tem história. Que tem passado. Que já é profundamente nosso.
(FREYRE, 2007, p. 73)

São muitas as relações entre comida e memória. A partir da comida podem surgir
memórias sensoriais, identitárias e étnicas, nostalgia de outros tempos e lugares e há ainda a
possibilidade da comida articular memória e gênero, sendo recorrentemente veículos de
memórias femininas (HOLTZMAN, 2006). Freyre nos fala de uma memória familiar a partir
das receitas, que transmitem saberes e afetos entre gerações. O autor faz menção, e traz algumas
das receitas, ao bolo Sousa Leão, ao doce os beijos de d. Aninha, aos bolinhos Cavalcanti; que
ilustram essa íntima relação entre doces e famílias da elite nordestina. Os doces levam os nomes
das famílias que os criaram, e os laços e memórias de família se atualizam e perduram nessas
receitas. Os doces contam e têm história.
Mas as cozinhas das casas-grandes não eram os únicos locais dos doces. Estes também
circulavam pelas ruas, sobre os tabuleiros e balaios de mulheres negras que pelas ruas
apregoavam seus doces, bolos e frutas – e que deviam ser elas também as responsáveis pelo
preparo dos doces nas casas de família. Mônica Velloso (1990) nos fala sobre as tias baianas
que pelas praças e ruas do Rio de Janeiro montavam suas barracas e vendiam seus quitutes, e
como essas mulheres e suas formas de percorrer e ocupar os espaços instauraram, no início do
século XX, uma nova lógica de estar e viver na cidade. Subverteram a lógica que impunha a
rua como lugar de passagem, e fizeram dela espaço de sociabilidade, de sustento e, também, de
alimentação. Os tabuleiros de doces, e outros quitutes, tornaram-se fonte de renda de mulheres
negras e transformaram as ruas em lugar de comida.
Se nas ruas lambuzava-se os dedos com cocadas, manjares e bolos; nas confeitarias os
doces eram consumidos com louça, prataria e bons modos, por uma elite que aspirava hábitos
europeus. Os doces de confeitaria eram sobremesas finas, menos doces, mais delicados. Nos
tabuleiros ou nas vitrines, para comer com a mão ou em fina louça, os doces são produtos e
produtores de laços e sociabilidades, em casas, ruas, praças e estabelecimentos. Mas além dos
lugares e formas de consumo, há ainda outra distinção entre os doces de confeitaria e de rua;
A sociologia do doce não deixa de cruzar-se , em alguns pontos, com a
sociologia das gerações, havendo quem, depois de adulto, perca o entusiasmo
por bolos ou doces estimados em extremo na meninice: alféloa, por exemplo;
ou cocada; ou alfenim. Acrescente-se a isto que menos e velhos, netos e avós,
parecem ter muito em comum em seus entusiasmos por doces, ou muito doces,
ou mais de rua do que de confeitaria; e estes são pouco apreciados pela gente
de meia-idade. (FREYRE, 2007, p. 30)
228

Os doces têm, então, nome de família, lugares e também idades. Se Mintz diferenciava
os doces por classes (marzipan e esculturas para a elite, pães doces e chás bastante adocicados
para o proletariado); Freyre nos propõe uma distinção geracional: crianças e velhos têm
paladares particulares, mais doces que os dos adultos. O que também pode estar relacionado
aos lugares sociais dessas gerações – crianças e idosos restritos ao ambiente doméstico, aos
doces de casa; e cabia aos adultos de meia-idade ocupar as mesas das confeitarias.
Os paladares são particularizados por sabores, mas também com adjetivos pátrios,
nomes de família e gerações. Ingleses e brasileiros têm o paladar doce e isso se explica menos
por fatores biológicos do que pela história desses países. A partir do açúcar (ou da sacarose) e
dos doces, Mintz e Freyre nos falam sobre a economia e os costumes da Inglaterra, Caribe e
Brasil, metrópoles e colônias que foram, em distintas medidas, conformadas pela cana de
açúcar. Além do paladar adocicado, essas antropologia e sociologia do açúcar nos falam de
trabalho escravo, hábitos alimentares de distintas classes, fluxos comerciais, além dos rituais,
usos e sentidos do açúcar. Este, portanto, é um fio condutor que nos permite compreender
diversos fenômenos e realidades, em escalas macro e micro.
Numa abordagem mais próxima a de Mintz, privilegiando temas como trabalho,
economia e política; mas tratando da mesma região abordada por Freyre, um grupo de
pesquisadores vinculados ao PPGAS/MN/UFRJ, desenvolveu, nos anos 1970 e 1980, um
projeto sobre os processos de transformação social da plantation canavieira na Zona da Mata
de Pernambuco.
O universo da plantation açucareira, com sua dinâmica envolvendo trabalho
e instabilidade do trabalho; dominação pessoal e idealização do passado;
imobilização da força de trabalho e novas mobilidades; barracão e feira;
produção e mercado; família e terra de trabalho; migração sazonal, migração
de longa distância e volta à origem e acesso ao roçado; direitos e conflitos,
é um universo de transformações paradigmático dessa imersão do trabalho
na teia da vida social. (LOPES, 2013, p. 436)

Numa visão bem menos romantizada que a de Freyre, os canaviais do nordeste


brasileiro foram compreendidos enquanto um modo de produção específico, a plantation, que
unia, ainda no final do século XX, resíduos feudais a um capitalismo com traços escravocratas.
Essa unidade de análise permitiu aos pesquisadores abordar as formas e locais de produção e
consumo da cana e do açúcar, como os barracões e as feiras (PALMEIRA, 1977, 2014;
GARCIA, 1977); as grandes usinas e outras unidades de trabalho, marginais às grandes
plantações, dos proletários rurais (LOPES, 1976; HEREDIA, 1979; GARCIA, JR, 1983); as
percepções desses trabalhadores sobre dinheiro e seu próprio trabalho (SIGAUD, 1976). Em
229

outros contextos, a partir do açúcar, seguiram sendo feitas reflexões antropológicas sobre
produção e consumo, família, trabalho e política.
Aqui o açúcar, ou melhor, os doces, servirão de argumento para pensarmos rituais e
entidades religiosas. Nas giras de ibejada, de consulta, mas sobretudo nas festivas, os doces são
centrais e abundantes, decoração e comida, transmitem pedidos, agradecimentos e conselhos; e
são comida de Criança.
Kosby (2015) nos fala sobre a oferta de doces aos orixás em terreiros do sul do
Brasil170. A partir de seus interlocutores, percebemos que os doces são ofertados como uma
espécie de agrado. As grandes oferendas são, geralmente, compostas por comidas salgadas,
vários animais e outros quitutes e os doces aparecem como um elemento extra, algo que é além
do pedido, que ultrapassa a obrigação e reforça os afetos e a crença com e nos orixás. Os doces
não são, portanto, centrais nas oferendas, sendo bem-vindos, mas não indispensáveis.
Nas giras de ibejada, os doces são a oferenda, e não são ofertados em pequena
quantidade, mas em abundância. Os doces são comida e não um agrado, um algo a mais.
Estamos, portanto, falando em rituais onde doce é comida, de entidades e pessoas; e, como
veremos, os cuidados que devem ser dispensados com as demais comidas de santo, também
envolvem os preparos do banquete das Crianças. Doces são comida de ibejada e entre setembro
e outubro circulam abundantemente por centros e terreiros.
Vimos anteriormente que as comidas dos rituais afro-brasileiros identificam não só
práticas religiosas, mas também se relacionam, mais amplamente, a uma identidade culinária
regional ou nacional. Em alusão ao que Maciel (2004) afirma sobre a feijoada, importa menos
saber se a comida é de santo porque é nacional, ou se é comida nacional porque é de santo. Fato
é que caruru, acarajé, feijoada e doces alimentam pessoas, orixás, santos e entidades; são
comidas de santo, de centros e terreiros, da Bahia, do Rio de Janeiro, do Brasil. São
ingredientes, gostos e formas de fazer e comer que nos contam sobre religiões, regiões e países.
Dendê e camarão seco identificam comidas de orixás e da Bahia, a feijoada dos pretos-velhos
é também chamada de carioca, símbolo não só da cidade ou estado do Rio de Janeiro, mas
considerada um prato nacional. Na umbanda, vemos o doce ser sacralizado, consagrado como
comida de Criança. O açúcar e os doces que nos contam sobre nossa história econômica e social,
que remete aos grandes engenhos e canaviais do Nordeste, nos falam também de entidades do
panteão umbandista e, portanto, de religião. A seguir, veremos como a doçura deste paladar é

170
Vale lembrar que na região sul do país os doces finos e coloniais são bastante tradicionais, e foram, inclusive,
registrados no Livro dos Saberes pelo Iphan sob a denominação “Tradições Doceiras da Região de Pelotas e Antiga
Pelotas”, em 2017.
230

também uma qualidade dessas entidades, e como, a partir dos doces sentimos, sinestesicamente,
as Crianças.

6.2 O banquete das Crianças

Banquete não é uma categoria que ouvi no CUCA, mas que aparece na literatura e que
aqui é acionado para destacar algumas características da presença e circulação dos doces nas
giras das Crianças. No dicionário, banquete é uma “refeição pomposa e solene servida a grande
número de convidados”171. Numa abordagem etimológica, Benveniste (1969) fala sobre
banquete no verbete “dom e troca”, associando esses termos comumente associados à esfera
econômica, a fatos religiosos e à noção de comensalidade.
Em sua argumentação, Benveniste trata dos dois termos em um só verbete por
considerar que eles, junto ao termo “comercializar”, conformam um conjunto de conceitos
econômicos cuja análise só é possível quando considerada a soma de suas particularidades
(BENVENISTE, 1969, p. 65). Assim, Benveniste analisa vocábulos gregos e germânicos para
dar conta de um certo “campo semântico” que vai se configurando entre esses termos.
Do vocabulário germânico, o linguista recupera o termo geld, que poderia ser traduzido
como dinheiro, e se atém particularmente sobre um de seus derivados: ghilde. Este termo
conjugaria sentidos religioso, econômico e jurídico: religioso por fazer referência ao pagamento
ou sacrifício oferecido a uma divindade; econômico por denominar fraternidades mercantis, e
jurídico enquanto redenção de um crime. A ghilde enquanto instituição, em seu sentido de
irmandade, une interesses econômicos e culto religioso, e implica também a comensalidade, na
qual a comunidade se ritualiza. O ato de comer em comunidade, leva Benveniste ao exame do
termo banquet, cujas origens gregas remontariam a termos que significam “devorar” (dapto) e
“despesa” (depáne) (BENVENISTE, 1969, p. 75). Vemos, então, que etimologicamente as
noções de dom e troca se relacionam com práticas religiosas, e dentre elas a comensalidade.
Atrelada a esta, temos a noção de banquete que supõe um comer que, além de coletivo, é voraz
e dispendioso.

Assim, podemos identificar uma noção geral, a de "despesa por ocasião de um


sacrifício que envolve um grande consumo de alimentos"; despesa ordenada
por para uma festa, por prestígio, para mostrar a sua riqueza. Na língua indo-
europeia encontramos uma manifestação social que na língua dos etnógrafos
é chamada de potlatch: exposição e destruição da riqueza por ocasião de um

171
Segundo o Dicionário Michaelis Online, disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-
portugues/busca/portugues-brasileiro/banquete/.
231

festival. [...] vemos as raízes sociais de uma instituição que é uma necessidade
em algumas comunidades e cuja obrigação essencial consiste na doação de
alimentos, carregada de reciprocidade. (BENVENISTE, 1969, p. 76) 172

Ao chamar de banquete as giras festivas de ibejada, quero ressaltar que estamos


falando em uma grande e dispendiosa quantidade de doces que é ofertada às entidades e
consumida, vorazmente, por Crianças, médiuns e assistentes, durante um evento ritual. O
festivo, pomposo e açucarado banquete é também uma forma de agradecer e pedir proteção,
conselhos, cuidados e graças a essas entidades; além de possuir um caráter obrigatório – não é
facultativo alimentar os deuses. Os doces circulam criando e reforçando relações de
reciprocidade (MAUSS, 2001 [1924]) entre pessoas e Crianças. Cumpre ainda ressaltar que, ao
promover esses banquetes, os centros reforçam as redes de trabalho e recursos financeiros que
os sustentam, bem como constroem ou mantêm seu prestígio perante aqueles que o frequentam.
Passemos, então, aos preparativos desse banquete ofertado às Crianças nas giras festivas do
CUCA.
Para que um banquete seja realizado, é preciso certo planejamento: desde a lista dos
ingredientes, passando pelas compras e preparo dos pratos, até a arrumação da mesa há uma
série de etapas que envolvem cálculos, custos, trabalhos e cuidados que precisam ser levados
em conta. A gira festiva das Crianças começa a ser preparada assim que tem início o mês de
setembro, quando começam a anunciar, em todos os eventos do centro, que já está disponível
no caixa a lista de contribuições para viabilizá-la. Há três maneiras de contribuir: doando uma
quantia em dinheiro, oferecendo saquinhos de doces – que devem ser entregues já montados –
ou tornando-se responsável por algum dos itens da lista. Qualquer contribuição deve ser
entregue até, no máximo, o dia 26, véspera do grande dia; e a cada ano algum membro da casa
fica responsável pela lista e por contactar aqueles que se comprometeram em ajudar.
Em 2016, constavam na lista os seguintes itens e quantidades: duas unidades de melão,
seis mangas, dois quilos de pêssego, um quilo de ameixa, dois quilos de maçã verde e um quilo
da vermelha, dois pratos de carambola, dois quilos de uvas roxa e verde, um quilo de goiaba,
três dúzias de banana, duas caixas de fruta do conde, três pacotes de bananada, oito de jujuba,

172
Tradução nossa, no original, “Ainsi, nous pouvons dégager une notion générale, celie de « dépense à l'occasion
d'un sacrifice qui comporte de larges consommations de nourriture » ; dépenses commandées par une fête, pour Ie
prestige, pour montrer sa richesse. On retrouve ainsi en indo-européen une manifestation sociale qui dans Ie
langage des ethnographes s'appelle le potlatch: exhibition et destruction de richesses a l'occasion d'une fête. [...]
on voit les racines sociales d'une institution qui est une nécessité dans certaines communautés et dont l'obligation
essentielle consiste en un don de nourriture, a charge de réciprocité”.
232

dois sacos de pirulito de coração, quatro de marshmallow, duas caixas de cocada branca e uma
da preta, uma caixa de geleia, uma de doce de abóbora, dois sacos de balas coloridas, um
quindim e havia ainda queijadinha, beijinho de coco, brigadeiro e docinhos cor de rosa em
quantidades não especificadas. Dentre as comidas, percebemos que, além dos doces, as frutas
também são bastante presentes – além de sacarose, tem muita frutose, mas lembremos que é
tudo açúcar. Na parte de bebidas, 24 litros de refrigerante de guaraná, oito litros de refrigerante
de cola e outros oito de limão, e quatro litros de água de coco. Para os saquinhos, colocava-se
ao lado do nome e telefone a quantidade que seria dada – naquele ano foram arrecadados mais
de 700 saquinhos.
Um item que não constava na lista, mas que certamente estaria presente na festa eram
os bolos. Contou-me Marilene, a dirigente, que “sempre tem alguém que quer dar um bolo”,
como forma de agradecimento ou em celebração do aniversário de sua Criança. Era preciso,
então, estabelecer uma quantidade máxima para os bolos, que não deveriam passar de seis, e
essa doação precisava ser autorizada pessoalmente pela dirigente da casa. Isso porque
geralmente evitavam recusar as doações, mas buscavam não exagerar na quantidade, para que
não tivessem que jogar comida fora, principalmente no caso das mais perecíveis, como os bolos.
Os doces e frutas que sobravam, quando isso acontecia, eram entregues a uma escola próxima,
para a merenda das crianças. Empenhavam-se em fazer uma festa com muita comida, mas sem
desperdícios.
O dia que antecede a festa é o dia de organizá-la. O salão é adornado com bolas e
tecidos que colorem o espaço, o congá é reordenado e os santos homenageados ganham
destaque e flores. Na cozinha são preparadas as comidas feitas pelos médiuns do centro: alguns
manjares, bolos e o caruru, a única comida salgada da festa. Na semana anterior à festa, quando
perguntei à Kátia, médium responsável pelas arrecadações, a que horas eu poderia chegar para
ajudar nos preparos, ela me disse que a partir das oito da manhã já teria gente no centro; mas
quando fui falar com a dirigente, ela me disse para chegar a partir das 11, e assim o fiz. Quando
cheguei, ouvi sobre o preparo do caruru, mas não pude observá-lo. A comida já estava pronta e
dava para sentir o cheiro de caruru que vinha da cozinha. Contaram-me que ficaram
responsáveis pelo corte dos cinco quilos quiabo dona Marilene e sua filha, e duas médiuns
cuidaram dos demais processos e do cozimento. As cozinhas e o cozinhar são espaços e atos
envoltos em muitos preceitos e, por isso, mais reservados; não são quaisquer mãos que podem
cortar os quiabos ou mexer as panelas, assim como não é todo mundo que pode circular neste
espaço. Sentada no corredor, eu esperava que me indicassem no que eu poderia ajudar.
233

Mari, irmã da dirigente, é quem comanda a organização das festas, e cabe a ela
distribuir as tarefas e ordens. Está sempre com o celular, papel e caneta nas mãos, e a cada
contribuição que chega, ela vai riscando o item da lista e apontando onde deve ser deixada a
sacola. É ainda responsável por cobrar aqueles que ainda não entregaram o que prometeram.
Enquanto esperava Val me dizer o que podia fazer, fiquei quase uma hora sentada, a observar
as mulheres que trabalhavam – até havia alguns homens, mas em outros afazeres que não dava
para saber exatamente quais eram, pois não os via fazendo precisamente alguma coisa, mas
estavam sempre em movimento, e vez ou outra eram chamados para carregar uma sacola mais
pesada ou a escada.
Ao fazer uma revisão sobre o campo da antropologia da alimentação, Mintz (2001),
ao falar sobre o pioneiro trabalho de Audrey Richards (1939) destaca o tardio reconhecimento
da autora, “talvez porque a comida e sua preparação fossem vistas como trabalhos de mulher,
e a maioria dos antropólogos fosse composta por homens” (MINTZ, 2001, p. 32). Junto à
Audrey Richards, podemos citar Rosemary Firth (1943), cujo trabalho destacou o papel
fundamental das mulheres na organização econômica da comunidade de pescadores
muçulmanos na Malásia. No mesmo ano, Margareth Mead integrou uma equipe de
pesquisadores que elaborou um relatório para o Comitê de Hábitos Alimentares, que integrava
o National Research Council. O pioneirismo desses trabalhos 173 deve-se ao fato de terem
abordado a comida enquanto tema central, justamente porque, enquanto pesquisadoras, seus
campos eram mais próximos às mulheres, as responsáveis pelo planejamento e preparo da
alimentação e comidas.
A partir disso, gostaria de destacar que parece haver alguns níveis de acesso às
comidas. De modo mais geral, o fato de ser mulher permitiria uma maior, e mais rápida,
aproximação da cozinha e do preparo da comida, lugar e trabalho majoritariamente ocupado e

173
“Land, Labour and Diet in Northern Rhodesia” (RICHARDS, 1961[1939]) trata do desequilíbrio da dieta nativa
dos bemba em contexto colonial e nos conta sobre a composição desta dieta, das visões nativas sobre a comida,
das rotinas de produção, preparo, distribuição e consumo dos alimentos entre os bemba. Além de dar centralidade
ao tema da alimentação na pesquisa antropológica, Richards incorpora a ideia de cultura ao debate sobre nutrição.
Enquanto Raymond Firth (1946) ia à pesca com os homens, Rosemary Firth (1943) realizava o seu campo junto
às mulheres da comunidade, acompanhando o preparo e a venda dos lanches. Tratar da economia entre os malásios
a partir da vivência feminina significava tratar da unidade doméstica e dos cálculos feitos por mulheres para
alimentar suas famílias, revelando uma dimensão das relações econômicas pela qual as mulheres assumiam um
lugar de poder. No prefácio do documento elaborado pela equipe coordenada por Margareth Mead (1943),
compreendemos que as pesquisas faziam parte de um empreendimento de um programa governamental, que
considerava a nutrição como uma das atividades de defesa nacional no pós-guerra. Foram criados dois comitês
para discutir a nutrição, um com enfoque nas questões de bioquímica e fisiologia, e outro que tratava dos padrões
psicológicos e culturais – os denominados, hábitos alimentares. Aqui, ao invés da incorporação da noção de cultura
ao debate sobre nutrição, vemos a separação das duas esferas e, pautada na dicotomia natureza/cultura, temos a
distinção nutrição/hábitos alimentares.
234

realizado por mulheres (CHARLES; KERR, 1988). No que tange às cozinhas dos centros e
terreiros, ainda mais longe podem ir as filhas e médiuns da casa; nestes casos, além de uma
distinção de gênero, é também considerada a hierarquia. Enquanto pesquisadora, mulher porém
(quase) estranha, coube-me ajudar na arrumação dos doces e frutas, que seria feita ali mesmo
no corredor, junto à Cláudia e Carol, mãe e filha, que ainda não eram devidamente membros da
casa, mas estavam em fase de conclusão do curso de formação; ou seja, meu lugar era fora da
cozinha e junto às novatas.

7.2.1 Uma estética dos doces

Em um dos corredores laterais estavam dispostas duas grandes mesas e, sobre elas,
várias sacolas, bandejas e cestas de vime. Sobre as mesas, oito bandejas de plástico, coloridas
e com as bordas enfeitadas com um babado de papel crepom, onde iríamos dispor os doces. Até
o momento tínhamos dois pacotes de marshmallow, três sacos de pirulitos, dois de balas e
quatro de jujubas; três caixas de cocada, dois potes de pé de moleque e incontáveis bananadas.
Mesmo que ainda estivessem faltando muitos doces, era preciso dar início aos trabalhos – a
maior preocupação era com a falta de doces brancos e Val já estava a ligar para os responsáveis.
Os doces brancos – suspiro, cocada, manjar, maria-mole – são muito importantes nas
celebrações do dia 27 de setembro, estando sempre presente nas giras e nos saquinhos. Além
de doces, as Crianças são puras e nenhum doce as agrada, e as representa, melhor que os doces
brancos.
A princípio fiquei um pouco insegura para desempenhar essa tarefa e passei, então,
um tempo a tirar as coisas das sacolas, rasgar embalagens, jogá-las no lixo, enquanto prestava
atenção ao que elas faziam, para ter alguma ideia do que eu deveria imitar. Cláudia e Carol
conversavam bastante enquanto arrumavam os doces. A todo momento Carol perguntava à mãe
se estava fazendo as coisas corretamente, sempre alegando não levar jeito para aquilo. Enquanto
a filha queria simplesmente colocar os doces sobre a bandeja sem um arranjo específico,
Cláudia insistia que tinham que arrumar as coisas direitinho, com jeitinho, para que tudo
ficasse bonito.
Cláudia me falava que a falta de delicadeza de sua filha era por causa de seu orixá,
Iansã, que queria fazer tudo rápido e não tinha paciência para esses detalhes. Por outro lado, a
paciência de Cláudia, filha de Iemanjá, parecia ser infinita. Ela dedicava bastante tempo a
arrumação de uma só bandeja, testando vários arranjos até que chegasse a um cujas cores e
235

formatos estivessem de seu agrado. Nesse processo eu me aproximava mais da impaciência e


da concepção de Carol, mas me esforçava para alcançar os padrões estéticos de Cláudia – o
cuidado no manejo dos doces, a elaboração de um desenho na bandeja, formado a partir dos
doces em seus diferentes tamanhos e cores.
Se havia uma minuciosa atenção à composição, poucos cálculos eram feitos, pois logo
nas primeiras bandejas já tínhamos usado boa parte dos doces. Depois de quatro bandejas,
alguns doces já tinham acabado – na verdade só restavam pirulito, bananada, algumas jujubas
e balas. Estava difícil fazer algo bonito com isso, a bananada era muito escura e as balas e
pirulitos também não davam muita cor. Com os doces que tínhamos à disposição conseguimos,
por fim, arrumar seis bandejas. Passaríamos, então, à arrumação das frutas nas cestas.
Eram sete cestas: duas em formato de coração e sem alça, as demais redondas e com
alça, sendo uma delas menorzinha e mais profunda. Nosso trabalho seria de adornar essas cestas
– com papel crepom e fitilhos coloridos fixados com cola quente. Mais uma vez, fui
mimetizando o que Cláudia fazia, já que esta seria minha primeira vez decorando cestas. Se
com as bandejas já estava aprendendo sobre como manejar os doces sem quebrar ou amassá-
los, entendendo quais arranjos eram possíveis, agora precisaria fazer babados de papel crepom,
laços com fitilhos; toda uma outra aprendizagem gestual. Cláudia seguia sendo tão minuciosa
e cuidadosa como fora com as bandejas. Enquanto íamos arrumando as cestas, fomos
conversando e acabei descobrindo que Cláudia trabalhava com decoração de festas – e
finalmente entendi tamanha habilidade. Sua filha também a ajudava, mas sempre preferia
trabalhos menos minuciosos e se dedicava a arrumação das bolas – e o mesmo acontecera
naquela tarde, já que depois das bandejas Carol nos deixou e foi encher bolas no salão.
Depois que todas as cestas estavam devidamente enfeitadas, Cláudia chamou Mari
para nos instruir sobre a arrumação das frutas. Primeiro, era preciso forrar o fundo das cestas
com papel manteiga, para que as frutas não ficassem em contato direto com as cestas, já que
estas não estavam muito limpas e as frutas já estavam lavadas e prontas para o consumo.
Voltamos, então, às pistolas de cola quente. Colocando o forro nas cestas, Cláudia ainda decide
fazer mais enfeites. Eu desisto dessa parte e digo que enquanto ela faz isso eu vou arrumar as
frutas nas cestas que já estavam forradas. Seguindo as ordens de Mari, uma cesta seria apenas
para as jabuticabas, por ser um fruta que mancha muito; outra seria para as balas de coco e nas
demais deveríamos arrumar as maçãs verdes e vermelhas, bananas, mangas, carambolas,
jabuticabas, ameixas, uvas, frutas do conde, pêssegos, morangos, abacates e mamões formosa.
Além das seis cestas de frutas, utilizamos duas bandejas que eram para os doces, mas que não
foram usadas. Eu fui arrumando as cestas e bandejas de forma autônoma, afinal agora eu não
236

contava com o exemplo de Cláudia, que ainda estava ocupada nos enfeites. A arrumação das
frutas foi bem mais simples que a dos doces e acabei em pouco tempo – bom, pelo menos
achava que tinha feito tudo, até Cláudia se aproximar. Ela desfez tudo que eu tinha arrumado,
refazendo todas as cestas e bandejas para que ficassem mais adequados – ou do seu jeito. Ao
fim, tínhamos sete bandejas de doces, uma cesta de bala de coco coberta com papel celofane,
seis cestas e uma bandeja de frutas.
Enquanto estávamos arrumando as frutas, chegaram mais doces – queijadinhas,
brigadeiros e beijinhos – que deveriam ser arrumados em duas bandejas. Cláudia rapidamente
tomou para si a tarefa e pediu que fosse arrumando e limpando o corredor. Já passava das 19
horas, e tínhamos feito apenas um breve intervalo para o almoço. No salão, seis mulheres
estavam a juntar em cachos as bolas que foram cheias durante a tarde. Pouco depois das 21
horas, os cachos de bolas (contei 48) estavam pendurados sobre o salão e bancos de assistência,
Em cada cacho de bolas era pendurada uma plaquinha com nomes de Crianças do centro:
Cosme, Jupirinha, Janaína, Joãozinho, Aninha, Toinho, Folhinha, Rosinha, Crispim,
Crispiniano, Clarinha, Damião. Tinham também duas figuras, em eva174 com um metro de
altura, uma menina e um menino, que eram colocados no fundo do salão, na parede do congá,
representando as Crianças dos dirigentes da casa, Mariazinha da Praia e Pedrinho da Cachoeira.
Ainda tínhamos que limpar o chão e transportar para o salão as cestas e bandejas de frutas e
doces, que ficariam num canto do salão, sobre o chão, cobertas por um grande tecido. Até as
22h30, quando deixamos o centro, o salão estava todo ornamentado.

174
Material emborrachado, encontrado em formato de folhas e com diversas texturas, cores e padrões.
237

Fotos 20 e 21: arranjos de frutas e doces sobre bandejas enfeitadas com babados de papel
crepom.

Morena Freitas, CUCA, 26 de setembro de 2016.

Foto 22: As seis bandejas de doces, com a arrumação final, sobre a mesa, já no salão.

Morena Freitas, CUCA, 26 de setembro de 2016.


238

Foto 23: Todas as bandejas e cestas de frutas e doces, além dos sete bolos, um quindim,
quatro pratinhos de docinhos e três bandejas de queijadinhas. O banquete de doces servido aos
pés das Crianças.

Morena Freitas, CUCA, 27 de setembro de 2016.

Pela descrição e fotos acima, compreendemos que o preparo do banquete envolve


também a decoração do espaço e uma zelosa apresentação das comidas. Ao pensar sobre uma
sociologia da refeição, Simmel (2004 [1910]) distingue o ato de comer de uma refeição, sendo
o primeiro o ato mais comum e egoísta dos seres humanos, posto que imprescindível a todos,
porém restrito ao indivíduo; já a refeição é um ente sociológico, uma ação compartilhada.
Enquanto tema sociológico, a refeição e o ato de comer em grupo assumem formas mais
reguladas, estilizadas e estéticas.

A aparência individual de uma comida não se limita ao seu objetivo, a saber,


de ser consu-mida; isso seria semelhante ao canibalismo. A estética na
arrumação e decoração dos pratos, mes-mo no caso dos jantares mais
refinados, é orientada por princípios em outras par-tes há muito superados:
simetria, escolha bem pueril das cores, formas e símbo-los primitivos, A mesa
posta também não deve ser uma peça de arte fechada em si mesma, de tal
forma que não se ousaria quebrar sua forma, Enquanto a beleza da obra de arte
tem sua essência na sua intocabilidade, que nos mantém à dis-tância, o
refinamento da mesa de jantar inclui em sua beleza o convite a ser vio-lada.
(SIMMEL, 2004[1910], p. 163-4)
239

Deixando de lado o inadequado adjetivo acionado por Simmel para particularizar os


símbolos, sua descrição dos princípios estéticos de uma refeição contempla o banquete das
Crianças em seu cuidadoso preparo, atento às cores, formas e simetrias. Cláudia repreendia a
impaciência de Carol, explicando que arrumar os doces não era simplesmente colocá-los sobre
a bandeja. O contínuo fazer e refazer era uma forma de testar diversos arranjos, até que se
chegasse à melhor disposição possível, considerando as cores e formatos dos doces, além de
garantir que cada bandeja tivesse uma composição singular. O banquete, além de farto, precisa
ser bonito.
Para compor essa decoração é preciso, além de paciência, um olhar e repertório gestual
específicos, capazes não só de conceber, mas também realizar e avaliar os arranjos. Ondular
fitilhos, usar cola quente, montar composições, encher bola, fazer cachos, pendurá-los ao teto,
enfeitar bancos e paredes com panos coloridos, dispor flores sobre o congá; todos esses
trabalhos que envolvem a realização do banquete ritual, e que vão além do cozinhar. Há muito
mais que comida em um banquete e, nesta ocasião, mesmo a comida não é apenas alimento,
mas também decoração. Por isso, podemos falar em uma estética dos doces que enfeitam e
embelezam as giras das Crianças, e nos permitem experienciá-las sensorialmente.
Como disse anteriormente, ao acionar o termo banquete destaco algumas
particularidades desse evento, uma delas o fato de pressupor, assim como a refeição
simmeliana, uma relação: um banquete é uma dispendiosa e trabalhosa oferta de uma pessoa a
seus convidados. Aqui, estamos falando de um banquete organizado e realizado por um centro,
que agrupa pessoas que trabalham, custeiam e realizam essa oferta às entidades. Todos os
esforços são empreendidos para agradar as Crianças, elas são as principais comensais desse
banquete. Os doces são arrumados em bonitas, coloridas e harmoniosas composições para que
as bandejas e cestas sejam apreciadas e bagunçadas pelas ibejadas. Trabalho, cuidado e beleza
são fundamentais para realizar esse banquete, que alimenta, homenageia, reforça e atualiza os
laços entre pessoas e entidades, de obrigação e agradecimento. “A gente tem esse trabalho todo,
a cada festa, por eles”, disse-me Mari, apontando para o congá, depois de mais de doze horas
de preparação.
240

6.3 Dar, receber e comer doces

Depois de acompanhar como é preparado o banquete, veremos agora como os doces


são dados, recebidos e consumidos no CUCA. No dia 27 de setembro, os doces circulam em
dois momentos distintos: no início da tarde, com a distribuição de saquinhos, e à noite acontece
o grande banquete, a gira festiva da ibejada. À tarde, podemos ver como as crianças interagem
com Pedrinho, a Criança do dirigente, responsável pela distribuição dos saquinhos de doces.
Nesse momento, doces são dados em troca de abraços, agradecimentos e sorrisos, ora gratos
ora irônicos. À noite, quem mais come doce são as Crianças, as donas e principais convidadas
do banquete. Na gira, podemos perceber que os doces nos permitem sentir as crianças não só
pelo paladar, e sentimos a doçura dessas entidades pelas bandejas que circulam pelo salão, no
melado das mãos açucaradas. Falarei a seguir desses dois momentos.

6.3.1 Sorrir e agradecer

Na segunda semana de setembro, a distribuição de saquinhos de doces com cartão é


tradicional no dia 27 de setembro, uma modalidade geralmente eleita por quem deseja uma
maior organização na hora da distribuição (FREITAS, 2015). Costuma-se distribuir os cartões
nas semanas que antecedem a festa e no pequeno papelzinho informam o endereço e horário da
distribuição, que no caso do CUCA seria, no próprio centro, entre as 13 e 15 horas175.
Em 2016, quando acompanhei a doação, foram distribuídos 700 cartões e arrecadados
quase mil saquinhos, sendo parte deles guardados para a distribuição à noite, ao fim da gira. O
responsável pela entrega dos saquinhos era Pedrinho, a ibejada do dirigente. Pouco antes do
início da distribuição, Gregório estava no salão, em frente ao congá, e no chão, à sua frente, um
copo e um pratinho azuis e um cabuletê 176. Entoaram o ponto de Pedrinho e, poucos minutos
depois, ele chegou, saltitante. Pedrinho cumprimentou a todos, pediu benção, e foi sentar-se no
corredor de entrada, onde receberia as crianças e entregaria os saquinhos. Ao seu lado, uma

175
No CUCA, nem bem começa setembro e já dão os anúncios, ao início de cada sessão, que os cartões para pegar
doces dia 27 já estão disponíveis no caixa. Cada pessoa pode pegar até cinco cartões e cada um deles dá direito a
um saquinho e no dia da distribuição cada criança só pode pegar um saquinho; ou seja, pode pegar até cinco
cartões, contanto que sejam repassados a cinco crianças.
176
Como dito anteriormente, cabuletê é um pequeno tambor com cabo e dois coquinhos presos em sua lateral.
241

toalhinha sobre a qual estava o seu copo, que foi cheio com água de coco, seu cabuletê e um
pandeiro, um cacho de uvas verdes e um bolo de banana.
No portão, Edmilson controlava a entrada e ordenava a fila, no corredor três mulheres
ordenavam a distribuição, duas organizavam a fila e ajudavam as crianças menores, enquanto
outra ia passando os saquinhos para o Pedrinho – e eu fiquei tirando os saquinhos das caixas
maiores, colocando-os no corredor. Pedrinho recebia um por um, dava um abraço e beijava o
saquinho antes de entregá-lo. Algumas crianças vinham acompanhada das mães, que também
ganhavam um saquinho e, quando Pedrinho gostava do abraço, dava um segundo saquinho,
“pelo abraço apertado, toma mais um”. Poucas crianças se recusavam a abraçar Pedrinho,
algumas que eram ainda bem pequenas pareciam ficar com medo, se afastavam e choravam um
pouco, procurando consolo da mãe, que as acalmava e pegava por elas os doces. Uma menina,
que devia ter uns cinco anos, estava na fila tranquilamente, mas quando viu Pedrinho saiu
correndo e ficou lá fora, olhando assustada do portão. Pedrinho riu e mandou entregarem um
saquinho para ela lá fora. Além de abraçarem Pedrinho, as crianças o agradeciam pelo saquinho
recebido – umas espontaneamente, outras depois de ouvirem de alguém a ordem “diz obrigado”.

Foto 24: Pedrinho abrindo os braços para uma criança, antes de entregar o saquinho.

Morena Freitas, CUCA, 27 de setembro de 2016.


242

Neste momento de distribuição dos saquinhos, é também interessante ver a interação


entre as crianças e o Pedrinho. De maneira geral, é possível notar algum nível de estranhamento.
Este pode ser tão grande a ponto de assustar a criança e fazê-la chorar, pode ser passageiro, e a
hesitação acaba no abraço. Mas mesmo aqueles que já abraçam sem hesitar, parecem, por vezes,
ter uma mirada ressabiada, sobretudo os mais grandinhos. As interações oscilam entre um
medo, que afasta, e um estranhamento, que permite a aproximação, ainda que desconfortável.
Para muitos deles, não é comum ver um adulto falar e agir como uma criança, além disso ser
um tanto surpreendente. Quem tinha o cartão nas mãos sabia que a distribuição de saquinhos
seria num centro de umbanda, mas isso não significava, necessariamente, saber que iria receber
os doces de uma entidade – é comum haver distribuição de saquinhos em centros de umbanda,
mas nem todas são realizadas diretamente pelas entidades. No dia 27 de setembro, portanto,
muitas pessoas vão a centros de umbanda atrás de doce e não para uma aproximação ou
interação com entidades.
Nas giras de ibejada, é comum ter algumas crianças, acompanhando seus pais e até
indo junto com eles fazer uma consulta. Mas, nesses casos, geralmente a interação entre
Crianças e crianças parece ocorrer de maneira mais fluida, com interações menos hesitantes -
talvez porque nesses casos a interação já esteja enquadrada, ao ir para uma sessão de consulta
de ibejada já está previsto algum tipo de contato com as ibejadas. Outro fator é a presença dos
pais. Na distribuição de doces, só eram acompanhadas pelos pais as crianças bem pequenas,
ainda de colo; para as demais, pedia-se que entrasse sozinha. Já na consulta, nunca presenciei
uma criança sozinha indo falar com uma ibejada.
As crianças parecem não reconhecer em Pedrinho uma outra criança, pelo menos não
imediatamente. Poucas são as crianças que dominam os códigos da interação na umbanda,
religiosa; reconhecendo ali uma entidade, pedindo a bênção e dando o abraço característico,
quando a cabeça se apoia sobre um ombro e depois o outro. Para maior parte delas, é somente
à medida que Pedrinho vai falando, rindo, fazendo brincadeira, mostrando seus brinquedos, que
o receio diminui e a aproximação torna-se possível. Os sorrisos das crianças para Pedrinho
expressam simpatia, agradecimento e, por vezes, um sarcasmo achincalhado; poucos são os que
expressam uma relação de devoção.
Podemos também pensar numa espécie de pedagogia da festa do dia 27 de setembro,
na qual os saberes sobre compra de doces e montagens dos saquinhos, dar e pegar doces
circulam entre pais e filhos, e também entre as próprias crianças, que vão aprendendo umas
com as outras as manhas de conseguir pegar mais de um saquinhos, os bons pontos para correr
atrás de doces. É comum que as crianças menores sejam acompanhadas por suas mães (é mais
243

raro ver pais) na busca pelos saquinhos. Muitas crianças ficam envergonhadas, hesitam em
receber os saquinhos e as mães vão ensinando os filhos a aceitar os doces, sem deixar de por
eles agradecer. Quando a criança recebe o saquinho, a mãe já pergunta “como é que se fala?”,
“o que que a gente diz quando ganha alguma coisa?”, sempre a espera da resposta, “obrigado”.

É verdade que não se pensa em teologia cada vez que se diz "obrigado"[...] O
agradecimento pode, em algumas situações, ser interpretado como uma
relutância em pagar o que o destinatário espera como seu devido; noutras, pelo
contrário, agradecer é reconhecer o endividamento e representa uma promessa
de devolver o presente ou serviço no futuro (tais culturas podem ser descritas
como "Maussianas", pois já compreenderam "a necessidade de devolver
presentes", como Mauss colocou no subtítulo do seu grande ensaio sobre o
presente). Mas a etiqueta relativa à devolução de presentes contém mais
subtilezas do que Mauss explicou. A única regra geral que pode ser citada é
que a graça é sempre algo extra, para além do "que conta", do que é obrigatório
ou previsível; ela pertence ao registo do extraordinário (daí a sua associação
com o sagrado). No entanto, sempre que um favor tenha sido feito, espera-se
sempre a devolução da graça, quer sob a forma de uma manifestação material
(independentemente do valor material daquilo que é devolvido), quer
meramente em expressão verbal. (PITT- RIVERS, 2011 [1992], p. 425) 177

Pitt-Rivers começa seu texto mostrando surpresa com o fato da graça ser um tema não
explorado na antropologia, e parece preocupar mais os teólogos, sendo amplamente utilizado
em textos sagrados. Como a antropologia, sempre tão atenta à reciprocidade, esquece-se de
falar sobre a graça? Uma resposta possível seria o negligenciamento que, sobretudo o viés
funcionalista da disciplina, dispensa às formas pelas quais as pessoas se expressam. Mas é
preciso atentar para como as pessoas se expressam o que sentem quando recebem algo. Thank
you, gracias, merci, grazie, obrigado; são formas de reconhecer a gratuidade de algo recebido
e expressar a gratidão por receber.
A graça, segundo Pitt-Rivers (2011, p. 427), estaria nas relações de troca onde não há
contrato, onde não há um sistema previamente estabelecido que faça a equivalência entre o que

177
Tradução minha, no original: “ It is true one does not think of theology every time one says “thank you,” [...].
Thanks can in some situations be interpreted as a reluctance to pay what the recipient expects as his due; in others,
on the contrary, to thank is to recognize indebtedness and represents a promise to return the gift or service in the
future. (Such cultures might be described as “Maussian,” for they have already understood “the necessity to return
presents,” as Mauss put it in the subtitle of his great essay on the gift). But the etiquette concerning the return of
gifts contains more subtleties than Mauss explained. The only general rule that can be cited is that grace is always
something extra, over and above “what counts,” what is obligatory or predictable; it belongs on the register of the
extraordinary (hence its association with the sacred). Nevertheless whenever a favor has been done the return of
grace is always expected, whether in the form of a material manifestation (regardless of the material value of that
which is returned) or merely in verbal expression.”
244

é dado e o que deve ser retribuído. Nessas trocas, imperam os interesses solidários, e quando
não há norma para o retorno, há graça. O princípio da graça seria desconhecido, subjetivo,
emocional e sagrado. O paradoxo dessa oferta gratuita estaria na espera do reconhecimento -
não é esperado uma recompensa material, mas há a expectativa de um retorno moral. A
gratuidade precisa ser reconhecida, e graça pressupõe, então, alguém que ofereça algo sem nada
cobrar a alguém que receba reconhecendo a graça do doador. Nesse circuito, não precisa haver
objetos circulando continuamente, mas a graça precisa manter-se em movimento - dar, receber
e agradecer.
A gratidão em Simmel (1964) também é compreendida enquanto este retorno não
material, que surge nas trocas onde a reciprocidade não é estabelecida por coerções externas
e/ou termos legais e contratuais. Este é um sentimento que origina-se na e pelas trocas e podem
estendê-las, já que a gratidão pode permanecer após o fim da troca, referindo-se a algo que já
aconteceu - como na fórmula “serei eternamente grato” , onde a gratidão estende-se no tempo
indefinidamente.
Dizer “obrigado” ao receber um saquinho é reconhecer que aquilo que recebemos não
pode ou deve ser retribuído, mas deve que o dar tem de ser reconhecido e, nesse sentido, somos
moralmente impelidos a sentir gratidão por tudo aquilo que recebemos – sendo a ingratidão
uma falta gravíssima. Ainda que não seja a expressão de um profundo reconhecimento por algo
que recebemos e pelo qual temos de retribuir de alguma forma, o agradecimento “só por
educação” também tem seu papel na relação de troca. Agradecer é também reforçar e manter
as relações de sociabilidade (SIMMEL, 1964). Ensinar a criança a agradecer pelo saquinho
recebido não é, necessariamente, ensinar-lhe acerca da graça que é receber doces, mas também
ensinar as regras de sociabilidade da festa, mostrando a maneira apropriada de vivenciá-la.

6.3.2 Sabores e sentidos dos doces

Doce
do.ce
adj [adjetivo]
1 Que possui sabor de açúcar ou de mel.
2 Temperado com açúcar, mel ou qualquer outro ingrediente sacarino (diz-se
de alimento).
3 Que exerce nos sentidos uma impressão agradável por ser saboroso como
mel; apetitoso.
4 FIG Que não é amargo ou que não amarga.
5 FIG Que agrada ao coração, ao espírito.
6 FIG Que apresenta suavidade; suave, sereno.
245

7 FIG Que se apresenta com tranquilidade; despreocupado, calmo (diz-se de


situações, acontecimentos).
8 FIG Que se mostra feliz; alegre, ditoso, risonho.
9 FIG Que não é chocante, escabroso, pesado, violento: Doces sonhos da
infância os que vivi naquele tempo!
10 FIG Que é terno, meigo, amoroso, carinhoso.
11 GÍR Cujo funcionamento é perfeito; que não emperra (diz-se de uma
engrenagem ou eixo de uma máquina, fechadura etc.).
sm [substantivo masculino]
1 CUL Qualquer iguaria que leva açúcar, mel ou outra substância sacarina
como ingrediente; guloseima, rebuçado.
2 Tudo que tem sabor de açúcar ou açucarado.
3 Aquilo que é agradável ao paladar em razão da doçura.
4 FIG Pessoa dócil, meiga, educada, carinhosa, obediente.
(MICHAELIS, s/d)178

À noite, o centro fica cheio, repleto de pessoas que foram até lá não só para comer
doces, mas para estar com as Crianças. Nas giras, doce refere-se aos alimentos açucarados que
circulam pelo salão, mas também é acionado como adjetivo, que qualifica as Crianças e
apresenta uma das características distintivas dessas entidades. Nas giras de ibejada o doce não
se resume a um gosto que sensibiliza a língua e suas papilas gustativas; sentimos o açúcar no
grude das mãos meladas, quando pegamos o doce de uma bandeja, percebemos os aromas dos
doces, vemos suas formas e cores, e o ouvimos no chiado do gás escapando quando o
refrigerante é aberto. A doçura das ibejadas tem cheiro, gosto, sons, cores, melam nossas mãos,
invadem nossas narinas e boca.
Inicialmente, a comida foi antropologicamente pensada como subárea da cultura
material, enquanto parte da organização social, relacionada à economia, à política e aos rituais
religiosos179; sendo a ela dedicado um ou dois capítulos que apresentavam suas formas de
obtenção e consumo (MINTZ, 2001). O trabalho de Audrey Richards é considerado um ponto
de virada, por trazer a comida para o centro da análise, tratada sob um viés que relacionava
nutrição e cultura. Entre as décadas de 1960 e 1970, a comida passou a ser abordada por suas
características comunicacionais e simbólicas.

178
Verbete “doce” do dicionário Michaelis online, disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-
portugues/busca/portugues-brasileiro/doce/.
179
Robertson Smith, em 1889, ao falar sobre a religião dos semitas, tratava sobre comida, sacrifício e religião.
Uma década depois, Mauss e Hubert publicam “Ensaio sobre a natureza e a função do sacrifício”, onde
desenvolviam (e criticavam) pontos já apontados por Smith e postulavam que “o sacrifício é um ato religioso que
mediante a consagração de uma vítima modifica o estado da pessoa moral que o efetua ou de certos objetos pelos
quais ela se interessa” (MAUSS; HUBERT, 2013, p. 19). Em muitas cerimônias, a vítima do sacrifício era um
animal e no ritual se estabelecia a comunicação entre os mundos sagrado e profano, ambos alimentados pelo animal
cuja vida e morte foram sacralizadas.
246

No triângulo culinário de Lévi-Strauss (1968) postula que, entre a natureza e a cultura,


há o cru, o podre e o cozido - três categorias que não são fixas, e cada uma se desdobra em
outras. Nesse sentido, cada sociedade irá definir o que considera cru e quais são as
possibilidades de cozimento - assar, ferver, grelhar, em distintos níveis de mediação. A cozinha
é abordada enquanto uma linguagem pela qual cada sociedade comunica (ainda que
inconscientemente) sua estrutura. Concordando que a comida é um código comunicacional,
Mary Douglas (1972) questiona o reducionismo do modelo de Lévi-Strauss e propõe uma
abordagem em micro-escala, que leve em conta as relações sociais que produzem e sustentam
as categorias, a partir da qual é possível elaborar num modelo mais pautado na realidade. O
modelo proposto pela autora preocupa-se em abarcar o cotidiano, a micro-escala, e as
classificações a partir dos jogos de oposição. As categorias, binárias ou não, precisam ser
pensadas em contraste - define-se o que é jantar pensando-se no café da manhã, o que é comida
de semana e de fim de semana, o cotidiano e o festivo, bebida e comida, aperitivo e refeição.
Vemos, então, que a partir dos anos 1970, a comida passou a ser pensada menos nos
seus aspectos materiais do que em seus sentidos simbólicos e comunicacionais. Além disso, a
comida passou não só ao centro da análise, mas enquanto unidade – a comida pensada na e pela
comida, e a partir dela são elaborados os modelos e generalizações sobre estruturas e sistemas
sociais. Desde então, a comida vem sendo pensada por diversos autores, que discutem sobre as
representações, crenças, conhecimentos e práticas associados ao ato de comer e às atividades a
ele relacionadas, dentro de um campo que convencionou-se chamar de antropologia da comida
(MINTZ; DU BOIS, 2002) ou antropologia da alimentação (CONTRERAS; GRACIA, 2005).
Etiquetas de consumo e distinções a partir do comer (BOURDIEU, 1979; ELIAS, 1994); a
comida enquanto marcador de identidade nacional (MACIEL, 2004; SOBRAL, RODRIGUES
2013), éticas alimentares (ABONIZIO, 2013; SASSATELLI, 2015), movimentos
transnacionais dos alimentos (MINTZ, 2001; GOODY, 1982), comida e memória
(HOLTZMAN, 2006); são apenas alguns dos temas que vêm sendo abordados com e a partir
da comida.
Aqui, gostaria de considerar os doces tanto em sua materialidade quanto em seus
sentidos e, assim, considerar um simbólico que tem cor, sabor, textura, que são sensorialmente
percebidas. O que aqui proponho é uma gustemologia180 (SUTTON, 2010) das Crianças:
apreendê-las a partir da doçura que caracteriza não só o que ingerem ou que preferem ingerir,

180
“ I coin the term gustemology for such approaches that organize their understanding of a wide spectrum of
cultural issues around taste and other sensory aspects of food.” (ibid., p. 215)
247

mas elas próprias; doçura que é também colorida e melada, que possui uma estética, que
comemos e cujo excesso nos causa alegria e entojo. Os doces, então, nos permitem pensar as
Crianças sinestesicamente.

A sinestesia é um lembrete de porque os alimentos e os sentidos devem ser


considerados em conjunto: [...] os sabores não são separáveis dos objetos que
estão a ser provados. [...] A sinestesia não é uma faculdade, mas sim uma
habilidade socialmente cultivada, desenvolvida em práticas particulares e
dispositivos linguísticos. E a alimentação é frequentemente um veículo para
tais práticas sinestésicas (SUTTON, 2010, p. 218)181

A gira é um momento em que podemos observar como os doces que compõem o


banquete das Crianças podem ser percebidos em seus sabores, texturas, cores e, assim, nos
permitem experienciar sensorialmente as entidades. Durante a festa, repleta de pessoas e coisas,
podemos ver como se misturam e se confundem os sabores, cores, texturas e sons que nos
permitem ver, degustar e ouvir a doçura das Crianças, que se espalha por doces e corpos
açucarados.
Na noite do dia 27 de setembro, o centro fica bastante cheio. Todos os bancos são
ocupados, as pessoas em pé vão se espremendo nos cantos do espaço da audiência e pelo
corredor, as filas vão até a calçada na rua; e geralmente há o dobro de médiuns no salão. O
espaço fica barulhento e abafado. Quando as Crianças chegam, uma outra ordem se instaura:
nos bancos da assistência muita gente quer ficar em pé, para conseguir ver o salão, que também
está cheio e por onde se espalham médiuns que estão em incorporando, outros que auxiliam e
as ibejadas que já chegaram estão a correr e saltitar, e os atabaques ecoam. Há muita gente,
todos em movimento, vários sons e muito calor. É hora de servir o banquete.
Os médiuns não incorporados, vão equilibrando as bandejas enquanto andam pelo
salão oferecendo os doces às ibejadas, enchendo seus copos com refrigerantes. Da assistência,
quase não se vê o banquete disposto aos pés do congá, mas é possível sentir cheiro de doce,
ouvir o chiado do gás dos refrigerantes sendo abertos. Vamos vendo também as Crianças
devorando os quitutes, enchendo as mãos se servindo das bandejas, mergulhando balas e
suspiros nos copos cheios de guaraná.
As ibejadas comem, bebem, brincam e dançam pelo salão, falam para pedir a bênção,
um brinquedo, um doce, uma fruta, um penteado. Chegam até o cordão que limita o salão e se
aproximam da assistência, mandando beijos e sorrisos, e os presentes recebem as bênçãos.

181
No original: “Synesthesia is a reminder of why food and the senses should be considered together: tastes are
not separable from the objects being tasted. [...] synesthesia is not a faculty, but rather a socially cultivated skill,
developed in particular practices and linguistic devices. And food is often a vehicle for such synesthetic practices.”
248

Alguns assistentes recebiam maior atenção: eram chamados por algumas Crianças, que lhes
cumprimentavam, davam abraços e beijos, e ofereciam doces e frutas - que até o momento não
haviam circulado entre a assistência. O contrário também acontecia, quando alguém na
assistência chamava uma Criança para lhe oferecer um saquinho de bala de coco, uma
garrafinha de guaraná ou um pirulito. Doces circulam entre pessoas e ibejadas que se conhecem
e estão entre si dando e recebendo cumprimentos, carinhos e afetos. Nessas circulações restritas,
vamos identificando algumas pessoas que parecem ter maior prestígio, chamadas por várias
ibejadas que lhes oferecem um doce; e outras que têm com alguma Criança em específico maior
proximidade. São trocas diretas entre duas partes, que reforçam, atualizam e adoçam relações
já existentes – ou iniciam novos laços.
Depois de muito circularem pelo salão, entre as Crianças, as bandejas circulam pelos
bancos da assistência. Algumas bandejas já chegam vazias na terceira fila, ou por já chegarem
à assistência já desguarnecidas ou porque quem estava nas primeiras fileiras se serviu de mão
cheia. Algumas bandejas chegam à assistência com vários doces misturados, e o açúcar da
bananada vai parar em cima do marshmallow, o farelo de suspiro se espalha por toda a bandeja,
a maria-mole já está desmilinguida. Rapidamente os cuidadosos arranjos feitos no dia anterior
são desmanchados, os doces estão todos misturados e as mãos agora, sem nenhum cuidado ou
delicadeza, estão mais preocupadas em conseguir alcançar o doce preferido. Muitos dos doces
pegos não são imediatamente consumidos, mas guardados em sacolas, onde o que antes estava
arrumado com cuidado e delicadeza se mistura.
O doce torna-se cada vez mais presente e agora também é sentido nas mãos meladas
por tantos açúcares. Seu cheiro sobe e se espalha, das bolsas, das bandejas, no salão, na
assistência. Vemos as Crianças com os rostos e mãos meladas de doces e frutas, ao nosso redor
todos também estão açucarados, perto dos atabaques são entoados pontos que estão cantando
sobre doçuras. E quando vem a sede provocada pelo calor e pela ingestão das guloseimas, nos
é servido um copo cheio de refrigerante - mais açúcar, mas agora em estado líquido, e gelado.
E quando achamos que nossas mãos já estão muito lambuzadas, são servidos os pedaços de
bolo que agora nos envolvem em coberturas, recheios e glacês. Vemos, comemos, sentimos o
cheiro e textura, e bebemos a doçura.
Antes que as Crianças partam, elas se juntam em semicírculo, no centro do salão, para
receber os assistentes. Nos organizamos numa fila, que se estende por todo o centro e vai até o
portão, se enrolando em algumas voltas. Quando chegamos à entrada do salão, somos
conduzidos até uma Criança. Em 2016, fui levada ao Joãozinho da Cachoeira, de quem recebi
um passe, três balas e um abraço. Depois, fui conduzida até Pedrinho da Cachoeira e dele recebi
249

um saquinho de doces. Levaram-me até a saída do salão e sentei-me no banco. O mesmo


acontecia com cada um da assistência, todos eram levados a uma Criança e recebiam um
saquinho de doce de uma das ibejadas dos dirigentes. Depois de passar pela corrente, muitos
pegavam suas bolsas e iam embora. Depois de receberem todos da fila, era chegada a hora das
Crianças partirem. Era quase meia-noite, o espaço estava mais vazio e era possível ver no chão
balas, pedaços de bolo e suspiros pisoteados.
Quando perguntava sobre as Crianças em entrevistas a dirigentes e médiuns, sempre
ouvia que elas eram alegres, poderosas e doces. É impossível assistir a uma gira de ibejada sem
sentir essa doçura. Esta aparece em tudo, entra pelo nariz, nas mãos, é vista. Cocada, bolo,
suspiro, maria-mole, bala, pirulito, banana, maçã, uvas, refrigerante, água de coco. Tudo isso
circula em abundância pelas giras, e sentimos no ar um cheiro doce, sentimos as mãos meladas,
uma sede que o refrigerante parece apenas atenuar e, por vezes, até um enjoo. Numa gira de
ibejada a doçura das Crianças é inescapável, e de uma forma ou de outra, a sentimos e somos
por ela envolvidos.
Quando trazemos as comidas e bebidas que circulam nas giras para o centro da análise
sobre esses rituais, expandimos a percepção sensória dessas entidades, para além do transe; ou
seja, como podemos perceber essas entidades em nossos corpos mesmos sem sermos por elas
possuídos. O cheiro de charuto, a visão embaçada em um salão fumigado, os assobios que
parecem vocalizar aves; nos permitem farejar, ver e ouvir os caboclos. Numa gira de exus e
pombagiras o cheiro de álcool e de fumo, o som de gargalhadas, o tilintar das pulseiras,
conformam um ambiente onde podemos sentir as entidades. Ao nos permitirmos um acesso
sinestésico a essas entidades, percebemos como, nessa experiência, os sentidos se fundem
(SUTTON, 2010). Mas as giras de ibejada têm uma particularidade. Nos doces, funde-se o
sabor à qualidade, o substantivo e o adjetivo; as Crianças são doces, assim como suas comidas.
Nas giras de ibejada a doçura não é apenas uma qualidade dessas entidades, mas também um
gosto que sensibiliza a língua e suas papilas gustativas; um grude das mãos meladas, uma
bandeja de guloseimas que nos é ofertada, um aroma, que também tem formas e cores. A doçura
das ibejadas tem cheiro, gosto, sons, cores, melam nossas mãos, invadem nossas narinas e boca;
e sentir toda essa doçura é sentir as Crianças.
250

Considerações finais

Ao definir que minha tese seria sobre as ibejadas, tive de lidar com um duplo
apagamento. Na literatura das ciências sociais sobre os rituais e deidades das religiões afro-
brasileiras não encontramos muitos trabalhos que se debruçam sobre as entidades infantis, às
quais geralmente são dedicadas umas poucas linhas. O mesmo parece ocorrer nos centros de
umbanda, onde as ibejadas não costumam ser uma presença frequente, aparecendo nas
cerimônias públicas uma vez ao ano, quando, entre setembro e outubro, são festejados os santos
gêmeos Cosme e Damião.
Desde a primeira gira festiva de ibejada em que estive, em 2013, chamou minha
atenção a quantidade de coisas que faziam aquele ritual. Era uma verdadeira profusão de cores,
luzes, frutas e doces. Percebi como a presença das ibejadas era realizada em diversos objetos e
como nesses rituais brinquedos e comidas circulavam entre entidades e seus consulentes.
Quando comecei a considerar que minha tese seria sobre as ibejadas, pensei que poderia falar
delas a partir de suas coisas.
Alinhando-me a uma vertente antropológica que propõe uma abordagem material da
religião (ENGELKE, 2012; KEANE, 2003, 2007, 2018; MEYER, 2018, 2019), optei por trazer
à luz essas entidades a partir de suas coisas – aqui compreendidas para além dos objetos. Assim,
ao longo desta tese, pontos cantados, imagens, roupas, corpos, brinquedos e doces ajudaram-
me a apresentar, em diversos ângulos, as ibejadas. Ainda propus aqui que, além de nos permitir
pensar sobre os rituais da umbanda, as ibejadas nos possibilitam refletir acerca de uma
concepção de infância, ideal e sagrada, marcada por valores como pureza, inocência, alegria,
gulodice e graciosidade (ARIÈS, 1988; DUARTE, 2018); que se materializam nas músicas,
corpos, gestos, objetos e comidas que fazem e são feitos nos cultos às ibejadas.
Por compreender que os valores e práticas da umbanda constituem um discurso sobre
infância que se materializa nos rituais e nas coisas que fazem e apresentam as ibejadas; e que
tal discurso ultrapassa os espaços religiosos dos centros de umbanda e tem relação com um
imaginário social mais amplo, propus o conceito de Crianças. O termo grafado com inicial
maiúscula me permitiu relevar as relações entre as infâncias do céu e da terra, sagradas e
idealizadas, além de aproximar as distintas entidades que compõem um universo divino e
infantil, onde determinados traços que comumente caracterizam o primeiro estágio da vida são
evidenciados, sacralizados e cultuados. Como vimos, menos do que a vida, parece ser a morte
a conferir sacralidade às Crianças (e aqui não me refiro somente às ibejadas, mas a outras
251

divindades infantis), porque só a supressão da vida logo em seus primeiros anos possibilita a
eterna permanência na infância. As crianças já nascem puras, alegres, inocentes, glutonas,
bagunceiras, carinhosas e sinceras; e, para que elas permaneçam nesse estado sagrado, se
tornem Crianças, é preciso que elas não cresçam.
Além de divino, o universo das Crianças é sincrético, porque nele diversas personagens
se aproximam e se reelaboram, mantendo entre si uma relação de mútua influência. O
sincretismo, ao invés de nos levar a considerar que as entidades cultuadas nos centros de
umbanda seriam um desvirtuamento ou uma versão menos complexa daquelas veneradas nos
terreiros e igrejas; nos ajuda a pensar nas continuidades e descontinuidades do repertório de
devoções às deidades infantis – ou seja, o sincretismo aqui não é compreendido enquanto
resultado de uma mistura onde uma parte se sobrepõe às demais; mas sim como um intenso
processo que combina distintas práticas e personagens, onde todas as partes sofrem e exercem
influência (MUNANGA, 1989; NOVAES, 2011; PRANDI, 2011; SANCHIS, 1994, 2011). Nos
cultos às Crianças há um intenso movimento que combina Ibejis, Cosme, Damião, Doum, erês,
anjinhos e ibejadas (RAMOS, 2001 [1934]; CARNEIRO, 1948; RIBEIRO, 1957; BASTIDE,
2001 [1958]; SERRA, 1978; LÜHNING, 1993; CAPONE, 2011) e se as doutrinas religiosas,
que prescrevem crenças e práticas, apresentam delimitações e distinções; a religião vivida é
porosa e permite que diversas personagens coexistam numa mesma prática, onde o que importa
é cultuar as Crianças.
Assim como as entidades e seus cultos, as reflexões aqui propostas também foram, em
certa medida, sincréticas, já que para falar das ibejadas acionei autores e autoras que se
debruçaram sobre outros contextos religiosos. Neste caso, além de tentar aproximar as ibejadas
e a umbanda a outras deidades e religiões, busquei construir uma abordagem etnográfica e
sensorial das Crianças e suas coisas a partir do diálogo com a literatura antropológica sobre
músicas (SEEGER, 2008; PINTO, 1997; CARVALHO, 1991; CHAVES, 2014), roupas
(SCHNEIDER, 2006; ROCHA, 2014; STALLYBRASS, 2008; CASTRO, 1996), performances
(TAYLOR, 2013; SCHECHNER, 2012; LANGDON, 2006) e comidas (APPADURAI, 1981;
BASTIDE, 2001; COSTA LIMA, 1997; GOLÇALVES, 2004; BITAR, 2011; FERRETTI,
2011) em contextos rituais e religiosos.
Ao apresentar meu campo, busquei refletir sobre meu lugar de observação do ritual,
compreendendo que desde o banco da assistência pude me aproximar das experiências sensórias
daquelas pessoas que frequentam os centros, mas não incorporam as entidades que ali são
cultuadas. Neste tese, busquei evidenciar que a energia das Crianças também é sentida nas
palmas, no canto, nos sons, nos cheiros e nos gostos que sentimos numa gira; e que a experiência
252

das ibejadas – assim como de outras entidades – pode ser sensória, realizada no e através do
corpo, sem necessariamente ser mediúnica. As materialidades religiosas que são fio condutor
desta tese, presentificam as Crianças e nos permitem senti-las para além do transe.
Apesar das giras festivas e sessões de consulta terem sido eventos centrais para a
etnografia que alicerça esta tese, a atenção às coisas também me conduziu às lojas de artigos
religiosos e a uma fábrica de imagens. Fora dos centros, pude acompanhar o processo de
fabricação das imagens, as classificações que operam sobre as coisas e as ordenam nas
prateleiras e vitrines de lojas, as relações que fabricantes e vendedores mantêm com esses
artigos que, além de sagrados, são também mercantis. Ao não me restringir aos espaços e
tempos do centro, pude também compreender a umbanda realizada além dos rituais e por outras
pessoas que não são médiuns nem assistentes (e têm, inclusive, outras religiões). As coisas que
fazem o ritual têm uma vida social (APPADURAI, 1990; KOPYTOFF, 1990) que antecede os
centros e suas giras, e em fábricas e lojas também podemos observar e compreender as
entidades, pessoas e práticas que fazem uma religião, neste caso, a umbanda.
A partir de cada coisa, fomos percebendo que, ao mesmo tempo em que pontos
cantados, imagens, roupas, corpos e doces parecem estabilizar determinadas características ou
energia das Crianças; nos permitem compreender também uma possibilidade de fluxo, de
movimento, de espalhamento dessas entidades por todas essas coisas, que nos permitem acessá-
las e senti-las para além da experiência mediúnica. Na segunda parte da tese fui apresentando,
a cada capítulo, as coisas das ibejadas, explorando o que cada uma delas nos permitia ver,
entender, ouvir e sentir dessas entidades e dos seus processos de construção, elaboração e
desdobramentos; além de sugerir reflexões que ultrapassam este caso específico e se espraiam
em discussões mais abrangentes.
Com os pontos cantados, vimos como os rituais são conduzidos e as ibejadas descritas
e prescritas musicalmente (AUSTIN, 1990; CHAVES, 2014). Compreendidos enquanto preces
cantadas (MATTOS, 2005; BLOCH, 1974; MAUSS, 1968[1909]; BASTIDE, 2006; CABRAL,
2009) , os pontos aproximam este e o outro plano, pessoas e deidades, numa comunicação que
envolve objetos, gestos e palavras. O repertório musical numa gira de ibejada, além de limitado
e um tanto repetitivo, é – e como não seria? – infantil. Nas letras cantadas, o diminutivo é
recorrente (papai, anjinhos, titia, menino levadinho) e para cultuar as Crianças cantamos como
se também fôssemos, nós mesmos, crianças. Os pontos são também descritivos e pragmáticos,
e constroem as ibejadas, seus gostos e comportamentos; assim como fazem as ibejadas
presentes nas cabeças e corpos dos médiuns, a Mariazinha rodar a saia, o Doum brincar sentado
no chão, a andorinha levar as Crianças de volta aos céus. Os pontos cantados doutrinam
253

entidades, médiuns, ogãs e assistência; que tocando e cantando constroem as entidades e seus
cultos.
Além disso, busquei refletir sobre os processos de produção e reprodução desse
repertório ritual, suas tradições e possibilidades de inovação, e como este também perpassa
outros espaços que não são estritamente religiosos (BIRMAN, 2003). Personagens como J.B
de Carvalho e Clara Nunes nos permitem compreender como os pontos cantados também
integram um repertório mais amplo e, quando estilizados, adentram o universo da Música
Popular Brasileira (ORTIZ, 1985; AMARAL & SILVA, 2006; BAKKE, 2007).
As imagens foram tratadas como uma espécie de compósito, que reúne diversas
informações sobre as entidades que ali podem se apresentar (SCHMITT, 2007; BELTING,
2010). Gesso, fibras de vidro, tintas e outros elementos que vão se sobrepondo e construindo as
Crianças, conferindo-lhes gênero, idade, cores e lugares. Ao longo de sua vida, desde a
fabricação até o altar ou congá, diversos materiais, pessoas e processos vão singularizando uma
imagem, que deixa de ser genérica, de erê, para tornar-se a apresentação de uma Criança
particular.
Busquei ainda trazer uma discussão sobre iconografia, uma reflexão já profícua em
relação às imagens de santos católicos, mas ainda tímida nas referências à estatutária
umbandista. A iconografia desta religião nos permite discutir presença, representação e as
relações entre pessoas e objetos religiosos (MENEZES, 2013b; LIMA, 2014); além de
pensarmos no imaginário acionado para elaborar as imagens – estilizadas, datadas e por vezes
anacrônicas – de malandros, pombagiras, exus, pretos-velhos, caboclos e ibejadas (ROCHA,
2006; MOURÃO, 2015).
As roupas e brinquedos das ibejadas nos permitiram pensar nas performances das
Crianças, nas coisas e gestos que apresentam em corpos adultos essas entidades infantis e como,
nas interações com as pessoas que frequentam as giras, elas estão o tempo todo a trabalhar e
brincar. Os corpos – assim como as roupas e brinquedos – foram compreendidos enquanto
sujeitos dos rituais, que fazem e apresentam as Crianças e, com eles, sentimo-las. Vestir,
trabalhar e brincar foram compreendidos enquanto performances rituais e encorporadas
(TAMBIAH, 1985; PEIRANO, 2002; CSORDAS, 2002; RABELO, 2011) em coisas e pessoas
que, em interação, presentificam as ibejadas e fazem o sensório ritual.
Bonecas, ursinhos, espadas, carrinhos, conchas, fios de contas, areia, perfumes, flores,
velas, incensos e outras coisas transformam também o espaço. Ao arrumarem as coisas de suas
Crianças para o início dos trabalhos, os médiuns vão construindo no salão as praias, matas,
254

cachoeiras; demarcando, em coisas e cores, os lugares de suas ibejadas, que se espalham em


roupas, gestos, brinquedos, corpos e lugares.
Ressaltei ainda a especificidade do trabalho das ibejadas, que se realiza no brincar.
Se tudo na umbanda pode ser compreendido como trabalho (MAGGIE, 2001; PORDEUS JR.,
1993), somente o trabalho das Crianças é uma brincadeira. Passes, atendimentos, pedidos,
agradecimentos, conselhos, limpezas são realizados com carrinhos, bonecas, bichinhos de
pelúcia, água de coco, guaraná, suspiros e balas. A brincadeira das ibejadas é séria, ritual,
poderosa e também divertida (RADCLIFFE-BROWN, 1973; TURNER, 2015; BATESON,
1972).
A partir da bibliografia e etnografia apresentadas, podemos pensar em como uma
pessoa se veste, ou como um corpo é transformado, para que ali se apresente uma entidade;
quais os gestos que anunciam a chegada das deidades nos corpos e os transformam – em
crianças, velhos, índios, ciganos, caboclos e tantos outros entes e energias. Vimos como os
lugares das entidades são construídos a partir de uma série de objetos e gestos, com os quais
também são realizados os trabalhos. Há, portanto, uma série de questões, aqui vistas a partir
das ibejadas, que são pertinentes a outras entidades da umbanda e de outras religiões.
No último capítulo desta tese, cocadas, pirulitos, balas, refrigerantes e tantos outros
doces foram apresentados enquanto comida, comida de santo (BASTIDE, 2001;
GONÇALVES, 2004). Os doces alimentam, presentificam e qualificam as ibejadas, e além de
alimento são também mídias que nos permitem acessar sensivelmente essas entidades
(MEYER, 2019; RABELO, 2014). Assim, proponho que, junto ao dendê, feijoada e bebidas,
o açúcar também seja compreendido como um dos elementos com e a partir dos quais são
cultuadas as entidades que habitam o panteão das religiões afro-brasileiras e que também
constroem um repertório gustativo nacional e religioso, compondo banquetes que alimentam
pessoas e entidades (COSTA LIMA, 1997; MACIEL, 2004; FRY, 1982, 2001; FREYRE, 2007
[1939]; MINTZ, 1985).
Vimos, portanto, como pontos cantados, imagens, roupas, brinquedos e doces são
materialidades indispensáveis ao culto umbandista às ibejadas, e como entre lojas e centros
essas coisas passam de mercadoria a objetos rituais, escolhidas a partir de diversos preceitos e
crivos, vão nos apresentando essas Crianças e, na circulação entre pessoas e entidades,
comunicam pedidos, conselhos e agradecimentos. As coisas, imprescindíveis ao fazer e viver
religiosos, tornam as ibejadas tangivelmente presentes. As entidades e as religiões que as
cultuam são, além de materiais, sensíveis.
255

Além de apresentarem as entidades, todas as coisas aqui tratadas também podem ser
compreendidas enquanto materializações de um sentimento, um estado de espírito, uma
energia. A alegria era uma das qualidades que me diziam ser a mais importante das Crianças,
e que se materializava em todas as suas coisas. As ibejadas são alegres e sentem-se alegres
aqueles que assistem a uma gira festiva de ibejadas ou com elas se consultam; e a alegria dessas
entidades está nas imagens, nas roupas, nos brinquedos e nos doces. As cores que pintam o
gesso das imagens são alegres, assim como as estampas das saias, batas, calças e macacões que
recobrem os corpos dos médiuns que se preparam para receber as Crianças. A alegria dos pontos
cantados é marcada no atabaque, nas letras cantadas e no movimento dos corpos embalados
pela música. Numa gira festiva de ibejada o doce banquete deixa todos açucarados e alegres. A
alegria tem cores, texturas, gestos, sons e sabores, e poderíamos compreendê-la enquanto um
qualisign (KEANE, 2003), um sentimento e/ou uma energia que, ao encarnar em determinadas
coisas, relaciona-se a outras qualidades e vai se transformando – e, assim, compreendemos
como nas materialidades distintas qualidades se relacionam.
Esta tese, além de ser sobre as ibejadas, é sobre a alegria; e as coisas que constroem e
presentificam as entidades, materializam a alegria. Na primeira parte, busquei circunscrever
esta tese no campo da antropologia das materialidades religiosas, inspirando-me em questões
que já se apresentavam em pesquisas realizadas no âmbito do Laboratório de Antropologia do
Lúdico e do Sagrado (Ludens/PPGAS/MN/UFRJ), que buscavam refletir sobre as pessoas e as
coisas que constituem relações de devoção (MENEZES, 2011, 2013b, 2016; PEREIRA, 2014;
LIMA, 2014; BÁRTOLO, 2018a; MENDEL, 2020). Mas também poderia aproximá-la da
vertente que Sherry Ortner (2016) denomina como anthropologies of “the good”. Estas, ao
tratarem de temas como moralidades, bem-estar, imaginação, empatia, cuidado e esperança;
afastam-se da chamada dark anthropology, que enfatizaria o mundo social a partir da
desigualdade, do poder e da exploração; fortemente influenciada pelas discussões e conceitos
de Karl Marx, Michel Foucault, Talal Asad e Edward Said. Uma antropologia do “bem” –
desenvolvida, segundo Ortner, por autores como Veena Das e Michael Lambek – não seria um
caminho seguido por aqueles que pretendem ignorar essas relações que instauram e perpetuam
desigualdades e explorações, mas por aqueles que compreendem que o cuidado, o amor e a
alegria seriam possibilidades de resistência cotidiana às violências e desigualdades.
Ao longo desses anos, em muitos momentos me questionei sobre a validade e
pertinência de estudar crianças, doces, entidades infantis, seus cultos e suas coisas. Entre golpes,
cortes orçamentários, manifestações, agressivas repressões, greves, paralisações, o incêndio do
Museu Nacional, as eleições de 2018; em tempos de desvalorização da ciência, do
256

conhecimento produzido nas universidades, de descrédito daqueles que conformam a


comunidade universitária – terceirizados, técnicos, professores, alunos – perguntava-me o que
estava a fazer atrás das Crianças e qual seria o sentido em produzir uma tese sobre elas.
Meus interlocutores sempre me falaram que a alegria é o poder das Crianças, que a
brincadeira particulariza e potencializa os trabalhos dessas entidades, considerados muito
eficazes e rápidos. Todas as coisas, cores, sons e gestos das Crianças são, assim como elas,
alegres. Resolvi levar isso a sério e encarar que frequentar consultas e festas de ibejada, comer
doces, cantar, brincar e refletir sobre essas entidades e seus cultos não seria uma forma de
ignorar todas as mazelas que pareciam transbordar na vida cotidiana, em noticiários e
conversas; mas sim um esforço de, em meio a isso tudo, exercitar um olhar atento a outras
potências que também conformam a vida.
As ibejadas nos permitem apreender uma alegria que é sacralizada, infantil e divina, e
que ao mesmo tempo, enquanto energia, parece etérea; é material e sensível, espalhada em
diversas coisas e pessoas. Uma alegria que vai sendo construída nos gestos daqueles que
fabricam imagens, que dão cores e formas à brancura do gesso, que preparam manjares e bolos,
arrumam frutas e doces, enfeitam os salões com coloridos balões, organizam um banquete, que
tocam o atabaque, batem palmas, cantam, pulam, dançam. Uma alegria das bonecas, dos
carrinhos, dos suspiros, das estampas que colorem saias e macacões, dos saquinhos repletos de
guloseimas e dos sorrisos de quem os recebe. Com as Crianças, podemos compreender como
pessoas e coisas constroem, cultuam e sentem a alegria.
Em tempos marcados por calamidades, desastres, desmontes, mortes, incêndios e
tantas perdas, o sofrimento e a resistência parecem mais óbvios; e, por isso, defendo a
importância de nos debruçarmos sobre aquilo e aqueles que nos permitem refletir sobre a
alegria, que além de potente pode também ser sagrada. Que apesar de tudo aquilo que nos impõe
luta e resistência, não nos falte a alegria, tão necessária a este e outros tempos.

Salve as Crianças!
257

Referências Bibliográficas

ABONIZIO, Juliana. Consumo alimentar e anticonsumismo: veganos e freeganos. Ciências


Sociais Unisinos, 46.2, p. 191-6, 2013.
ALMEIDA, Leonardo Oliveira de. Pontos e pen-drives: práticas de mediação religiosa na
umbanda. Avá Revista de Antropología, n.27, p.63-80, 2015.
ALMEIDA, Ronaldo. A Igreja Universal e seus demônios. São Paulo: Terceiro Nome, 2009.
AMARAL, Rita & SILVA, Vagner Gonçalves da. Foi conta para todo canto: as religiões afro-
brasileiras nas letras do repertório musical popular brasileiro. Afro-Ásia, n°. 34, p. 189-235,
2006.
AMIT, Vered et al. “Thinking through Sociality. The importance of Mid-Level Concepts” In:
AMIT, Vered (ed) Thinking through sociality: an Anthropological Interrogation of Key
Concepts. New York: Berghan Books, p. 1-19, 2015.
ANJOS, José Carlos dos. A filosofia política da religiosidade afro-brasileira como patrimônio
cultural africano. Debates do NER, Porto Alegre , ano 9, n . 13, p. 77-96, 2008.
APPADURAI, Arjun. Gastro-Politics in Hindu South Asia. American Ethnologist, vol. 8, n. 3,
p. 494-511, 1981.
APPADURAI, Arjun (org). The social life of things. Commodities in cultural perspective.
Cambridge: Cambridge University Press, 1990.
ARAÚJO, Melvina. O vai e vem dos conceitos: de categoria analítica a categoria nativa ou
vice-versa. O caso do sincretismo. Debates do NER, ano 12, n. 19, Porto Alegre, jan/jun, p.
121-140, 2011.
ARIÈS, Philippe. História social da criança e da família. Rio de Janeiro, Guanabara, 1986.
ASAD, Talal. Anthropology & the colonial encounter. London: Ithaca Press, 1973.
AUGRAS, Monique. Os gêmeos e a morte. In: MOURA,Carlos E. (org) As senhoras do
pássaro da morte: escritos sobre a religião dos orixás V. São Paulo: EDUSP, p.75-84, 1994.
AUGRAS, Monique. Todos os santos são bem-vindos. Rio de Janeiro: Pallas, p. 93-96, 2005.
AUSTIN, John. Quando dizer é fazer. Porto Alegre, Artes Médicas, 1990.
AUSTIN, John Langshaw. How to do things with words. Cambridge: Harvard University Press,
1962.
BAHIA, Joana; NOGUEIRA, Farlen. Tem Angola na umbanda? Os usos da África pela
umbanda omolocô. Revista TransVersos, [S.l.], n. 13, p. 53-78, ago. 2018.
BAHIA, Joana. O Rio de Iemanjá: uma cidade e seus rituais. Revista Brasileira de História das
Religiões, v. 10, p. 177-215, 2018.
BAIRRÃO, José Francisco M. H. Sublimidade do Mal e Sublimação da Crueldade: Criança,
Sagrado e Rua. Psicologia: Reflexão e Crítica, 17(1), pp. 61-73, 2004.
258

BAKKE, Rachel. Tem orixá no samba: Clara Nunes e a presença do candomblé e da umbanda
na música popular brasileira. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 27(2), p. 85-113, 2007.
BANAGGIA, Gabriel. Inovações e controvérsias na antropologia das religiões afro-brasileiras.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) -Museu Nacional, Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2008.

BARBOSA, M. K.; BAIRRÃO, J. F. M. H. Análise do movimento em rituais umbandistas.


Psicologia: Teoria e Pesquisa, v. 24, n. 2, p. 225-233, 2008.
BÁRTOLO, Lucas. Entre a caridade, a diversão e o medo: o dia de Cosme e Damião em uma
vila do subúrbio carioca. Intratextos, Rio de Janeiro, vol. 9, n.1, p. 146-168, 2018b.
BÁRTOLO, Lucas. O enredo de Cosme e Damião no carnaval carioca. Dissertação (Mestrado
em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2018a.
BASCOM, William. The Yoruba of Southwestern Nigeria. Illinois, Waveland Press, 1984.
BASTIDE, Roger. A expressão da oração nos povos sem escrita. In: BASTIDE, Roger. O
sagrado selvagem e outros ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, p. 146-176, 2006.
BASTIDE, Roger. Cavalos dos Santos: esboço de uma sociologia do transe místico. In:
BASTIDE, Roger. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva, p. 293-323, 1973.
BASTIDE, Roger. O candomblé da Bahia: rito nagô. São Paulo, Companhia das Letras, 2001
[1958].
BATESON,Gregory. Metalogue: About Games and Being Serious; A theory of play and
fantasy. In: BATESON,Gregory. Steps to an Ecology of Mind. Chicago: The University of
Chicago Press, p. 14-20; 177-193, 1972.
BAUMAN, Richard; BRIGGS, Charles L. Poetics and Performance as Critical Perspectives on
Language and Social Life. Annual Review of Anthropology, 19, p. 59-88, 1990.
BAYLY, S. Colonialism/ Postcolonialism. In: STEIN et al. (ed). The Cambridge Encyclopedia
of Anthropology, 2016. Disponível em: https://www.anthroencyclopedia.com/
BELTING, Hans. Introdução. In: BELTING, Hans. Semelhança e Presença. A História da
imagem antes da era da arte. Rio de Janeiro : Ars Urbe, p. 1-18, 2010.
BERGO, Renata Silva. Quando o santo chama: o terreiro de umbanda como contexto de
aprendizagem na prática. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2011.
BHABHA, Homi K. Introdução: locais da cultura; Pós-colonial e o pósmoderno: a questão da
agência. IN: BHABHA, H. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, p. 19-42; 239-273,
1998.
BIRMAN, Patrícia. Cultos de possessão e pentecostalismo no Brasil. Religião & Sociedade,
Rio de Janeiro, n.17, 1996.
BIRMAN,Patrícia. Fazer estilo criando gêneros: possessão e diferenças de gênero em terreiros
de umbanda e candomblé no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, EdUERJ, 1995.
259

BIRMAN, Patrícia. Feitiço, carrego e olho grande, os males do Brasil são: estudo de um centro
umbandista numa favela do Rio de Janeiro. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) -
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1980.
BIRMAN, Patrícia. Laços que unem: ritual, família e poder na Umbanda. Religião e Sociedade,
Rio de Janeiro, n. 8, p. 21-28, 1982.
BIRMAN, Patrícia. O que é umbanda. São Paulo, Editora Brasiliense, 1985.
BIRMAN, Patrícia. Registrado em cartório, com firma reconhecida: a mediação política das
federações de umbanda. Cadernos do Iser , Rio de Janeiro, n. 18, p. 80-121, 1985.
BIRMAN, Patrícia. Transas e transes: sexo e gênero nos cultos afro-brasileiros, um sobrevoo.
Estudos Feministas, Florianópolis, N.13 (2):403-414, maio/agosto, 2005.

BITAR, Nina Pinheiro. Sistemas culinários afro-brasileiros: as baianas de acarajé do Rio de


Janeiro. Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.8, n.1, p. 193-206,
2011.
BLANES, Ruy Llera. The atheist anthropologist: believers and non-believers in
anthropological fieldwork. Social Anthropology, 14 (2), p. 223-234, 2006.
BLOCH, Maurice. Symbols, song, dance and features of articulation: is religions an extreme
form of traditional authority? European Journal of Sociology, vol. 15, n. 1, p. 55-81, 1974.
BOLTANSKI, Luc. Distant suffering: morality, media and politics. Cambridge. University
Press, Cambridge, 1999.
BORGES, M. R. Gira de escravos: a música dos exus e pombagiras no Centro Umbandista Rei
de Bizarra. 2006. Dissertação (Mestrado em Música) - Universidade Federal da Bahia,
Salvador, 2006.
BOURDIEU, P. A ilusão biográfica. In: AMADO, J. ; FERREIRA, M. de M. (Orgs.). Usos e
abusos da história oral. Trad. Glória Rodríguez, Luiz Alberto Monjardim, Maria Magalhães e
Maria Carlota Gomes. 5ª ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 183-191, 2002.
BOURDIEU, Pierre. La Distinction: critique sociale du jugement. Paris, Minuit, 1979.
BOURDIEU, Pierre. Sociólogos da crença e crenças de sociólogos. In: BOURDIEU, Pierre.
Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, p. 108-113, 1990.
BROWN, Diana. O papel histórico da classe média na umbanda. Religião e Sociedade, São
Paulo, v. 1, p. 31-42, 1977.
BROWN, Diana. Uma história da Umbanda no Rio. Cadernos do ISER. Rio de Janeiro: Marco
Zero-ISER, n.18, p. 9-42, 1985.
BRUMANA, Fernando G.; MARTÍNEZ, Elda. Marginália sagrada. Campinas, Editora
Unicamp, 1991.
BUTLER, Judith. Bodies that Matter. On the discursive limits of “Sex”. Nova Iorque:
Routledge, 1993.
CACCIATORE, Olga. Dicionário de Cultos Afro-Brasileiros. Forense Universitária, 1977.
260

CAMARGO, Cândido Procópio. Kardecismo e umbanda. São Paulo, Pioneira, 1961.


CAMPELO, Marilu. Crianças no céu, anjinhos na terra. Dissertação (Mestrado em Sociologia
e Antropologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1991.
CAMPELO, Marilu. Meu nome é Exu Mirim – imaginário e marginalidade social na Umbanda.
São Paulo: Terceira Margem, 2003.
CAMPOS, Ana Paula; MAIA, Cleiton. O self-service do proibido: a festa de exu em um terreiro
de umbanda na zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Debates do NER. Porto Alegre, ano 17,
n.29, p. 179-202, 2016.
CAPONE, Stefania. Divine children: the ibejis and the erês in Brazilian Candomblé. In: PEEK,
Philip (éd.). Twins in African Cultures and the Diaspora: Double Trouble or Twice Blessed.
Bloomington: Indiana University Press, p. 290-305, 2011.
CARDOSO, Vânia & HEAD, Scott. Matérias nebulosas: coisas que acontecem em uma festa
de exu. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 35(1), p. 164-192, 2015.
CARDOSO, Vânia Z. Contar o passado, confabular o presente. In: CARDOSO, Vânia Z. et al.
(org.) A terra do não-lugar: diálogos entre antropologia e performance. Florianópolis, Editora
da UFSC, p. 43- 59, 2013.
CARDOSO, Vânia Z. Working with Spirits: Enigmatic Signs of Black Sociality (Brazil). Tese
de doutoramento, Austin, The University of Texas at Austin, 2004.

CARNEIRO, Edison. Candomblés da Bahia. Bahia, Secretaria de Educação e Saúde,


Publicações do Museu do Estado, nº 8, 1948.
CARNEIRO, J. L., & CARNEIRO, Érica J. Umbanda Esotérica não é Esoterismo na Umbanda.
Revista Brasileira De História Das Religiões, 10(28), 113-124, 2017.
CARNEIRO, João Luiz. Academia no terreiro ou Terreiro na academia? A função da
Faculdade de Teologia Umbandista no diálogo entre adeptos de Religiões Afro-brasileiras e
acadêmicos na esfera pública. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) - Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2014.
CARVALHO, Augusto da Silva. O culto de S. Cosme e S. Damião em Portugal e no Brasil.
História das sociedades médicas portuguesas. Coimbra: Imprensa da Universidade, p. 1-64,
1928.
CARVALHO, José Jorge de. Estéticas da Opacidade e da Transparência. Mito, Música e
Ritual no Culto Xangô e na Tradição Erudita Ocidental. Série Antropologia, Brasília: UnB,
1991.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Ministério da
Educação e Cultura/Instituto Nacional do Livro, p. 207-208, 1988 [1945].
CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. 3.ed. São Paulo: Global, 2004
CASTRO, H. C.; MACIEL, M. E. A comida boa para pensar: sobre práticas, gostos e sistemas
alimentares a partir de um olhar socioantropológico. DEMETRA: Alimentação, Nutrição &
Saúde, v. 8, p. 321-328, 2013.
261

CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. A temática racial no Carnaval carioca ou o


carnavalesco como mediador cultural. In:CAVALCANTI, M. L. V. C. Carnaval, ritual e arte.
Rio de Janeiro: 7 Letras, p.135-154, 2015.
CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. O Mundo Invisível: Cosmologia, Sistema
Ritual e Noção de Pessoa no Espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.
CHARLES, Nickie; KERR, Marion. Women, Food and Families. Manchester, Manchester
University Press, 1988.
CHAVES, Wagner Diniz. Canto, voz e presença: uma análise do poder da palavra cantada nas
folias norte-mineiras. Mana, Rio de Janeiro , v. 20, n. 2, p. 249-280, 2014.
CLIFFORD, James. On Ethnographic Allegory. In: James Clifford & George Marcus (orgs.).
Writing Culture. The Poetics and Politics of Ethnography. Berkeley: University of California
Press, p. 98-121, 1986.
COHN, C. A criança, o aprendizado e a socialização na antropologia. In: SILVA, A. L. da;
MACEDO, A. V. L. da S.; NUNES, A. (Org.). Crianças indígenas: ensaios antropológicos.
São Paulo, Global, p. 213-235, 2002.
CONCONE, M. H. V. B.Caboclos e pretos-velhos da umbanda. Em R. Prandi (Org.).
Encantaria brasileira: o livro dos mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas, p.
281-303, 2001.
CONDURU, Roberto. Esse -troço- é arte? Religiões afro-brasileiras, cultura material e crítica.
MODOS, v. 3, p. 98-114, 2019.
CONDURU, Roberto. Pérolas Negras – Primeiros Fios. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2013.
CONTRERAS J; GRACIA M. Alimentação, sociedade e cultura. Rio de Janeiro: Fiocruz,
2011.
CORSARO, W. A. The sociology of childhood. 2nd. ed. London: Pine Forge Press, 2005.
COSTA, H. S. C. Umbanda, uma religião sincrética brasileira. Tese (Doutorado em Ciências
da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2013.
CSORDAS, Thomas. Body/Meaning/Healing. Nova Iorque, Palgrave Macmillan, 2002.
DA MATTA, Roberto. A casa e a rua. Rio de Janeiro, Guanabara, 1987.
DA MATTA, Roberto. Carnavais, paradas e procissões: reflexões sobre o mundo dos ritos. In:
DA MATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis. Para uma sociologia do dilema
brasileiro. Rio de Janeiro: Zahar, p. 35-66, 1979.
DANTAS, Beatriz Góis. Vovó nagô e papai branco: usos e abusos da África no Brasil. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 1988.
DAVINO, Guilherme do Nascimento. A música de umbanda joseense no processo
composicional. Dissertação (Mestrado em Música) - Universidade Estadual Paulista, São Paulo,
2020.
262

DIAS, Carla da Costa. De Sertaneja a Folclórica: a Trajetória da Coleção Regional do Museu


Nacional -1920/1950. Tese (Doutorado em Artes Visuais) - Universidade Federal do Rio de
Janeiro, Rio de Janeiro, 2005.
DOUGLAS, Mary. Deciphering a meal. Daedalus, p. 61-81, 1972.
DUARTE, Denise Aparecida Souza. Em vida inocente, na morte “anjinho”: morte, infância e
significados da morte infantil em Minas Gerais (séculos XVIII-XX). Tese (Doutorado em
História) - Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2018
DUARTE, Luiz F. D. O sacrário original - Pessoa, família e religiosidade. Religião e Sociedade,
Rio de Janeiro, vol. 26, n. 2, p. 11-40, 2006.
ELIAS, Norbert. Do comportamento à mesa. In: ELIAS, Norbert. O processo civilizador, vol.
I. Rio de Janeiro: Zahar, p. 95-135, 1994.
ENGELKE, Matthew. Material Religion. In: ORSI, Robert A. The Cambridge Companion to
Religious Studies. New York: Cambridge University Press, p. 209-229, 2012.
ENGELKE, Matthew. O problema da crença: Evans Pritchard e Victor Turner sobre a “vida
interior”. Último Andar, [S.l.], n. 30, p. 338-352, out. 2017.
EVANS-PRITCHARD, E.E. The Zande Trickster, Oxford, Clarendon Press, 1967.
EVANS-PRITCHARD, Edward Evan. Religion and the anthropologists. In: EVANS-
PRITCHARD, Edward Evan. Social Anthropology and other essays. New York: Free Press, p.
158-171, 1964.
FABIAN, J. Time and the Other: How Anthropology Makes Its Object. Columbia University
Press, 2010.
FALCI, Miridan. Doença e religiosidade. IN: HONORATO, C.T; CIRIBELLI, M.C.; SILVA,
F.C.T (org). História & Religião. VIII Encontro Regional de História. Rio de Janeiro, FAPERJ:
Mauad,p.133-144, 2002.
FERRETTI, M. M. R. Preto velho na umbanda e no tambor de mina do Maranhão. Boletim da
Comissão Maranhense de Folclore, 19, 6-7, 2001.
FERRETTI, Sérgio. Comida ritual em festas de Tambor de Mina no Maranhão In: Horizonte,
Belo Horizonte, PUC-MG, v. 9, n. 21, p. 242-267, abr./jun. 2011.
FERRETTI, Sérgio. Repensando o sincretismo: estudo sobre a Casa de Minas. São Paulo:
Edusp, 1995.
FIGUEIREDO, Celino de. Vida e milagres de S. Cosme, S. Damião e S. Jorge. Rio de Janeiro:
Baptista de Souza & C. Editores, p.7-48, 1953.
FINDLEN, Paula. Possessing Nature. Museums, Collecting and Scientific Culture in Early
Modern Italy. USA: University of California Press, 1994.
FIORI, Ana Letícia et al. Sobre modos de se pensar e fazer antropologia: entrevista com Marilyn
Strathern. Ponto Urbe [Online], 17, 2015.
FIRTH, Raymond. Malay Fisherman: their peasant economy. London: Routledge & K. Paul,
1968 [1946].
263

FIRTH, Rosemary. Housekeeping among Malay peasants. 2 ed. London: Athlone Press, 1966
[1943].
FONTES, Larissa. Essa feijoada tem axé, essa feijoada tem mironga: uma foto-etnografia de
uma festa de preto-velho. Revista Visagem, Belém, UFPA, vol.2, n.1, p. 70-81, 2016.
FOWLES, Severin. The perfect subject (postcolonial objects studies). Journal of Material
Culture. 21(1), p. 9-27, 2016.
FRADE, Cáscia. Festas populares do estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Instituto
Estadual do Patrimônio Cultural, Divisão de Folclore, p. 14-15, 1978.
FREITAS, Morena B. M. Correndo atrás de doce: socialidades na festa de Cosme e Damião no
Rio de Janeiro. Ponto Urbe [Online], 24, 2019.
FREITAS, Morena B. M. de. De doces e crianças: a festa de Cosme e Damião no Rio de
Janeiro. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
FREYRE, Gilberto. Açúcar: uma sociologia do doce, com receitas de bolos e doces do Nordeste
do Brasil. 5a.ed. revista. São Paulo: Global, 2007[1939].
FRY, Peter. Feijoada e “Soul Food”: notas sobre a manipulação de símbolos étnicos e nacionais.
In: FRY, Peter. Para Inglês Ver – identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro:
Zahar, p. 47-53, 1982.
GARCIA, M.-F. O Bacurau: étude de cas d’un marché situé dans une usina. Dissertação
(Mestrado em antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 1977.
GARCIA JR., Afrânio. Terra de trabalho: trabalho familiar de pequenos produtores. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 1983.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
GEERTZ, Clifford. Thick Description: Toward an Interpretive Theory of Culture. In:GEERTZ,
Clifford. The Interpretation of Cultures. New York: Basic Books, p. 3-30, 1973.
GELL, Alfred. Arte e agência: uma teoria antropológica. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
GENNEP, Arnold van. Os ritos de passagem. Petrópolis: Vozes, 1978.
GÉNOLI, Defendente. Le petit livre des saints - tome 2. Paris: Editions Du Chêne, 2011.
GIORGI, Rosa. Saints in Art. California: Getty publications, p. 99-100, 2003.
GIUMBELLI, Emerson. Lojas de Artigos Evangélicos: uma pesquisa sobre consumo religioso.
Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 7, n. 1,2, p. 213-236, jan. 2005.
GIUMBELLI, Emerson. Zélio de Moraes e as origens da umbanda no Rio de Janeiro. In:
SILVA, Vagner Gonçalves da (Org.). Caminhos da alma: memória afro-brasileira. São Paulo:
Summus/Selo Negro, 2002.
GOLDMAN, Márcio. A construção ritual da pessoa: a possessão no candomblé. Religião e
Sociedade, 12(1), p. 22-54, 1985.
264

GOLDMAN, Márcio. A possessão e a construção da pessoa no candomblé. Dissertação


(Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 1984.
GOLDMAN, Márcio. Histórias, devires e fetiches das religiões afro-brasileiras: ensaio de
simetrização antropológica. Análise Social, vol. XLIV (190), p. 105-137, 2009.
GOLDMAN, Marcio. O dom e a iniciação revisitados: o dado e o feito em religiões de matriz
africana no brasil. Mana, Rio de Janeiro , v. 18, n. 2, p. 269-288, ago. 2012.
GOLDMAN, Márcio. Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos. Etnografia,
antropologia e política em Ilhéus, Bahia. Rev. Antropol. [online]. vol.46, n.2, p.423-444, 2003.
GOMES, Edlaine de Campos. Doce de Cosme e Damião: dar, receber ou não?. In: GOMES,
Edlaine de Campos (org.) Dinâmicas Contemporâneas do Fenômeno Religioso na Sociedade
Brasileira. Aparecida, Ideias & Letras, p. 169-187, 2009.
GOMES, Lilian. A peregrinação das coisas: sobre trajetórias de ex-votos, imagens de santos e
outros objetos de devoção. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2017.
GOMES, Lilian. Entre famílias, lugares e objetos: uma etnografia da santidade de Pe. Libério.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2011.
GOMES, Renata Schmidt de Arruda. “A nossa oração se chama melodia, canta!” : Uma
etnografia do campo sonoro do terreiro de umbanda Reino de Luz. Dissertação (Mestrado em
Musicologia) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
GONÇALVES, José Reginaldo. A fome e o paladar: a antropologia nativa de Luis da Câmara
Cascudo. Revista Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 1, n. 33, p. 40-55, jun. 2004
GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Antropologia dos objetos: coleções, museus e
patrimônios. Rio de Janeiro, 2007.
GOODY, Jack. Industrial food: towards the development of a world cuisine. In: GOODY, Jack.
Cooking, cuisine and class: a study of comparative sociology. Cambridge University Press,
1982.
GUPTA, Akhil & FERGUSON, James 1997. Discipline and Practice: ̳The Field‘ as Site,
Method, and Location in Anthropology.‖ In: GUPTA, Akhil & FERGUSON, James (eds.)
Anthropological Locations: Boundaries and Grounds of a Field Science. Berkeley: University
of California Press, p. 1-46, 1997.
HAIBARA, Alice & OLIVEIRA, Maria Izabel Zanzotti de. A Prece. In: Enciclopédia de
Antropologia. São Paulo: Universidade de São Paulo, Departamento de Antropologia, 2015.
Disponível em: <http://ea.fflch.usp.br/obra/prece>
HALE, L. Preto velho: resistance, redemption, and engendered representations of slavery in a
brazilian possession-trance religion. American Ethnologist, 24(2), 392-441, 1997.
HANSEN, Karen Tranberg. The world in dress: anthropological perspectives on clothing,
fashion, and culture. Annual Review of Anthropology, 33, p. 369–92, 2004.
265

HEINICH, Natalie; SHAPIRO. De l’artification: enquêtes sur le passage à l’art. Paris, EHESS,
2012.
HEREDIA, B. A morada da vida. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
HERSKOVITS, Melville. J. Man and his Works, The Science of Cultural Anthropology. New
York, Alfred A. Knopf, 1948
HERZFELD, Michael. Anthropology: a practice of theory. International Social Science
Journal, v. 49, n. 153, p. 301-318, 1997.
HEYWOOD, P. The Ontological Turn. In: STEIN et al. (ed). The Cambridge Encyclopedia of
Anthropology, 2017. Disponível em: https://www.anthroencyclopedia.com/
HOFBAUER, A. Prandi, Reginaldo. Mitologia dos orixás, São Paulo, Companhia das Letras,
2001, 591 pp. Revista De Antropologia, 44(2), 251-258, 2001.
HOLTZMAN, Jon D. Food and memory. Annual Review of Anthropology, 35, p. 361--378,
2006.
HOWELL, Signe. Ethnography. In: STEIN et al. (ed). The Cambridge Encyclopedia of
Anthropology, 2018. Disponível em: https://www.anthroencyclopedia.com/
HUIZINGA, Johannes. O jogo e a competição como funções culturais In:HUIZINGA,
Johannes. Homo ludens. São Paulo: Perspectiva, p. 53-86, 1980.
HYNES, William J.; DOTY, Willian G. (eds.). Mythical Trickster Figures. Tuscaloosa,
Londres: The University of Alabama Press, 1993.
INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de
materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 24-44, jan./jun., 2012.
KARDEC, Allan. Livro dos Espíritos: princípios da doutrina espírita. FEB, Rio de Janeiro,
2004 [1857].
KEANE, Webb. Christian moderns: freedom and fetish in the mission encounter. Los Angeles,
University of California Press, 2007.
KEANE, Webb. On semiotic ideology. Signs and Society, vol. 6, n. 1, 2018.
KEANE, Webb. Semiotics and the social analysis of material things. Language &
Communication, 23.3, p. 409-25, 2003.
KEANE, Webb. The evidence of the senses and the materiality of religion. Journal of the Royal
Anthropological Institute, Volume 14, Issue S1, p. 110–127, abril, 2008.
KOPYTOFF, I. The cultural biography of things: commodization as process. In: APPADURAI,
Arjun. The social life of things. Commodities in cultural perspective. Cambridge: Cambridge
University Press, p. 64-91, 1990.
KOSBY, Marília Floor. Nós cultuamos todas as doçuras: as religiões de matriz africana e a
tradição doceira de Pelotas. Porto Alegre: Après Coup - Escola de Poesia, 2015.
LANDES, Ruth. A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Ed.da UFRJ, 2002 [1947].
266

LANGDON, Esther Jean. Performance e sua Diversidade como Paradigma Analítico: A


Contribuição da Abordagem de Bauman e Briggs. Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis,
v. 8, n. 1,2, p. 162-183, 2006.
LAWAL, Babatunde. Sustaining the oneness in their Twoness: Poetics of Twin Figures (Ères
Ìbejì) among the yoruba. In.: PEEK, P.M. Twins in Africa and diaspora cultures: double
trouble, twice blessed. Indiana: Indiana University Press, p. 81-98, 2011.
LEITE LOPES, J. S. O vapor do diabo: o trabalho dos operários do açúcar. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1976.
LEITE LOPES, José Sérgio. Entrevista com Moacir Palmeira. Horizontes antropológicos,
Porto Alegre, v. 19, n. 39, p. 435-457, junho/ 2013 .
LÉVI-STRAUSS, C. A eficácia simbólica, in: LÉVI-STRAUSS, C. Antropologia estrutural.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 215 - 236, 1996.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Le Cru et le Cuit. Paris: Plon, 1964.
LÉVI-STRAUSS, Claude. O triângulo culinário. In: Cordier, S (org.). Lévi-Strauss. São Paulo,
1968.
LIMA, Raquel dos Santos Sousa. Sobre presença e representação nas imagens dos santos
católicos: considerações a partir de um estudo sobre a devoção à Santa Rita. Religião e
Sociedade, Rio de Janeiro , v. 35, n. 1, p. 139-163, 2015.
LIMA, Raquel dos Santos Sousa. “É como se fosse Santa Rita”: processos de simbolização e
transformações rituais na devoção à Santa dos impossíveis. Tese (Doutorado em Antropologia
Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
LIMA, Vivaldo da Costa. As dietas africanas no sistema alimentar brasileiro. Salvador,
PEA,1997.
LIMA, Vivaldo da Costa. Cosme e Damião: o culto dos santos gêmeos no Brasil e na África.
Salvador, Corrupio, 2005.
LIMA FILHO, Manuel F. Cidadania Patrimonial. Revista Anthropológicas , v. 26, p. 134-155,
2015.
LINARES, Ronaldo Antonio; TRINDADE, Diamantino Fernandes. Cosme e Damião (Ibeji),
Oxala. São Paulo: Tríade Editorial, p. 17-46, 1988.
LODY, Raul. Dicionário de arte-sacra e técnicas afro-brasileiras. Rio de Janeiro, Pallas, 2003.
LODY, Raul. Tem dendê, tem axé: etnografia do dendezeiro. Rio de Janeiro, Pallas, 1992.
LODY, Raul. Uma bibliografia sobre cultura material afro-brasileira em tempo de devolução.
Comunicado aberto, Rio de Janeiro, 23, 1995.
LOPES, Nei. Dicionário da hinterlândia carioca: antigos “subúrbio” e “zona rural”. Rio de
Janeiro: Pallas, p. 110-111, 2012.
LOPES, Paula de Siqueira. Zambiapunga: Cultura e Política no Baixo Sul da Bahia. Dissertação
(Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Rio de Janeiro, 2006.
267

LOPES, Tadeu Mourão dos Santos. A outra arte sacra brasileira: o caso da pombajira menina.
Textos escolhidos de cultura e arte populares, Rio de Janeiro, v.7, n.1, p. 65-75, mai. 2010.
LÜHNING, Angela. O mundo fantástico dos erês. Revista USP, n. 18, p. 93-99, 1993.
MACIEL, Maria Eunice. Cultura e Alimentação. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, v.
Ano 7, n. 16, p. 145-156, 2002.
MACIEL, Maria Eunice. Uma cozinha à brasileira. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 33,
p. 25-39, 2004.
MAFRA, Clara. Os Evangélicos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
MAGGIE, Yvonne. Guerra de orixás: um estudo de ritual e conflito. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar Ed., 2001 [1975].
MAGGIE, Yvonne. O medo do feitiço: verdades e mentiras sobre a repressão às religiões
mediúnicas. Religião e Sociedade, nº 13, vol. 1, 1986.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Da periferia ao centro: trajetórias de pesquisa em
antropologia urbana. São Paulo: Editora Terceiro Nome, 2012.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Quando o campo é a cidade: fazendo antropologia na
metrópole. In: MAGNANI, J. G. C.; TORRES, Lilian. Na metrópole. Textos de antropologia
urbana. São Paulo: EDUSP, 1996.
MAGNANI, José Guilherme Cantor. Umbanda. São Paulo, Ática, 1986.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. São
Paulo: Loyola, 1999.
MARQUES, Lucas. Fazendo orixás: sobre os modos de existência das coisas no candomblé.
Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 38 (2), p. 221-243, 2018.
MARTINS, Ronaldo Luiz. Mercadão de Madureira: Caminhos de Comércio. Rio de Janeiro:
Condomínio do Entreposto Mercado do Rio de Janeiro, 2009.
MATTA E SILVA, W.W. da. Umbanda Sua Eterna Doutrina. Rio de Janeiro: Gráfica e Editora
Esperanto, 1957.
MAUSS, M. A expressão obrigatória de sentimentos. In: OLIVEIRA, Roberto Cardoso (org.).
Marcel Mauss: antropologia. Editora Ática, São Paulo, p. 147-153, 1979 [1921].
MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Sobre o Sacrifício. São Paulo, Cosac Naify, 2013.
MAUSS,Marcel. As técnicas corporais. In:MAUSS,Marcel. Sociologia e Antropologia. São
Paulo: Cosac & Naify, p. 399-422, 2003[1935].
MAUSS, Marcel. La prière. In: Oeuvres, 1. Les fonctions sociales du sacré. Paris : Minuit. 1968
[1909]. Disponível em :
http.://www.uqac.uquebec.ca/zone30/Classiques_des_sciences_sociales/índex.html.
MEAD, Margareth. The problem of changing food habits. In: National Research Council. The
Problem of Changing Food Habits: Report of the Committee on Food Habits 1941-1943.
Washington, DC: The National Academies Press, p. 20-31, 1943.
268

MENDEL, Débora S. de S. Entre raios, trovões e tempestades: festas de Santa Bárbara e Iansã
em Salvador. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2020.
MENEZES, Renata de Castro; BÁRTOLO, Lucas. Quando devoção e carnaval se encontram.
PROA: Revista de Antropologia e Arte, v. v.1, p. 96-121, 2019.
MENEZES, Renata de Castro; FREITAS, Morena B. M. de; BÁRTOLO, Lucas (org.). Doces
Santos: devoções a Cosme e Damião. Rio de Janeiro, Museu Nacional, Série Livros Digitais nº
21, 2020.
MENEZES, Renata de Castro. A dinâmica do sagrado. Um estudo antropológico de um
santuário católico no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu
Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
MENEZES, Renata de Castro. A imagem sagrada na era da reprodutibilidade técnica: sobre
santinhos. Horizontes antropológicos, Porto Alegre , v. 17, n. 36, p. 43-65, 2011.
MENEZES, Renata de Castro. Devoção, Diversão e Poder: um estudo antropológico sobre a
Festa da Penha. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1996.
MENEZES, Renata de Castro. Doces santos: reciprocidade, relações interreligiosas e fluxos
urbanos em torno à devoção a Cosme e Damião no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Museu
Nacional / UFRJ, 2013a (projeto de pesquisa)
MENEZES, Renata de Castro. Doces santos: sobre os Saquinhos de Cosme e Damião. In:
GOMES, Edlaine; OLIVEIRA, Paola Lins (org.). Olhares sobre o patrimônio religioso – Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Mar de Ideias, p. 57-87, 2016.

MENEZES, Renata de Castro. Enredamentos entre Religião e Cultura no Carnaval Carioca.


Rio de Janeiro: Museu Nacional / UFRJ, 2017 (projeto de pesquisa)
MENEZES, Renata de Castro. Reflexões sobre a imagem sagrada a partir do “Cristo de Borja”.
In: REINHEIMER, Patrícia; SANT’ANNA, Sabrina P. Manifestações artísticas e ciências
sociais: reflexões sobre arte e cultura material. Rio de Janeiro, Folha Seca, p. 235-263, 2013b.
MEYER, Birgit. A estética da persuasão: as formas sensoriais do Cristianismo global e do
Pentecostalismo. Debates do NER, Porto Alegre, ano 19, n. 34, p. 13-45, ago./dez. 2018.
MEYER, Birgit. Mediação e a gênesis da presença: rumo a uma abordagem material da religião.
In: GIUMBELLI;RICKLI;TONIOL (orgs). Como as coisas importam: uma abordagem
material da religião. Porto Alegre: Editora da UFRGS, p. 159-204, 2019.
MINTZ, Sidney. Comida e Antropologia: uma breve revisão. RBCS, 16 (47), p. 31­‐41, 2001.
MINTZ, Sidney. Sweetness and Power. The place of sugar in modern history. Londres, Penguin
Books, 1985.
MINTZ S, Du Bois C. The anthropology of food and eating. Annual Review of Anthropology,
31, p. 99-119, 2002.
MONTERO, Paula. Da doença à desordem: a magia na umbanda. Rio de Janeiro, Edições
Graal, 1985.
269

MONTES, Maria Lúcia. Cosme e Damião: a arte popular de celebrar os gêmeos. Coleção
Ludmilla Pomerantzeff. São Paulo: EXPOMUS, 2011.
MOURÃO, Tadeu. Cosme, Damião, cadê Doum? Um estudo sobre sincretismo entre Ibêjí, os
Anárgiros e os espíritos das crianças na religiosidade popular e suas implicações na produção
de arte sacra. In: FRADE,C; CORREA, G.B.; LIMA, R.G (org.). Religiosidade Popular. 1 ed.
Vol. I, Rio de Janeiro:UERJ, DECULT, FAPERJ, p.83-96, 2011.
MOURÃO, Tadeu. De médicos a meninos: vitalidade gemelar na escultura doméstica popular
dos santos Cosme e Damião no Brasil. Tese (Doutorado em Arte e Cultura Contemporânea).
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2015.
MOURÃO, Tadeu. Encruzilhadas da cultura: imagens de Exu e Pombagira. Rio de Janeiro:
Aeroplano, 2012.
MUNANGA, K. Art africain et syncrétisme religieux au Brésil. Dédalo. Revista do Museu de
Arqueologia e Etnologia da USP, São Paulo, n.27, p. 99-128, 1989.
NASCIMENTO, A. R. A. D.; SOUZA, L. D.; TRINDADE, Z. A. Exus e Pombas-Giras: o
masculino e o feminino nos pontos cantados da umbanda. Psicologia em Estudo, v. 6, n. 2, p.
107-113, 2001.
NAVARRO, Sérgio. Reflexões sobre a Escola de Caboclo Mirim. Limeira, São Paulo, Editora
do Conhecimento, 2015.
NEGRÃO, L. Magia e religião na umbanda. Revista USP, (31), p. 76-89, 1996.
NICAISE, Edouard. Confrérie de Saint Côme et Saint Damien. Paris, Félix Alcan, éditeur.
1893. Disponível em: https://archive.org/details/39002086310035.med.yale.edu
NINA RODRIGUES, Raimundo. O animismo fetichista dos negros baianos. Rio de Janeiro:
Fundação Biblioteca Nacional. Editora UFRJ, 2006 [1900].
NOTTEGHEM, Émile. Frontières et franchissements. Les objects du culte catholique en
artification”. In: HEINICH, Natalie; SHAPIRO, Roberta (eds). De l’artification. Enquêtes sur
le passage a l’art. Paris: Éditions Ehess, p. 47-62, 2012.
NOVAES, Regina. Juventude e religião: marcos geracionais e novas modalidades sincréticas.
In: SANCHIS, Pierre (org.). Fiéis e cidadãos. Percursos de sincretismo no Brasil. Rio de
Janeiro: Ed. UERJ, p. 181-207, 2011.
OLIVEIRA, Amurabi. A Nova Era com axé: umbanda esotérica e esoterismo umbandista no
Brasil. Revista da Pós- Graduação em Ciências Sociais, v.11, n.21, jan/jun. 2014.
ORO, Ari Pedro e STEIL, Carlos Alberto. O comércio e o consumo de artigos religiosos no
espaço público de Porto Alegre. In: P. Birman (org.). Religião e Espaço Público. São Paulo:
Attar, 2003.
ORTIZ, Renato. A Morte Branca do Feiticeiro Negro: umbanda e sociedade brasileira. 2. ed.
São Paulo: Brasiliense, 1991.

ORTIZ, Renato. Ética, poder e política: umbanda, um mito-ideologia. Religião e Sociedade,


Rio de Janeiro, v. 11, n. 3, p. 36-54, dez. 1984.
270

ORTNER, Sherry. Dark anthropology and its others: Theory since the eighties. HAU Journal
of Ethnographic Theory, vol 6 (1) , p. 47-73, 2016.
ORTNER, Sherry B. Teoria na antropologia desde os anos 60. Mana, Rio de Janeiro , v. 17,
n. 2, p. 419-466, ago. 2011
O’HANLON, Michael. Introduction. In: O’Hanlon, M. & Welsch, R. (Eds.) Hunting the
gatherers. Ethnographic Collectors, agents and agency in Melanesia, 1870-1930s. USA:
Bergahn Books, 2002.
PALMEIRA, M. G. S. et al. Emprego e mudança sócio-econômica no Nordeste. Anuário
Antropológico/76, p. 207-292, 1977.
PALMEIRA, Moacir. Feira e mudança econômica. Vibrant, Brasília , v. 11, n. 1, p. 285-323,
2014.
PEEK, P.M. Twins in Africa and diaspora cultures: double trouble, twice blessed. Indiana:
Indiana University Press, 2011.
PEIRANO, Mariza.A favor da etnografia. Anuário Antropológico, n.92, p. 197-223, 1994.
PEIRANO, Mariza. Etnografia não é método. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano
20, n. 42, p. 377-391, 2014.
PEIRANO, Mariza (org). O dito e o feito: ensaios de antropologia dos rituais. Rio de Janeiro :
Relume Dumará : Núcleo de Antropologia da Política/UFRJ, 2002.
PEIRANO, Mariza G. S.. Onde está a antropologia?. Mana, Rio de Janeiro , v. 3, n. 2, p. 67-
102, 1997.
PEIRCE, Charles. Semiótica. Editora Perspectiva, 2010.
PEMBERTON, J. Eshu-Elegba: The Yoruba Trickster God. African Arts, 9, 1975.
PEREIRA, E. M. M.. Dois reis neozelandeses: notas sobre objetificação museal, remanescentes
humanos e formação do Império (Brasil, Mares do Sul, século XIX). In: OLIVEIRA, João
Pacheco de; SANTOS, Rita de Cássia (Org.). De acervos coloniais aos museus indígenas:
formas de protagonismo e de construção da ilusão museal. João Pessoa: Editora UFPB, p. 191-
220, 2019.
PEREIRA, Edilson Sandro. O Teatro da Religião: A Semana Santa em Ouro Preto vista através
de seus personagens. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Museu Nacional,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014.
PEREIRA, Linconly. A umbanda em Fortaleza: análise dos significados presentes nos pontos
cantados e riscados nos rituais religiosos. Dissertação (Mestrado em Educação) - Universidade
Federal do Ceará, Fortaleza, 2012.
PEREIRA, Rodrigo. Nas margens do Atlântico: o comércio de produtos entre a áfrica ocidental
e o brasil e sua relação com o candomblé. História econômica & história de empresas, vol. 18,
n.2, p. 323-354, 2015.
PIERUCCI, Antônio Flávio de Oliveira. Sociologia da religião: área impuramente acadêmica.
In: O que ler na ciência social brasileira (1970-1995)[S.l: s.n.], 1999.
271

PIETTE, Albert. La religion de près. L’activité religieuse en train de se faire. Paris, Éditions
Métailié, 1999.
PINA CABRAL, João de. A Prece Revisitada: comemorando a obra inacabada de Marcel
Mauss. Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 29, n. 2, p. 13-28, 2009.
PINTO, Tiago de Oliveira. Healing Process as Musical Drama: The Ebó Ceremony in the
Bahian Candomblé of Brazil. The World of Music, n. 39(1), p. 11-33, 1997.
PINTO, Tiago de Oliveira. Making ritual drama: dance, music, and representation in brazilian
Candomble and Umbanda. World of Music, 33(1): p. 70-88, 1991.
PINTO, Tiago de Oliveira. Som e música. Questões de uma antropologia sonora. Rev.
Antropol., São Paulo , v. 44, n. 1, p. 222-286, 2001.
PIRES, F. F. Quem tem medo de mal-assombro? Etnográfica, Lisboa, v. 13, p. 291-312, 2009.
PIRES, Flávia. O que as crianças podem fazer pela antropologia? Horizontes antropológicos,,
vol.16, no.34, p.137-157, dez 2010.
PITT-RIVERS, Julian. The place of grace in anthropology (1992). HAU: Journal of
Ethnographic Theory , vol.1, no. 1, p. 423-450, 2011.
POEL, Francisco van der. Dicionário da religiosidade popular. Curitiba: Editora Nossa
Cultura,p.977, 2013.
PORDEUS Jr, Ismael. A magia do trabalho: macumba cearense e festas de possessão.
Fortaleza: Secretaria da Cultura e Desporto do Estado do Ceará, 1993.
PRANDI, Reginaldo; VALLADO, Armando; SOUZA, André Ricardo de. Candomblé de
caboclo em São Paulo. In: PRANDI, Reginaldo (Org.). Encantaria brasileira: o livro dos
mestres, caboclos e encantados. Rio de Janeiro: Pallas, 2004.
PRANDI, Reginaldo. A religião e a multiplicação do Eu: transe, papéis e poder no candomblé.
Revista USP, p.133-144, 1991b.
PRANDI, Reginaldo. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
PRANDI, Reginaldo. Os candomblés de São Paulo: a velha magia na metrópole nova. São
Paulo, Hucitec/Edusp, 1991a.
PRANDI, Reginaldo. Sincretismo afro-brasileiro, politeísmo e questões afins. Debates do NER,
ano 12, n. 19, Porto Alegre, p.11-28, jan/jun. 2011.
QUEIROZ, R.S. O herói-trapaceiro: reflexões sobre a figura do trickster. Tempo Social, 3 (1-
2), p. 93-107, 1991.
QUERINO, Manuel. A arte culinária na Bahia. Salvador : Livraria Progresso Editora, 1957.
RABELO, Miriam. Estudar a religião a partir do corpo: algumas questões teórico-
metodológicas. Caderno CRH, Salvador, v. 24, n. 61, p. 15-28, 2011.
RABELO, Miriam C. Os Percursos Da Comida No Candomblé De Salvador. Papeles de
Trabajo, Año 7, N° 11, p. 86-108, maio de 2014.
272

RABINOW, Paul & SULLIVAN, William (1987): The Interpretative Turn. A Second Look.
In: RABINOW, Paul & SULLIVAN, William (eds.). Interpretative Social Science. Berkeley:
University of California University Press, p. 1-33, 1987.
RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro. Rio de Janeiro, Graphia, 2001 [1934].
REVEL, Jacques. Apresentação. In: REVEL, Jacques (ed.). Jogos de escalas: a experiência da
microanálise. Rio de Janeiro: FGV, p. 7-14, 1998.
RIBEIRO, René. Cultos afro-brasileiros do Recife: um estudo do ajustamento social. Recife,
Instituto Joaquim Nabuco, 1952.
RIBEIRO, René. Significado sócio-cultural das cerimônias de Ibeji. Revista De Antropologia,
5(2), p. 129-144, 1957.
RIVAS NETO, Francisco. Fundamentos Herméticos de Umbanda. São Paulo: Ícone, 1996.

ROCHA, Carmen Silva Moretzsohn. Apurando os sentidos: sonoridades, performance e


imagens nos rituais de Umbanda em Corumbá. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) -
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPCIS-UERJ), Rio de Janeiro, 2013.
ROCHA, Gilmar. A roupa animada: persona e performance na jornada dos santos reis. Cronos:
Revista da Pós-Graduação em Ciências Sociais, UFRN, Natal, v.15, n.2, p. 8-34, jul/dez, 2014.
RODRIGUES, Raymundo Nina. Os africanos no Brasil [online]. Rio de Janeiro: Centro
Edelstein de Pesquisas Sociais, 2010[1932]. Disponível em http://books.scielo.org.
ROSTAS, Susanna. Conchas, Candles and Flowers in the Creation of the Concheros’
Religiosity. In: ESPIRITO SANTO, Diana; TASSI, Nico (eds.) Making Spirits: materiality and
transcendence in contemporary religions. London: I.B. Tauris, p. 57-80, 2013.
ROYAL ANTHROPOLOGICAL INSTITUTE OF GREAT BRITAIN AND IRELAND. Notes
and Queries on Anthropology. 6ed. Londres: Routledge & K. Paul, 1960.
SANCHIS, Pierre. As religiões dos brasileiros. HORIZONTE - Revista de Estudos de Teologia
e Ciências da Religião, v. 1, n. 2, p. 28-43, 1 ago. 1997.
SANCHIS, Pierre. Para não dizer que não falei de sincretismo. Comunicações do ISER, n. 45,
ano 13, p. 4-11, 1994.
SANCHIS, Pierre. Religiões, religião… Alguns problemas do sincretismo no campo religioso
brasileiro. In: SANCHIS, Pierre (org.). Fiéis e cidadãos. Percursos de sincretismo no Brasil.
Rio de Janeiro: Ed. UERJ, p. 9-57, 2011.
SANSI, Roger. A vida oculta das pedras. Historicidade e materialidade dos objetos no
candomblé. In: GONÇALVES,R; BITAR, N; SAMPAIO, R. (org.). A alma das coisas:
patrimônio, materialidade e ressonância. Rio de Janeiro, Mauad X, Faperj, p. 105- 122, 2013.
SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica. Editora Brasiliense, 1983.
SANTOS, Rafael C. A circulação de axé através do movimento da comida: uma etnografia em
um terreiro de candomblé da Bahia. Dissertação (Mestrado em Sociologia e Antropologia) -
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.
273

SARACENI, Rubens. Doutrina e teologia de umbanda sagrada: a religião dos mistérios um


hino de amor à vida. São Paulo, Madras, 2014b
SARACENI, Rubens. Os arquétipos da umbanda: as hierarquias espirituais dos orixás. São
Paulo, Madras, 2014a
SARACENI, Rubens. Umbanda Sagrada - Religião, Ciência, Magia e Mistérios. Madras, São
Paulo, 1996.
SASSATELLI, Roberta. Contestação e consumo alternativo: a moralidade política da comida.
Tessituras: Revista de Antropologia e Arqueologia, 3.2, 2015.
SCHECHNER, Richard. Rito. In: LIGIÉRO, Zeca (Org.). Performance e Antropologia de
Richard Schechner. Rio de Janeiro: Mauad Editora, 2012.
SCHLANGER, Nathan. La chaîne operatoire. In: RENFREW, Colin; BAHN, Paul G.
Archaelogy: the key concepts. London: Routledge, p. 25-31, 2005.
SCHMITT, Jean-Claude. O corpo das imagens: ensaios sobre a cultura visual na Idade Média.
Bauru: Ed. USC, 2007.
SCHNEIDER, Jane. Cloth and clothing. In: TILLEY, Charles et all (ed). Handbook of material
culture. SAGE publications, Londres, p.203-220, 2006.
SCHNEIDER, Jane. The anthropology of cloth. Annual Review of Anthropology, 16, p. 409-
48, 1987.
SERRA, Ordep José Trindade. Na trilha das crianças: os erês num terreiro de Angola.
Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) - Universidade de Brasília, Brasília, 1978.
SHAPIRO, Roberta; HEINICH, Nathalie. Quando há artificação? Sociedade e Estado, Brasília
, v. 28, n. 1, p. 14-28, abril, 2013.
SIGAUD, Lygia. A percepção do salário entre trabalhadores rurais. Actes du XLII Congrès des
americanistes, p. 317-330, 1976.
SILVA, Vagner Gonçalves da. Arte religiosa afro-brasileira: as múltiplas estéticas da devoção
brasileira. Debates do NER, Porto Alegre, ano 9, n. 13, p. 97-113, 2008.
SILVA, Vagner Gonçalves da. Candomblé e Umbanda: Caminhos da devoção brasileira. São
Paulo, Selo Negro, 2005.
SILVA, Vagner Gonçalves da. Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do
ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Mana, Rio de
Janeiro , v. 13, n. 1, p. 207-236, abril, 2007
SIMAS, Luiz Antonio; FABATO, Fábio. Pra tudo começar na quinta-feira: o enredo dos
enredos. Rio de Janeiro: Mórula, 2015.
SIMMEL, Georg. Faithfulness and Gratitude. In : Kurt H. Wolff. The Sociology of Georg
Simmel. Illinois, The Free Press, p.379-395, 1950.
SIMMEL, Georg. Sociologia da refeição - Georg Simmel. Revista Estudos Históricos, Rio de
Janeiro, v. 1, n. 33, p. 159-166, jun. 2004.
274

SOBRAL, José Manuel; RODRIGUES, Patrícia. O “fiel amigo”: o bacalhau e a identidade


portuguesa. Etnográfica: Revista do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, 17.3,
p. 619-49, 2013.
SOLERA, Osvaldo O. O. A magia do ponto riscado na Umbanda esotérica. Dissertação
(Mestrado em Ciências da Religião). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2015.
STALLYBRASS, Peter. O casaco de Marx: roupas, memória e dor. Belo Horizonte, Autêntica
Editora, 2008.
SUTTON, David E. Food and the Senses. Annual Review of Anthropology, 39, p. 209-223,
2010.
TAMBIAH, S. J. A Performative Approach to Ritual. Proceedings of the British Academy, 65,
p. 113- 169, 1985.
TAYLOR, Diana. Traduzindo Performance. In: DAWSEY, John et al. Antropologia e
Performance. São Paulo: Terceiro Nome, p. 9--16, 2013.
TEIXEIRA, Faustino; MENEZES, Renata (Orgs.). Religiões em movimento: o censo de 2010.
Petrópolis, Vozes, 2013
TEIXEIRA JUNIOR, José Carlos. Compondo um consenso : Unidade e distinção no universo
sonoro da Umbanda carioca. Dissertação (Mestrado em Musicologia) - Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004.
THOMAZ, Omar Ribeiro. "Xeto, marromba, xeto!" A representação do índio nas religiões afro-
brasileiras. In: GRUPIONI, Luís Donisete Benzi (org.). Índios no Brasil. Brasília: Ministério
da Educação e do Desporto, 1994.
TILLEY, Christopher. Theoretical perspectives: introduction. In: TILLEY et all. (eds).
Handbook of Material Culture. Londres, Sage, p. 7-11, 2006.
TOREN, C. Making sense of hierarchy: cognition as social process in Fiji. London: The
Athlone Press, 1990.
TORRES, Carlos. Bahia, cidade feitiço: roteiro turístico. 6ª ed. Revista e aumentada. Salvador:
Imprensa Oficial, p.174-180, 1973.
TRINDADE, Liana. Exu: Poder e Perigo. São Paulo: Ícone Editora, 1985.
TRINDADE, Liana. Exu: reinterpretações individualizadas de um mito. Religião e Sociedade,
n. 8 , 29-36, 1982.
TURNER, Victor. Do liminar ao liminoide, no brincar, no fluxo e no ritual. In: TURNER,
Victor. Do ritual ao teatro: a seriedade humana de brincar. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, p.
25-84, 2015.
TYLOR, Edward B. Primitive Culture, Dover Publications, 2016 [1871].
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vidas de santos. Tradução do latim, apresentação,
notas e seleção iconográfica: Hilário Franco Júnior, São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
VASCONCELOS, JORGE L. R. Axé, orixá, xirê e música: estudo de música e performance no
candomblé queto na Ba
275

ixada Santista. Tese (doutorado em Música). Instituto de Artes, Unicamp, São Paulo, 2010.
VELLOSO, Mônica Pimenta. As tias baianas tomam conta do pedaço. Estudos Históricos, 3
(6), p. 207-228, 1990.
VERGER, Pierre. A sociedade Egbé Òrum dos Àbíkú, as crianças que nascem para morrer
várias vezes, Afro-Ásia, CEAO, UFBA, Salvador, nº 14, p. 138-160, 1983.
VICTORA, Ceres Gomes; MACIEL, Maria Eunice. Como é possível que você tenha um Ph.D.
e ainda não saiba cortar uma costela em pé?. Sidney Mintz e a antropologia da alimentação.
Horizontes antropológicos, Porto Alegre , v. 18, n. 38, p. 373-379, 2012.
VIGORITO, Joanice. Mercadão de Madureira: patrimônio cultural, mercado popular e
religioso (1977-2014). Tese (Doutorado em História Comparada), Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2016.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Cosmological deixis and Amerindian perspectivism.
Journal of the Royal Anthropological Institute 4, p. 469-88, 1998.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Os pronomes cosmológicos e o perspectivismo ameríndio.
Mana, Rio de Janeiro, PPGAS-Museu Nacional, vol. 2, no 2, p. 115-144, 1996.
VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. Who is afraid of the ontological wolf? Some comments on
an ongoing anthropological debate. CUSAS, Annual Marilyn Strathern Lecture, 2014.
VOGT, Evon Z. Notes and Queries on Anthropology. American Anthropologist, vol. 56, n. 6,
p. 1154-1556, 1954.
WEISKOPF-BALL, Emily. Cooking Up Change: Family Cookbooks as Markers of Shifting
Kitchen Politics. Cuizine, 4, vol. 2, 2013.
WESCOTT, Joan. The Sculpture and Myths of Eshu-Elegba, The Yoruba Trickster: Definition
and Interpretation in Yoruba Iconography. Africa 32/4, p. 336-53, 1962.
YOUNG, Diana. The colours of things. In: TILLEY, Charles et all (ed). Handbook of material
culture. SAGE publications, Londres, p.173-185, 2006.

Você também pode gostar