Você está na página 1de 12

619

Promoção à saúde da mulher negra no


povoado Castelo, Município de Alcântara,
Maranhão, Brasil
Promotion of black women’s health in Castelo village,
municipality of Alcântara, Maranhão, Brazil

Deuzilene Pedra Viegas Resumo


Universidade Federal do Maranhão. Programa de Pós-Graduação
em Saúde e Ambiente. São Luís, MA, Brasil. A Política Nacional de Saúde para a Mulher Negra
E-mail: deuzaviegas@globo.com
dispõe de um aparato legal que dá suporte a sua
István van Deursen Varga implementação, conquistado pelo movimento negro.
Universidade Federal do Maranhão. Programa de Pós-Graduação Tendo como parâmetro as legislações referentes à
em Saúde e Ambiente. São Luís, MA, Brasil.
saúde da população negra e à saúde da mulher, além
E-mail: ivarga@uol.com.br
dos documentos disponibilizados pela Secretaria
Municipal de Saúde de Alcântara, este trabalho teve
como objetivo geral analisar os serviços básicos
de saúde prestados às mulheres negras do povo-
ado Castelo e como objetivos específicos realizar
levantamento empírico dos programas e projetos
voltados para mulheres negras oferecidos pelo mu-
nicípio de Alcântara; verificar se no povoado Castelo
há algum atendimento específico para mulheres
negras; identificar as principais demandas das
mulheres da comunidade ao serviço de saúde local;
averiguar como o quesito cor está sendo emprega-
do pela equipe da Estratégia Saúde da Família que
atende a comunidade. A metodologia consistiu em
identificar, através de documentos disponibiliza-
dos pela Secretaria Municipal de Saúde (SEMUS),
as ações e serviços voltados para as mulheres na
comunidade, e por meio de questionário aplicado
aos profissionais, seus conhecimentos sobre a
Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra. Concluímos que, apesar do aparato legal,
reconhecido e citado pela SEMUS em seu Plano de
Saúde atual, as legislações não têm sido suficientes
para que esse segmento social tenha suas peculia-
ridades reconhecidas. Informações básicas para
Correspondência planejamento de ações específicas, como a coleta
Deuzilene Pedra Viegas do quesito cor, por exemplo, não são realizadas pela
Rua 29, quadra 27, 9 – Residencial Safira. Paço do Lumiar, MA, SEMUS. Não identificamos nenhuma ação planejada
Brasil. CEP 65130-000.

DOI 10.1590/S0104-129020162577 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.619-630, 2016 619
que considere as características raciais e étnicas Introdução
das mulheres da comunidade.
Palavras-chave: Saúde da População Negra; Saúde Saúde da população negra: a conquista política
da Mulher Negra; Saúde no Município de Alcânta- da Política
ra/MA; Saúde da Mulher Negra em uma Comuni-
dade Quilombola. O conceito de saúde mais difundido na atualida-
de foi definido pela Organização Mundial de Saúde
Abstract como sendo o estado de completo bem-estar físico,
mental e social e não simplesmente a ausência de
The Black Women’s Health National Policy has a doença ou enfermidade. No cenário internacional, a
legal apparatus to support its implementation, con- saúde como direito foi conquistada desde a década
quered by the black movement. Taking as reference de 1960; no Brasil, entretanto, essa conquista só
the laws relating to the black population’s health, ocorreu com a promulgação da Constituição Federal
women’s health, and the documents provided by the de 1988 (Brasil, 1996).
Health Secretariat of the Municipality of Alcantara, A década de 1980 foi essencial para as mudanças
this study’s main objective is to analyze the basic ocorridas na política nacional de saúde, gestadas
health services provided to black women of Castelo pelos próprios movimentos sociais iniciados ao
village, and its specific objectives are: to identify final dos anos 1970.
municipality of Alcantara’s programs and projects A Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990 (Bra-
facing black women; to check for any specific care sil, 1990), regulamentou a garantia constitucional
for black women in Castelo village; to identify the do direito à saúde e dispõe, em seu artigo 2º, que
main demands of the community’s women to the a saúde é um direito fundamental do ser humano,
local health service; to check how the color data devendo o Estado prover condições indispensáveis
are being collected by the local Family Health para seu pleno exercício. Ressalta-se que ao esta-
Strategy team. The methodology adopted consisted belecer a saúde como direito do cidadão e dever do
in to identify, through documents provided by the Estado, este se obriga a formular e realizar políticas
city’s Health Secretariat, its actions and services com o objetivo de manter a saúde do indivíduo tanto
towards the community’s black women, and through na prevenção quanto na recuperação, com vistas à
a questionnaire applied to its professionals, their garantia de que as demandas da população sejam
knowledge about the National Policy for Integral atendidas de modo a contemplar o atendimento de
Health of the Black Population. We concluded that, suas necessidades.
despite the legal apparatus cited by the Health Sec- Em relação à população negra, a Constituição
retariat’s in its current health care plan, these legis- de 1988 garantiu um conjunto de direitos especí-
lation’s achievements were not enough to improve ficos a esse significativo segmento da população
the recognition of this social group’s peculiarities brasileira, entre os quais destacamos o direito à
among its health services. The collection of basic terra e o respeito a suas culturas. No que se refere à
informations, which are necessary to the planning saúde, a conquista de uma política de atendimento
of specific actions, as the color data, is not being que considere suas especificidades é mais recente.
performed by the Municipality’s Health Secretariat. Como resposta às demandas da população negra
We have not identified any planned action which em relação à saúde, o Estado brasileiro, em parceria
considers the racial and ethnic characteristics of com o movimento negro, elaborou a Política Nacio-
this village’s women. nal de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN),
Keywords: Black Population’s Health; Black Wom- aprovada pelo Conselho Nacional de Saúde em 2007.
en’s Health; Health in Alcântara/MA municipality; A PNSIPN foi um marco na ampliação dos direitos
Black Women’s Health in a Quilombola Community desse segmento social e dispõe, em suas estratégias
de gestão, sobre o “estabelecimento de metas espe-

620 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.619-630, 2016


cíficas para a melhoria dos indicadores de saúde tre negros ocorre, principalmente, em consequência
da população negra, com especial atenção para as da falta de atendimento adequado, com orientações
populações quilombolas” (Brasil, 2007b, p. 41). que levem em consideração os riscos a que estão ex-
Outra disposição da PNSIPN está relacionada à postos e indicações das medidas para sua prevenção.
“inclusão do quesito cor nos instrumentos de coleta Segundo Oliveira (2003), o tratamento de algumas
de dados nos sistemas de informação do SUS [Sis- doenças − como hipertensão arterial, diabetes mel-
tema Único de Saúde]” (Brasil, 2007b, p. 39). A refe- litus, coronariopatias, insuficiência renal crônica,
rida política tem como embasamento os princípios cânceres e miomas − é dificultado pelas condições ob-
constitucionais da saúde como “direito social, de jetivas de vida desse segmento social. Para a autora,
cidadania e dignidade da pessoa humana, do repúdio “apesar de incidentes sobre toda a sociedade, essas
ao racismo, e da igualdade” (Brasil, 2007b, p. 15). doenças se tornam mais graves na população negra,
A PNSIPN tem como objetivo geral: “promover devido às carências econômicas, sociais e culturais a
a saúde integral da população negra, priorizando a que está submetida” (Oliveira, 2003, p. 95).
redução das desigualdades étnico-raciais, o comba- Em 1995, por ocasião da Marcha Zumbi dos Pal-
te ao racismo e à discriminação nas instituições e mares, foi apresentada uma série de demandas da
serviços do SUS” (Brasil, 2007b, p. 19). Reconhece população negra ao governo federal. Eram reivindi-
ainda a necessidade da execução de ações em todos cações que diziam respeito à luta contra o racismo,
os níveis do sistema para atendimento de todas as pela conquista da cidadania plena e pela vida. Em
demandas da população negra, para tanto reafirma resposta a esse movimento, o Estado, entre várias
o princípio da Integralidade do SUS, conforme a outras medidas, incluiu o quesito cor nos sistemas
Lei 8.080/1990. de notificações (declarações de nascidos vivos e de
Em relação à população negra que reside nas óbitos). Vale ressaltar ainda a conquista no campo
zonas rurais, a PNSIPN objetiva “garantir e ampliar das pesquisas científicas, com a Resolução nº 196,
o acesso da população negra do campo e da floresta, de 10 de outubro de 1996 do Conselho Nacional de
em particular as populações quilombolas, às ações e Saúde, que dispõe sobre a introdução do quesito cor
aos serviços de saúde” (Brasil, 2007b, p. 19). nos dados de identificação dos sujeitos das pesqui-
Observa-se a preocupação em garantir que as po- sas com seres humanos.
pulações habitantes de zonas rurais tenham acesso Em 2003 foi instituída a Secretaria Especial
à saúde, posto que, historicamente, ter sido essa a de Políticas de Promoção da Igualdade Racial
parcela da população negra que menos acessa os (SEPPIR), um importante avanço legal com vistas a
bens e serviços socialmente produzidos. garantir os direitos da população negra brasileira.
Ressalta-se que apesar das conquistas legais Ainda em novembro 2003 foi firmado um termo
serem recentes, as lutas da população negra por de compromisso entre a SEPPIR e o Ministério da
uma política de saúde que considere suas especifi- Saúde (MS) objetivando a efetivação do princípio
cidades é histórica. O movimento negro há décadas da equidade, conforme preconiza a Lei 8.080/1990.
vem defendendo que alguns agravos que acometem O Comitê Técnico de Saúde da População Negra
a população como um todo devem ser tratados de (CTSPN) foi constituído pela Portaria Ministerial
modo específico quando acometem a população 10/2004. O referido Comitê era composto por espe-
negra. Citamos aqui, como exemplo, a maior inci- cialistas em saúde da população negra, pesquisa-
dência e gravidade da hipertensão arterial entre a doras e pesquisadores, militantes, representantes
população negra, bem como o desfecho mais grave das áreas técnicas do MS além dos Conselhos
para os casos de diabetes, posto que há evidências Nacionais de Secretários Municipais e Secretários
que sequelas, como as nefropatias e as amputações, Estaduais de Saúde. Ainda em 2004, no Seminário
por exemplo, são mais comuns na população negra. Nacional de Saúde da População Negra e na Confe-
Como vêm denunciando o movimento negro e vá- rência Nacional de Assistência Farmacêutica, foi
rios autores, esse desfecho mais grave do diabetes en- decidido pelo atendimento das questões relaciona-

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.619-630, 2016 621


das à terapêutica de pessoas com doença falciforme. tes, doença falciforme e doença hipertensiva espe-
Estas são, sem dúvida, conquistas políticas muito cífica da gravidez (DHEG). Portanto, a PNSIPN não
importantes para a população negra. Conquistas pretende instituir um sistema de saúde paralelo ao
que, apesar de já garantidas legalmente no artigo SUS, mas romper uma longa história de injustiças e
198 da Constituição de 1988 (que dispõe acerca do desigualdades que acometem esse segmento social.
atendimento integral) e na Lei 8.080/1990 (que,
em seu artigo 6º, trata da assistência terapêutica As especificidades da saúde da mulher negra
integral, inclusive farmacêutica), ainda não vinham
sendo executadas pelo Estado. A saúde da mulher negra, por sua vez, também
Como resposta às demandas da população e às tem especificidades que o Estado deve considerar ao
deliberações da XXII Conferência Nacional de Saú- planejar as políticas de saúde para esse segmento
de e da I Conferência Nacional de Medicamentos e social. São questões referentes às DHEGs, maior
Assistência Farmacêutica, o Conselho Nacional de incidência e prevalência de miomas uterinos em
Saúde publicou a Resolução nº 338, de 6 de maio de mulheres negras, alta prevalência de doença falci-
2004, cujo artigo 1º estabelece que: forme em mulheres em idade fértil, alta prevalência
de violência doméstica e no trabalho, entre tantos
a Política Nacional de Assistência Farmacêutica agravos que acometem, com muito maior incidência
é parte integrante da Política Nacional de Saúde, e prevalência, a saúde dessas mulheres.
envolvendo um conjunto de ações voltadas à promo- Segundo dados do Censo Demográfico, em 2000,
ção, proteção e recuperação da saúde e garantindo a população brasileira de mulheres negras era de
os princípios da universalidade, integralidade e 37.428.225 pessoas (IBGE, 2000), e em 2010, de
eqüidade. (Brasil, 2004c) 48.406.819 pessoas (IBGE, 2010).
De acordo com o documento do MS do ano 2005,
As conquistas alcançadas no ano de 2006 estão intitulado “Perspectiva da Eqüidade no Pacto
relacionadas à regulamentação da Política Nacio- Nacional pela Redução da Mortalidade Materna e
nal de Atenção Integral às Pessoas com Doença Neonatal: atenção à saúde das mulheres negras”:
Falciforme, bem como a participação do movimen-
to negro, com uma vaga, no Conselho Nacional de Os dados socioeconômicos dispo­níveis já indicam
Saúde (CNS). que a maioria das negras encontra-se abaixo da
Em linhas gerais, percebe-se que, embora a linha da pobreza, exibindo a seguinte situação:
PNSIPN tenha sido oficializada apenas em 2007, a taxa de analfabetismo é o dobro das brancas; são
luta do movimento negro já vinha e continua amea- majoritariamente chefes de família sem côn­juge e
lhando uma gama de outras conquistas, as quais no com filhos; por razões sociais ou de discriminação,
cotidiano buscam romper com as iniquidades que as mu­lheres negras têm menor acesso aos serviços
contribuem para manter a população negra com os de saúde de boa qualidade, à atenção ginecológica e
piores indicadores sociais em nosso país. à assistência obstétrica – seja no pré-natal, parto ou
A PNSIPN propõe um novo relacionamento entre puerpério; e maior risco que as brancas de contrair
o Estado e a população negra no SUS, em que as es- e de morrer mais cedo de determinadas doenças.
pecificidades desse segmento social sejam reconhe- (Brasil, 2005, p. 7)
cidas, respeitadas e tratadas de formas adequadas.
Para tanto, há a urgente necessidade de capacitação Segundo o mesmo documento:
dos profissionais que possam atendê-las, conforme
preconiza o plano operativo da PNSIPN (Brasil, as negras têm 50% a mais de chances de desen-
2008). São capacitações voltadas para a atenção a volver diabetes que as brancas. Na população dia-
doenças genéticas ou hereditárias mais comuns na bética, a hipertensão arterial é duas vezes maior
população negra, como a hipertensão arterial, diabe- que na população geral. Mulheres portadoras de

622 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.619-630, 2016


diabetes estão mais expostas à gravidez de alto das mulheres negras, uma vez que, na esfera estatal,
risco. (Brasil, 2005, p. 10) as políticas de saúde com recorte de gênero e cor
são relativamente novas. A conquista desse direito
A DHEG é a complicação mais frequente em tem como principal referência a Constituição de
mulheres no período gestacional. É caracterizada 1988. Desde então, várias garantias legais têm sido
pelo aumento dos níveis pressóricos e constitui instituídas pelo Estado.
a primeira causa de morbimortalidade materna O ano de 2004 foi um marco na conquista de di-
no ciclo gravídico puerperal. Entre os fatores que reitos para as mulheres. No que se refere às políticas
contribuem para que uma mulher grávida tenha sociais, destacamos o Plano Nacional de Políticas
mais riscos que outras de desenvolver DHEG é sua para as Mulheres, o qual tem como uma de suas
cor, posto que as mulheres negras são acometidas prioridades:
muito mais severamente pela hipertensão arterial
no período gestacional. Segundo Oliveira: promover a atenção obstétrica, qualificadas e hu-
manizadas, inclusive a assistência ao abortamento
uma em cada dez mulheres que engravidam pela em condições inseguras, para mulheres e adoles-
primeira vez tem hipertensão. A hipertensão du- centes, visando reduzir a mortalidade materna,
rante a gravidez e a toxemia gravídica (eclâmpsia/ especialmente entre as mulheres negras. (Brasil,
hipertensão) constituem a principal causa de mor- 2004a, p. 63)
talidade materna no Brasil. (Oliveira, 2003, p. 112)
Ainda em 2004, o Estado instituiu a Política
Ainda segundo a autora, estudo de Souza (apud Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher
Oliveira, 2003), realizado em um serviço público (PNAISM), que propôs uma nova concepção a
de saúde em São Paulo, apontou uma prevalência respeito da atenção à saúde para a população fe-
de 41,6% e uma incidência de 22,9% dos miomas minina, em que:
entre as usuárias negras, contra uma prevalência
de 21,9% e uma incidência de 6% entre as brancas, a elaboração, a execução e a avaliação das políti-
respectivamente. cas de saúde da mulher deverão nortear-se pela
Em relação à anemia falciforme, o MS, através perspectiva de gênero, de raça e de etnia, e pela
de publicação intitulada “Perspectiva da equidade ampliação do enfoque, rompendo-se as fronteiras
no pacto nacional pela redução da mortalidade da saúde sexual e da saúde reprodutiva, para alcan­
materna e neonatal: atenção à saúde das mulheres çar todos os aspectos da saúde da mulher. (Brasil,
negras, afirma que: 2004b, p. 63)

mulheres portadoras de anemia falciforme apre­ Em relação à saúde da mulher negra, a citada
sentam maior risco de abortamento e complica- Política objetiva “promover a atenção à saúde da
ções du­rante o parto (natimorto, prematuridade, mulher negra” (Brasil, 2004b, p. 71), para tanto, traz
toxemia grave, placenta prévia e descolamento um conjunto de estratégias visando a:
prematuro de placenta, entre outros). Como esta
doença é mais prevalente entre as negras, elas es- melhorar o registro e produção de dados; capacitar
tão expostas a um maior risco durante a gravidez profissionais de saúde; implantar o Programa de
e, portanto, necessitam de um acompanhamen­to Anemia Falciforme (PAF/MS), dan­do ênfase às
mais intensivo. (Brasil, 2005, p. 12) especificidades das mulheres em idade fértil e no
ciclo gravídico-puerperal; incluir e consolidar o
Tais informações ressaltam a necessidade de recorte racial/étnico nas ações de saúde da mulher,
implantação de políticas de saúde em todos os níveis no âmbito do SUS; estimular e fortalecer a inter-
de complexidade, que atendam às especificidades locução das áreas de saúde da mu­lher das SES e

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.619-630, 2016 623


SMS com os movimentos e entidades relaciona­dos res negras; identificar as principais demandas das
à saúde da população negra. (Brasil, 2004b, p. 71) mulheres da comunidade ao serviço de saúde local;
verificar como o quesito cor está sendo empregado
No ano de 2007 houve ainda a implantação de pela equipe da Estratégia Saúde da Família que
outro importante marco legal em relação ao direito atende a comunidade.
à saúde das mulheres negras, qual seja, a Política
Nacional Saúde Integral da População Negra (PN- Metodologia
SIPN), que dispõe em suas estratégias de gestão a
necessidade de: Este estudo caracteriza-se como analítico com
abordagem qualitativa. Foi realizado no período de
qualificação e humanização da atenção à saúde da janeiro a agosto de 2011. A elaboração do trabalho
mulher negra, incluindo assistência ginecológica, consistiu em quatro etapas, a saber:
obstétrica, no puerpério, no climatério e em situ-
ação de abortamento, nos estados e municípios. • na primeira etapa foram realizados levantamento
(Brasil, 2007b, p. 41) e leitura de bibliografia referente à saúde da popu-
lação negra, à saúde da mulher e à saúde da mulher
A PNSIPN define a população quilombola como negra, bem como das legislações que referendam
objeto prioritário de suas ações, posto ser esse o o SÚS e as políticas de saúde voltadas para popu-
segmento que apresenta os piores indicadores so- lação negra;
ciais. Para tentar superar essa realidade, a PNSIPN • na segunda etapa foi realizada uma pesquisa de
tem como um de seus objetivos: “definir e pactuar, campo, em que foram coletados os documentos
junto às três esferas de governo, indicadores e metas disponibilizados pela SEMUS (Plano Municipal de
para a promoção da equidade étnico-racial na saú- Saúde; prontuários atuais da Estratégia Saúde da
de” (Brasil, 2007b, p. 39), conforme preconizam os Família [ESF], que atende à comunidade e fichas de
princípios da descentralização e regionalização da cadastros dos usuários atendidos no ESF), e feita a
Lei 8.080/1990. A referida política objetiva ainda: aplicação de um questionário aos profissionais do
“identificar as necessidades de saúde da população ESF, visando a identificar o conhecimento que eles
negra do campo e da floresta e das áreas urbanas e tinham a respeito das políticas voltadas à saúde da
utilizá-las como critério de planejamento e definição mulher negra;
de prioridades” (Brasil, 2007b). • a terceira etapa consistiu em, a partir dos dados
Este trabalho apresenta as conclusões da pesqui- coletados, identificar e estudar, por meio de análise
sa Promoção à Saúde da Mulher Negra no Povoado de conteúdo, os programas e projetos voltados para
Castelo, município de Alcântara/MA. O trabalho foi as mulheres negras no município de Alcântara e
realizado como requisito para conclusão do curso na comunidade Castelo, tendo como referência as
de especialização em Saúde da Mulher Negra, do legislações já citadas;
Programa de Pós-Graduação em Saúde e Ambien- • a quarta e última etapa consistiu na síntese das
te da Universidade Federal do Maranhão, e teve informações e a elaboração deste artigo.
como objetivo geral analisar os serviços básicos de
saúde prestados às mulheres negras do povoado Resultados
Castelo, tendo como referência os marcos legais
da legislação em saúde da mulher, e em saúde da A realidade do município de Alcântara
mulher negra, e como objetivos específicos: realizar
levantamento empírico dos programas e projetos O município de Alcântara dista, em linha reta
oferecidos pelo município de Alcântara voltados (atravessando a Baía de São Marcos), cerca de 20 km
para mulheres negras; verificar se no povoado Cas- da capital São Luís. Localizado no litoral ocidental
telo há algum atendimento específico para mulhe- do estado do Maranhão, foi fundado em 1648 e apre-

624 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.619-630, 2016


senta arquitetura muito semelhante a da capital, No caso da nossa área de estudo, as terras onde
São Luís, tendo em vista a colonização no mesmo se localiza essa comunidade foram abandonadas por
período pelos portugueses. seus donos diante da produção decadente da lavoura
A situação conjuntural do município foi alterada antes mesmo do fim da escravidão.
a partir da implantação do Centro de Lançamento de A origem do nome Castelo vem de cerca do ano
Alcântara (CLA) no início da década de 1980. Para de 1700, quando naquela região foi instalada uma
Choairy (2000), o citado centro alterou significativa- fazenda de cana-de-açúcar por um português de
mente a dinâmica populacional local, inclusive com nome Mariano Silveira. A “casa grande” dessa fa-
a extinção de alguns povoados e a criação de outros. zenda era muito bonita, por isso foi comparada a
As condições de infraestrutura no município são um castelo – o que deu origem ao nome do lugar. A
precárias. A taxa de urbanização é de apenas 26,6% mão de obra utilizada na fazenda era de escravos
segundo dados do IBGE do ano 2009: com efeito, negros, de modo que ainda hoje a Comunidade é
áreas consideradas rurais estão presentes em toda formada por cerca de 95% de pessoas com ances-
sua extensão. tralidade africana. As 52 famílias que residem no
Outra problemática que se faz presente no mu- povoado sobrevivem basicamente da agricultura de
nicípio é a questão do tratamento da água e esgota- produtos primários, como mandioca, milho e feijão;
mento sanitário. Segundo o diagnóstico participa- da pesca artesanal de peixes, camarão e caranguejo;
tivo do município de Alcântara (2010) o percentual e da criação de pequemos animais.
de famílias abastecidas pela Companhia de Águas Em relação à situação de saúde o Plano Munici-
e Esgotos do Maranhão (CAEMA) é de 42,74%. Em pal de Saúde 2010 aponta a situação epidemiológica
relação ao esgotamento sanitário, 72,73% é feito a dos alcantarenses. Segundo o referido documento:
céu aberto, contra 6,61% através de banheiro. “os principais motivos de internações hospitala-
Segundo o Plano de Saúde Municipal de Alcân- res no ano de 2009 foram doenças infecciosas e
tara (2010-2013) e dados do Censo Demográfico de parasitárias, doenças dos aparelhos circulatório,
2010 (IBGE, 2010), a população do município é de respiratório, digestivo, além de gravidez, parto e
21.851 habitantes, predominantemente negra (83,1% puerpério” (Alcântara, 2010, p. 5).
da população, num total de 18.157 pessoas, das Ainda segundo o mesmo plano: “O município
quais 5.700 identificaram-se como pretas e 12.457 de Alcântara ainda convive com doenças infecto-
como pardas), distribuída em 1.495,6 km², com 204 -contagiosas, algumas endêmicas, como a malária,
povoados, sendo 182 (89,2%) em áreas reconhecidas a esquistossomose, a leishmaniose tegumentar, a
como remanescentes de quilombos. dengue, a tuberculose e a hanseníase” (Alcântara,
Entre as 182 comunidades negras rurais do 2010, p. 5).
município de Alcântara, destacamos a comunidade Essa informação nos leva a concluir que no muni-
Castelo, área onde realizamos nosso estudo, locali- cípio ainda há um número significativo de sujeitos
zada a 35 km da sede, às margens da rodovia MA- que adoecem por doenças preveníveis, característica
106, que liga Alcântara ao município de Bequimão. de regiões pauperizadas, contrariando a tendência
Suas vias de acesso se dão pela rodovia e pelo mar, brasileira na atualidade.
através de pequenos barcos. Castelo é considerada Em seus objetivos, estratégias e metas, o Plano
uma comunidade negra rural denominada “Terra de Municipal de Saúde aponta para a necessidade de
Preto”, que, segundo o antropólogo Alfredo Wagner “fortalecer as ações da Estratégia de Saúde da Fa-
Berno de Almeida, é categoria que designa “[...] mília e implementar a Estratégia de Saúde Bucal”,
aqueles domínios doados, entregues, ocupados ou destacamos ainda o objetivo de “reduzir a morta-
adquiridos, com ou sem formalização jurídica, às lidade infantil e materna” (Alcântara, 2010, p. 21).
famílias de ex-escravos a partir da desagregação Ressaltamos que citado Plano faz referência à
de grandes propriedades monoculturas” (Almeida, saúde da população negra. Em um de seus objetivos
1989, p. 168). tem por finalidade: “promover a saúde da população

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.619-630, 2016 625


negra” (Alcântara, 2010, p. 21). Em suas diretrizes, a maximização de alguns agravos que acometem as
dispõe sobre a “implementação das ações da atenção mulheres, atingindo de modo mais sensível as mulhe-
à saúde da mulher” e “implementação das ações de res negras, dadas suas condições objetivas de vida.
controle da hipertensão arterial e diabetes melli- Em relação à saúde da população negra, o Plano
tus” (Alcântara, 2010, p. 21). No entanto, a SEMUS de Saúde de 2010 tem como uma de suas metas
não dispõe de um plano operacional que detalhe as “implantar a Política Municipal de Atenção Integral
ações a serem desenvolvidas pelas equipes nessas à Saúde da População Negra”. Apesar do Plano de
comunidades. Saúde anterior (2005-2008) já ter planejadas ações
Em relação às doenças sexualmente transmis- voltadas para essa finalidade, não encontramos
síveis (DST), o Plano Municipal de Saúde, em suas nenhuma ação que nos remetesse à implementação
diretrizes, destaca a necessidade de “intensificar de política, e o atual plano ainda utiliza o termo
ações de prevenção e assistência às DST’s/AIDS. “implantação”, em um claro reconhecimento de que
Apesar das DST serem consideradas portas de en- tal Política ainda não está sendo executada.
trada para outros agravos, e do Plano Municipal de A coleta dos dados desta pesquisa foi realizada
Saúde considerar a necessidade de intensificar as durante o mês de agosto de 2011. Na oportunidade,
ações de prevenção, não identificamos nenhuma segundo documentos da Secretaria Municipal de
ação coordenada voltada para seu controle. Saúde de Alcântara, o município contava com dez
Ressalta-se que no cenário nacional essa dis- equipes do Programa Estratégia Saúde da Família.
cussão já está posta. O Estado brasileiro reconhece As equipes do referido programa são formadas
legalmente a necessidade do enfrentamento das por médicos, enfermeiros, dentistas, técnicos em
DST, do HIV e da Aids. Objetivando tal enfretamen- enfermagem e agentes comunitários de saúde. A
to, o MS instituiu, em 2007, o Plano Integrado de comunidade Castelo é uma das dez comunidades
Enfrentamento à Feminização da Epidemia da Aids atendidas pela equipe do polo Oitiua.
e outras DST, segundo o qual: A enfermeira que atua na área do polo que atende
à comunidade, está na área há quatro anos. Segundo
acredita-se que as DST estão entre as principais ela, não há um cronograma fixo de atividades para
causas relacionadas com abortos espontâneos, na- ser desenvolvidas nas comunidades da área e as
timortos, partos prematuros, baixo peso ao nascer, ações são realizadas sempre mediante solicitação
infecção congênita e perinatal, gravidez ectópica, do agente comunitário de saúde, com base na de-
infertilidades, bem como ao câncer de colo de útero manda que for identificada por esse profissional.
(Brasil, 2007a, p. 14). Ressaltamos que, conforme já citado, a SEMUS não
dispõe de um plano operacional com a descrição das
Ainda segundo o referido plano: atividades previstas para o município, nem de um
cronograma de atendimentos nas comunidades.
é necessário, ao se analisar os contextos de vul- A equipe trabalha com vários formulários, entre
nerabilidade da mulher às DST e ao HIV/AIDS, os elaborados e disponibilizados pelo MS e os ela-
considerar o recorte étnico e racial. No contexto borados pela própria SEMUS. Entre os documentos
da feminização, interiorização e pauperização de disponibilizados pelo MS estão: ficha de acompa-
epidemia, as mulheres negras e índias se encon- nhamento do hipertenso e/ou diabético; ficha de
tram em situação especialmente vulnerável, por cadastramento da gestante e ficha de registro diário
sua maior exposição às consequências da violência dos atendimentos das gestantes no SisPreNatal. Em
estrutural (Brasil, 2007a, p. 15). relação aos elaborados pela própria SEMUS, desta-
camos a ficha geral e a ficha de controle especial
A proposta do plano reconhece que as relações de de consulta.
gênero presentes historicamente na sociedade bra- No entanto, ressaltamos que essas fichas são
sileira têm contribuído de modo significativo para arquivadas separadamente. Na pasta em que são

626 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.619-630, 2016


guardadas a chamada ficha geral fica apenas este mulário. A partir das respostas obtidas concluímos
impresso. Os demais formulários ficam em outras que os profissionais não têm conhecimento profun-
pastas, à parte. Consideramos que a separação do sobre a política, sendo que um membro da equipe
do prontuário em partes pode prejudicar as ações referiu “nunca ter ouvido falar da Política”. Apesar
individuais, pois dificulta que a equipe visualize de dois dos pesquisados terem manifestado conhe-
a situação de saúde e/ou doença de cada paciente. cer a política, informaram que tal conhecimento se
Durante nossa pesquisa, nos foi repassado pela deu em outros espaços de capacitação que não os da
equipe da Estratégia Saúde da Família um total SEMUS. Todos foram unânimes em afirmar que não
de 189 fichas gerais, como sendo dos usuários de participaram de capacitações especificas voltadas
Castelo, sendo, desse total, 85 de homens e 104 de para a saúde da população negra promovidas pela
mulheres. Ao as examinar, porém, observamos que Secretaria de Saúde do município. Apesar de dois
existem na verdade 161 sujeitos cadastrados, posto profissionais afirmarem que existem ações espe-
que existem 24 pessoas, entre homens e mulheres, cíficas para as mulheres negras da comunidade,
com mais de uma ficha, em um total de 28 fichas a não as identificamos na análise dos documentos
mais. Destacamos que entre as mulheres existe uma disponibilizados pela Secretaria de Saúde.
que possui 4 fichas. Tal fato foi considerado como Em nossa pesquisa constatamos que não há
preocupante, posto que a repetição das fichas pode ações específicas voltadas para as mulheres negras
prejudicar o atendimento, pois dificulta sua conti- no povoado Castelo. Não identificamos nenhum pla-
nuidade, uma vez que cada vez que comparece ao nejamento de atividades específicas para esse grupo
serviço, o usuário é atendido com uma ficha. nos documentos disponibilizados pela Secretaria. A
O quesito cor não é coletado pelo serviço. De gestão da saúde no município trabalha com o Plano
todas as fichas examinadas, apenas a ficha de ca- de Saúde 2010-2013, o qual ainda utiliza a expressão
dastramento da gestante do Ministério da Saúde, “implantação da Política de Atenção à População
traz local indicado para coleta do quesito cor, e ainda Negra”, numa clara afirmação de que tal Política
assim, apenas em algumas fichas esse espaço está ainda não está sendo executada, apesar de o Plano
preenchido. Ressalta-se ainda que, durante nossa de Saúde anterior, de 2005-2008, já ter elencado
pesquisa, ao questionarmos por que as demais não ações voltadas para essa finalidade.
estão preenchidas, a profissional responsável pelo
preenchimento justificou que o tempo para esse pro- Considerações finais
cedimento é pouco. Ela também não foi precisa sobre
como coleta tal dado, se por autoidentificação ou não. A saúde da população negra, como política
Não identificamos em nossa pesquisa nenhuma pública nacional, é uma realidade; no entanto, cor-
ação especifica voltada para a redução da morbi- roborando o que a ainda escassa literatura (Frei-
dade e mortalidade feminina por causas evitáveis tas et al., 2011a; Marques et al., 2014) a respeito
na comunidade, como hipertensão, diabetes e/ou vem apontando, a implantação e implementação
promoção à atenção obstétrica e neonatal em todos das ações propostas na comunidade pesquisa-
os ciclos de vida, que leve em conta as caracterís- da, assim como em boa parte das comunidades
ticas raciais e étnicas desse segmento. As ações quilombolas do país, ainda não se dão conforme
propostas são as mesmas planejadas para os demais preconizam as legislações contemporâneas sobre
povoados do município. a temática (Silva, 2007).
Em nossa metodologia de trabalho, utilizamos O acesso universal e integral garantindo a eqüi-
ainda um formulário para tentar identificar o conhe- dade, conforme preconizam as legislações vigentes,
cimento que os profissionais do ESF que atendem a ainda não é uma realidade para as mulheres negras
comunidade têm sobre a PNSIPN e sua possível im- do povoado Castelo, assim como em outras comuni-
plementação no município. Três profissionais, todos dades quilombolas no Brasil (Freitas et al., 2011b;
com ensino superior completo, responderam o for- Guerrero et al., 2007). As ações e serviços de saúde

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.619-630, 2016 627


executados no povoado não levam em conta, como especificas que tratam da saúde da população negra.
deveriam, as características étnicas e raciais de A descentralização da saúde, com as chamadas leis
suas moradoras, sob o risco de negligenciar fatores orgânicas, traz aos municípios nova responsabilida-
importantes para o melhor controle de seu processo de para com seus munícipes, qual seja, o de garantir
saúde-doença. o acesso integral a esse direito. As diretrizes legais
Assim, torna-se urgente o fortalecimento de estão postas, portanto, carecendo de esforços polí-
ações, no contexto de uma intervenção que con- ticos para sua implementação.
temple as diferentes necessidades de saúde das A Lei 8080/1990 dispõe em seus objetivos que a
mulheres negras da comunidade Castelo, assegu- assistência à saúde deve ser realizada por intermé-
rando seu acesso aos serviços de saúde qualificados dio de ações de promoção, proteção e recuperação,
para a identificação das vulnerabilidades inerentes com a realização integrada das ações assistenciais
a esse segmento social, visando à atenção integral e das atividades preventivas. Tais ações devem ser
a sua saúde. dirigidas às populações de territórios bem delimi-
A atenção à saúde dessas mulheres não pode tados, considerando a dinamicidade existente no
ser realizada sem considerar sua realidade ob- território em que vivem.
jetiva, posto que se trata de um segmento que Partindo desse entendimento, o município é a
historicamente vem sofrendo as mais variadas unidade federativa que deve executar as ações da
formas de violência. atenção básica, por ser a unidade territorial de re-
Os gestores, ao implementar e operacionalizar a ferência do indivíduo. Segundo a Política Nacional
política de saúde, não devem realizá-la considerando de Atenção Básica, tais ações devem ser orientadas
as mulheres como um segmento social homogêneo pelos princípios da universalidade, da acessibilida-
e monolítico. É imprescindível que esses gestores de e da coordenação do cuidado, do vínculo e conti-
tenham a percepção de sua diversidade e a capaci- nuidade, da integralidade, da responsabilização, da
tação para o encaminhamento adequado das espe- humanização e da equidade.
cificidades de suas demandas e necessidades, sem É de responsabilidade do gestor municipal ga-
perder as diretrizes gerais do sistema. rantir a infraestrutura necessária ao funcionamen-
A Carta de 1988 representou um marco funda- to das equipes de saúde da família, de saúde bucal
mental para a ruptura com os princípios patriarcais. e das unidades básicas de referência dos agentes
São conquistas institucionais e jurídicas que refle- comunitários de saúde, dotando-as de recursos
tem o novo momento político vivido pelo movimento materiais, equipamentos e insumos, bem como de
feminista, que consagrou o preceito da igualdade capacitações, suficientes para realização das ações
legal entre homens e mulheres. No entanto, obser- propostas pelas legislações (Freitas et al., 2011b).
vamos que o amparo legal não tem dado conta das A atenção básica passou a ter a estratégia saúde
diferenças que permeiam as relações de gênero e da família como eixo prioritário para sua organi-
estruturam diferentes graus de discriminação das zação e execução de acordo com os preceitos do
mulheres. No que se refere ao acesso aos serviços de SÚS. As ações desenvolvidas pela atenção básica,
saúde, por exemplo, segundo o Plano Integrado de portanto, não podem ser consideradas como ações
Enfrentamento à Feminização da Epidemia da Aids isoladas, mas como parte de um sistema que deve
e outras DST, “há evidências de que a condição de funcionar de modo interligado.
raça/cor se converte muitas vezes em situação de Essa nova realidade impõe aos gestores munici-
exclusão” (Brasil, 2007a, p. 16). pais novas demandas por serviços, na perspectiva
A referida Constituição definiu os princípios do direito, que levem em conta a realidade dos gru-
gerais do SUS, posteriormente regulamentados pela pos atendidos. Assim, em um município no qual a
Lei 8.080/1990, e estabeleceu a direção única e as grande maioria da população é negra, e com grande
responsabilidades dos gestores em todos os níveis concentração de comunidades quilombolas, como é
do sistema, bem como pela execução das legislações o caso de Alcântara, deve-se levar essa característica

628 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.619-630, 2016


em conta ao elaborar e executar a política de saúde, BRASIL. Resolução nº 196, de 10 de outubro de
com ações e serviços que atendam às necessidades 1996. Diretrizes e normas regulamentadoras de
específicas da população negra, conforme prevê o pesquisas envolvendo seres humanos. Diário
Plano Municipal de Saúde. Uma das medidas a ser Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder
tomadas com urgência é a inclusão do quesito cor Executivo, Brasília, DF, 16 out. 1996b.
nos instrumentos de coleta de dados utilizados pelas BRASIL. Secretaria Especial de Políticas para as
equipes de saúde do município. Outra medida a ser Mulheres. Plano Nacional de Políticas para as
adotada é a realização de capacitações voltadas para Mulheres. Brasília, DF, 2004a. Disponível em:
a sensibilização dos profissionais sobre a importân- <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
cia da coleta desses dados, com metodologia a ser PNPM.pdf>. Acesso em: 5 ago. 2016.
homogeneizada e realizada com a autoidentificação
dos usuários, como forma de conhecê-los melhor BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de
e de melhorar os serviços, atendendo suas reais Atenção à Saúde. Política Nacional de Atenção
necessidades e demandas. Integral à Saúde da Mulher. Brasília, DF, 2004b.
Diante do observado em documentos disponibili- Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/
zados pela SEMUS, e tendo como base as legislações publicacoes/politica_nac_atencao_mulher.pdf>.
referentes à saúde da população negra e à saúde Acesso em: 5 ago. 2016.
da mulher, concluímos que o município convive BRASIL. Resolução nº 338, de 6 de maio de
com uma legislação universalizante, tendo como 2004. Aprova a Política Nacional de Assistência
referência o SUS, e uma realidade de prestação de Farmacêutica do Ministério da Saúde. Diário
serviços focalizados e pontuais, em que a atenção Oficial [da] República Federativa do Brasil, Poder
à saúde da mulher negra não é executada conforme Executivo, Brasília, DF, 20 maio 2004c.
preconizam as legislações vigentes. Seção 1. p. 52.
BRASIL. Ministério da Saúde. Perspectiva da
Eqüidade no Pacto Nacional pela Redução da
Mortalidade Materna e Neonatal: Atenção à
Saúde das Mulheres Negras. 2005. Disponível
Referências em: <http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/
ALCÂNTARA. Plano de Saúde Municipal (2010- perspectiva_equidade_pacto_nacional.pdf>.
2013). Alcântara: Prefeitura Municipal, 2010. Acesso em: 19 ago. 2016.
ALCÂNTARA. Plano de Saúde Municipal (2005- BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção
2008). Alcântara: Prefeitura Municipal, 2005. à Saúde. Perspectiva da equidade no Pacto Nacional
pela Redução da Mortalidade Materna e Neonatal:
ALMEIDA, A. W. B. Terras de preto, terras de santo,
atenção à saúde das mulheres negras. Brasília,
terras de índio: uso comum e conflito. Novos
DF, 2005. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov.
cadernos NAEA, Belém, v. 10, p. 163-196, 1989.
br/bvs/publicacoes/perspectiva_equidade_pacto_
BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. nacional.pdf>. Acesso em: 5 ago. 2016.
Dispõe sobre as condições para a promoção, BRASIL. Ministério da Saúde. Plano integrado
proteção e recuperação da saúde, a organização de enfrentamento à feminização da epidemia da
e o funcionamento dos serviços correspondentes aids e outras DST. 2007a. Disponível em: <http://
e dá outras providências. Diário Oficial [da] bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/plano_
República Federativa do Brasil, Poder Executivo, feminizacao_final.pdf>. Acesso em: 5 ago. 2016.
Brasília, DF, 20 set. 1990. Seção 1, p. 18055. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão
BRASIL. Constituição da República Federativa do Estratégica e Participativa. Política Nacional de
Brasil de 1988. Brasília, DF: Senado Federal, 1996a. Saúde Integral da População Negra. Brasília, DF,

Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.619-630, 2016 629


2007b. Disponível em: <http://bvsms.saude.gov. segundo a situação do domicílio e os grupos
br/bvs/publicacoes/politica_nacional_saude_ de idade – Brasil. 2000. Disponível em: <http://
populacao_negra.pdf >. Acesso em: 5 ago. 2016. www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/
censo2000/populacao/cor_raca_Censo2000.pdf>.
BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Gestão
Acesso em: 30 mar. 2014.
Estratégica e Participativa. Política Nacional de
Atenção Integral à Saúde da População Negra: IBGE − INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA
plano operativo. Brasília, DF, 2008. E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2010: tabela
1.3.1 – População residente, por cor ou raça,
CHOAIRY, A. C. C. Alcântara vai para o espaço: a
segundo o sexo e os grupos de idade: Brasil –
dinâmica da implantação do centro de lançamento
2010. 2010. Disponível em: <http://www.ibge.
de Alcântara. São Luís, MA: UFMA/Proin-CS, 2000.
gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/
FREITAS, D. A. et al. Saúde e comunidades caracteristicas_da_populacao/tabelas_pdf/tab3.
quilombolas: uma revisão da literatura. CEFAC, pdf>. Acesso em: 30 mar. 2014.
São Paulo, v. 13, n. 5, p. 937-943, 2011a.
MARQUES, A. S. et al. Atenção primária e saúde
FREITAS, D. A. et al. Mulheres quilombolas: materno-infantil: a percepção de cuidadores em
profissionais na estratégia de saúde da família. uma comunidade rural quilombola. Ciência &
Espaço para Saúde, Curitiba, v. 12, n. 2, p. 56-62, 2011b. Saúde Coletiva. Rio de Janeiro, n. 2, p. 365-371,
GUERRERO, A. F. H. et al. Mortalidade infantil 2014.
em remanescentes de quilombos do munícipio de OLIVEIRA, F. Saúde da população negra: Brasil,
Santarém – Pará, Brasil. Saúde e Sociedade, São ano 2001. Brasília, DF: Organização
Paulo, v. 16, n. 2, p. 103-110, 2007. Pan-Americana da Saúde, 2003.
IBGE − INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA SILVA, J. A. N. Condições sanitárias e de saúde em
E ESTATÍSTICA. Censo demográfico 2000: tabela Caiana dos Crioulos, uma comunidade Quilombola
1.2.1 – População residente, por cor ou raça, do estado da Paraíba. Saúde e Sociedade,
São Paulo, v. 16, n. 2, p. 111-124, 2007.

Contribuição dos autores


Viegas realizou a pesquisa e escreveu o artigo. Varga orientou o
trabalho e corrigiu o texto.

Recebido: 02/04/2014
Aprovado: 03/07/2014

630 Saúde Soc. São Paulo, v.25, n.3, p.619-630, 2016

Você também pode gostar