ANO 01 - NÚMERO 01
Revista do Colegiado de Pós-Graduação Lato Sensu em Letras
Universidade Estadual de Feira de Santana – UEFS
Departamento de Letras e Artes – DLA
RESUMO: Este artigo visa discutir as diferentes designações dadas ao lexema “diabo”. As análises, aqui
presentes, foram feitas através de uma comparação de dados coletados em entrevistas aos moradores de duas
comunidades rurais: uma no Semi-árido baiano e outra no Recôncavo. Para tanto, analisamos, primeiramente, o
conteúdo semântico dessas lexias (a palavra diabo e suas variações) e, em seguida, os fatores extralingüísticos
que influenciam essa variação, especificamente, o contexto sociocultural, mostrando como o léxico de uma
comunidade revela as suas tradições e seus valores. Em um segundo momento, verificamos como a imagem do
mal é individualizada na figura do diabo, criando no imaginário cristão uma constante batalha entre o bem e o
mal, que por seu turno, contribui para uma multiplicidade de lexias que se refere a uma mesma entidade, a qual
faz referência ao medo, ao pecado, à maldição e à morte para a alma dos que acreditam em Deus.
Palavras-chave: Diabo; Etnolinguística; Imaginário cristão; Léxico; Variação linguística
ABSTRACT: This paper discusses the different designations given to the lexeme "devil". The analyses, here
presents, were made through a comparison of data collected in interviews with residents of two rural
communities: one in the semi-arid of Bahia and the other in Reconcavo. For so much, we analysed,, first, the
semantic content of those lexias (the word devil and its variations) and soon afterwards, the extralinguistics
factors that influence this variation, specifically, the sociocultural context, showing how the lexicon of a
community reveals its traditions and values. In a second moment, we verified as the image of the evil is
individualized in the devil's illustration, creating in the Christian imaginary a constant battle between good and
badly, which in turn, contributes to a multiplicity of lexias that refers to same entity, which makes reference to
the fear, to the sin, to the curse and to the death for the soul of those that believe in God.
Keywords: Christian imaginary; Devil; Ethnolinguistic; Lexicon; Linguistic variation
1
Pós-graduanda da Especialização em Estudos Linguísticos da Universidade Estadual de Feira de Santana.
lana_santana@hotmail.com
2
Pós-graduanda da Especialização em Estudos Linguísticos da Universidade Estadual de Feira de Santana.
ruancela@yahoo.com.br
3
Pós-graduanda da Especialização em Estudos linguísticos da Universidade Estadual de Feira de Santana.
sandra_snmota@hotmail.com
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INTRODUÇÃO
O léxico, herança sociocultural de uma comunidade, é o nível linguístico que mais sofre
as transformações da língua, pois possui a capacidade de expressar a forma como uma
sociedade visualiza o mundo (OLIVEIRA, 2001). Cada membro de um grupo social, além de
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Corpus coletado na Coleção Amostras da Língua Falada no Semi-Árido Baiano, vol. 1, organizado por Norma
Lúcia F. de Almeida e Zenaide de Oliveira N. Carneiro.
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utilizar o léxico compartilhado pela sociedade em que está inserido, também faz uso de um
léxico mais restrito de acordo com o papel que exerce nessa sociedade. No âmbito
profissional, por exemplo, observam-se especificidades lexicais que dão origem a
nomenclaturas ligadas diretamente às atividades da profissão ou uso de lexias do vocabulário
geral com a atribuição de novos significados.
Os seringueiros, por exemplo, utilizam o verbo vadiar no sentido de deixar a madeira
temporariamente sem ser explorada (ISQUERDO, 2001) enquanto que o significado literal é
“andar ociosamente de uma para outra banda; vagabundear” (FERREIRA, 1986, p. 1748). A
linguagem médica, tecnológica, jurídica, entre outras, possuem termos específicos que podem
interferir em uma interação verbal caso os significados não sejam comuns entre os
interlocutores.
Quando se fala que um indivíduo, para além de fazer uso de um vocabulário
socialmente compartilhado, utiliza outro peculiar ao papel por ele exercido na sociedade, não
se pode deixar de mencionar o fator “religião” que, indubitavelmente, exerce uma influência
significativa na língua. Assim como a profissão influencia no vocabulário das pessoas, a
religião também imprime, como foi percebido no corpus observado, marcas significativas. A
partir da análise do corpus esse fenômeno pôde ser constatado, uma vez que tanto na fala de
moradores da zona rural de Anselino da Fonseca quanto na de Santo Antonio de Jesus se fez
perceptível a influência exercida pelo imaginário cristão sobre o léxico das pessoas. Tomado
como foco central para as observações, o lexema diabo pôde demonstrar a multiplicidade e
versatilidade lexical proporcionada pelo ideário cristão.
Segundo Nogueira (2000), foram os hebreus que instituíram a noção da figura do
demônio, a qual foi sendo modificada com o decorrer dos séculos. Inicialmente, não existia
para os hebreus uma necessidade de corporificar a figura do demônio, pois acreditavam que o
seu Deus (jahveh- deus tribal) era mais poderoso que os deuses das tribos vizinhas e estes já
seriam a representação maligna, a qual deveria ser combatida, “Porque o Senhor é Deus
poderoso; é Rei poderoso acima de todos os deuses. Ele reina sobre o mundo inteiro, desde as
cavernas mais profundas até os montes mais altos” (Salmos 95: 3-4).
Os diversos contatos entre os judeus e outros povos, como caldeus e persas, decorrentes
de constantes invasões e cativeiros, exerceram influência no despertar dos judeus para a
entidade maligna, pois na tradição religiosa desses povos havia o grande combate entre
figuras que representavam o bem e o mal. A partir do século II a.C. ao I d.C. são escritas
inúmeras literaturas que evidenciam essa influência “Essa literatura, onde a imaginação
rompe as barreiras canônicas, está repleta de citações relativas aos espíritos malignos que se
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Por conseguinte, não é em vão que a ideia do mal provoca, até hoje, desconforto e
receio. Nesse contexto, o diabo assume o papel nato de opositor, aquele que vem para atrair,
arrebatar, e danar suas vítimas.
Esse fenômeno de terror psicológico em face da figura do diabo, vale aqui pontuar, é
processado estrategicamente em favor da perpetuação da fé ou crença cristã. Isso porque a
imagem do mal propagada pelas caracterizações do diabo tende sempre a legitimar a figura
oposta, a saber, do bem, representada pela projeção de Deus.
Partindo dos fatos acima apontados, surge a necessidade de as pessoas que acreditam
nos dogmas cristãos, fugirem da aparência do mal, evitando-o. É nessa circunstância que as
variações para o lexema diabo surgem no vocabulário de um grupo social, figurando como
estratégia de fuga ou apagamento da entidade maligna. Nas amostras de fala observadas no
corpus em questão, foram encontrados termos como inimigo, cão, sujo, coisa ruim e até a
atípica expressão pé de cunca. Chama a atenção no uso desses termos a ampliação de
significado das palavras, fenômeno instaurador da polissemia em que os itens lexicais
assumem traços semânticos distintos do literal e denotativamente a eles atribuídos.
(...) Nós tamo em casa assim como nos tamo aqui, chega um diabo aí vem fazer... vem
nos matar aqui de... de nome... de... é de tiro, sem a gente tá fazeno nada (...)
(...) Eu não sei mai o que vou fazê pa tomá conta desses menino tudo. O quiabo que vié,
vô dá pa batizá (Inf 2)
Quiabo era o diabo, é? (Documentador – Doc)
É (Inf 2)
E por que ele chamava quiabo? (Doc)
Quem chama sou eu (Inf 2)
5
Informante 1 (Inf 1) – V.M.L
6
Informante 2 (Inf 2) – M.M.M.S.; Informante 3 (Inf 3) – B.M.S.; Informante 4 (Inf 4) – A.S.F.
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Ninguém vai se entregar pé de cunca a sem saber. Oi, eu não sei não, num sei.
Agora, pé de cunca, é o cão. [ri]. (Inf 1)
Segundo Houaiss (2001), cunca é uma espécie de tubérculo da raiz do umbuzeiro, cheio
de água, procurado por vaqueiros, caçadores e retirantes da caatinga para matar a sede. A
informante é moradora do semi-árido baiano e utiliza-se de elementos típicos da sua região
ampliando seus significados de acordo com as tradições populares que a mesma conhece. De
acordo com a crendice popular, o diabo tem os pés redondos, sendo associado à forma do
tubérculo que também é arredondado.
É percebido também que a figura do diabo carrega sempre o estigma da sujeira, da
escuridão, por isso algumas variações refletem justamente esse lado um tanto preconceituoso
dos falantes, os quais não deixam de ser estimulados pela religião cristã. No corpus analisado,
verificam-se as seguintes lexias que remetem a esse conceito:
(...) Oi, se uma pessoa se entregar ele, ele é do munturo muié! Ele mora no munturo
(...). De tanto uso, tanta disgrameira, tanta coisa, a dona do inferno diz que é uma
porcona, disse quano dá cada ronco que chega estremece. Tá indo muito, muié, é só se
entregar a eles. (Inf 1)
(...) Dr. Roque que deu o sangue ao bicho (...) fai aquelas coisa na força do bicho (...)
enrequece, tudo o que ele fai é na parte do bicho ajudano... (Inf 4)
(...) ela agora que se disser é do cão, "nós somo do cão" aí agora, que’le só faz passar a
mão... (Inf 1)
Outra lexia interessante utilizada pelos informantes é maioral. Essa palavra, segundo
Houaiss (2001), possui uma denotação de comando, aquele que apresenta superioridade, na
fala da informante mencionada, contudo, o termo aparece fazendo referência ao diabo. Fato
também percebido em outras regiões e contextos, e também apontado por Houaiss (2001),
quando diz que o lexema maioral é utilizado no estado do Ceará, como o chefe dos
demônios; na quimbanda e umbanda popular, maioral é um epíteto atribuído a Exu. Além de a
informante utilizar a palavra citada, ela mesma procura dar o significado para a lexia:
(...) maiorá...maiorá é aquele que não qué meia com nada, com Deus... (Inf 2)
3. PALAVRAS FINAIS
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(...) diz que tem, diz há de vim coisa que nós tamo sentado aqui tudo prozano, diz que
deve chegar e é só com mais e um mais. Diz que o inimigo chega aí na porta e... e:
"você é de quem”? (...) Se ela... dizer: "eu sou de Deus,” ele vem c’uma lança, pa... pa...
fura os dois ói, deixa furada aí oito dia (...) Ele chega n’outo lugar pergunta, ela agora
que se disser é do cão, "nós somo do cão" aí agora, que’le só faz passar a mão...
É justamente, para expressar essas crenças que as unidades lexicais são tomadas pelos
falantes de forma polissêmica a fim de fazer referência ao inimigo. Diante de todas essas
questões, fica aqui constatada a importância do estudo lexical para a evidenciação e
preservação de traços culturais de tais comunidades.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Norma Lucia Fernandes de; CARNEIRO, Zenaide de Oliveira Novais (Org.).
Amostras da língua falada na zona Rural de Anselino da Fonseca. v. 1. In: __________
Coleção Amostras da língua falada no semi-árido baiano. Feira de Santana: UEFS, 2008.
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Bíblia Sagrada: nova tradução na linguagem de hoje. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil,
2000.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico Nova Fronteira da língua portuguesa.
Rio de Janeiro: Nova fronteira, 1982.
CUVILLIER, Armand. Sociologia da Cultura. Trad. Leonel Vallandro. Porto Alegre: Globo;
São Paulo: Edusp, 1975.
NOGUEIRA, Carlos Alberto F. O diabo no imaginário cristão. 2. ed. Bauru: Edusc, 2002.
OLIVEIRA, Ana Maria Pinto Pires de. Regionalismos brasileiros: a questão da distribuição
geográfica. In: OLIVEIRA, Ana Maria Pinto Pires de; ISQUERDO, Aparecida Negri (Org.).
As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Grande: UFMS, 2001.