Depois de uma semana, todos já tinham estabelecidos suas rotinas. Os coturnos já
cabiam nos pés, as roupas já tinham se ajustado ao corpo. Era impressionante essa capacidade das roupas de então. Parece que elas se moldavam à pessoa. Claro, os com familiares na cidade, ou com dinheiro, os alfaiates e costureiras faziam a adaptação. A cobertura (bico-de-pato, capacete, gorro) se ajustava tanto ao dono que, encontrando a cobertura, se via o rosto dele, em baixo, como se fosse um holograma. Todos se empenhavam ao máximo na instrução individual, pois estavam ansiosos para executar as primeiras instruções de tiro, o que permitiria a que se tirasse serviço armado, isto é, com o fuzil, como os praças-velho. Nas primeiras semanas, tinham alguns trotes e brincadeiras, de gosto duvidoso, durante a “revista do recolher”. Eu tinha pena dos peões por serem, além de lentos, inocentes. Tinha cobra cega, chicote queimado e outras mais fornecidas pelas mentes criativas dos que têm alguma coisa de sádico. Já podia tirar alguma lição da nova vida. Uma, era que quartel sem cachorro não é quartel. E eles tinham simpatia por alguma atividade: uns seguiam a ordem unida, outros o pessoal que tirava serviço no paiol, outros ficavam no almoxarifado. Todos se reuniam, perto do rancho, quando os soldados entravam em forma. Outra lição era o primeiro contato com as personalidades muito diferente das que se trazia de casa. Fui notar que os valores morais eram muito flexíveis, para muitos. O que era honesto, para mim, não o era, para muitos; e já notava que aqueles que vinham de lares destroçados tinham muito mais dificuldade de separar “o meu” “do teu”. Notei que os homens urbanos eram mais corruptíveis e corrompidos que os homens rurais. Entre estes, a moral era mais forte, a palavra dada era mais importante que o papel; o nome de família, que compunha seu nome, era patrimônio mais importante que seu próprio nome. Assim, eles traziam no caráter o “sentir vergonha”. Já os urbanos se vendiam, ofereciam comprar as quebras das regras estabelecidas, a trabalhar mal, a valorizar o ócio como expressão de malandragem; banalizavam a palavra dada, traiam a camaradagem, faziam da tergiversação o comportamento diário. Assim, nas primeiras semanas, esses mais malandros começaram a cometer transgressões. Querendo ser mais malandro que pudessem ser, sempre eram desmascarados pelos sargentos que tinham anos de experiências em trato com o humano relapso. O mais importante: comecei a notar a organização. Para tudo tinha manual. Qualquer assunto da instrução tinha um manual. Para cada arma, munição, aparelho, graxa, óleo... tinha um manual. Comecei a ver os "bem-informados", entre os mais antigos: os que sempre têm uma resposta pronta em acordo com o REGULAMENTO. E como, vi e ouvi, nos anos de caserna, os que arrotavam o regulamento!!! O regulamento me fez meditar muito ao longo da vida militar. Vencido os trinta dias, os que moravam na cidade, foram para casa, incluído eu. Até hoje, meus irmãos brincam comigo, pois quando cheguei em casa me assustei: tudo me parecia tão pequeno, tão apertado, tão desajeitado: a sala, a cozinha e o meu quarto,numa casinha ao fundo. Até a cama parecia pequena. Tenho as imagens até hoje, na mente. E, mais velho, não entendo de como, em trinta dias, meu cérebro embaçou a visão que eu tinha e colocou outras imagens da proporção da minha casa. Levei uns três dias para que o cérebro ajustasse a pequenez da minha casa com o gigantismo dos pavilhões do quartel como coisas normais. Levou mais de semana até que os recalcitrantes entendessem que “hora é hora: nem antes nem depois da hora” e tinham que estar, no quartel, prontos para a formatura – “na hora da formatura”. Muitos tentavam justificar o chegar atrasado porque faltou ônibus; que a bicicleta furou o pneu; que a chuva estava muito forte; que o relógio ficou travado e não despertou (não tinham os rádios-relógios elétricos, de hoje, e do celular nem havia projeto); ou justificar o desalinho do coturno sujo porque choveu, porque tinha muita poeira, que morava longe; de que a barba estava assim porque tinha feito ontem ao deitar, porque a “gilete” era velha; ou da farda amassada porque não secou, porque não tinha carvão para esquentar o ferro-de-passar (não havia ferro elétrico). Foi onde ouvi pela primeira vez, de muitíssimas depois: “soldado é superior ao tempo”. E eu sempre acreditei nisso, ou melhor, fiz tudo para assim ser, mesmo com o sacrifício da saúde que me cobra um tributo alto, hoje, chegado à idade sex – sexagenária. Começaram a florescer as personalidades, os líderes, e os choques entre eles. Havia analfabetos muito inteligentes, que pela minha imaturidade, a mim, deixava-me estupefato e ao mesmo tempo extasiado com essas diversidades. Tinham muitos com completa descoordenação motora. Na educação física, tem um exercício que se chama polichinelo. É de execução fácil: começava da posição como em sentido (posição fundamental na linguagem da ginástica calistênica, a preconizada na época). Pois, da posição inicial saltava- se para cima o suficiente para voltar com as pernas abertas ao mesmo tempo em que os braços subiam acima da cabeça batendo as palmas das mãos; novo salto e voltava-se para a posição inicial. Esse exercício era uma diversão. Muita gente ou dava dois tapas em cima para uma abertura da perna ou duas aberturas de perna para um tapa, em cima. Outros, com completa incapacidade de guardar nomes. Na instrução de mosquetão a nomenclatura do carregador era – “carregador, tipo lâmina, para cinco cartuchos”. Tinha uma inspeção da instrução por oficiais do QG. Todos os instrutores, e todos eram sargentos, com elevado nervosismo. Como a pergunta era aleatória, aos recruta, resolveram intensificar a “decoreba” sobre os que tinham dificuldades. O mais massacrado foi um recruta de número baixo. O sargento perguntou a ele: – “oh, Número 210, que peça é essa?” – “É um carregador”, respondeu; o rosto do sargento esboçou um sinal de alívio e de satisfação e continuou o sargento: – “o nome dessa peça é...” e, ai o recruta (o 210) tascou de um fôlego só: – “é um carregador metálico tipo gilete” (associou lâmina – carregador, com gilete – lâmina de barbear). O sargento quase desmaiou; isso era quase cinco horas da tarde e a inspeção seria as sete do dia seguinte. Sobrou para mim, ir até onze horas da noite fazendo o “mocorongo” repetir o nome correto das peças do mosquetão. Tanto que eu nunca mais esqueci. Explicando. Mocorongo, na linguagem castrense, é aquela pessoa que por falta de jeito, de coordenação motora, de inteligência não consegue realizar os padrões mínimos das atividades militares. A maioria deles vai para o rancho como auxiliar de cozinha. Na época, os fogões eram à lenha. Então, todos os dias tinham os cortadores de lenha. Uma vez por mês, um caminhão ia ao longo das estradas ou em lavouras recém-formadas para apanhar lenha. Era tanto cerrado que lenha era farta. Mas, os mocorongos eram muito discriminados, na linguagem de hoje. Rejeitado, mesmo. Pelo dicionário, de forma pejorativa, é: caipira, mulato, alguém de pouca instrução e também quem nasce em Santarém, Pará. Fico com minha observação, para consumo castrense. O cerimonial do rancho era divertido. Quem chegasse até o primeiro terço da companhia, tinha garantido a “répe” (regressão de repetir), isto é, poderia “repetir” o almoço. A gula dos dezenove anos é algo assustador, mas lógico e os olhos eram maiores que a barriga ou que a necessidade de alimento, somados com os maus hábitos de casa. Mas, também requeria que se comesse rápido. Isso teve enorme influência em minha vida. Nos tempos de Cadete foram sensacionais. Nunca passei fome por “ações do inimigo” na hora do almoço. Mas, hoje, o tempo que paro para as refeições parece que estou perdendo tempo com alguma coisa pouco importante. Até hoje, cinco minutos, para uma refeição, é muito tempo. Havia uns “vivos” que levantavam de madrugada, mais ou menos as três e meia ou quatro da madruga, para auxiliar o rancheiro acender o fogo, fazer o café, buscar o pão na padaria da subsistência (pão feito por um quartel), cortar o pão e passar margarina. A bisnaga do pão dava três pedaços. Cada pedaço seria dois pães de cinquenta gramas, de hoje. Mas, essa grande solidariedade com o rancheiro não era gratuita. Era para ganhar um pão com margarina para lanche ou merenda durante o dia. Fiquei muitas vezes indignado com a comida mal feita. Reclamava sempre da salada de tomate, fruto que sempre gostei. Como tinha um cozinheiro, amigo da família, fui incisivo com ele. Num dia chuvoso, a instrução estava prejudicada. E o amigo conseguiu com o instrutor me requisitar para ajudar no rancho. Foi logo dizendo: – “aqui está a faca, ali três caixa de tomates; são oito horas e a salada tem que ficar pronta até às dez e meia, no máximo”. Então pensei: “vou cortar bem fininho para mostrar a esses rancheiros que eles são preguiçosos e relaxados”. Abri a primeira caixa, tirei a tampa, lavei a tampa da caixa e a fiz de aparadouro para cortar os tomates. Ás nove horas eu tinha cortado apenas meia caixa. Passou o rancheiro amigo e disse: – “nessa marcha, você não cumprirá a missão... aperte pé” (na linguagem da terra quer dizer: “acelere”). Comecei a cortar em pedaços mais graúdos. Às dez horas, ainda faltava uma caixa completa. Tive que apelar: colocava os tomates “em forma” (em fila) e batia a faca como estivesse desgalhando mato. Tinha tomate cortado de todo jeito: pela metade, de lado, em comprido, apenas lascado... Entreguei o tomate, às dez e meia e, já como castigo, tive que temperá-lo: sal e óleo de caroço de algodão (óleo de soja ainda não era usado). Errei o sal. A soldadesca reclamou bastante. E o rancheiro ficou uma fera comigo. Foi uma grande lição: antes de reclamar de qualquer coisa, por mais singela que seja, veja como é feita, com que recurso, com que tempo... Sobre o rancho também tem uma história bem tenebrosa. Nunca vi tanta mosca num lugar como ali. Mas era muita mosca. O Subtenente mandava borrifar quase um litro de inseticida com bomba de flitz ou flits ou flit (não sei se o nome é pelo inventor da bomba ou se pela marca do veneno, que passou usar tal bomba) todos os dias, antes do almoço. Ainda tinha um apetrecho com luz azul e com fios eletrizados que era para eliminar moscas. A luz atraia a mosca e os fios a eletrocutavam. A mim, de extrema inutilidade. Mas, a panela de feijão era sempre a mais fumegante e a maior. No início de servir a comida, levantava um rolo de vapor, muito denso, que atingia o teto. E aí era uma festa: cada mosca que passava voando era morta pelo vapor quente e caia no feijão. Moral da história: quem viesse do meio para o fim da Companhia para almoçar, ao ser servido de feijão, encontrava grande quantidade de mosca no feijão. Mas era muita mosca, mesmo. Ao afundar a concha, tinha que balançar de um lado para outro para tirar a camada, a nata de mosca morta, sobre o feijão. Para os mais sensíveis, era nojento e não comiam feijão. Todo o rancho buscava uma solução: como eliminar tanta mosca. Até que um filho de Deus, recruta, achou o foco e deu a solução. Na descrição das instalações foi dito que ao lado do rancho ficava o campo de futebol. Entre o rancho e o campo, além de uma cerca de arame farpado, havia uma rampa, pois havia uma diferença de nível de aproximadamente um metro ou mais. Pois bem, os rancheiros jogavam a borra de café, do coador, atrás do rancho e na rampa do campo. A prática parecia ser de anos, pois havia uma enorme camada de borra velha e já se estendia por uns vinte ou trinta metros. Aí, o recruta, num dia de faxina disse: – “as moscas são criadas debaixo dessa borra”. O meu grupo estava capinando exatamente as rampas. O sargento encarregado mandou que, eu e outro soldado, escarafunchássemos a borra. Não deu outra coisa: milhões de larva, mas muitas larvas brancas. Inacreditável a quantidade de larvas. A solução do recruta: – “vamos cavar uma fossa e enterrar todas essa borra”. Logo, chamaram o Subtenente e ele solicitou dois voluntários para fazer a fossa. Perguntei à ele quantos dias daria para fazer a fossa. Ele chutou: – “cinco dias, topa”? Consultei um outro recruta, bom de serviço, e topamos. Era uma sexta-feira. Trabalhamos sábado e domingo e ganhamos de segunda a sexta da semana seguinte. Depois o Subtenente reclamou que foi enganado. Na verdade ele “se enganou-se a si mesmo”. Mas, foi a solução: as moscas diminuíram, rapidamente. Colocaram as borras na fossa e em seguida ensoparam com óleo diesel e atearam fogo. Os resíduos do rancho, em particular o de café, foram lá colocados e sempre cobertos com cal virgem. A panela de feijão, penhoradamente, agradeceu. Mas, todos os dias eu me lembrava de que eu estava ali para cumprir meu serviço militar inicial. Meu objetivo era dar baixa na “primeira baixa” e, em dezembro, e assim em janeiro seguir para São Paulo. Terminado o internato, tratei de garantir a matrícula. Senti que teria problemas. Era a escala de serviço. Era apertada. De dois em dois dias se estava de serviço. Eu morava cerca de três quilômetros do quartel. Saia às cinco e meia e, as seis, com folga já estava em casa. Não podia esperar o “boião do quartel” porque me atrasaria. Tomava o banho, e quando tinha, comia o arroz do dia. Por isso disse antes: a comida do quartel era melhor que a de casa, no mínimo da minha casa. Tinha que ir de “farda de passeio”. De casa ao colégio tinha mais ou menos uns quatro quilômetros. Em “marcha forçada” eu levava de trinta a trinta e cinco minutos. Portanto, tudo muito cronometrado: saída do quartel às cinco e meia da tarde, no máximo; saída de casa as seis e quinze, seis e vinte da tarde, para chegar ao colégio às sete. A linha de ônibus era de hora em hora e também não havia dinheiro para isso. Se encontrasse amigos não podia bater papo para não chegar atrasado. Mortal era em dias de chuva. Quantas vezes, cheguei literalmente ensopado. O monitor escolar, meu conhecido do campeonato varzeano, me quebrava o galho: eu perdia um tempo de aula enquanto a roupa escorria embora ficasse molhada de modo a não molhar a sala. O monitor também abria o portão para eu entrar mesmo depois de fechado, pois ele sabia de onde eu vinha e o atraso era sempre justo; como ele mesmo disse: se você chegou até aqui é porque não veio brincar, deu azar e se atrasou. E a Volta? Ruas escuras, ruas sem pavimento, enxurrada vermelha da argila laterítica... muitos escorregões, muitos tombos, muita roupa suja... Em casa, eu lavava o sapato e retirava o barro mais grosso e deixava tudo de molho para a mãe, no dia seguinte terminar de lavar e tentar secar a roupa, pois seria a mesma no final da tarde. Algumas vezes ela teve que secar a túnica com ferro de passar. No colégio dei o meu primeiro fiasco. Na instrução de “Continência e Sinais de Respeito”, tudo constando de um regulamento – R3, me disseram que, ao ouvir o Hino Nacional, eu deveria fazer a continência regulamentar. E disseram que isso só era feito em cerimônias oficiais. Mas, por acaso, no colégio não é cerimônia e não é oficial sendo um dia cívico? Para os entendedores de regulamento isso não é cerimônia oficial. Incluído aí o diretor que era oficial QOA da reserva. Não tive dúvida: começamos a cantar e eu não só cantava muito alto, pois tinha orgulho daquilo tudo, como também fazia minha continência. Eu fardado, é claro. Um monte de militares à paisana, à meia boca, me mandando desfazer a continência. Agüentei firme. Fiquei até o final. Terminado o hino, seguimos para as salas de aula. O diretor, como dito, militar da reserva, me chamou e repetiu a baboseira, mas elogiou a determinação de continuar, mesmo errado, para ele, mas convicto. Os sinais de respeito mudaram bastante de lá até eu ir para a reserva como coronel. Mas até hoje, para mim, colégio em formatura, dia cívico é cerimônia oficial. E todo bicho de cabelo e unha que veste farda faz continência – do início ao fim do hino. E assim creio até hoje.