LIVRO 03 - Movimentos Negros, Pensamento, História e Resistências

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Paulo Vinicius Baptista da Silva

Nathalia Savione Machado


Neli Gomes da Rocha (orgs.)

MOVIMENTOS NEGROS, PENSAMENTOS, HISTÓRIA E RESISTÊNCIA

Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


NEGRAS ESCREVIVÊNCIAS,
INTERSECCIONALIDADES E ENGENHOSIDADES:
MOVIMENTOS NEGROS, PENSAMENTO,
HISTÓRIA E RESISTÊNCIAS

2021
UNIVERSIDADE FEDERAL DO ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA
PARANÁ - UFPR DE PESQUISADORES/AS
REITOR NEGROS/AS - ABPN
Ricardo Marcelo Fonseca DIRETORIA
GESTORES 2020-2022
VICE-REITORA PRESIDENTE
Graciela Bolzón de Muniz Prof. Dr. Cléber Santos Vieira

SUPERINTENDÊNCIA DE INCLUSÃO, SECRETÁRIA EXECUTIVA


POLÍTICAS AFIRMATIVAS E Profa. Dra. Silvani dos Santos Valentim
DIVERSIDADE
Paulo Vinicius Baptista da Silva DIRETOR DE RELAÇÕES INSTITUCIONAIS
Prof. Dr. Delton Aparecido Felipe
COORDENAÇÃO DE POLÍTICAS
AFIRMATIVAS DIRETORA DE RELAÇÕES
Nathalia Savione Machado INTERNACIONAIS
Profa. Dra. Maria Malcher
NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO-
BRASILEIROS DIRETORA DE ÁREAS ACADÊMICAS
Megg Rayara Gomes de Oliveira Profa. Dra. Vera Rodrigues

UNIVERSIDADE ESTADUAL DE
INSTITUTO FEDERAL DO PONTA GROSSA – UEPG
PARANÁ - IFPR REITOR
REITOR Miguel Sanches Neto
Odacir Antonio Zanatta
VICE-REITOR
PRÓ-REITOR DE EXTENSÃO, PESQUISA, Everson Augusto Krum
PÓS-GRADUAÇÃO E INOVAÇÃO
Marcelo Estevam PRÓ-REITORA DE ASSUNTOS
ESTUDANTIS - PRAE
DIRETORA DE EXTENSÃO, ARTE Ione da Silva Jovino
E CULTURA E COORDENADORA
DO NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO- COORDENADORIA DE COMUNICAÇÃO
BRASILEIROS E INDÍGENAS SOCIAL - CCOM
INSTITUCIONAL Luciane Silva Navarro
Mônica Luiza Simião Pinto
NUREGS - NÚCLEO DE RELAÇÕES
ÉTNICO-RACIAIS, DE GÊNERO E
SEXUALIDADE
Aparecida de Jesus Ferreira
COORDENAÇÃO EDITORIAL DO NEAB UFPR
Paulo Vinicius Baptista da Silva

CONSELHO EDITORIAL DO NEAB UFPR


Dr. Acácio Sidinei Almeida Santos – UFABC
Dr. Alex Ratts – UFG
Dr. Alexsandro Rodrigues - UFES
Dr. Ari Lima – UNEB
Dra. Aparecida de Jesus Ferreira – UEPG
Dra. Conceição Evaristo – Escritora
Dr. Eduardo David de Oliveira – UFBA
Dra. Eliane Debus – UFSC
Dra. Florentina da Silva Souza – UFBA
Dr. José Endoença Martins – FURB
Dra. Lucimar Rosa Dias – UFPR
Dr. Marcio Rodrigo Vale Caetano – UFRG
Dr. Moisés de Melo Santana – UFRPE
Dra. Nilma Lino Gomes – UFMG
Dra. Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva – USFCAR
Dra. Wilma Baía Coelho – UFPA

PROJETO GRÁFICO
Beatriz Vieira de Oliveira

DIAGRAMAÇÃO
Catalogação na Fonte: Sistema de Bibliotecas, UFPR
Brenda M. L. O. dos Santos
Biblioteca de Ciência e Tecnologia

N385 Negras escrevivências, interseccionalidades e engenhosidades : movimentos negros, pensamento,


história e resistências /. – XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/ as Negros/as, 9 a
12 de novembro de 2020. – Organização : Paulo Vinicius Baptista da Silva, Nathalia Savione
Machado, Neli Gomes da Rocha ... [et al.]. – Curitiba : Universidade Federal do Paraná, 2020.

726 p. : il., color.


[ Livro 3 ].
ISBN: 978-65-86233-79-7 [Recurso eletrônico].
Inclui bibliografias.

1. Negros. 2. Pesquisadores. 3. Cultura Afro-Brasileira. 4. Negros - direitos fundamentais.


5. Relações étnicas. 6. Feministas negras. 7. Relações raciais. I. Universidade Federal do Paraná.
II. Instituto Federal do Paraná - IFPR. III. Universidade Estadual de Ponta Grossa - UEPG.
IV. Associação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as - ABPN. VI. Título.

CDD: 320.5408996

Bibliotecária: Vanusa Maciel CRB- 9/1928


XI COPENE - CONGRESSO BRASILEIRO DE PESQUISADORES/
AS NEGROS/AS

CURITIBA - PARANÁ
9 a 12 de novembro de 2020

COORDENAÇÃO GERAL - XI COPENE


Prof. Dr. Paulo Vinicius Baptista da Silva - (SIPAD e NEAB-UFPR)
Profa. Dra. Nicéa Quintino Amauro (ABPN)
Profa. Dra. Megg Rayara Oliveira - (NEAB-UFPR)
Profa. Ms. Nathalia Savione Machado (SIPAD-UFPR) Infraestrutura online
Profa. Ms. Neli Gomes da Rocha (ABPN) - Produção Executiva Local

COORDENAÇÃO COMISSÃO CIENTÍFICA


Aparecida de Jesus Ferreira - NUREGS / UEPG
Eliane Santana Dias Debus - UFSC
Megg Rayara Oliveira - NEAB / UFPR

COMISSÃO CIENTÍFICA
Agradecemos a cada pessoa do Comitê Científico pela emissão dos pareceres as diversas
modalidades de trabalhos submetidos
Abrahao De Oliveira Santos, Acácio Sidinei Almeida Santos, Adilbênia Freire Machado,
Adilson Pereira Dos Santos, Adna Candido De Paula, Adriana Inês De Paula, Adriana Marques
De Andrade, Adriana Soares Sampaio, Agnes Raquel Camisao, Aguinaldo Rodrigues Gomes,
Ahyas Siss, Ailton Mario Nascimento, Alaerte Leandro Martins, Alan Augusto Moraes
Ribeiro, Alcione Correa Alves, Aldia Mielniczki De Andrade, Aleksandra Menezes De Oliveira,
Alessandra Pio Silva, Alexander Cavalcanti Valença, Alexandre Da Silva, Alexandre De
Oliveira Fernandes, Alexandre Do Nascimento, Alexandre Pinheiro Braga, Alexandre Ribeiro
Neto, Alexsandro Do Nascimento Santos, Alexsandro Eleotério Pereira De Souza, Alline
Aparecida Pereira, Amanda Motta Castro, Amarildo Ferreira Júnior, Amauri Mendes Pereira,
Ana Beatriz Sousa Gomes, Ana Cristina Conceição Santos, Ana Dindara Rocha Novaes, Ana
Lidia Cardoso Do Nascimento, Ana Lúcia Goulart De Faria, Ana Lucia Silva Souza, Ana Maria
Carvalho Dos Santos, Ana Paula Procopio Da Silva, Analise De Jesus Da Silva, Anamaria
Prates Barroso, Andrea Mazurok Schactae, Andréa Pires Rocha, Andrea Rosendo da Silva,
Andresa De Souza Ugaya, Andressa Queiroz Da Silva, Angela Maria De Souza, Angela Moraes
Cordeiro Sena, Anna M. Canavarro Benite, Anny Ocoró Loango, Antonio Donizeti Fernandes,
Aparecida De Jesus Ferreira, Aparecido Vasconcelos De Souza, Ariana Kelly Dos Santos,
Basilele Malomalo, Benedito De Sales Santos, Benjamin Xavier De Paula, Bianca Cristina Da
Silva Trindade, Bruna Ribeiro Troitinho, Bruno Camilloto, Camila Daniel, Carlos Alberto
Ivanir Dos Santos, Carlos Benedito Rodrigues Da Silva, Carlos Henrique Ònà Veloso, Carlúcia
Maria Silva, Carmelia Aparecida Silva Miranda, Carolina De Paula Teles Duarte, Carolina
Maria Costa Bernardo, Caroline Felipe Jango Da Silva, Cassiane De Freitas Paixão, Catia
Regina Gutman, Cicera Nunes, Cintia Cardoso, Clarice Martins De Souza Batista, Claudemira
Vieira Gusmão Lopes, Claudete De Sousa Nogueira, Claudete Ribeiro De Araujo, Claudia
Cristina Ferreira Carvalho, Claudia Regina Vieira, Cleber Santos Vieira, Cleide Maria De
Mello, Clélia R. S. Prestes, Cloris Porto Torquato, Cristiane Luiza Sabino De Souza, Cristiane
Maria Ribeiro, Cristiane Sousa Da Silva, Cristiano Dos Santos Rodrigues, Cristina Maria
Arêda-Oshai, Dagoberto José Fonseca, Dalva De Cássia Sampaio Dos Santos, Dalzira Maria
Aparecida, Damaris Bento, Daniara Thomaz Fernandes Martins, Daniela Fagundes Portela,
Daniela Ferrugem, Danilo Luiz Marques, Dayse Cabral De Moura, Débora Alfaia Da Cunha,
Débora Cristina De Araújo, Débora Cristina De Araújo, Debora Cristina Jeffrey, Deivison
Moacir Cezar De Campos, Dejair Dionísio, Delma Josefa Da Silva, Delton Aparecido Felipe,
Denilson Araújo De Oliveira, Denis Moura De Quadros, Denise Maria Soares Lima, Desirée
Francine Dos Santos, Deusa Maria De Sousa, Diléia Aparecida Martins, Diogo Pereira Matos,
Dulce Maria Pereira, Dyego De Oliveira Arruda, Ecivaldo De Souza Matos, Edilene Machado
Pereira, Edimara Gonçalves Soares, Edimilson Antonio Mota, Edineia Tavares Lopes, Edna
Maria De Araujo, Edna Sousa Cruz, Eduardo David De Oliveira, Eduardo Oliveira Miranda,
Eduardo Quintana, Edwin Pitre-Vásquez, Elcimar Simão Martins, Elenita Maria Dias De
Sousa Aguiar, Eliana Cristina Pereira Santos, Eliane Santana Dias Debus, Elisângela De Jesus
Santos, Elison Antonio Paim, Elizabeth De Jesus Da Silva, Ellen Gonzaga Lima Souza, Emanoel
Luís Roque Soares, Emãnuel Luiz Souza E Silva, Emerson Urizzi Cervi, Erica Portilho, Ernane
José Xavier Costa, Estela Carvalho Benevenuto, Eudaldo Francisco Dos Santos Filho, Evandro
Nunes De Lima, Everton Neves Dos Santos, Fabiana De Pinho, Fábio Lucas Da Cruz, Fábio
Macedo Velame, Fany Serafim Nascimento, Fernanda Fares Lippmann Trovão, Fernando
Jorge Pina Tavares, Fernando Luiz Monteiro De Souza, Flávia De Jesus Damião, Flavia Gilene
Ribeiro, Flávia Paola Félix Meira, Flávia Rodrigues Lima Da Rocha, Flávio Santiago, Franciane
Conceição Da Silva, Francisco Antonio Nunes Neto, Gabby Hartemann, Gabriel Nascimento
Dos Santos, Gabriel Swahili Sales De Almeida, Giane Vargas Escobar, Gilberto Ferreira Da
Silva, Gislaine Gonçalves, Giverage Alves Do Amaral, Gracyelle Costa Ferreira, Grazielly
Alves Pereira, Gustavo Pinto Alves Da Silva, Halina Macedo Leal, Helena Do Socorro Campos
Da Rocha, Heloisa Helena De Oliveira Santos, Henrique Cunha Junior, Iamara Da Silva Viana,
Ilka Boaventura Leite, Ilzver De Matos Oliveira, Ione Da Silva Jovino, Iraneide Soares Da
Silva, Irapoan Nogueira Filho, Iris Maria Da Costa Amâncio, Irislane Pereira De Moraes, Isis
Aparecida Conceição, Itacir Marques Da Luz, Ivo Pereira De Queiroz, Ivonete Da Silva Lopes,
Izanete Marques Souza, Jalber Luiz Da Silva, Janaina De Azevedo Corenza, Jaqueline Gomes
De Jesus, Jefferson Gustavo Dos Santos Campos, Jeusamir Alves Da Silva (Tata Ananguê),
Joana Célia Dos Passos, Joana D'arc De Oliveira, Joanice Santos Conceição, João Batista De
Jesus Felix, João Ricardo Bispo Jesus, Jocenildes Zacarias Santos, Joelma Rodrigues Da Silva,
Jonathan Da Silva Marcelino, Jorge Augusto De Jesus Silva, Jorgete Maria Portal Lago, Josafá
Moreira Da Cunha, Josane Dos Santos Oliveira, Josaniel Vieira Da Silva, José Antonio Novaes
Da Silva, José Bonifácio Alves Da Silva, Jose Da Cruz Bispo De Miranda, José Humberto
Rodrigues Dos Anjos, José Nilton De Almeida, José Rivair Macedo, José Valter Pereira,
Joselina Da Silva, Josiane Silva De Oliveira, Juliana Silva Santos, Juliete Da Paixão Vidal, Júlio
César Da Rosa, Julio Claudio Da Silva, Jurema Oliveira, Jussara Alves Da Silva, Kabengele
Munanga, Karina Klinke, Karla Dos Santos Guterres Alves, Kassandra Da Silva Muniz, Katia
Regina Da Costa Santos, Kênia Gonçalves Costa, Kleber Aparecido Da Silva, Laysmara
Carneiro Edoardo, Leandro Passos, Leonardo Lacerda Campos, Leonor Franco De Araujo,
Letícia Carolina Pereira Do Nascimento, Lorena Francisco De Souza, Lourenço Da Conceição
Cardoso, Luana Carla Martins Campos Akinruli, Lucia De Fatima O De Jesus, Lucia Helena
Xavier, Lucia Maria Barbosa Lira, Luciana Alves, Luciana Venâncio, Luciane Ribeiro Dias
Gonçalves, Luciano Mendes De Jesus, Luciene Araújo De Almeida, Lucimar Felisberto Dos
Santos, Lucimar Rosa Dias, Luena Nascimento Nunes Pereira, Luís Carlos Ferreira Dos
Santos, Luis Thiago Freire Dantas, Luiz Alberto De Lima Leandro, Luiz Carlos Vieira Tavares,
Luiz Sanches Neto, Luiza Nascimento Dos Reis, Luiza Rodrigues De Oliveira, Luzia Aparecida
Ferreira, Magali Da Silva Almeida, Maicom Souza E Silva, Mailsa Carla Pinto Passos, Márcia
Basília De Araújo, Marcia Cabral Da Costa, Márcia Lúcia Anacleto De Souza, Marcio Hollosi,
Marco Aurelio Barbosa, Marcos Antônio Alexandre, Marcos Dos Santos Santos, Marcus
Vinicius De Freitas Rosa, Margarida De Cássia Campos, Maria Albenize Farias Malcher,
Maria Alice Rezende Gonçalves, Maria Anória De Jesus Oliveira, Maria Aparecida De Matos,
Maria Aparecida Rita Moreira, Maria Cecília De Paula Silva, Maria Clareth Goncalves Reis,
Maria Cláudia Chantre Costa Cardoso, Maria Da Conceicao Dos Reis, Maria Das Graças
Gonçalves, Maria De Fátima Lima Santos, Maria De Fátima Matos De Souza, Maria Do
Socorro Da Costa Coelho, Maria Ester Ferreira Da Silva Viegas, Maria José De Jesus Alves
Cordeiro, Maria Luísa Pereira De Oliveira, Maria Margarete Santos Benedicto, Maria Nilza
Da Silva, Maria Simone Euclides, Maria Teresa Sánchez Alcolea, Mariana Aparecida Dos
Santos Panta, Mariana Bracks Fonseca, Mariana Gino, Marilu Márcia Campelo, Marina
Pereira De Almeida Mello, Maristela Abadia Guimarães, Marizete Gouveia Damasceno,
Marli De Azevedo, Marlina Oliveira Schiessl, Marluce De Lima Macêdo, Marta Regina Dos
Santos Nunes, Mary Francisca Do Careno, Mary Valda Souza Sales, Mauricio Macedo Vieira,
Megg Rayara Gomes De Oliveira, Michele Guerreiro Ferreira, Miguel ngelo Silva De Melo,
Míriam Cristiane Alves, Moises Melo Santana, Mônica Helena Harrich Silva Goulart,
Monique De Carvalho Cruz, Nádia Cardoso, Nadson Vinícius Dos Santos, Nailza Da Costa
Barbosa Gomes, Natalino Neves Da Silva, Nathalia Savione Machado, Nedy Bianca Medeiros
De Albuquerque, Nelia Aparecida Da Silva Cavalcante, Neli Gomes da Rocha, Nicéa Quintino
Amauro, Nilvaci Leite De Magalhães Moreira, Nubia Regina Moreira, Olindina Serafim
Nascimento, Osvaldo Martins De Oliveira, Otair Fernandes De Oliveira, Patricia Marinho De
Carvalho, Patricia Martins, Paulo Alberto Dos Santos Vieira, Paulo Fernando Soares Pereira,
Paulo Henrique Barbosa Silva, Paulo Roberto Cardoso Da Silveira, Paulo Vinicius Baptista Da
Silva, Paulo Vitor Palma Navasconi, Pedro Barbosa, Piedade Lino Videira, Priscila De Oliveira
Xavier Scudder, Priscila Elisabete Da Silva, Queila Batista Dos Santos, Rayane Noronha
Oliveira, Reginaldo Conceição Da Silva, Reginaldo Ramos De Britto, Reinaldo Da Silva
Guimarães, Renata Giovana De Almeida Martielo, Renata Gonçalves, Renato Noguera,
Renê Marcelino Da Silva Junior, Renilda Aparecida Costa, Ricardo Matheus Benedicto,
Richard Christian Pinto Dos Santos, Roberta Brasilino Barbosa, Roberta Da Silva Gomes,
Roberto Carlos Da Silva Borges, Roberto Gonçalves Barbosa, Rodrigo Pedro Casteleira,
Rodrigo Portela Gomes, Rosa Margarida De Carvalho Rocha, Rosana Machado De Souza,
Rosangela Ferreira De Souza Queiroz, Roselete Fagundes De Aviz, Rosemberg Ferracini,
Rosilene Silvia Santos Da Costa, Rute Ramos Da Silva Costa, Rutte Tavares Cardoso Andrade,
Samuel Silva Rodrigues De Oliveira, Sandra Aparecida Da Silva, Sandra Maria Cerqueira Da
Silva, Sandra Regina Leite De Campos, Sara Da Silva Pereira, Sarita Faustino Dos Santos,
Sátira Pereira Machado, Selma Maria Da Silva, Sergio Da Silva Santos, Sérgio Luís Do
Nascimento, Sérgio Nunes De Jesus, Sérgio Pereira Dos Santos, Silvana Carvalho Da Fonseca,
Silvani Dos Santos Valentim, Silvio Cezar De Souza Lima, Simone Cristina Reis Conceição
Rodrigues, Sirlene Ribeiro Alves Da Silva, Sônia Beatriz Dos Santos, Sulamita Rosa Da Silva,
Tales Willyan Fornazier Moreira, Tharine Louise Gonçalves Caires, Thatianny Alves De Lima
Silva, Thiago Lima Dos Santos, Túlio Henrique Pereira, Valéria Correia Lourenço, Valéria
Gomes Costa, Valéria Gomes Costa, Vanderlei Serafin Antunes, Vera Marcia Marques
Santos, Vera Regina Rodrigues Da Silva, Vilma Patricia Santana Silva, Viviane Gonçalves
Freitas, Walker Douglas Pincerati, Wanderson Flor Do Nascimento, Willian Robson Soares
Lucindo, Wilma de Nazaré Baía Coelho, Wilson Roberto De Mattos, Yone Maria Gonzaga,
Zâmbia Osorio Dos Santos, Zelinda Dos Santos Barros, Zilda Martins Barbosa.

CONNEABS (GESTÃO 2020-2022)


Coordenação Nacional
Maria Malcher - coordenadora
Profa. Dra. Iraneide Soares (Vice-coordenadora nacional)
Região Norte
Profa. Dra. Renilda Aparecida Costa (Coordenadora)
Prof. Dr. Mauro Torres Siqueira (vice-coordenação)
Região Nordeste
Prof. Dr. Antônio Baruty (Coordenador)
Profa. Me. Izanete Marques Souza (vice-coordenação)
Região Centro-Oeste
Profa. Dra. Claudia Cristina Ferreira de Carvalho (Coordenadora)
Prof. Dr. Marysson Jonas Rodrigues Camargo (vice-coordenação)
Região Sudeste
Prof. Dr. Ricardo Dias da Costa (Coordenador)
Profa. Me. Rosana Machado de Souza (vice-coordenação)
Região Sul
Profa. Dra. Megg Rayara Gomes de Oliveira (Coordenadora)
Prof. Me. Eráclito Pereira (vice-coordenação)
CONSELHO FISCAL DA ABPN
Profa. Me. Laurenir Santos Peniche; Profa. Dra. Patrícia Gomes Rufino Andrade; Prof. Dr.
Reinaldo dos Santos.

COORDENAÇÃO COMUNICAÇÃO DA ABPN


Prof. Dr. Deivison Moacir Cezar de Campos - Ulbra
Agex – Agência Experimental de Comunicação Integrada – Ulbra
Thais Souza – Criação
Fátima Giuliano - Coordenação

COMISSÃO DE COMUNICAÇÃO
Andréa Rosendo da Silva - USP
Andressa Ribeiro - UFPR
Beatriz Vieira de Oliveira - UFPR
Camille Bropp Cardoso - UFPR
Daniel Alexsander Silva da Luz
Daniele Aparecida de Lima Taques (audiovisual) - UFPR
Débora Ribeiro - UFPR
Deivison Moacir Cezar de Campos - Ulbra
Diego Dias Da Silva - UEMS
Felipe Ferreira Alves (audiovisual) - UFPR
Gabriel Muxfeldt Siqueira- UFPR
Judit Gomes da Silva – UFPR
Juliana Ertes Santos - UFPR
Letícia Rocha Portela - UFPR
Lorenzzo Henrique de Paula Gusso - UFPR
Marina de Arruda Alencar - UFPR
Mateus Camilo dos Santos (audiovisual) - UFPR
Matheus de Castro Borsato - UFU
Naiara Caroline dos Santos Neves - UNIFESP
Sara da Silva Pereira - NEAB/UFPR e NEABI/UFAC
Sérgio Luis do Nascimento- PUCPR
Tainara dos Santos Alexandre- UFPR
Thiago Henrique Borges Brito - UFOP
COMISSÃO DE CULTURA
Ana Lucia Mathias Fernandes Coelho - Profa. da Educ. Básica e NEAB/ UFPR
Benedito Isidoro Diniz - Produtor Cultural (Externo)
Celso Luiz Prudente – UFMT e IEL/UNICAMP
Edwin Ricardo Pitre Vásquez - UFPR – Deartes
Gabriel Arruda - Trancista
Larissa Nepomuceno Moreira - UFPR
Mariana Silva Souza - UFPR
Régis Rodrigues Elisio- UFU
Ronaldo Feitosa - COC/PROEC
Vanderlei Serafin Antunes - UFPR

COMISSÃO DE EDITAIS
Kelvy Kadge Oliveira Nogueira - UFPR
Flávia Rodrigues Lima da Rocha - UFAC
Graciele Alves Babiuk - UFPR

REPRESENTAÇÕES DOS MOVIMENTOS SOCIAIS NEGROS E CULTURAIS DO PARANÁ


Aline Di Giuseppe – UFPR
Amanda Mendes de Lima - Centro Universitário Curitiba – Unicuritiba
Ana Paula Romani – UFPR
Benedito I. Diniz – ARTISTA
Brenda Santos - UM BAILE BOM
Dalzira Maria Aparecida - Ile Asè Ojubo Ògún – Associação Cultural Omo Ayê
Carine Rossane Piassetta Xavier - IFPR- Colombo
Edna Aparecida Coqueiro - SEED
Galindo Pedro Ramos - SEED
Glaucia Pereira do Nascimento – UFPR
Jane Marcia Madureira Arruda –
Joyce Luciane Correia Muzi - IFPR/UFPR
Kamylla dos Santos - Grupo Baquetá
Luis Carlos dos Santos - APP Sindicato e CONSEPIR
Kênia Cristina Libero Robertina Ramos - Coletivo Ero Ere
Nei Luiz Moreira De Freitas - OAB/PR
Paulo Borges - ACNAP
Pedro Gonçalves – UFPR
Suelen Matos – UFPR
Vanderlei Serafin Antunes - UFPR
Záire Osório Dos Santos – UFPR
Livraria Vertov
Fórum Permanente de Educ. e Diversidade Étnico-Racial (FPEDER-PR)
COMISSÃO DE INSCRIÇÃO
Antônio Ferreira - IFPR/Paranaguá
Camila Cristiane Moreira de Almeida - UFU
Cleci Da Cruz Martins - SMED (Araucária-PR)
Fernanda Lucas Santiago - PPGH-UDESC
Graciele Alves babiuk - UFPR
Maria Inês Carvalho Correia – UFPR
Neli Gomes da Rocha - ABPN
COMISSÃO DE INFRAESTRUTURA
Adriana Inês De Paula – UFPR
Andressa Ribeiro - UFPR
Ébio Luiz Ribeiro Machado - TJPR
Elenilton Vieira Godoy - UFPR
Erick da Silva Santos - UFPR
Ione da Silva Jovino- UEPG
José Carlos Appolinário - TV UFPR
Letícia Sampaio Pequeno - TJPR
Kelvy Kadge Oliveira Nogueira - UFPR
Marina de Arruda Alencar - UFPR
Mônica Luiza Simião Pinto - NEABI IFPR
Nathalia Savione Machado - UFPR
Thaís Regina De Carvalho - UFG

COORDENAÇÃO SIMPÓSIO EDUCAÇÃO BÁSICA XI COPENE


Profa Ms Rosa Margarida de C. Rocha - Fórum Nacional de Educ. Básica ABPN
Profa Dra Alessandra Pio - (UFRJ)
Profa Ms Josiane Climaco - (UFBA)
Profa Dra Lucimar Rosa Dias - (UFPR)
Prof. Ms. Paulo Borges – ACNAP e Fórum Permanente de Educ. e Diversidade Étnico-
Racial (FPEDER-PR)
Profa. Adriana Zielinski – Fórum Permanente de Educ. e Diversidade Étnico-Racial
(FPEDER-PR)
Profa. Edna Aparecida Coqueiro – Fórum Permanente de Educ. e Diversidade Étnico-Racial
(FPEDER-PR)
COMISSÃO DE MONITORIA
Edicelia Maria Dos Santos de Souza - NEABI UFPR Litoral
Juliana Maria Da Rosa Elia – UFPR
Veridiane Cristina Benato - UFPR

EQUIPE DE MONITORIA
Alexandre F. Braga, Aline Adriana Oliveira, Aline Vargas Escobar, Amanda Barbosa Veiga
dos Santos, Amanda Caroline Alves Pereira, Ana Paula Nascimento Lourenço, Antoniele de
Cassia Luciano, Ariane De Sá Andrade Cruz, Bianca Lopes Brites, Carla Aparecida da Costa,
Carlos Alberto Mendonça Filho, Francisco Otávio Araújo Dos Santos, Gabriella Santos Da
Silva, Gabriel Ribeiro Da Silva, Graciéle Pereira Souza, Higor Natanael Azevedo Carvalho,
Hugo Ribeiro De Souza, Izabely Morais Santana, Jessica Barbosa Joaquim, Jéssica Suzana
Magalhães Cardoso, Jéssica Teixeira Eugênio, Josué Goulart, Lara Danuta Da Silva, Leidiane
Lopes Da Silva, Lilian Soares Da Silva, Lívia Maria Nascimento Silva, Lucas Eduardo Zulin,
Luana Larissa De Carvalho Ferreira, Luana Ribeiro Da Trindade, Luziane Da Silva Pinheiro,
Marília Renata Felix Rodrigues, Matheus Silva Freitas, Nayhara Almeida De Sousa, Pedro
Augusto Gonçalves Alves, Raíssa Ladislau Leite, Rafael Barbosa De Jesus Santana, Rian
Santana Mota.

APOIO TÉCNICO
Ana Lúcia Lourenço - Desembargadora do TJPR
Andrea Kominek - UTFPR
Ana Paula Vieira - PROGRAD/UFPR
Daniel S. P. Soares - FUNPAR//UFPR
Geison David da Silva - Instituição Academia Policial Militar do Guatupê-PR
Mardem Lincoln Amaral Machado - TJPR
Maria Aparecida Blanco de Lima- Desembargadora do TJPR
Rafaela Pauluk - UFPR
Sérgio Luis Do Nascimento - PUC/PR
Toni André Scharlau Vieira - UFPR
EQUIPE DE INTÉRPRETE DE LIBRAS
Aldemar Balbino da Costa – UFPR
Claudinei Matoso – UFPR
Cleverson Rogério dos Santos – IFPR
Danielle Marrie Moraes – UFPR
Edilena da Silva Frazão - UTFPR
Elizete Pinto Cruz Sbrissia Pitarch Forcadell - IFPR
Jonatas Rodrigues Medeiros – UFPR
Juliana da Silva Richter – IFPR
Karianny Aparecida Gerotto Del Mouro - IFPR
Katia Silene Veiga Lamberti - IFPR
Marly Pessoa Souza – UFPR
Peterson Simões – UFPR
Priscila Mara Simões – UFPR
Rhaul de Lemos Santos – UFPR
Sarah Tamara Corrêa Hilgemberg - IFPR
Sérgio Ferreira – UFPR
Tiago Machado Saretto - IFPR
Valdeir Ramos Pereira - UTFPR
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
Negras Escrevivências, Interseccionalidades e Engenhosidades: movimentos negros, pensa-
mento, história e resistências ............................................................................................ 23
Paulo Vinicius Baptista da Silva, Rita de Cássia Moser Alcaraz, Flávia Rodrigues Lima da Rocha

ST 03: AQUILOMBAR-SE: MODOS DE EXISTIR E RE-EXISTIR EM


COLETIVIDADES PRETAS
Coletivos de Estudantes Negros: estratégias e ações em tempo de pandemia do novo coro-
navírus ............................................................................................................................... 30
Luana Ribeiro da Trindade, Karina Pereira dos Santos

Julho das Pretas no Paraná: atividades para refletir sobre nossas vivências ...................... 36
Dirléia Aparecida Matias, Fernanda Lucas Santiago, Gizele Cristiana Carneiro

Territorialidades Negras da Campanha Gaúcha: Um Diálogo com Subalternidades e R-Exis-


tências ............................................................................................................................... 46
Anderson Luiz Machado dos Santos

População negra discente ingressa na UNICENTRO: dificuldades de reconhecimento e per-


tencimento ........................................................................................................................ 58
Tauana Aparecida de Oliveira, Jefferson Olivatto da Silva, Marcia Denise Dias

ST 36: MOVIMENTO SOCIAL NEGRO, REPRESENTAÇÕES POLÍTICAS


E A LUTA CONTRA HEGEMÔNICA DO PODER RACISTA DO ESTADO
BRASILEIRO
As Provocações Da Luta Antirracista No Brasil Contemporâneo : Vidas Negras Importam .....
........................................................................................................................................... 68
Lilian Luiz Barbosa

O percurso histórico do Movimento Social Negro e as políticas de cotas ........................... 77


Ana Paula Moreira de Sousa, Eugenia Portela de Siqueira Marques

Para uma nova práxis social do Movimento Social Negro .................................................. 83


Pedro Barbosa

ST 43: OBSERVATÓRIO DE DISCRIMINAÇÃO RACIAL


Núcleo de Estudos Afro-brasileiros e indígenas da Universidade Federal do Acre: trajetos de
luta (2018-2020) ................................................................................................................ 92
Flávia Rodrigues Lima da Rocha, Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque
ST 40: NEGRITUDES E(M) AÇÃO: TENTATIVAS DE AÇÕES E
MOVIMENTOS SOCIAIS TRANSFORMADORES, E DE PESQUISAS
TRANSFORMADORAS EM TEMPOS DE PRECARIZAÇÃO DA VIDA
NEGRA
"Pelo caminho empoeirado rumo à favela, a minha voz ainda ecoa": movimento estudantil
negro, representação discente e expressões de luta na UFPR .......................................... 101
Juliana Ertes Santos, Lais Mattuella, Carla Mota Menezes

A Construção do Coletivo UBUNTUFF e o Impacto dos seus Saberes no Instituto de Educa-


ção de Angra dos Reis ...................................................................................................... 109
Lucas Ferreira do Nascimento

ST 23: FILOSOFIAS AFRICANAS: FORÇA ANCESTRAL, DIÁSPORICA E


DA FEMINILIDADE
Filosofia ubuntu como metodologia para descolonização do pensamento ...................... 118
Ana Paula Nascimento Lourenço, Antonio Marcio Haliski

Um debate sobre as epistemologias Africanas e Afro-Diaspóricas e a importância para a


Educação das Relações Étnico-Raciais(ERER) ................................................................... 127
André Vinicio Bialeski Vieira, Maria Helena Tomaz, Marcos Rodrigues Silva

Políticas Públicas, Identidade, Gênero e Raça no Contexto Rural Quilombola na Bahia ... 136
Carla Ferreira

ST 25: INTELECTUAIS E FEMINISTAS NEGRAS EM RUPTURA COM A


INVISIBILIDADE
Entre a síndrome da impostora e o epistemicídio: mulheres negras e as multidimensões de
silenciamento .................................................................................................................. 146
Sunshine Cristina de Castro Reis Santos, Jaquileude Araújo Martins

Cor/raça, gênero e classe nos raps de cantoras negras à luz da interseccionalidade do femi-
nismo negro ..................................................................................................................... 155
Sandra Mara Pereira dos Santos

Intelectuais Negras e a questão da subalternidade .......................................................... 164


Nayhara Almeida de Sousa

ST 46: PENSAMENTOS E EPISTEMOLOGIAS PRODUZIDAS POR


MULHERES NEGRAS: OLHARES SOBRE A ACADEMIA E OS
MOVIMENTOS SOCIAIS
Escritoras Negras ao Sul do Brasil: memória e educação antirracista no ensino básico .... 174
Fernanda Vitória Nunes, Giane Vargas Escobar

Azoilda Loretto da Trindade e formação da imagem das mulheres negras ....................... 185
Gisele Rose da Silva
Percurso acadêmico e intelectual de mulheres negras, mestras e doutoras em Educação:
narrativas e historicidade na docência ............................................................................. 191
Monique Karine Gomes, Claudia da Silva Santana

Revisando a Construção de Epistemologias no Instituto de Ciências Sociais - UFAL ......... 201


Larissa Souza Silva Lopes

Narrativas de mulheres negras em Florianópolis: Associação de Mulheres Negras Antonieta


de Barros (AMAB) ............................................................................................................ 212
Carol Lima de Carvalho

Mulheres negras na ciência: uma revisão sistemática de literatura ................................. 221


Thamiris Bernardo de Paula, Vitória Karoline Arantes de Lima, Mariana Silva de Souza, Luciana Ferrari
Espíndola Cabral, Ana Lúcia Nunes de Sousa

ST 42: O PARADIGMA AFROCÊNTRICO NAS PESQUISAS E PRÁTICAS


SOCIAIS NO BRASIL
Projeto ConheSer: a autopercepção estética de crianças negras ..................................... 232
Danielle Soares Gomes, Carlos Vinicius da Silva Mendes

ST 21: ESFORÇOS CONJUNTOS DE PESQUISA EM PENSAMENTO


NEGRO DESCOLONIAL AMERICANO
Pleito negro, protesto branco - prerrogativas para a descolonização do conhecimento aca-
dêmico-universitário ....................................................................................................... 246
Nádia Maria Cardoso da Silva

A Linha de Cor entre Du Bois e Freyre: Uma análise comparada das Obras “As Almas da Gen-
te Negra” e “Casa Grande e Senzala” ............................................................................... 265
Roberth Daylon dos Santos Freitas

Pan-africanismo e movimento negro brasileiro: Uma análise da obra O quilombismo – Do-


cumentos de uma militância Pan-africanista por Abdias Nascimento (1980) ................... 274
Tailane Santana Nunes

Aproximando Pensamento Social Brasileiro e Pensamento Pós-colonial: pressupostos e pis-


tas para um diálogo descolonial com Sérgio Buarque de Holanda, a partir da releitura crítica
de Raízes do Brasil ........................................................................................................... 282
Thiago de Oliveira Thobias

ST 33: LUTAS E ENFRENTAMENTOS AO GENOCIDIO NEGRO E A


GESTÃO BIO-NECROPOLITICA DO ESPAÇO
Segurança pública e segurança humana: Uma proposta de debate sobre direitos humanos e
questão racial .................................................................................................................. 294
Aline Cristina Campos de Souza

Espaços de vida e de morte: a produção racial do espaço e a reprodução da morte na cidade


de Salvador ...................................................................................................................... 304
Uebert Vinicius das Neves Ramos, Nilcley Santos Rocha
ST 53: RACISMO, GUERRA ÀS DROGAS, ENCARCERAMENTO EM
MASSA E JUVENICÍDIO
Necropolíticas carcerárias: racismo, políticas da morte e sacrifício .................................. 314
Diego dos Santos Reis

A naturalização da exceção e a guerra justa contemporânea ........................................... 323


Maira Damasceno

Uma criminologia marcada pela perspectiva punitiva ...................................................... 331


Andaraí Ramos Cavalcante

Do tráfico ao prescrito: reflexões antiproibicionistas e contra coloniais sobre o racismo na


escola .............................................................................................................................. 339
Izabela Amaral Caixeta

"Querem que nossa pele seja a pele do crime": Sistema penal, racismo e guerra às drogas ...
......................................................................................................................................... 347
Priscila Andrade

ST 28: JUVENTUDES NEGRAS E INDÍGENAS: ENCARCERAMENTO E


GENOCÍDIO – REFLEXÕES DECOLONIAIS E INTERSECCIONAIS
Projeto-de-vida e juventude Kanhgág na comunidade indígena Por Fi Ga, São Leopoldo-RS:
Mão de obra na colônia, artesanato e conhecimento ...................................................... 359
Gabriel Chaves Amorim

Mulheres negras e cárcere: Perspectiva interseccional entre raça, gênero e classe em unida-
de prisional do município de João Pessoa ...................................................................... 369
Suéria Dantas de Oliveira

Mortes de Jovens Negros em Salvador ............................................................................. 378


Andaraí Ramos Cavalcante

ST 27: JUSTIÇA RACIAL NA DIÁSPORA AFRICANA: CONTRIBUIÇÕES


DO PENSAMENTO E EXPERIÊNCIA AFRO-LATINO-AMERICANA
Análise das ações do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados para as crianças
negras em situação de refúgio no Brasil ........................................................................... 388
Carolina Rovaris Pezente, Jóicy Rodrigues Teixeira Hundertmark

Direito à (priva)cidade: da câmera na catraca às prisões com uso do reconhecimento facial,


vigilância e proteção de dados pessoais no Distrito Federal ............................................. 396
Elizandra Salomão

“O lixo vai falar, e numa boa”: reflexões sobre a subalternidade ladinoamefricana e suas es-
tratégias de emancipação a partir do Direito ................................................................... 406
Bruno de Oliveira Cruz, Gabriela Grupp

O Direito Fundamental à Não-Discriminação: disputas em torno do conceito de racismo na


modernidade e a ilusão protetiva do Direito Penal .......................................................... 415
Danilo dos Santos Rabelo
ST 09: AS PRÁTICAS E VIVÊNCIAS DAS RELIGIOSIDADES AFRO-
BRASILEIRA E AFRO-INDÍGENA NO CENÁRIO AMAZÔNICO
Um sucesso explicado: apontamentos sobre a implantação da Assembleia de Deus na Co-
munidade Quilombola São Pedro, Pará, Brasil ................................................................. 426
Alef Monteiro

ST 26: INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E RACISMO RELIGIOSO NO BRASIL


CONTEMPORÂNEO
ILÉ ÈKÓ E O RACISMO RELIGIOSO: Possibilidades de re-existir de estudantes adeptos RELIGI-
ÕES DE MATRIZ AFRICANA ............................................................................................... 436
Maritana Drescher da Cruz

GUINADA PROTOFASCISTA E RACISMO RELIGIOSO NO BRASIL: os casos contra os pratican-


tes de religiões de matriz africana no Rio de Janeiro conforme a mídia oficial ................. 443
Geiziane Angélica de Souza Costa, Leonardo Patrício de Barros, Lúcia Maria da Silva Soares

Articulação política entre Comunidades de Terreiro e as caminhadas contra a Intolerância


Religiosa em Salvador-BA ................................................................................................ 452
Aline de Jesus da Cruz

Intolerância religiosa ou racismo religioso? ..................................................................... 461


Lidyane Maria Ferreira de Souza

ST 54: RELAÇÕES RACIAIS E DESIGUALDADES NO BRASIL:


TRABALHO, DIREITOS E POLÍTICAS SOCIAIS
A invisibilidade do trabalho doméstico no capitalismo contemporâneo na divisão social, ra-
cial e de gênero ................................................................................................................ 475
Lilian Luiz Barbosa

As amarras coloniais na construção da subalternidade da força de trabalho feminina negra


......................................................................................................................................... 483
Rayhanna Fernandes de Souza Oliveira

Politicas de Ações Afirmativas na Educação e as Narrativas dos Estudantes Negros: vivências


na construção da reparação ......................................................................................... 496
Maria Aparecida Miranda

A luta é de classe ou de raça? ........................................................................................... 509


Bruna Tainá Rodrigues

Imigração haitiana, garantia de direitos e discriminação: intersecções na diáspora contem-


porânea ........................................................................................................................... 519
Thiago Luiz de Souza, Renata Waleska Pimenta, Luiz Herculano de S. Guilherme

Análise Jurídico-Histórica da Legislação Brasileira à Luz das Relações Raciais - O negro como
sujeito de direitos ............................................................................................................ 530
Lais Méri Quirino Gonçalves
ST 55: RELAÇÕES RACIAIS NO BRASIL, SUBJETIVAÇÃO E
PSICOLOGIA
A docência no ensino superior e as fronteiras das relações de mediação interétnicas: refle-
xões em torno da formação de professores indígenas Xavante ....................................... 539
Andréia Maria de Lima Assunção

Da graduação ao ofício docente: negritudes e construção de carreira na Psicologia ........ 548


Vilmar Pereira de Oliveira

Todos os olhos em nós: os relatos de juízas e promotoras negras .................................... 558


Ingrid Marques Cabral

Produzindo Subjetividades: ideologia do branqueamento e o mito da democracia racial no


Brasil ................................................................................................................................ 570
Marcela de Souza Rocha

Psicologia política do racismo no Brasil: Formação social e relações raciais em debate ... 580
Mirella Rocha

O negro e o racismo na clínica psicanalítica: pensando manejo clínico com indivíduos negros
vitimados pelo racismo .................................................................................................... 592
Claudina Damasceno Ozório

Comunidades tradicionais: a matricentralidade negra no cuidado de aflições comunitárias ..


......................................................................................................................................... 599
Jefferson Olivatto da Silva

ST 59: SAÚDE DA POPULAÇÃO NEGRA E AÇÕES INTERSETORIAIS


VISANDO À INTEGRALIDADE
O uso de ervas na resistência feminina negra: constelações de aprendizagem entre benze-
deiras ............................................................................................................................... 609
Jefferson Olivatto da Silva, Marcia Denise de Lima Dias

Educação em Saúde sobre hipertensão arterial sistêmica: O compartilhamento do conheci-


mento de uma discente Quilombola com a sua Comunidade .......................................... 617
Elisiane Souza Rodrigues, Camila Sousa da Silva

Juventude negra no interior da Bahia: Reexistência ao Suicídio ....................................... 622


Rosilda Maria de Queiroz da Cruz Nunes

Povos e Comunidades Tradicionais e a Covid-19: Reflexões sobre racismo e saúde pública ...
......................................................................................................................................... 631
Rosana da Silva Pereira, Luciene Vieira Pereira, José R. de J. Santos

A Saúde da Mulher Negra: Práticas de Educação em Saúde e Racismo ............................ 638


Maiana Eloí Ribeiro dos Santos, Eliete Cristina de Souza, Ana Lúcia Nunes de Sousa
ST 11: BRANQUITUDE, BRANQUIDADE E BRANCURA:
RACIALIZAÇÃO(ÕES) BRANCA(S) NA AMÉRICA LATINA
Negro-tema: um discurso científico em prol da branquitude ........................................... 650
Daniara Thomaz

A forma branca de vida: Terceirizações identitárias e projeto-de-vida ............................. 658


Gabriel Chaves Amorim, Maira Damasceno

Pensamento Social Brasileiro: Brasilidade Mestiça em Costa e Munanga ........................ 669


Niara O. S. Aureliano, Nara M.C. Santana

ST 41: O BRANCO, A BRANQUITUDE, A BRANQUIDADE, A


BRANQUITUDE ACRÍTICA, A BRANQUITUDE NA EDUCAÇÃO E OS
OUTROS CONFLITOS ÉTNICO-RACIAIS E SUAS INTERSECÇÕES
VIVIDAS NO ATLÂNTICO SUL
Branquitude acrítica e discursos de ódio para manutenção dos privilégios brancos no Brasil
......................................................................................................................................... 678
Maira Damasceno, Gabriel Chaves Amorim

A BUSCA PELO SELO PALMARES: problematizando o lugar da branquitude na luta antirracista


............................................................................................................................................ 687
Mariana de Montreuil Trotta

Operadores da branquitude no ensino superior brasileiro ............................................... 693


Elismênnia Aparecida Oliveira, Francy Eide Nunes Leal

ST 51: PRODUÇÃO DE PESQUISADORE(AS) NEGROS(AS) NAS


CIÊNCIAS NATURAIS E TECNOLÓGICAS: QUEM SOMOS E O QUE
FAZEMOS?
Computação, engenharia de software e diversidade étnico racial: um mapeamento siste-
mático .............................................................................................................................. 704
Michelle Borges Miranda

Raça: do colonialismo à genômica .................................................................................... 714


Florença Freitas Silvério, Douglas Verrangia
Introdução
NEGRAS ESCREVIVÊNCIAS,
INTERSECCIONALIDADES E ENGENHOSIDADES:
MOVIMENTOS NEGROS, PENSAMENTO,
HISTÓRIA E RESISTÊNCIAS
Paulo Vinicius Baptista da Silva1
Rita de Cássia Moser Alcaraz 2
Flávia Rodrigues Lima da Rocha3

Que assim como os homens, que comem e bebem,


que se vestem, que dançam e que cantam, os orixás
tenham de escolher, agora como preceito, marca e
reconhecimento, comida, bebida, veste, dança e cantiga.
Para que os Orixás nunca se esqueçam que sua missão é
proteger os homens que os honram e cuidam para que
os homens nunca se esqueçam que tudo o que fazem,
no seu dia-a-dia, é sagrado.
Para que se lembrem que precisam uns dos outros.
E foi dessa maneira, foi assim que o mundo começou.
E ainda que muitas coisas tenham mudado
o miolo do mundo é ainda o mesmo.
Como as histórias, que, por mais que pareçam
diferentes,
têm sempre o mesmo fundo de verdade.
(ANDREI, Elena Maria; FERNANDES, Frederico Augusto
Garcia (orgs). A origem do mundo e dos homens - Um
lenda Yorubá. Caderno Uniafro 2.
Londrina: Idealiza, 2007).

Esta coleção com três livros reúne os trabalhos apresentados no COPENE 2020,
tendo nesta décima primeira edição uma abordagem remota, realizada pela Asso-
ciação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as – ABPN, a Universidade Federal
do Paraná (UFPR), o Consórcio Nacional dos Núcleos de Estudos Afro-brasileiros,
representado pelo Neab/UFPR. O evento ocorreu em dois momentos, com ativida-
des remotas entre os dias 09 e 12 de novembro de 2020 e outra parte na semana

1 Pesquisador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, da Universidade Federal do Paraná e


do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Coordenador local do XI
Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as. Docente do Programa de Pós-Graduação em Edu-
cação da Universidade Federal do Paraná.
2 Pesquisadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal do Paraná.
3 Coordenadora do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal
do Acre. Membro da Comissão Organizadora do XI Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/
as. Docente de História da Universidade Federal do Acre. Doutoranda em Educação, no Programa de
Pós-Graduação da Universidade Federal do Paraná.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 23


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
da África com abertura em 23 de maio e programação entre os dias 24 a 26 de
maio de 2021 na Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba/PR. O objeti-
vo desta obra é divulgar conhecimento produzido por pesquisadores das relações
étnico-raciais, no intuito de contribuir com a ampliação de saberes e (re) instaurar
cosmogonias negadas ao longo da história pelo racismo estrutural.
O título deste livro, Escrevivências, interseccionalidades e engenhosidades:
movimentos negros, pensamento, história e resistências expressa a expectativa
gerada para a Educação das Relações-Étnico Raciais e para o Ensino de História e
Cultura Afro Brasileira e Africana antes da sanção da Lei de 2003. A possibilidade e
sanção da Lei de 2003 só foi possível pela reivindicação histórica da ancestralidade
de povos tradicionais organizada pelos movimentos negros e por acadêmicos ne-
gros. De forma relacional referenciar um trecho da mitologia Yorubá na epígrafe
desse terceiro livro é lembrar que a essencialidade está no cultivo da memória, no
berço e nas origens como território sagrado.
Dos reinos de andongos, congos, haúças, ovimbundos ou quetos, ijebus obser-
vou-se historicamente uma diáspora forçada, que alteraram as vivências no país já
incorporadas desde à invasão. O hibridismo cultural, linguístico, religioso fundam
uma gênese, inserem uma cosmogonia advinda das particularidades instauradas
pelos modos de operar, construir e organizar a sociedade própria do continente
africano a considerar os diferentes países. Neles observam-se os traços culturais
que influenciaram desde a arquitetura das capitais brasileiras como os costumes. A
cultura, o comércio, os valores, os princípios, a religiosidade, o trabalho a referên-
cia sobre o que é ser brasileiro passa pela formação e debate sobre ser negro em
diáspora no território brasileiro. Como politicamente a branquitude tenta silenciar,
negar isto impacta as políticas hoje instauradas.
Os trabalhos aqui organizados em sessões temáticas distintas afirmam: não
aceitaremos o silenciamento, o alheamento da própria história e a negação de ter-
ritórios materiais ou simbólicos. Afirma-se com a formação étnica a pluralidade por
meio do diálogo com as intersecções de origem, de gênero, territorial na compre-
ensão da pluralidade, no combate antirracista e na compreensão de quer ser brasi-
leiro e brasileira possui influência afro-diaspórica. Corremos o risco de afirmar que
para cada ação da branquitude estruturada em discursos negacionistas, antidemo-
cráticos e racistas levantam-se vários pesquisadores negros e pesquisadora negras.
Afirmam-se territórios, centralizam-se a voz de pesquisadores como os que aqui
tem seus artigos reunidos na (re) existência de espaços, mas também na escrevi-
vências de experiências e no reconhecimento de trajetórias. Os resumos inscri-
tos em 21 Simpósios Temáticos apresentam em suas discussões eixos temáticos
voltados para escrevivências, interseccionalidades, engenhosidades, movimentos
negros, pensamento, história e resistências.
As publicações como as do Copene para a divulgação do conhecimento científi-
co, sobretudo em momentos de ataques à ciência e à educação pública brasileira
e, às ações afirmativas, são essenciais no combate antirracista e na defesa da de-

24 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
mocracia. As Sessões temáticas a que foram submetidos os trabalhos deste livro
foram:
A primeira delas, Aquilombar-se: modos de existir e re-existir em coletividades
pretas, está composta por 06 textos que buscam dar visibilidade aos coletivos ne-
gros em suas formas de luta e em ações específicas no combate antirracista.
A segunda sessão temática, Movimento Social Negro, Representações Políticas
e a Luta Contra Hegemônica do Poder Racista do Estado Brasileiro, composta por
04 textos, aborda conquistas do movimento negro a partir dos anos de 1980.
A terceira sessão temática, Observatório de Discriminação Racial, composta por
01 texto, trata da trajetória de um núcleo de estudos afro-brasileiros e indígenas
dentro de uma universidade federal.
A quarta sessão temática, Negritudes e(m) Ação: tentativas de ações e movi-
mentos sociais transformadores, e de pesquisas transformadoras em tempos de
precarização da vida negra, possui 02 textos que referem-se a espaços formados
de/para alunos negros em universidades federais.
A quinta sessão temática, Filosofias africanas: força ancestral, diásporica e da
feminilidade, apresenta 04 textos, que trazem em seu conteúdo não apenas prin-
cípios de filosofia africana, como também a própria filosofia africana enquanto re-
sistência, princípio de organização social de comunidades negras afro-diaspóricas
e a filosofia africana como elemento importante para o debate das educações das
relações étnico-raciais.
A sexta sessão temática, Intelectuais e feministas negras em ruptura com a in-
visibilidade, foi organizada por meio de 3 textos, que buscam refletir sobre polí-
ticas feministas, bem como sobre a interseccionalidade de raça, gênero e classe
em letras de rap cantadas por artistas negras e também sobre o lugar dado e a ser
conquistado por mulheres negras intelectuais.
A sétima sessão temática tem por tema Pensamentos e epistemologias pro-
duzidas por mulheres negras: olhares sobre a academia e os movimentos sociais,
formada por 06 produções e descreve em seu bojo pesquisas sobre/de mulheres
negras intelectuais.
O tema abordado na oitava sessão temática, O Paradigma Afrocêntrico nas Pes-
quisas e Práticas Sociais no Brasil, composta por 01 texto, é o trabalho de uma
extensão universitária com a estética de crianças negras.
Na nona sessão temática, o tema tratado foi Esforços conjuntos de pesquisa em
pensamento negro descolonial americano, por meio de seus 04 textos que trazem
revisões bibliográficas a fim de melhor compreender o pensamento decolonial e
romper com o pensamento colonizador da literatura a respeito das relações raciais.
Na décima sessão temática, Lutas e enfrentamentos ao genocídio negro e a ges-
tão bio-necropolitica do espaço, aborda-se, por meio de seus 02 textos, o racismo
na segurança pública e seus valores estruturantes que muito tem influenciado a
matança da população negra no Brasil.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 25


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A décima primeira sessão temática, com 04 textos, tem por tema Racismo,
Guerra às Drogas, Encarceramento em massa e Juvenicídio e trata da necropolítica
a qual a população negra, sobretudo a juventude, em sua maioria, está submetida
por meio dos encarceiramentos e genocídios seletivos.
A décima segunda sessão temática, com 03 textos, sob a temática Juventudes
negras e indígenas: encarceramento e genocídio: reflexões decoloniais e intersec-
cionais, reforça a discussão da sessão temática anterior, acrescentando-lhe a ques-
tão indígena, a questão específica das mulheres encarceiras negras e o contexto de
pandemia vivido por estes sujeitos no ano de 2020.
A décima terceira sessão temática, Justiça Racial na Diáspora Africana: con-
tribuições do pensamento e experiência afro-latino-americana, compõe-se de 04
textos que abordam a necessidade de ampliar os sujeitos a quem o Direito alcança,
beneficia e protege, sobretudo a população negra.
A décima quarta sessão temática, As práticas e vivências das religiosidades afro-
-brasileira e afro-indígena no cenário Amazônico é composta por 01 texto, analisa
as condições sociais e culturais que favoreceram a fundação da Igreja Evangélica
Assembleia de Deus na comunidade Quilombola São Pedro.
Na décima quinta sessão temática têm-se 04 textos, organizados sob o eixo
Intolerância Religiosa e Racismo Religioso no Brasil Contemporâneo que amplia
a abordagem da sessão anterior e aborda o racismo religioso e o ensino religioso
como uma das formas de enfrentamento desta modalidade de racismo.
A décima sexta sessão temática, Relações raciais e desigualdades no Brasil: tra-
balho, direitos e políticas sociais, composta por 07 textos, é a sessão com maior
número de produções e uma abordagem abrangente, que trata desde genocídio
da população negra, subalternização do trabalho da mulher negra, ações afirmati-
vas, interseccionalidades, imigração haitiana a trajetória do negro como sujeito de
direito no Brasil.
A décima sétima sessão temática, Relações Raciais no Brasil, Subjetivação e
Psicologia, composta por 07 textos, amplia as relações aos seus contextos de dis-
cussão, que perpassam a experiência na formação inicial e continuada de sujeitos
negros e indígenas. A experiência de promotores negros a serviço de promoção de
igualdade racial no Brasil, branqueamento e mito da democracia racial, psicologia
política do racismo, bem como o tratamento clínico para negros vítimas do racis-
mos e dinâmicas psicossociais comunitárias de comunidades tradicionais.
A décima oitava sessão temática, Saúde da População Negra e Ações Interseto-
riais Visando à Integralidade, composta por 6 textos, que tratam de processos de
aprendizagem por meio de benzendeiras, do racismo como fator de adoecimento
da população negra, inclusive como fator de suicídio da juventude negra, do en-
frentamento da Covid-19 por Povos e Comunidades Tradicionais e da saúde da
mulher negra.
A décima nona sessão temática, Branquitude, branquidade e brancura: racia-
lização(ões) branca(s) na América Latina, possui 03 textos que discutem o racimo

26 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
como um problema do negro, padronização branca aos projetos de vida da socie-
dade e análise do conceito de mestiçagem em Munanga e Costa.
A vigésima sessão temática, O branco, a branquitude, a branquidade, a bran-
quitude acrítica, a branquitude na educação e os outros conflitos étnico-raciais e
suas intersecções vividas no Atlântico Sul, com 03 textos, amplia a discussão da
sessão anterior, trazendo reflexões sobre discursos de ódio produzidos e dissemi-
nados pela branquitude acrítica, bem como sobre o lugar da branquitude na luta
das questões raciais e a construção da ciência e do ensino superior no país a partir
da branquitude.
A última sessão temática deste livro, Produção de Pesquisadore(as) Negros(as)
Nas Ciências Naturais e Tecnológicas: quem somos e o que fazemos?, compõe-se
por dois textos que tratam da diversidade étnico-racial na engenharia de software
na literatura e da relação entre Sociologia e Biologia e na contribuição para a edu-
cação das relações étnico-raciais por meio da educação em Ciências.
Como se pode perceber, as discussões suscitadas nesta obra, por meio de seus
78 textos, organizados em 21 sessões temáticas demonstram que mesmo em tem-
pos muito difíceis a população negra existe, reexiste e se reinventa em suas resis-
tências ao lutar por justiça e igualdade racial, atributos de uma sociedade melhor
para se viver.
Os desafios que permanecem para os pesquisadores de estudos afro-brasileiros
ainda são vários, no entanto os deslocamentos do eixo do branco como padrão de
humanidade são tensionados. Os padrões de beleza foram ampliados pelas pes-
quisas. A herança da religiosidade de cantos e tambores além mar e o referencial
cultural são ouvidos em palavras de ordem que exigem respeito ao terreiros, não
admitimos a intolerância religiosa, pois quem protege o ori com turbantes nos
ensinam democracia é respeito, é justiça, é liberdade religiosa.
A epígrafe deste livro expressa esperança na força da história e com a proteção
dos Orixás, com essa lembrança procuramos as histórias para (re) organizar a his-
tória e suas verdades.
A formação do candomblé no Brasil em meados do século XIX possui como refe-
rência os negros e as negras no Brasil, são séculos de afirmação, de transformação
social e discursiva para a reivindicação democrática de simplesmente poder existir.
Caso contrário muitas das tradições de diferentes nações e povos teriam sido com-
pletamente negadas, silenciadas e extintas da sociedade brasileira.
A sociedade de forma ampla está consciente do racismo. Ele tem muitas faces
para exterminar corpos negros seja no racismo epistêmico, político, discursivo e a
necessidade de se conhecer as histórias e experiencias referenciadas pelos pesqui-
sadores e pesquisadoras neste volume. É certo que cabe ao estado, o suporte para
conhecermos o legado construído por homens, mulheres, homossexuais, trans,
gays, lésbicas e tantos outros (LGBTQIA) em intersecções sociais, econômicas, polí-
ticas no enfrentamento e ao combate do racismo estrutural por meio do reconhe-
cimento da história e cultura articulado por Leis como a 10639 de 2003 ( Projeto

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 27


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
de Lei de autoria da ex deputada Esther Grossi (RS) e do ex Deputado Bem-Hur
Ferreira (MS) apresentado na Câmara dos Deputados sob o n° 259, em 11 de mar-
ço de 1999 e sancionada pelo então Presidente Luiz Inácio Lula da Silvaem 2003).
Sim, estamos insistentemente a recuperar o miolo da história, nela quem sabe
encontre-se o “miolo do mundo” para que os sentidos e resultados da compreen-
são de sociedades possam ser organizadas democraticamente. Com o intuito tam-
bém de que a educação ministrada nas escolas seja um processo de revalorização
da cultura afro-diaspórica e negra brasileira. Que as suas origens sejam lembradas
no reconhecimento dos centros de resistência como os sagrados terreiros de can-
domblé, pela luta das identidades étnicas e no combate às desigualdades, que per-
maneçam vivos, ensinando a importância da formação da cultura brasileira.
O reconhecimento de raízes de origem, de heranças ancestrais é um direito da
sociedade brasileira. Caso esse direito seja insistentemente negado ao povo bra-
sileiro e o mesmo que lhe negar a herança, os fundamentos da tradição e a base
cultural da sociedade.
Então, se os orixás cuidaram de nós, eles bem o fazem na mão dos pesquisa-
dores, dos movimentos negros, do candomblé, dos terreiros, pois “para que os
homens nunca se esqueçam que tudo o que fazem, no dia a dia, é sagrado. Para
que ambos se lembrem que precisam uns dos outros.” Para que a luta por uma
educação antirracista, com ideias igualitários seja uma realidade e não apenas
uma esperança que os estudos aqui sejam perspectivas de mudança estrutural na
sociedade, que cada Copene, NEAB, NEABI entre outros que proponham como um
dos produtos finais os livros de pesquisadores negros e negras continuem a afirmar
os marcos históricos fundantes da sociedade brasileira e que as histórias sejam as
escrivivências em um ponte entre as heranças do passado, presente e futuro.

28 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 03
Aquilombar-se:
modos de existir
e re-existir em
coletividades
pretas
COLETIVOS DE ESTUDANTES NEGROS:
ESTRATÉGIAS E AÇÕES EM TEMPOS DE
PANDEMIA DO NOVO CORONAVIRUS
Luana Ribeiro da Trindade
Karina Pereira dos Santos

Ao mesmo tempo, a competitividade acadêmica milita


contra a formação de comunidades intelectuais negras
que cruzem fronteiras de instituições e disciplinas.
Essas comunidades surgem das tentativas de resistência
de negras e negros que reconhecem que fortalecemos
nossas posições apoiando unbs aos
outros. (bell hooks1, 1995, p. 575).

INTRODUÇÃO
Principalmente a partir da Lei nº 12.711/2012 (conhecida como Lei de Cotas),
observa-se um aumento de coletivos formados por estudantes negros(as) no inte-
rior das universidades públicas brasileiras. Tais estudantes, diante de recorrentes
situações de racismo, como estratégia política e de construção de laços mútuos
de fortalecimento, afeto, resistência, reconexão com a ancestralidade, aquilom-
bam-se. De maneira multiforme e com demandas múltiplas e diversas, os coletivos
desenvolvem variadas ações e estratégias na universidade.
No início do ano de 2020, vivemos a pandemia mundial do coronavírus, com isso,
a prática do isolamento social para evitar a disseminação se tornou fundamental.
Universidades, seguindo recomendações de autoridades e pesquisadores em saú-
de pública, suspenderam as atividades presenciais. Por meio da Portaria nº 1.819,
de 18 de março de 2020, a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) suspen-
deu por tempo indeterminado as aulas presenciais na graduação, pós-graduação,
extensão e nos cursos de educação básica e profissional vinculados à universidade
(UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, 2020).
Diante do cenário de pandemia e isolamento social, questionamos como os co-
letivos negros existentes na UFMG têm desenvolvido suas ações, uma vez que a
universidade é seu principal campo de atuação. A UFMG é uma referência em edu-
cação superior brasileira e, como aponta Gonzaga (2017), ela precisa ainda aprimo-

1 Optamos por respeitar a grafia do nome da socióloga e professora bell hooks tal como ela
própria o registra, com todas as letras minúsculas. Essa forma de escrita é por ela adotada como uma
tentativa de dar maior destaque às suas análises e proposições feministas e antirracistas e menos à sua
imagem individual.

30 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
rar suas práticas no sentido de incorporar mudanças que se encontram em pleno
movimento com as ações afirmativas.
No avanço dos debates e implementação das políticas de ação afirmativa nas
universidades públicas brasileiras ao longo da década de 2000, a UFMG optou por
dar destaque às desigualdades sociais, deixando a raça em segundo plano. Essa
questão foi notabilizada na decisão da universidade em adotar a política de bônus
social, conferindo um acréscimo de 10% na nota do antigo vestibular para estudan-
tes de escolas públicas e de mais 5% aos negros (JESUS, 2018). Nesse contexto, a
atuação de coletivos negros universitários tem muito a contribuir para, nos termos
de Gomes (2017), educar para as relações raciais ao tensionar as tradicionais estru-
turas universitárias e o racismo aí presente, sem perder de vista que essa respon-
sabilidade não deva pesar sobre sujeitos negros, mas que demanda implicação da
branquitude (BENTO, 2014; SCHUCMAN, 2014).
Por isso, neste texto, abordaremos algumas estratégias e ações adotadas pe-
los coletivos negros universitários no contexto de pandemia. Como aporte teórico,
recorremos a alguns estudos sobre processos de democratização da universidade
pública, movimento negro, juventude e mídias sociais. Tais temáticas possibilitam
o entendimento acerca das transformações culturais, políticas e tecnológicas que
ocorrem, principalmente, no decorrer dos anos 2000 e que são centrais para a lei-
tura das inovações dos coletivos em termos de linguagem.
A suspensão de atividades presenciais na universidade provoca mudanças na
forma, ritmo e pautas de atuação dos coletivos negros? Que implicações a pan-
demia tem para a agenda antirracista dos coletivos? Qual tem sido seu foco de
atuação nesse momento? Com base nessas questões, delimitamos como objetivo
geral da pesquisa realizar uma leitura das agendas dos coletivos negros no período
de isolamento social. E elencamos como objetivos específicos compreender como
a pandemia e o isolamento social impactaram a atuação dos coletivos negros; veri-
ficar como e por quais meios eles passaram a articular suas ações; bem como iden-
tificar se e como têm abordado, em suas agendas, questões referentes à própria
pandemia e às atividades acadêmicas nesse período.
Para alcançar os objetivos propostos, adotamos a metodologia de orientação
qualitativa. Inicialmente, realizamos um levantamento dos coletivos negros exis-
tentes na UFMG, buscando indentificar quantos são e a que cursos e áreas de co-
nhecimento estão vinculados. Passamos, então, a uma busca por páginas eletrô-
nicas criadas e alimentadas pelos coletivos, tais como blog, instagram e facebook.
Por meio de acessos diários a essas redes sociais, acompanhamos a atuação dos
coletivos entre os dias 18 de março e 16 de maio de 2020. O período delimitado
para a etnografia virtual refere-se aproximadamente aos dois primeiros meses de
suspensão das aulas e demais atividades acadêmicas presenciais da UFMG.
Uma etnografia virtual corresponde a uma imersão no campo por meio da uti-
lização da internet como espaço ou ferramenta para estudar fenômenos relaciona-
dos às pessoas e aos grupos que ali desenvolvem alguma forma de comunicação

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 31


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
(FILCK, 2013). Como recurso metodológico, a etnografia virtual por ser compreen-
dida tanto com base em seu objeto, a cibercultura, quanto com base no campo de
pesquisa, ou seja, o ciberespaço como locus ou contexto de ação humana (RIFIO-
TIS, 2016) com diferentes propósitos, entre eles, a atuação política.
Nas mídias digitais, como blog, e nas redes sociais, como facebook e instagram,
ativemo-nos apenas às postagens e aos compartilhamentos feitos no período indi-
cado, de meados de março até meados de maio. As análises do conteúdo localizado
nas mídias e redes sociais dos coletivos ocorreu por meio de codificação em catego-
rias criadas a partir do que o próprio campo nos indicou quanto às agendas de atu-
ação dos coletivos na pandemia. Além disso, interagimos com alguns membros de
coletivos por meio de mensagens de texto e áudio no aplicativo de telefone móvel
Whatsapp, buscando identificar ações para além do ativismo virtual.

ESTRATÉGIAS E AÇÕES DOS COLETIVOS


EM TEMPOS DE PANDEMIA
Na fase de levantamento, identificamos sete coletivos na UFMG. A maioria
deles compostos por estudantes de graduação; apenas um foi localizado na pós-
-graduação da Faculdade de Educação. Nessa faculdade, havia ainda um coletivo
vinculado à graduação. Outros coletivos estavam vinculados a cursos de graduação
da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Escola de Engenharia e Instituto de
Ciências Exatas, Escola de Arquitetura, Faculdade de Medicina e outros cursos da
área de saúde, e um dos coletivos era composto por estudantes de diversos cursos
de graduação da UFMG.
Desses sete coletivos, apenas um mantinha um blog, cuja última postagem da-
tava de 2019. E apenas cinco, incluindo o proprietário do blog, mantinham redes
sociais como instagram e facebook. E não identificamos qualquer tipo de página
eletrônica de dois dos coletivos pesquisados. Notamos, então, que as redes sociais
já eram comumente utilizadas pelos coletivos antes da pandemia para divulgar
e mobilizar a comunidade acadêmica e externa para suas atividades presenciais,
bem como para postar registros fotográficos de tais ações. Já no período que de-
limitamos para a pesquisa, constatamos que apenas três coletivos mantiveram al-
gum tipo de atividade nas redes sociais, havendo variação na frequência, tipo e
conteúdos ali publicizados.
Ainda assim, percebemos como estratégia dos coletivos um maior uso das redes
sociais, como facebook e instagram, que das mídias digitais, como blog. Possivel-
mente porque o facebook e instagram sejam mais comumente utilizados por um
maior número de pessoas e grupos, aumentando as chances de ampla circulação
de informações. Desses três coletivos, dois disponibilizaram de forma frequente
conteúdos nas redes sociais, com cerca de duas ou três publicações semanais. Ou-
tro demonstrou atuação mais pontual nas redes durante o momento da pesquisa,
fazendo uma publicação. Quanto aos tipos de ação virtual, vimos que os coletivos

32 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
fazem tanto a postagem de conteúdos produzidos por eles próprios quanto o com-
partilhamento de conteúdos disponíveis na internet. Sobre os conteúdos dessas
postagens e compartilhamentos, identificamos três categorias que compõem as
agendas antirracistas dos coletivos: combate ao racismo institucional do Estado,
antiproibicionismo e antiepistemicídio.
Um dos coletivos, no instagram, postou no dia das mães um texto produzido
por ele próprio sobre o distanciamento ao qual mulheres negras são submetidas
ao perderem filhos(as) pela violência estatal praticada pelas mãos da polícia. A
imagem de uma mulher negra que enfrenta policiais brancos enquanto é por eles
ameaçada de morte estampa a postagem acompanhada de texto que nos leva a
refletir sobre diferentes formas de isolamento social impostas à população negra.
Encarceramento em massa (BORGES, 2018), assassinatos, desaparecimentos após
condução por forças policiais são algumas das práticas de isolamento sobre as quais
Marielle Franco (2018) trata em sua pesquisa de mestrado. Ao relatar o caso do
pedreiro Amarildo, desaparecido após ser levado da favela em que morada por
policiais, ela questiona o embrutecimento produzido nos treinamentos de policiais
para o trabalho desde sua aprovação nos concursos públicos, levando a uma atua-
ção violenta em territórios onde estão a população negra e pobre.
Já no facebook, um grupo público que conta com aproximadamente 500 mem-
bros é mantido por outro coletivo. A página é integralmente alimentada por conte-
údos compartilhados individualmente por quem se torna membro do grupo virtual.
Entre os compartilhamentos mais recorrentes nessa página, estão debates sobre
raça e proibicionismo. Geralmente tais compartilhamentos referem-se à chamada
ou transmissão de uma live realizado por um dos integrantes do coletivo sobre a
pauta antiproibicionista, considerando que a chamada guerra às drogas tem gra-
ves implicações para a vida e a morte da população negra. O discurso de guerra às
drogas tem sido utilizado para ampliar o número de unidades prisionais e fortale-
cer a iniciativa privada por meio do aprisionamento de mulheres negras e homens
negros (BORGES, 2018). E tem justificado ainda incursões armadas nas favelas, cer-
ceando a vida e exterminando a população negra e pobre (FRANCO, 2018).
O mesmo coletivo fez ainda no grupo público do facebook compartilhamento
de conteúdos sobre como a pandemia afeta de forma desigual a vida população
negra no Brasil e no mundo, discutindo como desigualdades raciais antigas tor-
nam-se ainda mais intensas e visíveis nesse momento. O coletivo compartilhou ain-
da conteúdos referentes à importância dos processos de descolonização da univer-
sidade e áreas do conhecimento, como a história. Também nesse sentido, um dos
coletivos fez fez postagens frequentes no Instagram, com indicações de leitura,
documentários, filmes, séries, e podcasts com temas diversos em torno das rela-
ções raciais. Há ainda a publicação de textos breves sobre a importância da produ-
ção teórica e trajetória política de intelectuais negras, negros e indígenas no Brasil e
em outros países. O epistemicídio é um conceito reformulado no Brasil pela filósofa
Sueli Carneiro (2005), que o busca em Boaventura de Souza Santos, demonstrando

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 33


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
que é imprescindível articular a ele o debate sobre racismo. Podemos entender por
epistemicídio “um processo persistente de produção de inferirodade intelectual ou
negação da possibilidade de realizar as capacidades intelectuais” (CARNEIRO, 2005,
p. 97), sendo seu enfrentamento uma entre as agendas dos coletivos na UFMG.
Dos relatos obtidos por meio das conversas no whatsapp com participantes dos
coletivos, observamos que muitos de seus membros, sobretudo aqueles que já ti-
nha vínculos externos, estão desenvolvendo individualmente ações junto a outras
organizações, como movimentos de luta nos bairros, vilas e favelas, associações
regionais e partidárias e coletivos variados. Colaboram em campanhas para arreca-
dar alimentos e produtos de limpeza, realizam lives sobre política, periferia, saúde,
entre outros temas relacionados à população negra em contexto de pandemia. Foi
também relatado por alguns coletivos o uso de grupos do whatsapp para indicação
de lives e outros materiais entre seus membros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
De modo geral, os coletivos operam numa lógica de tentar modificar o ambien-
te acadêmico, garantir acesso e permanência de estudantes negros – em aspectos
simbólicos e materiais –, problematizar a estrutura racial dos currículos, denunciar
fraudes, promover debates sobre a temática racial, entre outras ações, que, mui-
tas vezes, são desenvolvidas externamente. A paralisação de atividades acadêmi-
cas tem reflexos na articulação dos coletivos na UFMG. Em muitos casos o recuo
das ações presenciais é acompanhado de pouca participação nas redes sociais; em
outros, o isolamento social ocasionou intensificação de articulações virtuais antir-
racistas que extrapolam questões do ambiente acadêmico. Acreditamos que essa
pode ser também a realidade de outros coletivos em diversas universidades bra-
sileiras.

REFERÊNCIAS

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BENTO, Maria Aparecida Silva (org.). Psicologia Social do racismo: estudos sobre branqui-
tude e branqueamento no Brasil. 6° ed, Petropolis, RJ: Vozes, 2014. p. 25-57.

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CARNEIRO, Aparecida Sueli. A Construção do Outro como Não Ser como Fundamento do Ser.
339p. Tese. Doutorado em Educação. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

FLICK, Uwe. Pesquisa Online: realização de pesquisa social online. (p 158-170). In: FLICK,
Uwe.

Introdução à Metodologia de Pesquisa: um guia para iniciantes. Porto Alegre: Penso,


2013. p. 163-176.

34 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
FRANCO, Marielle. UPP: a redução da favela a três letras - uma análise da política de segu-
rança pública no estado do Rio de Janeiro. São Paulo: n-1 edições, 2018.

GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por
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GONZAGA, Yone. Gestão Universitária, Diversidade Étnico-racial e Políticas Afirmativas: o


caso da UFMG. 225p. Tese. Doutorado em Educação. Faculdade de Educação, Universida-
de Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2017.

HOOKS, Bell. Intelectuais Negras. Revista Estudos Feministas. Florianópolis. v. 03, n. 02,
p. 463- 478, 1995.

JESUS, Rodrigo Ednilson. Autodeclaração e Heteroidentificação Racial no Contexto das


Políticas de Cotas: quem quer (pode) ser negro no Brasil? In: SANTOS, Juliana; COLEN,
Natália; JESUS, Rodrigo. (Org.). Duas Décadas de Políticas Afirmativas na UFMG: debates,
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RIFIOTIS, Teophilos. Etnografia no Ciberespaço como “Repovoamento” e Explicação. Re-


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[Site institucional]. Belo Horizonte, 2020. Disponível em: https://ufmg.br/storage/9/


d/5/b/9d5bff9213dc34c2ed1763bb4c4143ea_15845832990431_378 828222.pdf. Acesso
em 02 nov. 2020.

AUTORIA
Luana Ribeiro da Trindade
Doutoranda em Sociologia pela UFSCar, membra do grupo de estudos da Diáspora,
vinculado ao Núcleo de Estudos Afro-brasileiros – NEAB/ UFSCar, e do grupo de
pesquisa Transnacionalismo negro e diáspora africana.
E-mail: luana.rt@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7703-7352
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8982688424097281

Karina Pereira dos Santos.


Mestranda em Psicologia Social pela UFMG, trabalha na Prefeitura de Belo Hori-
zonte.
E-mail: karinasantospsi@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1876-3324
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0998295256318641

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 35


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
JULHO DAS PRETAS NO PARANÁ:
ATIVIDADES PARA REFLETIR SOBRE NOSSAS
VIVÊNCIAS

Dirléia Aparecida Matias


Fernanda Lucas Santiago
Gizele Cristiana Carneiro

A noite não adormecerá jamais


nos olhos das fêmeas
pois do nosso sangue-mulher
de nosso líquido lembradiço
em cada gota que jorra
um fio invisível e tônico
pacientemente cose a rede
de nossa milenar resistência.1

INTRODUÇÃO
Neste texto realizamos um levantamento histórico sobre o surgimento do Julho
das Pretas no Brasil, focando na organização e atividades desenvolvidas no Paraná,
as motivações e alguns antecedentes do movimento de mulheres negras na Amé-
rica Latina, assim como, os movimentos posteriores ao I Encontro de Mulheres
Negras Afro-Latino-Americanas e Caribenhas. Não pretendemos com isso elaborar
uma cronologia com a finalidade de relacionar todas as organizações existentes,
pois a profusão de grupos é tamanha que não caberia nessas linhas. Outrossim,
pontuamos de maneira geral alguns grupos e conquistas que fazem parte deste
movimento, do qual o Julho das Pretas está inserido.

POR QUE O JULHO É DAS PRETAS? - UM BREVE HISTÓRICO


O I Encontro Internacional de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Caribenhas2
ocorreu entre 19 e 25 de julho de 1992, em Santo Domingos, na República Domi-

1 Nossa epígrafe é a última estrofe da poesia de Conceição Evaristo em memória de Beatriz


Nascimento “A noite não adormece nos olhos das mulheres”, poesia que também inspirou o mote do
Julho das Pretas Paraná 2020: A noite não adormece em nossos olhos enquanto o racismo não morre.
Poesia completa disponível em: <https://revistaconsciencia.com/a-noite-nao-adormece-nos-olhos-
-das-mulheres/> Acesso em: 22 set. 2020.
2 Disponível em: <https://www.irdeb.ba.gov.br/evolucaohiphop/?p=5801> Acesso em: 17 set.
2020.
Disponível em: <https://nacoesunidas.org/onu-lembra-lutas-antirracistas-e-feministas-no-dia-da-mu-

36 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
nicana. Esse evento reuniu mulheres de mais de 70 países, sendo um ato político
repleto de simbolismo no tempo e no espaço, pois naquele ano as amefricanas3
puderam denunciar conjuntamente pela primeira vez em 500 anos a colonização e
os efeitos da exploração dos territórios e corpos africanos e indígenas.
No último dia desse encontro, após as reflexões sobre a identidade afro-dias-
pórica fundada na experiência comum da colonização, as participantes sentiram
necessidade política de marcar aquela data (25 de Julho) como o dia Internacional
da Mulher Afro-Latina-Americana e Caribenha. É simbólico pensar que somente
após 500 anos do início da violência colonial, as mulheres negras - alvos do racis-
mo e sexismo do sistema moderno colonial de gênero4 - puderam se reunir numa
perspectiva transnacional para pensar uma agenda comum. Também é importante
lembrar que a região onde atualmente está situada a República Dominicana foi um
dos primeiros lugares do continente a ser explorado e colonizado, lugar que por
séculos foi um entreposto comercial importante da extração de minérios (prin-
cipalmente ouro e prata) e importante porto de tráfico negreiro. A revelia dessa
história, também essa posição geografia ao centro do continente foi estratégico
para o encontro das amefricanas do Sul, Norte, Caribe e África.
Importante pontuar que tal encontro só foi possível por conta da re-existência
de diversas organizações de mulheres que estavam mobilizadas em seus países e
que em paralelo estabeleciam parcerias. Posteriormente, o encontro energizou
pautas pré-existentes que estavam sendo gestadas por ativistas de toda a Améfrica
e possibilitou a formação da Red de Mujeres Afrolatinoamericanas, Afrocaribeñas
y de la Diáspora5. Por conta dessa articulação as década de 1990 e 2000 foram de
intensas mobilizações. No Brasil, esse período foi de muitas conquistas no campo
de políticas públicas, em que as mulheres negras protagonizaram a criação de leis
com a finalidade de implementar políticas de ações afirmativas na área da educa-
ção como Lei 10.639/03 e Lei 11.645/08, segurança da mulher com a Lei 11.340/06
e a elevação da Seppir a ministério. As pesquisadoras e ativistas negras Gonzalez
(1984), Ribeiro (2008), Carneiro (2003) e Werneck (2019) afirmam que o fato de
sermos mulheres negras nos faz buscar constantemente combater o racismo e o
sexismo, somos nós que tensionamos a questão racial no movimento de mulheres
e também colocamos em pauta as questões de gênero no movimento negro. E

lher-negra-latino-americana-e-c aribenha/> Acesso em: 17 set. 2020.


Disponível em: <https://www.geledes.org.br/as-origens-do-dia-da-mulher-negra-latina-e-caribenha/>
Acesso em: 17 set. 2020. Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/?p=54714> Acesso em: 17 set.
2020.
3 Conceito cunhado por Lélia Gonzalez (1988) para refletir sobre a construção da identidade da
população da América Latina que segundo ela é muito mais amefricana, ou seja constituída por povos
originários dos continentes americano e africano, do que latinos (povos europeus que cuja língua na-
cional deriva do latim).
4 Conceito cunhado por Maria Lugones (2008) para explicitar as múltiplas opressões sofridas
pelas mulheres de cor no sistema moderno colonial capitalista, racista, heteronormativo e patriarcal.
5 Disponível em: <http://www.mujeresafro.org/> Acesso em: 29 set. 2020.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 37


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
no movimento LGBTQI+, como em outros movimentos seguimos levando nossas
intersecções.
No Brasil, desde 2013, o Odara Instituto da Mulher Negra6 organizou a primeira
agenda do Julho das Pretas no país. Nos anos posteriores, outras organizações da
Bahia e de outros Estados do Nordeste e de outras regiões do território brasileiro
passaram a organizar agendas propositivas. Segundo Silvana da Silva7 a realização
da Marcha das Mulheres Negras em Brasília, organizada pela Articulação das Mu-
lheres Negras Brasileiras (AMNB)8 realizada em 18 de novembro de 2015, mobi-
lizou organizações de mulheres negras de todo o Brasil; fato que potencializou o
planejamento da programação do Julho das Pretas por todos os estados.
Em 2014, o 25 de Julho passou a ser comemorado como o Dia Nacional da Mu-
lher Negra e da Tereza de Benguela por meio da Lei 12.987/14, sancionada pela
presidenta Dilma Rousseff, projeto de Luiza Helena de Bairros (ministra da Seppir
2011-2014), Marta Suplicy, Eleonora Menicucci de Oliveira e Ideli Salvati. Tereza de
Benguela9 foi liderança do quilombo de Quariterê entre 1750-1770, sua trajetória
de vida nos mostra que muito antes das ondas do feminismo, e do I Encontro Inter-
nacional de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Caribenhas, em 1992, as mulheres
negras já estiveram ligadas a movimentos em prol do bem viver, cada uma no ter-
ritório em que viveram encontraram maneiras de (re) existir aos desafios impostos
em seu tempo. Sobre isso retomo o trecho da poesia de Conceição Evaristo no qual
ela reflete sobre esse histórico de lutas de maneira poética:

"A noite não adormece


nos olhos das mulheres
vaginas abertas
retêm e expulsam a vida
donde Ainás10, Nzingas11, Ngambeles12
e outras meninas luas
afastam delas e de nós
os nossos cálices de lágrimas."

6 Disponível em: <https://institutoodara.org.br/julho-das-pretas/> Acesso em: 17 set. 2020.


7 Silvana Bárbara Gonçalves da Silva é Designer de Produto, Mestra em Engenharia de Produ-
ção, integrante da Rede Mulheres Negras PR desde 2013, organizadora do Julho das Pretas PR desde
2017.
8 Site da AMNB disponível em: <http://www.amnb.org.br/> Acesso em: 29 set. 2020.
9 Disponível em: <http://www.palmares.gov.br/?p=46450> Acesso em: 30 set. 2020.
10 Ainá Evaristo de Brito filha única de Conceição Evaristo, enterrou o pai aos 9 anos, dessa for-
ma Conceição faz menção a geração de mulheres mais jovens, tão jovens quanto sua filha, que podem
ter vivenciado essa perda. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=gcUiegUqonQ&featu-
re=emb_logo> Acesso em: 30 set. 2020.
11 Nzinga Mbandi rainha do Reino Ndongo nascida em 1582, liderou os exércitos e governou
o reino entre 1623 a 1663. Disponível em: <https://www.geledes.org.br/nzinga-a-rainha-negra-que-
-combateu-os-traficantes-portugueses/> Acesso em: 30 set. 2020.
12 Ngambele é uma qualidade da orixá Oyá, que expressa a dificuldades para gestar mas, que
após consultar o ifa e respeitar certas restrições conseguiu fortalecer seu útero e ser mãe. Disponível
em: <https://osmisteriosdaafrica.blogspot.com/2016/02/oya-gambele.html> Acesso em: 30 set. 2020.

38 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O trecho acima remete às superações das dores que as mulheres negras enfren-
tam como a dor da menina que enterrou o pai, a dor da rainha africana que mesmo
após 40 anos de resistência viu seu reino sendo invadido, a dor das mulheres que
querem ser mães e sofreram sucessivos abortos espontâneos. O trecho remete
a momentos diferentes da vida de uma mulher e também remete a tempos dife-
rentes na história, o que nos habilita pensar nos movimentos de luta e resistência
anteriores ao nosso, assim como o nosso presente e futuro. Desde o movimento
quilombola, das lutas por libertação da escravização, a constituição das irmanda-
de negras, dos clubes sociais negros, agremiações e coletivos de mulheres negras.
Como diria Jurema Werneck (2019): “nossos passos vêm de longe”, tanto no tempo
como no espaço. É importante lembrar que desde 1962 é comemorado em 31 de
julho o dia da Mulher Africana13 por realização da Conferência das Mulheres Afri-
canas em Dar-Es-Salaam, na Tanzânia. Essa celebração é reconhecida em 14 países
e por 8 movimentos de Libertação Nacional. Durante essa conferência foi criado a
organização Panafricana das Mulheres com o objetivo de discutir o lugar do femini-
no dentro das questões africanas: como a libertação dos países Africanos; recons-
trução da África pós exploração colonial e das lutas de libertação; a luta contra a
AIDS; valorização da educação, a defesa da paz e da democracia.

AS EDIÇÕES DO JULHO DAS PRETAS NO PARANÁ


(...)
A voz de minha filha
recolhe todas as nossas vozes
recolhe em si
as vozes mudas caladas
engasgadas nas gargantas.

A voz de minha filha


recolhe em si
a fala e o ato.
O ontem – o hoje – o agora.
Na voz de minha filha
se fará ouvir a ressonância
O eco da vida-liberdade.14

Trazemos para esta conversa a escritora e estudiosa norte-americana Gloria


Anzaldúa. Chicana, Gloria dedicava-se a estudar sua cultura, bem como a teoria
feminista e a teoria queer. Escreveu, na década de 1980, uma carta - a qual foi re-
publicada em 2000 - na qual convoca “as mulheres escritoras do terceiro mundo” a

13 Disponível em: <https://www.geledes.org.br/hoje-na-historia-1962-foi-instituido-como-o-


-dia-da-mulher-africana/> Acesso em: 29 set. 2020.
14 EVARISTO, Conceição. Vozes-mulheres. Fonte: http://www.letras.ufmg.br/literafro/literafro/
autoras/24-textos-das-autoras/923-conceicao-evaristo-vozes-mulheres. Acesso em: 29 set. 2020

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 39


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
narrar suas próprias histórias, a recuperar suas línguas e a fazer soar suas vozes em
um mundo no qual sempre as quiseram caladas. Trazemos Gloria porque ela nos
diz: “Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever
as histórias mal escritas sobre mim, sobre você.” (ANZALDÚA, 2000, p. 232 )
O Julho das Pretas também escreve. Não somente com palavras e poesia como
nossa irmã chicana, mas com as ações de mulheres negras que não aceitam a con-
dição subalterna que a sociedade as relega historicamente, que não aceitam a con-
dição da “outridade” criada pelo “eu-hegemônico” de Sueli Carneiro (2005), que
conjuram o racismo e formas correlatas de discriminação. E que ao narrar sobre
um ajuntamento de mulheres negras na contemporaneidade atentam-se a todos
os chamados que o prenunciaram. É assim que reescrevemos nossa história: nos
movendo em coletivo, organizadas, aquilombadas.
Essa reescrita da história a partir do 25 de julho acontece no Paraná desde 2014
pela iniciativa da Rede de Mulheres Negras do Paraná (RMN-PR), ONG que atua
nas pautas de gênero e raça desde 2006, ano no qual foi fundada a entidade. A
RMN-PR, como filiada da AMNB, organizou a delegação do Paraná para participar
da Marcha de Mulheres Negras em Brasília. Foi a partir do ato no Distrito Federal
que se decidiu realizar em 2017 o Julho das Pretas no contexto paranaense. A deci-
são por organizar o Julho das Pretas-PR foi um desafio para a ONG, pois o objetivo
principal dessa programação de atividades era, e continua sendo, dar visibilidade
às pautas específicas das mulheres negras. A organização teve iniciativa em Curiti-
ba, contou com o apoio de outras entidades e organizações do movimento social,
realizando uma sequência de ações numa cidade considerada “europeia”, na qual
se fala muito da contribuição que imigrantes europeus trouxeram em detrimento
da importância histórica da população negra.
Sempre estruturada com um tema gerador, a primeira edição do Julho das Pre-
tas-PR teve como origem do mote a Marcha das Mulheres Negras em Brasília: Con-
tra o machismo, o racismo e pelo Bem-Viver. Também foi destacada como pano de
fundo do mote a Década Internacional de Afrodescendentes da ONU, que começou
em 2015 e finalizará no ano de 2024. A programação contou com onze atividades,
entre oficinas, encontros, homenagens, apresentações culturais e culminou com a
ação mais desafiadora, o Ato Julho das Pretas, a primeira marcha de mulheres ne-
gras em Curitiba. A concentração para a marcha foi no Centro Histórico da cidade e
percorreu todo um caminho que remete à história da população negra, planejado
para mostrar as contribuições do povo negro. Caracterizado por performances em
cada parada e por palavras de ordem relacionadas à temática de gênero e raça,
foi finalizada na chamada “Boca Maldita”, como uma provocação a um lugar de-
nominado como “reduto dos homens brancos e da classe média”. Importante co-
locar que a organização deste primeiro Julho das Pretas-PR não esperava pela sua
continuidade em 2018, por causa dos desafios que envolvem a realização de uma
programação de atividades desta abrangência.

40 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Todavia, no ano seguinte a mobilização de mulheres negras dos mais diversos
agrupamentos possibilitou a organização da segunda edição da agenda. Em 2018,
com o mote Direitos Importam! Pretas no Poder!, a intenção foi denunciar a retira-
da de direitos acenada no pós-Golpe, a ausência das mulheres negras nas instâncias
de poder, assim como a necessidade de superação das desigualdades de gênero e
raça, colocando a agenda política do Movimento de Mulheres Negras em evidên-
cia. É importante registrar também que o recente assassitado de Marielle Franco
- socióloga e vereadora do Rio de Janeiro - e de seu motorista, Anderson Gomes,
ocorrido em 14 de março de 2018 permeou as discussões do Julho. Tal atrocidade
escancarou de forma violenta o desejo político de silenciar as vozes crescentes de
mulheres, em especial, de mulheres negras. Como se não bastasse, o ano 2018 foi
marcado pelo desvelamento dos discursos de ódio e dos discursos conservadores,
pela eleição de um Governo antidemocrático e pela consequente perda de direitos
a qual atinge fortemente mulheres trabalhadoras. É nesse cenário que a progra-
mação foi construída dando destaque à voz das mulheres negras no contexto local
e estadual, assim como demarcar o que vislumbrávamos para o país. Realizamos,
a partir disso, uma agenda diversa com rodas de bate papo (uma delas com me-
diação da RMN-PR), oficinas sobre saúde e prevenção combinada, palestras com
temáticas que abrangiam a população negra e a indígena, lançamento de livros,
colóquio sobre Feminismo Negro na Universidade Estadual de Maringá, seminário
ancorado nos conceito de gênero, raça e classe. Além disso, tivemos virada cultural
na Sociedade Treze de Maio organizada pelo Ilê Yabás, feira afroempreendedora,
batalha do Slam Resistência Surda com a curadoria de Gabriela Grigolom - figura
expoente da comunidade surda -, confraternização no espaço do Quintal da Maria
encerrando com a Marcha das Mulheres Negras no Parolin, bairro periférico de
Curitiba.
Infelizmente, no ano de 2019 registrou-se mais um evento brutal contra uma
família negra do Rio de Janeiro. O assassinato do músico Evaldo Rosa dos Santos15
pelo Exército Brasileiro entra para a estatística assustadora do genocídio negro já
há muito denunciado pelo Movimento Negro brasileiro. Em decorrência desse fato,
a edição do Julho das Pretas-PR de 2019 teve como mote Negras pela paz: Basta
de tiros e de prisão, basta de execução, mote esse que dialoga com o clamor feito
por Jurema Werneck16 na publicação intitulada “A era da inocência acabou, já foi
tarde” (2001).
Nesse texto a autora exige que tanto o Estado brasileiro quanto a sociedade
assumam a responsabilidade diante da superação do racismo, visto que se trata de
um fator estruturante das relações sociais e dispositivo fatal na atuação policial.
Nesse sentido, afirma que:

15 Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2019/04/militares-do-exercito-matam-
-musico-em-abordagem-na-zona-o este-do-rio.shtml. Acesso em: 30 set de 2020.
16 WERNECK, Jurema. A era da inocência acabou, já foi tarde. Disponível em: <https://glefas.
org/download/biblioteca/feminismo-antirracismo/Jurema-Wernerck.-A-era-da-inoceCC82ncia-acab
ou.pdf> Acesso em 30 set. 2020.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 41


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Levou séculos para que o Estado brasileiro pudesse reconhecer
a presença do racismo como fator estruturante das relações so-
ciais no país. E isto só acontece agora, ao final do século XX e
início do século XXI, como resultado de um trabalho longo, ár-
duo, vivido em profundo isolamento por nós, negros. Enquanto
denunciávamos o racismo; enquanto demonstrávamos a perver-
sidade com que esse definia privilégios e exclusões, vidas e mor-
tes; enquanto éramos nós mesmos nosso próprio testemunho,
o restante da sociedade permanecia em silêncio. (WERNECK,
2001, n.p.)

A partir desse contexto é que a organização da edição de 2019 promoveu ati-


vidades que denunciaram publicamente as violências acumuladas pela população
negra, em especial com a “Caminhada Mães Pretas pela Vida” realizada na Feirinha
do Largo da Ordem, em Curitiba-PR. Esta caminhada teve como percussionistas as
Mulheres negras do Bloco Afro Pretinhosidade. Contabilizamos na agenda 23 ativi-
dades entre rodas de conversa, cine debate, atividades culturais, atividades acadê-
micas, culto inter-religioso, feira afroempreendedora e muito mais. É importante
ressaltar o ineditismo da descentralização das ações do Julho das Pretas - proposta
pela Rede de Mulheres Negras do Paraná - contemplando a cidade da Lapa, de
Araucária, de Cornélio Procópio, de Foz do Iguaçu e de Castro.
Como não poderia deixar de ser, o ano de 2020 nos trouxe outro desafio: rea-
lizar toda a programação de forma remota tendo em vista a necessidade do isola-
mento social devido à pandemia do COVID-19.
O mote dessa edição - A Noite não adormece, em nossos olhos, enquanto o
racismo não morre! - teve como referência o supracitado poema de Conceição
Evaristo, intitulado “A noite não adormece nos olhos das mulheres”, visto que a
prática genocida é um dispositivo que deixa mulheres viúvas e órfãos de seus fi-
lhos, conforme nos apontam os índices17 de violência no Brasil. Por isso, enquanto
o racismo não morre, as mulheres negras perdem o sono constantemente por
medo do genocídio levar um de seus familiares. Ainda mais agora que enfren-
tamos uma pandemia que demarca a diferença entre os que terão acesso à saúde
em detrimento dos demais18.
É partindo desse cenário que a organização do Julho das Pretas-PR se reconfigu-
rou para manter um ciclo de reflexões, debates, denúncias e de atividades cultu-
rais que vêm sendo promovidas há 4 anos. As atividades foram das mais variadas:
pocket show com cantoras negras, bate-papo sobre literatura infantil, sobre sabe-

17 Fonte: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-08-27/numero-de-homicidios-de-pessoas-ne-
gras-cresce-115-em-onze-anos-o- dos-demais-cai-13.html. Acesso em: 7 out. 2020.
18 Sobre isso, ler a matéria publicada no site da Carta Capital intitulada “Pandemia do coronaví-
rus acentua o racismo estrutural no Brasil”. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/
pandemia-do-coronavirus-acentua-o-racismo-estrutural-no-brasil/. Acesso em: 7 out. 2020.

42 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
res ancestrais de parteiras e sobre a saúde das mulheres negras. Também tivemos
live sobre empoderamento e mídias digitais.
Por também estarmos em ano de eleições municipais, foi possível realizar uma
conversa com pré-candidatas a vereadoras em Curitiba e na Região Metropolitana
pautada pelo tema: voto étnico e relações de poder.
No âmbito das atividade acadêmicas, tivemos o II Encontro de Pretas Acadê-
micas com lançamento do e-book dos trabalhos apresentados no ano de 2019.
Contamos ainda com a produção de uma live pelo projeto Quinta Preta19 reunindo
organizadoras do Julho das Pretas da Bahia - representado por Maisa Vale, do Insti-
tuto Odara -, do Mato Grosso do Sul - representado por Rosana Anunciação Franco,
Coordenadora de Políticas de Promoção da Igualdade Racial de Campo Grande/MS
- e do Paraná - representado por Angela Elizabeth Sarneski, ativista do Movimento
Negro, do Movimento de Mulheres Negras e integrante da Rede de Mulheres Ne-
gras do Paraná.
Por fim, é imprescindível registrar que essa foi a primeira edição do Julho das
Pretas-PR em que contamos com proponentes, palestrantes e oficineiras transgê-
neros, tivemos um debate sobre “As marcas do imperialismo europeu e da coloni-
zação brasileira sobre as corpas pretas travestigêneres” e a oficina de dança “Cunt?
Práticas de voguing femm”, ambas propostas por Majo Harpya. Por tudo já relata-
do, pressupomos que a transposição do evento para as mídias sociais - ainda que
encontros e trocas sejam mais potentes presencialmente - possibilitou o alcance e
a ampliação da participação de grande quantidade de pessoas e de localidades di-
ferentes, das quais pretende-se estabelecer contatos e parcerias futuras. Todas as
atividades realizadas em 2020, ainda estão disponíveis na páginas das redes sociais
do Julho das Pretas PR20.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Pensar que o Julho é das Pretas não é se restringir a um mês do calendário mas,
é marcar no meio do calendário Ocidental e de maneira central a pauta das mu-
lheres negras, é recordar do nosso histórico, é contemplar o feito das nossas mais
velhas, é entender que somos herdeiras de um legado da parceria entre amefrica-
nas que já enfrentaram ao longo da história diversas violências e retrocessos, é ter
esperanças de assim como elas nós também conseguiremos encontrar soluções
para os novos desafios que não cansam de se apresentar.

19 Quinta Preta é um projeto do NEAB-UFPR em parceria com a SIPAD-UFPR e do ErêYá que


quinzenalmente propõe atividades, nesta Quinta Preta supracitada foi proposto uma live com o tema
Julho das Pretas em 30 de julho de 2020. Live na íntegra disponível em: <https://www.facebook.com/
neabfederal/videos/3117954718325128> Acesso em: 22 set. 2020.
20 Facebook do Julho das Pretas PR disponível em:<https://www.facebook.com/julhodaspre-
taspr> Acesso em 09 out. 2020. Instagram do Julho das Pretas PR disponível em: <https://www.insta-
gram.com/julho.pretas.pr/> Acesso em 09 out. 2020.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 43


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
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blications, 2009 (generado el 19 avril 2019). Disponível em: <https://books.openedition.
org/iheid/6316>. Acesso em: 18 jun. 2020.

44 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
AUTORIA
Dirléia Aparecida Matias
Especialista em Metodologia do Ensino pelo Instituto Brasileiro de Pós-Graduação
e Extensão. Graduada em Pedagogia com licenciatura em Supervisão Escolar pela
UFPR. Pedagoga do Município de Araucária. Integrante do GEAA – Grupo de Estu-
dos Africanidades Araucária, Conselheira do COMPIR, Conselho de Promoção de
Igualdade Racial de Araucária. Organizadora do Julho das Pretas Paraná 2020.
E-mail: dirleiamathias@gmail.com

Fernanda Lucas Santiago


Mestra em História pela Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). Pes-
quisadora Associada ao Aya Laboratório de Estudos Pós-Coloniais e Decoloniais da
UDESC. Membro Consultora da Comissão da Verdade Sobre a Escravidão Negra
OAB-PR. Professora no Cursinho Pré-Vestibular Popular Ubuntu. Integrante da Rede
Mulheres Negras-PR. Organizadora do Julho das Pretas Paraná nas edições 2019 e
2020.
E-mail: flucasantiago@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7769469811615233

Gizele Cristiana Carneiro


Professora efetiva da Secretaria Estadual de Educação do Paraná- SEED, é mes-
tranda em Educação pela Universidade Federal do Paraná no Programa de Teoria e
Prática de Ensino, graduada em Letras Português e suas Literaturas pela Universi-
dade Estadual do Centro-Oeste (2003-2007), participou como bolsista no Programa
de Educação Tutorial, PET-Letras, na mesma instituição, no período compreendido
entre outubro de 2005 a dezembro de 2007. É especialista em Produção e Recepção
de Textos pela Faculdades Santa Cruz de Curitiba (2010-2011) e organizadora do
Julho das Pretas Paraná nas edições de 2019 e 2020.
E-mail: gizele.cristiana1980@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4069191040380472

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 45


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
TERRITORIALIDADES NEGRAS DA CAMPANHA
GAÚCHA: UM DIÁLOGO COM SUBALTERNIDADES
E R-EXISTÊNCIAS

Anderson Luiz Machado dos Santos

[...] Na cara e nos meus pelegos


O vento do pampa bravo
Parecia ao me ver negro
Querer ainda me fazer escravo.
(Oliveira Silveira)

INTRODUÇÃO
Este trabalho é resultado de um processo de pesquisa1 no âmbito da Geografia
e Ciências Sociais, cujo campo de estudos se situam nas questões relativas a pro-
dução do espaço-tempo geográfico no Brasil Meridional, particularmente no que
concerne a região conhecida como Campanha Gaúcha, área que abrange a porção
sul do Rio Grande do Sul (RS), desde a Serra de Sudeste até a Fronteira Oeste. Sua
problemática reside em compreender como uma multiplicidade de sujeitos origi-
nários e reterritorializados na região, encontram-se em uma posição de subalter-
nidade ante a um regime territorial hegemônico-dominante. Nesta comunicação,
destacamos a condição das populações negras, sujeitadas e subalternizadas por
tal regime, em paralelo a produção de seus espaços-tempos de vida e r-existên-
cia. Nesse sentido, identifica-se que a posição subalterna dos sujeitos, mobiliza um
conjunto de práticas e saberes, que permitem afirmar a conformação de territoria-
lidades negras em r-existência, diante das relações de poder heterônomas.
Por sua vez, os aportes teóricos-metodológicos utilizadas para refletir e inter-
pretar essa afirmação, coadunam diferentes matrizes epistêmicas, com destaque
para o pensamento pós- estruturalista, descolonial e afro-diaspórico. Esta perspec-
tiva, delineou a produção de uma pesquisa- diálogo com os sujeitos, ou seja, não
uma pesquisa sobre os sujeitos, tratados como meros objetos conforme a tradição
metodológica euro-norte-centrada (MIGNOLO, 2003). Assim, a partilha, o diálogo
e a empatia dos saberes tem sido seus instrumentos fundamentais, bem como a
inscrição nos territórios (PORTO-GONÇALVES, 2008), para alcançar as trajetórias
dos sujeitos, a partir de estudos de caso ampliados como enlace metodológico, rea-

1 Refere-se à: SANTOS, A. L.M. Nos Rincões do Brasil Meridional: des-re-territorialização, su-


balternidade e r-existência na formação territorial da Campanha Gaúcha. 256 f. (Tese), Programa de
Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (Doutorado em Geografia), Univer-
sidade Federal Fluminense, Niterói, 2018.

46 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
lizados junto a populações negras que vivem nas margens latifundiárias-agronego-
ciantes do regime territorial questionado. Portanto, tratam-se de populações que
vivem no campo ou, espaço rural; com maior distanciamento e relativo isolamento
em relação ao espaço urbano, nos espaços-tempos chamados de rincões da Cam-
panha Gaúcha. Também, suas memórias relatadas, não remetem a formação de um
quilombo, em um sentido stricto sensu, mas podem ser interpretadas como pro-
cessos de r-existência nos horizontes do quilombismo conforme a perspectiva de
Nascimento (2019 [1980]).

O REGIME TERRITORIAL EM QUESTÃO: A CAMPANHA GAÚCHA


REVISTADA
O excerto mobilizado na epígrafe deste trabalho, pertence a obra Décima do
Negro Peão (1974) do escritor, intelectual e ativista Oliveira Silveira (1941-2009),
natural do município de Rosário do Sul, cuja infância viveu na Serra do Caverá,
localizada na Fronteira Oeste do RS. Este poema, também denominado como afro-
-gaúcho, inicia nossa inscrição territorial e contextualiza o universo regional em
questão, na medida em que traz para a narrativa, elementos da presença negra na
Campanha Gaúcha, ao descrever a vida de um peão negro, enquanto espaço-tempo
presente e ao mesmo tempo, ao remeter, ao seu espaço-tempo passado, qual seja,
a escravidão negra vigente na região. Por sua vez, é mister enfocar que o conceito
de território, nesta abordagem, diz respeito às múltiplas relações de poder que se
estabelecem no espaço-tempo (RAFFESTIN (1993[1980]); (SACK 2011[1986]); (HA-
ESBAERT, 2004, 2014); e as suas expressividades simbólicas (DELEUZE; GUATTARI
(1997 [1980]).
Não obstante, o enlace regional, se refere as diferenciações socioespaciais pro-
duzidas pelos sujeitos em seu ambiente, o que está presente na linguagem e na
experiência social, a exemplo do peão negro mencionado em Silveira (1974), o qual
vive entre os pelegos (elemento de montaria sobre um cavalo e também de acon-
chego nos momentos de descanso), ao vento do pampa, na sua trajetória em di-
reção ao trabalho em uma estância2. Esses elementos caracterizam as distinções
regionais em tela, não apenas enquanto categoria de análise, mas também como
categoria da prática conforme a perspectiva de Bourdieu (2005 [1989]), cujos ele-
mento estão presentes nas práticas cotidianas e incorporadas ao discurso dos su-
jeitos que se afirmam pertencer à Campanha Gaúcha.
Todavia, a reivindicação que o poeta negro faz acerca da condição afro-gaúcha,
particularmente ao voltar-se para a Campanha Gaúcha, seu berço de origem, nos
introduz na reflexão acerca de um regime territorial vigente neste espaço-tempo,

2 Silveira (1974) prossegue seus versos - Mas dei rédea o matungo, prá tal estância da Tala e
o galpão tinha no fundo um certo ar de senzala [...]. Estância no contexto regional, significa a forma
de grande propriedade destinada a produção e comercializado de gado, sobretudo bovinos, ovinos e
cavalar.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 47


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
o qual se tornou hegemônico e dominante, bem como no qual a presença negra
e de outras populações, são tão subalternizadas quanto, invisibilizadas e silencia-
das. Nesse sentido, Foucault (1995[1982]), explica que um regime de saber-poder
é o modo pelo qual o saber circula e funciona suas relações com o poder. Assim,
identificou a formação de um regime de verdade sob a égide de um discurso cien-
tífico que sujeitou diversos saberes locais e regionais, considerados desqualifica-
dos, inferiores, não conceituais ou insuficientemente elaborados (FOUCAULT, 2005
[1976a]). Esse regime de verdade torna elementos visíveis ao passo que oculta/
invisibiliza outros. Desta forma, um regime territorial pode ser interpretado, em
termos de relações de sujeição3 e mais amplamente, de subalternização e violência
no espaço-tempo. Esta noção se aproxima da caracterização feita por Raffestin
(1993 [1980]), acerca do desejo de poder em uma malha territorial, na qual o poder
transforma a existência daqueles que a ele estão submetidos.
É deste modo, que vemos se manifestar um regime territorial na Campanha
Gaúcha, sob a hegemonia e a dominação latifundiário-estancieira, num primeiro
momento (até a início do século XX), ao qual se somam as forças do agronegócio
e do neoextrativismo, em um segundo momento (a partir da segunda metade do
século XX e início do século XXI). Esse regime é um processo que remete a uma es-
cala espaço-temporal de longa duração (BRAUDEL 1990 [1958]), desde as disputas
territoriais entre os impérios portugueses e hispânicos em direção ao Brasil Me-
ridional e a Bacia Platina, até o presente. Mais do que desenvolver uma narrativa
histórica desse processo, situamos que sua genealogia, possui na colonialidade sua
pedra angular.

La colonialidad es uno de los elementos constitutivos y espe-


cíficos del patrón mundial de poder capitalista. Se funda en la
imposición de una clasificación racial/étnica de la población del
mundo como piedra angular de dicho patrón de poder, y opera
en cada uno de los planos, ámbitos y dimensiones, materiales y
subjetivas, de la existencia cotidiana y a escala social (QUIJANO,
2007 p.93).

Nesse processo, todas as formas históricas de trabalho estariam a serviço do


capital; do mesmo modo que nos outros âmbitos, o sexo em relação à família bur-
guesa, a subjetividade em relação à racionalidade moderna (eurocêntrica), a auto-
ridade articulada ao Estado-nação. Diante da multiplicidade de âmbitos e relações
apontadas por Quijano (2007), Castro-Gómez e Grosfoguel (2007) nos direcionam
a pensar em heterarquias, como a articulação enredada (em rede) de múltiplos

3 É importante destacar, conforme Collins (2019 [1990]) alerta, que a noção de saber sujei-
tado/sujeição em Foucault (2005[1976]), não dá conta das opressões interseccionais vividas pelas
mulheres afro-americanas e seu pensamento que mobiliza diferentes matrizes africanas, assim como
Mbembe (2003), confronta os limites da noção de biopoder e de seu racismo adjacente, na obra do
mesmo autor, deslocando a análise para os contextos coloniais, da escravidão negra e do capitalismo
tardio, asseverando a existência de um necropoder/necropolítica como elemento constitutivo da pró-
pria modernidade.

48 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
regimes de poder, onde não há uma determinação em última instância, tampouco
o domínio de dispositivos autônomos.
Isto posto, identificamos na região da Campanha Gaúcha que a constituição de
seu regime territorial se estabeleceu através da apropriação dos bens naturais (a
terra e o gado oriundo da vacarias4) na forma de grandes propriedades - as estân-
cias, destinadas ao aprisionamento do gado, para reprodução e comercialização;
pela exploração do trabalho livre, escravo e familiar, subordinado aos interesses
econômicos dos estancieiros; por um regime de autoridade sustentado através de
relações de domínio pessoal e da violência pelos considerados senhores da terra,
ante os demais sujeitos sociais; bem como a serviço do Estado territorial em forma-
ção no Brasil e na defesa de suas possessões meridionais. Esse processo, em um
contexto de militarização, conduziu a um modelo de sociedade fundado nas hete-
rarquias ou interseccionalidades (COLLINS, 2019[1990]), do racismo, do patriarca-
lismo e do machismo como referências nas relações de gênero; promovendo uma
classificação social5 entre os considerados senhores da terra e os denominados
intrusos – a exemplo das populações indígenas, negras, mestiças, camponesas, de
peões e suas famílias.
Portanto, esse padrão heterárquico de poder, não foi produzido em um “vazio
demográfico” ou em “terras de ninguém” como apontam os trabalhos historiográ-
ficos de Garcia (2005), Farinatti (2006) e Osório (2008). Tão pouco se fez sob formas
consensuais, pois de acordo com as respectivas pesquisas, os processos de acesso
aos bens naturais, como a terra e o gado pelos estancieiros, não se deram apenas
através da concessão de sesmarias pelo Estado; a ocupação simples de terras de-
volutas e a instituição de unidades produtivas sobre terras alheias foram outros
mecanismos presentes, raramente ocorreu a compra de terras. Também, a fraude
documental e a expropriação violenta dos sujeitos originários e reterritorializados,
foram parte dos dispositivos de dominação.
Nesse sentido, as territorialidades originárias e reterritorializadas na Campanha
Gaúcha foram paulatinamente subalternizadas, consequentemente, marginaliza-
das, invisibilizadas e silenciadas no espaço-tempo regional. Mas, não sem lutas e
resistências. Logo, destacamos que a Campanha Gaúcha foi o território (no senti-
do do uso e da apropriação do espaço-tempo conforme as concepções de Santos
(1999) e Haesbaert (2004), respectivamente), habitado pelos povos nômades de-

4 Segundo Kühn (2002), a frente de colonização hispânica no início do século XVII, introduziu
nas primeiras reduções jesuíticas, situadas na porção ocidental do rio Uruguai e do Tape (denominação
atribuída à área de abrangência do centro-norte do RS, entre as bacias hidrográficas dos Rios Jacuí
e Uruguai), a pecuária como atividade produtiva, através de estâncias de criação de gado (vacuns e
muares). Porém, ameaçados pelos constantes ataques dos bandeirantes paulistas, os padres jesuítas
deixaram a área do Tape e juntamente, boa parte de seu gado. Esse gado encontrou excelentes condi-
ções de sobrevivência nos campos e se multiplicou, formando um imenso rebanho de gado “xucro” ou
“chimarrão” (não domesticado), denominado pelos colonizadores de Vacarias.
5 Segundo Quijano (2007), o conceito de classificação social se refere a um processo de longo
prazo no qual, os agentes disputam o controle dos âmbitos básicos de existência social a partir de rela-
ções de exploração, dominação e conflito.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 49


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
nominados de Pampeanos6 (em especial os grupos Charruas e Minuanos) de ori-
gem Quíchua. Na vasta pampa, os povos Charruas e Minuanos faziam dos campos
a sua morada. Porém, o confronto entre as forças expansivas de colonização espa-
nhola e portuguesa na disputa pela bacia platina, somente apaziguado no limiar do
século XIX, promoveu o genocídio desses povos. Contudo, é dessa matriz indígena
de cavaleiros e arreadores de gado, que nasceram muitos dos elementos forma-
dores da cultura gaúcha, os quais a colonialidade do saber (LANDER, 2000), tenta
subordinar e ocultar.
Nesta genealogia, Garcia (2005), identifica, além da presença das populações
indígenas remanescentes e negras escravizadas, a exploração de uma margem
considerável de homens e mulheres pobres “livres”, que com a criação de peque-
nos rebanhos tentavam garantir sua autonomia e o sustento de suas famílias. Es-
ses sujeitos formaram um campesinato originário da Campanha Gaúcha, os quais
manejavam pequenos rebanhos, insuficientes para sua subsistência, levando-os a
se dedicar também a produção de pequenas lavouras para garantir o sustento de
suas famílias. Nesta condição, muitas vezes trabalhavam fora de suas áreas apro-
priadas, no ofício de peões de estâncias - aqueles que vendem sua força de traba-
lho como empregados dos estancieiros. Por sua vez, cotejavam ao lado dessa
multiplicidade de sujeitos, as populações negras escravizadas, espoliadas e vio-
lentadas pelos grandes estancieiros. Nesse âmbito, destaca-se que durante muito
tempo a historiografia regional difundiu uma visão na qual a Campanha Gaúcha,
possuiria, uma estrutura social baseada na exploração de trabalhadores que “livres”
para vender sua força de trabalho para os estancieiros - os peões. Essa concepção
excluía outras categorias sociais, como camponese(a)s e escravo(a)s (FARINATTI,
2010). Tratou-se da tese do capitalismo pastoril, difundida por Freitas (1980). En-
tretanto, para além do trabalho de Cardoso (2003 [1962]), que já apontava para a
importância e para a violência das relações escravistas nas Charqueadas7 entre
Pelotas e Rio Grande (sudeste do Rio Grande do Sul), novos estudos têm demons-
trado o papel do trabalho escravo nas próprias estâncias da Fronteira Oeste deste
território, sobretudo, no período em que a Campanha Gaúcha foi a grande for-
necedora de matéria-prima para a produção de charque.
Farinatti (2006), aponta a presença de “escravos do pastoreio” nas estâncias da
região, os quais eram escravos campeiros e domiciliares (onde a presença feminina
era maior), que formavam um núcleo estável de mão de obra para fazer frente, pelo
menos, às demandas regulares de trabalho no manejo do gado e das propriedades,
de um modo geral. Desta forma, os senhores da terra procuravam assegurar a re-

6 Golin (2001), nos informa que o termo Pampa é de origem indígena, expressado na língua
Quíchua dos povos originários que ficaram conhecidos como Pampeanos, que o utilizavam o termo
Pampa para designar - aproximativamente na língua colonial portuguesa - um território plano com
grandes pastagens, la pampa. Assim, Pampeanos passou a ser a designação atribuída aos povos que
habitavam la pampa há milênios, em áreas que correspondem atualmente ao sul do Rio Grande do Sul,
leste da Argentina e Uruguai.
7 Charqueada: propriedade destinada à produção de charque - carne bovina cortada em man-
tos, salgada e seca ao sol.

50 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
produção de suas estâncias, diminuindo a necessidade de recorrer ao mercado de
força de trabalho. Por sua vez, Piccolo (1990), manifesta a existência de uma cultu-
ra de resistência escrava, não qual os sujeitos racializados não foram submissos ao
sistema que lhes foi imposto e dentro de seus limites, manifestaram sua condição
de ser humano, em detrimento das práticas que os coisificavam. Esses elementos
são fundamentais para compreender o que denominamos de r-existência negra da
Campanha Gaúcha.
Por seu torno, o instituto da soberania, que representa uma tecnologia de poder
segundo Foucault (1999 [1976]), a qual permite extrair dos corpos, bens e riquezas,
mais do que tempo e trabalho, e que também se alimenta da violência conforme
Mbembe (2003), constituem os dispositivos que tornaram a figura do estancieiro
em soberano, como homem branco, patrão e herói militar, figura inconteste no
domínio territorial; ao mesmo tempo, responsável pela dimensão racista, classista,
patriarcal e machista que fundamenta o regime territorial na sociedade da Cam-
panha Gaúcha. Esse regime, tem passado por alterações com o ingresso de novos
agentes (agronegociantes e neoextrativistas, por exemplo) que instituem novas
relações no campo do poder (do bio ao necropoder), entretanto seus fundamentos
se mantém, desde a colonialidade do poder e do saber, que se estende da natureza
até o ser8, determinante das experiências sociais na região.

TERRITORIALIDADES NEGRAS ENTRE A SUBALTERNIDADE


E A R- EXISTÊNCIA: PERSPECTIVAS DESDE OS RINCÕES DA
CAMPANHA GAÚCHA
Nas determinações da colonialidade, a raça e a racialização dos sujeitos são
elementos fundamentais dos padrões de poder e das formas de existência nele
inscritas, conforme Quijano (2013) e Maldonado-Torres (2007). Nesse sentido, o
regime territorial em questão não foge à regra, pois os povos originários e as popu-
lações negras reterritorializadas, situam-se em uma zona de não- ser, em uma re-
gião extraordinariamente estéril e árida conforme a interpretação de Fanon (2008
[1952]), permite reportar. Isto é muito evidente no contexto da Campanha Gaúcha,
pois os espaços-tempos vividos por essas populações são verdadeiras zonas áridas,
precárias, onde a manifestação de sua própria existência é negada, na medida em
que se afirma um outro espaço-tempo, hegemônico e dominante, de homes bran-
cos, grandes proprietários, patriarcas e heteronormativos. Trata-se da manifesta-
ção da branquitude enquanto elemento do regime territorial, ou seja, um espaço
estrutural no qual o branco vê aos outros e si mesmo, desde uma posição de poder

8 Segundo Maldonado-Torres (2007), a colonialidade do ser se refere à experiência vivida da


colonização, remete à diferença ontológica do processo colonial, que inclui como parte intrínseca do
mesmo, a ideia de raça e asceticismo misantróprico, que produz sujeitos liminares, os quais marcam os
próprios limites do ser, num mundo em que a produção de sentidos se sobrepõe à justiça. Assim, as cli-
vagens raciais, de gênero ou classe atravessam a experiência do ser em suas características existenciais
fundamentais e imaginários simbólicos.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 51


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
não nomeada, mas vivenciada, a qual permite atribuir ao outro aquilo que não se
atribui a si mesmo (FRANKENRBERG, 1993). Desta forma, emerge uma verdadeira
barreira de contenção territorial que invisibiliza e precariza os dispositivos de ma-
nutenção e majoração da vida entre essas populações (tais como o acesso às polí-
ticas públicas de acesso a saúde, habitação, mobilidade, educação, dentre outras).
Contudo, as relações de poder não são unilaterais e sim uma multiplicidade de
correlações de força, logo, onde há poder há resistência e, esta nunca se encontra
em uma posição de exterioridade em relação ao poder (FOUCAULT, 1999 [1976]).
Portanto, na medida em os sujeitos se deparam em uma posição de sujeição, isto
não significa que estejam em uma relação de passividade. Deste modo traçamos um
paralelo entre a sujeição segundo Foucault (2005[1976a]) e subalternização nos
termos de Gramsci (2014 [1934]), para quem os sujeitos subalternos constituem
grupos que sofrem sempre com a iniciativa dos grupos dominantes, mas possuem
tendências indubitáveis à unificação. Baratta (2011 p.168), desdobra esta afirma-
ção inicial apontando que “os subalternos são aquela parte da sociedade que, so-
fre o domínio-hegemonia (econômico, político, militar, cultural), dos hegemôni-
cos-dominantes”. Por conseguinte, Modonesi (2010), desdobra as tendências de
unificação enunciadas por Gramsci (2014[1934]), enquanto um processo de subje-
tivação política. Isto é, a experiência subalterna é vista com um espaço relacional,
de incorporação e a relativa aceitação das relações de mando-obediência, mas que
comporta, ao mesmo tempo, sua contraparte de resistência e negação.
É nesse sentido, que vemos a manifestação das territorialidades negras da Cam-
panha Gaúcha, as quais se deslocaram paulatinamente da sujeição dos cativeiros,
para a subalternização nas margens espaciais do regime territorial em avanço.
Esse processo representa uma reterritorialização subalterna, com a ocupação dos
fundos de campo, a reivindicação dos postos e a apropriação dos corredores9 nos
limites das grandes propriedades, áreas distantes dos primeiros povoados e con-
sideradas inóspitas pelos seus atributos físicos. Tais áreas recebem na Campanha
Gaúcha o nome de rincões ou, rincón, do outro lado da fronteira. Para grupos he-
gemônicos-dominantes elas se constituem em verdadeiros fundos territoriais (uma
espécie de território enquanto reserva estratégica e enquanto busca de novos
processos de controle), porém para os sujeitos subalternos transformaram-se em
espaços-tempos de vida e r-existência, em verdadeiros territórios em construção.
Nesse contexto, destacaremos a presença das territorialidades negras nos rincões
da Campanha Gaúcha, ao enfatizar as trajetórias e dispositivos mobilizados por

9 Postos e Corredores: a expressão postos remete as construções que demarcavam os limites


das grandes propriedades antes do cercamento dos campos na Campanha Gaúcha. Muitas famílias
de negras reivindicaram essas áreas com indenização e/ou se apropriaram das mesmas no contexto
do pós-abolição. Já a expressão corredores - remete aos caminhos abertos pelas tropas de gado nos
campos sulinos desde o período colonial, com o objetivo de comercialização. Muitos desses corredores
transformam-se em estradas vicinais e/ou municipais que dão acesso as diferentes localidades e aos
espaços urbanos. A ocupação das faixas de terras entre os corredores e as cercas das grandes proprie-
dades, também foi uma das alternativas de sobrevivência, encontradas nos processos de reterritoriali-
zação subalterna.

52 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
uma família de mulheres negras que vive na localidade - Rincão dos 28, situada in-
terior do município de Alegrete, um dos espaços mais representativos dos enlaces
regionais em questão. Afirmamos haver uma r-existência na territorialidade destas
mulheres, ou seja, uma forma de resistir aos processos de subalternização, a partir
de suas próprias existências, num contexto de múltiplos saberes e modalidades de
ação conforme aponta Porto-Gonçalves (2006), bem como na implicação de suas
recriações ou fabricações, na busca pelo bem viver e pelo conviver como indica
Walsh (2007).
Trata-se da família de Maria10, filha de Luzia, uma das mais antigas habitantes
vivas desta querência. Descendente da escravidão negra da Campanha Gaúcha, Lu-
zia cresceu trabalhando como empregada doméstica nas estâncias da cercania, é
matriarca de uma família de cinco filhos (quatro mulheres e um homem), da qual
Maria é a filha mais velha. A trajetória desta família, alcança explicitamente, rela-
ções espaço-temporais de longa duração na geohistória territorial da Campanha
Gaúcha, como as relações escravistas até o final do século XIX e a vida precária no
período pós- abolição. Maria casou-se, ainda jovem com o peão Pacácio e com seus
parcos recursos, bem como uma pequena herança, conseguiram adquirir uma di-
minuta propriedade, em um corredor as margens de grandes estâncias e fazendas,
sendo este seu espaço-tempo de vida fundamental.
Neste contexto, a trajetória desta família, encerra em si múltiplos processos de
subalternização, desde a condição escrava, do trabalho doméstico, até ao universo
da peonagem e da condição camponesa. Assim, através das forças materiais e sim-
bólicas, exercidas pelas mulheres negras, como a matriarca Luzia e sua filha Maria,
são conduzidas as diretrizes familiares nas quais Pacácio é parte integrante. Por-
tanto, há um ponto de inflexão na qual a matriarcalidade negra e camponesa joga
contra os efeitos da colonialidade, patriarcal e machista, branca e terratenente que
a subalterniza no contexto da Campanha Gaúcha.
Não obstante, como aponta Collins (2019[1990]), diante das opressões inter-
seccionais de raça, classe e gênero, as mulheres negras elaboram uma visão es-
pecífica de sua própria condição, produzindo saberes e práticas que existem para
resistir à injustiça. É deste modo que vemos se manifestar a reivindicação de Maria
enquanto mulher criola do rincão e camponesa. A acepção de criola vai ao encon-
tro de suas origens negras e escravas, bem como remete-se no contexto regional,
ao sentimento de ser nativa ao espaço-tempo do rincão. A condição de camponesa
da Campanha se realiza de múltiplas formas, no trabalho com a produção de ali-
mentos; no trato dos animais e cultivo da horta; bem como nas relações familiares
e na ajuda mútua entre os vizinhos. Esses elementos são fundamentais para a so-
brevivência da família, em um contexto de relativo isolamento e precariedade das
condições de vida nos rincões.

10 Foram adotados nomes fictícios, com vistas a preservar a identidade dos sujeitos no processo
de pesquisa.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 53


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Ainda, essa posição interseccional modula concepções e práticas em Maria, que
vão além da r-existência familiar, pois sua subjetivação volta-se para a alteridade.
Assim, Maria desde uma postura solidária, possui uma espécie de bolichinho de
Campanha11 em sua casa. Ela busca na cidade bebidas, cigarros e fumo, alimentos
a ser vendidos para quem mora no rincão, por um preço considerado justo, tendo
em vista as dificuldades de acesso ao urbano e a ausência de locais de comércio
neste espaço. Também em sua postura solidária, Maria já acolheu famílias desabri-
gadas no galpão de sua pequena propriedade. Ainda, Maria é costureira e lavadeira
e afirma realizar essas práticas com vistas a ajudar as pessoas. Logo, é possível
compreender esta multiplicidade de práticas e saberes, como uma espécie de fa-
bricação conforme o termo de De Certeau (2014 [1980]), que jogo com/contra, nas
tenologias de poder, manifestando um uso e um consumo austucioso das relações
em que está inserida, como uma criatividade dispersa (bricolagem), presente na
r-existência subalterna.
Desta forma, a multiplicidade dos saberes, fazeres e dos significados incorpora-
dos na trajetória da família negra de Maria, reforçam como diante da posição subal-
terna os sujeitos se apropriam das margens espaciais que os rincões representam,
no sentido de servir às suas necessidades e possibilidades (LEFEBVRE 2013[1974]).
Também, destaca-se que os fazeres e saberes desta trajetória, possuem uma am-
bivalência, eles se voltam para fora, na alteridade, na medida em manifesta-se
o desejo de ajudar as pessoas e ao mesmo tempo se voltam para dentro do seio
familiar, em busca de melhores condições de vida. Nesse sentido, se a branquitude
visa reforçar a individualidade branca (PIZA, 2002), neste regime territorial, os sa-
beres e práticas da negritude em r- existência, positiva um senso de coletividade,
enquanto solidariedade, convivência e comunhão existencial (NASCIMENTO, 2019
[1980]). Portanto, há um outro modo de sentir e pensar12 o território em constru-
ção, próprio da ancestralidade negra, em um contexto de subalterinidade, com
suas intessecções ou, heterarquias, que reconfiguram as relações com o chão em
que se vive e que se ama, apesar das inúmeras dificuldades.

11 Bolichos de Campanha: são locais de comércio e lazer situados à beira das estradas próximos
ou nos rincões, onde se comercializam produtos variados, alimentos, bebidas, fumo e cigarros. Tam-
bém é um espaço de lazer, onde se realizam jogos como o Truco, o Jogo de Osso (de origens espanhola),
o Jogo de Bocha; festejos populares como Bailes, Rodeios e Carreiras (corrida de cavalos), naqueles de
maior estrutura. Na contemporaneidade os bolichos já não se fazem mais tão presentes nas localida-
des, seja em função do despovoamento, assim como da maior concentração do comércio e do lazer nos
espaços urbanos.
12 Escobar (2014), desde as experiências de vida e luta de indígenas, afrodescendentes e cam-
pesinos da América Latina aborda o sentipensar com os territórios, uma concepção que implica em
pensar desde o coração e a mente, constituindo uma co-razão enquanto arte de viver ou conviver na
diversidade da terra e dos territórios. Esse termo foi popularizado através dos trabalhos do sociólogo
colombiano Orlando Fals Borda (1925-2008), junto as comunidades ribeirinhas da Centro- América.

54 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Afirmar a presença das territorialidades negras da Campanha Gaúcha, em um
contexto de subalternidade e r-existência que pressupõe longa duração geohistó-
rica, constitui um movimento que visa fissurar as narrativas dominantes, que em-
branquecem a região e seus territórios. Também, o diálogo com as trajetórias das
mulheres negras dos rincões da Campanha Gaúcha, enseja a crítica ao regime ter-
ritorial e evidência como suas territorialidades, constróem o território de maneira
distinta, no sentido de um abrigo conforme a acepção de Gottmann (2012[1975]),
que permite a reprodução da existência, em detrimento de um mero recurso a ser
espoliado, visto que ele comporta uma multiplicidade de relações e sentimentos,
de saberes e práticas tecidas nas experiências singulares e r-existências cotidianas.

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AUTORIA
Anderson Luiz Machado dos Santos
Departamento de Geografia da Universidade Estadual de Maringá
E-mail: andersonlm.santos@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9539-1766
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2964806678332046

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 57


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
POPULAÇÃO NEGRA DISCENTE INGRESSA
NA UNICENTRO: DIFICULDADES DE
RECONHECIMENTO E PERTENCIMENTO
Tauana Aparecida de Oliveira
Jefferson Olivatto da Silva
Marcia Denise Dias

INTRODUÇÃO
Estimadas Este artigo trata da pesquisa realizada para título de mestre em Edu-
cação pela Universidade Estadual do Centro-Oeste intitulada “População negra dis-
cente ingressa na UNICENTRO: dificuldades de reconhecimento e pertencimento”.
A trajetória histórica vivida pela população negra no Brasil deixa reflexos que
são objetos de estudos e debates em toda a Academia, porém, evolui de manei-
ra lenta em direção ao reconhecimento e igualdade. Vale frisar que a população
negra brasileira corresponde às pessoas que se autodeclaram pretas ou pardas,
segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2010). Sabe-se que
a escravatura da população negra (pretos e pardos) e seus reflexos são marcados
por desigualdade social e preconceito racial em mais de três séculos de massacre
e exploração, além da negação de direitos mínimos, em se tratando de leis (OLI-
VEIRA, 2019)
Todas as culturas são essenciais na construção de mundo e nenhuma é superior
à outra. Todas têm peculiaridades de alteridade entre grupos étnico-raciais e res-
pectivas culturas. Porém, a difusão da ideia de superioridade cultural acarreta aos
povos africanos a dificuldade de pertencimento e reconhecimento cultural, sendo
instauradas na sociedade normas de comportamento, atitudes, posturas precon-
ceituosas e relações racistas entre brancos e negros no Brasil (OLIVEIRA, 2019).
Atualmente, a população autodeclarada negra corresponde a mais da metade
da população brasileira segundo dados do Índice Brasileiro de Geografia e Estatís-
tica, o IBGE (2010), que apontam a população residente pesquisada em um total de
190.755.799 pessoas em que 91.051.646 são brancas e 96.795.294 são pretas ou
pardas, ou seja, mais da metade da população é formada por pessoas negras. No
Paraná, de um total de 10.444.526 da população residente, 7.344.122 são pessoas
brancas e 2.951.208 são pretas e pardas. Em Guarapuava, de um total de 378.086,
247.385 são brancas e 122.987 são pretas ou pardas.
Entretanto, segundo o INEP (2017), seu último censo oficial de 2017 registrou
um total de 8.286.663 pessoas matriculadas em instituições de Ensino Superior,
sejam elas públicas, federais, estaduais, municipais ou privadas, no Brasil. Desse
total, 3.292.585são pessoas brancas, 532.607 são pretas, 2.157.189são pardas e
2.048.180não declarados. Cabe destacar que, dos indivíduos declarados pardos,

58 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
1.555.312 são de Instituições privadas e, das pessoas pretas, 349.164são de ins-
tituições privadas. Assim, nas Instituições Públicas estaduais do Brasil, do total de
641.865 pessoas matriculadas, 271.421 são pessoas brancas, 52.988 são pessoas
pretas e 149.140 são pessoas pardas.
Segundo Oliveira (2019) dentre todas as instituições do Paraná, todas as fede-
rais, de acordo com a lei 12.711/12, oferecem o sistema de cotas raciais em seus
processos vestibulares e dentre as estaduais somente a UEL, UEPG e UENP ofere-
cerem o sistema de cotas raciais em seus processos de ingresso.

APORTE TEÓRICO
Como bases teóricas, essa dissertação tomou os estudos de Gomes (2017) em
“O Movimento Negro educador”, para refletir e explanar como o movimento ne-
gro promove práticas educativas na conquista de direitos e valorização da cultura
negra e africana no Brasil, abordados no capítulo primeiro. Tais aprendizagens co-
letivas estão diretamente ligadas ao pertencimento de alunos negros aos espaços
sociais, bem como o ambiente acadêmico. Os estudos de Nilma Lino Gomes (2002)
que refletem sobre a identidade negra e sobre o reconhecimento e pertencimento
étnico dessa população nos espaços em que ocupa. Para Gomes (2002), é impossí-
vel a construção de uma identidade no isolamento e aponta que as escolas são lu-
gares que não estão livres das diversas formas de manifestação do racismo, assim
como as universidades.
Abdias do Nascimento (1980), baseado no termo quilombismo, em seu livro
“O Quilombismo”, que aborda as diversas maneiras dos negros buscarem seu re-
conhecimento nos vários espaços sociais aos quais possam ter acesso. Ainda no
período escravagista, os negros fugiam, formavam quilombos e construíam suas
comunidades buscando viver como viviam na África. Isso ainda ocorre atualmente,
mesmo após a abolição, quando negros e negras buscam em seus pares a autono-
mia e a legitimidade de serem quem são e pelos mesmos direitos que deveriam
ser garantidos a todo cidadão, tomando estes como aspectos do pertencimento e
reconhecimento negro.
Neste mesmo sentido, Da Silva (2016; 2018) reflete em relação às constelações
da aprendizagem e suas implicações no pertencimento negro no Ensino Superior,
já que socialmente é inviável a construção de práticas democráticas amplas ga-
rantir parâmetros de acesso ao Ensino Superior e pós-graduação, a exaltação do
esforço pessoal ou de história de superação individual. Frantz Fanon (2008) apre-
senta, além da questão negra em relação ao pertencimento, as problemáticas da
pessoa negra em relação ao outro e ressalta a importância de se estudar a relação
do outro com o negro, sendo o outro o negro ou o não negro, que são relações
diretamente ligadas ao pertencimento e reconhecimento étnico-racial.
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva em seus estudos expostos no artigo “Apren-
der, ensinar e relações étnico-raciais no Brasil” (2007) ressalta que as relações ét-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 59


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
nico-raciais estão diretamente ligadas com a aprendizagem e ensinos em que se
efetive a participação no espaço público.

PROBLEMA DE PESQUISA (E/OU HIPÓTESE E/OU OBJETIVOS)


Tendo ciência sobre os dados que apontam as dificuldades de acesso da popula-
ção negra aos diversos setores sociais, tais como, acesso à moradia, renda e educa-
ção, além de, todos os anos de segregação racial e cultural; pensando ainda que a
UNICENTRO não oferece o sistema de cotas raciais para o acesso ao seu ensino, se
buscou por meio da referida pesquisa, responder ao questionamento: quem são
os negros ingressos na UNICENTRO e quais são suas dificuldades de pertencimen-
to e reconhecimento dentro do ambiente acadêmico? Qual a relevância de uma
representatividade negra de maior abrangência dentro do ambiente acadêmico
para alunos negros de acordo com os próprios alunos negros em relação ao per-
tencimento e reconhecimento destes no ambiente acadêmico? (OLIVEIRA, 2019).

METODOLOGIA
A metodologia utilizada para descrição e análise dos dados foi realizada toman-
do como base princípios da Etnografia Educacional, “A etnografia é um esquema
de pesquisa desenvolvido pelos antropólogos para estudar a cultura e a sociedade”
(ANDRÉ, 1983, p. 24).
As análises partiram dos parâmetros que circundam o conceito de Constelações
de Aprendizagem de Da Silva (2016), que podem ser entendidas como todas as ex-
periências que se vivem dentro da comunidade e que, consciente ou inconsciente-
mente, são transmitidas como forma de aprendizado no cotidiano, ainda de acordo
os estudos de Da Silva (2018), que foram construídos com base nos estudos de
Barth e Manuela Cunha. Tais Constelações de Aprendizagem estão presentes nas
interpretações das dissertações “Processos educativos em uma comunidade de ca-
poeira” (2018) de Liliane Volochati Guimarães, “Umbanda: manutenção de seus
processos educativos a luz das constelações de aprendizagem” (2018) de Thais Ro-
drigues dos Santos e “Benzedeiras: a educação de resistência feminina de mulhe-
res negras pelas ervas” (2019) de Marcia Denise de Lima Dias (OLIVEIRA, 2019).
Os dados buscados para a composição desta pesquisa foram:
• Dados documentais referentes às matrículas dos alunos entre os anos
2011 e 2017;
• Dados governamentais segundo IBGE sobre o Brasil, Paraná e Guarapuava
e dados do INEP sobre Ensino Superior;
• Entrevistas com pessoas do movimento negro de Guarapuava para colher
informações;

60 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
• Atas dos Conselhos responsáveis pelas decisões referentes aos processos
de ingresso na universidade: ata 184 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Exten-
são (CEPE) e ata 85 do Conselho Universitário (COU);
• Entrevistas por meio de questionários semi-estruturados para alunos ne-
gros que tenham ingressado na UNICENTRO.

Outro dado utilizado nesta dissertação foi a análise documental de atas referen-
tes à reuniões dos Conselhos Universitários responsáveis pelas decisões a respeito
dos processos seletivos de ingressos de alunos nos respectivos cursos da referida
universidade. Primeiramente, a ata 184 do Conselho de Ensino, Pesquisa e Exten-
são, CEPE, e posteriormente a ata 85 do Conselho Universitário, COU, foram solici-
tadas junto à Coordenadoria de Processos Seletivos mediante ofício e fornecidas,
posteriormente, em cópias para a análise. As mesmas foram utilizadas para enten-
der as pautas e quais argumentos foram utilizados para definir os processos sele-
tivos de ingresso na universidade, bem como, os motivos para opção de somente
utilizar cotas sociais e abdicar de cotas raciais na UNICENTRO.
Segundo Oliveira (2019), para expandir análises qualitativas e aproximar-se da
realidade da problemática apresentada em relação às dificuldades de reconheci-
mento e pertencimento, realizou-se a aplicação de questionários semi-estrutura-
dos direcionados para alunos negros que tenham graduado ou que ainda estives-
sem cursando alguma graduação dentro da universidade, a fim de entender de
maneira mais direta se as dificuldades existem ou não, e se elas se correlacionam
com os números encontrados na análise estatística.
Segundo Oliveira (2019), a metodologia utilizada para descrição e análise dos
dados foi realizada tomando como base princípios da Etnografia Educacional, “A
etnografia é um esquema de pesquisa desenvolvido pelos antropólogos para estu-
dar a cultura e a sociedade” (ANDRÉ, 1983, p. 24).
A dissertação propôs questionar os diferentes ambientes vividos pelo aluno ou
aluna negra em seu processo acadêmico - desde o que chamamos de seu processo
de ingresso (vestibular ou outro processo de ingresso utilizado pelo aluno para
compor as turmas de graduação), fatores determinantes para escolha do curso,
influência familiar, influência financeira, entre outros -; sua recepção dentro da
universidade, chegada em sala de aula, primeiro contato com sua turma e profes-
sores, funcionários da instituição, alunos de outros cursos e veteranos, entre ou-
tros; os coletivos cujos quais pudesse se identificar enquanto pessoa negra, como
o Núcleo de Estudos Ameríndios e Africanos (NEAA); os grupos institucionalizados
dentro da universidade que podem ter ramificações para as relações étnicas e va-
lorização da identidade negra como o Conselho do Pacto Universitário de Direitos
Humanos; bem como, visibilidade em sala de aula e as interações com outros cur-
sos pensando na identificação como pessoa negra em relação ao outro, em rela-
ção ao que vê no outro dentro da instituição, baseando-se também nos números
encontrados na análise estatística em relação a invisibilidade negra dentro da uni-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 61


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
versidade (OLIVEIRA, 2019). À medida que consideramos os esquemas agregantes
de pertencimento e reconhecimento dos negros nos coletivos e comunidades, a
experiência comunitária se torna um lócus de realização de vínculos, respostas às
angústias e enfrentamento ao cotidiano racista (DA SILVA, 2018).

RESULTADOS E ANÁLISE
A importância do movimento negro demonstrou-se fundamental para as pes-
soas negras que, por intermédio de conquistas institucionais e legais na luta pela
reparação das assimetrias sociais causadas pelo período escravocrata, teve sua
identidade negra valorizada, bem como, sua história e cultura evidenciadas na so-
ciedade. Ainda, as ações educativas que o movimento negro desenvolve, na popu-
lação não negra, mesmo que indiretamente, têm a possibilidade de quebrar suas
crenças limitantes e o racismo enraizado na nossa cultura, passando a legitimar o
legado negro brasileiro (OLIVEIRA, 2019).
Como sabido, a UNICENTRO, é uma das universidades estaduais do Paraná que
não oferece o sistema de cotas raciais para seu ingresso, por isso, buscou-se com-
preender quais foram as ações e conclusões tomadas para que o sistema de cotas
raciais não fosse considerado importante para a referida universidade.
Com este intuito, através de contato com a Coordenadoria Central de Processos
Seletivos, a COORPS, buscou-se entender os fatores determinantes para a não im-
plementação do sistema de cotas raciais. A justificativa é de que, na UNICENTRO,as
cotas sociais atenderiam as demandas das pessoas negras, sendo assim contem-
plados com seu direito de acesso à educação (OLIVEIRA, 2019).
Ao analisar as atas 184 e 85 de 2008 do COU, foi possível perceber que os res-
ponsáveis pelas decisões referentes aos processos de ingresso na UNICENTRO
eram favoráveis as cotas sociais e contrários a implementação das cotas raciais,
por entender que as mesmas contemplavam a questão negra na universidade. En-
tretanto, este equívoco é latente nas discussões referentes às questões étnico-
-raciais, já que a questão social, apesar de estar atrelada à questão racial, não é
determinante, pois o racismo se manifesta independentemente da classe social da
pessoa negra (OLIVEIRA, 2019).
Salienta-se que, para as decisões, também não se levou em consideração a his-
toricidade da população negra no Brasil e nem os índices que indicam marginali-
dade e presença negra como protagonista dos mesmos. Desta maneira, tornam-se
fundamentais pesquisas que demonstrem a realidade das pessoas negras nos di-
ferentes contextos da sociedade, bem como, das universidades (OLIVEIRA, 2019).
As análises estatísticas realizadas a partir dos dados cadastrais fornecidos pela
UNICENTRO apresentaram a ausência de pessoas negras na universidade rompen-
do com o argumento institucional que assegurava que as cotas sociais atendiam a
demanda da população negra para ingresso na referida universidade.

62 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
No recorte temporal utilizado, que totaliza sete anos (2011 a 2017), de 21.631
pessoas ingressas, apenas 2.638 (12,4%) foram negras enquanto 11.816 (54,6%)
eram brancas. Nitidamente, o déficit de alunos negros na UNICENTRO é significati-
vo em relação a não negros. O que identificamos,também,é o número significativo
de omissões na autodeclaração da referida universidade. Mesmo que pensemos
que a autodeclaração pode ter suas falhas cadastrais ou até mesmo o fato de pes-
soas não considerarem o recorte racial relevante e se neguem a fazê- lo, não se
pode deixar a hipótese de que as pessoas podem não considerar interessante se-
rem vistas como negras em um ambiente onde a negritude é praticamente nula em
seus espaços (OLIVEIRA, 2019).
Nas análises realizadas sobre a prevalência em relação à raça, ano a ano, verifi-
cou-se o que era suposto: a ausência negra na UNICENTRO. O ingresso de pessoas
não negras gira em torno de 70% do total e de negros sempre em torno de 30%,
quando mais positiva. Em 2016, o número de negros é mais significativo, mesmo
que ainda inferior a não negros. Esse fato se dá em virtude do início da obrigatorie-
dade da autodeclaração, entretanto o que pode ser determinante nesse desfecho
são as ações do NEAA que foram realizadas com mais ênfase neste ano na Educa-
ção Básica, com a capacitação de professores, palestras e oficinas para alunos com
intuito de valorização da história e cultura negra em Guarapuava e região. Acredi-
tamos que estas ações foram determinantes para o interesse maior de estudantes
negros no ingresso da universidade (OLIVEIRA, 2019).
Ao correlacionar a relação de raça entre os cursos presenciais, mais uma vez, a
invisibilidade negra é comprovada, com pessoas não negras presentes em um nú-
mero mais que cinco vezes maior que pessoas negras. Consideramos que o sistema
de cotas raciais de maneira alguma estaria ferindo com direitos de não negros para
ingresso na universidade, pelo contrário, os dados apontam que, aparentemente,
a universidade se apresenta como o não lugar do negro (OLIVEIRA, 2019).
Dado interessante encontrado está na relação entre raça e gênero para ingres-
so na universidade. Percebeu-se que entre negros e não negros, a maioria são mu-
lheres. Pensamos que este dado demonstra como as mulheres têm assumido as
responsabilidades financeiras e das famílias, buscando aperfeiçoamento profissio-
nal e educação e melhores oportunidades de emprego (OLIVEIRA, 2019).
Após as análises sobre os dados cadastrais da UNICENTRO, percebeu-se que,
como era de se esperar, as cotas sociais não têm atingido as pessoas negras de
maneira significativa. Sem falar que, incluir as pessoas pobres e negras no mesmo
escopo de vagas as coloca em maior concorrência entre si e expande as oportuni-
dades da ampla concorrência do vestibular.
Sem a representatividade negra nos cargos de liderança, como professores,
diretores, entre outros, no ambiente escolar, como podem as crianças e adoles-
centes se sentirem pertencentes a este ambiente de maneira satisfatória? É neste
sentido que a formação de pessoas negras para ocupação desses espaços se faz
necessária, fragmentando assim a ideia de marginalidade e incapacidade negra. O

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 63


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
sistema de cotas raciais seria fundamental neste aspecto também, enegrecendo
os ambientes escolares e setores sociais, além das universidades (OLIVEIRA, 2019).
Identificamos que os estudantes negros consideram o racismo presente na uni-
versidade, mas de maneira velada, ou seja, não desferido de maneira direta. En-
tretanto, presente nos olhares, atitudes e expressões dos envolvidos no ambiente
universitário. Desta maneira, percebeu-se que a universidade é um local de repro-
duções racistas e que tais manifestações são legitimadas pela ausência de pessoas
negras em seus espaços (OLIVEIRA, 2019).
Levando em consideração que o ambiente universitário é também reprodutor
de racismo, identificamos que alguns estudantes relatam já terem sofrido alguma
situação de racismo na universidade. O pertencimento negro se mostra frágil ao
pensar que, apesar de verificar atitudes racistas na universidade, a pessoa negra
não acredita que o racismo praticado a outro negro é também praticado contra si
(OLIVEIRA, 2019).
Uma nova categoria de aprendizagem, chamada de questão financeira, foi iden-
tificada no decorrer da pesquisa, pois esta questão pareceu determinante na tra-
jetória acadêmica das pessoas negras entrevistadas. Os entrevistados relatam que
a escolha do curso é diretamente afetada pelas condições econômicas em que se
situam, principalmente pela necessidade de trabalhar ao mesmo tempo em que
cursa a graduação ou, até mesmo, a possibilidade de através da graduação, conse-
guir emprego mais rapidamente (OLIVEIRA, 2019).
Verificou-se que a condição econômica obriga a pessoa negra a, muitas vezes,
escolher um curso que não seria sua primeira opção, como estratégia para se man-
ter na graduação ou até mesmo concluí-la. Consideramos que tais aprendizagens
interferem na trajetória de vida das pessoas negras que precisam desenvolver me-
canismos para almejar uma graduação e condições melhores de vida. Essas dificul-
dades são catalisadas ao se inserir na universidade e se deparar com um não lugar
de pessoas negras, visualizando os espaços, setores, abordagens epistemológicas,
entre outros, todos com ausência de negritude (OLIVEIRA, 2019).
O apoio familiar foi apresentado como principal fator motivacional para a per-
manência na Academia em meio a tantos aspectos refratários. Esse apoio familiar
não foi interpretado somente como parentes, mas por todas as pessoas de vínculo
afetivo, como amigos, namorados ou namoradas, maridos ou esposas, filhos, en-
fim, tudo o que possa envolver o sentimento de família (OLIVEIRA, 2019).
O apoio familiar se mostra como ação positiva nas aprendizagens universitárias,
o que consideramos como aprendizagens e memórias trazidas dos antepassados,
quando se pensa a sobrevivência negra em meio ao caos, a formação de quilombos
e a vida em comunidade mesmo longe de suas terras, de seus entes queridos, de
sua cultura e de seu povo (OLIVEIRA, 2019).

64 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao analisar a dissertação em questão, se observou dados interessantes sobre
a ausência de pessoas negras na UNICENTRO. Bem como, as dificuldades de re-
conhecimento e pertencimento encontradas pelos discentes negros ao buscar a
graduação.
Interesse entender a historicidade das universidades, sobretudo, da própria
UNICENTRO, pois é possível visualizar um cenário preparado para a presença do
não-negro. Fator que se comprova nos dados que apresentam ausência de negros
nos cursos de graduação, falas dos discentes negros que denunciam o racismo em
suas diversas formas de manifestação, assim como a ausência de pessoas negras
nos diversos setores da universidade, incluindo corpo docente. Outro ponto apon-
tado pelos discentes seria a ausência de intelectuais negros nos conteúdos pro-
gramáticos da referida universidade, este fato demonstra outra forma de racismo.
O sistema de cotas raciais ao ser uma possibilidade de ferramenta de ingresso
de pessoas, e no mesmo sentido, ao ser negado pelos líderes institucionais é tam-
bém uma forma de racismo. O papel da universidade é promover o acesso univer-
sal de pessoas em seus cursos, ao identificar a ausência de determinada população
é seu papel desenvolver ferramentas para mudança deste contexto.
Torna-se o sistema de cotas raciais medida inicial para mudança no contexto
apresentado, porém não seria a solução definitiva. Haja vista, as questões apre-
sentadas tanto nos dados demonstrados na dissertação, como nas falas e denún-
cias apresentadas na análise das entrevistas com os discentes negros da referida
pesquisa.

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SILVA, Petronilha Beatriz Gonçalves. Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no Brasil.


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AUTORIA
Ma. Tauana Aparecida de Oliveira
Universidade Estadual do Centro-Oeste
E-mail: tauana.oliver@gmail.com
ORCID:https://orcid.org/0000-0002-5938-194X
Lattes: http: //lattes.cnpq.br/0268994852517255

Dr. Jefferson Olivatto da Silva


Universidade Estadual de Londrina
E-mail: jeffolivattosilva@uel.br
ORCID:http://orcid.org/0000-0001-6542-1461
Lattes:http://lattes.cnpq.br/0088578024264046

Ma. Marcia Denise Dias


Universidade Estadual do Centro-Oeste
E-mail: mardias2020@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7645-0137
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2758891576233183

66 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 36
Movimento
Social Negro,
Representações
Políticas e a
Luta Contra
Hegemônica do
Poder Racista do
Estado Brasileiro
AS PROVOCAÇÕES DA LUTA ANTIRRACISTA
NO BRASIL CONTEMPORÂNEO: VIDAS NEGRAS
IMPORTAM
Lilian Luiz Barbosa

INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como meta fazer apontamentos sobre as inquietações da luta
antirracista contemporânea, para isto usa-se da metodologia de revisão bibliográ-
fica fazemos discussões e um resgate histórico de onde nós chegamos. Partimos da
compreensão da teoria social de Karl Marx, onde analisamos a partir do método
materialista, histórico e dialético. Esses serão os nossos guias para qual faremos
nossas reflexões e contribuições em provocações a esta realidade.
Para aproximarmos a realidade da luta racial contemporânea durante nosso
artigo tentaremos resgatar marcos importantes que constroem os sentidos desta
luta. Nisto, destacamos os marcos da passagem ao século XXI, a política de cotas
raciais, o ciclo dos governos do Partido dos Trabalhadores- PT e principalmente
o agente de movimentação desta luta o chamado movimento negro na contem-
poraneidade. Cabe situar que este pequeno artigo se aterá a trazer provocações,
para pensarmos como podemos reconstruir uma luta antirracista fecunda para dar
conta desta realidade no Brasil contemporâneo em rumo a emancipação da ordem
vigente.

QUAL MOVIMENTO NEGRO ENTRA NO SÉCULO XXI?


O movimento negro cumpre um papel importantíssimo na luta antirracista no
Brasil no decorrer da história. Em sua trajetória afirma-se que o mesmo começa
nas resistências e sobrevivências do navio negreiro, nas rebeliões, nas revoltas,
nas organizações dos quilombos, que como disse Silva (2017), estes eram o ver-
dadeiro contrário da casa grande na época. O movimento negro perpassou dentro
de partidos, através da construção da imprensa negra; Teatro Experimental do Ne-
gro-1944; organizou-se como o Movimento Negro Unificado- 1978; nos coletivos
negros universitários do século XXI; memória e justiça; luta histórica contra ge-
nocídio realizado pelo Estado e outras formas de organicidade para transformar,
erradicar o racismo da nossa sociedade brasileira. Entretanto, o movimento negro
tem uma agenda de luta? E suas táticas e estratégias são iguais no seu interior da
organização? E os desafios do século XXI?
Conforme Oliveira (2016), em 1995 durante a marcha à Brasília o movimento
negro forçou o governo brasileiro a reconhecer pela primeira vez, oficialmente, a

68 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
existência do racismo no país. Cabe salientar que o mito da democracia racial, que
oculta os conflitos de raça e classe no território nacional, logo nega a existência do
racismo no país. Naquela época o presidente era Fernando Henrique Cardoso-FHC,
que recebeu uma comissão executiva da marcha, e nomeou um grupo de trabalho
interministerial para pensarem políticas públicas de combate racismo. Foi neste
contexto que este grupo pensou ações a longo prazo, para a erradicação das desi-
gualdades raciais brasileira.
No início de 2001 ocorreu outro fator marcante, materializaram-se ações do
governo FHC, principalmente do Ministério das Relações Exteriores e da Fundação
Palmares (vinculada ao Ministério da Cultura), conjuntamente ao Movimento Ne-
gro- MN, no qual organizaram a participação do país na III Conferência Mundial de
Combate ao Racismo. Esta conferência foi convocada pela Organização das Nações
Unidas- ONU, que aconteceu em Durban, na África do Sul. De acordo com o Olivei-
ra (2016), que afirma sobre o evento:

Organizou-se uma série de reuniões, pré-conferências – temáti-


cas e seminários, e o resultado foi um documento e uma posição
do Brasil na Conferência em Durban de comprometer-se com as
implementações de políticas de ação afirmativa, a fim de com-
bater o racismo no país. Diante desse cenário, cresce a bandeira
das cotas raciais e de outras políticas de ação afirmativa, dentro
da perspectiva de que as políticas públicas generalistas por si
só, não eram suficientes para resolver as disparidades raciais.
(OLIVEIRA, 2016, p. 21)

Acerca do evento em Durban, foi um marco para nossa realidade brasileira,


pois a atividade necessária e fundamental realizou através do Comitê Internacional
para Eliminação da Discriminação Racial, que orienta táticas específicas em políti-
cas públicas para combater o racismo. É necessário ressaltar, a principal direção
que movimentava este marco, segundo Silva (2012) este evento orientou-se pela
tendência do pensamento multiculturalista.
Este breve artigo, vem provocar neste tópico que o pensamento multicultura-
lista influenciou muito o movimento negro brasileiro que chega no século XXI. O
objetivo aqui não é apagar o longo histórico de luta, divergências, convergências,
propostas radicais dos movimentos negros brasileiros, queremos alertar e identifi-
car o caminho em que estamos percorrendo na atualidade.
É importante destacar que o movimento negro não é único, no interior de sua
organização possui diversas tendências, disputas, táticas e estratégias. Porém, de
acordo com a conjuntura as divergências tornam convergências mediante a de-
terminadas pautas contornando em um consenso, isto é, pode variar de acordo
com a unidade programática, agenda de luta etc. Estes consensos são a expressão
da hegemonia de determinada tendência reforçando o sentido da luta antirracista
e seus objetivos. No início do século XXI, as convergências defendiam o fim dos
grandes movimentos de massa que questionaram e abalariam a ordem estrutural,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 69


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ou seja, fortaleceriam a direção das organizações e lutas dentro da ordem, aonde
formavam pautas mais específicas e/ou movimentos específicos no movimento ne-
gro, que propunham lutas sendo mais focada para o individual do que interesses
coletivos, colocando de lado pautas de cunho mais estrutural que rompessem com
a ordem. As organizações negras são diversas, pois a forma que racismo opera são
distintas, todavia sua manifestação moderna é o cerne do capitalismo.
Este contexto dá-se no campo do conhecimento também por estas tendências
defenderam o abandono da categoria totalidade e universalidade, assim como si-
naliza Silva (2012). Isto gera uma visão reducionista da questão racial, assim como
o racismo que é estrutural e estruturante na sociedade capitalista fosse apenas
específico diante esta estrutura. Segundo Almeida (2018) o racismo tem três con-
cepções, são “relação estabelecida entre racismo e subjetividade, individualista;
a relação estabelecida entre racismo e Estado, institucional; relação estabelecida
entre racismo e economia, estrutural” (ALMEIDA, 2018, p. 27).
Para o pensamento de Silva (2012) o multiculturalismo foi marcado pelo finan-
ciamento da Fundação Ford, que é uma das grandes representantes do capital in-
ternacional. Em seu desenvolvimento esta empresa começa a fomentar a prolife-
ração de organizações fragmentadas, particularistas financiadas e mediadas pelos
seus interesses, com claro intuito de reduzir pautas reivindicatórias radicais, em
apenas lutas pela cidadania liberal.
Ao desvelar qual tendência da organização negra adentra o século XXI, hegemo-
nicamente marcada pelo multiculturalismo. Esta vertente materializa-se na nova
fase da ordem burguesa, que estava ligada ao neopositivismo do nosso tempo
histórico. Em destaque, salienta-se que a pauta do multiculturalismo foi utilizada
para diversos tipos de intervenção em sua trajetória, porém estes têm em comum
o foco na cultura de forma isolada dos aspectos econômicos estruturantes. Para
nossa provocação deste sentido Silva (2012, p.12) mostra:

O multiculturalismo não pode ser resumido a essa sua primeira


vertente. Com o passar dos anos, ele ganhou novos significados,
inclusive variando de país a país. De uma ‘proposta política in-
gênua, e leviana por partir de uma falsa consciência acerca dos
problemas culturais’, e de ‘um estímulo à fragmentação da vida
social, que leva consequentemente, à desintegração nacional,
passou a ser considerado uma estratégia de integração social.

Deste modo que o multiculturalismo velou as estruturas sociais macros, para


deslocar a movimentação de pautas para tanto integrar, quanto propor soluções
de separações culturais com Estados próprios sobre a questão racial. Neste sen-
tido, quais armas, as organizações tendem a usarem para acabar com racismo e
todas outras formas de opressão que incide na classe trabalhadora em destaque,
a negra no século XXI?

70 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
MUDANÇAS CONTRADITÓRIAS:
POLÍTICA DE ESTADO E PERÍODO PETISTA
Este tópico suscita-nos inquietações que nos leva a refletir, a tendência mul-
ticulturalista tende acabar com as pautas universais? Investimentos na educação
de base universal são suficientes para acabar com as desigualdades raciais e so-
cias? A crítica deste trabalho identifica a contradição, há necessidade de colocar o
universal em suas mediações particulares, porque somente a educação de forma
genérica não acabará com os fundamentos reais que provocam as desigualdades
raciais. Porém uma crítica ao universal sem suas particularizações concretas, não
conseguem entender que só no individual na estratégia de luta terá até algumas
pautas a serem atendidos pelo Estado da ordem, porém assumidas estas reinvin-
dicações ao mesmo tempo que sejam subordinadas a estrutura da ordem. Assim é
que formam os direitos. Todos têm direitos, mas todos realmente tem os direitos
na vida cotidiana? Ou o direito à vida, a casa e a emprego é uma abstração formal
que desejamos todos ter, mas são mediadas pela forma concreta que a sociedade
capitalista realmente existe? Faz-se assim uma miragem de um horizonte, que não
se muda.
A cerca das cotas raciais? Será que de um viés focal conseguimos afrontar mu-
danças de visibilidade da falta real deste direito “universal”? Ao nosso entendi-
mento as cotas raciais conseguem movimentar as mediações concretas em suas
particularizações reais e colocar em xeque a visibilidade da estrutura, porém sem
transformar a estrutura que possuem instituições racista. Certo, as políticas de
ações afirmativas vieram descortinar o racismo que a ideologia da democracia ra-
cial montou. Todavia as políticas aqui supracitada, vem junto com outras ações
realizadas durante o governo petista que se transformou em política de Estado1
e não somente de governo, com objetivos de reparação histórica e diminuição da
desigualdade racial e social.
Então, em nossa afirmativa, as mediações concretas particulares da classe tra-
balhadora negra são importantes para desvelar a não universalidade concreta des-
ta sociedade. Acerca das questões étnicos raciais podem ter caráteres singulares,
todavia, através das articulações dos sujeitos, em movimento coletivo podem ad-
quirir a tomada de consciência coletiva para transformação estrutural da socieda-
de. Esta passagem da tomada de consciência nos aponta que:

O ser da classe e, portanto, sua consciência, estão no movimen-


to que leva essas trajetórias particulares até transformações co-
letivas, de modo que estas são constituídas pela multiplicidade
de ações particulares ao mesmo tempo que as ações particula-
res são constituídas por cada patamar coletivo objetivado. O ser
e a consciência da Classe, portanto, estão mais no processo de
‘totalização’ do que na ‘totalidade enquanto produto (seja na

1 A cerca disto ver a Lei nº 12.288 de 20 de julho de 2010.

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
forma do produto - individuo ou produto – grupo, seja na for-
ma de classe, pois, aqui também o produto costuma esconder o
processo. (IASI, 2006, p. 75)

Desta forma voltamos a afirmação que as políticas de ações afirmativas com-


provaram o quanto o país é racista. À medida que se entende o cerne da origem da
política e sua implementação, desencadeou discussões, que revelaram o caráter
elitista da universidade, não voltada para acesso universal e popular. Isto é, pro-
blematizar que o racismo influência na escolaridade e no trabalho das/os sujeitas/
os negras/os. No texto abaixo Silva (2012, p. 10) traz a questão:

Se as políticas afirmativas se apoiam na negação do racismo, ca-


beria antes de tudo verificar se esse fenômeno existe, de que
forma ele tem influenciado no baixo nível de escolaridade dos
negros e das negras, qual fundamentado e como ele se desen-
volveu na sociedade brasileira.

1. Destaca-se assim o solo concreto em que as ações afirmativas mostrou-se, no


desvelamento do racismo no direito à educação no país. As demandas do movi-
mento negro em parte foram assumidas de forma institucional ao longo do gover-
no do PT. Neste período o movimento de combate ao racismo, sai do campo da
denúncia, passa ser reconhecido sua existência, toma uma forma institucional que
gera políticas públicas, como aponta Oliveira (2016). De forma exemplar adota-se
principalmente depois que Luiz Inácio Lula da Silva (Lula) do PT, forma uma demo-
cracia de coparticipação dos movimentos sociais. Esta forma tem que ser analisada
dialeticamente porque é neste contexto que vemos o caminho do apassivamento
e cooptação de acordo com Iasi(2012), pois ao mesmo tempo que conjuntamente
pensa-se políticas e mecanismo para acabar com racismo, este movimento perde
sua capacidade de luta radical. Destacamos neste trabalho de como a cooptação
foi definida por GOHN (2012):

estruturaram-se também movimentos sociais que defendem


demandas particularistas e estão voltados para atuar como par-
tícipes das ações estatais. Como os conflitos sociais, via regra,
não são mais resolvidos pelo uso da força, MS nas mesas de ne-
gociação, pautadas por mecanismos jurisdicionais de controle,
as elites políticas estimulados contra o Estado nas expressões de
seus interesses e das políticas que buscam implementar. (GOHN,
2012, p. 311)

Cabe situar que o ciclo petista foi marcado por um projeto de conciliação de
classes, que defendia o rompimento com o neoliberalismo. Observa-se que a in-
tenção de romper com o neoliberalismo não se sustentou, pois, houve um proje-

72 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
to social-democrata com características do chamado “neodesenvolvimentismo”,
que nada foi do que apenas acenar um projeto desenvolvimentista subordinando a
pautas neoliberais internacionais. Como resultado este processo encontramos um
reformismo com quase nenhuma reforma, e um grande transformismo das estra-
tégias e adesões do partido a ordem societária.
No ciclo PT as/os trabalhadores negras/os tiveram uma política de segurança,
através da militarização das favelas e periferias, também houve ataques aos di-
reitos previdenciários, e alguns ganhos nas políticas sociais, mas sem intenções
de ruptura com as condições que criavam as situações remediadas. Na sua linha
política neste ciclo alguns movimentos sociais, como grande parte do movimento
negro, deixam de defender a transformação da ordem, alguns, não se posicionam
criticamente contrários aos governos na ausência de ações efetivas para deter-
minadas pautas. Nisto fazemos a crítica a contradição da institucionalização e co-
participação, pois houve cooptação de um governo que atacou, rebaixou, retirou
o direito das/os trabalhadores sejam negras/os, indígenas e brancas/os pobres, e
alguns movimentos coparticipantes do governo não se posicionam.

A LUTA ANTIRRACISTA: O GENOCÍDIO CONTRA O POVO


NEGRO PROVO, AS VIDAS NEGRAS IMPORTAM
Até este momento mostrou-se que a tendência hegemônica do movimento ne-
gro no século XXI vem induzindo a pautas dentro da ordem para a transformação,
as mesmas foram priorizadas pelos governos que se travestiu de esquerda, nas
quais adotou estratégias políticas rebaixadas, porém reconhecendo direitos histó-
ricos essências para classe trabalhadora, embora, adere-se e institucionaliza-se as
demandas dos movimentos sociais. O governo petista principalmente do Lula geriu
o sistema capitalista sem rupturas e conservando as estruturas.
A análise dialética mostra-nos a contradição, conforme direcionou as pautas de
interesse do MN no ciclo petista. Há um forte avanço na forma legal e institucional,
ao mesmo tempo há um aprofundamento das medidas estruturais que reforçam
o racismo no capitalismo dependente brasileiro ao longo deste processo. Nestas
contradições podemos afirmar que o MN acumulou sobre o racismo institucional
entendendo as necessidades institucionais e os seus limites? Sobre isso, Oliveira
(2016, p. 33) descreve:

A reflexão sobre os problemas de natureza institucional, da má-


quina responsável pela implementação das políticas públicas,
como um dos principais entraves para que as medidas institu-
cionais sejam efetivamente aplicadas. Estudos que demonstram
que a pequena aplicação de dispositivos legais, como a Lei:
10.639/03 e criminalização do racismo, entre outras, vão neste
sentido. O despreparo e mesmo pensamento racista presentes
nos agentes públicos, ou a forma como a máquina administra-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 73


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
tiva é montada entre as coisas, são expressões desse racismo
institucional.

As demandas institucionalizaram-se, que mostra o reconhecimento do Estado


sobre racismo vigente e inerente a sociedade capitalista, todavia as instituições
reproduzem o racismo, desafio este a ser erradicado, juntamente com a estrutura
capitalista. Do ponto de vista de prioridades e investimentos, esses espaços tinham
investimentos ínfimos, mostrando a ilusão institucional, parcela do MN acredita
que quanto mais negros se inserir participando nestes espaços institucionais, me-
lhor para luta coletiva contra o racismo. Outra fração do movimento acredita que
a ocupação é necessária, porém é preciso formar os militantes e indivíduos para
movimentar além do formal-legal.
Considera-se que o racismo é um fenômeno estrutural, que incide na vida mate-
rial de cada pessoa na ordem capitalista. O capitalismo se apropria da objetividade
da relação de produção assim como a subjetividade da/o trabalhadora/o. Logo o
racismo, machismo e qualquer outra forma de opressão que mata, segrega e sepa-
ra a classe, são funcionais para manter a extração de mais valia e a dominação, que
é fundamental para este sistema. No governo do PT intensificaram também os me-
canismos de vigiar e punir com novos meios, isto é, a criação da Unidade de Polícia
Pacificadora – UPPs, a invasão militar do Complexo do Alemão, e a convivência co-
tidiana do exército no Complexo da Maré, com apoio do então presidente Lula e da
Dilma. Estes governos ao fazerem política de conciliação, permitiram que os mais
beneficiados fossem o agronegócio, os bancos, os que lucram com a economia
bélica, as empresas em prol do encarceramento em massa da população negra,
assim como a criminalização dos movimentos sociais, dos territórios e de corpos
não brancos. Demonstram assim na contradição a não importância de denunciar as
vítimas do Estado capitalista da branquitude oliquárquica: pobre, preto e favelado.
Para Oliveira (2016) o racismo materializa como uma ideologia que faz parte da
matriz da opressão, estruturante do autoritarismo que permeia as relações sociais.
O autor sinaliza que a ausência desta reflexão tem impossibilitado avanço no com-
bate ao racismo:

A primeira e mais importante é a redução ou perda de uma vi-


são crítica do Estado Brasileiro em sua dimensão institucional e
histórica, como um aparelho construído e edificado para manu-
tenção de um capitalismo singularizado pela forma de depen-
dência externa, concentração de riquezas e racismo estrutural.
A segunda questão, decorrente da primeira, é o afastamento do
debate ideológico no campo da sociedade civil. Finalmente, a
terceira consequência é o afastamento do debate do combate
ao racismo das questões mais estruturais do capitalismo brasi-
leiro. (OLIVEIRA, 2016, p. 34).

74 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Se para Almeida (2018) o racismo é um processo estrutural, conclui-se que a
luta antirracista enfrenta diversos percalços, seja via instituição ou insurgência. É
preciso tática e estratégias radicais que possam perpassar mudanças das estrutu-
ras sociais. Para acabar com genocídio do povo negro, feminicídio das mulheres
negras, das violências obstétricas, do encarceramento do povo negro, desumani-
zação do povo negro, exploração da classe trabalhadora negra em sua maioria, dos
quais são essenciais para construção do Brasil e do Capitalismo, é preciso que o/as
trabalhadores se articule -se para tomado do Estado, no qual formemos um Estado
que seja a favor da classe.
Para os movimentos negros classistas e anticapitalistas, as ações afirmativas
como direito são temporárias, mas são importantes para colocar o racismo estru-
tural em cheque, e só poderão serem superadas em outra ordem social, também
o mesmo sobre a identidade racial. Todavia é preciso fazer mediações concretas
para a superação deste estado de coisas, que articulam a consciência e as condi-
ções necessárias. Para isso o desafio é não ficar preso a ideologia liberal. Pois olhar
o racismo, sem ir na raiz, para combate-lo, e somente pensar mudanças dentro
sistema é alimentar a estrutura racista, machista, lgbtfóbica e capitalista. Deste
modo, o desafio é destruir o racismo estrutural, que não perpassa somente em
dizer que somos todos seres humanos, mas construir formulações ousadas que
coloquem em questão a concentração da riqueza das elites brancas, taxar banquei-
ros, desapropriar fazendeiros, e resolver a questão urbana com a planificação de
outra cidade, pois está representa o símbolo do capitalismo, reconstruir a política
de segurança, pois todos delas tem direito. Somados a isto, é preciso deixar nítido
que a luta antirracista não é exclusivamente daqueles que sofrem a opressão, mas
de todos que defendem e acreditam em novo projeto societário.
Atualmente a extrema-direita está no governo em fascitização, com discursos
anti- sistêmicos, aprofundamento das políticas neoliberais, com pautas racistas,
contra a classe trabalhadora e na naturalização das mortes negras/os seja. É pre-
ciso resistir, pois a tragédia já está anunciada, mas para isso temos que denunciar
que esta saída é o reforço do sistema, a real solução é anti-sistêmica, a superação
do sistema capitalista. Nesta opção é imprescindível superarmos o racismo, que
é traço fundante desta sociedade não igualitária, com chagas na formação social
brasileira pelo escravismo, que se integrou muito bem a maiores lucros com as
antigas opressões. Precisamos colocar em alto e bom tom, chega de desigualdades.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALMEIDA, S. O que é Racismo Estrutural. 1ª Ed. Belo Horizonte (MG): Letramento, 2018.
BRASIL, Lei nº 12.288 de 20 de julho de 2010. Disponível em: <http://www.planalto.gov.
br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12288.htm> Acessado em : 12/11/2020.

DOMINGUES, P. Movimentos Negro Brasileiro: alguns Apontamentos históricos. Tempo.


Niterói, RJ, v.12, 2007.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 75


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IASI, M. L. As Metamorfoses da consciência de Classe. O PT entre a Negação e o consenti-
mento. 1ª Ed. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2006.

__________. Democracia de cooptação e o apassivamento da classe trabalhadora. In: Fi-


nanceirização do fundo público e política social. SALVADO, Evilácio [et al.] (orgs.), São
Paulo, Cortez, 2012

GOHN, Maria da Gloria Marcondes. Teoria dos Movimentos Sociais: paradigmas clássicos
e contemporâneos, 10ª Ed, São Paulo: Edições Loyola, 2012.

__________. Abordagens teóricas no estudo dos movimentos sociais na América Latina.


Cad. CRH [online]. 2008, vol.21, n.54, pp.439-455.

MOURA, C. Dialética Radical do Brasil Negro. 2 Ed. São Paulo Anita Garibaldi, 2014.

OLIVEIRA, D. de. Dilemas da luta contra o racismo no Brasil. In: Margem Esquerda. Revista
da Boitempo, n.º 27, 2º semestre, 2016.

SILVA, A. P. P. O contrário da casa grande não é senzala. É quilombo! A categoria práxis


negra no pensamento social de Clóvis Moura. fls.291. Tese, Programa de Pós Graduação
em Serviço Social. Doutorada em Serviço Social, UFRJ, Rio de Janeiro, 29 de nov. de 2017.

SILVA, U. B. Racismo e Alienação: Uma aproximação à base ontológica da temática racial.


São Paulo: Instituto Lukács, 2012.

AUTORIA
Lilian Luiz Barbosa
Mestranda Programa Pós-Graduação Escola de Serviço Social-UFRJ
E-mail: amosculor@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9596337283427657

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O PERCURSO HISTÓRICO DO MOVIMENTO
SOCIAL NEGRO E AS POLÍTICAS DE COTAS
Ana Paula Moreira de Sousa
Eugenia Portela de Siqueira Marques

INTRODUÇÃO
Este artigo objetiva descrever o percurso histórico do Movimento Social Negro
(MSN)1 e as suas contribuições para a implementação das políticas de cotas como
uma ação afirmativa para a população negra na educação superior brasileira.
No que se refere ao MSN, Rizzo (2018) afirma que no processo de democratiza-
ção do país, em prol da luta antirracista, o movimento se expandiu por meio de
suas militâncias, criando várias entidades e organizações. Deste modo, são ações
de resistência, em um contexto histórico de exclusão da população negra em vários
segmentos sociais, inclusive, os educacionais.
Para Santos (1994, p. 157), o MSN compreende:

[...] todas as entidades, de qualquer natureza, e todas as ações, de


qualquer tempo [aí compreendidas mesmo aquelas que visavam
à autodefesa física e cultural do negro], fundadas e promovidas
por pretos e negros [...]. Entidades religiosas [como terreiros de
candomblé, por exemplo], assistenciais [como as confrarias co-
loniais], recreativas [como “clubes de negros”], artísticas [como
os inúmeros grupos de dança, capoeira, teatro, poesia], cultu-
rais [como os diversos “centros de pesquisa”] e políticas [como
o Movimento Negro unificado]; e ações de mobilização política,
de protesto anti-discriminatório, de aquilombamento, de rebel-
dia armada, de movimentos artísticos, literários e ‘folclóricos’
– toda essa complexa dinâmica, ostensiva ou encoberta, extem-
porânea ou cotidiana, constitui movimento negro.

Depreende-se que o MSN envolve um contexto amplo, com várias entidades,


desde as políticas até as culturais, em que a luta maior baseia-se em reivindicar
políticas afirmativas e valorização da população negra.
No que diz respeito a trajetória histórica do MSN, é relevante considerar mar-
cos que registraram períodos de luta. Na década de 1930, foi fundada a Frente
Negra Brasileira (FNB), conhecida como maior organização do MSN da primeira
metade do século XX. Essa frente foi considerada como um movimento que, além
da resistência e do enfrentamento às opressões, objetivava construir a imagem de
um ‘novo negro’, que seria aquele sujeito civilizado e trabalhador, na tentativa de

1 O termo negro é aqui considerado a partir da concepção de Marques (2010, p. 33), isto é,
“sujeitos pretos, pardos, afro-brasileiros e afrodescendentes”.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 77


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
desmitificar os rótulos formulados pela sociedade racista, que os associava aos in-
divíduos marginalizados (bandidos, bêbados, preguiçosos e vagabundos) (SANTOS,
1994).

Conforme Pereira (2010), a FNB foi fundada em 1931, na cidade de São Paulo,
em que reunia milhares de associados e que se expandiu para vários outros es-
tados brasileiros. Em 1936 transformou-se em um partido político. Contudo, em
1937, ela foi abolida e o MSN foi destituído, assim como todas as outras organiza-
ções políticas discordantes do regime centralizador da época.
Em 1944, na cidade do Rio de Janeiro, foi criada outra referência importante, o
Teatro Experimental do Negro (TEN), que objetivou buscar a valorização social dos
negros e a cultura negro-africana no país, através da arte e da educação. O princi-
pal nome desse movimento foi Abdias do Nascimento, que tinha como proposta
inicial formar grupos de atores somente negros para o teatro (RIZZO, 2018).
Em 1978, foi fundado o Movimento Negro Unificado (MNU), uma organização
que marcou a história na esfera nacional, considerada como uma das protagonistas
da luta contra o racismo no Brasil. Marques (2010, p. 55) corrobora, ao salientar
que:

A segunda metade da década de setenta foi marcada pelo for-


talecimento das organizações de ativistas do Rio de Janeiro e de
São Paulo, que vislumbraram a necessidade da criação de um
Movimento Negro nacional capaz de unificar e articular as vá-
rias organizações então existentes. Essa proposta concretizou-se
com a criação, em 1978, do MNU – Movimento Negro Unificado
Contra a Discriminação Racial.

Em 1982, o Programa de Ação desse movimento defendeu as seguintes reivin-


dicações: organização política do negro; transformação do MSN em movimento de
massas; formação de grupos para luta contra o racismo e a exploração do trabalha-
dor; organização para enfrentamento das forças policiais, dentre outros (DOMIN-
GUES, 2007).
Percebe-se que no decorrer dos anos o MSN lutou em prol da integração ou
inserção dos negros a vários departamentos da sociedade brasileira, reivindicando
a valorização da cultura afro- brasileira e africana, com ações de combate à erradi-
cação do racismo e às desigualdades raciais.
Em novembro de 1995, foi comemorado os 300 anos da morte de Zumbi2, com
uma grande manifestação na capital brasileira, denominada “Marcha Zumbi dos

2 Essa marcha, simbolizada no herói negro Zumbi dos Palmares, que nasceu em Alagoas em
1655, e que foi morto em combate em 1695, lutando pela liberdade e igualdade racial (SANTOS, 2007).
Zumbi foi o principal representante da resistência negra à escravidão na época do Brasil Colonial e
foi líder do Quilombo dos Palmares, comunidade livre, formada por escravos fugitivos dos engenhos,
índios e brancos pobres expulsos das fazendas.

78 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Palmares contra o racismo e pela vida”, em que reuniu, aproximadamente, trinta
mil pessoas, principalmente negros.

A Marcha Zumbi dos Palmares, que aconteceu em 1995, fez com


que o governo fomentasse a organização de diversos espaços
de diálogos sobre as questões etnicorraciais e a discriminação.
A partir da pressão do Movimento Negro, deu- se a criação des-
ses grupos e iniciaram-se as discussões sobre as políticas públi-
cas para a superação da desigualdade racial. Surgiu o Grupo de
Trabalho Interministerial (GTI) para a Valorização da População
Negra, o Grupo de Trabalho para a Eliminação da Discriminação
no Emprego e na Ocupação (GTEDEO) e o Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD), com orientações para a avaliação dos
livros didáticos a fim de se verificar a presença de preconceito
de cor, raça/etnia, condição social ou quaisquer outras formas de
discriminação (RIZZO, 2018, p. 27).

Compreende-se que todos esses movimentos sociais criados e conduzidos por


esses líderes objetivaram, desde o início, a busca por uma educação formal e a rei-
vindicação de políticas educacionais que reconhecessem, de fato, as desigualdades
raciais na sociedade brasileira (MARQUES, 2010).
No decorrer histórico, esses movimentos sociais negros se destacaram, princi-
palmente, a partir dos anos 2000, em que o governo brasileiro e os seus principais
órgãos de pesquisa, como o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e o Ins-
tituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), passaram a sofrer influências e
demandas por meios das exigências desses grupos. E isso, segundo Gomes (2011,
p. 134) possibilitou um reconhecimento político, pois “nos últimos anos, uma mu-
dança dentro de vários setores do governo e, sobretudo, nas universidades públi-
cas, como, por exemplo, o processo de implementação de políticas e práticas de
ações afirmativas voltadas para a população negra” tem ocorrido.
De acordo com Domingues (2007), a pressão do MSN, por meio de denúncias
das desigualdades, contribuiu para algumas efetivações de ações afirmativas, e as
políticas de cotas raciais são exemplo disso, em que garantiram o acesso da popu-
lação negra à educação superior, transformando o espaço acadêmico das univer-
sidades do Brasil, mesmo que a presença dos acadêmicos negros nela represente
uma “transgressão do modelo imposto pela cultura acadêmica homogeneizada”
(RIBEIRO, 2017, p. 22).
As políticas de cotas3 são consideradas ações afirmativas (e estas segundo Mar-
ques, 2010, possuem um caráter fundamental para o desenvolvimento social e
econômico do Brasil), pois o Estado necessita intervir, visto que tem a prerrogativa
de traçar diretrizes gerais sobre essas políticas (consideradas como uma das estraté-
gias possíveis para a redução das desigualdades raciais e sociais de um país).

3 “Cotas é o sistema onde há reserva de um percentual de vagas na universidade para um


determinado grupo. As cotas são utilizadas em universidades e instituições de ensino públicas que
optaram por fazer um corte racial em favor dos estudantes negros [...]” (MARQUES, 2010, p. 87).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 79


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
As ações afirmativas possuem objetivos que são fundamentais, pois elas visam:

[...] garantir a oportunidade de acesso dos grupos discrimina-


dos, ampliando sua participação em diferentes setores da vida
econômica, política, institucional, cultural e social. Elas se ca-
racterizam por serem temporárias e por serem focalizadas no
grupo discriminado; ou seja, por dispensarem, num determina-
do prazo um tratamento diferenciado e favorável, com vistas a
reverter um quadro histórico de discriminação e exclusão (JAC-
COUD; BEGHIN, 2002, p. 67).

Entende-se as ações afirmativas, por meio das políticas de cotas (sendo reivindi-
cadas pelo MSN), propiciam o acesso e benefícios aos negros na educação superior
e isso é uma questão muito recente, conforme aponta Marques (2010). Ela ainda
assevera: “pensar em ações afirmativas e cotas para estudantes negros, na perspec-
tiva de reparação de injustiças históricas, significa rever o sentido de universalização
e acesso” (p. 223). A autora destaca que esses estudantes devem ter garantido seu
ingresso e permanência com uma educação superior de qualidade.
Sendo assim, as políticas de cotas têm contribuído para a inserção da população
negra na educação superior por meio das ações afirmativas. No entanto, Ribeiro
(2017, p. 68) afirma que elas:

[...] não se restringem somente à reserva de vagas por meio do


sistema de cotas raciais ou sociais nas universidades, conforme
é o entendimento mais comum na sociedade. Elas são políticas
públicas ou privadas compulsórias ou não, que têm por objetivo
último erradicar da sociedade as práticas discriminatórias dirigi-
das a determinados grupos sociais, historicamente excluídos e
cujo reconhecimento e prestígio social sejam baixos, ou mesmo
inexistentes. Ao direito à igualdade foi acrescentado o direito à
diferença e à diversidade, cuja proteção advém do princípio da
equidade.

Portanto, a partir dos parágrafos suso mencionados, compreende-se que a im-


plantação e implementação de políticas de cotas como ação afirmativa no país,
com luta e reivindicação do MSN, além de buscarem a reparação ou das desigual-
dades entre negros e brancos, possibilitaram o debate sobre racismo, discrimi-
nação racial e reflexões sobre o pertencimento etnicorracial. Contudo, é preciso
avançar e serem problematizadas, pois de acordo com Marques (2010, p. 81), “no
campo educacional, o debate sobre a implantação do sistema de cotas para o ingres-
so de negros na educação superior pública e privada está longe de se esgotar”.
Em relação ao aspecto metodológico deste artigo, ele se define a partir da abor-
dagem qualitativa, de compilação bibliográfica, tendo como embasamento teóri-
co e analítico teses, dissertações e artigos científicos de pesquisadores/as que se
dedicaram ao tema, tais como Domingues (2007), Gomes (2011), Jaccoud e Beghin

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
(2002), Marques (2010), Pereira (2010), Santos (1994, 2007), Ribeiro (2017), Rizzo
(2018).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisando os dados descritos a partir da literatura, considera-se que as po-
líticas de cotas como ação afirmativa, são medidas voltadas para a correção das
desigualdades existentes em uma determinada sociedade e que ações como essas
ocorreram no Brasil por meio das reivindicações e lutas de grupos sociais, com des-
taque para o MSN, com sua trajetória histórica de embate político, social e educa-
cional, em que se teve várias conquistas.
O MSN sempre teve participação efetiva, de forma encampada, para que se crias-
se políticas de cotas para negros na educação superior brasileira, pois ele fora con-
siderado precursor nesta mobilização política, na busca e na luta contra a injustiça
social histórica vivida por essa população, principalmente no que tange ao campo
educacional e a sua ascensão social.
Acredita-se que as políticas de cotas são as formas mais acessíveis e possíveis
de equalizar as desigualdades que ocorreram nos países que sofreram escravidão
e injustiças sociais, como no caso brasileiro. Elas são a superação dessas desigual-
dades, e elas são imprescindíveis para que se caminhe na direção da conquista de
igualdade material e substancial.
Portanto, a pressão do MSN, por meio de denúncias das desigualdades, das
lutas e resistências históricas, contribuiu para efetivação de algumas ações afir-
mativas à população negra (que neste caso, seriam as políticas de cotas), e todos
esses movimentos sociais criados e conduzidos por líderes que, objetivaram desde
o início, a busca por uma educação formal e de qualidade, além da reivindicação
de políticas educacionais, de caráter afirmativo e de inclusão, para que reconhe-
cessem, de fato, as desigualdades e discriminações raciais na sociedade brasileira,
descartando o mito da democracia racial no país.
Logo, o MSN com sua militância e suas variadas organizações, conseguiu redefi-
nir a agenda de demandas das políticas de ações afirmativas, por meio das cotas
raciais, e isso foi fundamental para a consolidação do debate público sobre as de-
sigualdades existentes.

REFERÊNCIAS

DOMINGUES, Petrônio. Movimento negro brasileiro: alguns apontamentos históricos. Re-


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XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 81


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MARQUES, Eugenia Portela de Siqueira. O Programa Universidade para Todos e a inserção


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de Mato Grosso do Sul – 2005-2008. 269f. Tese (Doutorado em Educação) - Universidade
Federal de São Carlos, 2010.

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porâneo no Brasil (1970-1995). 268f. Tese (Doutorado em História) - Universidade Federal
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RIBEIRO, Maria Aparecida Pereira dos Santos. O fortalecimento da identidade negra no


contexto da educação superior: um olhar sobre os negros ingressantes pelo sistema de
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RIZZO, Jakellinny Gonçalves de Souza. A formação inicial de professores e as implicações


para a educação das relações etnicorraciais nos cursos de Pedagogia de MS. 173f. Disser-
tação (Mestrado em Educação) - Universidade Federal da Grande Dourados, 2018.

SANTOS, Joel Rufino dos. Movimento negro e crise brasileira. In: SANTOS, Joel Rufino
dos.; BARBOSA, Wilson do Nascimento. Atrás do muro da noite: dinâmica das culturas
afro-brasileiras. Brasília, DF: Ministério da Cultura, Fundação Cultural Palmares, 1994. p.
144 – 157.

SANTOS, Sales Augusto. Movimentos negros, educação e ações afirmativas. 554f. Tese
(Doutorado em Sociologia) - Universidade de Brasília, 2007.

AUTORIA
Ana Paula Moreira de Sousa
Universidade Federal da Grande Dourados
E-mail: profap.educa@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6807-7253
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8451456429395450

Eugenia Portela de Siqueira Marques


Universidade Federal de Mato Grosso do Sul
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3182-171X
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4276993654278057

82 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
PARA UMA NOVA PRÁXIS SOCIAL DO
MOVIMENTO SOCIAL NEGRO
Pedro Barbosa

Muitos negros da chamada classe superior


estão tão convencidos em impressionar os brancos,
mostrando que são "diferentes" dos outros,
que não percebem que estão ajudando o homem branco
a manter sua opinião desdenhosa
a respeito de todos os negros.
Malcolm X

INTRODUÇÃO
A proposta deste trabalho é contextualizar os processos históricos de identi-
dade, pertencimento, resistências, lutas e conquistas do Movimento Social Negro
Brasileiro. Somos do entendimento que o referido movimento advém de um siste-
ma permanente de choque contra o sistema de racismo estrutural e institucional
imposto pelo seu eterno opressor: a sociedade capitalista.
Nos últimos anos, a população negra brasileira mesmo com uma série de avan-
ços organizativos no campo institucional e conquistas de políticas públicas de pro-
moção da igualdade racial, ainda é incomensuravelmente penalizada pela desigual-
dade socioeconômica imposta pelo sistema capitalista, atualmente, sob orientação
do ultraliberalismo.
No campo institucional, podemos até concordar que o Estado brasileiro a partir
da segunda metade dos anos de 1990, iniciou-se um processo de reconhecimento
histórico do racismo e, ao mesmo tempo, começou a promover políticas públi-
cas buscando amenizá-lo. Destarte, assistimos as criações do Grupo de Trabalho
Interministerial de Valorização da População Negra (GTI População Negra, 1996),
no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002). Consequentemen-
te, em 2003 ocorreu a criação e estruturação da Secretaria Especial de Políticas
de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), o Conselho Nacional de Promoção da
Igualdade Racial (CNPIR) e o Fórum Intergovernamental de Promoção da Igualda-
de Racial (FIPIR), nos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff (PT,
2003-2014). Ainda, como conquistas de políticas públicas de promoção da igual-
dade racial foi sancionado a Lei 10639 (2003); Estatuto da Igualdade Racial (2010);
Cotas Raciais nas Universidades (2012); Cotas Raciais no Serviço Público (2014).
Contudo, mesmo com essas conquistas institucionais, ainda assistimos no campo
socioeconômico processos predatórios contra a maioria dos 56,10% mais pobres
da população negra. No inicio do ano de 2020, o Instituto Brasileiro de Geografia e

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 83


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Estatística (IBGE), apontou um aumento assustador da disparidade entre brancos e
negros. Por exemplo, a média salarial dos brancos/as em relação aos um negro/as
acusou uma diferença de 73,9%. Isso significa que, enquanto o rendimento mensal
das pessoas brancas ocupadas era de R$ 2.796, o da população preta ou parda era
de R$ 1.608. Também, entre a população dos mais 12,7 milhões de desempregados
64% são negros e a informalidade alcança 47%. Por consequência, a justiça con-
tinua livrando a classe elitista branca e corrupta da cadeia, enquanto os presídios
estão lotados de negros/as. Além disso, a continuidade do genocídio da população
negra, principalmente a sua juventude negra, nos bairros pobres das grandes cida-
des continua a todo vapor.
Portanto, no contexto dessa aniquilação capitalista ultraliberal, na atual conjun-
tura, estamos presenciando as conquistas institucionais conquistadas após décadas
de lutas do Movimento Social Negro Brasileiro serem atacadas e ameaçadas pela
gestão protofascistas do governo de Jair Messias Bolsonaro (Partido Aliança pelo
Brasil, 2019-). Inclusive, contando com grande colaboração subordinada aquies-
cente de negros/as (HASENBALG, 2005), que ocupam cargos comissionado nesse
governo, como é o caso mais lastimável na Fundação Cultural Palmares.

APORTE TEÓRICO
A reflexão sobre o significado de movimentos sociais, especialmente o Movimen-
to Negro Social Brasileiro, perpassa necessariamente pela abordagem, exposição
e compreensão dos estudos sociológicos que envolvem essa temática. Sociologi-
camente é ponto pacífico dizer que os movimentos sociais se referem, às ações
coletivas de grupos organizados com objetivos de alcançar mudanças sociais por
meio dos embates políticos, conforme seus valores e ideologias dentro de uma
determinada sociedade e de um contexto específico, mas permeado sempre por
tensões sociais.
Na busca de uma compreensão de significados e sentidos sobre a existência e
presença histórica do Movimento Social Negro Brasileiro no cenário político nacio-
nal e internacional, nosso aporte teórico se sustenta nas bases do pensamento
marxista. Para essa corrente de pensamento, de acordo com nosso entendimen-
to, embora tenha se originado no continente europeu, ela possui uma percepção
universalista que preconiza a unificação de todos segmentos oprimidos do mundo.
Quando Karl Marx em parceria com Friedrich Engels elaboram, em 1848, o Mani-
festo Comunista1, que, posteriormente, serviu como principal tese orientadora de
toda trajetória da Associação Internacional dos Trabalhadores (1864-1876)2, tam-

1 Karl Marx e Friedrich Engels tinham, respectivamente, 30 e 28 anos, quando o Manifesto do


Partido Comunista foi publicado, em 1848. Este texto transformou o mundo e suas relações. A luta de
classes foi declarada o motor da história e do progresso da humanidade. In: http://www.lpm.com.br/
site/default.asp. Acesso em 06/02/2014.
2 Essa entidade foi fundada em 28 de dezembro de 1864, numa grande reunião pública inter-

84 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
bém entendemos que nas premissas apontadas por esse manifesto constaram os
anseios, os relatos e resultados das experiencias de todos oprimidos do mundo
contra seus opressores. Das lutas históricas dos trabalhadores brancos ingleses,
franceses, alemães as rebeliões e lutas dos africanos escravizados pelos coloniza-
dores elitistas e brancos do continente europeu.
Exemplo disso, nas colônias escravocratas americanas, assistimos ações de re-
beldias, formações de quilombos brasileiros, palenques e cimarrones em toda amé-
rica latina e movimentos abolicionistas de vários países. Dentre eles, o movimento
mais destacado foi a Revolução Haitiana, também conhecida por Revolta de São Do-
mingos (1791-1804), foi um período de conflito brutal na colônia de Saint-Domin-
gue, levando à eliminação da escravidão e à independência do Haiti, tornando-o a
primeira república governada por pessoas de ascendência africana.
No bojo desses acontecimentos, surgiram vários heróis e heroínas negras como
o grande Toussaint L'Ouverture no Haiti, Antonio Maceo em Cuba, El Yanga no
México, etc. No Brasil tivemos experiências de vanguardas que deram maior con-
sistência e consciência política organizacional para fortalecimento do Movimento
Social Negro Brasileiro, passando por Zumbi, Dandara, João Cândido, Luiza Mahin,
Abdias Nascimento, Leila Gonzales, e atores/as coletivos como “Núcleo Negro So-
cialista” que criou o Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial
– MUCDR (SANTOS, 2005), dando origem em 1979 o Movimento Negro Unifi-
cado (MNU).
O MNU, formado com princípios de inspirações marxistas, significou uma revo-
lução para os modos de organização do Movimento Social Negro Brasileiro, abriu
núcleos em vários estados e expandiu seu escopo de atuação e suas filosofias orien-
tadoras, incluindo em sua pauta de projetos e atividades a denúncia do mito da
democracia racial brasileira, a conscientização política da população negra e popu-
larização do movimento, o engajamento dos sindicatos e partidos políticos, a busca
de alianças nacionais e apoios internacionais, a introdução da História da África e do
Negro no Brasil nos currículos escolares, a promoção do acesso dos negros a todos
os níveis educacionais, a criação de bolsas para permanência dos alunos nas esco-
las, a releitura crítica da história e da identidade nacionais, o combate aos discursos
hegemônicos, à marginalização, à violência policial, ao desemprego e à pobreza, a
busca de melhores condições de vida em geral, o fortalecimento da identidade do
negro no país e a afirmação de seu importante papel histórico, cultural e social, a
valorização das raízes africanas e a recuperação da memória.
Assim, refletindo sobre vários episódios de conflitos da história brasileira onde
o Movimento Social Negro se fez presente, para o marxismo, a história dos movi-
mentos sociais evolui dialeticamente. Essa definição é uma característica marcante

nacional de operários em Londres no St. Martin’s Hall. A Associação Internacional dos Trabalhadores,
posteriormente conhecida como Primeira Internacional, elegeu Karl Marx para seu Comitê Provisório.
Na primeira reunião do Comitê, em 5 de outubro 1964, Marx integrou a comissão responsável por re-
digir o programa da Internacional. In: http://www.pco.org.br/biblioteca/origens/discurso.htm. Acesso
em 06/02/2014.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 85


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
dessa teoria, pois entende as manifestações de contestações sociais como lutas
entre opressores e oprimidos - como “motor” da história. Esses conflitos levam ao
progresso da história e ao seu desenvolvimento. E, sem dúvida alguma, esse desen-
volvimento na concepção dialética da teoria marxista é multifacetada e não unili-
near. Para Marx (1978), a história pode ser entendida de muitas formas, pois nela
está o pensamento de classes, que formam a sociedade, e não segue um curso
unilinear e evolutivo.
De todas as contribuições surgidas do marxismo, vemos também, no cientista
político italiano Gramsci (1989), um importante teórico para pensarmos o futuro
do Movimento Negro Brasileiro, sobretudo quando propomos entender os concei-
tos dialeticamente articulados de “sociedade civil” e de “hegemonia”.
O autor entende que a partir da segunda metade do século XIX, havia surgido
uma nova esfera do ser social capitalista: o mundo das auto-organizações, a que
ele chamou de “aparelhos privados de hegemonia”. Para o autor, essas organiza-
ções são os partidos de massa, os sindicatos, as diferentes associações, os movi-
mentos sociais, etc., e tudo aquilo que resulta de uma crescente “socialização da
política”, ou seja, do ingresso na esfera pública de um número cada vez maior de
novos sujeitos políticos individuais e coletivos.
Ainda trilhando no caminho da herança deixada por Marx sobre o caráter dos
movimentos sociais, o militante, teórico e revolucionário russo Leon Trotski, de-
senvolve alguns conceitos que são fundamentais para compreendermos o conceito
de práxis contido no marxismo e, no próprio Movimento Social Negro Brasileiro.
Primeiro, o conceito de “revolução permanente” e segundo, o de “transição”.
Nestes dois tratados teóricos, encontramos o significado real do conceito de
“práxis social”. Ou seja, o entendimento de uma perspectiva dialética preconizada
pelo arcabouço teórico marxista aponta que em cada momento histórico aparece
uma conjuntura de acordo com sua época e com cada contexto social. Assim, pelo
entendimento de materialismo histórico e dialético o marxismo pode se adaptar
em sintonia com a realidade objetiva apresentada em qualquer circunstancias de
conflitos presentes no paradigma da sociedade atual. Afinal, enquanto modelo de
sistema social que vivenciamos, ainda não superamos o capitalismo.
A história do movimento negro internacional nos oferece dados empíricos que
entre os marxistas ortodoxos, no que concerne à questão étnico- racial dentro do
posicionamento marxista, nota-se que Trotsky (1971) é quem fez uma leitura mais
precisa da necessidade de colocar a luta dos negros norte-americanos na ordem
do dia como uma das forças motoras para a agenda do socialismo internacional.
Em uma reunião realizada com dirigentes Socialist Workers Party (SWP)3, em sua

3 Partido Socialista dos Trabalhadores (Socialist Workers Party ou SWP) era o Partido Comu-
nista dos Estados Unidos. Foi considerado radical de esquerda por ter sido o maior e mais ativo propa-
gador do trotskismo no país por metade do século XX. Quando em 1985, o SWP rejeitou o trotskismo
perdeu grande parte de sua influência. Dentre várias ações históricas desse partido consta o projeto:
Trotsky e o Partido Negro. A questão negra, assim como a questão do Partido Operário, foi também
objeto de muitas discussões entre Trotsky e os trotskistas estadunidenses na década de 1930. O SWP

86 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
residência no ano de 1939, na cidade do México, o revolucionário russo manifestou
o seguinte posicionamento:
Nosso movimento está familiarizado com diversas formas como o partido, o
sindicato, organizações de formação, a cooperativa, mas este é um novo tipo de
organização que não coincide com as formas tradicionais. Devemos considerar a
questão de todos os ângulos, quanto às possibilidades e qual seria a forma da nos-
sa participação nesta organização. (...) Existe certa analogia com os negros. Eles
foram escravizados pelos brancos. Eles foram liberados pelos brancos (a chamada
libertação). Eles foram conduzidos e enganados pelos brancos e não têm nem mes-
mo independência política. Eles precisam de uma atividade pré- política enquanto
negros. Teoricamente, parece absolutamente claro para mim que uma organização
especial deveria ser criada para uma situação especial. (...) O que determina a ne-
cessidade? Dois fatos fundamentais: que as grandes massas negras estão atrasadas
e oprimidas e essa opressão é tão forte que eles a sentem a cada momento em que
se sentem como negros. Devemos encontrar os meios de lhes abrir a possibilidade
de dar a esse sentimento uma expressão política e organizativa. Vocês podem dizer
que na Alemanha ou na Inglaterra não impulsionamos essas organizações semi-po-
líticas, semi-sindicais ou semi- culturais: respondemos que devemos nos adaptar
às genuínas massas negras nos Estados Unidos. (TROTSKI, 1971. Fonte texto da
internet: http://www.quarta- internacional.org/spip.php?article219). Acesso em
28/01/2014.
Assim, entendemos que Trotsky (1971) é o que mais reconhece a importância
do movimento negro norte-americano como um dos elementos componentes da
práxis social para continuidade da revolução socialista mundial.
O revolucionário russo realizou um importante papel na formulação de uma
política revolucionária de combate ao racismo através de seus muitos debates com
os militantes socialistas e do movimento negro norte-americano. Entre eles, Cyril
Lionel Robert James (1901-1989), autor de “Os Jacobinos Negros” (sobre a revolu-
ção haitiana).
No Brasil, as perspectivas teóricas do marxismo, também é compartilhado por
alguns estudiosos/as que partem de uma compreensão que o referido movimento,
historicamente, traz em si uma atividade humana prático-crítica, que nasceu das
relações de conflitos entre senhores e escravos Ou seja, um conflito permanente
de raça e classe (MOURA, 1959). Para esse autor, a contradição de classe encontra-
da no regime escravocrata levou os africanos que foram subjugados nesse regime a
desenvolverem lutas contra essa ordem.

A quilombagem, como vemos, era uma força que procurava


destruir, com as energias sociais de que dispunha, o sistema
escravista. Era uma força dinâmica não institucionalizada, mas

também tinha como grande prioridade considerável na Pathfinder Press (setor editorial do SWP), que
publicou uma grande lista de títulos de líderes revolucionários, de Lenin e Trotsky a Malcom X e Ernesto
Che Guevara.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 87


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
operante. Constituía um fator de desestabilização do sistema
escravista. Mesmo não sendo capaz de estabelecer um projeto
social global (o que os abolicionistas moderados da última fase
do Abolicionismo não fizeram) esse momento sub-reptício foi
um elemento de desgaste social, econômico e militar perma-
nente contra o estatuto da escravidão em São Paulo. Lutando
sozinhos, tendo contra si todo o aparelho repressor do Estado,
o quilombola e o escravo insurreto nos seus diversos níveis de
rebeldia, teve um papel muito grande nesse processo de mu-
dança social. Foram os abolicionistas que mais trabalho deram
ao sistema escravista (MOURA, 2003, p. 65-66).

Como espaço de alternativa de organização social contra hegemônico ao siste-


ma da sociedade escravista, os quilombos tornaram-se redutos, afastados dos cen-
tros urbanos, que reuniam principalmente ex-escravos negros que fugiam de seus
senhores em busca de liberdade. Eventualmente, alguns índios e brancos pobres
também habitaram os quilombos.
Assim, pensar em conflitos e políticas antirracistas no Brasil é entender que o
Movimento Negro Brasileiro perpassa os governos, os partidos políticos e todas as
denominações do que são movimentos sociais, independentemente de seus ciclos
históricos.

PROBLEMA DE PESQUISA (E/OU HIPÓTESE E/OU OBJETIVOS)


O objetivo geral desse trabalho é fazer um balanço quantitativo e qualitativo no
sentido de avaliar se os órgãos públicos criados no governo federal, como Grupo de
Trabalho Interministerial de Valorização da População Negra (GTI População Negra,
1996), no governo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB, 1995-2002); Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR, 2003), Conselho Na-
cional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR, 2003) e Fórum Intergovernamen-
tal de Promoção da Igualdade Racial (FIPIR, 2003), nos governos de Luiz Inácio Lula
da Silva e Dilma Rousseff (PT, 2003-2014), foram realmente eficientes ou não para
consolidação das Políticas Públicas de Promoção da Igualdade Racial para todo
conjunto população negra brasileira?

METODOLOGIA
Na trajetória de nossa pesquisa, utilizamos uma revisão literária de obras e do-
cumentos sobre o Movimento Social Negro brasileiro. Simultaneamente, correla-
cionamos essas leituras com nosso trabalho de campo junto as várias entidades
do referido movimento, participando de reuniões, eventos científicos e aplicando
entrevistas de áudios e questionários aos/as ativistas.

88 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
RESULTADOS E ANÁLISE
Em linhas gerais, ao concluirmos nosso trabalho de campo, percebemos que as
iniciativas institucionais envolvendo os organismos de governo no plano federal,
estadual e municipal e o Movimento Social Negro Brasileiro estão muito aquém da
demanda histórica da população negra. Diante dessa problemática, entendemos
que a hipótese a ser construída é que caberia ao Movimento Social Negro Brasilei-
ro retomarem o caminho da luta de forma livre e independente.
Sem tutela estatal, autônomo e conduzido por “Negros/as em Movimento”.

CONCLUSÕES (OU CONSIDERAÇÕES FINAIS)


Antecipadamente, como hipótese generalizada, entendemos que na atual con-
juntura, como é de conhecimento geral dos atores sociais interessados, principal-
mente, levando em consideração que ainda assistimos no campo socioeconômico
processos predatórios contra a maioria dos 56,10%mais pobres da população ne-
gra, como apontou o IBGE no início do ano de 2020, os órgãos governamentais
criados pelo Estado como o GTI, a SEPPIR, o CNPIR e FIPIR, funcionaram mais como
espaços simbólicos do que órgãos deliberativos de políticas públicas de promoção
da igualdade racial.
Além disso, assistimos as poucas ações afirmativas em benefício da população
negra serem atacadas e ameaçadas pela gestão protofascistas do governo de Jair
Messias Bolsonaro (Partido Aliança pelo Brasil, 2019-). Inclusive, contando com
grande colaboração subordinada aquiescente de negros/as (HASENBALG, 2005),
que ocupam cargos comissionado nesse governo, como é o caso mais lastimável na
Fundação Cultural Palmares.

REFERÊNCIAS

GRAMSCI, A. Maquiavel, a política e o estado moderno. RJ., Civilização brasileira, 1989.


JAMES, C. L. R.. Os jacobinos negros. Editora Boitempo. São Paulo, 2000.

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vo das Edições «Avante!», Lisboa, 1997.

. Carta de Karl Marx para Abraham Lincoln. In: “Obras Escolhidas” (Editorial Avan-
te!/Edições Progresso Lisboa-Moscou, 1982, tradução de José Barata-Moura), de Karl
Marx. A carta foi escrita entre 22 e 29 de novembro de 1864, em plena Guerra Civil Ame-
ricana. Foi publicada em “The Bee- Hive Newspaper”, nº 169, de 7 de janeiro de 1865.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 89


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
. E ENGELS F. La Guerra Civil em los Estados Unidos. Buenos Aires: Rosa Blindada,
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MOURA, Carlos. Rebeliões da Senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas. São Paulo: Edi-
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. A encruzilhada dos Orixás: problemas e dilemas do negro brasileiro. Maceió:


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. raízes do protesto negro / Clovis Moura. São Paulo. Global Ed., 1983.

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(Coleção Socialismo em discussão).

TROTSKY, Leon. O Negro Organization," April 5, 1939, Ibid. IN: On Black Nationalism and
Self-Determination, Feb. 28, 1933, reprinted in «Leon Trotsky on Black Nationalism and
Self- Determination,» Pathfinder Press, 1971. Fonte: http://www.quarta- internacional.
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________. O combate ao racismo na perspectiva marxista. In: opinião socialista – especial


Raça & classe. (São Paulo, 2013, p. 8).

AUTORIA
Pedro Barbosa
Professor Adjunto do Curso de História – Unidade Acadêmica de Ciências Humanas
e Letras da Universidade Federal de Jataí/GO.
E-mail: cosmocratico@gmail.com
ORCID: 9323979478477151
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9323979478477151

90 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 43
Observatório de
Discriminação
Racial
NÚCLEO DE ESTUDO AFRO-BRASILEIROS
E INDÍGENAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL
DO ACRE: TRAJETOS DE LUTA POR MEIO DE
PESQUISAS DE PROMOÇÃO DE IGUALDADE
RACIAL (2018-2020)

Flávia Rodrigues Lima da Rocha


Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque

É tempo de formar novos quilombos,


em qualquer lugar que estejamos.
(Conceição Evaristo)

INTRODUÇÃO
Este texto trata das pesquisas realizadas pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasilei-
ros e Indígenas da Universidade Federal do Acre (Neabi/Ufac), entre os anos de
2018 e 2020. O Neabi/Ufac foi criado institucionalmente como unidade adminis-
trativa em 22 de novembro de 2018 como proposta aprovada no Conselho Universi-
tário da instituição. É importante ressaltar que a proposta foi construída pela então
representante do Fórum Permanente de Educação Étnico- Racial do Estado do Acre
(FPEER/AC), organismo do movimento negro acreano que sempre compreendeu a
importância da articulação entre movimento negro e academia, numa busca pela
ampliação do movimento negro educador, como propõe Gomes (2017).
Além disso, o Neabi/Ufac também foi logo posteriormente cadastrado na plata-
forma do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq),
como Grupo de Pesquisa, ao qual se vincularam diversos professores e alunos da
instituição, bem como professores da educação básica e pessoas da comunidade
em geral. É importante destacar que a forte adesão ao Neabi/Ufac deve-se ao fato
de que as políticas de promoção de igualdade racial na Ufac já vinha se desenvol-
vendo e sendo aplicadas há alguns anos, tendo em 2013 tido início o curso de
especialização Uniafro: Política de Promoção de Igualdade Racial na Escola, com
uma segunda edição, em formato de aperfeiçoamento, em 2016. Em 2016, articu-
lado também com o FPEER/AC a Ufac criou o Observatório de Discriminação Racial,
com o intuito de desenvolver pesquisas que investigassem o racismo na sociedade
acreana e formas de enfrentá-lo.
O Neabi/Ufac é estruturado por meio de coordenadorias, entre estas está a co-
ordenadoria de pesquisa, que abriga o Observatório de Discriminação Racial, que
atualmente é um laboratório de pesquisa da instituição, bem como as pesquisas
institucionais, as pesquisas de Iniciação Científica dos docentes que compõem o

92 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
núcleo e as pesquisas de pós-graduação dos membros do núcleo. E é sobre este ca-
ráter de promotor de pesquisas voltadas para pesquisas de promoção de igualdade
racial, denvolvidas pelo Neabi/Ufac que este texto vem tratar.

APORTE TEÓRICO
As pesquisas desenvolvidas pelo Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas
da Universidade Federal do Acre (Neabi/Ufac), assim como este texto que as apre-
senta e sobre elas reflete são de caráter decolonial, uma vez que Oliveira e Candau
(2010) afirmam que uma proposta decolonial requer a superação dos padrões epis-
temológicos hegemônicos e afirmação de novos espaços de enunciação epistêmi-
cas nos movimentos sociais. Além disso, segundo os autores, “a decolonialidade
representa uma estratégia que vai além da transformação da descolonização, ou
seja, supõe também construção e criação. Sua meta é a reconstrução radical do
ser, do poder e do saber.” (OLIVEIRA E CANDAU, 2010)
Considerando então o conceito de decolonialidade aqui explicitados por meio
de Oliveira e Candau (2010) pode-se perceber que as pesquisas desenvolvidas pelo
Neabi/Ufac têm exatamente este caráter decolonial ao passo que buscam não ape-
nas romper com a hegemonia europeizada do conhecimento, mas também trazem
em si propostas de novas epistemologias e a serem pensadas e aplicadas às pesqui-
sas e resultados por elas encontrados. As pesquisas do Neabi/Ufac são pesquisas
com temáticas que foram por muito tempo silenciadas e desconsideradas pela aca-
demia, por tratar-se de conhecimentos e sujeitos considerados pela epistemologia
hegemônica como subalternizados e sem espaço para adentrar no mundo acade-
minista. Temáticas estas voltadas para os saberes, histórias e culturas indígenas,
afro-brasileiras e africanas. E não apenas as temáticas, como também os próprios
sujeitos, espaços e referenciais de pesquisa. E por fim é importante ressaltar o
protagonismo destes sujeitos como pesquisadores nestas atividades desenvolvidas
por este núcleo, que tem em sem quadro de pesquisadores e pesquisadoras indíge-
nas, bem como negras e negros, rompendo em muito com as estruturas coloniais,
em que estes sujeitos não poderiam ser pensados sequer como sujeitos de pesqui-
sa quanto mais como pesquisadores protagonistas destas atividades que produ-
zem conhecimento científico para toda a sociedade, que por sua vez é estruturada
sobre as bases da dominação colonial, contra as quais é muito difícil se interpor.
Outro conceito a ser considerado neste texto é o conceito de quilombismo de
Abdias do Nascimento (2002). Neste conceito o autor retoma a tradicional história
e conceito dos quilombos formados no contexto do Brasil escravocrata como espa-
ço de refúgio e resistência da população africana e afro-brasileira escravizada e faz
uma analogia deste conceito e histórico de quilombo com os espaços de resistência
da população negra em geral.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 93


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O quilombismo se estruturava em formas associativas que tanto
podiam estar localizadas no seio de florestas de difícil acesso
que facilitava sua defesa e sua organização econômico-social
própria, como também assumiram modelos de organizações
permitidas ou toleradas, frequentemente com ostensivas fina-
lidades religiosas (católicas), recreativas, beneficentes, espor-
tivas, culturais ou de auxílio mútuo. Não importam as aparên-
cias e os objetivos de clarados: fundamentalmente todas elas
preencheram uma importante função social para a comunidade
negra, desempenhando um papel relevante na sustentação da
continuidade africana. (NASCIMENTO, 2002, p. 337)

Como se pode perceber o conceito de quilombismo de Nascimento (2002) é uma


aplicação do conceito histórico de quilombo às unidades negras de resistência da
atualidade, consideradas pelo quilombismo como um espaço para se desenvolver
práticas de liberdade e assumir o comando da própria história. Este conceito muito
se reflete sobre toda a estrutura dos Neabs e Neabis brasileiros em geral e seus
grupos correlatos, inclusive sobre o Neabi/Ufac e incluindo destacamente aqui
neste texto a coordenadoria de pesquisa do Neabi Ufac, que tem desenvolvido
pesquisas como promoção de igualdade racial com um caráter de resistência e de
incluir como conhecimento científico histórias não contadas ou mal contadas, con-
tadas a partir do ponto de vista do colonizador que deteve sozinho, por séculos, o
poder de contá-las.
Por fim, outro importante conceito a ser utilizado aqui neste texto é o con-
ceito de Nilma Lino Gomes (2017) a respeito de movimento negro educador, em
que ela propõe o movimento negro “como produtor de saberes emancipatórios e
um sistematizador de conhecimentos sobre a questão racial no Brasil.” (GOMES,
2017, p. 14). A autora explica que, nesta lógica, os movimentos sociais, inclusive o
movimento negro, são produtores e articuladores dos saberes construídos pelos
grupos não-hegemônicos, tensionando os saberes e a sociedade para que os co-
nhecimentos não- hegemônicos ganhem o devido valor epistemológico e político,
sendo assim, o movimento negro educador em sua trajetória e produção educa
tanto a si mesmo como aos outros, a cada conquista. Este conceito também muito
se aplica às pesquisas desenvolvidas pelo Neabi/Ufac, uma vez que todas elas têm
educado tanto aos pesquisadores nelas envolvidos, como seus resultados poderão
contruibuir na educação de outras pessoas com relação ao racismo e a formas de
promover igualdade racial.

PROBLEMA DE PESQUISA (E/OU HIPÓTESE E/OU OBJETIVOS)


Neste texto a pergunta central é: quais pesquisas o Núcleo de Estudos Afro-
-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre tem desenvolvido como
promoção de igualdade racial? Pergunta a partir da qual outras questões de estudo
surgiram, como 1) em que medida as pesquisas desenvolvidas pelo Neabi/Ufac são

94 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
decoloniais a ponto de promover igualdade racial? 2) Quem são os sujeitos étnico-
-raciais que têm se aquilombado para produção de pesquisa no Neabi/Ufac? 3) Em
qual medida as pesquisas do Neabi/Ufac podem educar ao núcleo e à comunidade
externa ao núcleo? Estas são perguntas que deram direção a escrita deste texto.

METODOLOGIA
Esta pesquisa foi realizada a partir da análise documental dos documentos do
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre,
como suas atas de reunião, seus registros cadastrais e organizacionais enquanto
unidade institucional e enquanto grupo de pesquisa registrado na plataforma do
CNPQ, dentre outros. A análise de conteúdo foi metodologia empregada para orga-
nizar os dados, bem como para análisá-los.

RESULTADOS E ANÁLISE
Criado institucionalmente em novembro de 2018 e cadastrado na plataforma
do CNPQ no início de 2019, o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas foi
organizado em coordenadorias, como já foi mencionado, e uma delas a constituir
o núcleo foi a coordenadoria de pesquisa. Tendo em vista que o Neabi/Ufac surge
tendo como um dos intuitos agregar as ações de promoção de igualdade racial já
ocorridas na universidade e como crescimento das linhas de pesquisa História e
Cultura Africana e Afro-Brasileira e História e Cultura Indígena de um outro grupo
de pesquisa, o Grupo de Pesquisa “O processo de construção do docente em His-
tória: possibilidades e desafios da formação inicial e da formação continuada do
fazer-se historiador em sala de aula”, certificado como tal no início de 2018, esta
coordenadoria já surge com alguns trabalhos a ela relacionados, dentre eles um
Laboratório de Pesquisa, o Observatório de Discriminação Racial, que desenvolve
pesquisas institucionais, algumas pesquisas de iniciação científica e e as pesquisas
de pós-graduação dos membros do núcleo, como se verá na tabela abaixo, sobre a
qual posteriormente será melhor refletido sobre as ações nela apresentadas.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 95


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
TABELA 01: AÇÕES DE PESQUISA DO NÚCLEO DE ESTUDOS AFRO-BRASILEIROS E
INDÍGENAS DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO ACRE
IDENTIDADE
PERÍODO ÉTNICO-
RETORNO DA PESQUISA
AÇÃO DE PESQUISA DA AÇÃO DE RACIAL DOS
PARA A COMUNIDADE
PESQUISA COORDENADORES
DAS AÇÕES

Pesquisa Institucional/
Pesquisa de Doutorado:
Práticas pedagógicas em
Comunicações orais em
educação das relações Desde
eventos; Relatórios
étnico- raciais em escolas de agosto de Negra
de pesquisa; Tese de
educação básica do Estado do 2018
doutorado.
Acre, ligada ao Laboratório
de Pesquisa Observatório de
Discriminação Racial

Pesquisa Institucional: Pérolas Comunicações orais em


Negras – afro-brasilidades e eventos; Relatórios
os usos públicos da História, Desde abril de pesquisa; Cards e
Negra
ligada ao Laboratório de de 2020 Catálogo com os sujeitos
Pesquisa Observatório de de estudo da pesquisa;
Discriminação Racial Vídeos no YouTube.

Pesquisa de Iniciação
Entre agosto
Científica: História e Comunicações orais em
de 2019 e
Jornalismo: as representações Branca eventos; Relatórios de
agosto de
de negros na imprensa rio- pesquisa; Minicursos.
2020
branquensse

Pesquisa de Iniciação
Científica: Lei 12.711/2012
na UFAC: estudo do impacto
das ações afirmativas étnico- Desde Comunicação Oral e
raciais sobre a produção setetembro Branca Relatório Final – previsto
acadêmica científica do de 2020 para agosto de 2021.
Campus Sede entre 2012 a
2020

Pesquisa de Iniciação
Científica: Educação das Desde Comunicação Oral e
Relações Étnico- Raciais e setetembro Negra Relatório Final – previsto
suas práticas pedagógicas nas de 2020 para agosto de 2021.
escolas do estado do Acre

Pesquisa de Iniciação
Científica: Racismo e Desde Comunicação Oral e
iniquidades em saúde: o papel setetembro Negra Relatório Final – previsto
da identidade racial na de 2020 para agosto de 2021.
promoção do bem-estar social

Pesquisa de Mestrado: O
léxico na obra Rei Negro, de
Dissertação – prevista
Coelho Neto: as contribuições Desde abril
Negra para o primeiro semestre
das línguas africanas para o de 2019
de 2021.
multilinguísmo do português
brasileiro
Pesquisa de Mestrado:
Dissertação – prevista
Educação Huni Kui: saberes, Desde abril
Negra para o primeiro semestre
identidades e currículo – de 2019
de 2021.
Mestrado

Pesquisa de Mestrado:
Dissertação – prevista
Dicionário Bilíngue: Desde abril
Indígena para o primeiro semestre
Shanenawá-Português – de 2019
de 2021.
Mestrado

Pesquisa de Mestrado: A
Ufac enquanto promotora de
Desde Dissertação – prevista
formação em educação das
agosto de Negra para o segundo semestre
relações étnico- raciais para
2019 de 2021.
professores (2008-2018)
– Mestrado

Pesquisa de Mestrado: Bem Dissertação – prevista


Desde abril
viver das parteiras e pajés do Indígena para o primeiro semestre
de 2020
povo Shanenawá – Mestrado de 2022.

Monografia – prevista
Monografia de Graduação: Desde julho
Negra para o segundo semetre
O movimento negro acreano de 2019
de 2020.
Fonte: as autoras, 2020.

Tendo em vista a tabela acima e as questões de estudo já definidas neste texto,


pode-se identificar diversas informações. Uma delas é o foco dado às temáticas das
pesquisas, todas com recortes étnico-raciais, voltadas para o estudo da população
negra e indígena, numa busca por apresentar novos conhecimentos, novas histó-
rias de povos que foram secularmente escravizados e impedidos de se reproduzir
científicamente, restando a eles o epistemicídio, embora eles tenha sido sempre
resistentes e tenham se reproduzido, apesar da interdições sofridas. Sendo assim,
pode-se observar que todas as pesquisas produzidas pelo Neabi/Ufac propõe dar
visibilidade e positividade a estas histórias, culturas e saberes que foram estigma-
tizados diante das histórias, culuras e saberes coloniais. Além disso, como se pode
perceber, os próprios sujeitos que coordenam as pesquisas do Neabi/Ufac são pre-
dominamente construtores de um protagonismos decolonial para estas investiga-
ções, uma vez que são em sua maioria étnico-racial identificados como negros; há
entre esses coordenadores de pesquisa também 02 coordenadores indígenas; e há
também 02 pesquisas que têm na coordenação a identidade étnico-racial branca,
apontando a reprentatividade da branquitude crítica presente no núcleo no nú-
cleo, ou seja, sujeitos que em sua branquitude reconhecem seu lugar de privilégio
e também trabalham em prol de igualdade racial.
Além das histórias, culturas e saberes afro-brasileiros e indígenas, também há
pesquisas no Neabi/Ufac que são diretamente voltadas para acompanhar as po-
líticas de promoção de igualdade racial em suas implantações e implementações,
corroborando ainda com o caráter decolonial dessa coordenadoria, uma vez que
compreende-se não só a importância dessas políticas como necessidade urgente
de que elas se efetivem na proposição de ampliar a diversidade étnico-racial nos
diferentes espaços, tanto físicos quanto subjetivos.
Como já foi mencionado, há no protagonimos das pesquisas do Neabi/Ufac um
aquilombamento de diversidade étnico-racial e embora a Tabela 1 só apresente
dados das coordenações das ações de pesquisa, todas estas ações são desenvolvi-
das por um grande número de alunos e também por um grande número de pessoas
da comunidade, em sua maioria negra, com algumas pessoas indígenas e algumas
pessoas brancas, em um retrato de representatividade da população acreana, que,
de acordo com o último censo do IBGE é composta por 72% de negros e 2,4% de
indígenas (BRASIL, 2012). Este aquilombamento além de contemplar uma diversi-
dade étnico-racial que cumpre sua importante função de inclusão, é também um
importante espaço de refúgio para sujeitos que não têm fácil acesso a atividades
de pesquisa por terem temáticas negligenciadas e por não serem sujeitos norma-
tivos dentro do espaço acadêmico, mas perfeitamente, daí a importância em aqui-
lombar-se para produzir pesquisas com caráter científico e acadêmico. Além disso,
apesar de algumas pesquisas apresentadas serem de responsabilidade individual,
como é o caso das que terão como resultado trabalhos de conclusão de curso de
graduação, de mestrados e doutorado, todas essas pesquisas são pensadas e desen-
volvidas de forma coletiva, assumindo o quilombismo construído por Nascimento
(2002) e em muito fortalecendo estas ações e a atuação destes sujeitos.
Por fim, é importante ressaltar que as pesquisas desnvolvidas pelo Neabi/Ufac
compõem o que Gomes (2017) conceituou como movimento negro educador, uma
vez que todas estas pesquisas educam seus protagonistas e seus colaboradores,
tanto durante a pesquisa, como quando da publicação de seus resultados, como
também educa a comunidade que acessa este resultados, numa contrituição imen-
sa para divulgar conhecimento acadêmico decolonial e promover igualdade racial
tanto por meio da atuação quanto por meio da construção e da divulgação do co-
nhecimento, educando também aos outros que acessam a este resultado.

CONCLUSÕES (OU CONSIDERAÇÕES FINAIS)


Sendo assim, pode-se perceber que o Neabi/Ufac tem desenvolvido uma série
de pesquisas em seu pequeno tempo de existência, dado ao fato de estes pesqui-
sadores já desenvolviam suas atividades de forma independente antes da criação
do núcleo ao qual se agregaram, o que faz do núcleo um espaço já fortalecido pela
atuação de seus membros e compromisso com a luta antirracista dentro da acade-
mia, o que fica bem representado em suas 12 pesquisas em andamento, pesquisas
de caráter institucional, outras de iniciação científica, outras de conclusão de curso
de graduação, mestrado e doutorado. A temática e a abordagem metodológica
destas pesquisas revelam o caráter decolonial que elas adotaram no intuito de
romper com a história única e contar as histórias ainda não contadas. A variedade
de pesquisadores realizando pesquisas no Neabi/Ufac também é outro aspecto que

98 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
fortalece o núcleo, tendo em vista não apenas a diversidade de representatividade
étnico-racial como também os diferentes patamares em que estes pesquisadores
se encontram dentro da academia, demonstrando assim que o movimento negro
educador tem não apenas educado a si mesmo e aos outros como também tem for-
mado uma rede que tem conectado gerações, garantindo as ações do presente e a
continuidade delas por meio dos pesquisadores que estão em processo de forma-
ção, dando sustentabilidade a este movimento negro educador.

REFERÊNCIAS

CANDAU, Vera Maria Ferrão; OLIVEIRA, Luiz Fernandes de. Pedagogia Decolonial e Educa-
ção Antirracista e intercultural no Brasil. In: Educação em Revista. Belo Horizonte, v.26,
n.01, p. 15-40, abr. 2010.

GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos nas lutas por
emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Os Indígenas no Censo Demográfico


2010: primeiras considerações com base no quesito cor ou raça. Rio de Janeiro-RJ, 2012.

NASCIMENTO, Abdias do. Quilombismo. 2.ed. Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Palmares/


OR Editor Produtor, 2002.

AUTORIA
Flávia Rodrigues Lima da Rocha
Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre
E-mail: flavia.rocha@ufac.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2399-4795
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6741665707188813

Nedy Bianca Medeiros de Albuquerque


Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas da Universidade Federal do Acre
E-mail: nedy.albuquerque@ufac.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5071-5651
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6168907090484541

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 99


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 40
Negritudes e(m)
Ação: tentativas
de ações e
movimentos
sociais
transformadores,
e de pesquisas
transformadoras
em tempos de
precarização da
vida negra.
PELO CAMINHO EMPOEIRADO RUMO À FAVELA,
A MINHA VOZ AINDA ECOA: MOVIMENTO
ESTUDANTIL NEGRO, REPRESENTAÇÃO
DISCENTE E EXPRESSÕES DE LUTA NA UFPR

Juliana Ertes Santos


Lais Mattuella
Carla Mota Menezes

Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância


O eco da vida-liberdade.
(Poemas de recordação e outros movimentos, p. 10-11).

INTRODUÇÃO
Neste artigo, escrito a três mãos e inúmeras negras vozes, objetivamos discutir
as ações da representação e participação discente do curso de Letras na Universi-
dade Federal do Paraná entre os anos 2018 e 2020 através das gestões do Centro
Acadêmico de Letras (CAL) “Juntos somos mais fortes” e “Flor do asfalto”, onde
nossa atuação é analisada enquanto um movimento e movimentação negra pro-
dutora de resistências, afetos e conhecimentos de, sobre e para a população negra
universitária (GOMES, 2012). Nosso trabalho teórico e prático baseia-se em estu-
do, embates extra-universidade e no saber popular negro.
Na discussão, discorreremos sobre o espaço universitário enquanto uma arena
de múltiplas disputas motivadas por hierarquias socioeconômicas, raciais e de
gênero, na qual se estabelecem relações de poder (QUIJANO, 2014) e onde são
traçadas linhas-limite que dividem onde o/a estudante negro/a pode ou não estar-
-atuar-construir-aprender. Inseridas ainda nessa discussão inicial, serão explana-
das nossas perspectivas enquanto coletivo de estudantes e negros militantes de
base acadêmica (RATTS, 2009).
Através da Ação Direta (FARJ, 2009), as militantes negras do CAL se colocaram
de forma ativa na construção de espaços auto-organizados com a centralidade ra-
cial em pauta, superando a mera reivindicação por maior protagonismo negro nas
discussões acadêmicas e militantes, partindo, assim, para a ação concreta, sem
esperar que fizessem por nós: fizemos por nossas mãos, de forma autônoma, sem
a tutela da Universidade e seus departamentos, criando nossos próprios espaços,
fazendo nossos próprios grupos de estudo, organizando nossas mesas redondas,
nossas conferências, nossos espaços de interação e socialização. O princípio da
Ação Direta consiste em uma forma de fazer política de modo ativo, buscando a
participação em oposição à mera representação distante das bases dos cursos e

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 101


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ao conformismo com as estruturas institucionais que, muitas vezes, não favore-
cem os interesses negros e populares dentro da Universidade. Assim, participação
direta enquanto princípio motor de nossa prática cotidiana possibilitou o trabalho
coletivo para pensar raça dentro da Universidade e atuar em prol da permanência
dos nossos e de uma formação que dialogue com as nossas vidas e realidades,
em contraposição à hegemonia branca universitária. A partir desse conceito, neste
trabalho será feita uma cartografia das movimentações do CAL envolvendo a temá-
tica étnico-racial enquanto aglutinador de semelhantes, tecedoras de discussões e
encontros entre sujeitos coletivos e políticos. Nesta, analisaremos os espaços de
formação, debate e acolhimento promovidos pela representação discente para os
estudantes negros e negras da Universidade e traremos ao fim do artigo conside-
rações, nossas e dos nossos, sobre a importância e os impactos desse trabalho
coletivo realizado há dois anos pelas gestões do Centro Acadêmico de Letras.

OBJETIVO
Objetiva-se, através deste trabalho, compartilhar e dissertar sobre as experiên-
cias da representação e do corpo discente com esses eventos, mais especificamen-
te, discutindo sobre a importância do debate e da organização negra no espaço
acadêmico.

METODOLOGIA
Dentro desse espaço acadêmico acima mencionado, e através de nossa pul-
são pela mudança dos mesmos, realizamos diversos eventos específicos para a
comunidade negra universitária e comunidade externa. Promovemos espaços di-
versos: desde parcerias com profissionais da Psicologia sobre a Saúde Mental da
população negra, cinedebates, até uma AFROrecepção - um evento de recepção
específico para os calouros e calouras negras que ingressaram na Universidade no
ano de 2020. Com o intuito de procurar entender os impactos desses eventos na
comunidade acadêmica, as percepções sobre os espaços e buscando melhorar sua
qualidade, levantamos questionamentos junto aos nossos colegas, companheiros
de atuação no Centro Acadêmico e buscamos fazer uma etnografia por entre as
múltiplas memórias sobre os dois anos das gestões do CAL e da promoção do deba-
te racial dentro do curso de Letras. Essas narrativas se encontram junto às nossas,
que nos posicionamos em texto enquanto sujeitas e promotoras do debate.

RESULTADOS E ANÁLISE
A mesa redonda Saúde Mental da População Negra foi o primeiro espaço or-
ganizado pelo CAL durante a gestão “Juntos somos mais fortes” cuja temática foi

102 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
centralizada na negritude, em 2018. Nesta ocasião, reunimos quatro psicólogos e
psicólogas que atuam e/ou pesquisam sobre as implicações do Estado racista brasi-
leiro no adoecimento mental de pessoas negras. O espaço atraiu pessoas de diver-
sos cursos e também de fora da Universidade, colorindo a sala de aula geralmente
embranquecida, com várias tonalidades de pele negra, turbantes, tranças, drea-
dlocks, cabelos cacheados, encrespados, black power. Mais de trinta pessoas, em
maioria negras, se reuniram naquele dia para refletir sobre a própria saúde mental
a partir de relações materiais e seus impactos na subjetividade negra. Alguns risos,
muitas lágrimas, e a certeza de que aquele seria o primeiro de muitos espaços
orientados para a negritude. Nele, fomos instigadas pelas psicólogas e psicólogos a
refletir e construir o que eles chamaram de Redes de Apoio - conceito que se enrai-
zou na atuação do CAL a partir de então e que baseou muitas das ações seguintes.
A Mesa Interseccionalidade foi realizada durante a semana de recepção de ca-
louros de Letras em 2019, no turno da noite. O nome da mesa cumpria o objetivo
de realçar qual seria o debate daquela noite, a interseccionalidade entre as lutas
de gênero, classe e raça e a resistência dentro da academia. O debate mediado foi
proferido por uma Professora Doutora atuante no Setor de Educação da univer-
sidade, que além de possuir vastíssimo conhecimento epistemológico dentro da
temática, emocionou aos ouvintes com seu discurso situado no lugar em que fala
sendo uma Travesti Preta, “nem ao centro, nem à margem”, longe da normalização
e normatização (OLIVEIRA, 2018). A professora deu início à conversa contando sua
trajetória acadêmica e os desafios que enfrentou não apenas pela cor da sua pele,
mas também por sua identidade de gênero que vai contra os padrões brancos, cis-
gênero e elitistas que representam a hegemonia dentro do ambiente acadêmico.
É importante que na Luta, tenhamos debate qualificado sobre o que é a in-
terseccionalidade, juntas a essas sujeitas, entendendo o que faz uma pessoa e as
relações de poder implicadas em seu gênero, raça e classe social. A partir do relato
de vivência da docente e da sua resistência como mulher trans e negra que se torna
professora em uma universidade pública, adotamos como necessária a existência
de mais atividades como esta, que levantem criticamente o questionamento de
para quem é a Universidade Pública, fugindo de padrões de reflexão cis hetero nor-
mativo. Estes espaços também propiciam e fomentam uma perspectiva de futuro
e de tomada dos espaços da Universidade por sujeitas de identidades múltiplas e
capazes de produzir conhecimentos para si e para o mundo.
O impacto do discurso repleto de resistência feito foi perceptível em todos pre-
sentes no anfiteatro. Em momentos, era possível ver rostos tristes, em outros ros-
tos repletos de esperança. Para os calouros negros, advindos dos programas de
políticas públicas, a presença da professora representou uma perspectiva de um
futuro possível. Na mesma medida em que ela mostrou o lado árduo do ambiente
universitário, ela também ofereceu a perspectiva de que é possível resistir e con-
quistar aquilo que é de direito a todos aqueles que acessam o Ensino Superior em
uma Universidade Pública.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 103


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A mesa redonda sobre o Encarceramento e Genocídio da população negra
aconteceu em Outubro de 2019, na UFPR e contou com diversos intelectuais-mi-
litantes e militantes não vinculados à academia. A mesa foi muito bem recebida,
com presença ampla e debate extenso. Um dos palestrantes, especialista em Crimi-
nologia, trouxe dados alarmantes decorrentes das suas pesquisas sobre o projeto
de encarceramento promovido pelo Estado contra jovens negros de renda baixa.
Além das políticas de morte que resultam no assassinato em massa da juventude
negra e periférica através do aparato da Polícia - sobretudo a Militar -, o graduando
em Direito também chamou a atenção para outras políticas públicas e a ausência
delas no que tange o acesso da população negra à Saúde, à Educação, à Moradia
digna, à Transporte, Trabalho, Lazer, o que também fazem parte do projeto geno-
cida do Estado racista brasileiro. Contudo, o espaço não se manteve apenas em
discussões teóricas. À medida em que a conversa evoluiu, os palestrantes também
apresentaram suas próprias vivências como jovens negros e os enfrentamentos
que já tiveram para permanecerem vivos, estudando e promovendo melhorias em
suas comunidades, o envolvimento com o movimento HipHop, através das palavras
emocionantes do poeta que compunha a mesa.
Promover debates dentro das Universidades sobre a violência sistêmica que o
povo negro sofre é uma forma de fomentar a luta em defesa da vida daqueles na
mira de um Estado construído para aprisionar ou matar não-pertencentes a grupos
hegemônicos. É de extrema importância trazer não apenas a perspectiva de análise
dos números crescentes de jovens negros mortos e presos, mas também apresen-
tar a materialidade da vivência daqueles que tiveram de resistir desde sempre,
apoiar a voz e poder oferecer um espaço para aqueles que foram silenciados desde
sempre. Os jovens negros, neste espaço, tomam para si a narrativa.
Durante o debate, após as falas dos três mediadores, alguns expectadores se
mostraram espantados com os números e com as histórias contadas. O encarce-
ramento em massa de jovens negros e os assassinatos dentro e fora das comuni-
dades trouxeram choque ao participantes brancos. Números expressivos de pre-
sos e mortos e as experiências de vida palpáveis vocalizadas por pessoas negras
presentes trouxeram a percepção da urgência da situação e do risco de vida que
aqueles de pele negra correm todos os dias. Aproximar a vivência de jovens negros
para aqueles que têm pouco contato real com a situação é uma forma de trazer
um senso crítico muito mais embasado em relação ao projeto de Genocídio e En-
carceramento da População Negra no Brasil. Dessa forma, a narrativa do Estado
que justifica a violência direcionada à essa população “Pela Ordem e Pela Paz” é
escancarada enquanto uma farsa para mascarar uma política de morte, através da
escuta dessas vozes negras que disputam a narrativa e mostram as contradições
das políticas de Segurança Pública.
Em 2020, o ano começou com a organização da Primeira AFROrecepção da
UFPR, idealizada pelo CAL, que convocou uma Comissão Aberta para que outros
cursos participassem em conjunto, com o objetivo de acolher estudantes negras e

104 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
negros de toda a Universidade, para além do curso de Letras, promovendo debates
voltados às questões raciais, bem como a socialização e incentivo da formação,
desde o primeiro ano da faculdade, de Redes de Apoio entre estudantes negros.
Como explica Bianca Aparecida dos Santos Caixeta (2016):

Encontrar no grupo/coletivo, acolhimento e fortalecimento


identitário no início da vida acadêmica é um marco a ser levado
em consideração. A ação coletiva e o sentimento de comunida-
de moldam as possíveis visões de mundo e percepções sobre
quem se pode ser e onde se deve atuar neste mundo social. En-
contrar a si mesmo em detrimento do olhar do outro é, a nível
subjetivo, o grande trunfo do empoderamento proporcionado
pela formação política e intelectual fomentada pelos grupos/
coletivos. (CAIXETA, 2016)

A AFROrecepção contou com uma conversa com veteranas negras sobre suas
vivências na Universidade, seguida de uma Oficina de Abayomi, bem como uma
conversa sobre Saúde Mental com a presença de um psicólogo especialista no as-
sunto e um almoço coletivo no Restaurante Universitário.
Ainda no início de 2020, ao organizar a Semana de Recepção em Letras, o CAL
inseriu um Cinedebate com o documentário “Diários de Classe”, produzido de
forma independente pelos diretores Igor Souza e Maria Carolina Gonçalves da Silva
em 2017, que cederam o filme para que pudéssemos reproduzi-lo e incentivar o
debate acerca das histórias que o documentário relata. O longa mostra um pouco
da vida de três mulheres negras: uma travesti, uma mulher trabalhadora domésti-
ca e uma mulher que vive em situação de cárcere. As trajetórias dessas mulheres
e seu contato com a Educação são mostrados de forma subjetiva e tocante, com
imagens do cotidiano das protagonistas e também alguns depoimentos em que
elas contam suas histórias de vida e de Luta. O documentário arrancou lágrimas
dos olhos de cerca de 200 estudantes que assistiram atentos, tanto no período da
manhã quanto da noite, as histórias de Tifany, Vânia e Maria José, e acendeu um
debate sobre acesso à Educação formal, ao Ensino Básico e ao Ensino Superior,
bem como condições de permanência nessas etapas educativas, que não são pro-
pícias para mulheres negras, sobretudo as transsexuais, que, por meio de políticas
excludentes, são repelidas do ambiente educacional e acabam por encontrar al-
ternativas de sobrevivência no trabalho informal, mal remunerado e sem direitos
básicos assegurados.
O Webclube de Leitura Enegrecendo as Letras foi criado em 2020 e continua
em atividade até o momento da escrita deste artigo. Durante os desdobramentos
da pandemia do vírus Sars-Cov-2 no Brasil e as mazelas emocionais causadas pelo
isolamento social, surgiu a ideia de aliar a Luta e a Cultura de forma a aproximar
amantes da Literatura. A proposta consiste na centralidade da Literatura escrita
por autores negros de modo a fazer mais conhecidas obras invisibilizadas.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 105


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O WebClube cumpre o papel de aproximar estudantes e professores que tives-
sem interesse em ler e debater Literatura escrita por mãos negras, mas não apenas
para promover contato em tempos de isolamento: a centralidade racial foi pautada
para suprir, também, uma necessidade que já era debatida nas reuniões do Centro
Acadêmico sobre currículo. Em 2018, se concretizou uma Reforma Curricular nos
cursos de Letras da UFPR e, apesar das tentativas do CAL em pautar a presença
significativa de Literatura escrita por pessoas negras nas grades curriculares obri-
gatórias, não obteve êxito. Diante da impossibilidade de influenciar a construção
curricular de forma institucional, a gestão Flor do Asfalto decidiu organizar os pró-
prios espaços de leitura, análise literária, reflexão e debate sobre textos que são
ignorados por uma academia claramente branca e, assim, surgia o Enegrecendo as
Letras, um espaço online, gratuito, que disponibiliza os materiais lidos e que reúne
hoje estudantes universitários de vários cursos da graduação e pós, bem como
professoras da Rede Pública de Educação.
Com leituras de obras de Conceição Evaristo, Carolina Maria de Jesus, Itamar
Vieira Júnior, Ngũgĩ wa Thiong'o e Geovani Martins, o WebClube se articulou de
forma autogestionada desde a escolha das leituras até a dinâmica das reuniões,
que ocorriam de forma fluida e livre, de modo a possibilitar um espaço confortável
para a participação plena de todos que estavam presentes, compartilhando o que
sentiram enquanto experienciavam as leituras, inserindo elementos históricos e
sociais para as análises, enriquecendo o debate racial através de elementos que a
Literatura utiliza para se fazer arte com as palavras. As denúncias, os registros de
ancestralidade, de modos de vida alheios às páginas embranquecidas ou esqueci-
das pelos livros de História, Sociologia e Letras, ódios e amores pretos que, através
da leitura, emergiram para nós, enchendo nossos olhos de lágrimas, contribuindo
com a nossa bagagem de mulheres e homens das Letras, construindo referencial
para professoras e professores que trabalham Literatura em suas salas de aula e
que, por vezes, não são subsidiadas para realizar discussões com enfoque racial.

CONCLUSÕES (OU CONSIDERAÇÕES FINAIS)


A partir de nossa discussão e nossas análises, buscamos contribuir com os es-
tudos sobre movimentos sociais através da reflexão apresentada sobre o caso da
representação e participação discente do curso de Letras da UFPR. Acreditamos
que ainda há muito por se fazer dentro do espaço universitário para a promoção da
inclusão dos estudantes negros e negras nas salas de aula, visibilizando as temáti-
cas raciais através dos currículos, bem como nos projetos de Pesquisa e Extensão
e, principalmente, em relação à construção de um movimento e movimentações
negras dentro do contexto atual das organizações estudantis de graduação.
É necessário, também, apontar a presença cada vez mais constante de colegas
não-negros nessas atividades específicas promovidas pelo Centro Acadêmico. En-
tendemos essa presença enquanto um indicativo positivo, tendo em vista o caráter

106 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
educador e emancipador (GOMES, 2017) do movimento por nós proposto e o ideal
de que a discussão sobre os problemas imbricados pelas estruturas perversamente
sofisticadas do racismo não são de única e exclusiva responsabilidade das pessoas
negras refletir e resolver.
Em nossos encontros, nas mais diferentes propostas de espaço que promove-
mos, não trouxemos assuntos ligados à raça para o debate de forma pejorativa,
assim replicando as violências simbólicas às quais o povo negro é acometido. Discu-
timos assuntos que vão desde a Literatura Afro-brasileira até Segurança Pública e
Saúde Mental, expomos nos debates as mazelas que determinadas representações
tem sob nós, negros, mas em todos estes encontros trazemos ao debate alterna-
tivas a essas representações, tentamos alimentar os sonhos e esperança entre os
nossos. Acreditamos que, independente do tema trabalhado dentro do eixo raça,
devemos tratar em nosso discurso a positivação do sujeito negro (GOMES, 2012)
e afirmar no aquilombamento proposto, alternativas à exclusão, preterimento e
preconceito.
Este é um debate que, com toda a certeza, não se encerra por aqui, se estende-
rá por mais inúmeros espaços, congressos, publicações e Lutas travadas nos mais
diversos espaços educativos, seja na universidade, seja na rua, mãe de toda empi-
ria, fio-alimento para a tessitura das teorias. Esperamos, com este texto, ter contri-
buído com o partilhar de nossas experiências e perspectivas. Nossa ação não acaba
nesta oração.

REFERÊNCIAS

CAIXETA, Bianca Aparecida dos Santos. Movimento negro universitário: um olhar deco-
lonial sobre afetos, trajetórias e a organização política dos grupos/coletivos negros na
Universidade de Brasília. 2016. 97 f. Trabalho de conclusão de curso (Bacharelado em
Ciências Sociais)—Universidade de Brasília, Brasília, p. 36, 2016. Disponível em: https://
bdm.unb.br/handle/10483/18248 acessado em 19/ 07/ 2020.

FARJ. Anarquismo Social e Organização. São Paulo/Rio de Janeiro: Faísca/FARJ, p. 74,


2009.

GOMES, Nilma Lino. Movimento negro e Educação: Ressignificando e politizando a raça.


Educ. Soc., Campinas , v. 33, n. 120, p. 727-744, Setembro, 2012 . Disponível em https://
www.scielo.br/pdf/es/v33n120/05.pdf acessado em 19/ 07/ 2020.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: Saberes construídos nas lutas por
emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.

OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. Trejeitos e trajetos de gayzinhos afeminados, viadinhos
e bichinhas na Educação! Periódicus, Salvador, n. 9, v. 1, maio-out. 2018. Disponível
em: https://portalseer.ufba.br/index.php/revistaperiodicus/article/view/25762

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 107


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
QUIJANO, Anibal. Colonialidad y modernidad-racionalidad. In: PALERMO, Zulma.; QUIN-
TERO, Pablo. (orgs.). Aníbal Quijano: textos de fundación. Ediciones del signo. Buenos Ai-
res, 2014.

RATTS, Alex. Encruzilhadas por todo percurso: individualidade e coletividade no movi-


mento negro de base acadêmica. In: PEREIRA, Amauri Mendes; SILVA, Joselina da. (Org.).
Movimento Negro Brasileiro: escritos sobre os sentidos de democracia e justiça social no
Brasil. Belo Horizonte-MG: Nandyala Livros e Serviços Ltda, 2009, v. 1, p. 81-108

AUTORIA
Juliana Ertes Santos
Universidade Federal do Paraná
E-mail: ertesj@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4262-6928
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3843293897390226

Laís Mattuella
Universidade Federal do Paraná
E-mail: eumattuella@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7584-1507
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5649765151719109

Carla Mota Menezes


Universidade Federal do Paraná
E-mail: carlamm40@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2642781900474941

108 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A CONSTRUÇÃO DO COLETIVO UBUNTUFF E O
IMPACTO DOS SEUS SABERES NO INSTITUTO DE
EDUCAÇÃO DE ANGRA DOS REIS

Lucas Ferreira do Nascimento

Olhos atentos, braços para Enegrecer.


Juventude negra organizada pra tomar o poder.
E a universidade nos vamos Enegrecer!
Juventude negra organizada pra tomar o poder!!
Coletivo Nacional de Juventude Negra - ENEGRECER

INTRODUÇÃO
O Movimento Negro brasileiro começou a dar uma nova configuração ao concei-
to de raça, sobretudo, como ferramenta política de emancipação social e analítica
para pensarmos a construção de políticas públicas com o intuito da diminuição das
desigualdades sociais e raciais, e não mais no sentido biológico no qual colocava os
sujeitos negros como inferiores através do racismo científico. E no momento que
esse movimento ressignifica o conceito de raça como mecanismo de questiona-
mento sobre a história da construção do Brasil e da população negra, começamos
a criar uma nova forma de expor como o racismo penetra nas estruturas do estado
e como busca controlar os corpos negros.
O debate político em relação às políticas de ações afirmativas é essencial para
os grupos sociais que historicamente foram marginalizados pelo estado brasileiro.
A política de cotas está inserida dentro de um debate sobre educação e corporeida-
de, isto é, entender como o corpo negro incomoda tanto nos espaços acadêmicos,
tendo em vista que esse espaço nunca foi pensado para sua existência. Da mesma
forma, o fato da existência de uma corporeidade negra auto organizada dentro de
um coletivo universitário, e que está disposta a debater, refletir e de denunciar o
modelo desse espaço, traz tanto incômodo.
Existem perspectivas diferentes sobre o conceito de Movimento Negro, toda-
via, entendo que é importante chamar atenção numa conceituação, para as po-
tências desse movimento social e destacar a relevância política, emancipatória, de
reivindicação social e principalmente da potência reeducadora.
Os saberes produzidos pelo Movimento Negro educam a si mesmo e tem a pos-
sibilidade de educar os sujeitos não negros e de influenciar as políticas públicas,
como na criação de políticas de ações afirmativas. Nesse processo de reeducação
nós temos a chance de aprender sobre as relações étnico-raciais, entender melhor
sobre o processo de construção do Brasil, e de aproximação da nossa ancestralida-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 109


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
de africana e também de compreendermos o quão perverso é o racismo específico
que está estruturado nas relações sociais do Brasil. O racismo que está estruturado
no Brasil abarca uma ambiguidade pois ele tem a capacidade de se auto afirmar
na sua negação. Quanto mais a sociedade brasileira afirma a não existência do
racismo e que somos um país multirracial e multicultural, mais o racismo cresce e
penetra na sociedade (GOMES, 2018).
O Movimento Negro possui saberes que são intrínsecos e específicos, visto que
são conhecimentos construídos na luta política pela superação do racismo herda-
dos pelos nossos ancestrais.
Desenvolvi esse artigo a partir do meu trabalho de conclusão de curso, muito
alicerçado na história de construção do Coletivo de Estudantes Negras e Negros
UBUNTUFF, do Instituto de Educação de Angra dos Reis da Universidade Federal
Fluminense, mas conhecimentos como esse, muita das vezes não são considera-
dos relevantes em razão da cultura da branquitude, que hierarquiza os diferentes
saberes e tende a inferiorizar os nossos conhecimentos, pois, segundo eles, não
são baseados na ciência, ainda mais se forem provenientes de dentro das escolas
e universidades.

APORTE TEÓRICO
Atualmente existe uma nova dinâmica nos debates referentes às questões ra-
ciais no Brasil, mesmo com essa discussão sendo fomentada há tempos pelo mo-
vimento negro e por intelectuais como Florestan Fernandes e Guerreiro Ramos na
área do pensamento social brasileiro. Contudo, apenas no início do século XXI que
a argumentação da não existência de um paraíso racial no Brasil tomou força. E um
dos fatos históricos que deram influência nesse debate foi o reconhecimento da
existência do racismo nas estruturas do Brasil feito pelo então presidente Fernan-
do Henrique Cardoso na III Conferência Mundial Contra o Racismo, Discriminação
Racial, Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância em 2001 e, sobretudo, a polí-
tica de cotas raciais nas universidades iniciada em 2003 na UERJ e reforçada pela
lei 12711/2012.
A população negra, através das ações realizadas por homens e mulheres, ao se
colocarem nos espaços, fazem o movimento de afirmação de suas identidades e
de sua cultura. Essa dinâmica produz saberes/conhecimentos que são intrínsecos e
específicos e baseados na vivência da população negra e vem sendo sistematizados
e articulados pelo Movimento Negro.
Tendo como principal fonte para o aporte teórico deste artigo as indagações
da Professora Nilma Lino Gomes, acredito que esses saberes são transformados e
recriados com o passar dos anos e conseguem modificar e tensionar as estruturas
políticas, assim como fazem uma autocritica ao próprio movimento e deixa um ar-
cabouço epistemológico para as próximas gerações para agirem como ressignifica-
dores na vida dos sujeitos negros. GOMES (2017) aponta que esses conhecimentos

110 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
são nascidos da luta e que são eles que nos reeducam cotidianamente e quanto
mais se consolida, mais sua potência transformadora aumenta. Esses saberes não
se organizam na forma tradicional de pensar a intelectualidade, mas sim nas prá-
ticas sociais, culturais, políticas e pedagógicas de sua resistência e afirmação e ela
aponta para três aspectos desses saberes: identitários; políticos e estético-corpó-
reos.

1. SABERES IDENTITÁRIOS
No início dos anos 2000, quando começou o debate da implementação das
ações afirmativas, o Movimento Negro cumpre um papel de recolocar o debate
sobre raça no Brasil, no qual inclusive garante o aumento das categorias de cor nos
formulários do IBGE.

Assistimos, nas redes sociais, uma profusão de páginas pessoais,


de figuras públicas e de grupos juvenis, publicadas por pessoas
negras que escrevem sobre a experiência de ser negro, denun-
ciam o racismo, transmitem informações, dão dicas de bele-
za e cuidados com a pele e o cabelo crespo. Discussões como
apropriação cultural, colorismo, racismo, ações afirmativas são
realizadas na vida on-line e off-line de maneira crítica, política e
posicionada pelos sujeitos negros. (GOMES, 2017, p. 70)

A primeira atividade que o UBUNTUFF realizou nos espaços do IEAR foi o pré–
Encontro de Negras, Negros e Cotistas da UNE, no qual fizemos uma roda de con-
versa sobre a importância da autoafirmação da identidade negra nos espaços da
universidade, denunciamos através de um microfone as atitudes racistas dos alu-
nos, professores e servidores da instituição, e principalmente colocamos o debate
do extermínio da juventude negra e as questões da violência contra as mulheres e
lgbt’s negros. Inserimos o debate da identidade negra de um outro lugar, do lugar
de ser negro no qual é um posicionamento político e identitário que incomoda os
sujeitos brancos e a universidade.
No mesmo período fizemos uma intervenção na FLIP – Feira Literária de Paraty
para questionar a falta de autoras negras no evento. Travamos o debate da im-
portância que as cotas raciais trouxeram para os espaços da universidade, e ques-
tionamos e repudiamos a fala de uma professora do curso de Pedagogia no qual
afirmava que “os cotistas desqualificavam a universidade pública”. Denunciamos
através das representações estudantis a postura racista nos discursos dos diversos
professores dessa instituição.
Criamos o “AfroAcolhimento” que é uma atividade de recepção dos alunos in-
gressantes onde através de rodas de conversas, mesas e/ou atividades culturais
inserimos o debate racial e dialogamos sobre a importância da nossa presença na
universidade. Construímos um sarau para denunciar a farsa da abolição e através
do rap, do samba e do slam recontamos a história que não é contada nos livros
didáticos e que não aprendemos na escola.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 111


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
2. SABERES POLÍTICOS

A universidade, os órgãos governamentais, sobretudo o Minis-


tério da Educação, passam a tematizar sobre as desigualdades
raciais. As pesquisas e políticas educacionais, os indicadores de
avaliação escolar, o campo da antropologia, da sociologia, da
história e da saúde começam a dar um outro destaque à questão
racial. O campo do direito começa a ser pressionado para dar
respostas que contemplem a justiça social e a diversidade.
(GOMES, 2017, p. 71)

Através da luta do Movimento negro que já apontava sobre as desigualdades


raciais no Brasil e por meio de sua luta política e dos tensionamentos, conseguimos
reeducar as demais formas de militância, o estado e a política. Construímos, atra-
vés do debate político do conceito de raça, categorizar melhor os formulários do
IBGE assim produzindo estatísticas sobre as desigualdades raciais no Brasil, para
fornecer dados que nos ajudaram a problematizar as políticas e as ações do poder
público. E assim geramos algumas leis importantes como a 12.288/10 – Estatuto da
Igualdade Racial, 12.711/12 –Lei de Cotas Raciais nas Instituições Federais, dentre
outras.
Ainda nos saberes Políticos, o Movimento Negro criou dentro do campo da
educação a Associação Brasileira de Pesquisadores Negros, que é responsável pela
realização do Congresso Brasileiro de Pesquisadores Negros – COPENE. Nas uni-
versidades foram criados os Núcleos de Estudos Afro-brasileiros - NEABs que são
responsáveis pela realização de pesquisas e projetos de extensão e de formação de
professores. E assim como na vitória pela alteração da Lei de Diretrizes de Bases –
9.394/96 para a lei 10.639 de 2003 que torna obrigatório o ensino de História e Cul-
tura Afro-brasileira e Africana nos currículos das escolas de educação básica, e em
2008 essa lei foi alterada para 11.645 no qual inclui o ensino de história indígena.

3. SABERES ESTÉTICO-CORPÓREOS
Os saberes estético-corpóreos estão ligados com a ideia de uma estética negra
que passa a ser compreendida como parte do direito à vida e à cidadania, e não se
trata de uma questão de vaidade e/ou mudanças no corpo. Mas sim de uma esté-
tica negra totalmente ligada à nossa ancestralidade e impulsiona a afirmação das
identidades negras e as reiteram através dos saberes políticos.

112 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
PROBLEMA DE PESQUISA (E/OU HIPÓTESE E/OU OBJETIVOS)

OBJETIVO GERAL
Compreender acerca da importância da construção dos saberes articulados
pelo Coletivo UBUNTUFF, como uma das ferramentas de combate à discriminação
e de ressignificação do debate racial no âmbito do Instituto de Educação de Angra
dos Reis da Universidade Federal Fluminense.

OBJETIVOS ESPECÍFICOS
• Compreender a importância da construção do Coletivo de Estudantes Ne-
gras e Negros – UBUNTUFF.
• Entender a importância do movimento negro brasileiro para a consolida-
ção de uma nova perspectiva do debate racial.
• Reconhecer a importância dos saberes produzidos pela população negra e
articulados pelo Movimento Negro.

METODOLOGIA
Por meio do método qualitativo, que é uma das ferramentas indicadas para as
pesquisas que visam coletar e analisar dados. Através de entrevistas semiestrutu-
radas que foram aplicadas diretamente em uma estudante que ingressou no curso
de Bacharelado em Políticas Públicas no primeiro semestre do ano de 2014, e uma
docente que ingressou no curso de Licenciatura em Pedagogia no ano de 2015,
ambos ocorridos antes da construção do UBUNTUFF. Após a criação do coletivo
entrevistei dois estudantes dos cursos de licenciatura em Pedagogia e Geografia, e
um estudante do curso de bacharelado em Política Públicas, que são os ofertados
pelo Instituto de Educação de Angra dos Reis.
No primeiro semestre de 2015, a turma do curso de Políticas Públicas entra
com um novo perfil de estudantes, oriundos em sua maioria de periferias dos mais
diversos lugares do país, com a cor de pele negra, sendo também mais críticos.
Entraram aproximadamente 37 alunos e desses, 18 eram negros. Esse novo fenô-
meno foi percebido por professores do Instituto de Educação de Angra dos Reis, e
também por alunos que entraram antes.

RESULTADOS E ANÁLISE
No decorrer do ano de 2015 a conjuntura nas universidades e institutos federais
não estava favorável devido aos cortes na área da educação realizados pelo Minis-
tério da Educação – MEC e com a reivindicação de ajuste salarial feita pelos docen-
tes e essas ações desencadearam uma greve na UFF que durou cerca de quatro

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 113


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
meses. Além disso a grande carência de bolsas e auxílios para os campi do interior,
fizeram com que essa turma. começasse a se questionar que tipo de universidade
é essa e, sobretudo, debater o tipo de universidade ideal para a população negra
e periférica. E uma dessas ideias transformou-se no movimento Ousadia e Resis-
tência – Quem entrou quer ficar para disputar as eleições do Centro Acadêmico de
Políticas Públicas. E na carta de princípios trazia a reivindicação de ter um coletivo
de estudantes negros no campus, especialmente defendido por Hugo Vilela, que
na época estava na Coordenação Estadual de Juventude do Movimento Negro Uni-
ficado/RJ – MNU, movimento surgido na década de 1970, devido a discriminação
racial e os intensos casos de racismo que ocorreram durante a ditadura empresa-
rial militar.
Assim como ocorreu em 2015, no ano posterior novos alunos negros entram na
universidade. Esse fenômeno começa a ocorrer nas turmas dos cursos de Pedago-
gia, Políticas Públicas e Geografia. Nessas turmas tinham alunos ligados aos movi-
mentos sociais como a Elisângela Lima (Políticas Públicas), que fez parte dos APN’s
– Agentes de Pastoral Negros e do Fórum nacional e estadual de Juventude Negra.
Assim como o aluno Marcos Costa (Geografia) do movimento de favelas do Rio de
Janeiro. Também tinham alunos negros, mas que ainda não se auto identificavam
como negros, como foi o meu caso e o do Caio Oliveira (Geografia).
Entendendo os processos brutais do racismo estrutural que está incorporado
em todos os sistemas dentro e fora da universidade e da importância da autoa-
firmação dos sujeitos negros como aspecto político, no dia dezessete de maio de
2016 os estudantes Bruna Rodrigues e Hugo Vilela, ingressantes em 2015; Cami-
la Marinho, Elisângela Lima e Maria Carolina Farnezzi, ingressantes em 2016 e;
Janaína Kinda e Thaís Santana, ingressantes em 2014, do curso de Bacharelado
em Políticas Públicas, Edyelle Carolina e Lucas Nascimento ingressantes respectiva-
mente em 2012 e 2016 do curso de licenciatura em Pedagogia, Isabelle Lourenço;
Caio Oliveira; Dayene Santos e Marcos Costa ingressantes em 2016 do curso de li-
cenciatura em Geografia, organizaram a primeira reunião de auto-organização dos
estudantes negros e assim construíram o primeiro coletivo de estudantes negras e
negros do Instituto de Educação de Angra dos Reis, que foi intitulado – UBUNTUFF.
Um dos impactos que considero essencial realizado pelo coletivo, foi a inserção
dentro do movimento estudantil. Fizemos uma campanha para pautar a importân-
cia da nossa presença nesse espaço e com base nisso conseguimos construir cha-
pas para disputar as eleições dos Centros Acadêmicos e do Diretório Acadêmico.
Por meio da parceria entre o UBUNTUFF e o professor Diogo Marçal do curso
de Geografia conseguimos elaborar o grupo de estudos sobre intelectuais negros
que tinha como objetivo a leitura de autores e o estudo do pensamento de autores
negros, principalmente por conta da demanda que temos pela falta de autores
negros e negras nas ementas dos três cursos.
Sob o alicerce dos movimentos sociais da cidade de Angra dos Reis realizamos
as conferências preparatórias para a IV Conferência de Igualdade Racial, e ajuda-

114 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
mos na articulação do Conselho Municipal de Promoção e Igualdade Racial do mu-
nícipio onde eu e Thaís Santana fomos os primeiros representantes do coletivo e
atualmente essas cadeiras são ocupadas por Mário Soares (Pedagogia) e Matheus
Alexandrino (Pedagogia).
Atualmente conseguimos enxergar o Instituto de Educação de Angra dos Reis
mais colorido, com uma presença maior de jovens negros com seus cabelos cres-
pos e black, usando tranças e dreads, assim como usando roupas com cores vivas
e suas blusas estampadas por grandes referências na luta contra o racismo, como
Martin Luther King e Malcom X. Essas ações através da estética negra reeducaram
esse espaço.
Em 2018, na segunda Semana da Consciência Negra do nosso instituto, realiza-
mos atividades fora do espaço universitário, e inclusive abrimos a Semana na E.M
Tereza Pinheiro de Almeida, localizada no bairro da Japuíba. Através de oficinas de
pintura afro, de turbante e de percussão conseguimos expor a importância da es-
tética negra e visualizamos que nesse processo, vários alunos da escola passaram
a se enxergar enquanto corpos negros e bonitos.

CONCLUSÕES (OU CONSIDERAÇÕES FINAIS)


Se não fosse a luta incansável do Movimento Negro, sobretudo na luta por edu-
cação nas suas mais diversas formas de resistência e com todos os desafios, muito
do que o Brasil entende hoje sobre as questões raciais e africana não teria sido
aprendido. E assim como muito do que a academia produz sobre a temática racial,
não teria sido construída.
GOMES (2018) nos aponta que é preciso construir uma resistência no qual ela
denomina de Resistência Antirracista Radical, que é pautada em três aspectos.
O primeiro é a indignação diante das injustiças; o segundo é a luta antirracista e
diaspórica, pois é preciso entender que essa dinâmica está espalhada por toda a
diáspora e que inclusive na América latina encontram-se as mais variadas formas
de existência; e a última é a resistência construída a partir dos saberes identitários,
políticos e estético-corpóreos, esses saberes quando acionados nas suas potências
são capazes de implodir as relações de poder de forma assertiva e revolucionária.
E no avanço da articulação desses saberes eles são capazes de formular e ressigni-
ficar outras formas de conhecimento.
É a partir dessas novas criações e ressignificações que nós do coletivo UBUN-
TUFF construímos vamos reeducando o Movimento Negro, e principalmente re-
educamos os espaços do Instituto de Educação de Angra dos Reis. Além disso, o
Movimento Negro vai indagando sobre a indissociação do sentimento, da emoção
e do afeto na construção dos conhecimentos. Esses saberes são forjados na luta e
são reflexões das práticas sociais, políticas e da corporeidade. E quando a acade-
mia entender esse processo, GOMES (2018) indica a criação de outro saber, que é
o ancestral no qual ela ainda está construindo, porém mostra que ele atua na for-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 115


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
mação da subjetividade e na formação da autoestima, e é fortalecido pelo orgulho
da nossa ancestralidade negra e africana.

REFERÊNCIAS

CIRQUEIRA, D.M.“Universidade, lugar de negro”? A formação e atuação de coletivos


de estudantes negros/as no espaço universitário brasileiro. 2011. Projeto (Pós-gradu-
ação em Geografia) - Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2011

GOMES, N.L. O movimento negro educador. Saberes construídos nas lutas por eman-
cipação.Ed. Vozes. Petropólis/RJ, 2017.

GOMES, N.L; WALSH, C. O que é a Pedagogia Decolonial? [S. l.], 2018. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=pw8MqYauzc0. Acesso em: 11 nov. 2019.

PEREIRA, Amauri Mendes. Trajetórias e Perspectivas do Movimento Negro Brasileiro.


Belo Horizonte: Nandyala, 2008

RATTS, A. Corpos negros educados: notas acerca do movimento negro de base acadê-
mica. Revista do Núcleo de estudos afro-asiáticos. Londrina/PR. P.29-39, 2011.

AUTORIA
Lucas Ferreira do Nascimento
Universidade Federal Fluminense
E-mail: lucasfn@id.uff.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8290-6652
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0755071890724539

116 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 23
Filosofias
africanas: força
ancestral,
diásporica e da
feminilidade
A FILOSOFIA UBUNTU E A DESCOLONIZAÇÃO DO
PENSAMENTO
Ana Paula Nascimento Lourenço
Antonio Marcio Haliski

INTRODUÇÃO
O debate sobre a descolonização de sociedades latino-americanas vêm ga-
nhando destaque nas últimas décadas. A emergência das discussões em torno dos
resquícios da colonização torna-se essencial para a superação do colonialismo. As
Epistemologias do Sul surgem na contramão da sistematicidade epistêmica, eco-
nômica, científica e filosófica que foram submetidas sociedades latino-americanas,
africanas, asiáticas, etc. Por meio da voz de sociedades silenciadas ao longo da his-
tória, as epistemologias do sul denunciam a imposição colonial através de outros
referenciais filosóficos valorizando as mais diversas e distintas formas de saberes,
por um diálogo pluriversal.
O referencial filosófico ocidental difundido ao redor do mundo, nos levam a
ideia que a Grécia Antiga é o berço da filosofia. Durante séculos a filosofia grega
a negou a existência de outras filosofias na concepção do conhecimento, tendo
como principal motivo a falta de racionalidade presente em outras sociedades. O
ideal filosófico ocidental serviu como base para o projeto de colonização das Amé-
ricas, baseados na ideia de desumanização e de supremacia racial, onde somente
pessoas brancas (europeus) eram capazes de pensar, o racismo é a fundamental
para servir as necessidades e prazeres do projeto colonial. Essa ideia de superio-
ridade branca desloca, subalterniza e desqualifica outras filosofias, como é o caso
da filosofia africana.
Portanto, este trabalho tem como objetivo trazer uma breve reflexão sobre a
filosofia africana ubuntu e como ela pode ser aliada no processo de descolonização
de sociedades latino- americanas, em especial no Brasil. Por meio de uma pesquisa
de revisão bibliográfica em periódicos, teses e livros referentes a temática, foram
selecionados sete arquivos para compor a pesquisa, sendo eles: duas teses de dou-
torado; dois livros e três artigos científicos. O artigo apresenta uma breve introdu-
ção sobre o processo de ausência da filosofia africana na concepção do conheci-
mento. Em seguida evidenciamos a importância dos estudos sobre descolonização,
posteriormente apresentamos a filosofia africana ubuntu como aliada no processo
de descolonização de sociedades latino-americanas e, por fim, apresentamos as
considerações finais.

118 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
COLONIALIDADE E EPISTEMICÍDIO: CONCEPÇÕES
FILOSÓFICAS
O autor sul-africano Mogobe Ramose questiona porque sempre surgem “dúvi-
das sempre que a expressão Filosofia Africana é utilizada. O mesmo não acontece
quando se fala de filosofias presumivelmente normais, como a filosofia ocidental”.
(RAMOSE, 2011, p. 01). A escola grega filosófica é tida como o berço da filosofia,
onde a concepção do pensamento se manifesta pelo viés da racionalidade. O filó-
sofo alemão Immanuel Kant é um dos teóricos mais estudados durante na era da
modernidade. Ele acreditava que sociedades africanas eram consideradas a-his-
tóricas, ou seja, não incluem a existência de sociedades africanas na história da
humanidade. “Dentro de todos os povos os gregos foram os primeiros a começar fi-
losofar. Pois eles foram os primeiros a tentar cultivas os conhecimentos racionais”
(KANT, 1992, p. 44). Nas palavras de Kant não há dúvidas sobre a origem do pensa-
mento filosófico. Dessa forma a ciência passa a ser pensada de maneira universal e
totalizante determinada pela sua localização geográfica.“O ideal filosófico é enten-
dido como universal. Essa universalidade é sustentada por uma origem geográfica,
que promoveu a abstração do conhecimento universal” (DANTAS, 2018, p. 17).
Os estudos do filósofo Mogobe Ramose (2011) trazem uma nova percepção de
filosofia, diferente dos princípios apresentados por Kant, nesse caso o sentido da
filosofia se dá através da busca e do amor pela sabedoria, por sua vez a sabedoria
se configura dentro da experiência humana. A existência da vida humana se dá por
todos os continentes, se há vida em todos os lugares consequentemente existem
experiências humanas em todos os lugares. De acordo com ele a filosofia “seria
onipresente e pluriversal, apresentando diferentes faces e fases decorrentes de
experiências humanas particulares”(RAMOSE, 2011, apud OBENGA, 2006, p. 49).
O projeto de colonização desenvolveu tecnologias que vão além de colonizar
culturas ou sistemas econômicos, ele impede de maneira violenta a manifestação
de todo e qualquer conhecimento que fujam do eixo eurocêntrico. O epistemicídio
e a colonialidade foram ferramentas centrais para a efetivação do projeto colo-
nial nas Américas. Escolhemos trabalhar com os conceitos de espermicídio e colo-
nialidade de modo a compreender as imbricações do racismo estrutural presente
principalmente em sociedades latino-americanas. Para compreender estes concei-
tos deslocaremos nossa corrente de pensamento do eixo europeu, trabalharemos
com pensadores e pensadoras que desenvolvem suas teorias dentro da perspecti-
va pós-colonial. Na esteira dessa discussão o filósofo peruano Aníbal Quijano para
falar da colonialidade e para o conceito de epistemicídio a filósofa brasileira Sueli
Carneiro.
Nesse artigo entende-se estes dois conceitos apresentados no parágrafo aci-
ma como uma tecnologia desenvolvida pelo eurocentrismo, tendo em vista que
toda tecnologia tem como base uma ciência, compreende-se nesse caso como
base científica o eurocentrismo sendo o epistemicídio e a colonialidade são as tec-
nologias desenvolvidas por ele. Ambas são centrais entender os desdobramentos

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 119


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
sociais, econômicos, culturais e educacionais que se encontram populações afro-
diaspóricas na América Latina.
O conceito de colonialidade apresentado por Quijano, tem como marco teórico
o giro decolonial, que consistiu em uma gama de estudos acerca da modernida-
de. A colonialidade consiste na dominação/exploração e subalternização impositi-
va por meio de uma classificação racial/ética que “opera em cada um dos planos,
meios e dimensões, materiais e subjetivos, da existência social quotidiana e de
escala societal” (QUIJANO, 2009 p. 75). Toda via, por mais que haja vínculo entre a
colonialidade e colonialismo. O colonialismo exerce uma estrutura de dominação
e exploração de diferentes territórios geográficos, que necessariamente não estão
ligados a ideia de raça. Ele atua há muito mais tempo que a colonialidade, essa no
que lhe concerne se intensificou nos últimos cinco séculos com o processo de con-
quista das Américas. A colonialidade é central para satisfazer as necessidades e os
prazeres do sistema capitalista.
O projeto de colonização não se desenhou apenas no campo material (com ge-
nocídio, exploração e a escravização de povos africanos e ameríndios) e no campo
imaterial através da supremacia epistêmica, tendo o epistemicídio como sua prin-
cipal ferramenta. “O epistemicídio fere de morte a racionalidade do subjugado ou
a sequestra, mutila a capacidade de aprender e etc” (CARNEIRO, 2005, p. 98). No
entanto, ele não se encontra apenas na interface do plano imaterial epistemoló-
gico, ele vai além, se dá “pela negação ao acesso a educação, sobretudo de quali-
dade; pela produção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de
deslegitimação do negro como portador e produtor de conhecimento” (CARNEIRO,
2005, p. 97).
O epistemicídio e a colonialidade não foram suficientes para apagar a maneira
de agir e pensar dos povos africanos na diáspora. Ao longo de todo o processo de
colonização a resistência dos povos africanos ocorreu incessantemente desde que
o primeiro europeu pisou no continente africano. No Brasil essa (re) existência
negra se materializa através da criação de quilombos, como o dos Palmares (1597),
maior quilombo da América Latina, localizado na região do estado de Alagoas ou a
Revolta dos Malês(1835), revolta de escravizados que aconteceu em Salvador-BA.
Atualmente essa (re) existência está presente em manifestações como o candom-
blé, as rodas de samba e de capoeira e as comunidades remanescentes de quilom-
bos, tais manifestações permanecem vivas ao longo de todo o território brasileiro,
contrariando o projeto colonial de apagamento das epistemologias e filosofias dos
povos africanos.

A DESCOLONIZAÇÃO DO CONHECIMENTO
Na seção anterior a discussão desenrolou-se por meio de como o conhecimento
eurocêntrico foi capaz de desenvolver tecnologias como o epistemicídio e a co-
lonialidade. Constatou-se que a filosofia ocidental possui um consenso global e

120 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
totalizante, sob outras subjetividades, no entanto, isso não foi suficiente para ani-
quilar filosofias e epistemologias africanas. Dentro da corrente pós-colonial e/ou
decolonial, surgem novas correntes de pensamentos que questionam a moderni-
dade. O giro decolonial, vem contramão do eurocentrismo, abrindo caminho para
novas perspectivas no plano material e imaterial incluindo saberes “periféricos” no
centro desse debate. Encontrar as fendas existentes no cânone filosófico torna-se
indispensável para semear e cultivar outras filosofias advindas de comunidades
tradicionais ou afrodiaspóricas.

A descolonização se propõe a mudar a ordem do mundo, é,


como se vê, um programa de desordem absoluta (…) é um pro-
cesso histórico: isto é, ela só pode ser compreendida, só tem
inteligibilidade, só se torna translúcida para si mesma na exata
medida em que discerne o movimento historicizante que lhe dá
forma e conteúdo. A descolonização é o encontro de duas for-
ças congenitamente antagônicas, que têm precisamente a sua
origem nessa espécie de substancialização que a situação colo-
nial excreta e alimenta. (…) a descolonização é verdadeiramente
a criação de homens novos. Mas essa criação não recebe a sua
legitimidade de nenhuma potência sobrenatural: a “coisa” co-
lonizada se torna homem no processo mesmo pelo qual ela se
liberta (FANON, 1961, p. 25-26).

A partir dessa citação do médico-psiquiatra e filósofo Frantz Fanon podemos


observar seu pensamento crítico sobre as amarras deixadas pela colonização. Se-
gundo ele a descolonização é o principal caminho para a libertação do colonialis-
mo. Fanon é um autor central para compreender as heranças deixadas pelo coloni-
zador e como elas se manifestam dentro das sociedades colonizadas. Informada a
magnitude e importância do filósofo para o debate descolonial, o objetivo principal
desta terceira seção é apresentar como a descolonização pode colaborar no pro-
cesso de libertação do colonialismo epistêmico.
O processo de emancipação da América Latina final do século XIX a descoloni-
zação ganha força, mesmo que de forma parcial, posteriormente aparece na dé-
cada de 1950 com a Guerra Fria e a “independência” de países africanos. O termo
descolonização refere-se à “dissolução das estruturas de dominação e exploração
configuradas pela colonialidade e ao desmantelamento de seus principais disposi-
tivos” (QUINTERO et al., 2019).
De acordo com Fanon o mundo encontra-se dividido em dois polos, o mundo
do colonizado e o mundo do colonizador, esses dois mundos se encontram em
posições antagônicas, ou como diria Paulo Freire de um lado estaria o opressor e
do outro lado estaria o oprimido, o colonizador anda na contramão do colonizado
e vice-versa.
Os estudos conduzidos por Fanon em seu livro “Os condenados da terra (1961)”
denunciava a relação de poder entre franceses e argelinos, a comunidade argelina
arcava com imposição colonial francesa nos mais diversos ambientes. A Argélia na-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 121


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
quela época ainda era uma colônia francesa, vindo conquistar sua independência
no ano seguinte 1962. De acordo com Fanon as violências geradas pelo processo
de colonização estimulam o processo de violência no colonizado e é através dessa
resposta violenta que o colonizado inicia a descolonização. Segundo ele, a des-
colonização só acontecerá por meio da violência. “A descolonização jamais passa
despercebida porque atinge o ser, modifica fundamentalmente o ser, transforma
espectadores sobrecarregados de inessencialidade em atores privilegiados, colhi-
dos de modo quase grandioso pela roda-viva da história” (FANON, 1968, p. 26).
O modelo hegemônico configurado em uma única base epistemológica serviu
para sua expansão e dominação ao redor do mundo inibindo e desqualificando ou-
tras formas de saberes e conhecimentos. A força colonial apresentada por Fanon
ainda é presente nos países ditos de “Terceiro Mundo” isso acontece por meio de
uma nova roupagem do colonialismo, o que o autor chama de neocolonialismo. No
Brasil, por exemplo, podemos ver os resquícios dessa força colonial por meio da
brutalidade que policiais brasileiros exercem com a população negra em suas abor-
dagens, muito diferente do tratamento que é dado às pessoas brancas. Por mais
que o Brasil tenha passado pelo processo de independência há quinhentos anos,
na prática temos uma sociedade descolonizada? O que vemos ainda é um sistema
educacional, cultural, econômico e político que narram a história do colonizador e
não do colonizado. Nesse sentindo, quais seriam os caminhos possíveis para uma
descolonização apresentada por Fanon acontecer no Brasil?
A necessidade de romper com as amarras coloniais que intensificam assime-
trias sociais presentes nas sociedades colonizadas, resultam no surgimento das di-
tas Epistemologias do Sul, que de acordo com Boaventura de Sousa Santos (2006;
2009), consistem em intervenções epistemológicas dos povos colonizados (África,
Ásia, América Latina, etc) que denunciam a supressão imposta pelo sistema colo-
nial, valorizando seus saberes a luz de um diálogo horizontal entre as mais diversas
formas de conhecimento, o que ele chama de uma ecologia de saberes, o propósi-
to dessa ecologia se desenvolve no sentido de abarcar uma pluralidade de saberes
diversos longe da ideia de dominação de um sobre o outro (SANTOS; MENESES,
2009).
Santos assim como Fanon acredita que o pensamento ocidental hegemônico
é abissal1 e esta dividido em dois polos opostos. Para Santos o pensamento hege-
mônico dividiu saberes e atores sociais em duas linhas: os que ficam do lado de cá
da linha (países europeus – saberes, pensamentos úteis inelegíveis e visíveis) e os
que ficam do lado de lá (países colonizados – inúteis, perigosos e inteligíveis), tais
linhas permanecem até hoje em um colonialismo político de acordo com ele. Dessa
maneira, Santos propõem a ideia um pensamento pós – abissal onde a “diversida-

1 De acordo com Santos o pensamento abissal no campo do conhecimento consiste “na con-
cessão à ciência moderna do monopólio da distinção universal entre o verdadeiro e o falso, em detri-
mento de dois conhecimentos alternativos: a filosofia e a teologia. O caráter exclusivo deste monopólio
está no cerne da disputa epistemológica moderna entre as formas científicas e não-científicas de ver-
dade” (SANTOS, 2009 apud SANTOS; MENESES, 2009 p. 25).

122 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
de do mundo é inesgotável e que esta diversidade continua desprovida de uma
epistemologia […] a diversidade epistemológica do mundo continua por construir”
(SANTOS, 2009, p. 43).
A ecologia de saberes proposta por Santos e a descolonização apresentada por
Fanon abrem caminho para pensarmos a filosofia africana ubuntu como aliada no
processo de descolonização da sociedade brasileira.

FILOSOFIA AFRICANA UBUNTU: NOVOS CAMINHOS


O epistemicídio proporcionado pelos países do lado de lá com países coloniza-
dos resultou em um racismo estrutural epistêmico em relação ao continente afri-
cano. A ideia de que países africanos não produzem conhecimento permanece no
imaginário social de sociedades colonizadas e não colonizadas. Diferentemente do
que está posto pelo conhecimento ocidental, o continente africano é um território
marcado pela pluralidade e pluriversalidade de filosofias, culturas e modos de vida,
a filosofia africana ubuntu é um exemplo desta ecologia de saberes presente em
África.
De acordo com Ramose a filosofia africana ubuntu “é a base da filosofia africa-
na. A existência do africano no universo é inseparavelmente ancorada sobre ubun-
tu” (RAMOSE, 1999 p. 1) e pode ser entendida como uma categoria tanto no plano
da ontologia, quanto no plano da epistemologia e suas práticas existem desde os
primórdios da humanidade. Não há como delimitar de maneira assertiva os limites
geográficos onde nasceu a filosofia ubuntu, sua origem é na África Subsahariana
com os povos de língua bantu (região de onde vieram a maior parte dos negros
escravizados no Brasil), ao que se sabe teria nascido aos redores do “deserto Nú-
bio para o Cabo da Boa Esperança e do Senegal ao Zanzibar” (RAMOSE, 1999 p. 1).
Estudos do filósofo Jean-Bosco Kakozi Kashindi apontam que os primeiros escritos
sobre ubuntu aparecem em meados do século XIX e pode ser divido em cinco gran-
des marcos teóricos na era escrita.
O significado de ubuntu em termos gerais consiste na ideia de “eu sou, porque
nós somos”, no entanto pode se dizer que ubuntu é o arranjo do prefixo ubu (on-
tologia) e da raiz unt (epistemologia). Ubu é definido pelo Ser integral, vital que se
manifesta em sua forma concreta ou no modo de existência de outras realidades
que é sempre orientado para o ntu. Ntu por sua vez, estaria ligado a ideia da ma-
nifestação de outros modos de existência (RAMOSE, 1999) têm-se aqui a ideia de
circularidade, de movimento e de retroalimentação, nesse sentido a filosofia ubun-
tu pode ser entendida como um Ser só existe através de outros seres (ser/sendo).
Diferente da ideia proposta pela filosofia ocidental em que o homem seria o centro
do mundo e da vida (antropocentrismo), toda via, está ideia seria “questionável,
porque, em toda probabilidade, o universo não tem nenhum centro” (RAMOSE,
1999 p.5), em outras palavras a filosofia ubuntu acredita que o ser humano só al-
cança sua totalidade através das relações com a comunidade e com elementos que

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 123


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
a compõem. Existem outras formas de se referir ao ubuntu no plano ontológico
ubu pode ser traduzido de forma idêntica como umu, e nesse caso se refere ao Ser
que também pode ser ligada ao ntu, tornando-se umuntu. Nesse sentido, “umuntu
é uma entidade específica que se estende a conduzir uma investigação ao ser, ex-
periência, conhecimento e verdade” (RAMOSE, 1999 p. 2).
De acordo com o filósofo congolês Jean-Bosco Kakozi Kashindi (2017) defende
que ubuntu se diferencia da filosofia ocidental, porque tem como principal carac-
terística sua fundação baseada na ética biocêntrica, ou seja, onde todas as formas
de vida são igualmente importantes. Através da cosmovisão africana ubuntu “é
possível perceber a sua natureza e conhecer a sua articulação nos seres humanos
e outros seres que constituem a realidade em que vivemos” (KASHINDI, 2017 p.
4). A partir dos estudos de Ramose, Noguera e Kashindi é possível observar que a
racionalidade não pertence exclusivamente há uma única localização geográfica e
não foi concebida apenas pelos europeus, como nos mostra a filosofia ocidental. A
humanidade é repleta de saberes e conhecimentos pluriversais, a filosofia ubuntu
é um exemplo disso.
A filosofia ubuntu ganha força em meados da década de 1990 com a luta pelo
fim do regime de apartheid na África do Sul, a máxima Zulu umuntu ngumuntu
ngabantu (a pessoa é uma pessoa através de outras pessoas) passa a ser difundida
por grande parte do continente africano, reconfigurando o sentido de humanidade
dos povos africanos. No início dos anos 2000 a maioria dos artigos sobre filosofia
ubuntu trazem a máxima Zulu em seu bojo de discussão, como ponto principal de
difusão da filosofia ubuntu. Dessa maneira, podemos identificar a filosofia ubuntu
dentro da corrente das epistemologias do sul apresentada por Santos, uma filoso-
fia pensada a partir dos povos colonizados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A superação do racismo epistêmico em sociedades latino-americanas vem ten-
tando romper as mazelas deixadas pelo terrível processo de colonização. A colonia-
lidade presente no plano ontológico e epistemológico levou a sociedade, de modo
geral, durante muito tempo a pensar em um único referencial científico, cultural,
econômico que não pode ser superado. A filosofia ubuntu surge a partir de comu-
nidades autóctones africanas, colonizadas como alternativa a subalternização que
foram impostas estas sociedades. Antagônica a lógica do antropocentrismo vem
para nos mostrar outras possibilidades ontológicas e epistemológicas.
A ecologia de saberes que a filosofia ubuntu proporciona podem levar a liber-
tação do colonialismo e a superação do racismo na diáspora brasileira reconfigu-
rando formas e maneiras de pensar. A filosofia ubuntu têm suas reminiscências no
Brasil e pode ser vista a partir do modo de vida presente em comunidades rema-
nescentes de quilombos, nos terreiros de candomblé, nas

124 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
rodas de samba e capoeira, todas essas manifestações possuem de alguma ma-
neira o sentido filosófico e epistemológico proporcionado pela filosofia ubuntu.
Seus princípios podem ser difundidos no sentido de reconfigurar a ideia de huma-
nidade e superar o epistemicídio e a colonialidade presente no Brasil.

REFERÊNCIAS

CARNEIRO, Aparecida, S. A construção do outro como não-ser como fundamento do ser.


339 p. (TESE) Doutorado em Educação. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005.

DANTAS, Luis Thiago, F. Filosofia desde África: perspectivas descoloniais. 231 p. (TESE)
Doutorado em Filosofia. Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2017.
FANON, Frantz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1968.

KANT, Immanuel. Lógica. Tradução: Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1992.

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Henrique Denis Lucas. Cadernos IHUS Ideias. v. 15, n. 254, p. 24, 2017. Disponível em:
http://www.ihu.unisinos.br/images/stories/cadernos/ideias/254cadernosihuideias.pdf.
Acesso em 25 set. 2020.

NOGUERA, Renato. Ubuntu como modo de existir: elementos gerais para uma ética afro-
perspectivista. Revista da ABPN. v. 3, n. 6. p. 147-150, nov/fev. 2011-2012.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SANTOS, Boaventura


de S; MENEZES, Maria Paula (Org.). Epistemologia do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. p.
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QUINTERO, et al. Uma breve história dos estudos decoloniais. São Paulo-SP. MASP, 2019.
Disponível em: https://masp.org.br/uploads/temp/temp-QE1LhobgtE4MbKZhc8Jv.pdf.
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RAMOSE, Mogobe, B. Sobre a legitimidade e o estudo da filosofia africana. Ensaios Fi-


losóficos. v. 4, p. 6-23, out. 2011. Disponível em: http://www.ensaiosfilosoficos.com.br/
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RAMOSE, Mogobe, B. African Philosophy through Ubuntu. Harare: Mond Books. 1999, p.
49-66. Tradução Arnaldo Vasconcellos. Disponível em: https://filosofia- africana.weebly.
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SANTOS, Boaventura de S. MENEZES, Maria Paula (Org.). Epistemologias do Sul. Coimbra:


Almedina, 2009.

SANTOS, Boaventura, S. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecolo-
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do Sul. Coimbra: Almedina, 2009. p. 23-71.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 125


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
AUTORIA
Ana Paula Nascimento Lourenço
Gestora Ambiental, atualmente aluna do Programa de Mestrado em Ciência Tecno-
logia e Sociedade – PPGCTS. Bolsista CAPES.
Instituto Federal do Paraná – Campus Paranaguá
E-mail: apnl.lourenco@gmail.com
ORCID: 0000-0002-2889-9631
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4647583532465705

Antônio Marcio Haliski


Pós Dr°. em Socologia. Professor do Instituto Federal do Paraná – Campus Parana-
guá
E-mail: antonio.haliski@ifpr.edu.br
ORCID: 0000-0001-8373-8796
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8732336877263476

126 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
UM DEBATE SOBRE AS EPISTEMOLOGIAS
AFRICANAS E AFRO- DIASPÓRICAS E A
IMPORTÂNCIA PARA A EDUCAÇÃO DAS
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS(ERER)

André Vinicio Bialeski Vieira


Maria Helena Tomaz
Marcos Rodrigues Silva

“Podemos reconhecer que a verdade


não é propriedade de nenhuma cultura;
devemos apoderar nos das verdades de que precisamos
onde quer que as encontremos.”
KwameAppiah - Na Casa do Meu Pai

INTRODUÇÃO
O Brasil é um país marcado ao longo da sua história pela presença da escravi-
dão, que existiu durante o período colonial e praticamente durante todo o Império.
Nesse período, pessoas foram sequestradas de seu continente de origem para se
deslocarem a um território onde sofreram violências imputadas por seus escravi-
zadores brancos. Ao submeter essas populações à essa situação, a elite escravista
promoveu o apagamento de sua constituição como sujeitos históricos, o fortaleci-
mento do racismo e a instituição do mito da democracia racial, pensamento esse
iniciado no império e que perdura até os dias atuais. Em contrapartida, surgem ao
longo da história movimentos de resistências que podem ser exemplificados como
os quilombos, os zungus, os Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros(NEABs), escritores
como Castro Alves e Abdias Nascimento e o Movimento Negro Unificado – os quais
são alguns dos vários exemplos de grupos que lutaram/lutam em defesa das po-
pulações afrodescentes no Brasil. Anos de luta levaram no ano de 2003 à homolo-
gação da Lei 10639. Sua sanção tornou obrigatório “o estudo da História da África
e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro
na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas
áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.” (BRASIL, 2003),
que até então pouco era discutido.O objetivo maior dessa lei é superar o apaga-
mento iniciado pelas elites escravistas de hegemonia branca nos séculos passados
e através disso buscar uma “valorização da história e cultura dos afro-brasileiros
e dos africanos, assim como comprometidos com a de educação de relações
étnico-raciais positivas, a que tais conteúdos devem conduzir” (BRASIL, 2004, p.9).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 127


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Como consequência, escolas de ensino básico e alguns cursos de ensino su-
perior têm de reformular seus currículos de forma a se adaptar à lei. A partir daí,
ocorre a intensificação no estudo da Educação das Relações Étnico-Raciais (ERER)
que busca valorizar a igualdade racial, as epistemologias africanas e afro-diaspó-
ricas e a promoção de reflexões sobre o racismo em nossa sociedade. Para isso, é
imprescindível estudar e valorizar as epistemologias e filosofias dessas populações
que tanto sofreram ao longo da história.
Nosso trabalho se encontra como uma das ações promovidas pelo Observatório
Educação da Relações Étnico-Raciais, dentro do Núcleo de Estudos Afro- Brasilei-
ro(NEAB/UDESC), lugar esses em que os seus membros são acadêmicos, profes-
sores e pesquisadores associados que estão presentes na luta antirracista e assim
buscam levantar diversos debates em defesa da igualdade racial, da luta antirracis-
ta, da exaltação dos (as)afro-brasileiros (as) e dos (as) africanos (as) e o auxílio da
execução das leis federais 10639/2003 e 11645/2009 através de parcerias entre a
universidade, prefeituras e escolas em Santa Catarina.
Portanto, nosso intuito com esse trabalho é levantar algumas visões episte-
mológicas e filosóficas do pensamento africano e afrodiaspórico para uma breve
reflexão. Ressaltamos a impossibilidade de discutir todas as epistemologias e fi-
losofias deste continente tão múltiplo e tão rico, mas trouxemos alguns aspectos
importantes do estudo, recortes promovidos através do estudo realizado para a
escrita deste texto. Sendo assim, apresentamos nesse texto um rápido olhar sobre
o colonialismo e como ele afeta a vida dos colonizados e ataca suas epistemologias
e visões de mundo. Em seguida,comentar-se-á brevemente – tendo em vista que
esses temas são extremamente complexos para se abordar em algumas páginas
– temas como Ancestralidade, Tradicionalidade, Oralidade e Diversidade os quais
são alguns dos debates da ERER.
Acreditamos que se torna necessário o estudo desses temas, não apenas por
termos em consideração a lei 10639/2003 e as “Diretrizes Curriculares Nacionais
para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana” que exigem o ensino de história de África e dos Afrodes-
cendentes nas escolas, todavia também por uma necessidade de se superar o ima-
ginário étnico-racial que valoriza os descendentes de europeus em detrimento aos
dos africanos.Para alcançar esse objetivo, é necessário um melhor entendimento e
uma valorização das epistemologias e filosofias desenvolvidas pelo mundo africano
e afro-diaspórico.

COLONIALISMO, RACISMO E A NEGAÇÃO AOS AFRICANOS


Quando o mundo ocidental chegou a África, prometeu que iria levar consigo
a civilização e a ordem ocidental com intuito de promover o fim da barbárie no
continente africano, contudo, o que eles fizeram foi o oposto e o que levaram para
o continente foi uma ordem maligna e de imposições cruéis. Para isso, o primeiro

128 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
passo para a implantação do seu plano foi a desumanização das populações locais.
Esse fato se torna perceptível quando se tem contato com as literaturas de época
que trabalhavam de forma a retratar o africano “não apenas como uma criança,
mas como uma criança idiota, presa de um punhado de régulos, potentados cruéis
e implacáveis. Essa idiotia seria consequência de um defeito congênito da raça
negra.” (MBEMBE, 2018, p.121).Por esse fato, “a colonização seria uma forma de
assistência, de educação e de tratamento moral dessa idiotia, além de um antídoto
para o espírito de brutalidade e para o funcionamento anárquico das ‘tribos na-
tivas’. Desse ponto de vista, representava uma benção da civilização” (MBEMBE,
2018, p.121). Porém, tudo isso fez parte de um jogo narrativo que não se definia
apenas pela literatura, mas também no mundo político como legitimação da colo-
nização.
Na verdade, em nenhum momento o mundo ocidental estava preocupado com
as populações africanas, eles as desprezavam e inferiorizavam. Toda a ordem e vi-
são de mundo antes dos europeus era inferiorizada e ignorada, exemplo disso era
a educação que mantinham padrões próprios

baseados na oralidade, organizados muitas vezes em estágios


iniciáticos e marcados por ritos de passagem permitiam aos
adultos socializar os mais jovens e transmitir-lhes os saberes à
vida quotidiana, os comportamentos sociais e as ciências tra-
dicionais ou os conhecimentos religiosos. (MBOKOLO, 2011, p.
510)

Assim, no intuito de impor seu domínio, os europeus aplicaram um projeto de


colonização do imaginário, pois, “enquanto existir uma parte desse povo que possa
ter uma vida cultural, o domínio estrangeiro não poderá estar seguro da sua per-
petuação.” (CABRAL, p.357). Por isso, se tornou essencial uma “cruzada” contra
o imaginário africano para a perpetuação colonial. Como consequência dessa ne-
cessidade de imposição, “a maior preocupação do poder colonial era, compreensi-
velmente, remover as tradições autóctones tanto quanto possível para implantar
no lugar suas próprias concepções” (HAMPATÊ-BÂ, 2010, p.211) e para isso foram
utilizadas as escolas dos colonizadores que conforme Hampatê-Bâ (2010, p.211)“-
constituíram os instrumentos essenciais desta ceifada. A educação ‘moderna’ rece-
bida por nossos jovens após o fim da última guerra concluiu o processo e criou um
verdadeiro fenômeno de aculturação.”
Assim,o mundo colonial desprezava as ordens locais e as inferiorizavam por in-
titularem- nas de “primitivas”, o que sabemos ser uma mentira que na verdade era
utilizada para impor suas epistemologias aos africanos. Aqui, levantamos que a fi-
losofia ocidental era utilizada como“meio de colonização, justificando as barbáries
cometidas em nome de uma ‘civilização’, usando seu poder político e epistemoló-
gico para inferiorizar o ‘outro’, ou seja, aqueles que foram jogados para a ‘periferia’
do pensamento e considerados ‘incapazes de filosofar’” (MACHADO, 2014, p.3).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 129


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Com isso, os ocidentais não permitiam a legitimação da filosofia dos africanos, pois
eles não eram capaz de produzi-la, e, se produzissem, ela era inferior devido à
condição em que os africanos se encontravam.Conforme Machado (2014, p. 3),
Hegel é um exemplo dos filósofos que trabalhou de forma a desqualificar o con-
tinente africano e os africanos, exemplo disso é a sua obra “Filosofia da História”
onde definiu África como um papel em branco e sem história, também negando a
intelectualidade aos africanos.
Cabe ainda levantar um termo chave para o mundo colonizador, a raça. Enquan-
to ocorreu o colonialismo no continente africano, ele

“essencializou, classificou e inventou corpos colonizados, trans-


formando-os em alvo de estereótipos e representações racia-
lizadas. O discurso colonial, especialmente o racismo científico
do século XIX, construiu corpos destituídos do status do ‘ser’
excluídos da condição de sujeitos sociais, suas habilidades inte-
lectuais para produzir conhecimento e participar ativamente do
fazer histórico foram negadas.” (CARDOSO, 2017, p.1)

Através desse processo, o colonialismo desumanizou as populações coloniza-


das e os transformou em “raças inferiores”. Nesse momento, a raça baseada na
cor trabalhava de forma a “classificar os seres humanos em categorias distintas,
supostamente dotadas de características físicas e mentais próprias.” (MBEMBE,
2018, p.109). E, com esses argumentos, foi que o ocidente construiu a suposta ne-
cessidade de levar a civilização para todos aqueles “racialmente inferiores”.
Mas, diferentemente do que o mundo colonial tentou inventar sobre a ineficá-
cia africana em produzir suas epistemologias, existiam e existem diversas filosofias
africanas, que são riquíssimas e que trabalham em uma vertente totalmente dife-
rente do mundo europeu, pois segundo Machado (2014, p.9) elas defendem que
“não é possível uma filosofia sem cultura, sem oralidade, sem ancestralidade.”. Por
isso, ao se debater qualquer assunto sobre o mundo africano, consideramos “que a
concepção que os africanos possuem de sua própria história e da história em geral
seja marcada por seu singular desenvolvimento.” (BOUBOU; KI-ZERBO, 2010, p. 23)
e, como consequência disso, é necessário buscar se aproximar das noções de mun-
do dos africanos para se compreender melhor o assunto proposto.

ANCESTRALIDADE, TRADICIONALIDADE, DIVERSIDADE,


DIÁSPORA E A ERER
Para se entender o mundo africano, é importante considerar um amplo univer-
so de diversidades, com múltiplas leituras e interpretações de mundo, sendo cada
uma delas desenvolvida a partir das suas lógicas e vivências - como qualquer outra
sociedade. Trabalhamos aqui com a ideia de diversidade pautada no pensamento

130 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
“que valoriza as singularidades à medida que respeita a diversi-
dade étnica, cultural e política. Diversidade essa que não se leva
ao isolamento por conta do princípio de integração que tem na
inclusão o seu guia, fazendo com que as singularidades sejam
submetidas à ética que prima pelo bem-estar da comunidade”
(MACHADO, 2014, p. 9- 10)

Assim, a diversidade é algo bem vindo a esse mundo, pois ela valoriza as sin-
gularidades e tem como ente guia a união e a segurança de todos aqueles que
pertencem à comunidade. O respeito à diversidade se torna necessário em um
mundo racista e pós período colonial, pois enquanto existia a força colonial ela fun-
cionava enquanto vontade de poder de forma “inseparável das construções ima-
ginárias poderosas e das representações simbólicas e religiosas através das quais
o pensamento ocidental figurou o horizonte terrestre” (MBEMBE, 2019, p.92), de
maneira a destruir todo o imaginário anterior a sua imposição, assim forçando as
populações colonizadas a seguirem seus padrões e visões de mundo, tentando aca-
bar com as tradições existentes. Em contrapartida a essa lógica, a filosofia africa-
na “prima por uma éticade inclusão, é ciência da sensibilidade, é estética, pensa
epistemologias para a vida e mundosmelhores, busca conhecimentos propositivos
de uma mudança consistente” (MACHADO, 2014, p.16). Por isso, notamos que a
filosofia africana busca superar a visão de exclusão e hierarquização proposta por
parte da filosofia ocidental.
Porém, essas populações não permaneceram passivas diante da presença co-
lonial. A resistência existiu e trabalhou nos meios culturais e tradicionais dos afri-
canos. Enquanto a lógica ocidental desumaniza as populações que passaram pela
colonização, essas mesmas pessoas produziram e produzem músicas, literaturas e
a própria religião que são “respostas a essa exclusão [promovida pelo ocidente],
à negação e à recusa através das quais a África nasce para o mundo” (MBEMBE,
2019, p.82), mostrando ao mundo que os africanos são pessoas que produzem uma
diversidade cultural tão rica quanto a do ocidente.
Mas não apenas nesses meios residem ou residiram as resistências. No campo
das tradições, existe muita riqueza que contribui para a existência de uma episte-
mologia africana. Conforme Machado (2014, p.10), a tradição é a base que susten-
ta as ideias da diversidade. Não existe diversidade se não existirem tradições (aqui
colocamos no plural, pois defendemos que podem existir diversas tradições que
podem viver em harmonia e dialogando entre si, sem se impor). Neste trabalho,
gostaríamos de trazer o exemplo da tradição oral das sociedades que se encontram
na região de savana ao sul do Saara(HAMPATÊ-BÂ, 2010, p. 169), nelas

A tradição oral é a grande escala da vida, e dela recupera e rela-


ciona todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não
lhe descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade carte-
siana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas.
Dentro da tradição oral, na verdade, o espiritual e o material

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 131


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
não estão dissociados. Ao passar do esotérico para o exotérico,
a tradição oral consegue colocar-se ao alcance dos homens, fa-
lar-lhes de acordo com o entendimento humano, revelar-se de
acordo com as aptidões humanas. (HAMPATÊ-BÂ, 2010, p. 169)

Nessas sociedades, os antepassados se fazem presentes em suas vidas, pois


sempre que um tradicionalista Domafala recorre “às almas dos antepassados para
pedir-lhes que venham assisti-lo, a fim de evitar que a língua troque as palavras ou
que ocorra um lapso de memória, que o levaria a alguma omissão.”(HAMPATÊ-BÂ,
2010, p. 180), ele, assim, reconhece ainda a presença dos antepassados em suas
vidas e que eles têm poder de influência e de auxílio quando necessário.
Neste momento, gostaríamos de trazer a ancestralidade. Consoante com Ma-
chado (2014, p.10), a ancestralidade “é um modo de estar no mundo”, através dela
as filosofias ligadas a essa mentalidade se propõem a “estar no mundo, estar com
o outro indivíduo, a natureza, consigo mesmo” (MACHADO, 2014, p.10), com isso,
reconhece-se aqueles que estão aqui, estiveram e estarão e dessa forma se busca
viver em harmonia. Contudo, precisamos ter em mente que o tempo africano não
é estático: o tempo é dinâmico, tendo em vista que tem um caráter social o qual
“lhe dá uma dimensão histórica incontestável, porque a história é a vida crescente
do grupo.” (BOUBOU; KI-ZERBO, 2010, p.31). Mas não apenas nos grupos presen-
tes fisicamente aqui e agora, bem como também os que estiveram aqui e estarão,
com o tempo de agora tendo em sua presença os antepassados que muitas vezes
os tradicionalistas recorrem da forma que foi levantada anteriormente.
Outro conceito extremamente essencial de ser trabalhado é a diáspora. Concei-
tualmente falando, esse termo se define originalmente “para designar a dispersão
geográfica das populações judaicas em migrações forçadas ou voluntárias, é usa-
do na contemporaneidade para se referir, mais amplamente, à dispersão de uma
miríade de grupos étnico-raciais entre diversas localizações” (FURTADO; CORREA,
2018, p.1). Neste trabalho, referimo-nos à diáspora africana ocorrida durante o
Tráfico Atlântico. Nesse movimento, com um intuito de formar um coletivo dian-
te o racismo existente no mundo, as populações afrodescendentes recorrem não
apenas a referências africanas,“mas a reconstrói, por meio de memórias, mitos
e símbolos estéticos acionados em suas culturas populares.”(FURTADO; CORREA,
2018, p.8). Através desses movimentos, busca-se formar identidades diaspóricas
que são construídas “mediante condições culturais e materiais, entremeando o
imaginário da terra ancestral às conexões com outros grupos dessa diáspora e às
relações locais de conflito e pertencimento” (FURTADO; CORREA, 2018, p.8). As-
sim, em diversos campos da arte, como a música e a literatura, criam um espaço de
valorização do mundo africano e de crítica ao mundo colonial e racista.
Portanto, os temas destacados neste trabalho são de suma importância para
se debater brevemene a Educação das Relações Étnico-Raciais que vem como uma
proposta de trabalhar com “uma construção alternativa à modernidade eurocên-
trica, tanto no seu projeto de civilização quanto em suas propostas epistêmicas”

132 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
(OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 17). Ao ser levantado em sala de aula temáticas como
a diversidade, a tradicionalidade e a ancestralidade, os alunos serão expostos a
padrões totalmente diferentes aos eurocêntricos costumeiramente introduzidos
no cotidiano através de materiais didáticos, filmes e livros. Com esses temas, va-
lorizam-se epistemologias que foram postas em escanteio pelo mundo colonial.
Assim, trazendo esse tema, apreciam-se valores africanos que são muitas vezes
desconsiderados no Brasil devido a um falso imaginário étnico racial que “privilegia
a brancura e valoriza principalmente as raízes europeiasda sua cultura, ignorando
ou pouco valorizando as outras, que são a indígena, a africana, a asiática” (BRASIL,
2004, p. 14). Como combate a essas imposições eurocêntricas,são necessários de-
bates, estudos e a inserção das histórias e das filosofias africanas nas salas de aulas
brasileiras, para que muitas pessoas que têm seus antepassados marginalizados na
história ocidental tenham contato com eles e possam ver o quão rico seu passado
é.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A colonização do continente africano teve por uma de suas consequências a
desumanização dos africanos, tendo em vista que eles eram inferiorizados por pa-
drões desenvolvidos pela lógica eurocêntrica e imposta. No mundo colonial corpos
foram essencializados, classificados e atacados tanto pelos campos do imaginário
quando no campo físico. O mundo ocidental criou o pensamento de primitivo e
impôs ao “outro” com o intuito de legitimar o seu violento domínio. Nesse pro-
cesso, partes das populações do continente africano foram absorvidas pela ordem
eurocêntrica com o suposto intuito dos europeus de “salvarem” os “selvagens”.
Ao forçar suas ideias em um mundo com suas ideias próprias, os europeus busca-
ram descaracterizar e negar o direito de pensamento dos colonizados, recusaram
a aceitar a existência de preceitos, filosofias e visões de mundo pelas populações
dominadas.
Porém, o mundo africano é rico e, mesmo diante dos ataques europeus, con-
tinuou e continua resistindo e defendendo suas epistemologias, produzindo suas
culturas e filosofias. Diante do eurocentrismo colonial, os africanos construíram
frentes de resistência ao recorrerem a suas tradições, manteram e inovaram em
seus pensamentos baseados na ancestralidade e como um continente enorme e
com muitas culturas, reagiram a essas imposições coloniais de diversas formas con-
forme a história e o sistema colonial desenvolvido em cada região do continente.
Os africanos produziram e produzem uma riquíssima cultura tendo como alguns
dos expoentes modernos dessa área ChinuaAchebe, ChimamandaAdiche e Aza-
gaia. Além disso, diversos são os nomes do mundo acadêmico que desenvolvem
ou desenvolveram ideias que valorizam o mundo africano e a sua filosofia como
Achille Mbembe, Frantz Fanon, Elikia Mbokolo, KwameAppiah, Oyèrónk Oyewùmí
e Amilcar Cabral.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 133


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Com as populações afrodiaspóricas, que resultaram de sequestros promovidos
pelos europeus ao longo do tráfico atlântico, encontramos o pensamento da diás-
pora, que é muito bem desenvolvido e que segue uma ordem lógica, racional e de
desenvolvimento de símbolos que ligam todas as pessoas pertencentes ao mundo
afro-diaspórico. Nesse mundo, as artes, a política e a resistência funcionam de for-
ma a ligar todas as pessoas que sofreram com as consequências do tráfico atlânti-
co. Neste pensamento e neste trabalho, o objetivo é valorizar todos aqueles que o
Ocidente desumanizou e impôs a imagem de escravizados, mas que na verdade são
filhos de um continente riquíssimo com grandes histórias como a do Egito Antigo
e Império do Mali e de grandes personagens como Nzinga e Nelson Mandela. Aqui
neste campo dos debates diaspóricos podemos levantar dois grandes nomes como
Angela Davis e Stuart Hall.
Portanto, o ato de superar o pensamento eurocêntrico e de valorização dos
mundos africanos é uma ideia bem vinda à Educação das Relações Étnico-Raciais,
pois ela vem no encontro de ser um dos passos para superar os privilégios do mun-
do eurocêntrico e de valorização exclusiva do mesmo que se fez e se faz muito pre-
sente no mundo contemporâneo. Entender as epistemologias e as filosofias africa-
nas não é necessário apenas para a aplicação da lei 10639/2003, mas para também
fundamentar concepções de mundo pautadas na diversidade, com muitas culturas
e mentalidades, e que não existe apenas uma que seja a certa ou verdadeira: todas
elas podem dialogar, sendo isso auxiliador na construção de um mundo melhor,
um mundo que supere os pensamentos raciais e que não valorize exclusivamente
os valores eurocêntricos.

REFERÊNCIAS

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para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Disponível em: http://biblio-
tecadigital.fgv.br/ojs/index.php/reh/article/view/1291/712. Acesso em: 12 de outubro
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CARDOSO, Claudia Pons. Por uma epistemologia feminista negra do sul experiencias de
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134 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
FURTADO, Lucianna; CORRÊA, Laura Guimarães. As identidades negras da diáspora e a
descolonização da representação. In E-Compós. 2018

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MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. 3° ed. São Paulo. N-1 edições, 2018.

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Tomo II. Salvador: UFBA; São Paulo: Casa das Áfricas, 2011.

OLIVEIRA Luiz Fernandes de; CANDAU, Vera Maria Ferrão. Pedagogia Decolonial e Edu-
cação. Antirracista e Intercultural no Brasil. Educação em Revista. Belo Horizonte, V.26,
n.01, p. 15-40, abril 2010 (Disponível Online)

AUTORIA
André Vinicio Bialiesk Vieira
Discente voluntário de extensão no NEAB/UDESC
E-mail:avbvieira125@gmail.com
ORCID:0000-0002-8999-0340
Lattes:http://lattes.cnpq.br/0567539200051548

Maria Helena Tomaz


Cordenadora do NEAB/UDESC
E-mail: helenadpad@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6618389927732597

Marcos Rodrigues Silva


Pesquisador associado NEAB/UDESC
E-mail: marcosrit@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4059475779299506

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 135


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
POLÍTICAS PÚBLICAS, IDENTIDADE, GÊNERO E
RAÇA NO CONTEXTO RURAL QUILOMBOLA NA
BAHIA
Carla Ferreira
A nossa escrevivência não pode ser lida
como histórias para "ninar os da casa grande"
e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.
Conceição Evaristo

INTRODUÇÃO
Este documento faz parte da pesquisa que vem sendo desenvolvida junto à co-
munidade Quilombola de Várzea Queimada, localizada no município de Caém, re-
gião Norte do Estado da Bahia, a 300km da capital Salvador.
A pesquisa tem como tema principal as mulheres negras quilombolas na execu-
ção de políticas públicas, que visam equalizar as questões de gênero e raça, bem
como responder: Em que medida as políticas públicas implementadas na localida-
de têm contribuído para a superação das relações desiguais de gênero e raça na lo-
calidade e em seu entorno? Ou tem perpetuado as práticas preconizadas de subor-
dinação das mulheres, invisibilidade e desigualdades propagadas historicamente?
Os caminhos que me levaram a comunidade Quilombola da Várzea Queimada,
decorrem da minha da experiência profissional, da atuação no Projeto de Desen-
volvimento Rural Sustentável (Pró -Semiárido), executado pela Companhia de Ação
e Desenvolvimento Regional (CAR), que é ligada a Secretaria de Desenvolvimento
Rural do estado da Bahia (SDR). O Pró-semiárido trabalha com 32 municípios na
região Norte da Bahia, com desenvolvimento rural, inclusão produtiva com vistas
a redução da pobreza e melhoria das condições de vida da população camponesa.
O crescimento da cobrança em torno do uso dos recursos e resultados obtidos
pela ação governamental, leva a uma redefinição da relação Sociedade e Estado
para a garantia dos direitos humanos, superação de problemas sociais, culturais
e econômicos no Brasil. Assim, a conotação dada ao campo das políticas pública,
ganha uma outra visão, uma vez que o desafio ainda é desenhar políticas capazes
de impulsionar o desenvolvimento e ao mesmo tempo superar as desigualdades
sociais.
Portanto, é indispensável um conhecimento aprofundado dos conteúdos histó-
rico e sociais no contexto das questões de raça, gênero, etnia e classe no Brasil, que
possibilitem interpretar os resultados e atribuí-los à intervenção da ação pública
realizada parcial ou totalmente a partir da implementação de políticas que estejam
comprometidas com ações estruturais para a superação das desigualdades de gê-
nero, raça e classe no Brasil. Como bem aponta Jessé Souza (2005), é preciso rom-

136 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
per com a invisibilidade das desigualdades brasileira, para ir além das aparências e
das ilusões da vida cotidiana e suspeitar do discurso legitimador de determinadas
instituições que em muitos casos, o objetivo é manter o status-quo da hierarqui-
zação social.
No Brasil, há 2.7091 certidões expedidas pela Fundação Cultural Palmares (FCP),
este que é o primeiro órgão público a ser acessado para a garantia desse direito,
a titulação das terras quilombolas através da autoatribuição. No Estado da Bahia,
dados da FCP, apontam 661 comunidades remanescentes de quilombos com cer-
tidões. A FCP estima que existam mais de 3mil comunidades remanescentes de
quilombos no Brasil, mas a mesma instituição aponta que segundo outras fontes
este número pode chegar a 5 mil comunidades.
A percepção geral em relação às comunidades negras rurais e remanescentes
de quilombos tem como base uma narrativa pautada no processo histórico, pouco
contemporâneo sustentada na ideia de nação construída numa lógica de invisibi-
lizar as comunidades de pessoas que fugiram da escravidão e que produzem suas
histórias, baseados nos saberes de seus antepassados e uso coletivo das terras,
porém seu desenvolvimento é muito complexo, na busca da cidadania quilombola,
acesso a políticas públicas e identidade, ou seja, liberdade para viver e desenvolver
seus modos de vida e produção.
Nesses espaços, as pessoas de origem africana de diferentes etnias conviviam
com suas diferenças e criavam laços de solidariedade, recriando culturas. No sécu-
lo XVIII, quilombo já era definido como a agrupação de cinco ou mais escravos fu-
gidos e agrupados em sítio despovoado. Isso fez com que o número de quilombos
existentes no Brasil fosse amplificado. Dessa forma,

“Se não figuravam como ameaça efetiva à escravidão, eles pas-


sariam a representar uma ameaça simbólica importante, po-
voando o pesadelo de senhores e funcionários coloniais, além
de conseguir fustigar com insistência desconcertante o regime
escravista” (REIS, 1995, 1996, p.18).

Uma questão importante que Reis (1995, 1996) traz é que o imaginário de que
os quilombos eram comunidades isoladas, constituídas de pessoas negras, não cor-
responde à realidade. Ainda que tenha havido casos de quilombos isolados, em
sua maioria existia uma intensa relação entre quilombolas e outros grupos sociais.
Beatriz Nascimento (1985 in RATTS, 2006) coloca que é no final do século XIX
que o quilombo configura-se em instrumento ideológico contra diversas formas de
opressão. Ela acrescenta que:

1 Fundação Cultural Palmares. Disponível em: http://dados.cultura.gov.br/dataset/0c2ae-


988-73a5-4576-bac5-27de54ce4e2f/resource/67ff2615-1a7f-483a-a1f0-ec814c1f9e0b/download/
planilhacertificadas.xlsx Acessado 06/11/2020.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 137


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
“É enquanto caracterização ideológica que o quilombo inaugura
o século XX. Tendo findado o antigo regime, com ele foi-se o
estabelecimento como resistência à escravidão. Mas justamente
por ter sido durante três séculos concretamente uma instituição
livre, paralela ao sistema dominante, sua mística vai alimentar
os anseios de liberdade da consciência nacional”. (NASCIMEN-
TO, 1985 in RATTS (org.), 2006).

Comumente, o objetivo da maioria de quilombolas não era acabar com a es-


cravidão, e sim sobreviver em suas fronteiras de forma livre e autônoma. Segundo
Reis, não procede também a ideia de que as pessoas escravizadas fugiam para re-
criar a África no Brasil. Lógico que mantiveram práticas, tradições e identidades de
origem africana, mas isso não se deu apenas nos quilombos, ocorreu também nas
senzalas. Em ambos os espaços, prevaleceu o conhecimento, o encontro, a compo-
sição, a experiência, a disputa e a reinvenção entre modos de perceber e estar no
mundo trazidos pelas diversas etnias africanas e os elementos aqui encontrados e
praticados por pessoas de múltiplas etnias indígenas, e a população branca.
As comunidades remanescentes de quilombos se constituíram a partir de seus
processos históricos, sociais e políticos, porém foi se reinventando de acordo com
as dinâmicas sociais e políticas, como bem aponta CUNHA (1986). Através da rela-
ção comunitária e suas simbologias reais ou imaginadas os membros das comuni-
dades quilombolas, mantem e preserva seu processo identitários de forma ideoló-
gica e política.

POLÍTICAS PÚBLICAS, COMUNIDADES QUILOMBOLAS E AS


MULHERES
Apesar dos mais de 130 anos da abolição da escravatura, a formalização dos
direitos quilombolas se efetiva a partir da Constituição de 1988. Decorrente prin-
cipalmente da luta dos movimentos negro, social e feminista para acessar direitos
constitucionalmente garantidos, dando maior visibilidade as comunidades rema-
nescentes de quilombos.
Os remanescentes quilombolas, estão contemplados por dispositivos legais im-
portantes e específicos, que abrange desde a Constituição Federal de 1988 com o
artigo 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias; Decreto 4887/2003
(que determina os procedimentos para identificação, reconhecimento, demarca-
ção e titulação das terras ocupadas por quilombolas); os artigos 215 e 216, CF/88,
que tratam dos direitos culturais; Tratados Internacionais, como a Convenção 169,
da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que garante às comunidades tra-
dicionais o direito de se autodefinirem; artigos específicos nas Constituições dos
Estados; Instruções Normativas nos órgãos que tratam da Questão Quilombola,
como o INCRA (IN 57), a Fundação Cultural Palmares, a SEPPIR, além da Resolução
34, do Ministério das Cidades, 5º, II, que prevê, para os municípios obrigados ao

138 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Plano Diretor (com mais de 20 mil habitantes), a demarcação dos territórios ocu-
pados por comunidades tradicionais, como os quilombolas, no município. Todos
avanços importantes na luta por políticas públicas identitárias, que valorizam o
processo histórico e a identidade2 cultural das comunidades.
Com as transformações do século XX, os movimentos negros ganham força na
luta e no enfrentamento das desigualdades sociais, inclusive com papel de enfati-
zar o processo de desigualdades e segregação racial no Brasil.
Desse modo, algumas entidades sociais, se alinham a luta quilombola e passam
a apoiá-la na busca por direitos, como o Movimento Negro Unificado (MNU), a Co-
missão Pastoral da Terra ( CPT), entre outras entidades que buscaram uma articula-
ção nacional numa perspectiva estratégica criam a Coordenação Nacional de Arti-
culação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas ( CONAQ), em maio de 1995,
o movimento CETA, em 2000, possibilita a incorporação de comunidades em seus
quadros na CONAQ, em 2004, a Coordenação Regional de Quilombos, CRQ, passa
a representar a luta das comunidades quilombolas na região do Rio São Francisco3.
Assim, a luta quilombola passa a contar com articulações importantes na Bahia,
para a luta organizada que se amplia com a formação e participação política que
possibilita as pessoas da comunidade, um olhar analítico e crítico sobre aquilo que
se deseja e necessita para o desenvolvimento local, exigindo dos movimentos jus-
tamente essa mudança de visão e prática.
A partir da década de 1980, o avanço no campo das políticas públicas se consti-
tui na medida em que a concepção entre orçamento e receita precisam manter-se
equilibrados, a questão de ajuste fiscal.
Neste mesmo período, a conotação dada ao campo das políticas pública, ga-
nham uma outra visão, uma vez que o desafio era e ainda é desenhar políticas
capazes de impulsionar o desenvolvimento e ao mesmo tempo superar as desi-
gualdades sociais.
De acordo com a cientista política, Celina Souza (2006, p. 26), entre as mais
diversas formulações que existem sobre o conceito de políticas públicas, pode-se
afirmar que:

o campo do conhecimento que busca, ao mesmo tempo, colocar


o governo em ação e/ou analisar essa ação (variável dependen-
te). A formulação de políticas públicas constitui-se no estágio
em que os governos democráticos traduzem seus propósitos e
plataformas eleitorais em programas e ações que produzirão re-
sultados ou mudanças no mundo real.

2 Como mostra Kabengele Munanga, a respeito da dificuldade em se estabelecer o conceito de


identidade: “recobre uma realidade muito mais complexa do que se pensa, envolvendo fatores históri-
cos, psicológicos, linguísticos, culturais, políticos, ideológicos e raciais”. Citado por SILVA (2003)
3 Hoje Território de Identidade Velho Chico.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 139


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Porém, para promover as mudanças e resultados neste mundo real, é preciso
que o processo de formulação de políticas públicas dialogue com as bases locais,
sociedade, movimentos sociais e grupos que defendem suas pautas identitárias.
É do conhecimento dos estudiosos e profissionais que desenvolvem ações so-
ciais com estes segmentos, o trabalho árduo, desgastante e cotidiano dos quilom-
bolas na perspectiva de terem seus direitos garantidos efetivamente, principal-
mente das mulheres. Que enfrentam um processo de desigualdade e invisibilidade
mesmo naqueles casos em estão lutando em pé de igualdade para ter seus direitos
garantidos. A elas mesmo estando na luta, são reservados os bastidores, ou seja,
apesar de lutar ativamente para alcançar os anseios e necessidades dos grupos,
comunidades e movimentos que fazem parte, a elas não é atribuído o devido valor
na luta, como bem podemos visualizar:

Frequentemente, um certo grau de invisibilidade envolve ques-


tões relativas a mulheres marginalizadas, mesmo naquelas cir-
cunstâncias em que se tem certo conhecimento sobre seus pro-
blemas ou condições de vida (KIMBERLÉ, 2002, p.32).

O contexto rural é diverso, complexo e multifacetado. Exigindo da ação públi-


ca, uma visão interseccional na consolidação das políticas públicas, e para isso, é
necessário orçamento, compromisso com as causas raciais, de gênero e de classe
questões constituidoras das desigualdades no campo. Esta associação das múl-
tiplas formas de subordinação sofridas pelas mulheres difundidas por Kimberlé
Crenshaw (2002), evidencia como ao longo da história; o patriarcado, o racismo e
a opressão de classe estão intrinsicamente na vida dessas mulheres, e mais ainda
como se reproduzem no cotidiano atualmente.
Para Crenshaw (2020, p. 177) esses sistemas de subordinação se cruzam e se
sobrepõem criando intersecções complexas:

“as mulheres racializadas frequentemente estão posicionadas


em um espaço onde o racismo ou a xenofobia, a classe e o gê-
nero se encontram. Por consequência, estão sujeitas a serem
atingidas pelo intenso fluxo de tráfego em todas as suas vidas”.

É com essa abordagem que demanda um olhar interseccional, que se revela os


danos e as consequências causados na vida dessas mulheres e mais ainda como
elas driblam a tripla discriminação em que estão submetidas para alcançar melho-
res condições de vida e elevar sua autoestima a luz de autonomia para a superação
dessas desigualdades.
Um avanço importante na implementação de políticas públicas para as comu-
nidades quilombolas foi a elaboração do Programa Brasil Quilombola (PQB) em
2004, uniu entes federativos coordenados pela Secretaria Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) para uma reparação histórica de ausências
das políticas públicas em comunidades quilombolas, uma vez que o documento

140 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
guia reúne passos para o acesso das comunidades e famílias às políticas públicas,
numa tentativa de minimizar as diferenças e desigualdades raciais nestas localida-
des, pois:

Estabelece uma metodologia pautada em um conjunto de ações


que possibilitem o desenvolvimento sustentável dos quilombo-
las em consonância com suas especialidades históricas e con-
temporâneas, garantindo direitos à titulação e a permanência
na terra. (Brasil, 2004)

O programa foi fundamental para o avanço das políticas estaduais, por exem-
plo, na Bahia a criação da Secretaria de Promoção da Igualdade do Estado da Bahia
(SEPROMI), em 2006, com o objetivo de planejar, executar e articular ações volta-
das para as questões de raça e gênero especificamente no Estado da Bahia.
Visando a integração das ações, o governo em 2009, com o Decreto 11.850 de
20 de novembro de 2009, estabelecendo a Política Estadual para as Comunida-
des remanescentes de Quilombos, a partir do Grupo Intersetorial para Quilombos
(GIQ) que dispõe da identificação, demarcação e limitação e titulação das terras
devolutas do Estado para essas comunidades.
A criação da SEPROMI, proporcionou ações especificamente voltadas para as
comunidades quilombolas no planejamento plurianual do Estado (PPA). Ações
importantes de regularização fundiária, inclusão produtiva, organização, acesso a
saúde, educação, além de equidade de gênero e raça temas tratados como trans-
versais em todas as demais ações.
Uma série de programas importantes que foram executados a partir de 2007,
possibilitou melhores condições de vida da população na zona rural, a exemplo do
Programa Luz para Todos, que possibilitou eletrificação rural, Programa Água para
todos, priorizando a água para uso doméstico, entre outros.
A criação da Secretaria Estadual de Políticas para as Mulheres (SPM - Bahia)
em 04 de maio de 2011, através da Lei 12.212, foi um passo importante na luta
feminista e dos movimentos de mulheres no Estado da Bahia. Mas com uma ação
orçamentária baixa, a SPM avançou pouco na consolidação das políticas públicas
para as mulheres, principalmente no meio rural.
Importante ressaltar, que apesar dos avanços apontados e da criação de polí-
ticas específicas para comunidades quilombolas nos últimos anos, ainda há muito
por fazer e desenvolver junto as comunidades, principalmente no que tange as re-
ais necessidades do povo quilombola, são necessários mais diálogo e sensibilidade
por parte da gestão pública.
Uma das mais significantes dificuldades para implementação das políticas públi-
cas destinadas às Comunidades Remanescentes de Quilombos é a execução orça-
mentária dos programas destinados a elas.
O Orçamento Quilombola era composto por Programas: Gestão da Política de
Desenvolvimento Agrário, Cultura Afro-Brasileira, Comunidades Tradicionais e Bra-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 141


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
sil Quilombola, conforme o Portal SIGA Brasil, do Senado Federal. Porém atual-
mente, estão evidentes como estão compostos esses orçamentos, uma vez que a
política do Governo federal não prioriza as ações com essas comunidades.

CONCLUSÕES
O reconhecimento, pelo Estado brasileiro, dos remanescentes de quilombos en-
quanto sujeitos de direitos, que devem gozar das garantias constituídas, significou
uma grande vitória aos movimentos sociais atuantes por uma sociedade mais igua-
litária e por ações de cunho redistributivo.
As políticas públicas criadas apresentam alguns avanços na luta quilombola,
apesar de recentes e dos desafios para sua implementação, especialmente, ao se
pensar que as políticas identitárias requer compromissos alicerçados na construção
de uma nova sociedade. Os desafios encontrados para a execução orçamentária,
a capacitação de pessoal, a interlocução entre as instâncias de governo e demais
vícios da administração pública e dificuldades de implementação dos programas,
evidenciam a necessidade de se analisar as estratégias utilizadas para sua gestão,
avaliação e monitoramento.
É indispensável um conhecimento aprofundado dos conteúdos histórico e so-
ciais que tange as questões de raça, gênero, etnia e classe no Brasil, que possibili-
tem interpretar os resultados e elaborar políticas públicas que possam de fato ser
comprometidas com as mudanças necessárias a uma nova logica social.
É evidente a necessidade de um diálogo cada vez maior com as mulheres negras,
nas comunidades quilombolas, para que possam gozar do direito de interferir em
suas realidades, de forma positiva, de acordo com a vontade coletiva, propiciando
seu desenvolvimento sustentável, zelando de suas tradições e produzindo cultura.
É preciso enxergar a população, sobretudo as mulheres negras, como agentes
de seu próprio desenvolvimento, desassociada da ideia de passado e sim numa
perspectiva atual de vida comunitária alicerçada numa identidade cultural, como
bem diz HALL, (2005, p. 38):

a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo,


através de processos inconscientes, e não algo inato, existen-
te na consciência no momento do nascimento, ela permanece
sempre incompleta, está sempre “em processo” sempre sendo
formada.

Nesta perspectiva de HALL, compreende-se que há um processo evolutivo de


construção da identidade cultural, principalmente na perspectiva coletiva, onde
a dinâmica sociocultural é uma das responsáveis pela construção da identidade.
A perspectiva interseccional é fundamental na compreensão do contexto sócio-
histórico no processo de formulação das políticas públicas. como Karla Akotirene,
em “o que é interseccionalidade?” (2018),

142 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
“é imprescindível, insisto, utilizar analiticamente todos os senti-
dos para compreendermos as mulheres negras e as “mulheres
de cor” na diversidade de gênero, sexualidade, classe, geografias
corporificadas e marcações subjetivas” (AKOTIRENE, 2018:43).

Enfim, para a consolidação efetiva de políticas públicas estruturantes e com-


prometidas com as mudanças sociais de gênero e raça, com representatividade é
necessário compromisso político, e mais ainda uma ruptura com as estruturas de
poder, muitas vezes desconhecedoras das questões culturais, sociais e históricas
do Brasil, que possuem visões estereotipadas das comunidades de remanescentes
de quilombos.

REFERÊNCIAS

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tificando, 2018.

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Guaracira Lopes Louro. 10ª Ed. Rio de Janeiro: LP&A, 2005.

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SILVA, Martiniano José. Quilombos do Brasil Central: Violência e Resistência Escrava. Goi-
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dade e relações Interéticas, Ano I, nº 2, 1991, UFSC.

AUTORIA
Carla Silva Ferreira
UFBA/POS-AFRO
E-mail: carlaferreiraf1@gmail.com

144 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 25
Intelectuais e
feministas negras
em ruptura com a
invisibilidade
ENTRE A SÍNDROME DA IMPOSTORA E O
EPISTEMICÍDIO; MULHERES NEGRAS E AS
MULTIDIMENSÕES DE SILENCIAMENTO

Sunshine Cristina de Castro Reis Santos


Jaquileude Araújo Martins

“A fala verdadeira não é somente uma expressão de poder criativo;


é um ato de resistência, um gesto político”.
bell hooks

INTRODUÇÃO
O presente artigo aborda a dupla implicação da fala das mulheres negras, o silên-
cio pautado no medo de se manifestar e o silenciamento projetado à aquelas que
ousaram falar, nesse sentido buscamos refletir as dimensões que fundamentam
politicas feministas, direcionando o olhar para análise dos possíveis impactos do
cruzamento de gênero e raça na produção intelectual de mulheres racializadas, a
complexidade de transitar entre repreensões sociais e históricas que são interna-
lizada e o posicionamento desafiante de transgredir estruturas dominantes, con-
figurando-se em uma transição de objeto a sujeito. Com base em uma pesquisa
bibliográfica, tendo como marco teórico os pensamentos da escritora estaduni-
dense Gloria Jean Watkins, mais conhecida pelo pseudônimo bell hooks, proponho
um diálogo da obra Erguer a voz: pensando como feminista, pensando como negra
(1952) e as considerações da filosofa brasileira Sueli Carneiro sobre epistemicí-
dio, chegando à conclusão que são múltiplas as dimensões das violências imposta
pela interseccionalidade, sendo crucial o aporte analítico tanto na esfera individual
quanto coletiva, visto que as violências sistêmicas se configuram simultaneamente
em âmbitos privados e públicos, torna-se fundamental a compreensão do pessoal
como político tanto quanto o sociocultural. Nesse sentido visamos contribuir para
fortalecimento do rompimento dos efeitos coloniais no que tange o fomento da
fala como exercício emancipatório e de autorecuperação, assim como a rompi-
mento da invisibilidade da intelectualidade de feminista negras e as contra-narra-
tiva ao pensamento hegemônico, uma vez que é necessário privilegiar tanto a fala
quanto o discurso.
A nossa autoimagem é um reflexo da socialização, logo está imbricado com
opressões estruturais que internalizamos, nossa percepção individual é afetada pe-
las conjunturas socioeconômicas, educacionais e familiares que estamos imersos.
Comportamentos que são lidos como características singulares, apresentam pe-
culiaridades coletivas se analisados pelo viés histórico, grupos sociais que sofrem

146 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
violência sistêmica estão inclinados ao desenvolvimento de uma autopercepção
corrompida pela ótica da desumanização.
Mulheres negras tem a sua identidade forjada na encruzilhada de gênero e raça,
sofrendo simultaneamente com o sexismo e o racismo, que na maioria das vezes
ainda recebem opressões da categoria de classe como acréscimo, fatores que po-
dem desencadear a síndrome da impostara. Segundo Matos (2014), a síndrome
da impostora é uma construção multidimensional que dificulta a apropriação do
sucesso, que pode se apresentar como os sentimentos de fraude e medo, sendo
empecilho para o desenvolvimento, a autora relata que a síndrome foi descoberta
por Clance e Imes (1978), através do estudo de cem mulheres brancas, classe mé-
dia e bem sucedidas que negavam o seu sucesso e acreditando em sua inadequa-
ção intelectual, o que teria origem na supervalorização masculina, ou seja estaria
pautado em uma cultura patriarcal, mesmo que não se restringindo ao gênero, “
Nesse sentido, pessoas que enfrentam expectativas de estereótipo, como negros,
homossexuais e deficientes, tendem a se sentir impostores”(MATOS,2014).
No que se refere ao cruzamento de opressões que mulheres negras são expos-
tas, é necessário ressalta que “É mais fácil lidar com as manifestações externas do
racismo e do machismo do que com as consequências dessas distorções interna-
lizadas na percepção que temos de nós” (LORDE, 2019). Segundo Lorde (2019) é
necessário que mulheres negras aprendam a se libertar do veneno que foi obrigada
a ingerir, rompendo com aprendizado da arte da destruição, o único conhecimento
que nos foi permitido, através de cicatrizes compartilhada, “ Um emaranhado de
carência, medo, desconfiança, desespero” (LORDE, 2019).
O atravessamento desse emaranhado é um processo de autodefinição, é vis-
lumbra a possibilidade de erguer a voz, e se fazer sujeito, não é uma tarefa fácil
abandonar a linguagem social de inautenticidade intelectual, a desconfiança em
nos mesma, e quando feito, embarramos no epistemicídio, visto que é impossível
ser boa o bastante, “Por melhor que você seja, você ainda é uma mulher negra”
(LORDE, 2019). Buscando analisar o silêncio pautado no medo de se manifestar
e o silenciamento projetado à aquelas que ousaram falar, investigamos as mul-
tidimensões da vulnerabilidade enraizada e velada, que são imposta a mulheres
racializada, no exercício de se dar “luxo” de examinar nossas emoções, em um
rompimento na “ Gente branca sente, gente negra faz” (LORDE, 2019), procurando
compreender a nossa existência para além da sobrevivência.

SABOTAGEM OU AUTOPROTEÇÃO?
Segundo hooks (2019), o silêncio é visto como o “discurso correto de feminili-
dade”, ou seja, erguer a voz é caracterizado como exercício de atrevimento, um
ato de ousadia, que tem um certo risco. A autora ressalta que mulheres negras não
são configuradas como silenciosas, visto que a sua problemática não estaria cen-
tralizada na impossibilidade de transitar entre os silêncio e a fala, mas na projeção

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 147


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
que essa fala normalmente é consolidada, sendo muita das vezes tipificadas como
monólogos, o que ela identifica como conversas ao vento.
Um dos pontos cruciais levantado pela autora, estar para além das falas de mu-
lheres racializadas serem posta como “música de fundo, audível, mas não reconhe-
cida como uma fala significativa” (HOOKS, 2019), estaria no medo da exposição,
medo dos seus sentimentos e pensamentos serem ridicularizados, se tornando
mais um dos motivos de chacota e violação. Requerer o direito a voz, é simultane-
amente um ato de resistência e vulnerabilidade, pois ao mesmo tempo que a fala
é um privilégio, um certo “luxo”, é também um convite a renúncia da segurança.

Para nós, a fala verdadeiramente não é somente uma expressão


de poder criativo; é um ato de resistência, um gesto político que
desafia políticas de dominação que nos conservam anônimos e
mudos. Sendo assim, um ato de coragem – e, como tal, repre-
senta uma ameaça. Para aqueles que exercem o poder opressi-
vo, aquilo que é ameaçador deve ser necessariamente apagado,
aniquilado e silenciado. (HOOKS, 2019, pg.36).

Segundo Lorde (2019) dentro de nós mulheres existe um lugar sombrio de onde
emerge nosso pesadelo de fraqueza e impotência, mas é também na profunde-
za do nosso interior que existe uma reserva incrível de criatividade, um lugar de
poder, um lugar de difícil acesso, devido a localização de emoções e sentimentos
não examinados e registrados. Para a autora o tipo de iluminação que recebemos,
influencia diretamente a maneira que vivemos e formatamos nossas ideias, ela
acredita que quando suportamos a investigação sensorial, “os medos que dominam
nossa existência e moldam nossos silêncios começas perder seu controle sobre
nós” (LORDE, 2019).
Dentro de uma trajetória negra feminina que é demarcada por ausência de re-
presentatividade, muitas das vezes a educação formal e até mesmo infraestrutura
socioeconômica, não condicionar a respeitabilidade sentimental, e a transformar
em linguagem é categorizado como um “luxo” que muitas mulheres negras não se
submetem, sendo a síndrome da imposta um dos possíveis fatores. Segundo as
considerações de Matos (2014) a síndrome da impostora não estaria ligada a uma
questão patológica, mas a leitura da própria imagem, ou seja, uma crença distorci-
da da sua competência, o que resultaria em episódios de fraudes, com ciclos com-
portamentais de origem socioculturais e coletivas, mas com consequências indivi-
duais.
Entres os comportamentos limitadores estariam o excesso de preparado, o ín-
dice alto de exigência, e até mesmo procrastinação, atitudes que minam a capacida-
de. E mesmo quando sucesso é evidente, o mesmo é atribuído a fatores externos,
sempre subestimando a intelectualidade, um exemplo que podem citar, é quando
a bell hooks relata a dificuldade de reivindicar a palavra escritora como parte da
sua identidade, mesmo depois de publicar livros:

148 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Parte de mim ainda era mantida em cativeiro por forças domi-
nadoras da história, pela minha vida familiar que havia traçado
um mapa de silencio, de fala correta, eu não tinha me libertado
totalmente do medo de dizer a coisa errada, de ser punida. Em
algum lugar nos recônditos da minha mente, eu acreditava que
podia evitar tanto a responsabilidades quanto a punição de não
me declarasse escritora. (HOOKS, 2019, pg.37).

Para Kilomba (2019), o relato de hooks seria um episódio do racismo cotidiano,


o ela considera uma reencenação de um passado colonial, ou seja, um trauma me-
morizado, evidenciando que “O colonialismo é uma ferida que nunca foi tratada.
Uma ferida que dói sempre, por vezes infecta, e outras vezes sangra.” (KILOM-
BA,2019). Nesse sentido a autora ressalta que ficamos presas as cenas do passado
que constantemente são invocados, sendo intangível o esquecimento desse passa-
do, pois o mesmo faz parte do presente.
Segundo Kilomba (2019), a violência do racismo cotidiano não é uma exclusivi-
dade de uma biografia individual, mas o acumulo de eventos violentos, um padrão
histórico de abusos, como Luiza Barros enfatizou “ Carregamos a marca”, a marca
da outridade, marca essa que podem ver no silêncio um lugar seguro, um exercí-
cio de autoproteção, mesmo sendo uma terra fértil para brotar as os frutos das
opressões coloniais. Mas precisamos salientar que ao falar nos tornamos sujeitos
da nossa própria história, mesmo que este ato esteja marcado pelo medo.

Às vezes, escrever se transforma em medo. Temo escrever, pois


mal sei se as palavras que estou usando são minha salvação ou
minha desonra. Parece que tudo ao meu redor era e ainda é
colonialismo. (KILOMBA, 2019, pg.66)

O EXERCÍCIO DE AUTORECUPERAÇÃO:
A OUSADIA DE ERGUER A VOZ
De acordo com Lorde (2019) recebemos uma socialização que estimula mais o
medo do que a necessidade de linguagem e significação, e na espera do destemor,
somos imobilizadas e sufocadas pelo silêncio. A autora ressalta que verbalizar nun-
ca é sem medo, pois o processo de transformação de silêncio em linguagem é car-
regado de perigo, visto que é essa ação é um ato percepção individual, mas enfatiza
que seus silêncios não a protegerão, logo os nossos não iram nos proteger, então
não podemos morrer sem nos manifestar, precisamos quebrar esses silêncios.

Porque a máquina vai tentar nos reduzir a pó de qualquer ma-


neira, quer falamos quer não. Podemos ficar eternamente cala-
das pelos cantos enquanto nossas irmãs e nós somos diminuídas,
enquanto nossos filhos são filhos são corrompidos e destruídos,
enquanto nossa terra é envenenada; podemos ficar calada a

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 149


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
salvo nos nossos cantos, de bico fechado, e ainda sim o nosso
medo não será menor. (LORDE, 2019, pg.54).

Kilomba (2019) discorre sobre a máscara do silenciamento, lembrado da Anas-


tácia, e o simbolismos do projeto colonial fincado em nossa psique, como memo-
rial vivo da instrumentalização do senhoril branco para a implementação da mu-
dez, como parte da política de dominação. A autora questiona: Quem pode falar? O
que acontece quando falamos? E sobre o que podemos falar?
Torna-se notório o alinhamento do pensamento das intelectuais negras sobre
o processo da fala, Kilomba assim como bell hooks acredita que a problemática
não está no ato de falar em si, mas a dificuldade de falar dentro da governança do
colonialismo e racismo, salienta que a subalternidade gera o silenciamento devido
essas vozes não serem escutadas e compreendida pelo que estão no poder, sen-
do a marginalidade um posicionamento de confinamento que o pós- colonialismo
prescreve, enfatizando que “No entanto, grupos subalternos – não têm sido nem
vitimas passivas nem tão pouco tampouco cúmplices voluntárias /os da domina-
ção” (KILOMBA,2019).
Todavia é crucial as reflexões da autora sobre o mito do conhecimento universal
e os entrelace com poder racial, nesse sentindo evidencia que a academia não é
um lugar neutro, mas um espaço de privilegio branco, no que diz respeito a fala,
convertendo-se em alguns momentos em recinto de violência, onde sistematica-
mente nossas vozes são desqualificada e nosso conhecimento invalidados, catego-
rizados como não científico, posicionando nossos discursos as margens.

Eles permitem que o sujeito branco posicione nosso discurso de


volta nas margens, como conhecimento desviante, enquanto
seus discursos se conservam no centro, como norma. Quando
elas/eles falam é científico, quando falamos é acientífico.
universal / especifico;
objetivo / subjetivo;
neutro / pessoal;
racional / emocional;
imparcial / parcial;
elas/eles têm fatos/nós temos opiniões;
ela/eles têm conhecimento / nós temos experiências
(KILOMBA, 2019, pg.52)

Segundo bell hooks (2019), “a linguagem é também um lugar de luta. O opri-


mido luta na linguagem para recuperar a si mesmo – para reescrever, reconciliar,
renovar”. Para autora a linguagem é lugar de ler a si mesmo, uma ação de resistên-
cia, para reunir, reconciliar e renovar, ela relata a sua luta para ser uma mulher de
palavra, para falar em uma entrevista de emprego, para terminar a pós graduação,
escrever uma dissertação.

150 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O contexto acadêmico, o discurso acadêmico, no qual eu tra-
balho, não é conhecido por dizer verdades. Não é um lugar em
que os oprimidos nos juntamos para falar sobre a nossa saída
da servidão, para escrever nossos caminhos em direção a liber-
dade, publicar artigos e livros que façam mais do que informar,
que testemunhem, que sejam testemunhas da importância da
luta, de nossos esforços coletivos para transformar. Porém essa
é a nossa necessidade mais urgente, a mais importante de nosso
trabalho – trabalho de libertação. (HOOKS, 2019, pg.74).

De acordo com bell hooks (2019) vivenciamos um contexto cultural que somos
conduzidos a um aprendizado dentro dos termos linguísticos da branquitude, assi-
milamos a hegemonia dominante, aprendemos a língua do opressor, sendo difícil
transitar para além versão do que podemos fazer, que ela categoriza como rasa e
vazia, exemplificado como “ meros imitadores dos nossos opressores”. A autora é
enfática nas suas colocações, acreditando assim que a liberdade só se torna pos-
sível com uma visão transformadora da nossa consciência, do nosso próprio ser, o
que demandaria a criação de uma nova linguagem, um discurso opositor.
Conforme o pensamento de bell hooks erguer a voz, estaria no ato de se mover
de objeto para sujeito o que se tornaria um processo de autorrecuperação, ou seja
o esforço do oprimido para desenvolver entendimento das forças que o oprimem,
uma investida na pedagogia da libertação, educando para uma consciência crítica,
seria um atributo essencial para uma resistência efetiva, significativa, e uma trans-
formação revolucionária.

A TRANSIÇÃO DO SILÊNCIO PARA O SILENCIAMENTO


A sociabilidade fruto do colonialismo é pautada na manutenção de lugares
pré- estabelecidos em uma lógica de dominação, que são constantemente retroa-
limentados. Quando mulheres negras rompe com essa dialética, se deparam com o
silenciamento em um dinamismo de imposição do não ser, configurando-se em um
epistemicídio sistêmico.
Segundo Carneiro em sua tese de doutorado “O Não-ser assim construído afir-
ma o Ser. Ou seja, o Ser constrói o Não-ser, subtraindo-lhe aquele conjunto de ca-
racterísticas definidoras do Ser pleno.” A autora utiliza para embasamento teóri-
co o pensamento Boaventura Sousa Santos (1997), para quem o epistemicídio se
constituiu e se constitui num dos instrumentos mais eficazes e duradouros da do-
minação étnica/racial, pela negação que empreende da legitimidade das formas de
conhecimento produzido pelos grupos dominados, e consequentemente de seus
membros enquanto sujeitos de conhecimento.

O epistemicídio é, para além da anulação e desqualificação do


conhecimento dos povos subjugados, um processo persistente
de produção da Indigência cultural: pela negação ao acesso à

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 151


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
educação, sobretudo de qualidade; pela produção da inferiori-
zação intelectual; pelos diferentes mecanismos de deslegitima-
ção do negro como portador e produtor de conhecimento e de
rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/
ou pelo comprometimento da auto-estima pelos processos de
discriminação correntes no processo educativo. Isto porque não
é possível desqualificar as formas de conhecimento dos povos
dominados sem desqualificá-los também, individual e coletiva-
mente, como sujeitos cognoscentes. E, ao Fazê-lo, destitui-lhe a
razão, a condição para alcançar o conhecimento “legítimo” ou
legitimado. (CARNEIRO, 2005, pg.97).

Carneiro apresenta o conceito de epistemicído como “função estratégica em


conexão com a tecnologia do biopoder.” Ressaltando que o contrato racial presen-
te na estruturação de uma sociedade racista que impossibilita o exercício democrá-
tico, onde o negro inserido no signo da morte seja ela física ou simbólica resultante
de uma negação na contribuição estatal para fomento dessas atrocidades históri-
cas com função de permanecia de privilegio.

A negação da plena humanidade do Outro, a sua apropriação


em categorias que lhe são estranhas, a demonstração de sua
incapacidade inata para o desenvolvimento e aperfeiçoamento
humano, a sua destituição da capacidade de produzir cultura e
civilização prestam-se a afirmar uma razão racializada, que he-
gemoniza e naturaliza a superioridade europeia. (CARNEIRO,
2005, pg.99).

Como reitera a autora “O conceito de epistemicídio nos permite organizar esse


conjunto de questões a partir de uma concepção epistemológica norteadora da
produção e reprodução do conhecimento”. (CARNEIRO, 2005, pg.97). Logo com-
preender o epistemicídio como extermínio da racionalidade que transita entre a
negação da razão e a assimilação cultural imposta, como uma arma de disciplinar,
normalizar, que anula ou mata a intelectualidade tanto na esfera individual quanto
coletiva, torna-se crucial para uma reflexão das multidimensões de silenciamento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Portanto, a partir dessa análise, as mulheres negras não devem se calar por medo
de serem julgadas, da visibilidade ou da análise mal-intencionada, elas precisam
verbalizar e compartilhar, até pra tentar aliviar a carga que é sobreviver em uma
sociedade sexista e racializada, além do que, elas sofrem com isso estando em si-
lêncio ou verbalizando. É preciso a superação do medo, pois o silêncio não diminui
a opressão, apenas mantém reféns dessas relações de poder.
Não basta o entendimento de que “Se nós não nos definirmos, outros nos defini-
rão, tendo em vista, seu próprio benefício em detrimento do nosso” (LORDE, 2003,

152 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
p. 26). Temos a urgência de uma perspectiva que compreenda a identidade for-
jada na encruzilhada, refletir sobre a complexidade dos atravessamentos e viola-
ção posta a mulheres racializada, transgredir imagens de controle. Segundo Collins
(2019) as imagens de controle são estruturadas e estruturantes em características
interseccionais, nesse sentindo a produção de mulheres para além exercício eman-
cipatório e de autorecuperação, torna-se um confronto direto ao epistemicídio e a
inviabilidade da intelectualidade feminina negra.

REFERÊNCIAS

CARNEIRO, Aparecida Sueli. Construção do Outro como Não-Ser como fundamento do


Ser. Feusp. 2005. Disponível em: <http://ttps://negrasoulblog.files.wordpress.
com/2016/04/a- construc3a7c3a3o-do-outro-como-nc3a3o-ser-como-fundamento-
-do-ser-sueli-carneiro- tese1.pdf>. Acesso em: 06 dez. 2018.

COLLINS, Patricia Hill. Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a polí-


tica do empoderamento. Tradução Jamille Pinheiro Dias. 1ª edição. São Paulo: Boi tempo
Editorial, 2019. 495 p.

HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Trad. Cátia Bocaiu-
va Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo quotidiano. Lisboa: Orfeu


Negro, 2019.

Lorde, Audre. Irmã outsider. tradução Stephanie Borges. 1. Ed. Belo Horizonte: Autêntica
Editora, 2019.

LORDE, Audre. La hermana, la extranjera. Madrid: Horas y Horas, 2003.

MATOS, Patricia Andréa Victorio Camargo de. Síndrome do impostor e auto-eficácia de mi-
norias sociais: alunos de contabilidade e administração. 2014. Dissertação (Mestrado em
Controladoria e Contabilidade: Contabilidade) - Faculdade de Economia, Administração e
Contabilidade, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. doi:10.11606/D.12.2014.tde-
07012015-175044. Acesso em: 2020-07-21.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 153


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
AUTORIA
Sunshine Cristina de Castro Reis Santos
Graduanda do Curso de Turismo da Universidade Federal do Maranhão – UFMA
E-mail: sanycastro12@hotmail.com
Lattes: https://wwws.cnpq.br/cvlattesweb/PKG_MENU.menu?f_cod=AB729E4D-
089DB5F6C670AD3BBF60 1340#

Jaquileude Araújo Martins


Graduanda do Curso de Estudos Africanos e Afro-Brasileiros da Universidade Fede-
ral do Maranhão –UFMA
E-mail: jaquileudemartins@gmail.com
Lattes: https://wwws.cnpq.br/cvlattesweb/PKG_MENU.menu?f_cod=B-
0788C0E555574B4D8549B9 7D92A0D23

154 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
COR/RAÇA, GÊNERO E CLASSE NOS
RAPS DE CANTORAS NEGRAS À LUZ DA
INTERSECCIONALIDADE DO FEMINISMO NEGRO
Sandra Mara Pereira dos Santos

INTRODUÇÃO
O rap1 é o gênero musical de uma cultura reflexiva, educativa e com aspectos
de resistência política, que é o Hip-Hop. Os (as) praticantes do rap e estudiosos (as)
desse gênero musical reconhecem que foi por volta de 1970 nos Estados Unidos,
que jovens caribenhos e afro- estadunidenses iniciaram e/ou passaram a registrar
em fita cassete, discos, vídeos, revistas e outras formas de mídias os elementos do
Hip-Hop. A dança (break) e o grafite (arte visual) são mais duas das práticas artísti-
cas desse movimento.
Além dessas três formas de arte, entre os(as) praticantes do Hip-Hop discute-se
a possibilidade de que o trabalho do DJ2 e o objetivo dos hip-hoppers3 em propa-
gar conhecimentos aos (às) jovens mais carentes materialmente sejam, respec-
tivamente, a quarta e a quinta prática artística e política desse movimento. Pelo
fato do rap ser estilo musical e, por isso, portador de um dinamismo particular em
relação às demais artes que caracterizam o Hip-Hop, e ainda devido a necessidade
de seguir uma delimitação de análise científica, este texto trata apenas desta mo-
dalidade musical.
As cantoras negras do rap brasileiro explicitam em suas letras, poesias, relatos
e outros similares, muitas vivências socioeconômicas no que se refere, principal-
mente, ao grupo feminino negro das classes baixas. Dessa maneira, elas possuem
um importante papel na construção de saberes críticos contra diversas formas de
violência no espaço público e doméstico. As cantoras criam narrativas e repre-
sentações da realidade social, que apresentam um potencial de contribuir para o
desenvolvimento de um debate coletivo periférico feminino e negro, que atuam
como modelos para muitas mulheres das periferias do Brasil. No livro organizado
pela cantora Preta Rara, intitulado “Eu, empregada doméstica: a senzala moderna
é o quartinho da empregada”(2019), há, por exemplo, narrativas de mulheres ne-

1 O termo Rap é composto pelas iniciais rhythm and poetry (ritmo e poesia), tipo de música fa-
lada e rimada com tradição da oralidade de povos africanos, que foram obrigados a trabalharem como
escravos nas Américas.
2 Iniciais de disck-jockey (discotecário). Este é o profissional que coloca e/ou “arranha” (sam-
plea) os discos nos sintetizadores (bateria eletrônica) e nas pick-ups para as pessoas cantarem e/ou
dançarem.
3 São os (as) participantes assíduos (as) do Hip-Hop e as pessoas que praticam uma ou mais
arte desse movimento.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 155


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
gras que expressam um cotidiano vivido e pensado por elas e que informam como
as estruturas sociais de classe, gênero e raça se impõem sobre suas realidades do
dia a dia.
As letras de rap e/ou interpretações de cantoras negras desse estilo musical
expressam narrativas que trazem opressões e violências oriundas não somente da
classe alta e da branquitude, mas também reproduzidas por pessoas da classe bai-
xa, a exemplo da música “100% feminista”, em que a violência doméstica descrita
na letra ocorre na família de uma menina negra de classe baixa. O objetivo das
cantoras é que as mulheres negras periféricas sejam livres de todas as formas de
opressões e que são praticadas por qualquer grupo e classe social. Essa perspec-
tiva de liberdade é discutida pela autora negra estadunidense Patrícia Hill Collins
(2019), ao debater acerca da misoginia que cerca as mulheres negras nos Estados
Unidos. Nesse aspecto de machismo e racismo, em específico, tal debate dessa
autora pode ser uma referência para a problematização das práticas de misoginia
sobre as mulheres negras no Brasil. Sendo assim, à luz do debate teórico dos fe-
minismos negros, que intersecciona mais de uma estrutura e opressão social, este
texto circunscreve a relação social existente entre cor/raça, gênero e classe social
no cenário do rap feminino negro de cantoras brasileiras.

PERSPECTIVA POLÍTICA INTERSECCIONAL DE CANTORAS


NEGRAS DO RAP BRASILEIRO
A partir de um olhar analítico sobre as principais temáticas e questões sociais
explícitas e implícitas em letras de rap de algumas cantoras negras brasileiras,
como por exemplo, da Preta Rara e da Karol Conka, observa-se três discursos cons-
tantemente presentes nessas letras: o da carência econômica, da desigualdade de
gênero e do racismo.
Além das questões de raça, gênero e classe social, quando os/as artistas são
pessoas que não se autointitulam como cisgênero a questão da identidade de gê-
nero e/ou orientação sexual também ganha espaço nas narrativas das letras de rap.
Dessa forma, como resultado de conquistas dos movimentos sociais, em especial
do movimento LGBTQIA+, atualmente temos no Brasil um grupo de rap intitulado
“Quebrada Queer”4. A questão do corpo negro também é apresentada pela canto-
ra Preta Rara na canção intitulada “Falsa Abolição”, bem como outros aspectos da
interessecção entre essas três estruturas que estão presentes na prática discursiva
de mulheres negras brasileiras, como alguns trechos dessa canção revelam5:

4 Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=FwktAmgku68&list=RD6vFScgrx0aY&in-
dex=9. Acesso em 01 ago. 2019.
5 Disponível em https://www.vagalume.com.br/preta-rara/falsa-abolicao.html . Acesso em 05
jul. 2019.

156 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Meninas negras não brincam com bonecas pretas/Não me dão
oportunidade aqui pra nada/Sou revolucionária negra conscien-
te/Não uso o corpo, eu não me mostro, eu uso a mente/Mais
uma negra militante mostrando a cara/Sou quilombola, descen-
dente do guerreiro Zumbi/ Não é você sistema opressor, que vai
me impedir de sorrir/Treze de maio a falsa abolição, dos escra-
vos/A princesinha nos livrou e nos condenou/O sistema fez ela
passar como adoradora/Não nos deu educação e nem informa-
ção/Aprendi na escola da vida/Estudei me informando atrás de
sabedoria/Nossa cultura esquecida/Apagada e queimada/Na es-
cola nunca ouvi falar de Dandara. Discriminam as religiões afro-
-brasileiras/Luto pela minha cor/Tudo o que busco é por nós/ E
faço com amor, cabelo pixa-in, da pele preta/ Aparência não me
rebaixa, porque amor ser negra[...]6 ( PRETA RARA, 2014)

Preta Rara, como uma das compositoras dessa canção7, denuncia que a ausên-
cia de brinquedos com significados positivos da cor/raça negra contribui para a
permanência de uma autoimagem negativa das meninas e mulheres negras. Essa
ausência revela o racismo brasileiro na medida em que explicita a negligência e/
ou menor produção de brinquedos que representam as meninas negras do que
brinquedos que expressam significados de branquitude.
Em uma alusão a um dia em que Preta Rara também foi uma menina negra que
não teve uma boneca preta, a menina da música (que representa muitas outras)
cresce, e pelas brechas do sistema capitalista e a partir da herança da luta políti-
ca dos movimentos negros e dos feminismos negros, consegue se inserir em um
projeto artístico contra formas de racismo, machismo e de desigualdade de classe
social.
Preta Rara passa a ser o que ela denomina, na letra, como “uma mulher revo-
lucionária”, visto que passa a ter consciência das razões étnico-raciais e de gênero
da ausência de bonecas negras na sua infância. Essa consciência conduz a cantora
a buscar em lideranças negras da história brasileira, as figuras que, se na sua infân-
cia não estiveram presentes, na vida adulta se fazem atuantes e constantemente
revisitadas por ela. Ao rememorar o significado social de figuras históricas da popu-
lação negra brasileira, como, por exemplo, Dandara, a cantora sugere para outras
mulheres negras e, principalmente, da classe baixa, que elas também podem e
devem aprender com a ancestralidade feminina negra.
Quando a cantora menciona: “Não uso corpo, eu não me mostro, eu uso a men-
te”, ela participa de um projeto de desconstrução de um corpo negro feminino
pensado exclusivamente para o trabalho braçal, da reprodução sexual e do prazer

6 Frequentemente, as canções e poesias de rap são escritas e divulgadas pelas suas composi-
toras em frases curtas e dentro de mais de uma estrofe. Esse formato possui relação com a tradição de
rimas construídas em um “estilo livre” da oralidade da cultura popular negra, mas devido a necessidade
de padronização das citações sugerida no modelo apresentado pelo XI Copene aos(às) autores(as),
neste texto as três citações das cantoras foram transcritas em um único parágrafo.
7 Essa canção foi gravada em 2014 quando a Preta Rara fazia parceria com uma outra cantora
negra, cujo nome da dupla era Tarja Preta. Atualmente Preta Rara segue carreira solo.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 157


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
sexual proporcionado apenas para os homens, e que não tem intelectualidade,
racionalidade e cultura. Assim, para que as mulheres negras não sejam inseridas
nessas formas de racismo e machismo, Preta Rara situa na letra uma construção
de uma nova identidade feminina negra, aquela que é quilombola, sábia, líder e
que é símbolo de liberdade. Tal construção da cantora em uma sociedade que ain-
da discrimina as mulheres negras tem um potencial de construção de referências
identitárias que desafia a branquitude como identidade universal. A autora brasi-
leira e negra Carla Akotirene (2019), nos auxilia a pensar esse universal no campo
da interseccionalidade: “A proposta de conceber a inseparabilidade do cishetero-
patriarcado, racismo e capitalismo está localizada no arcabouço teórico feminista
negro, e quem o nega comete epistemícidio e racismo epistêmico”(AKOTIRENE,
2019, p. 51).
Preta Rara também consegue contribuir para o questionamento da versão eli-
tista da branquitude: a de que a abolição da escravatura brasileira foi elaborada
pela Princesa Isabel, devido à sua bondade humana diante da perversidade da es-
cravidão negra no Brasil. Nesse sentido, a cantora contrapõe-se à versão histórica
que desconsidera as lutas, as revoltas, e as fugas da própria população negra para
os quilombos, ou seja, silencia as batalhas da negritude para obter espaços de li-
berdade e a abolição da escravatura. Tal qual a cantora elabora em suas reflexões,
a população negra, além de resistir à escravidão, participou de várias maneiras
da abolição da escravatura, e não foi apenas passiva e manobrada por setores da
branquitude.
Na letra ainda existe uma narrativa antirracista e antimachista, ou seja, Preta
Rara atua contra os sistemas de opressões de raça e de gênero (existentes desde
a travessia forçada da população negra da África para as Américas). Tal atuação da
cantora termina por elaborar uma forma de “agência” política ou resistência dian-
te de poderes hegemônicos. O reconhecimento dessa “agência” negra feminina é
necessário porque tem o poder de ser uma referência política para as mulheres
negras brasileiras na elaboração de novos caminhos contra leis, instituições, cos-
tumes, significados, práticas de grupos e classes sociais que ainda subjulgam essas
mulheres no Brasil atual.
No Brasil, não somente a tonalidade da cor da pele das pessoas distingue umas
das outras, mas também outras características físicas. No que se refere ao grupo
das mulheres negras, além da tonalidade da cor pele, os demais elementos do fe-
nótipo que são lidos socialmente ainda envolve, por exemplo, a textura do cabelo,
o formato do nariz, dos lábios, do quadril e nádegas. De modo geral e a partir de
uma visão depreciativa e racista, a textura do cabelo crespo da mulher negra é de-
nominada de ruim, o nariz é classificado como grande demais ou de “batata”, e os
lábios considerados grossos demais e o formato do quadril e nádegas das mulheres
negras são associados somente ao sexo. É para se contrapor a essa visão racista
e misógina que Preta Rara assume propositadamente, na letra, que seu cabelo é
“pixa in”. Aqui, a cantora ressignifica o termo: se, para as pessoas racistas, “pixa in”

158 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
é usado com um sentido pejorativo, na letra da música, ele ganha um sentido de
simplesmente textura capilar diferente de outras texturas.
Além da produção musical, Preta Rara organizou e produziu um livro intitu-
lado “Eu, empregada doméstica: a senzala moderna é o quartinho da emprega-
da”(2019), que traz relatos de abusos e tortura nos corpos e subjetividades das em-
pregadas domésticas em seus locais de trabalho. Alguns desses abusos e situação
de escravidão tiveram início quando as mulheres tinham apenas 7 anos de idade.
A própria Preta Rara narra, no início desse livro, alguns dos abusos que vivenciou
como empregada doméstica. Na quarta página do livro, a cantora apresenta uma
poesia, que foi inspirada em sua trajetória de vida como mulher, negra e da perife-
ria da cidade de Santos (SP), como mostra o trecho a seguir:

[...]Estuda menina/ Era o que me diziam/ Estudei, mas estou


aqui/ Eu não entendo/Oportunidade de serviços/Tive de monte.
Cozinheira, doméstica, babá, passadeira/Por que não me con-
tratam no shopping? Eu não entendo/ Esforcei-me tanto para
pagar um curso de secretária/E nunca entrei em um escritório/
Opa! Desculpa! Cometi um erro/ Já entrei sim! Pra arrumar tudo
e lavar o banheiro[...](PRETA RARA, 2019, p.4)

Um dos aspectos que chama a atenção neste trecho da poesia é que mudar de
profissão foi um dos objetivos de Preta Rara. Ela se preparou profissionalmente
para ser secretária, ou talvez vendedora em uma loja de shopping, para, assim,
sair do trabalho doméstico – um dos com menor valor social. Analisa-se o fato que,
um trabalho de secretária ou vendedora não permitiria que Preta Rara ascendesse
economicamente e mudasse de classe social, o que ela objetivou foi apenas al-
gum nível de mobilidade profissional. Porém, como evidencia o debate de Angela
Davis (2016), sobre as mulheres negras há simultaneamente uma hegemonia da
raça branca e do gênero masculino, opressões que atuam diretamente nas formas
precárias de trabalho, que essas mulheres da classe trabalhadora são obrigadas a
ocupar no sistema capitalista.
No período da escravidão negra no Brasil, as mulheres negras escravizadas eram
obrigadas a trabalharem no espaço doméstico. Tendo em vista que esse tipo de
trabalho – agora remunerado no capitalismo brasileiro – ainda é exercido, princi-
palmente, por mulheres negras da classe social baixa (PINHEIRO, FONTOURA, QUE-
RINO, BONETTI &ROSA, 2009), é possível afirmar que ele é uma continuidade dos
sistemas de opressão racial e de gênero existentes desde o período escravagista.
Preta Rara é uma mulher negra de pele escura e, para questionar os padrões
estéticos sobre os corpos femininos, se autodenomina como uma mulher negra e
“gorda” em shows, vídeos e falas nas redes sociais. A cantora demonstra, em sua
poesia, e também em outros trechos do seu livro, que paulatinamente ela come-
çou a ter consciência que sua cor/raça era o único impedimento para ela obter
um emprego que não fosse apenas o de empregada doméstica. Preta Rara não
sonhou com um emprego que tradicionalmente é tido como masculino e que lhe

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 159


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
pagaria um alto salário - duas condições sociais, que na sociedade atual, tornaria a
mudança de trabalho ainda mais difícil. Ela objetivou uma mobilidade social dentro
da classe social que já ocupava e do gênero que sempre foi lida socialmente, mas,
apesar disso, só lhe ofereceram o trabalho historicamente reservado para as mu-
lheres negras: o doméstico.
Nesse livro da Preta Rara, o que se percebe de comum nos relatos das mulhe-
res é o aspecto de elas serem oriundas de famílias economicamente carente, e
pelo fato de já estarem em uma situação de marginalização econômica, racial e de
gênero, elas ficavam ainda mais vulneráveis socialmente aos abusos de seus em-
pregadores, visto que, nos relatos, raramente o Estado aparece para fazer valer o
direito delas como trabalhadoras e cidadãs.
Preta Rara declara no livro que não atua mais no trabalho de empregada do-
méstica e, atualmente, se apresenta como rapper, professora de história, turbanis-
ta, modelo e influenciadora digital. Dessa maneira, a trajetória profissional dela re-
vela permanências estruturais ao longo de séculos no Brasil, mas também desafia
os sistemas de opressão de gênero, de classe e de raça, que são organizados pela
elite para manter a comunidade negra feminina nos trabalhos com menor renda,
com restritos direitos trabalhistas ou completamente sem nenhum desses direitos,
como é o caso das faxineiras.
Além das letras de música e do livro de Preta Rara, é material de análise os
shows de cantoras negras. Durante minha pesquisa de campo na cidade de Marin-
gá(PR) no ano de 2019, realizei observação participante em três shows de cantoras
negras do rap brasileiro: o da Karol Conka, da Drik Barbosa e da Cris SNJ. Notei que
as três artistas cantaram mais de uma canção que fez referência ao feminismo, à
resistência feminina diante do machismo, à mulher negra, ao empoderamento e a
liberdade feminina. Karol Conka, por exemplo, interpretou8 em uma praça central
dessa cidade uma música intitulada 100% feminista. A seguir, apresenta-se um tre-
cho dela9:

Presenciei tudo isso dentro da minha família/ Mulher com olho


roxo, espancada todo dia/ Eu tinha uns cinco anos, mas já en-
tendia/ Que mulher apanha se não fizer comida/Mulher opri-
mida, sem voz, obediente/ Quando eu crescer, eu vou ser dife-
rente/ Eu cresci/ Prazer, Carol bandida/Represento as mulheres,
100%feminista/ Eu cresci/ Prazer, Carol bandida/ Represento as
mulheres, 100%feminista/ Represento Aqualtune, represento
Carolina/ Represento Dandara e Chica da Silva/ Sou mulher, sou
negra, meu cabelo é duro/ Forte, autoritária e às vezes frágil, eu
assumo/ Minha fragilidade não diminui minha força/ Sou mu-

8 No show em Maringá (PR) Karol Conka cantou sozinha a música 100% feminista, mas em
alguns vídeos do Youtube ela canta em parceria com a MC Carol, que também é uma mulher negra. A
música foi uma composição das duas cantoras.
9 Disponível em https://www.letras.mus.br/mc-carol/100-feminista/ . Acesso em 24 dez.
2019.

160 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
lher independente não aceito opressão/ Abaixa sua voz, abaixa
sua mão [...] (CAROL; KAROL, 2016)

Na narrativa anterior, e cantada pela Karol Conka, a questão interssecional de


raça, gênero e classe é atravessada pela violência doméstica. O trecho selecionado,
bem como a canção inteira deixa transparecer que essa forma de violência acon-
teceu na família de uma menina negra. A protagonista da narrativa, que um dia
foi uma menina negra que viveu no meio de violência doméstica, se tornou uma
mulher adulta e passou a ter consciência da luta das mulheres contra o machismo,
adquirindo conhecimento acerca dos questionamentos do feminismo negro contra
a norma patriarcal que inferioriza, por caminhos específicos, as mulheres negras. A
violência física e simbólica que as mulheres negras vivenciam de pessoas próximas
a elas (pais, padrastos, cônjuges, parceiras e parceiros conjugais, vizinhos e outros)
não pode ser ignorada ou minimizada em um projeto coletivo negro e não negro de
liberdade, amor e justiça social. Ao analisar a questão familiar das mulheres negras
estadunidenses, a autora Patrícia Hill Collins comenta:

[...]Consequentemente, os Black Studies enfatizam materiais


que, embora demonstrem com razão as qualidades positivas
das famílias negras estadunidenses em um contexto de opres-
sões interseccionais, tratam apenas superficialmente de seus
problemas. Essa ênfase nas qualidades, contudo, muitas vezes
tem um preço, e frequentemente quem o paga são as mulhe-
res afro- americanas. Assim, na produção acadêmica feminista
negra, finalmente começamos a ouvir não apenas histórias, por
tanto tempo ocultas, de mulheres negras fortes, mas também
histórias de mulheres cujas responsabilidades familiares, atri-
buídas segundo o gênero, lhes trouxeram problemas (COLLINS,
2019, p.164).

A letra 100% feminista possui uma narrativa que contribui para a reflexão dos
problemas sociais presentes nas famílias das mulheres negras, e que a pensadora
Patrícia Hill Collins (2019) menciona na citação anterior. Dessa maneira, a letra é
um exemplo de como poderes opressivos hegemônicos de gênero, raça e classe
social se apresentam na comunidade negra periférica, e que devem ser problema-
tizados e combatidos.
Quando a cantora Karol Conka propagou no show em Maringá(PR) por meio da
seguinte afirmação: “Sou mulher, sou negra, meu cabelo é duro” ela enalteceu o
feminismo e a negritude e, por essa razão, a letra pode ser vista como uma home-
nagem para a luta das mulheres negras. A homenagem encontra sentido porque
foram aspectos desse feminismo negro que permitiram à protagonista interpretar
que aquela violência doméstica, à qual foi obrigada a assistir na sua infância não
deveria ser naturalizada e sim confrontada. Minha pesquisa mostra que as can-
toras negras estão dispostas a desempenhar tal prática de confronto para que as
mulheres negras tenham dignidade em todas as dimensões de suas vidas.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 161


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo tradicional presente no rap brasileiro é incentivar os(as) artistas das
periferias a cantarem principalmente a partir de suas próprias experiências pensa-
das e vividas. Isso criou um campo artístico favorável para as cantoras negras cons-
truírem narrativas com mais de uma categoria social aparecendo em suas letras,
poesias e demais relatos. As cantoras negras do rap elaboram simultaneamente
narrativas e práticas de resistência política em mais de uma estrutura social, o que
as situam como agentes em uma atuação coletiva feminina, negra e periférica.
A perspectiva das cantoras negras do rap em produzir músicas com foco em
suas experiências do cotidiano permite que as letras de suas músicas expressem
narrativas com uma visão de mundo muito próxima da ferramenta política e ana-
lítica da interseccionalidade presente na teoria dos feminismos negros. Sendo
assim, as letras de rap, as poesias e relatos das cantoras negras estão alinhados
com a perspectiva política, a intelectualidade,e os questionamentos presentes na
teoria feminista negra de autoras como, por exemplo, Angela Davis (2016) e Lélia
Gonzales (1982;1988). Um ponto em comum entre as narrativas das cantoras e as
análises de tais autoras é o fato do debate acerca das opressões de raça, classe e
gênero caminhar na contramão de hierarquizações das experiências do dia a dia
e das estruturas sociais; assim as opressões são expressas, problematizadas e en-
frentadas em um mesmo tempo e espaço.
Os trabalhos artísticos das cantoras citadas revelam e criticam o racismo e a
misoginia impostos à mulher negra ao longo da história brasileira. Além disso, há a
presença do gênero feminino como o protagonista na construção de uma relação
entre política e arte, que se faz eficaz na transmissão de saberes por meio de uma
linguagem simples (mas não menos complexa), direta e poética e, por isso, esses
são trabalhos que revelam aspectos de resistência feminina negra contemporânea
dentro da norma patriarcal, racial e econômica. É por tais motivos que a autora
negra brasileira Sueli Carneiro menciona no livro “Racismo, sexismo e desigualda-
de no Brasil”(p. 36, 2011), que o Hip-Hop tem, ao longo de décadas, formado lide-
ranças juvenis que atuam em diversos espaços sociais no Brasil. Nossas cantoras
negras do rap brasileiro não deixam de participar da formação dessas lideranças
tão necessárias para nossa comunidade negra feminina.

REFERÊNCIAS

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AUTORIA
Sandra Mara Pereira dos Santos
Universidade Estadual de Maringá (UEM)
E-mail: sandramaramarasantos@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7046-5546
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1208251716003510

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 163


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
INTELECTUAIS NEGRAS E A
QUESTÃO DA SUBALTERNIDADE
Nayhara Almeida de Sousa

INTRODUÇÃO
Este trabalho tem como principal objetivo discutir a possibilidade da intelectual
negra, como parte integrante de um grupo historicamente marginalizado, se pro-
duzir enquanto sujeito político. Como o título do trabalho indica, a questão é pro-
blematizar as produções de intelectuais negras como ferramentas de contestação
de sua condição subalterna. Parto das reflexões já existentes sobre o tema, como
por exemplo, Gonzalez (1984)1, Hooks (2015)2, Spivak (2010)3, Collins (2016)4, Mo-
reira (2007)5, Gomes (1996)6 entre outras/os autoras/es que irão se debruçar sobre
as discussões que envolvem educação, problemática racial, de gênero e de classe.
Gomes (1996) demonstra que as questões que envolvem raça, gênero e educa-
ção estão imersas em relações de alteridade. Os espaços educacionais, em todos
os níveis, são permeados por conflitos, disputas e contradições que envolvem o
racismo, a discriminação racial e de gênero. Durante a realização de sua pesquisa
sobre contexto escolar vivenciado por mulheres negras, a autora constatou a pre-
sença de discursos que enfatizam uma suposta incapacidade intelectual da pessoa
negra. Discursos que tiveram grande força durante o século XIX, apoiados por teses
pautadas no racismo científico.
Embora sejam constantemente rebatidos por intelectuais e pesquisadores, es-
tes discursos ainda estão permeiam nosso imaginário e a prática social. Isso é per-
ceptível quando os professores e professoras, tanto da educação básica, quanto
do ensino superior, se mostram admirados com o bom desempenho de alunos e
alunas negras, ou dos seus colegas negras e negros, ou quando alimentam expec-
tativas depreciativas sobre a capacidade intelectual dos mesmos (GOMES, 1996).

1 GONZALEZ, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Ciências Sociais Hoje, 2 Movimen-
tos Sociais Urbanos, Minorias Étnicas e Outros Estudos ANPOCS, p. 223-244, 1984.
2 hooks, bell. Intelectuais negras. Estudos Feministas, Florianópolis, ano 3, n. 2, p. 464-478,
ago./dez. 2005.
3 SPIVAK, Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Belo Horizonte: Editora UFMG. pp. 19-
84 (Cap. I, II e III).
4 COLLINS, Patricia Hill. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pen-
samento feminista negro. Revista Sociedade e Estado. Volume 31, p. 99-127, Janeiro-Abril, 2016.
5 Moreira, Núbia Regina. O Feminismo Negro Brasileiro: Um Estudo do Movimento de Mulhe-
res Negras no Rio de Janeiro e São Paulo. Dissertação de Mestrado, IFCH/UNICAMP, 2007
6 GOMES, Nilma Lino. Educação: raça e gênero: relações imersas na alteridade. Cadernos Pagu
(UNICAMP), Campinas, p. 67-82, 1996.

164 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Senso assim, o tema escolhido decorre da leitura de produções de intelectuais
negras que veem há algum tempo problematizando a condição de mulher negra,
trabalhadora e acadêmica, mulheres como Gonzalez (1984) e Conceição Evaris-
to7. Buscamos inspiração nos argumentos de Gonzalez (1984) ao problematizar
o silenciamento e negação relegado a população negra, aqui especificamente às
mulheres negras. A autora aponta para a necessidade de desconstrução da natu-
ralização do racismo e sexismo na sociedade brasileira, contesta a imagem crista-
lizada da mulher negra como mulata e doméstica. Da maneira semelhante, Hooks
(2015) argumenta sobre a importância do autorreconhecimento como intelectual
na constituição da subjetividade das mulheres negras. Neste trabalho a valorização
do pensamento crítico e da produção intelectual negra é importante, não somente
por trazer status ou reconhecimento, mas por oferecer recursos que fortalecem a
resistência e a constituição de nossas subjetividades (HOOKS, 2005, 466).
Por tanto, neste artigo o trabalho intelectual da mulher negra é compreendido
como importante estratégia de libertação, essencial para todas as pessoas que se
percebem oprimidas e/ou exploradas. Pessoas que passaram de objeto à sujeito
e que trabalham para descolonizar suas mentes. (HOOKS, 2005, p.466). Compre-
endemos as intelectuais negras como os ativistas, professoras, músicas, artistas,
lideranças religiosas, poetisas, enfim, todas aquelas mulheres negras, que a partir
de suas produções, estão preocupadas com a desconstrução das inúmeras formas
de discriminação presentes em nossa sociedade. (BERNARDINO-COSTA, 2018)8.
Desta maneira, este artigo está dividido em três partes. Na primeira parte trago
as contribuições de Spivak (2010) que inspiraram a escrita deste trabalho. Tento
estabelecer uma discussão entre suas afirmações sobre a impossibilidade de fala
do sujeito subalterno e algumas críticas trazidas por autores como Carvalho (2011)
e Aguiar (2016). Na segunda parte trato de expor as possibilidades de contestação
da condição de subalternidade e silenciamento levantados por algumas produções
de intelectuais negras. Na última parte trago a considerações finais. Trata- de uma
pesquisa bibliográfica apoiada no referencial teórico dos estudos pós-coloniais e
do pensamento feminista negro.

7 Conceição Evaristo é reconhecida como importante escritora brasileira. Em entrevista a au-


tora contesta as dificuldades que enfrentou para publicar suas obras, por ser mulher e negra. Dis-
ponível em: https://www.uai. com.br/app/noticia/artes-e-livros/2018/07/22/noticias-artes-e-livros,
231059/ conceicao-evaristo-fala-dificuld ade-das-mulheres-negras-na-literatura.shtml > Acessado em
03/02/2018.

8 BERNARDINO-COSTA, Joaze. Decolonialidade, Atlântico Negro e intelectuais negros brasilei-


ros: em busca de um diálogo horizontal. Revista Sociedade e Estado. Volume 33, Número 1, p. 119-137,
Janeiro-Abril 2018.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 165


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
SPIVAK E A SUBALTERNIDADE
Spivak (2010) em sua obra Pode o subalterno falar? traz uma resposta negativa
sobre a agência dos sujeitos subalternos. Sua preocupação principal é contestar os
discursos hegemônicos e nossas formas de ler e apreender o mundo contempo-
râneo. A autora apoia-se na crítica as argumentações de Foucault e Deleuze para
discutir a prática do/a intelectual pós-colonial e também aos estudos subalternos,
ao qual se vincula. (SPIVAK, 2010, p.55-56). O grupo dos estudos subalternos reúne
pesquisadores/as:

[...]que seguindo a formulação do teórico italiano Antônio


Gramsci sobre as classes subalternas como uma categoria alija-
da do poder, articulam uma pertinente discussão sobre os sujei-
tos subalternos no contexto sul asiático. (SPIVAK, 2010, p. 13).

Já a perspectiva pós-colonial, como parte integrante dos estudos subalternos,


foi iniciada por intelectuais qualificadas/os como intelectuais da diáspora negra ou
migratória. Partindo inicialmente dos estudos literários na década de 1980, expan-
dindo-se posteriormente para outras disciplinas e para outras partes do mundo. Os
estudos pós-coloniais tem em autores/as como Homi Bhabha, Edward Said, Gayatri
Chakravorty Spivak, Stuart Hall e Paul Gilroy suas principais referências. É a partir
desta abordagem que Spivak (2010), como umas das principais representantes do
estudos pós-coloniais, questiona se o sujeito subalterno pode falar. E ao fazer esta
reflexão promove também autocrítica ao papel do/a intelectual pós-colonial. Des-
ta maneira, nenhum ato de falar pelo sujeito subalterno pode ocorrer fora da re-
produção do discurso hegemônico. Assim, a autora alerta para o fato da produção
intelectual encarar o sujeito subalterno como monolítico e indiferenciável, quando
na verdade é “irremediavelmente heterogêneo”. (SPIVAK, 2010, p. 57).
Spivak (2010) problematiza as dificuldades de agenciamento coletivo enfrenta-
das pelo sujeito subalterno. Ao criticar o posicionamento desses autores aponta
para a subordinação e incapacidade de autonomia dos sujeitos subalternos frente
a “cadeia hegemônica de signos”. Mas, na medida que Spivak (2010) reforça os
problemas do fazer teórico, também limita as possibilidades de sua própria pro-
dução. É possível afirmar que sua posição acaba por reforçar a subordinação e o
silêncio dos subalternos. De acordo com Carvalho (2010)9 críticas como essa, são
muito comuns em diversas recepções sobre a obra de Spivak.
Apesar das críticas à sua obra e o tempo passado desde sua publicação origi-
nal em 1986, as contribuições de Spivak (2010), sobre as situações onde o sujeito
subalterno não pode ser ouvido, ainda permanecem atuais. Mesmo com sua in-

9 CARVALHO, Bruno Sciberras de Carvalho. Subalternidade e possibilidades de agência: uma


crítica pós-Colonialista. In: Revista Estudos Políticos, n. 3, 2011. pp. 65-69 (Resenha: SPIVAK, Gayatri
Chakravorty. (2010). Pode o Subalterno Falar? Belo Horizonte: Editora UFMG).

166 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
discutível contribuição, rigor teórico e sua excelente teorização da obra Antônio
Gramsci, Spivak (2010) não indica possibilidades de que as classes subalternas pos-
sam alcançar estratégias de superação de sua condição subalterna (AGUIAR, 2016,
p.278)10.
Esta seria uma das principais críticas levantadas à Spivak (2010). E é neste con-
texto de discussão sobre subalternidade e seus limites que a condição das mulhe-
res subalternas é apresentada como mais precária. “Se, no contexto da produção
colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalter-
no feminino está ainda mais profundamente na obscuridade.” (SPIVAK, 2010, p.
67).
Ao discutir o caso de autoimolação das viúvas e da jovem indiana que não pode
se autorrepresentar, que não pode falar e quando fala não encontra meios para ser
ouvida, Spivak (2010) apresenta um contexto em que a subalterna não consegue
sair de sua condição através da autoridade do intelectual que fala por ela. Para
Spivak (2010), a capacidade de falar implica ser ouvida. Mas o que aconteceria num
contexto em que a intelectual pertence ou está associada à subalternidade que
ela própria descreve, interpreta e produz? Este questionamento é o que tentarei
responder na próxima parte.

A INTELECTUAL E O FEMINISMO NEGRO


Pode a intelectual negra, como parte de um grupo historicamente subalter-
nizado, falar e ser ouvida? As produções de intelectuais negras afro-americanas
e latino-americanas são relevantes para a tentativa de responder as questões. O
feminismo negro surge como uma organização de intelectuais negras que não ne-
cessitam de tutela para poder falar por si. Essa insurgência de intelectuais negras,
que transcende localização geográfica e se expande para diversas áreas do conhe-
cimento, representa uma virada para os estudos de gênero e das relações raciais.
É possível exemplificar isso nas produções de Gonzales (1984), Moreira (2007),
Hooks (2005), Davis (2016)11 e Collins (2016).
Nesta discussão sobre a potência das produções de intelectuais negras é pre-
ciso evidenciar que a própria Spivak (2010) aponta para a possibilidade de que a
mulher intelectual produza contestação a condição do silêncio imposto ao sujeito
subalterno feminino.
Com respeito à “imagem” da mulher, a relação entre mulher e o silêncio pode
ser assinalada pelas próprias mulheres; as diferenças de classe e raça estão incluí-
das nessa acusação. A historiografia subalterna deve confrontar a impossibilidade
de tais gestos. A restrita violência epistémica do imperialismo nos dá uma alego-

10 AGUIAR, Jéssica Danilla Nascimento. Teoria pós-colonial, estudos subalternos e América La-
tina: uma guinada epistemológica? Revista Estudos de Sociologia. Araraquara. V. 21. N. 41 p. 273-289,
jul.-dez, 2016.
11 DAVIS, A. Mulheres, raça e classe. São Paulo: Boitempo, 2016.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 167


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ria imperfeita da violência geral que é a possibilidade de uma episteme. (SPIVAK,
2010, p. 56).
Spivak (2010) propõe que as produções intelectuais devam confrontar o silêncio
sentenciado as mulheres em condição subalterna, de produzir uma outra episte-
me. A autora direcionou suas contribuições finais para a mulher intelectual: “A re-
presentação não definhou. A mulher intelectual como uma intelectual tem uma ta-
refa circunscrita que ela não deve rejeitar com um floreio.” (SPIVAK, 2010, p. 126).
A produção intelectual de mulheres negras, em diferentes contextos sociais e
geográficos, vem de maneira semelhante, há algum tempo problematizando o lu-
gar de subordinação e silenciamento12. No Brasil o feminismo negro, caracterizado
como movimento social urbano com seu marco na década de 197013 (MOREIRA,
2007, p.56). Desta forma, o feminismo negro brasileiro é compreendido como arti-
culações institucionalizadas e/ou autônomas de mulheres negras, que contestam
criticamente as abordagens do feminismo tradicional14 e o papel secundário rele-
gado a elas dentro de algumas entidades que compõe o movimento negro (MO-
REIRA, 2007, p. 57).
Nos Estados Unidos o feminismo negro, também como forma de articulação de
mulheres afro-americanas, se constituiu há algum tempo, com atos de resistência,
tanto organizados, quanto anônimos como informa Davis (2016) e Collins (2016).
Para Collins (2016) o pensamento feminista negro consiste em:

[...]ideias produzidas por mulheres negras que elucidam um


ponto de vista de e para mulheres negras. Diversas premissas
fundamentam essa definição em construção. Primeiro, a defi-
nição sugere que é impossível separar estrutura e conteúdo te-
mático de pensamento das condições materiais e históricas que
moldam as vidas de suas produtoras. Dessa forma, enquanto o
pensamento feminista negro pode ser registrado por outras pes-
soas, ele é produzido por mulheres negras. O pensamento femi-
nista negro contém observações e interpretações sobre a condi-
ção feminina afro-americana que descreve e explica diferentes
expressões de temas comuns. [...] Não existe uma plataforma
feminista negra a partir da qual se possa medir a “precisão” de
uma pensadora; nem deveria haver uma. Em vez disso, como
defini acima, existe uma longa e rica tradição de um pensamen-
to feminista negro (COLLINS, 2016, p. 101-102).

12 Lembrar da icônica atuação de Sojourner Truth em uma convenção de mulheres em Akron,


Ohio nos Estados Unidos, em 1851. Seu discurso Não sou eu uma Mulher? Criticava a pretensa univer-
salidade da categoria mulher e a invisibilidade e silenciamento relegado as mulheres negras afro-ame-
ricanas (DAVIS, 2016).
13 “A apresentação do Manifesto das Mulheres Negras durante o Congresso de Mulheres Bra-
sileiras em junho de 1975 marcou o primeiro reconhecimento formal de divisões raciais dentro do
movimento feminista brasileiro.” (CALDWELL, 2000, p. 97).
14 “Feminismo tradicional é aqui caracterizado como um espaço de lutas por igualdade de di-
reitos comandados por mulheres brancas, de classe média alta e intelectualizadas.” (MOREIRA, 2007,
p. 58).

168 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
É possível perceber pela definição de Collins (2016) a relevância de pensar a
condição das mulheres negras, a partir de suas próprias produções. E que isso é
uma importante ferramenta de contestação da condição de subalternidade. A au-
tora aponta que há muito tempo as mulheres negras, de uma maneira geral, têm
ocupado posições marginais. E que muitas intelectuais negras “têm feito uso cria-
tivo de sua marginalidade, do seu status de outsider within, para produzir um pen-
samento feminista negro capaz de refletir um ponto de vista especial em relação
ao “self”, à família e à sociedade” (COLLINS, 2016, p.99).
Neste contexto de contestação contínua da condição de subalternidade, é pos-
sível perceber a aproximação das críticas de Hooks (2013) e Gomes (1996) direcio-
nadas a formação educacional no Brasil, em todos os níveis, que ainda subjuga a
intelectualidade negra. Reproduzindo dentro das escolas e universidades a mesma
lógica racista excludente que permeia as relações sociais em outros espaços.
As mulheres negras, em especial as feministas, pensam em afirmar seu lugar
enquanto intelectual. Ao falar da produção intelectual negra, hooks (2005) afirma
que, em geral, quando pensadores negros escrevem sobre a intelectualidade negra
focalizam-se nas vidas e obras de homens. A autora argumenta que muito pouco
se escreveu sobre as produções das intelectuais negras, mesmo com inúmeras de-
las desempenhando importantes papéis como pensadoras críticas. A autora afirma
que a “subordinação sexista na vida intelectual negra continua a obscurecer e des-
valorizar a obra das intelectuais negras” (hooks, 2005, p.467).
Exemplo disso, é o que acontece com os intelectuais negros brasileiras. A ausên-
cia e negação da intelectualidade negra brasileira é um fato apontado por autores
como Bernardino-Costa (2018) e Lima (2001)15. Mas, atinge de maneira particular
as intelectuais negras. Lima (2001), ao afirmar que temos uma representação na-
turalizada da mulher negra, refere-se ao estereótipo de “mulata”. Sobre essa ques-
tão, Gonzalez (1979)16 argumenta que este estereótipo acentua a naturalização da
subordinação da mulher negra brasileira, e nos alerta que “o termo “doméstica”
abrange uma série de atividades que marcam seu ‘lugar natural’: empregada do-
méstica, merendeira na rede escolar, servente nos supermercados, na rede hospi-
talar, etc...”(GONZALEZ, 1979, p.16).
As argumentações de Lima (2001) e Gonzalez (1979) nos auxilia na reflexão de
que estereótipos e outras formas de representações sociais podem reforçar a si-
tuação de invisibilidade de determinados grupos sociais. Como por exemplo, ar-
gumenta a importante escritora brasileira Conceição Evaristo. Em uma entrevista
concedida a um site de notícias mineiro a escritora fala sobre as dificuldades que
as mulheres negras enfrentam para serem reconhecidas como produtoras de sa-

15 LIMA, Marcia; RIOS, Flávia; FRANÇA, Danilo. Articulando Gênero e Raça: A Participação das
Mulheres Negras no Mercado de Trabalho (1995-2009). In: MARCONDES, Mariana Mazini. Dossiê Mu-
lheres Negras retrato das condições de vida das mulheres negras no Brasil. Brasília: IPEA, 2013.
16 Cultura, etnicidade e trabalho: Efeitos Linguísticos e Políticos da Exploração da Mulher. Co-
municação apresentada no VIII Encontro Nacional da Latin American Studies Association. Pittsburgh,
Pensilvânia, USA, 5-7 abril, 1979.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 169


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ber e conhecimento. Conceição Evaristo começou a escrever ainda criança, mas
só viu suas histórias serem publicadas pela primeira vez aos 44 anos, em 1990, na
coletânea Cadernos negros. A primeira publicação individual só aconteceu no ano
de 199317.
De maneira semelhante, Lélia Gonzalez, relevante pesquisadora brasileira, apa-
rece como importante figura para as discussões sobre o papel da intelectual negra
na contestação da subordinação e silenciamento. Lélia ainda é pouco lembrada no
meio acadêmico, apesar de ter circulado o Atlântico Negro, acompanhado as lutas
políticas na África do Sul e Namíbia, participado de mesas redondas com feministas
negras norte-americanas e tinha contato com o movimento afro-caribenho, afro-
-colombiano, afro-peruano etc. (BERNARDINO-COSTA, 2018).
Mas, não é apenas com a questão racial e de gênero que as intelectuais negras
estão preocupadas. Diversas produções, em especial as relacionadas ao feminis-
mo negro, irão problematizar as hierarquias de raça, classe e gênero. No final da
década de 1990 o debate feminista internacional, oriundo de diferentes vertentes
teóricas, passa a ser marcado por ideias que permeiam o campo da intersecciona-
lidade as diferentes categorias que aliadas a gênero permeia os contextos sociais
(PISCITELLI, 2008)18. Piscitelli (2008) realiza o esforço de reunir comentários sobre
as categorias de articulação e interseccionalidade. A autora reúne nomes impor-
tantes para a abordagem interseccional como Kimberlé Crenshaw (2002), Avtar
Brah e Anne McKlintock, mas não aprofunda de como este debate é levantado pelo
feminismo negro. A autora cita Kimberlé Crenshaw (2002) como importante nome
para a abordagem interseccional. Kimberlé Crenshaw (2002)19 define interseccio-
nalidade como:
Trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opres-
são de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que
estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras. Além
disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas ge-
ram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos
ou ativos do desempoderamento (Crenshaw, 2002, p. 177).
Próxima das reflexões de Crenshaw (2002), Angela Davis (2016), na primeira
publicação da obra Mulheres, raça e classe, em 1981, promove reflexão importan-
te sobre a maneira como as questões que envolvem, raça, classe e gênero irão se
combinar e se cruzar na produção e reprodução de desigualdades que atingem as
mulheres negras.

17 https://www.uai.com.br/app/noticia/artes-e-livros/2018/07/22/noticias-artes-e-livros
18 PISCITELLI, Adriana. Interseccionalidades, categorias de articulação e experiências de mi-
grantes brasileiras. Sociedade e Cultura. Goiânia. vol.11, n. 2, jul/dez, 2008. pp. 263-274.
19 20 CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação
racial relativos ao gênero. Revista estudos feministas, v. 10, n. 1, p. 171-188, 2002.

170 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Sobre o conceito de interseccionalidade, Collins (2017)20 aponta que ele tem
estreita relação com as ideias trazidas por intelectuais negras e feministas que
emergiram no século XX. A autora também traz relevante contribuição para a nossa
discussão sobre a intersecção entre gênero, raça, classe. Sua exposição sugere uma
leitura não dicotômica sobre os sujeitos, e que estas categorias estão articuladas e
são experimentadas de maneira diferente nos diversos contextos materiais, sociais
e intelectuais que compõe a realidade dos indivíduos. Assim, os indivíduos vão se
constituir de maneira diferentes a depender das suas experiências de vida. Collins
(2017) ainda argumenta que a noção inicial de interseccionalidade está relacio-
nada com a promoção de políticas emancipatórias que tenham a noção de justiça
social em seu cerne.
É importante lembrar das representações sociais que são relacionados a cate-
goria mulher negra e de como elas contribuem para a sua negação como produtora
de pensamento crítico. Sobre isso Hooks (2005) argumenta que as representações
sociais relacionadas à expressão da sexualidade das mulheres negras favorecem
a formação de consciência coletiva em que elas passem a ser encaradas apenas
como um corpo sem intelecto.
Isto também pode ser observado nas problematizações sobre racismo e sexis-
mo realizadas por Gonzalez (1984). A autora problematiza as representações so-
ciais sobre a mulher negra, não apenas a partir da questão racial, raça e gênero,
mas também pela necessidade de afirmação enquanto intelectual. Gonzales (1984)
expõe a necessidade, não apenas de questionar as hierarquizações de raça, classe
e gênero, mas também de afirmar a mulher negra como produtora pensamento
crítico e de não mais reproduzi-lo.
O fato é que, enquanto mulher negra, sentimos a necessidade de aprofundar
nessa reflexão, ao invés de continuarmos na reprodução e repetição dos modelos
que nos eram oferecidos pelo esforço de investigação das ciências sociais. Os tex-
tos só nos falavam da mulher negra numa perspectiva socioeconômica que eluci-
dava uma série de problemas propostos pelas relações raciais. Mas ficava (e ficará)
sempre um resto que desafiava as explicações. E isso começou a nos incomodar.
Exatamente a partir das noções de mulata, doméstica e mãe preta que estavam ali,
nos martelando com sua insistência (GONZALES, 1984, p. 225).
A argumentação de Gonzales (1984) e todas as outras contribuições teóricas
citadas auxiliam na reflexão de que as produções de intelectuais negras, princi-
palmente aquelas envolvidas com o feminismo negro, atuam na contestação da
condição de subalternidade. Viver a margem proporciona apreender a realidade
de maneira bastante singular, isso reflete em produções intelectuais notavelmente
interessantes.

20 COLLINS, Patricia Hill. Se perdeu na Tradução? Feminismo Negro, Interseccionalidade e polí-


tica emancipatória. Parágrafo, v. 5, N. 1, Jan/Jun. 2017.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 171


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Dentro de tudo o que foi escrito é possível concluir que o feminismo negro
aparece como potente ferramenta para que a intelectual negra, dentro das pos-
sibilidades agenciadas pela condição de subalternidade, “fale e seja escutada”.
Para que ela promova reflexão crítica sobre sua condição e possibilite que existam
resistências. E, consiga atingir outras mulheres negras dentro e fora do contexto
acadêmico.
Sendo assim, reforço os argumentos de Hooks (2005) e Bernardino Costa (2018)
em usar referências de intelectuais negras nas construções de nossas pesquisas.
Isso fortalece a possibilidade de falar por nós mesmos e apresentando o desafio
de propor uma outra possibilidade de interpretação sócio-histórica. Escrever este
artigo foi uma tarefa importantíssima para pensar os limites do trabalho intelectu-
al e das generalizações das diferentes experiências das mulheres negras. O termo
intelectuais negras é muito abrangente e pode abordar diversas experiências e que
não é possível limitá-las neste artigo.
Aqui também foi possível refletir sobre os limites da representação, como lem-
bra Spivak (2010), e compreender que a intelectual negra, pode estar distante da
condição experimentada pela “negra anônima da favela” como lembra Gonzalez
(1984). Ou ela mesma pode ser a “negra anônima da favela”. Atualmente, em des-
taque midiático brasileiro e mundial, já temos algumas mulheres negras que po-
dem falar. Estamos em momento histórico diferente do que foi apontando por al-
gumas autoras da bibliografia utilizada, mas suas reflexões são fundamentais para
pensar os limites da subalternidade.

AUTORIA
Nayhara Almeida de Sousa
Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal
de São Carlos.
E-mail: nayhara.almeida.s@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3583-5556
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3323228102929152

172 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 46
Pensamentos e
epistemologias
produzidas por
mulheres negras:
olhares sobre
a academia e
os movimentos
sociais
ESCRITORAS NEGRAS AO SUL DO BRASIL:
MEMÓRIA E EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA NO
ENSINO BÁSICO

Fernanda Vitória Nunes


Giane Vargas Escobar

[...] Lutar pela liberdade é desconstruir mentiras


Consagradas como verdades nas bibliotecas do mundo

Na nova etapa das nossas lutas


Quebramos as supostas verdades uma a uma
Quebraremos os mitos entre o animal e a raça
Mesmo que o trabalho dure uma eternidade

[...] Seremos árvore sagrada de raízes seculares


Cujos ramos tangerão o umbigo do infinito

Paulina Chiziane

INTRODUÇÃO
Este artigo tem como ponto de partida alguns questionamentos apresenta-
dos no meu Trabalho de Conclusão de Curso intitulado: “Escritoras Negras do Rio
Grande do Sul: Representatividade e Reconhecimento”, defendido no ano de 2019
na Unipampa Campus Jaguarão, o qual tratou sobre a invisibilidade das escritoras
negras gaúchas no espaço escolar e acadêmico. Tendo como instrumental teórico-
-metodológico as diretrizes da Lei nº 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na educação básica.
Esta investigação justifica-se pela importância de refletir sobre a implementa-
ção da Lei nº 10.639/03 nos currículos da educação básica para proporcionar a
visibilidade de intelectuais negras/os; trazer para a centralidade o pensamento de
mulheres negras por meio de suas histórias e memórias, pois seus escritos são ins-
trumentos pedagógicos e uma maneira de disseminar conhecimentos sobre ser e
estar mulher negra no mundo, e também para promover a autoestima de alunos/
as negros/as ao se verem representados em materiais didáticos que contam suas
histórias a partir do ponto de vista do povo africano e da diáspora, e não somente
pela perspectiva branca hegemônica.

174 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Desta forma, esta é uma pesquisa de caráter qualitativo (GUERRA, 2006) e utili-
za como método a revisão bibliográfica, tendo como aporte teórico o pensamento
de (GOMES, 2002; 2012; 2017), (SILVA, 2007; 2018), (XAVIER, 2017; 2019), (HOOKS,
2017), pesquisas em artigos científicos da Revista da ABPN que tratam da questão
das relações étnico-raciais e consulta na proposta do Plano Nacional para a Im-
plementação das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações
Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana – do-
cumento elaborado pelo Grupo de Trabalho Interministerial – publicado em 2008.
Sendo assim, questionamentos foram acionados a partir do trabalho de conclu-
são e que levaram a outras questões problema que tentaremos refletir ao longo
desta investigação.
Como fazer chegar até às escolas conteúdos com temáticas voltadas para as
relações étnico-raciais, mais especificamente sobre as autoras negras gaúchas,
para que crianças e adolescentes tenham conhecimento sobre essas informações?
De que forma podemos transformar esses dados em material didático/pedagógi-
co que contribua para a descolonização do pensamento? A universidade prepara
seus alunos de licenciatura para que tenham consciência e sensibilidade para exer-
cerem uma educação antirracista?

POR UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA NO ENSINO BÁSICO E A


LEI 10.639/03
A Lei Federal nº 10.639/03 alterada da Lei nº 9.394/96 nos artigos 26A e 79B tor-
na obrigatório que as diretrizes e bases da educação nacional incluam no currículo
oficial da rede de ensino a temática História e Cultura Africana e Afro-Brasileira.
Sendo assim, para se pensar ou construir uma educação antirracista que de fato
promova uma mudança significativa no espaço escolar, é preciso perceber como a
estrutura das instituições educacionais trata ou lida com as questões raciais. Pois
a escola tem um grande papel na formação das pessoas e dependendo de como é
tratado o assunto da educação para as relações étnico-raciais, corre-se o risco de
estar construindo indivíduos não preparados para enfrentar e respeitar as plurali-
dades, que são os ambientes educacionais.
Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2007), conselheira relatora da Lei nº
10.639/03, sobre a ERER afirma que:

A Educação das Relações Étnico-Raciais tem por alvo a formação


de cidadãos, mulheres e homens empenhados em promover
condições de igualdade no exercício de direitos sociais, políti-
cos, econômicos, dos direitos de ser, viver, pensar, próprios aos
diferentes pertencimentos étnico-raciais e sociais. (SILVA, 2007,
p.490).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 175


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A formação de gestores e educadores da rede pública e tendo a universidade
como aquela que também vai fazer essa formação, é essencial para “desnaturalizar
as desigualdades sociais como um dos caminhos para a construção de uma repre-
sentação positiva sobre o negro e de uma pedagogia da diversidade”. (GOMES,
2002, p. 42).
É muito importante a participação dos alunos junto à elaboração de materiais
didáticos que o represente de maneira positiva. Assim, o aluno/a negro/a não terá
que passar por constrangimentos durante as aulas sobre escravidão, por exemplo.
Esse assunto sempre gera um desconforto na criança e/ou adolescente se não
tratado de forma adequada. Visto que sempre foi abordado pela perspectiva do
colonizador, dando a entender que o povo negro de África e da diáspora não teve
passado e que sua existência se dá apenas como escravizado. “[...] a professora
que vê e ouve um aluno discriminando o outro e não age em defesa do discrimina-
do, fazendo de conta que não é com ela. E é com ela, sim! Educar implica preparar
para uma convivência harmônica”. (CUTI, 2012, p. 2).
Professores/as precisam ir além de somente tratar das questões raciais em da-
tas como o 13 de maio e o 20 de novembro. A intenção da escola pode até ser
boa, mas a chance de abordar a história do negro de modo estereotipado é muito
grande. É preciso que se tenha conhecimento e responsabilidade para mostrar os
verdadeiros significados existentes por trás destas datas.
A profa. Rosa Margarida de Carvalho Rocha (2007), em seu livro “Educação das
Relações Étnico-Raciais: Pensando referenciais para a organização da prática pe-
dagógica”, reflete sobre qual a melhor forma de os referenciais atuarem de ma-
neira satisfatória na construção de uma educação antirracista no dia a dia escolar,
“contribuindo para uma pedagogia da diversidade”.
O livro orienta professores/as do ensino básico a inserir o tema das relações
étnico- raciais nos conteúdos curriculares através da cultura africana e seus ensina-
mentos. As autoras (MARQUES; CALDERONI, 2020, p. 100), acrescentam que: “[...]
a pedagogia decolonial é um instrumento pedagógico que nos provoca a questio-
nar qual o lugar que os saberes africanos e indígenas ocupam no currículo escolar”.
Desta forma, reforça-se a necessidade de refletirmos sobre a importância da
implementação e efetivação das políticas públicas voltadas para a educação das
relações étnico- raciais nas instituições escolares e pensarmos no que estamos fa-
zendo na prática para que a ERER seja cada vez mais presente na educação básica.
Para Silva (2018), o ponto fundamental não é a falta de políticas públicas, mas
sim de ultrapassar a barreira de uma sociedade que foi moldada a partir de uma
educação eurocêntrica e que ainda folcloriza culturas, conhecimentos e tecnolo-
gias de outros povos não brancos. Embora a Lei nº 10.639/03 tenha 17 anos de
vigência, sua prática ainda não é uma totalidade.
A conquista desta legislação se deve ao Movimento Negro Educador (GOMES,
2017), que há anos vem lutando por mudanças no modo como o sistema educa-
cional insere as pautas da negritude em seus currículos. Sistema esse que excluí

176 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
grupos ditos “minoritários” – como a comunidade negra – que na verdade são 56%
(IBGE, 2018) da população brasileira, ou seja, a maioria.
Questionamentos e estudos sobre a invisibilização dos saberes de povos não
brancos estão cada vez mais atuais. Provocar a descolonização do pensamento na
educação é uma das ferramentas contra o racismo que ainda é muito presente nas
salas de aulas.

Quanto mais se amplia o direito à educação, quanto mais se uni-


versaliza a educação básica e se democratiza o acesso ao ensino
superior, mais entram para o espaço escolar sujeitos antes invi-
sibilizados ou desconsiderados como sujeitos de conhecimento.
Eles chegam com os seus conhecimentos, demandas políticas,
valores, corporeidade, condições de vida, sofrimentos e vitórias.
Questionam nossos currículos colonizados e colonizadores e exi-
gem propostas emancipatórias. (GOMES, 2012, p. 99).

No entanto, está ocorrendo algumas mudanças significativas nos currículos es-


colares, sobretudo no que diz respeito ao Estado do Rio Grande do Sul. No ano de
2019, o Referencial Curricular Gaúcho, junto às diretrizes da Base Nacional Curricu-
lar (BNCC), determinou que as escolas públicas e privadas do RS (Educação Infantil
e Ensino Fundamental) irão estudar escritores/as negros/as gaúchos/as.
O documento do Referencial Curricular Gaúcho, segundo seu portal na inter-
net1, “foi homologado na manhã de 12 de Dezembro de 2018 pelo Conselho Es-
tadual de Educação (CEED) e pela União Nacional dos Conselhos Municipais de
Educação (UNCME)”.
Os escritores/as negros/as selecionados/as são: Maria Helena Vargas da Silvei-
ra, Oscar Henrique Cardoso e Lilian Rocha. É uma conquista muito grande e cole-
tiva ver escritores/as negros/as gaúchos/as na grade curricular do Estado. Mesmo
que seja, de certa forma, um reconhecimento tardio, é muito importante que os
currículos gaúchos e de demais localidades continuem avançando para “subverter
à lógica da colonialidade curricular [...] de hierarquização de cultura e saberes”.
(MARQUES; CALDERONI, 2020, p. 100).
Diante dessas informações sobre o Referencial Curricular Gaúcho e as reflexões
de Gomes (2012) sobre a descolonização dos currículos da rede de ensino básico,
nos atentemos ao fato de que somente a obrigatoriedade de ensinar a história da
África e dos afro-brasileiros – e que esta esteja presente nos currículos – não basta
para que de fato se tenha uma educação antirracista. Porque estes materiais não
podem ser tratados no sentido de “novos conteúdos escolares a serem inseridos”.
Eles devem ser trabalhados para ultrapassar as estruturas educacionais eugenistas.

1 Disponível em: http://curriculo.educacao.rs.gov.br/Sobre/Index. Acesso em: Set 2020.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 177


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
MEMÓRIAS E HISTÓRIAS DE MULHERES NEGRAS COMO
INSTRUMENTO PEDAGÓGICO
Esta investigação, como foi dito anteriormente, é pautada em alguns questiona-
mentos apresentados no meu trabalho de conclusão de curso: “Escritoras Negras
do Rio Grande do Sul: Representatividade e Reconhecimento”.
Aqui nesta seção vamos tratar de histórias sobre ser e estar mulher negra no
mundo enquanto pensadoras que podem disseminar conhecimentos enquanto
instrumento pedagógico, promovendo a visibilidade destas autoras negras gaú-
chas. Sendo assim, é fundamental trazer para a centralidade suas obras para que
sejam cada vez mais presentes nos currículos escolares e acadêmicos.
Durante a pesquisa do TCC, as buscas por escritoras negras gaúchas na internet
não foram encontradas com tanta facilidade como as das escritoras brancas. Com
isso percebe-se o apagamento da literatura produzida por mulheres negras na mí-
dia. O artigo “Por que não conhecemos as escritoras negras gaúchas"2, de Priscila
Pasko, publicado no site Nonada Jornalismo Travessia em 2017, foi o que ajudou
a conhecer algumas destas escritoras e serviu também como “suleador”3 para a
realização do trabalho.
Importante salientar que o trabalho de conclusão não contempla todas as es-
critoras negras gaúchas, mas traz importantes nomes da literatura negra do sul.
Como: Lilian Rose Marques da Rocha, Eliane Marques, Ana dos Santos, Veralinda
Menezes, Maria Rita Py Dutra, Taiasmin Ohnmacht, Maria Helena Vargas da Silvei-
ra, Fernanda Bastos, Pâmela Amaro e Maria do Carmo Oliveira dos Santos.
Sendo assim, não se trata somente de uma lista com o nome de escritoras ne-
gras como objetos de estudo, e sim que são mulheres negras que contam suas
próprias histórias, como nos ensina Giovana Xavier (2019). As escritoras negras
gaúchas existem, são muitas. Suas obras precisam e devem circular cada vez mais
em ambientes antes dominados por escritoras/es brancas/os para que suas narra-
tivas sejam reconhecidas. Assim, “[...] escrever emerge como um ato político. [...]
Nesse sentido, eu me torno a oposição absoluta de que o projeto colonial prede-
terminou” (KILOMBA, 2019, p. 28).
A literatura de prestígio por muito tempo foi aquela predominantemente mas-
culina, branca, heterossexual de classe média. Ainda mais se tratando do Estado
do Rio Grande do Sul que é conhecido por ser a “Europa” da região sul e do Brasil.
Porém, é importante reconhecer a cultura afro-gaúcha como parte dos costumes
culturais do RS para que a presença da população negra seja mais reconhecida e o
negro se veja representado nos espaços como sociedade, memória, patrimônio e
cultura.

2 Disponível em: http://www.nonada.com.br/2017/03/por-que-nao-conhecemos-as-escrito-


ras-negras-gauchas/. Acesso em: Maio 2019.
3 Conforme nos ensina Boaventura de Souza Santos em “Epistemologias do Sul”.

178 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Figura 4:
Figura 1: Figura 2: Figura 3: Veralinda Menezes
Lilian Rocha Eliane Marques Ana dos Santos

Figura 7:
Figura 5: Figura 6: Maria Helena
Maria Rita Py Taiasmin Vargas
Ohnmacht

Figura 10:
Figura 8: Figura 9: Maria do Carmo
Fernanda Bastos Pâmela Amaro Santos

Fonte: Google/Facebook
A escritora moçambicana Paulina Chiziane (2019), em entrevista ao NEABI Mo-
cinha da Unipampa Jaguarão durante o IV COPENE SUL, fala dos desafios que é
ser mulher, escritora e negra em uma sociedade onde o homem branco domina o
cânone literário, relatando problemas de raça e gênero.

A primeira luta é o racismo. [...] quando eu atravesso a primeira


fronteira para ir ao mundo, aí me deparo com a questão raça.
[...] a outra questão são as questões de gênero, durante anos os
homens estiveram no comando e algumas vezes se pensa que
a mulher um ser de segundo nível [...] um ser inferior. Um ser
incapaz. Nós temos muito disso em África. Aqui no Brasil é qua-
se a mesma coisa. (CHIZIANE. Entrevista concedida a Robson de
Jesus Silva, em 19/07/2019, IV COPENE SUL).

Duas das escritoras negras gaúchas selecionadas em meu Trabalho de Conclu-


são de Curso, Lilian Rocha e Maria Helena Vargas da Silveira, também estão na
lista das/os escritoras/es selecionadas/os para serem estudadas/os no currículo
da rede pública e privada do Rio Grande do Sul a partir do ano de 2019. Suas obras
são riquíssimas e irão contribuir muito para o ensino-aprendizagem de crianças e
jovens. Esperamos ver esta lista crescer, pois há muitos nomes que podem tam-
bém compor esse grupo, como vimos aqui no início desta seção.
Outro exemplo de referência, instrumento pedagógico e visibilidade para com
as escritoras negras gaúchas é o portal eletrônico “Helena do Sul” (https://www.
ufrgs.br/helenadosul/equipe/) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. De-
senvolvido pela Profa. Dra. Fernanda Oliveira (UFRGS), Profa. Dra. Sátira Machado
(Unipampa Jaguarão), Profa. Dra. Maria da Graça Paiva (Emérita UFRGS), Profa.
Dra. Liliam Ramos (UFRGS) e demais colaboradoras/es e voluntárias/os.
Segundo o próprio site, esta iniciativa faz parte do projeto de extensão “Maria
Helena Vargas da Silveira: escritora das gentes negras do sul” que objetiva tornar
conhecida a vida e obra da escritora por meio de um curso na Plataforma Lúmi-
na da UFRGS, o curso está previsto para 2021. No site é possível encontrar infor-
mações da escritora como homenagens, notícias, trabalhos acadêmicos sobre sua
obra, conhecer a equipe organizadora, etc.
Maria Helena Vargas da Silveira faleceu no ano de 2009, sendo assim, esse é um
rico material para perpetuar sua memória e seu pensamento enquanto mulher e
negra. Que este projeto tenha vida longa e que alcance muitas pessoas através dos
escritos de Helena do Sul.

180 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO ENSINO
SUPERIOR
O ensino das relações étnico-raciais no ensino superior, assim como no ensino
básico, não é uma totalidade. A academia ainda é muito branca no que diz respeito
aos seus currículos, referencias teóricos e corpo docente.
Nas universidades também é essencial que se tenha formação de professores e
de estudantes para com as questões raciais. Os cursos de graduação e licenciatura
devem ter uma disciplina pensada para as relações étnico-raciais para que assim
possam inserir em suas pautas, nos currículos, nos seus estudos propostas para
construir uma educação antirracista. A profa. Nilma Lino Gomes problematiza o
ERER no ensino superior:

[...] se criticamos o fato de que a escola básica ainda não con-


seguiu dar um trato pedagógico de qualidade à questão racial,
o que diremos do ensino superior? Será que a experiência uni-
versitária tem sido capaz de quebrar preconceitos, romper com
estereótipos sobre o negro e sua cultura, construir cidadãos e
cidadãs menos etnocêntricos? Será que os alunos e as alunas
que se formam nos cursos da UFMG e de outras instituições
de ensino superior, ao completarem o seu curso, encontram-
-se mais sensíveis à diversidade? Ao concluírem a graduação e
a pós-graduação, esses alunos e alunas compreendem melhor
a complexidade da questão racial e suas implicações políticas,
sociais, econômicas e culturais? Entendem a educação pública
com direito que, enquanto tal, deve ser garantido aos cidadãos
de diferentes pertencimentos étnicos/raciais ou ainda a veem
como mérito de alguns? (GOMES, 2002, p. 44).

Para responder uma das questões levantadas por Gomes (2002), tenho como
base a minha própria experiência dentro da universidade. Afirmo que se não fosse
a minha participação em grupos de estudos e pesquisas voltados para a questão
racial, com certeza concluiria a graduação de Letras sem ter conhecimento sobre
algumas escritoras e intelectuais negras. E também sem ter um pensamento mais
crítico e um olhar mais sensível para a educação das relações étnico-raciais.
Com a conquista das Ações Afirmativas, as instituições de ensino superior estão
cada vez mais plurais com a inserção de pessoas negras, quilombolas, indígenas,
tornando as universidades mais democráticas. Com isso os estudantes se organi-
zam coletivamente em grupos de estudos e afins para abordar temáticas que não
são estudadas nas disciplinas dos cursos. Esta é uma forma de se fortalecer no
ambiente acadêmico, ambiente esse que pode ser duro para o acadêmico negro/a
por conta da colonialidade que ainda perpetua nesses espaços.
Como diz bell hooks (2017), “ a academia não é o paraíso”.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 181


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Mas o aprendizado é um lugar onde o paraíso pode ser criado.
A sala de aula, com todas as suas limitações continua sendo um
ambiente de oportunidade de trabalhar pela liberdade, de exigir
de nós e dos nossos camaradas uma abertura da mente e do
coração que nos permita encarar a realidade ao mesmo tem-
po em que, coletivamente, imaginamos esquemas para cruzar
fronteiras, para transgredir. Isso é a educação como prática da
liberdade. (HOOKS, 2017, p. 273).

Para se praticar um pensamento decolonial, é preciso antes de tudo entender


os processos de colonização e as consequências causadas pela colonialidade na
educação como um todo, principalmente no que diz respeito à população negra
brasileira e afrodiaspórica, como afirmam os autores (BERNARDINO-COSTA; MAL-
DONADO-TORRES; GROSFOGUEL, 2020).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente artigo problematizou e refletiu sobre o ensino das relações étnico-
-raciais no ensino básico, junto à implementação da Lei nº 10.639/03, a partir do
Trabalho de Conclusão de Curso da autora Fernanda Vitória Nunes, que tratou da
invisibilidade das escritoras negras gaúchas no âmbito escolar e acadêmico.
Destacamos a importância de se ter uma disciplina e formação continuada de
professores e de estudantes dentro das universidades para que pensem as relações
étnico-raciais e que possam inserir nas suas pautas, nos seus estudos estas temá-
ticas. Para que estudantes, principalmente os de licenciatura, tenham capacidade,
conhecimento e sensibilidade para atuar em prol de uma pedagogia da diversida-
de, contribuindo para o ensino-aprendizagem de uma educação antirracista.
Sabemos que os desafios para construir uma educação antirracista de quali-
dade e equidade são muitos, mas não podemos deixar que as dificuldades nos
silenciem. Não se pode mais ficar na ideia de que estudar as questões raciais nos
espaço escolar seja tratado como um assunto “delicado”. Pois a escola é formada
por diversos grupos étnicos e não faz mais sentido somente reproduzir conteúdos
etnocêntricos. Os currículos precisam ser plurais.
O campo para se trabalhar as relações étnico-raciais com jovens e adultos, uti-
lizando os conteúdos programáticos da Lei 10.639/03 é muito amplo e possível de
se aplicar em sala de aula. Tanto no ensino básico, como no superior. As escritoras
negras gaúchas conhecidas nesta pesquisa, juntamente com outros referenciais,
servem como um ótimo propósito para que as instituições de ensino se tornem
cada vez mais decoloniais com conteúdos que contemplem todas as culturas, em
especial histórias e memórias de mulheres negras.

182 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
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AUTORIA
Fernanda Vitória Nunes
Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA)
E-mail: fernanda_vnunes@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8325-7826
Lattes: https://lattes.cnpq.br/9758228669169279

Giane Vargas Escobar


Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA)
E-mail: gianeescobar@unipampa.edu.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1138-0753
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9076251806577555

184 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
AZOILDA LORETTO DA TRINDADE E A
FORMAÇÃO DA IMAGEM DAS MULHERES
NEGRAS
Gisele Rose da Silva

A invisibilidade é a morte em vida.


Azoilda Loretto da Trindade

INTRODUÇÃO
A(s) história(s) das mulheres negras no Brasil foi invisibilizada, pois seus feitos
foram silenciados, apagados e/ou omitidos por pensadores de várias áreas de co-
nhecimento em função da construção de uma superioridade dos feitos homens,
principalmente dos homens brancos.
Num país como o Brasil onde mais da metade da população é negra, pensar es-
paços no âmbito da cultura, que ainda hoje são majoritariamente brancos é perce-
ber esse fato como sendo natural, fato este que nos faz entender como a discussão
racial é difícil e afeta diretamente a imagem de subalternização e invisibilização
construída para as pessoas negras presentes na em nossa sociedade, em todos os
níveis e campos sociais.
Em se tratando das mulheres negras a situação se torna cada vez mais comple-
xa, pois o racismo estrutural vigente na sociedade brasileira coloca as mulheres
negras em algumas situações vivenciadas de forma recorrente em vários aspectos
sociais, mas neste artigo iremos refletir a imagem da mulher negra dentro do âm-
bito cultural, pois o presente artigo visa resgatar os estudos da intelectual negra
Azoilda Loretto da Trindade sobre a imagem das mulheres negras em relação a
invisibilidade e subalternidade fazendo um paralelo com a realidade atual e mos-
trando a importância desta discussão para assuntos relacionados a: imagem da
mulher negra na mídia e representatividade.

RACISMO, CULTURA E MÍDIA


A intelectual negra Azoilda Loretto da Trindade cursa o Doutorado em Comuni-
cação, pois foi excluída do Doutorado em Educação em função do racismo, elitismo
e do eurocentrismo, ao retornar a academia sendo orientada pelo Professor Dou-
tor Muniz Sodré de Araújo Cabral escreve a tese intitulada FORMAÇÃO DA IMA-
GEM DA MULHER NEGRA NA MÍDIA.
A motivação para esta escrita de Azoilda se dá por causa de uma imagem do
CEAP (Centro de Articulação das Populações Marginalizadas), pois a instituição fez

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
uma campanha “Miss Brasil 2000” onde tinha uma criança negra, que era uma me-
nina em situação de rua utilizando um cetro que era uma vassoura, o manto era um
saco plástico, e os dizeres eram “Miss Brasil 2000”, fato que nos demonstra como é
naturalizado o quanto nós todas e todos estamos atravessados e atravessadas por
um olhar de invisibilidade, por um olhar de não potência, por um olhar não afetu-
oso, por um olhar que não escuta os nossos próprios desejos.
Seguindo a motivação dos escritos de Azoilda Loretto o interesse aqui é inves-
tigar, discutir, refletir acerca de como o racismo estrutural influencia na formação
cultural e midiática. Nesta direção, estamos realizando um estudo sobre a imagem,
mais especificamente sobre a visibilidade ou tipo de visibilidade da mulher negra
no contexto da mídia brasileira.
Pensar sobre racismo no Brasil é compreender nossa realidade de uma outra
forma, dando visibilidade a personalidades que fujam do perfil eurocêntrico e que
abrace o maior número de singularidades possível gerando uma perspectiva aco-
lhedora e crítica, pois esta é uma das bases desta reflexão, que entra em choque
com o racismo estrutural que está impregnado em nossa sociedade e que tanto
afeta as instituições de ensino.
Ao falarmos de contribuição do povo negro já deixamos explícito que existiram
colonizadores que se posicionaram efetivamente como os que construíram este
país, inviabilizando a existência dos povos indígenas que aqui já vivam. O racismo
é um fator permanente na sociedade, na medida em que ele é o produto de uma
longa elaboração histórica e não intelectual (MOORE, 2007).
O conceito de raça construído socialmente que em algumas situações e mo-
mentos parece ainda estar ligado ao conceito biológico é o fator que irá advir até
os dias de hoje, pois ao pensarmos sobre nosso país é impossível não focar que a
ideia de raça, aplicada ao racismo, faz parte nossa estrutura. Ao trilhar o caminho
rumo ao entendimento de como a discussão sobre raça é forjada dentro da pers-
pectiva de marcar socialmente sujeitos e existências, compreendemos que:

O racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja,


do modo “normal” com que se constituem as relações políticas,
econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia
social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural
(ALMEIDA, 2018, p. 38).

O racismo se apresenta de forma estrutural em nossa sociedade quando pesso-


as negras estão excluídas da maioria das estruturas sociais e políticas. Sugerimos
a necessidade reconstrução da imagem das mulheres negras no âmbito da cultura
para que as tantas mazelas ainda vividas sejam enfim sanadas. A dimensão deste
olhar ainda é muito significativa e fortalecedora no contexto cultural, e é ou pode
ser fundamental para a construção e reconstrução de imagens positivas das mu-
lheres negras.

186 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Estudar as relações entre o racismo e a cultura é levantar a ques-
tão da sua ação recíproca. Se a cultura é o conjunto dos compor-
tamentos motores e mentais nascido do encontro do homem
com a natureza e com o seu semelhante, devemos dizer que o
racismo é sem sombra dúvida um elemento cultural. Assim, há
culturas com racismo e culturas sem racismo.

Contudo, este elemento cultural preciso não se enquistou. O ra-


cismo não pôde esclerosar-se. Teve de se renovar, de se matizar,
de mudar de fisionomia. Teve de sofrer a sorte do conjunto cul-
tural que o informava (FANON, 1969, p. 36).

No âmbito da cultura, são muitas as necessidades de intervenção, no que se


refere à questão do racismo. Nenhum país muda na perspectiva da superação do
racismo e das desigualdades e injustiças sociais, nem se transforma e se constitui
diante do silenciamento da população. Ao pensarmos sobre racismo no Brasil um
dos pontos de partida seria o fato de que ao falarmos sobre o assunto a maioria da
população acredita que essas práticas são naturais e que não conseguem distinguir
certas ações por isso o racismo faz parte da nossa estrutura social e está tão enrai-
zado que consegue ir se modificando de forma rápida.
Todos e todas que convivem com a mídia afirmam que sua importância gene-
ralizada é inegável. Contudo, como intervir no sentido de que a apresentação da
mulher negra não reproduza estereótipos e exclusões e não reforce preconceitos?
Nesse contexto se faz necessário analisar a influência da mídia na construção
de uma identidade desumanizada do negro. Filmes, séries, novelas entre outros
durante muito tempo contribuíram para invisibilizar a realidade do negro, criar
estereótipos e principalmente construir uma identidade desumanizada.
A mídia influencia no modo de fazer cultura, a partir da lógica de sua produção,
o que significa que se passou a produzir arte ressaltando a ideia do branco e de
toda a sua cultura como sendo superior dentro de um contexto ideológico e colo-
nizador, pois:

A mídia brasileira é descomprometida com a população brasi-


leira, quer cultural, quer etnicamente. Seu caráter racista am-
plia-se e constitui-se “À sombra do difusionismo culturalista
euroamericano e do entretenimento rebarbativo oferecido às
massas pela televisão e outros ramos industriais do espetáculo”
(SODRÉ, 1999, p.244). O caráter conservador e excludente da
mídia brasileira é gravíssimo, sobretudo quando percebemos
seu caráter humano, ou seja, a mídia é feita por pessoas, seres
humanos. No entanto, é mais grave ainda o fato de ela incul-
car nos/nas negros (as) – nos afro-brasileiros – a deformação de
suas imagens, da naturalização da subalternidade, produzir uma
baixa auto- estima da população negra, por não apresentar re-
ferenciais positivos do (a) negro (a) e da sua cultura (TRINDADE,
2005, p. 58-59).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 187


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Mesmo em função de muitos avanços perceptíveis na construção da imagem
das mulheres negras na mídia brasileira, podemos perceber que ainda hoje existe
uma resistência na mudança da perspectiva de uma ideia distante da subalterni-
dade e de outros atores que muitas vezes contribui ainda mais para o processo
de invisibilidade, pois se, na mídia, os processos de produção e de reprodução do
racismo e do machismo, com a consequente consolidação das desigualdades ra-
ciais, efetivam-se nas relações entre os vários integrantes da sociedade, é preciso
investigar como alguns destes integrantes, justamente os que estão produzindo
imagens na mídia, encarnam ou "incorporam" certos efeitos destas relações (TRIN-
DADE, 2005).

A IMAGEM DAS MULHERES NEGRAS


Refletir sobre a imagem das mulheres negras difundidas ao longo dos anos em
nossa sociedade é pensar em uma trajetória diretamente liga ao racismo estrutu-
ral, machismo e sexismo, mas não podemos deixar de ressaltar que desde os es-
critos de Azoilda Loretto da Trindade a situação já teve um avanço extremamente
necessário e justo que ainda não é o suficiente, pois:

Ao pensar em “mulher negra”, têm-se um desenho mítico com


relação ao seu tipo de cabelo, tom de pele, formato dos olhos,
nariz, altura, compleição física, etc., habitado pelo imaginário
social e reforçado pelos estereótipos de que o negro é selvagem,
rústico e sem elegância, que vem desde os anos do Brasil Colô-
nia (FERNANDES, 1989, FANON, 1983, MACIEL, 1987) (AMORIM,
SILVA, PEREZ, p. 04).

Dos padrões de mulheres negras escolhidos para estarem na mídia podemos


perceber que nos processos seletivos para propagandas relacionadas ao consumo,
geralmente são escolhidas aquelas que se aproximam mais do padrão feminino
eurocêntrico. Podemos perceber apesar disso existe uma mudança no perfil em
relação ao tipo de cabelo, pois atualmente se tornou mais frequente a presença de
mulheres negras com seus cabelos no natural e/ou utilizando tranças, sem precisar
recorrer a alisamentos ou perucas.
Na televisão percebemos um avanço, pois ao pensarmos que durante muitos
anos as mulheres negras só conseguiam papéis que como bem definiu a intelectual
Lélia Gonzalez se pautavam na tríade: mulata, mãe preta e doméstica (GONZALEZ,
1984):

Uma outra face desse discurso racista hierarquizante que in-


fluencia a produção da imagem da mulher negra brasileira é a
idéia de mestiçagem. Há, no final do século XIX, um poderoso
discurso que identifica o Brasil como o último bastião da mes-
tiçagem. Em finais do século passado o Brasil era apontado

188 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
como um singular exemplo de estremada miscigenação racial
(SCHWARCZ,1993, p.11). A mestiçagem funciona como um an-
teparo em uma sociedade que precisa justificar uma profunda
discriminação racial fundada no paradigma da cor, assim como
a dificuldade de se transformar o Brasil em uma nação moderna
(TRINDADE, 2005, p.95).

Como atentou (TRINDADE, 2005) a mídia, ainda hoje, rejeita as mulheres ne-
gras, sobretudo as de pele mais escura e que não se encaixem no perfil eurocên-
trico de beleza e, quando as apresenta, pelo menos como referencial socialmente
valorizado, essa visibilidade, embora presente, também, em outros contextos, con-
figura-se, numa única direção.
Precisamos ressaltar que após a promulgação da Lei 10.639/03 que institui a
obrigatoriedade de estudos da História e Cultura Afro-brasileira e Africana nas es-
colas, a perspectiva em relação a imagem do povo negro vem sendo modificada,
inclusive com a inserção das cotas raciais nos vários âmbitos sociais.
Considerando a imagem de mulheres negras, atualmente, temos representa-
tividade no âmbito jornalístico, artístico, literatura, educação, dentre outros, mas
se pensarmos a quantidade homens e mulheres brancas que já estão a séculos
ocupando esses espaços, o número de mulheres negras ainda é muito pequeno.
Ressaltamos também que está representatividade é de suma importância para
a formação de imagens positivas que irão influenciar crianças negras, o fato de ter-
mos pessoas negras, mas em especial mulheres negras em posição de visibilidade,
compreendemos que o racismo estrutural pode e deve ser eliminado de dentro
das estruturas das nossas instituições.
Muitas conquistas foram realizadas, não podemos negar, mas ainda há muito a
ser feito no tange as mulheres negras, pois devemos atrelar cultura e mídia atre-
ladas a lutas e conquistas dos movimentos antirracistas, e que além da mínima
presença dos negros em geral e mulheres negras em particular, há ainda a forma
com que elas aparecem sendo em certos casos reduzidas a beleza física e a subje-
tividade sensual e sexual (AMORIM, SILVA e PEREZ, 2017).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo procuramos trazer para o âmbito dos estudos sobre a imagem das
mulheres negras os escritos da intelectual negra Azoilda Loretto da Trindade e sua
importância para a visibilidade deste assunto tão atual e necessário.
Ressaltando a importância desta discussão trouxemos alguns questionamen-
tos e mencionamos alguns avanços quando pensamos sobre representatividade da
imagem das mulheres negras em alguns espaços culturais e de mídia.
Trouxemos uma reflexão sobre racismo estrutural que afeta nossa sociedade e
consequentemente cria e/ou reforça estereótipos e invisibiliza os feitos das pesso-
as negras, em especial as mulheres negras. Aqui, propomos uma mudança dentro

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 189


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
desta estrutura através da construção de imagens positivas que irão afetar direta-
mente as gerações futuras nos dando a esperança de podermos viver numa socie-
dade justa, igualitária e livre do racismo.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG): Letramento,
2018.

AMORIM, Eliã; SILVA, Elis; PEREZ, Clotilde. A Mulher Negra na Publicidade: Entre Estereó-
tipos, Preconceitos e Tendências. Recife, 2017.

FANON, Frantz. Em Defesa da Revolução Africana. 1ª edição portuguesa, 1969.


GONZALEZ, Lélia. Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira. In: Revista Ciências Sociais
Hoje, Anpocs, p 223-244, 1984.

MOORE, Carlos. Racismo e Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racis-
mo. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007.

TRINDADE, Azoilda Loretto da. A formação da imagem da mulher negra na mídia. Tese de
Doutorado. UFRJ/CFCH Escola de Comunicação. 2005.

AUTORIA
Gisele Rose da Silva
Mestranda em Relações étnico-raciais CEFET-RJ
E-mail: rose.gisele@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3041-6184
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7523961640836457

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
PERCURSO ACADÊMICO E INTELECTUAL DE
MULHERES NEGRAS, MESTRAS E DOUTORAS EM
EDUCAÇÃO: NARRATIVAS E HISTORICIDADE
Monique Karine Gomes
Claudia da Silva Santana

INTRODUÇÃO
Este trabalho é originário de pesquisa realizada em âmbito de mestrado, em
um Programa de Pós-Graduação em Educação, e visa apresentar um relato dessa
investigação.
Trata-se de um recorte da temática maior, em desenvolvimento, cujo objeto
de estudo consiste em narrativas de mulheres negras, mestras e doutoras em Edu-
cação, acerca da escolha da profissão e continuidade no exercício da docência e a
influência das relações étnico-raciais e de gênero nesse processo.
Considerando as relações étnico-raciais e de gênero, a influencia e significação
das experiências do indivíduo, numa sociedade desigual, evidências de injustiça ra-
cial sistemática e estrutural nas relações sociais comprometem o desenvolvimento
humano; nas associações as mulheres negras e docência, eles agravam ainda mais
as contradições e os desafios da escolha de e da permanência em ser docente.
A sociedade brasileira, como Nilma Gomes e Petronilha Silva (2011) apontam, é
pluriétnica e pluricultural, e a educação escolar é entendida como parte constituin-
te do processo de humanização, socialização e formação. Dessa forma, é funda-
mental que os projetos, as experiências, e as atividades pedagógicas sejam elabo-
radas e trabalhadas em prol da diversidade:

Alunos, professores, e funcionários de estabelecimentos de en-


sino, são, antes de mais nada, sujeitos sociais [...], pertencentes
a diferentes grupos étnico-raciais, integrantes de distintos gru-
pos sociais. São sujeitos com histórias de vida, representações,
experiências, identidades, crenças, valores e costumes próprios
que impregnam os ambientes educacionais por onde transitam
com suas particularidades e semelhanças, compondo o contexto
da diversidade. Por isso, ao planejar, desencadear e avaliar os
processos educativos e formadores, não podemos considerar a
diferença como um estigma (GOMES; SILVA, 2011, p. 18).

Todavia, com a lógica mercantilista direcionando e reformulando práticas peda-


gógicas, discutir temáticas que se desviam das demandas do mercado de trabalho,
como diversidade e justiça racial, tem sido uma tarefa desafiadora. Vale fazer al-
guns apontamentos:

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 191


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Em nosso país, a prática da docência é retratada, como uma realidade repleta
de contradições, complexidade e desafios, com ênfase em baixos salários, condi-
ções precárias de trabalho, massificação do ensino, e aumento das exigências rela-
cionadas à atividade docente, ocasionando a redução de professores em atividade
e da procura pela carreira docente. (GATTI et. al., 2010).
O não reconhecimento, pelas secretarias de Educação, da importância de cur-
rículos multiculturais e de propostas voltadas para uma pedagogia da diversidade
impede, segundo Gomes e Silva (2011), o desenvolvimento profissional dos docen-
tes individual e coletivamente – o que tende a significar um comprometimento na
relação dos docentes com seus alunos.
Estudar a escolha e as motivações dessas docentes negras exige de nós um
olhar particular sobre suas experiências, suas histórias vividas, suas relações, por-
que, como apontam Prezotto, Ferreira e Aragão (2015, p. 27), “os professores não
podem ser compreendidos de modo desvinculado do seu espaço de trabalho, nem
de suas relações pessoais e conhecimentos prévios”. Apesar do avanço, considerá-
vel na inserção da discussão sobre diversidade no campo da formação de profes-
sores, Gomes e Silva (2011) afirmam a restritação ao interesse específico de alguns
profissionais, “cujo investimento se dá devido a sua própria história de vida, per-
tencimento étnico/racial, postura política, escolha pessoal, desejo e experiências
cotidianas que aguçam a sua sensibilidade diante da diferença” (GOMES; SILVA,
2011, p. 20).
Hooks (2013) ressalta que o ato de levar para a academia estudos relacionados
a questão de raça, gênero, classe social está intrinsecamente ligado a nossa práxis.
“Quando nossa experiência vivida da teorização está fundamentalmente ligada a
processos de autorrecuperação, de libertação coletiva, não existe brecha entre a
teoria e prática” (HOOKS, 2013, p. 85-86). A teoria se torna um refúgio, “um lugar de
cura”, para questionamentos e compreensão das situações do cotidiano. Por meio
da pesquisa, passamos a olhar as situações opressoras de forma mais consciente e
crítica, deixando de considerá-las normais.

APORTE TEÓRICO
A Teoria Histórico-Cultural, de Vigotski, cujo foco de estudo é o desenvolvimen-
to humano, foi influenciada pelas ideias de Karl Marx. Dentre os princípios da te-
oria vigotskiana, a história e a cultura possibilitaram a caracterização do ser como
histórico e cultural, inserido em um ambiente culturalmente estruturado, e social
mesmo em sua individualidade.
O conceito de história em Marx e Engels (1998) é compreendida como um pro-
duto social, cujos pressupostos são a produção da história, a produção dos meios
de produção e a reprodução da vida (procriação).
Já o trabalho, conforme Leontiev (2004), é a atividade humana fundamental
para que esses pressupostos sejam atendidos. Por meio dele, é possível o “fazer

192 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
história”, e a adaptação do ser humano à natureza e a modificação desta para
atendimento de suas necessidades, o que resulta na ampliação de habilidades e
conhecimento. Esse processo é realizado ao longo do desenvolvimento histórico da
sociedade humana e a partir de um mundo de objetos e fenômenos criados e deixa-
dos pelas gerações antecedentes.
A história trata-se de uma relação natural e, ao mesmo tempo, social por ser
uma ação conjugada de vários indivíduos (MARX; ENGELS, 1998). E as condições da
vida social são determinadas pelo trabalho (BERNARDES, 2017).
Tomando como base os estudos de Pino (2000), podemos compreender cultura,
numa perspectiva vigotskiana, como sendo é produto das atividades humanas (téc-
nicas, artísticas, científicas, tradições, instituições sociais e práticas sociais), das
relações sociais e trabalho social, tudo o que não é dado pela natureza, mas cons-
truído e transformado pelo ser humano. As produções culturais passam de geração
para geração, mas não intactas e, sim, sendo influenciadas e transformadas pela
geração seguinte – considerando o momento histórico que esta geração vivencia.
Tratar da cultura da população negra requer que olhemos para a força dos escra-
vizados, da luta pela sobrevivência, que ainda hoje inspira os seus, sendo uma iden-
tidade ressignificada, devido à anulação social sofrida durante anos. A população
negra ainda tem dificuldade de acesso aos bens culturais, como educação, o que
tem lhe custado muita luta e união de forças; e ainda há olhares e falas pejorativas
que lhe são direcionados. São marcadores sociais.
Nesse contexto, entende-se que estudar a constituição das mulheres negras,
sujeitos desta pesquisa, do ser docente, do processo de desenvolvimento e da mu-
dança, requer que olhemos para a história e a sociedade na qual elas estão inseri-
das, o (não) acesso aos bens culturais, e as representações simbólicas que circulam
em seu meio social através dos signos, em especial da linguagem. Requer, também,
olhar para sua própria cultura, a negra, que a representa com suas cantigas, diale-
tos, danças, signos de uma cultura.
Isso porque, num entrelaçamento entre os dois conceitos história e cultura,
Luria (2010) nos aponta a relação dialógica entre os indivíduos.
Num processo de desenvolvimento, a fala, permite interação entre sujeitos fa-
lantes e “atos de fala”, não se reduz ao código, nem uma produção do indivíduo,
mas um evento social, resultado da interação verbal de um locutor e de um inter-
locutor. É esse caráter interlocutório da fala que faz dela o lugar de produção de
sentidos” (PINO, 2005, p. 143).
Pela fala, podemos identificar, relacionar, inserir, mas também separar e frag-
mentar esse ser. As falas negativas e os estigmas são marcas nessa representação
externa do mundo dentro de nós. As vozes que estão constituindo esse ser, na fa-
mília, na escola/universidade, no trabalho podem estar fortalecendo estigmas so-
ciais e desenvolvendo a consciência da divisão social e racial que ainda nos rodeia.
Por processo de significação, Pino (2005) engloba as ideias de “significado” e
“sentido”, e entende da mesma forma que Vigotski e outros teóricos: como uma

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 193


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
produção social, pois se concretizam na vida cotidiana das pessoas, nas diferentes
práticas sociais, e é resultado da natureza semiótica e da dinâmica da sociabilidade
e da criatividade humanas.
Quando pensamos na universidade, para as mestras e doutoras em Educação,
há o significado, o conceito geral de espaço formativo; já o seu sentido apenas elas
por si só podem dizer, pois se trata de uma vivência individual, atravessada por um
contexto social e cultural e faz parte da constituição de cada uma.
Bernardes (2017) retrata que os processos educativos em geral impactam na
transformação do psiquismo humano por meio das relações sociais, e ressaltam a
relevância dos signos e instrumentos.
Leontiev (2004), ao fazer uma analogia, ressalta que as desigualdades entre
pessoas de classes e camadas sociais diferentes ou de regiões e países diferentes,
mesmo sendo da mesma espécie, não são de ordem biológica natural:

Ela é produto da desigualdade econômica, da desigualdade de


classes e da diversidade consecutiva das suas relações com as
aquisições que encarnam todas as aptidões e faculdades da na-
tureza humana, formadas no decurso de um processo sócio-his-
tórico. (LEONTIEV, 2004, p. 293).

Eis, então, a importância de se falar da luta e das conquistas dos movimentos


negros ao longo da história, dentre elas o acesso à educação, que resultaram nas
ações afirmativas já aqui apresentadas.
Leontiev ressalta: “A concentração das riquezas materiais na mão de uma classe
dominante é acompanhada de uma concentração da cultura intelectual nas mes-
mas mãos” (LEONTIEV, 2004, p. 294).
Com esta oportunidade de fazer pesquisa, a partir da metodologia escolhida e à
luz da teoria vigotskiana, objetiva-se, numa relação dialética e dialógica, transitar
entre o social e o individual, a significação e a atribuição de sentidos para estudar
as experiências dessas mulheres.
De escravizadas a descolonizadas, as mulheres negras foram galgando melho-
res posições sociais, todavia, ainda estão longes do patamar de igualdade e justiça
social. No subitem anterior, resgatamos este percurso que nos levou a identifica-
ção das mulheres negras na posição de trabalhadoras encarregadas de serviços
de baixa complexidade e com baixa remuneração. Ainda falta mais um pedaço de
caminho para inter-relacionarmos raça, gênero e docência.
As práticas educativas se diferenciaram entre as etnias, e entre o sexo masculino
e feminino, resultando na priorização das classes mais Foi só na virada do século
XIX que grupos de trabalhadores, organizados em torno de ideais políticos, apre-
sentaram propostas para a educação de suas crianças e criação de escolas, com o
discurso, estampado nos jornais, de que “a instrução era a arma privilegiada de
libertação para a mulher”. (LOURO, 2004). Isso justificaria, acredito, o que ainda
vemos no Brasil: a feminização da profissão docente na atuação quase exclusiva de

194 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
professoras, mulheres, nos anos escolares iniciais, como vocação materna no trato
com as crianças pequenas.
Com a educação formal ainda sendo definida e governada pelos homens, estudos
feministas surgem, e, então, a pedagogia feminista, a fim de romper com as rela-
ções hierárquicas presentes nas salas de aula tradicionais, “A voz do/a professor/a,
fonte da autoridade e transmissora única do conhecimento legítimo, é substituída
por múltiplas vozes [...]” (LOURO, 1997, p. 113).
Hooks (2013) destaca que ainda se predomina a figura do homem branco como
detentor do conhecimento, exercitando seu poder e sua autoridade em sala de
aula, e cujas muitas práticas são meras reproduções de sistema de dominação.
Ao abordar princípios teóricos com enfoque no cultural e social, faz-se coerente
destacar a dialógica da interseccionalidade com a perspectiva histórico-cultural,
pois evidencia-se um ser em sua totalidade e completude, considerando a base da
sua constituição huamana, munido de uma atuação e contribuição social efetiva.
A interseccionalidade se refere à identidade da qual participa o racismo in-
terceptado por outras estruturas. Trata-se de experiência racializada, de modo a
requerer sairmos das caixinhas particulares que obstaculizam as lutas de modo
global. Akitorene (2019) acrescenta que a interseccionalidade nos oferece apoio
metodológico e criticidade para reconhecermos a possibilidade de sermos opri-
midas e de corroboramos com as violências, para (re)construir nossa identidade e
livrá-las de subordinações oriundas da estrutura moderna e social na qual estamos
inseridas.
Tratar, então, da professora negra requer olhar para os demais marcadores so-
ciais que as constituem. Só assim, é possível que múltiplos sistemas de opressão
e discriminação sejam identificados a partir de determinada identidade social, e a
influência na constituição destas mulheres.
Petronilha Silva (1996 apud GOMES; SILVA, 2011) nos diz: “as marcas da cultura
africana são tais, no Brasil, que, independentemente da nossa ascendência étnica,
elas passam a fazer parte de nós” (2011, p. 24). Cabe a nós, segundo Gomes e Silva
(2011), não só apenas aceitar a diversidade étnico-racial, mas se posicionar e exigir
reconhecimento e valorização tanto das semelhanças quanto das diferenças para
que um projeto educativo e social se efetive de forma democrática.
A partir da leitura de pesquisas sobre a temática, encontradas durante o levan-
tamento bibliográfico, identificou-se que os objetivos de pesquisa apresentam-se
coerentes e exequíveis, e o aporte teórico articula o papel destas mulheres nos
aspectos das relações étnicos-raciais, de gênero e da docência.

O PROBLEMA E OS OBJETIVOS DE PESQUISA


Quais são as falas dessas professoras negras acerca das relações étnico-raciais
e de gênero, e da influência destes fatores na escolha, no processo formativo e na
permanência delas no exercício da docência?

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 195


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A pesquisa tem como objetivo geral compreender a experiência de mulheres
negras, mestras e doutoras em Educação, em seu percurso formativo e itinerário
docente, identificando, em suas narrativas, o contexto para escolha e continuidade
na profissão docente.
Os objetivos especificos são:
• Identificar nas narrativas das docentes negras, mestras e doutoras em Edu-
cação, atribuições de sentidos para a experiência docente;
• Investigar o percurso formativo e itinerário docente de cada uma;
• Compreender o contexto de escolha e continuidade na profissão docente;
• Analisar a relação profissão docente e os fatores raça e gênero em suas
experiências.

METODOLOGIA
A opção metodológica foi a pesquisa narrativa. Segundo os autores Clandinin e
Connelly (2011), trata-se de uma metodologia de pesquisa que tem como objetivo
o estudo das experiências. Partimos da ideia de que utilizar a pesquisa narrativa
como produção de dados de uma pesquisa é, antes de mais nada, um modo de
pensar sobre e estudar experiências (CLANDININ; HUBER, 2010).
A seleção das participantes foi feita por meio de convite para ex-estudantes bol-
sistas do Programa de Pós-graduação em Educação escolhido, formadas no período
de 2009 a 2018, que se autodeclararam negras no ato de solicitação de bolsas de
estudos para agências de fomento e se dispuseram a participar voluntariamente da
pesquisa. Os procedimentos para produção dos dados previram a constituição de
fórum de discussão online e encontros individuais com recursos de áudio gravação
e posterior transcrição.
Ao escolher o período de 2009 a 2018, a intenção foi a de confirmar hipótese
de que o acesso ao ensino universitário, promovido pelas políticas de ações afir-
mativas no início dos anos 2000, teria impulsionado e favorecido os estudos na
pós-graduação por parte das professoras negras formadas na primeira década do
milênio. Dados empíricos denotam aumento de pós- graduandas neste Programa.
As questões abertas versaram sobre suas trajetórias escolares, percepções sobre a
influência das relações de raça e gênero no cotidiano da formação acadêmica e pro-
fissional, questões identitárias e protagonismo das mulheres negras pós-graduadas
na docência, nas ciências e academia.
Clandinin e Connelly (2011), influenciados pela visão deweyana, inter-relacio-
nam Educação, experiência e vida, afirmando que estudar Educação é estudar ex-
periência, é estudar a vida. A experiência é pessoal e social, pois as pessoas são in-
divíduos mas estão sempre em interação social, situados em um contexto também
social.
Adicionalmente, a pesquisa narrativa tem um caráter fortemente autobiográfi-
co. Os autores afirmam: “Nossos interesses de pesquisa provêm de nossas próprias

196 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
histórias e dão forma ao nosso enredo de investigação narrativa” (CLANDININ;
CONNELLY, p. 2011, p. 165). Dessa forma, justifica-se o interesse pessoal da pesqui-
sadora, como mulher negra e professora, para investigação de relevante temática
e estudo das experiências de outras docentes negras. Ademais, urge a necessidade
de discutir a temática em um momento histórico no qual o acirramento da intole-
rância racial tem sido recorrentemente noticiado, no Brasil e no mundo.
O material do fórum online e dos encontros foi transcrito e sistematizado.
Considerando a evolução da pesquisa e seu momento atual, tem-se buscado a
interpretação dos dados sobre o desenvolvimento cultural destas docentes. Como
pesquisadora, duas posturas metodológicas têm sido adotadas, coerente com o
embasamento teórico aplicado:

a. o objetivo da pesquisa não é a análise de fatos, mas de pro-


cessos, ou seja, da história, da gênese desses fatos [...];
b. contrapor à análise descritiva dos problemas a análise expli-
cativa. [...] (PINO, 2005, p. 179).

Dessa forma, com base na perspectiva histórico-cultural, tem-se objetivado


considerar a totalidade e a historicidade dos fatos, compreendendo o contexto de
escolha e continuidade na profissão docente destas mulheres.

RESULTADOS E ANÁLISE
Ao investigar o percurso formativo e itinerário docente desses sujeitos em sua
historicidade, buscou-se identificar, nas narrativas produzidas, atribuições de senti-
dos para a experiência docente enquanto educadoras negras.
Os indícios apontam para a escolha da docência como atividade profissional
para posicionamento e reconhecimento social inicialmente; a figura da mãe, em
constraste com o modelo patriarcal de família; a influência de professoras/es no
percurso formativo; e a luta constante destas mulheres para transformar ou rejei-
tar conceitos, imagens e representações impostos socialmente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pesquisa aponta como as relações étnico-raciais e de gênero permeiam a his-
toricidade do sujeito e a significação da experiência no processo de formação aca-
dêmica e itinerário docente, influenciando a constituição da experiência destas mu-
lheres negras professoras, mestras e doutoras.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 197


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
REFERÊNCIAS

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198 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
PREZOTTO, Marissol. FERREIRA, Luciana H.; ARAGÃO, Ana M. F. Sobre águas e meninos:
formação de professores numa perspectiva histórico-cultural. Laplage em Revista (Soro-
caba), vol. 1, n. 3, 2015, p. 20-33.

AUTORIA
Monique Karine Gomes
Universidade Metodista de Piracicaba – Unimep
E-mail: moni.kgomes@yahoo.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-9291-5747
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1159250385416244

Claudia da Silva Santana


Universidade Metodista de Piracicaba – Unimep
E-mail: santana50claudia@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9371-1669
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4942370919275284

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 199


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
REVISANDO A CONSTRUÇÃO DE
EPISTEMOLOGIAS NO INSTITUTO DE CIÊNCIAS
SOCIAIS -UFAL

Larissa Souza Silva Lopes

Minha raiva é aquela que queima quente,


dura e profunda, e que eu abertamente admito
que tenho carregado comigo há anos.
Ela é reavivada quando novas injustiças emergem
para me lembrar de que não há tal coisa como tolerân-
cia e de que, se isso existisse,
seria baseada em eu ser tolerada pela branquitude,
por uma home(mulhe)ridade que ignora que ela
mesmo é intolerante.
Shirlay Anne Tate

DE ONDE NASCEM AS REFERÊNCIAS?


Sabemos que o século XIX ficou marcado por grandes transformações nos mais
diversos âmbitos da vida em sociedade. O social, o político e o econômico pas-
savam por mudanças e conflitos que exigiam do campo científico uma resposta
imediata para os dilemas até então apresentados. É nesse contexto que surge a
Ciências Sociais, sua chegada está ligada a “procura de um saber que permitisse
entender o presente e orientar a ação social e política futura” (CANO, 2012, pp.96).
A disciplina surge basicamente guiada sob aspectos das Ciências Naturais, que
até então eram vistas como o conjunto de saberes mais legítimos e capazes de expli-
car os diversos fenômenos da humanidade. Conferia-se a um seleto grupo compos-
to por homens, brancos, letrados e ocidentais, a missão de fazer ciência e explicar
o mundo. Esse recorte que define quem pode ou não construir a ciência, foi se
replicando desde período do nascimento da filosofia ocidental e até atualmente,
parece demonstrar tímidos sinais de mudança. Segundo Santiago Castro-Gómez
(2005), o nascimento das Ciências Sociais aparece como elemento constitutivo
para o “projeto de modernidade” que já estava em curso. Castro-Gómez (2005)
reitera que a Ciências Sociais através da escrita, desempenhava um papel impor-
tante, pois o ato de escrever servia como método de validação fulcral dos questio-
namentos sociais. O filósofo (Castro-Gómez, 2005, p.81) afirma que

Escrever era um exercício que, no século XIX, respondia à ne-


cessidade de ordenar e instaurar a lógica da civilização e que
antecipava o sonho modernizador das elites criollas. A palavra

200 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
escrita constrói leis e identidades nacionais, planeja programas
modernizadores, organiza a compreensão do mundo em termos
de inclusões e exclusões.

Dessa forma, a palavra escrita e quem a escreveu se cristalizaram como fontes


verídicas, e por vezes únicas, da interpretação do mundo. As referências se constru-
íram e ganharam autoridade1 como vozes que ecoaram e ainda ecoam sob um tom
universal, e que durantes os séculos XIX partiam do ocidente para o “resto”, crian-
do e silenciando narrativas, cenários, ideais, crenças, corpos e etc.
Stuart Hall (2016) fala sobre essa relação entre o Ocidente e o “Resto”, buscan-
do demonstrar como essa divisão se construiu por intermédio da violência física,
subjetiva, simbólica e epistêmica. Hall (2016, p. 316) elucida que Ocidente pode ser
entendido como um conceito que coaduna princípios de categorização, por exem-
plo, ocidentais e não ocidentais; como um conjunto imagético: a personificação do
moderno, a representação do que se “precisa ter ou chegar”; como um o padrão
de comparação, e por fim, como ideologia, o espelho que reflete os critérios de
avaliação o moderno. Todas essas características compõem as referências primá-
rias das Ciências Sociais e das demais ciências. Grande parte da história que as Ciên-
cias Sociais carrega, é endossada por referenciais que estão do lado do Ocidente,
e não do Resto.
Com toda essa retomada do “nascimento” das referências, é válido para dizer
que esse cenário não foi e nem permanece inerte, pouco a pouco a Ciências Hu-
manas e Sociais foi rompendo com esse “projeto modernizador” marcado pela vio-
lência colonial. A busca por novas formas de compreender o social, a necessidade
de romper com os binarismos e com o olhar unilateral, trouxe novas perspectivas,
teorias e respectivamente, novos referenciais. Essas mudanças marcam o início de
um giro considerável que disciplina faz em direção a pluriversalidade e ao combate
das “histórias únicas”2.
Partindo dessas considerações, o objetivo deste trabalho é compreender em
que medida essas transformações epistemológicas refletem na maneira como se
produz cientificamente nos dias de hoje. Mais especificamente, entender como
se constrói uma bibliografia e quais são os referenciais utilizados. Essa busca pelo
“como” e “qual” pode confirmar ou invalidar a ideia de que o atual campo da Ci-
ências Sociais parte de uma multiplicidade de epistemologias. Essa multiplicidade
parte de algumas matrizes teóricas, que fomentam a produção científica de modo
mais horizontal. Para entender melhor vamos tratar de duas delas na próxima ses-
são, os estudos pós-coloniais e decoloniais.

1 CLIFFORD, James. “A autoridade etnográfica”. In: Clifford, J A experiência etnográfica: Antro-


pologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2008, p. 17-58;
2 ADICHE,Chimamanda. Palestra proferida no TED Talks, Oxford (Inglaterra), julho.2009. Dispo-
nível em: https://www.youtube.com/watch?v=D9Ihs241zeg . Acesso em 05 de novembro de 2019.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 201


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A GUINADA PÓS-COLONIAL E DECOLONIAL
Os estudos pós-coloniais surgiram por volta de 1980 com o intuito de cons-
truir um novo arsenal epistemológico desvinculado do empreendimento colonial
e do “projeto de modernidade” idealizado por aqueles que se consideravam “civi-
lizados”. Segundo Sérgio Costa (2006), os estudos contavam com diversos tipos de
orientações e expoentes que estavam interessados na desconstrução de essen-
cialismos e na derrocada de ideias ligadas a concepções dominantes sobre a mo-
dernidade. Dentre os expoentes que compunham esse movimento temos: Gayatri
Chakravorty Spivak, Frantz Fanon, Edward Said e entre outros, que partiam de uma
crítica da produção de conhecimento centrada na formulação de modelos euro-
cêntricos e hegemônicos. Os pesquisadores pós-coloniais tinham como princípio a
incorporação e enunciação de múltiplas vozes e agentes na produção de conheci-
mento, procurando romper com os enclaves formulados anteriormente.
Nadar contra a corrente neste momento significava denunciar os efeitos discur-
sivos negativos produzidos pela empreitada colonial (TOSTE, 2016), junto ao es-
forço na produção de conhecimentos e visões pluriversais sobre o social. As vozes
que começavam a ecoar dentro da Ciências Sociais não vinham tão somente de um
suposto centro aglutinador, há agora a importância de ouvir e compreender os que
foram colocados a margem e classificados como arcaicos/incivilizados/atrasados.
Os estudos pós-coloniais se mostraram fundamentais na construção de “um
marco analítico que permite ao mesmo estudar a relação entre sujeito e discurso e
identificar o espaço de criatividade do sujeito” (COSTA, 2006, p.131), vieram com
a ideia de rota alternativa para a produção de conhecimento branco, patriarcal e
eurocêntrico. É o início de uma jornada de críticas, revisões e novas narrativas para
reformulação daquilo que se considerava clássico e basilar.
Dentro dessa disputa de narrativas, os estudos decoloniais partem da crítica
aos seus antecessores. A ausência de referências sobre América Latina e toda a sua
complexidade, trouxe os estudos decoloniais ao enfrentamento pelo reconheci-
mento de todo o campo epistemológico produzido pela população indígena, ne-
gra e radicalizada. Outro fator importante levado em conta nessa crítica aos es-
tudos pós-coloniais, seria pelo fato de seus expoentes serem, de grande maioria,
radicados em centros de estudos ingleses (COSTA e GROSFOGUEL, 2016). A teoria
decolonial parte exatamente do medo de reiterar esse processo de colonização
intelectual que ocorreu nos estudos pós-coloniais. Com isso a corrente teórica se
centra na enunciação a partir de um locus, que é a América Latina e as experiências
compartilhadas aqui, sem deixar de considerar as retóricas de outros locais que
também sofreram com processos coloniais de dominação. Vale lembrar que cor-
rente decolonial aparece no cenário científico no final dos anos 90 e início dos anos
2000, mas alguns dos seus princípios básicos podem ser vistos anteriormente em
reivindicações da tradição de pensamento negro (COSTA e GROSFOGUEL, 2016,
p.17).

202 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O pensamento Decolonial suscita a ideia de Colonialidade do Saber para de-
monstrar que as consequências desse legado epistemológico e eurocentrista pre-
cisam ser suplantadas, e a partir disso se abra espaço para as múltiplas epistemes
desse novo mundo que não aceita mais ser tomado como sub/inferior/menor (POR-
TO-GONÇALVES, 2005).
Até mesmo dentro da perspectiva decolonial, precisamos nos atentar para as
categorias de raça e gênero, observando como e por quem são abordadas. Ochy
Curiel (2011) nos chama atenção para o fato de que a perspectiva decolonial é uma
posição política que atravessa o pensamento e a ação individual e coletiva, que
perpassa imaginários, corpos, sexualidades e formas de atuar e ser no mundo; que
se expressa na prática intelectual e social, construída a partir do pensamento próprio
e de experiências concretas . A autora argumenta também que esse giro decolonial
nas ciências sociais, abriu espaço para vozes que questionam as noções do po-
der-saber, embasadas por um olhar interseccional.A noção de interseccionalidade
neste caso é percebida como premissa principal para a construção de epistemolo-
gias mais representativas, é nesse momento que a influência do feminismo negro
de Bell Hooks, Kimberle Crenshaw, Patricia Hill Collins e entre outras chegam para
somar junto a teoria decolonial feminista latino-americana.
É preciso justificar que não colocamos a perspectiva decolonial como “porta
salvadora” ou imune as hierarquias acadêmicas e epistemológicas. O intuito desta
retomada é elucidar que vozes autônomas e contra-hegemônicas vem escreven-
do e levantando suas próprias vozes dentro de correntes mais horizontais. Nilma
Lino Gomes (2016) aponta a coragem e o compromisso político e epistemológico
o Movimento Negro e da intelectualidade negra brasileira, como mecanismo de
mudança social na atualidade. Sueli Carneiro (2011), assim como outras intelectu-
ais negras brasileiras, elucida a importância da perspectiva negra e interseccional
dentro da luta de mulheres no contexto latino-americano. Lélia Gonzalez (1988)
com a categoria político-cultural de amefricanidade ultrapassa as limitações de ca-
ráter territórial, linguistico e ideológico propostas pela hegemonia branca do co-
nhecimento.
Apresentados todos esses aspectos que nos dão condições de entender, ler, e es-
crever novas epistemologias a partir de realidades não hegemônicas e hierarqui-
zantes, observarmos então, a partir de um recorte específico de uma realidade, o
Instituto de Ciências Sociais da Ufal.

UM RECORTE SIGNIFICATIVO: REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS


DE MONOGRAFIAS DEFENDIDAS EM 2018 NO CURSO DE
BACHARELADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DE ALAGOAS (UFAL)
Buscando criar uma conexão entre esse movimento de mudanças epistemo-
lógicas nas Ciências Sociais e a realidade apresentada nos cursos de bacharelado,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 203


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
algumas perguntas surgiram como ímpeto inicial para essa investigação, elas são: O
que as referências bibliográficas de trabalhos acadêmicos podem nos dizem sobre
a invisibilização de determinadas narrativas e a utilização recorrente de outras?
Quem são essas referências e de onde elas partem? Padrões de gênero e raça são
identificados nesses conjuntos de referências?
O corpus escolhido para pesquisa, engloba todos os Trabalhos de Conclusão de
Curso defendidos no ano de 2018 no curso de Bacharelado em Ciências Sociais da
Ufal. O acesso a esses dados se deu através da plataforma digital do Instituto, onde
os trabalhos estão disponíveis abertamente ao público. A escolha desse recorte
temporal se justifica pela quantidade de trabalhos defendido no ano em questão.
Se comparado aos anos anteriores, que também estão disponíveis na plataforma,
2018 contabiliza um total de 20 trabalhos, quase o dobro da média de outros anos.
Isso pode ser explicado pela política adotada na Universidade no ano de 2018, que
estabeleceu um prazo para a entrega da monografia de estudantes que já estavam
a mais de 4 anos vinculados a universidade. Dessa forma o recorte contempla alu-
nos vivenciaram a universidade em temporalidades diferente e em ritmos acadê-
micos também diferentes, possibilitando talvez uma margem de percepção dessas
mudanças no campo das Ciências Sociais.
A metodologia utilizada foi a análise documental com foco quantitativo, onde
priorizou- se a categorização das referências sob os seguintes parâmetros: raça,
gênero e frequência de citação. Ao todo 20 trabalhos foram acessados, contabi-
lizando um total de 441 referências analisadas. A análise documental partiu da
identificação por foto, lattes, sites de universidades, grupos de pesquisa e painéis
de divulgações de eventos que trouxesse as informações necessárias sobre as refe-
rências em questão. Os resultados estão representados nos gráficos a seguir:

TABELA 1: SEXO

Legenda: M: Masculino; F: Feminino; O: Outro; N.I: Não-identificado.


Fonte: Tabela produzida pela autora.
GRÁFICO 1: SEXO

Legenda: M: Masculino; F: Feminino; O: Outro; N.I: Não-identificado.


Fonte: Gráfico produzido pela autora.

Categorizar a amostra escolhida sob o quesito sexo foi algo preferível já que a
categoria de gênero demandaria uma investigação com um diálogo maior com as
fontes, o que nesse caso, não é uma das atribuições da pesquisa. A categoria sexo
também é válida e fundamental compreender o perfil desses epistemologias uti-
lizadas pelos estudantes. Como podemos perceber nas imagens acima, a maioria
das referências utilizadas são masculinas, ou seja 57% dos referenciais teóricos dos
trabalhos produzidos em 2018 são compostos por homens. Enquanto que apenas
26% do total de referências é composto por pesquisadoras. A variável N.I está pre-
sente em quase todos os gráficos e ela representa todos aqueles referenciais que
não forma ser identificados através de fotos ou por demais informação.

TABELA 2: RAÇA

Fonte: Tabela produzida pela autora.


GRÁFICO 2: RAÇA

Legenda: A: Amarelo; B: Branco; P: Pretos e Pardos; I: indígenas.


Fonte: Gráfico produzido pela autora.

Quanto ao quesito raça, os critérios utilizados foram basicamente o tom de pele


e traços fenotípicos. Gostaria de dizer que essa escolha não significa que auto de-
claração, como afirmação e discussão teórica e prática (MUNIZ, 2012) não seja
relevante ou deva ser desconsiderada, ela apenas não coube na abordagem ado-
tada pelo trabalho pelo cunho quantitativo que o mesmo sugere. A escolha por
esse quesito se insere também no contexto atual onde a heteroidentificação se
torna cada vez mais presente nas universidades, inclusive na Ufal, e levanta ques-
tionamento sobre a efetividade das ações afirmativas, os resultados após imple-
mentação e isso vem modificando o espaço acadêmico (DAFLON et al, 2013). A
discrepância dos dados aqui apresentados, nos levam a crer que o caminho tanto
da universalização e acesso à universidade está só começando, como também que
toda a discussão que delineamos até aqui sobre a possibilidade de um giro ou mu-
dança epistemológica e, acima de tudo, prática/concreta, não se apresenta de fato
nessa realidade estudada.

206 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
TABELA 3 - RAÇA E GÊNERO

Legenda: H.B: Homem Branco; M.B: Mulher Branca;


H.N: Homem Negro; M.N: Mulher Negra; N.I: Não- identificado.
Fonte: Tabela produzida pela autora.

GRÁFICO 3 - RAÇA E GÊNERO

Legenda: H.B: Homem Branco; M.B:Mulher Branca;


H.N: Homem Negro; M. N:Mulher Negra; N.I: Não- identificado.
Fonte: Gráfico produzido pela autora.

Ao cruzarmos as variáveis sexo e raça , tivemos novamente uma grande gama


de trabalhos orientados por perspectivas de homens brancos, um total de 243 re-
ferências de um universo de 441. Um pouco mais da metade de toda essa revisão
parte do pensamento desses pesquisadores. Vale salientar que, o objetivo da pes-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 207


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
quisa não é anular ou desvalorizar as produções teóricas que aparecem com mais
veemência nos trabalhos de conclusão. O foco central está em como a recorrências
dessas referências nos mostram que epistemologias brancas e “clássicas” , loca-
lizadas no “lado” positivo/moderno/universal, ainda continuam construindo boa
parte do conhecimento produzido nas Ciências Sociais. O giro pós-colonial e o ven-
daval decolonial parecem não ter balançado suficientemente as bases das ciências
sociais do lado de cá. É certo que com um estudo ensaístico como esse, generaliza-
ções e afirmações de cunho conclusivo não são tão assertivas, porém a ausências e
presenças que os dados trazem sob a invisibilização, e até o total apagamento de
narrativas como a de mulheres negras, e logo em seguida de homens negros, nos
fazem refletir sobre a forma como o conhecimento está sendo produzido, repas-
sado e publicizado.
Para fechar essa reflexão trago aqui os últimos dados referentes a Tabela 4 e o
Gráfico 4 que retidos dessa investigação que mostram autores como Pierre Bour-
dieu, C. Geertz e Michel Agier como os “grandes pensadores” que não podem ser
deixados para trás nas citações, chegando a serem citados em até 5 dos 20 traba-
lhos que analisamos.

TABELA 4: FREQUÊNCIA DE CITAÇÃO

Fonte: Tabela produzido pela autora.


GRÁFICO 4 - FREQUÊNCIA DE CITAÇÃO

Fonte: Gráfico produzido pela autora.

MULHERES NEGRAS TAMBÉM ESCREVEM ARTIGOS


CIENTÍFICOS
A necessidade de finalizar essa discussão trazendo essa afirmação se pauta pelo
fato do racismo ser, assim como afirma Lélia Gonzalez (1983), uma neurose cul-
tural brasileira, que ligada às relações dominação e colonialidade partem de uma
hierarquia sempre colocou mulheres negras num lugar de subalternidade e muitas
vezes de animalidade. Joselina da Silva (2014) afirma que refletir sobre a atuação
de mulheres negras e sobre os aspectos relacionados a raça e gênero dentro do
movimento de mulheres negras, também está relacionado a produzir sobre um
aspecto que ainda se apresenta como novo na literatura científica brasileira. Preci-
samos urgentemente reformular o que entendemos como referencial teórico para
que as guinadas e vendavais tomem rumos práticos no fazer científico, e assim
consigam construir uma nova sociedade que não só incorpora vozes, mas faz com
que elas ecoem e se tornem a cada vez mais representativas no nosso cotidiano.
Bell Hoocks (2015) para nos alerta para o movimento que está em curso pelas fe-
ministas negras, que se caracteriza pela rejeição das hierarquias raciais, econômicas
e de gênero impostas pelo ocidente e pela supremacia branca. A autora reforça que
esse movimento de quebra é característico da construção de uma teoria feminista
que tem como objetivo a contribuição, a integração e a participação libertadora e
coletiva (HOOKS, 2015, p.208).
A ciências sociais passou muito tempo avaliando e criticando o fazer do Outro,
fazer o movimento contrário pode ser extremamente proveitoso quando feito de

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 209


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
dentro para fora, pois assim podemos nos perceber para além do títulos, das re-
gras e dos cânones que formulam o que é ciência ou não. Este trabalho para além
problematizar a epistemologia e a reprodução de tantos clássicos, procura elucidar
que existem campos que não podem mais deixar de serem vistos, discutidos e ci-
tados, nos atenta a responsabilização pelo alinho entre a teoria e a prática no fazer
científico.

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AUTORIA
Larissa Souza Silva Lopes
Graduanda do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Alagoas
E-mail: larisslopes00@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6950978230258899

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 211


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
NARRATIVAS DE MULHERES NEGRAS EM
FLORIANÓPOLIS: ASSOCIAÇÃO DE MULHERES
NEGRAS ANTONIETA DE BARROS (AMAB)
Carol Lima de Carvalho

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Muito se discute a importância de visibilizar histórias, memórias e narrativas
da população negra na construção do Brasil. Além da produção de pesquisas que
possibilitam um deslocamento geopolítico e outras posturas epistemológicas, isto
é, buscando evidenciar formas plurais de conhecimentos. Caminhando nessa pers-
pectiva de estudo, os escritos desse trabalho propõem apresentar aspectos da mi-
nha pesquisa intitulada “Negras em movimento: Associação de Mulheres Negras
Antonieta de Barros -AMAB (1985 a 2015)” defendido em 2016. Este trabalho apre-
sentou um diálogo em torno das memórias de mulheres negras da atualidade, na
medida em que elas enfatizam a relevância de outras mulheres negras que lutaram
por direitos, cidadania, educação e melhores condições de vida em décadas ou
mesmo séculos anteriores.
O fio condutor foi uma das organizações formadas por mulheres negras em San-
ta Catarina, mais precisamente em Florianópolis: a Associação de Mulheres Negras
Antonieta de Barros (AMAB). Por meio da leitura dos documentos de acervos pes-
soais e entrevistas realizadas, o objetivo foi identificar a importância da memória
da Professora e Deputada Antonieta de Barros para as integrantes da Associação,
bem como seus perfis e o histórico do movimento. Cabe ressaltar, o meu lócus de
enunciação, de tal modo que possam compreender quais experiências possibilita-
ram a construção desse trabalho.
Eu sou uma mulher, negra, nascida em Florianópolis, SC, bisneta, neta e filha
de mulheres negras que possibilitaram mudanças significativas na cidade, além de
construir os universos culturais, sociais e políticos. No entanto, elas, assim como
tantas outras, estão invisibilizadas na historiografia catarinense. Meu percurso
escolar esteve atrelado a necessidade de saber mais da história da minha ances-
tralidade, pois os momentos de infância e adolescência na escola, quando apren-
díamos sobre a conjuntura da cidade, pude perceber algumas lacunas, como por
exemplo, a ausências das histórias contadas pela minha bisavó e avó, cuja presença
delas, e de outras pessoas negras, estavam evidentes na construção de universos
culturais, sociais e políticos de Florianópolis. A partir disso, alguns questionamen-
tos emergiram ao longo desse processo, um deles é: “Por qual motivo as reverbe-
rações de mulheres e homens africanos/as e afro-brasileiros/as, no caso a minha
ancestralidade, não estavam presentes nos conteúdos ensinados a mim e aos/as
meus/minhas colegas?” (CARVALHO, 2019, p. 16).

212 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
É importante destacar que a construção de concepções excludentes é uma das
reverberações do racismo estrutural. Segundo Silvio Almeida, o racismo é uma
forma “sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se
manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em
desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender do grupo racial ao qual
pertençam” (ALMEIDA, 2019, p. 32). Assim, pode-se afirmar que a ausência de me-
mórias, histórias e narrativas plurais sobre pessoas negras na historiografia da ci-
dade é um impacto dessa estrutura racista. Atrelado a isso, Sueli Carneiro aponta
o conceito de epistemicídio, causado principalmente em bancos escolares, e na
própria escrita da história,

“Epistemicídio é a negação aos negros da condição de sujei-


tos de conhecimento, por meio da desvalorização, negação ou
ocultamento das participações do Continente Africano e da
diáspora africana ao patrimônio cultural da humanidade; pela
imposição do embranquecimento cultural e pela produção do
fracasso e evasão escolar são os processos denominamos epis-
temicídio (CARNEIRO, 2014, p.1). – grifos meus

Neste viés, Grada Kilomba traz algumas reflexões sobre a invisibilidade das
mulheres negras, enfatiza que foram “excluídas de possuir certas esferas de sub-
jetividade reconhecidas, a saber: a política, social e individual” (KILOMBA, 2019,
p.81). Diante desse contexto, me debrucei em estudos que focassem nos universos
negros, sobretudo de mulheres negras na cidade, considerando suas as dinâmicas
entre oralidades e letramentos, seus modos de ser, ver, sentir e pensar o mundo.
Cada vez mais que me aproximava das histórias e narrativas, mais entendia a im-
portância em tornar os espaços das pesquisas um momento seguro para “perfor-
mar as subjetividades, para reconhecer mulheres negras, em particular, e pessoas
negras e geral, como sujeitos1 desta sociedade – em todos os sentidos reais da
palavra” (KILOMBA, 2019, p. 81).
Dito isso, neste caminhar, além de aprender muito com as mulheres de minha
família, pude conhecer as fundadoras da Associação de Mulheres Negras Antonieta
de Barros –AMAB, cuja história protagonizou meu trabalho de conclusão de curso
e também minha dissertação no mestrado, assim como contribuiu para o meu for-
talecimento enquanto mulher negra na cidade. Isto é, não foram, muitos casos ain-
da não são, compreendidas como humanas e produtoras de conhecimento. Nesse
sentido, meus estudos tiveram intuito de evidenciar a importância em considerar
as epistemologias plurais.
Um dos caminhos para pensar as trajetórias, memórias e narrativas das mulhe-
res negras, é pela interseccionalidade, entendida a partir das concepções de Kim-

1 Neste trabalho a concepção de sujeito está atrelada ao que pontua Grada Kilomba, eviden-
ciando que não é uma noção de individuo, mas compreendendo que “interesses coletivos e individuais
de mulheres negras devem ser reconhecidos, validados e representados oficialmente na sociedade”
(KILOMBA, 2019, p. 74).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 213


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
berlé Crenshaw (2002) ao propor uma discussão sobre a perspectiva interseccional
destaca que o “racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas
discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas
de mulheres, raças, etnias, classes e outras” (CRENSHAW, 2002, p. 177). A autora
Carla Akotirene (2019) expõe que “a interseccionalidade visa dar instrumentalida-
de teórico- metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e
cisheropatriarcado – produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras
são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e
classe, modernos aparatos coloniais” (AKOTIRENE, 2019, p. 19). E a autora pontua
também a relação entre interseccionalidade e identidades, para ela a perspectiva
interseccional ao “em vez de somar identidades, analisa-se quais condições estru-
turais atravessam corpos, quais posicionalidades reorientam significados subjeti-
vos desses corpos, por serem experiências modeladas por e durante a interação
das estruturas, repetidas vezes, colonialistas” (AKOTIRENE, 2019, p. 44). Desse
modo, as mulheres negras as quais dialogo nas minhas pesquisas possuem suas
singularidades, estas reverberaram, inclusive, nos seus posicionamentos, formas
de ver, sentir e pensar o mundo.
A perspectiva interseccional, por considerar os atravessamentos nos corpos
negros, possibilita o diálogo entre ancestralidade, tradição oral e oralidade, uma
vez que tudo isso compõe aspectos de memórias afrodiaspóricas que muitas ve-
zes estão ancoradas em corpos negros (ANTONACCI, 2013). As concepções sobre
ancestralidade estiveram presentes nas reflexões, principalmente ao compreen-
der que as fundadoras da AMAB acreditavam na continuidade da luta contra o
racismo iniciada em séculos anteriores. Nesse contexto, é importante evidenciar
que a ancestralidade tem um papel fundamental no “processo de formação iden-
titária e de libertação, especialmente das pessoas inseridas nos contextos sociais
desprivilegiados, pois implica em conhecer e reconhecer-se na construção de sua
história e missão de vida” (MACHADO; ABIB, 2011, p. 6). Significa, portanto, que
elas aprenderam com aquelas que as antecederam, e a partir disso, suas posturas
e posicionamentos políticos envolvem o reconhecimento da pluralidade de identi-
dades e identificações negras em Florianópolis.
Outra reflexão pontual é sobre a tradição oral e a oralidade pensadas como
dinâmicas de (re)existências, Hampaté Bâ ao trazer apontamentos sobre a trans-
missão de culturas sob regimes de oralidade expõe concepções sobre a tradição
oral, entendida como costumes, saberes e narrativas que passam de geração em
geração por séculos (HAMPATÉ BÂ, 1982, p.167). Além disso,

Esta forma envolve uma visão particular do mundo, ou melhor,


uma presença particular no mundo. Desta forma, no seio das fa-
mílias, a tradição oral conta com a participação dos mais velhos,
que ministram ensinamentos ligados às circunstancias da vida
(experiências vividas), mas também por meio de histórias, fábu-
las, lendas, em que evocam os grandes feitos dos seus ancestrais
(DAMASCENO, 2019, p. 2).

214 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Conectada a esta concepção de tradição oral está a oralidade, é a maneira em
que as populações africanas e afro diaspóricas produziram, ainda produzem, co-
nhecimentos, “de geração em geração a oralidade vem perpetuando as experiên-
cias e conhecimentos dos povos africanos que dessa forma construiu e propagou
sua cultura” (FILHO; ALVES, 2017, p.55).
Por fim, para este trabalho cabe ressaltar a luta antirracista como algo presente
na vida dessas mulheres, principalmente pela trajetória de constituição da Associa-
ção de Mulheres Negras Antonieta de Barros (AMAB), uma das organizações mobi-
lizadas pelas protagonistas dessa pesquisa. Na década de 1980, mais precisamente
em 1988 elas se organizaram como grupo intitulado “Mulheres Negras Nós”, já na
década de 1990 o grupo passou a se reconhecer como “Grupo de Mulheres Ne-
gras Cor de Nação” e ao conhecerem Antonieta de Barros, passaram a utilizar seu
nome ao se intitularem “Grupo de Mulheres Negras Antonieta de Barros”, e em
2001, com a necessidade de atribuir um caráter jurídico para o grupo, fundaram a
“Associação Mulheres Negras Antonieta de Barros- AMAB”. Todo esse percurso é
baseado na intenção de lutar contra o racismo, contra as violências, pela equidade
e bem viver.
Considerando a importância da Associação, o intuito do trabalho, portanto
é apresentar reflexões a partir do meu trabalho de conclusão de curso que teve
como objetivo discutir o papel dos movimentos de mulheres organizados em Flo-
rianópolis entre os anos 1985 a 2015, em especial a AMAB e a memória, história
e representação de Antonieta de Barros. Além da discussão sobre as dinâmicas
sociais, culturais e políticas na trajetória de vida destas mulheres, as quais constru-
íram, e ainda constroem, universos negros na cidade do sul do país.

ASSOCIAÇÃO DE MULHERES NEGRAS ANTONIETA DE BARROS


(AMAB): NARRATIVAS, MOVIMENTOS E TRANSFORMAÇÕES

“Compreender os desafios em torno da decolonialidade de


corpos, saberes e seres demanda questionar postulados euro-
cêntricos tidos como verdades universais, indagar as formas de
construção do conhecimento e lançar conhecimentos na contra-
mão das configurações hegemônicas e dominantes de produção
cultural, social e científica” (RASCKE, 2016, p. 427).

O trecho acima destaca a perspectiva central deste trabalho: pensar a decolo-


nialidade de corpos, saberes e seres, possibilitando os questionamentos a respeito
de pensamentos eurocêntricos tidos como única verdade, e assim, determinando
quais conhecimentos são válidos, assim como quem produz esse conhecimento.
Neste exercício de deslocamentos, destaco a potencialidade da Associação de Mu-
lheres Negras Antonieta de Barros (AMAB), uma organização sem fins lucrativos
que por meio da educação, saúde e cultura lutaram, e ainda lutam, pela fim do

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 215


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
racismo, discriminações e pela equidade de direito, além disso evidenciar a impor-
tância de Antonieta de Barros para luta antirracista. A AMAB foi fundada no dia 8
de março de 2001, pelas professoras Neli Góes Ribeiro, Altair Alves Lucio, Valdeo-
nira Silva dos Anjos e Maria de Lourdes da Costa Gonzaga.
A professora Neli Góes Ribeiro, nasceu na cidade de Florianópolis no ano de
1948, possui graduação e mestrado pela Universidade Federal de Santa Catarina-
UFSC. Trabalhou na Universidade do Estado de Santa Catarina- UDESC, em que
proporcionou mudanças significativas, como a construção de um Núcleo de es-
tudos afro-brasileiros, como professora universitária reivindicou a visibilidade de
sujeitos negros e negras na academia. A professora Altair Alves Lucio, nasceu na
cidade de Tubarão no ano de 1944, é formada em Magistério e em Pedagogia. Pos-
sui especialização em Orientação Educação, Relações Raciais e Multiculturalismo,
trabalhou como Professora em Tubarão e também na Prefeitura Municipal de Flo-
rianópolis. A professora Valdeonira Silva dos Anjos, nasceu em 1935, no Morro da
Caixa d’água, na cidade de Florianópolis. Formada em magistério e fez o curso de
História e o maior objetivo era eminentemente estudar sobre o negro, sempre quis
fazer trabalho sobre o negro. Atualmente fazendo parte de grupo de mulheres e da
velha guarda da escola de samba Dascuia. A Professora Maria de Lourdes da Costa
Gonzaga, mais conhecida como dona Uda, nascida em 1938, também no Morro da
Caixa d’água. Foi professora, normalista e catequista, atualmente faz parte do gru-
po de mulheres e da velha guarda de escola samba, Embaixada Copa Lord.
Antes de evidenciar as ações da AMAB, é preciso pontuar o papel da Antonieta
de Barros nesse processo. Antonieta que nasceu em 1901 na cidade de Florianó-
polis, numa conjuntura de modernização, ela de Catarina de Barros e Leonor de
Barros, ela sempre esteve em movimento, teve a oportunidade de estudar. No ano
de 1922 inicia a trajetória no magistério, único lugar que aceitava mulheres. Mis-
são máxima de ação de vida, alfabetizou adultos, formou gerações, não deixa que
traços de cor e cultura sejam traços de distinções. Educação para todas as pessoas.
Antonieta, depois de 30 anos de dedicação ao ensino, passa a ser respeitada. Seu
curso primário é disputado, dedica-se a educação. Acredita que a educação como
forma de emancipação, Naquele contexto, Santa Catarina continuou defendendo
as concepções machistas e sexistas.
O grupo de pessoas negras, entre elas Antonieta de Barros, recusadas pela aca-
demia, eles criam em 1929 o Centro Catarinense de Letras. Ela tinha pseudônimo
Maria da Ilha e uma coluna chamada Farrapos de Ideias, mesmo nome do seu livro.
Tornou-se deputada em 1935, a primeira mulher negra em Santa Catarina e no Bra-
sil. Aprova projetos para magistério, escola de educação profissional feminina, com
a ditadura Varguista encerra seu primeiro mandato. Antonieta retorna em 1948,
acompanha a segunda guerra mundial e totalitarismo. Impossibilidade de formar
em curso superior, não aceita mulheres. Seus projetos viram leis. Complicações
diabéticas ela morre em março de 1952. Trazer toda essa trajetória de Antonieta
permite refletir sua importância, ela foi a primeira mulher e primeira deputada

216 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
negra do Brasil, aprovou leis. Foi uma mulher que presenciou os impactos da es-
cravidão, utilizou da educação como caminho para superar o machismo, racismo e
todo tipo de discriminação. E lutou por uma educação para todas e todos.
Conforme dito anteriormente, as fundadoras da AMAB incorporam as discus-
sões e pautas de Antonieta de Barros para seu grupo em 1999. Desse modo, quan-
do fundam a Associação, já possuem ideias consolidadas sobre esta mulher. Dito
isso, o estatuto da AMB previam algumas questões bem importantes, como por
exemplo, a organização e desenvolvimento das ações voltadas para combate à dis-
criminação racial e para valorização da mulher e da população negra, desenvol-
vimento e apoio às ações (estudos e pesquisas) sobre a situação da mulher e da
população negra em Santa Catarina, incentivo e apoio às ações de iniciativa pública
e privada que contribuam para desenvolvimento da mulher e da população negra,
por último, estabelecimento de um diálogo permanente com instituições e enti-
dades incluídas as do movimento negro, e do movimento de mulheres nacionais e
internacionais.
Para atender a estas demandas, ao longo dos anos construíram ações e projetos
voltados para valorização e reconhecimento dos modos de ser, estar, pensar e ver
o mundo. Destaco o projeto “Formando Educadoras Negras” do ano de 2002, era
o acompanhamento acadêmico aos ingressantes no curso de pedagogia à distância
na UDESC, foram 40 mulheres negras formadas, considerando uma das primeiras
ações afirmativas na Universidade, como desdobramento desse projeto foi a ação
“Mulher negra no mergulho de sua história” em 2004, contou com a realização de
relatos de experiências por parte de mulheres negras com atuação na aérea da
educação.
Outra ação da AMAB é o “Projeto afro artesãs” em 2002 utilizavam da orali-
dade e também tradição oral para transmissão de conhecimento, através da pro-
dução de artesanato, elas contavam histórias e colocavam questões pertinentes
para mulheres negras em Florianópolis. Além disso, consideravam a importância
da implementação da lei Federal 10.639/03, para viabilizar as ideias e discussões
realizaram o evento intitulado “Seminário Lei 10.639/03 para além dos muros da
escola” tendo como linha o Racismo, discriminação e preconceito são prejudiciais
à convivência humana. Para evidenciar a história de Antonieta de Barros, elas or-
ganizaram os momentos de “Conversas com Antonieta” rodas de conversas sobre
a população negra, principalmente as mulheres negras, em Florianópolis, e a cada
11 de julho proporcionavam as “Homenagens aos aniversários de nascimento de
Antonieta de Barros”.
Devido a todas estas ações é importante visibilizar as lutas dos movimentos
de mulheres negras, uma vez que é preciso valorizar as produções de conheci-
mentos por e sobre mulheres negras em Florianópolis, entendendo que elas estão
em movimentos proporcionando transformações numa estrutura racista, exigin-
do serem reconhecidas enquanto sujeitos. Além disso, importa destacar que seus
posicionamentos políticos estão diretamente relacionados com suas experiências,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 217


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
não existindo uma indissiociação entre teoria/prática. Isto é, a partir das práticas
se constroem as teorias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os escritos desse trabalho tem a intenção de ser indicativos para estudos so-
bre mulheres negras na cidade de Florianópolis, considerando a importância da
luta feminina e negra pela equidade, direito e cidadania. Suas e também minhas
concepções perpassam a noção de “Nossos passos vem de longe”. No caminhar do
trabalho percebi que minhas inspiração eram “traduzidas pelo símbolo sankofa.
Um dos ideogramas do conjunto adinkra dos povos Akan, sankofa significa: “nunca
é tarde para voltar e apanhar o que ficou para trás”” (OLIVEIRA, 2016, p.15). Desse
modo, compreender naquelas que nos antecederam é se fortalecer e dar continui-
dade as dinâmicas de (re)existências. Além disso, nas pesquisas e produções de
trabalhos a ideia é proporcionar uma mudança de postura epistemológica, isto é,
ter posicionamentos e práticas decoloniais.
Sendo assim, a perspectiva decolonial é um movimento que não se atribui con-
ceitos coloniais, propõe outra relação com sujeitas da pesquisa, pois é preciso con-
siderar o sentir/pensar no mundo a partir das populações africanas, afro-brasilei-
ras e indígenas, é preciso romper com as colonialidades do saber, ser e do poder.
A partir das reflexões realizadas em torno da luta do movimento de mulheres
em Florianópolis, foi possível o exercício de um rompimento com os modelos de
produção de conhecimento eurocêntricos, em que situa ‘os outros’ - os sujeitos da
diversidade – às margens das discussões. Por este motivo, o intuito foi viabilizar e
visibilizar conjunturas que envolvem protagonismo negro e lutas sociais possibili-
tam trazer múltiplas identidades na cidade. Por fim, esse trabalho foi uma propo-
sição de alteração do cenário hegemônico a respeito da história de Santa Catarina
a partir do ensino de história, viabilizando a presença da população negra e coope-
rando assim, aspectos da Lei Federal 10.639/03 em todos âmbitos escolares.

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ENTREVISTAS

RIBEIRO, Neli Góes. Entrevista concedida a Paulino de Jesus Francisco Cardoso e Carol
Lima de Carvalho. Florianópolis, 11 de abril de 2016.

LUCIO, Alves Alves. Entrevista concedida a Paulino de Jesus Francisco Cardoso e Carol
Lima de Carvalho. Florianópolis, 13 de abril de 2016.

ANJOS, Valdeonira Silva. Entrevista concebida a Paulino de Jesus Francisco Cardoso e Ca-
rol Lima de Carvalho. Florianópolis, 24 de abril de 2016.

AUTORIA
Nome do autor: Carol Lima de Carvalho
Afiliação institucional: Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC)
E-mail: carolimac18@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0734-2831
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6834838183655202

220 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
MULHERES NEGRAS NA CIÊNCIA:
UMA REVISÃO SISTEMÁTICA DE LITERATURA

Thamiris Bernardo de Paula


Vitória Karoline Arantes de Lima
Mariana Silva de Souza
Luciana Ferrari Espíndola Cabral
Ana Lúcia Nunes de Sousa

Acadêmicas e profissionais negras


não podem se dar ao luxo de ignorar
as dificuldades de nossas irmãs (...).
Precisamos aprender a erguer-nos
enquanto subimos.
(Angela Davis)

INTRODUÇÃO
O sistema patriarcal tem privado as mulheres do acesso ao universo científico-
-acadêmico, especialmente as mulheres negras. Isto reflete diretamente no mer-
cado de trabalho, fazendo com que, para alcançar o mesmo salário das mulheres
brancas, uma mulher negra precise ter de quatro a sete anos a mais anos de estudo
(CARNEIRO, 2011). Estes padrões se repetem no espaço acadêmico, refletindo no
ínfimo número de pesquisadoras doutoras negras nas universidades brasileiras e,
consequentemente, na pesquisa sobre elas.
Assim, esta pesquisa indaga: que informações a literatura científica nos traz
sobre a produção acadêmica de pesquisadoras negras? Para analisarmos a proble-
mática, propomos uma revisão sistemática de literatura. Escolhemos esta técnica
para catalogar e resumir a literatura referente à uma parcela da população brasilei-
ra bastante numerosa, porém intensivamente marginalizada, no elitizado universo
da pesquisa acadêmica: as mulheres negras na ciência.

MARCO TEÓRICO
Ferreira (2018) aponta que menos de 3% Pós-Graduação (PPG) no Brasil são
pesquisadoras negras, sendo que Acre, Amapá e Sergipe não contavam com ne-
nhuma docente negra em seus PPG’s. Tal fato expõe a necessidade de uma melhor
discussão e compreensão desse fenômeno e de suas causas, visto que o país pos-
sui uma população maior que 48,5 milhões de mulheres negras (pretas e pardas),

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 221


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
segundo o Censo 2010 e, por questões de probabilidade, deveria--se esperar dados
mais condizentes com o quantitativo populacional.
Sueli Carneiro destaca como se torna impossível discutir a presença e a ausên-
cia de mulheres negras em diversas instâncias da sociedade, em destaque a área
acadêmica, sem traçar o racismo e o sexismo sofridos. Segundo Almeida (2019), o
racismo é estrutural. É uma forma sistemática de discriminação que tem como fun-
damento a raça e que se manifesta através de práticas conscientes ou inconscien-
tes que resultam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, de acordo com
o grupo racial ao qual eles pertencem. Além disso, é uma decorrência da própria
estrutura social, não sendo considerado uma patologia ou um desajuste institucio-
nal e sim o modo “normal” com que se constituem as relações, políticas, sociais,
jurídicas e até mesmo familiares.
Mecanismos identificados como racismo institucional vão impedir, através de
processos, atitudes e comportamentos, resultantes do próprio modus operandi, a
ascensão profissional de pessoas em função da sua raça em instituições públicas e
privadas dificultando o seu acesso à cargos de prestígio e poder. (CARNEIRO, 2011;
ALMEIDA, 2019). Desse modo, o grupo hegemônico, masculino e branco, assegura
o controle das instituições por meio da construção de consensos sobre sua domi-
nação. Bento (2002, 2002a), por sua vez, vai chamar estes consensos de pactos
narcísicos da branquitude, pois se constituem em alianças intergrupais que negam
e silenciam o racismo, ao mesmo tempo que interditam as pessoas negras dos es-
paços de poder, através do reforço do já sistema excludente baseado no rascimo
estrutural. Assim, estes consensos e pactos também são responsáveis pela natura-
lização da baixa representação de mulheres negras nos espaços ligados à produção
de conhecimento acadêmico/literário.
Davis (2017) afirma que as experiências das mulheres oprimidas, particu-
larmente as das minorias étnicas, estão imbricadas por meio das interconexões
entre opressão econômica, racial e sexual, uma vez que as vivências destas mu-
lheres “contextualizam a opressão de gênero nas conjunturas do racismo” (p.37).
Crenshaw (2004) argumenta que a discriminação racial e de gênero operam em con-
junto, limitando a chance de sucesso de mulheres negras. Isto pode ser percebido,
atualmente, nos efeitos da pandemia de Covid-19 na submissão de trabalhos aca-
dêmicos entre pesquisadoras e pesquisadores com filhos pequenos. Uma pesquisa
recente aponta que, no Brasil, apenas 46,5% das mulheres negras conseguiram
submeter trabalhos como planejado; em comparação a 67,2% de homens brancos
e 47,2% de mulheres brancas (Staniscuaski, et al; 2020).
Crenshaw (2004) apresenta uma metodologia para análise da subordinação in-
terseccional, através da qual algumas perguntas devem ser feitas à “situação-pro-
blema”, como por exemplo: “Onde está o sexismo nisso? Qual a sua dimensão
de classe? [...] De que forma esse problema é matizado pelo regionalismo? Pelas
consequências históricas do colonialismo? [...] O que contribui para a existência
dessas condições? ” (p.183).

222 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Desta forma, baseando-nos nos referencias teóricos do feminismo negro e da
interseccionalidade, nos propomos a compreender a natureza do fenômeno que di-
ficulta o ingresso e permanência das mulheres negras na carreira científica, assim
como a abordagem da temática na produção acadêmica dos últimos anos, através
de uma busca na literatura a respeito da produção acadêmica de cientistas negras.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A pesquisa foi realizada através de uma revisão sistemática de literatura, que
resume analiticamente e compara as investigações anteriormente realizadas a res-
peito de um determinado campo do conhecimento, através da aplicação de méto-
dos sistematizados e replicáveis (SAMPAIO e MANCINI, 2007). Assim, efetuamos
uma busca no Google Acadêmico, com as palavras-chave: “mulheres”; “negras”,
que deveriam estar localizadas no título do artigo. Consideramos que um trabalho
que abordasse essa temática como foco principal deveria apresentar esses termos
no título. Foi aplicado também o recorte de cinco anos (2015 a 2020) para a seleção
da amostra.
Como parâmetros de exclusão, foram retiradas da amostra: teses, dissertações,
trabalhos de conclusão de curso (TCC) e livros. Foram excluídos também os títulos
para os quais não havia a disponibilidade do artigo completo. A seguir, os artigos e
resumos foram lidos em sua integralidade, resultando na exclusão daqueles que, na
realidade, não abordavam, predominantemente, a temática desejada. A amostra
final passou por análise de conteúdo (BARDIN, 2016), possibilitando sua categori-
zação.
A identificação do quesito raça/cor das autoras foi realizada a partir de fotos,
prioritariamente, do currículo lattes. Aplicou-se uma verificação fenotípica, uti-
lizando os mesmos critérios das comissões de heteroidentificação. É importante
pontuar que as autoras do artigo passaram por formação nesta metodologia, reali-
zada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

RESULTADOS E DISCUSSÃO
A pesquisa encontrou 638 resultados. Após a aplicação dos critérios de exclu-
são, oito (8) (Tabela 1) foram considerados aptos para a amostra final da pesquisa.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 223


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
TABELA 1: TRABALHOS SELECIONADOS

LOCAL DE
CÓDIGO TÍTULOS AUTORES
PUBLICAÇÃO

Interseccionalidade e
Desigualdades Raciais e Vozes, Pretérito & Devir,
T1 de Gênero na Produção DOS SANTOS, B. S. Revista de História da
de Conhecimento entre as UESPI, PI.
Mulheres Negras

Apresentação – Mulheres MARTINS, A. C.;


Revista Docência e
T2 negras: epistemologias do ALMEIDA, V. L.;
Cibercultura, RJ.
presente MUNZANZU, C. R.

Revista do Programa
A invisibilidade das mulheres
de Pós-graduação em
T3 negras no ensino superior GONÇALVES, R.
Educação, SC.

A inserção das mulheres


PRATES, D. S.; Revista Metodista de
negras nos cargos docentes
T4 ROTERMUND, M. Administração do Sul,
das instituições de ensino
L. G. RS.
superior

Mulheres negras pioneiras


Anais do IV Congresso de
na ciência e o conhecimento
Pesquisadores Negros,
T5 produzido na enciclopédia SCHUCK, C. B.
RS.
digital Wikipédia Brasil

Trajetórias de Mulheres
Negras Brasileiras com VIII Congresso
Destaque Social e Militantes Iberoamericano de
T6 NASCIMENTO, L.
no Antirracismo: uma Pesquisa estudos de gênero.
em Construção

“O Entre Lugar”: trajetória de


vida e memória no processo BRITO, A. E. C.; REVISTA FEMINISMOS,
T7 de formação profissional de GOMES, E. M. BA.
mulheres negras

A produção intelectual
de mulheres negras no
Anais do IV Colóquio
Vale do São Francisco: a
Internacional de História
importância de suas escritas GALRÃO, P. L.;
da África e VIII Semana
T8 para a construção identitária BATISTA, R. N. S.
de Ciências Sociais, BA.
e a possibilidade de um
pensamento decolonial
Fonte: realizada pelas autoras.
Os dados mostram que todos os trabalhos selecionados foram escritos por mu-
lheres. Após a análise do critério raça/cor da autora principal de cada um dos ar-
tigos, também observamos que a maioria são mulheres negras. Entendemos que
existe uma relação entre o fato desta temática ser tratada majoritariamente por
mulheres negras e, simultaneamente, existirem poucos estudos sobre o tema. A
literatura aponta que o número total de mulheres negras atuando na pesquisa aca-
dêmica é muito baixo (FERREIRA, 2018), logo se esta temática não desperta o in-
teresse de outros grupos de pesquisadores, o número total de pesquisas também
será reduzido. A branquitude demonstra não se interessar pelos fenômenos sociais
protagonizados por mulheres negras. Existe um acordo tácito entre a branquitude
de não se identificarem como parte inerente na manutenção das desigualdades no
Brasil (BENTO, 2002).
Collins (2019) afirma que a supressão dos conhecimentos produzidos por gru-
pos oprimidos contribui para que os grupos dominantes possam exercer o seu po-
der. Mulheres negras produtoras de conhecimento sobre a temática chamam a
atenção para a política de supressão que seus projetos enfrentam. Isso contribui
para a constante invisibilização destas mulheres e de suas ideias, algo que tem sido
um fator crucial para a permanência de desigualdades raciais (COLLINS, 2019).
A partir da leitura dos textos, podemos observar que a despeito de tratarem de
opressões sofridas por mulheres negras, apenas dois trabalhos (T1 e T6) utilizam a
interseccionalidade como referencial analítico, sendo esta característica escolhida
por nós como categoria de análise. Nossa hipótese inicial era de que os artigos
utilizariam a interseccionalidade como aporte teórico- metodológico, o que não se
confirmou.
O trabalho T1 problematiza como a desvalorização do trabalho intelectual das
mulheres negras está associado ao racismo patriarcal e como o conceito de inter-
seccionalidade contribui para a compreensão do fenômeno. A autora cita que são
justamente as mulheres afrodescendentes na diáspora as denunciantes de suas
condições de desigualdade, por meio de sua produção acadêmica e militância. Tal
perspectiva coaduna à desta revisão, uma vez que, neste trabalho, podemos obser-
var que a totalidade dos artigos é escrita por mulheres negras e todos falam sobre a
produção de conhecimento de mulheres negras. O trabalho T1, assim como o tra-
balho T6, destaca a impossibilidade para as pesquisadoras negras de separar a análi-
se intelectual do ativismo. O trabalho T6 aborda trajetórias de vida das intelectuais
negras, destacando como estas intelectuais mantêm uma militância antirracista
que reverbera em suas práticas profissionais.
Os trabalhos T4, T5 e T7 são pesquisas qualitativas. Tanto o T4 como o T7 abor-
dam a presença de docentes negras em instituições de ensino superior. Um dos
resultados apontados por T4 é que a maioria das docentes entrevistadas não apon-
taram a discriminação racial como impeditivo em suas ascensões profissionais. Po-
rém as autoras refutam este dado, uma vez “[...] através dos relatos, se constatou
que as docentes procuram trabalhar o máximo, para provar as suas competências e

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 225


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
conhecimentos [...] porque em geral elas sempre terão que trabalhar mais do que
as demais docentes para serem reconhecidas” (PRATES e ROTERMUND, 2019). Re-
vela-se também que, embora atividades dentro das IES com temas étnicos-raciais
existam (muitas delas por organizações feitas por docentes negras, como aponta o
artigo), poucas são as políticas voltadas à diversidade dentro dessas instituições e,
vale ressaltar, as professoras universitárias negras “são a verdadeira tradução de
resistência, resiliência e referência dentro dessas instituições” (PRATES e ROTER-
MUND, 2019).
Já o trabalho T7, diferentemente do T4, relata racismo sofridos na infância e
dificuldade no acesso e permanência no ensino superior. Os trabalhos T4 e T7 des-
tacam que a ascensão social não garante à docente negra o fim das injúrias e discri-
minações raciais. Foi percebida também a necessidade de estudos integrando gê-
nero e raça, o que poderia ter sido realizado à luz da interseccionalidade. Todavia,
as autoras utilizaram outros referenciais teóricos.
O trabalho T5 investiga a divulgação das mulheres negras pioneiras na ciência
brasileira no Wikipédia Brasil. A pesquisa mostrou que a plataforma não forne-
ce fotos ou descrições étnico- raciais das pesquisadoras, com exceção para a Dra.
Joana D’Arc Felix. Além de não possuir repositórios e eventos para tratar sobre a
invisibilidade ou fomentar a escrita sobre cientistas pioneiras negras.
O trabalho T3 analisa, historicamente, a ausência de docentes negras no ensino
superior, discutindo a influência da dupla discriminação de gênero e raça, mas sem
citar a interseccionalidade. Apesar dos artigos T1 e T3 estarem na mesma categoria
de ensaio sobre a invisibilidade de mulheres negras como produtoras de conheci-
mento, T1 se concentra em demonstrar a produção de conhecimento de intelectu-
ais negras sobre interseccionalidade. As condições expostas no trabalho T3 estão
de acordo com o pensamento de hooks1 (1995), ao afirmar que as mulheres
negras na academia sofrem processos de exclusão e são obrigadas a provar sua
capacidade a todo tempo se reinventando e transformando a própria produção
científica.
Tanto o artigo T8 quanto o T2 tem como a natureza do trabalho uma “Revisão
de Literatura”. Em contrapartida, eles possuem uma abordagem e estrutura distin-
tas. O artigo T8, segundo a autora: “irá fazer uma revisão bibliográfica de algumas
obras, artigos que discorrem sobre a produção intelectual negra, sobre a cons-
trução identitária negra e sobre o pensamento decolonial” (GALRÃO e BATISTA,
2019). Já o artigo T2 apresenta trabalhos produzidos por intelectuais negras que
tem, por consequência, como afirma a escritora: “causado uma ‘fratura epistêmica’
no empreendimento hegemônico branco, masculino, misógino, heteropatriarcal e
transfóbico que historicamente organiza a academia aqui e alhures” (MARTINS;
ALMEIDA; MUZANZU, 2019).
No artigo T8 encontramos um recorte histórico, enfocando em produções locali-
zadas entre o fim do séc. XIX e início do séc. XX. O trabalho analisa, então, como a

1 O nome encontra-se em minúsculo por preferência da autora.

226 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
escrita de pensadores da sociedade brasileira dessa época influenciaram a constru-
ção identitária da população negra. Logo, aborda a produção intelectual de mulhe-
res negras, compreendendo as subjetividades e nuances que transpassam essa mu-
lher enquanto intelectual. E por fim, é trabalhado o conceito de decolonialidade,
relacionando-o com questões raciais e com a produção de pensamento daquelas
que foram silenciadas e invisibilizadas.
O artigo T2 expõe um conjunto de trabalhos de mulheres intelectuais negras
com uma breve explicação do que é tratado em cada trabalho. Consegue-se ob-
servar uma abordagem racial em todos eles. Isso, juntamente com o fato de as au-
toras serem mulheres negras, quebra o padrão epistemológico no qual considera
como intelectual e produtor de saberes apenas o homem branco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observamos que os trabalhos apresentados, em geral, apresentam considera-
ções que poderiam ser melhor avaliadas à luz do conceito de interseccionalidade,
uma vez que todos eles abordam a ocorrência de uma dupla manifestação de dis-
criminações sofridas por intelectuais negras. Além disso, em vários dos artigos ana-
lisados, percebemos que as autoras tangenciam uma abordagem interseccional,
entretanto não mergulham no cerne da questão.
Um segundo ponto que vale ressaltar é que esta pesquisa corrobora o exposto
por algumas autoras dos textos resultantes da busca (T1; T4 e T6) de que, em ge-
ral, são as mulheres negras que realizam pesquisas neste campo do conhecimen-
to. Diante do baixo número de publicações a esse respeito, entendemos que há a
necessidade de novas pesquisas sobre essa temática, incluindo também investi-
gações sobre esses fenômenos discriminatórios a partir do olhar da branquitude,
para que a mesma se perceba.
Esta breve revisão de literatura reforça a exclusão e invisibilização da mulher
negra, já apontada por Carneiro (2011) e hooks (1995). Mas também demonstra o
esforço empreendido pelas intelectuais negras atuantes em nosso país. Neste arti-
go, conseguimos perceber o sexismo e o racismo, mas nossa análise ainda poderia
se nutrir mais de outros aspectos sugeridos por Crenshaw (2002), como o regio-
nalismo, que optamos por excluir deste texto por questões de espaço. Esperamos
que em trabalhos futuros consigamos aprofundar a análise deste e outros aspectos
por ventura não abordados aqui.

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XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 227


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228 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


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SCHUCK, C. B. Mulheres negras pioneiras na ciência e o conhecimento produzido na enciclo-


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STANISCUASKI, F; et al. Gender, race and parenthood impact academic productivity during
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biorxiv.org/content/10.1101/2020.07.04.187583v1.full#F1> Acesso em: 19 de setembro
de 2020.

AUTORIA
Thamiris Bernardo de Paula
Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
E-mail: tbdepaula@gmail.com
ORCID: 0000-0002-2348-8307
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6820693196897288

Vitória Karoline Arantes de Lima


Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ
E-mail: arantesvitoria2016@gmail.com
ORCID: 0000-0001-9805-3693
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7521394314200803

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 229


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Mariana Silva de Souza
Centro Federal de Ensino Tecnológico Celso Suckow da Fonseca – CEFET/RJ
E-mail: silvadesouzamariana05@gmail.com
RCID: 0000-0002-8645-3232
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8434831979549882

Luciana Ferrari Espindola Cabral


Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ e Centro Federal de Ensino Tecnoló-
gico Celso Suckow da Fonseca – CEFET/RJ
E-mail: eusouluciana@gmail.com
ORCID: 0000-0003-1767-141X
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2041011803999171

Ana Lúcia Nunes de Sousa


Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ
E-mail: analucia@nutes.ufrj.br
ORCID: 0000-0003-1924-5297
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6689983214433853

230 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 42
O Paradigma
Afrocêntrico
nas Pesquisas e
Práticas Sociais no
Brasil
PROJETO CONHESER: A AUTOPERCEPÇÃO
ESTÉTICA DE CRIANÇAS NEGRAS
Danielle Soares Gomes
Carlos Vinicius da Silva Mendes

INTRODUÇÃO
A implementação da Lei 10.639/03 despertou a criatividade de educadores em
escolas de todo o Brasil no que tange à realização de projetos, oficinas, aulas, feiras
literárias, entre outras manifestações artístico-culturais que abordem a cultura e
história africana e afro-brasileira. A semana da consciência negra, comemorada na
semana do dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, tornou-
-se uma data comemorativa no interior das escolas públicas e particulares. Embo-
ra haja uma mobilização nesta data, os ambientes educacionais ainda são espaços
estruturados pelo racismo, pela invisibilidade da criança negra e sua consequente
morte ontológica. Conscientes destes problemas, este trabalho apresenta um re-
lato de experiência vivenciado a partir do projeto “ConheSer” realizado em uma
escola pública de Brazlândia, Distrito Federal, com as turmas de 4º ano do ensino
fundamental durante o segundo semestre letivo de 2017 cuja tentativa é, justa-
mente, lidar com os problemas citados.
A necessidade de contribuir para a construção do pertencimento étnico-racial
de estudantes tendo por matriz referencial os elementos da cultura africana deu
origem a esse projeto cujo objetivo principal foi contribuir no processo de autoa-
firmação de estudantes negros tendo por princípio seu pertencimento ancestral,
com a estética negra como ponto de partida para tal. Partindo da teoria dos berços
civilizatórios de Cheikh Anta Diop, percebe-se a necessidade de se operar dentro
de uma perspectiva semiótica africana e, com isso, reelaborar as noções de per-
tencimento. O projeto se embasou em uma perspectiva afrocêntrica, onde busca-
mos operar a partir de uma localização africana e com isso enfrentar o desafio de
desmistificar o conceito de beleza do padrão europeu como universal. Estes são
elementos importantes no processo de construção de uma Consciência Negra.
Para conduzir esse processo, foram realizadas oficinas com diversas temáticas
que resultaram em produção artístico-cultural que compôs a exposição de arte da
escola ao final do ano letivo. O projeto foi dividido em quatro momentos: a reali-
zação de 4 oficinas (“como me vejo/como sou”, “o que é belo?”, “de Kemet a Yo-
rubalândia”, “nós de turbante”), um ensaio fotográfico, a produção de pintura em
tela e a culminância na exposição de arte com a apresentação das telas e das fotos
dos estudantes produzidas no ensaio. No decorrer do texto, detalharemos como
foi a realização das oficinas e quais foram os principais resultados observados ao
final do projeto.

232 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
AS BASES TEÓRICAS
As bases fundamentais que servem de subsídio teórico para apresentação deste
trabalho partem da elaboração da teoria de Cheikh Anta Diop dos Berços Civiliza-
tórios e, partindo do berço civilizatório Africano, trazemos a afrocentricidade cuja
sistematização feita por Molefi Asante e a Per Aat Ama Mazama nos apresentam
uma teoria que está alinhada com a retomada dos valores ancestrais e a resposta
dada à nova disposição política do mundo. Faremos uso das considerações fano-
nianas a respeito da colonização mental e a necessidade de construção do que
Fanon chama de consciência nacional com o intuito de pensar como a consciência
da criança negra está disposta dada a realidade racista por ela vivenciada e como
podemos pensar em estratégias de reversão desse quadro desastroso. Para tanto,
não podemos deixar de pensar na contribuição de movimentos como a Negritude,
Renascimento do Harlem, o Quilombismo e o Teatro Experimental do Negro e o
conceito de Consciência Negra de Steve Biko.
A antropologia, e demais ciências ocidentais, ao longo do século XIX e XX foram
utilizadas para enclausurar as civilizações em estereótipos que, além de não refletir
a realidade e fazendo uso da violência bárbara, organizou o mundo em lugares de
imperialismo e subalternidade. Desfazendo ponto por ponto dessas construções
pseudocientíficas, Cheikh Anta Diop demonstra como o processo civilizatório está
intimamente relacionado com as condições materiais que, por um lado é um pro-
cesso calcado na hostilidade da natureza e a escassez alimentar - o berço nórdico
- e por outro temos um processo civilizatório constituído em meio a uma natureza
benevolente e abundante - o berço africano. Essas duas matrizes vão fornecer as
bases materiais para a estruturação das sociedades e suas construções cosmológi-
cas (DIOP, 2014).
Partindo do berço civilizatório africano em todos os seus elementos, a afrocen-
tricidade se estrutura como uma proposta política e teórica que, revisitando de
seu passado clássico - Kemet - ao mundo contemporâneo, sinaliza uma retomada
ancestral a uma forma de ser, ao passo que faz enfrentamento ao supremacismo
branco ocidental. A afrocentricidade é voltar para os trilhos. Recentralizar. Voltar e
tomar o que ficou pelo caminho em nome do restabelecimento da soberania e auto-
determinação do povo Africano seja no continente, seja em sua dispersão.
A afrocentricidade nasce, portanto, em resposta ao ideal de supremacia branca
que se expressa em pura violência (MAZAMA, 2009). Um dos autores que mais se
dedicaram a compreender como essa violência opera tanto no plano mental quan-
to no plano material foi o revolucionário argelino Frantz Fanon. Em “Pele Negra,
máscaras brancas” Fanon (2008) em sua primeira fase se debruça em pensar como
se dá o processo de racialização promovido pelo ocidente que passa a operaciona-
lizar no mundo a partir do advento da modernidade. Para Fanon, a racialização
promovida pela colonização enclausura as pessoas em determinadas construções
subjetivadoras da realidade e esse enclausuramento organiza o mundo de modo
que pessoas negras estejam em um lugar de subalternidade em relação às pessoas

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 233


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
brancas. Ainda que Fanon esteja fazendo uma análise da construção da humani-
dade branca partindo dos ditames da modernidade ocidental, vale fazermos uma
breve consideração. No monumental “Racismo e Sociedade” Carlos Moore parte
de uma análise histórica de mais de 4.000 anos para demonstrar a persistência do
povo leucodérmico em perseguir e exterminar o povo melanodérmico (MOORE,
2007). Em “The African Origin of Civilization” de Cheikh Anta Diop, podemos notar
a permanente tentativa dos povos leucodérmicos - representados pelos líbios - de
destruírem os povos keméticos (DIOP, 1974).
Após essa breve consideração e retomando a argumentação de Fanon, pode-
mos perceber como o processo de racialização cria dispositivos mentais para recolo-
car os indivíduos em posições subalternas. Pensemos, por exemplo, quando Fanon
fala da língua e do colonizado que sai da colônia em direção a metrópole. Ao che-
gar, o colonizado vai ser confrontado com a verdadeira língua e sua fiel expressão,
enquanto que o que ele sempre falou passa a estar errado, informal, sujo (FANON,
2008). Ainda que a língua do colonizador não seja a melhor forma da expressão do
ser africano, a recusa do colonizador em relação a crioulização da língua – passan-
do a estar errada - é uma demonstração da recusa do colonizador em relação ao
modo de ser africano, em qualquer nível que seja.
Na segunda fase do pensamento e elaboração teórica de Frantz Fanon, encon-
tramos um revolucionário que, ´para além de apontar como a colonização se hos-
peda no universo africano com o intuito de extermínio, nos aponta uma direção
para lidar com o mundo pós-colonização. Para ele, todos os recursos disponíveis
devem ser empregados para a libertação da África. O colonizado deixa de operar
mentalmente nos ditames coloniais e passa a assimilar um projeto nacional cujo
interesse é a Unidade Africana em nome do estabelecimento de uma humanidade
baseada no princípio da coletividade africana, isto é, consciência nacional.
Nesse processo, todos os elementos da cosmologia africana devem ser exami-
nados para colocar à disposição da guerra de libertação. É nesse sentido que Fa-
non vai afirmar que, “Quando um povo apoia uma luta armada ou mesmo política
contra um colonialismo implacável, a tradição muda de significado” (FANON, 2005,
p. 258). Ou seja, se o momento pede guerra, devemos colocar nossa cultura a dis-
posição da guerra. A cultura deve ser analisada e validados num contexto de guerra
total onde se tem tudo a perder ou a ganhar.

Se a construção de uma ponte não enriquece a consciência da-


queles que nela trabalham, que essa ponte não seja construída,
que os cidadãos continuem a atravessar o rio a nado ou de ca-
noa. (idem, p. 230).

Fanon nos evoca a alinhar a vida ao processo de libertação africana. Todos os


nossos empreendimentos devem ter como finalidade a União e a Liberdade da
África. Com isso, concebemos África não apenas limitada às fronteiras geográficas,
mas como uma forma de ser e conceber o mundo partindo de um vínculo ancestral

234 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
entre as pessoas do continente e da dispersão forçada. Desta forma, a construção
da consciência africana que busca liberdade deve ser um empenho dos 400 mi-
lhões de africanos da diáspora e que se estabeleça um laço inquebrantável com a
ancestralidade Africana e o Renascimento Africano.
Entre as muitas possibilidades de utilização dos elementos formulados pelo
povo africano como forma de resistência a Maafa e reformulação do mundo, es-
colhemos falar da importância do Renascimento do Harlem, da Negritude, do Qui-
lombismo como iniciativas que nos auxilia a retornar ao nosso berço civilizatório
meridional.
O Renascimento do Harlem foi um movimento político de cunho cultural e ar-
tístico que, após um movimento migratório em massa dos africanos do sul dos
Estados Unidos, estes se estabeleceram em Nova Iorque na busca por melhores
condições de vida. Como resultado dessa migração, na década de 1920 temos um
movimento de resgate dos elementos artísticos africanos que são incorporados
nas técnicas de produção musical, poética, plástica e cia. Surgem nesse contexto,
grandes referências como Louis Armstrong, Zora Hurston, Jacob Lawrence entre
tantas outras.
O movimento de Negritude foi outra iniciativa que partindo principalmente da
literatura, representou um enfrentamento ao processo de embranquecimento da
cultura e fez duras críticas aos processos de colonização. Seu fundador, Aimé Cé-
saire, cunhou o termo no grande poema “Caderno de retorno ao país natal” onde
o autor, depois de viver por um tempo na metrópole colonial, volta ao seu país de
origem, Martinica, em um processo de reelaboração existencial. Mas é no “Dis-
curso sobre o colonialismo” que Césaire constrói uma das críticas mais vorazes da
colonização. Nos provoca quando denuncia o fato de sabermos tudo sobre a morte
dos judeus pela Alemanha, mas não sabemos nada sobre o holocausto no Congo
provocado pela Bélgica que matou mais de 10 milhões de pessoas em 20 anos de
genocídio. A negritude surge, portanto, como um movimento que tem como uma
de suas principais reivindicações a libertação africana do domínio ariano (CESAIRE,
2012; 2020).
O Quilombismo é uma categoria/filosofia/proposição elaborado por Abdias
Nascimento que tem por finalidade última, pensar nas estratégias de manutenção
da integridade africana em todos os seus aspectos. Abdias retorna à experiência Pal-
marina para resgatar a dimensão combativa do povo africano sequestrado e sitiado
no Brasil, elaborando uma série de proposições teórico- práticas para o enfrenta-
mento do conflito racial. Abdias do Nascimento foi um dos maiores Panafricanistas
da história do Brasil. Atuou em vários países com a finalidade única de restabelecer
o lugar original do povo Africano no mundo. Foi um poeta, sociólogo, artista plásti-
co, político que estava trabalhando incansavelmente pelo próprio povo. Depois de
uma experiência formativa em teatro no exterior, Abdias estrutura uma propos-
ta de intervenção comunitária usando as artes cênicas como meio. Contudo, por
uma perseguição do Estado brasileiro, Abdias foi preso e a primeira experiência do

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 235


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
que viria a se tornar o Teatro Experimental do Negro foi na prisão. Abdias, se dando
conta da dimensão racial do sistema prisional inicia sua militância artística cênica
entre os africanos encarcerados: nasce o Teatro do Sentenciado. Posterior a esta
experiência, o Estado brasileiro se dando conta que manter Abdias preso não in-
terromperia sua atuação na guerra de libertação, o retira da cadeia. Então, se inicia
o Teatro Experimental do Negro que trabalhava não só a parte artística, mas fa-
zia alfabetização de adultos e formação política. Desta experiência nascem Ruth de
Souza, Lea Garcia, Guerreiro Ramos e outras figuras ilustres (NASCIMENTO, 2019).
Por fim, a Consciência Negra é um conceito trazido por Steve Biko para falar da
necessidade de se aliar a outras pessoas negras com vistas a um objetivo comum.
Uma nova auto percepção não mais baseada em como o branco as veem e sim
partindo de seus próprios sistemas de crenças e valores. Sobretudo a importân-
cia do orgulho de si mesmo (BIKO, 1990). Percebemos como Biko estava alinhado
com as formulações teóricas que trouxemos. Partir de si, como Diop, o orgulho e
valorização do que é africano como no Renascimento do Harlem, na Negritude e
a necessidade de estar entre pessoas negras em vista de objetivos em comum, tal
qual o Quilombismo. Compreender o processo teórico da colonização, suas críticas
e saídas possíveis se faz um pré-requisito essencial para a retomada do nosso per-
curso civilizatório. Essas elaborações são importantes para fundamentar e orientar
nossas práticas docentes. Uma educação em base africana só se faz possível quan-
do sabemos quem somos, o que fizeram de nós e o que podemos voltar a ser.

O PROJETO
Tudo começou com a parceria entre três professoras negras que, no ano de
2017, ficaram responsáveis pela docência nas turmas de 4º ano da Escola Classe
08 em Brazlândia no turno matutino. Posteriormente a professora do 4º ano ves-
pertino se juntou ao grupo e assim todas as turmas foram contempladas. O desafio
naquele ano era trabalhar com alunos que apresentavam baixo rendimento e baixa
autoestima. Entre planejamentos e ideias, a decisão foi executar um projeto que
trouxesse a temática racial, não se limitasse à semana da Consciência Negra e que
tivesse a culminância na tradicional exposição de arte da escola, ao final do ano
letivo. Assim, nasceu o projeto ConheSer que visava trabalhar com a autopercepção
estética das crianças e elevar a autoestima.
O projeto foi desenvolvido ao longo do segundo semestre de 2017 e dividido
em oficinas. A primeira delas intitulada “Como me vejo e como sou?”, buscou tra-
zer exatamente a percepção de si pelas crianças e teve como instrumento o au-
torretrato. Como ponto de partida, as crianças deveriam desenhar em uma folha
branca o seu próprio rosto. Passados alguns minutos, este primeiro autorretrato
deveria ser compartilhado com a turma. Numa roda de conversa, os alunos mos-
travam os desenhos e com a mediação da professora apontavam semelhanças e
diferenças entre o autor/a e a ilustração. Neste primeiro momento foi possível

236 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
perceber a distância entre como a criança era e como ela gostaria de ser ou como
se enxergava. Não faltaram desenhos com olhos verdes ou azuis, mesmo sendo a
maioria dos alunos pretos ou pardos e apenas um estudante com olho azul em um
total de aproximadamente 60 crianças nas quatro turmas. Ao final da exposição, as
professoras pediram para que as crianças guardassem aquele primeiro desenho e
solicitaram que na oficina seguinte levassem espelhos pequenos.
Foi a partir do reflexo de seu próprio rosto refletido no espelho que a segunda
atividade com autorretrato se iniciou. Com espelhos a postos, as professoras inicia-
ram a aula convidando os alunos a se observarem com atenção. Durante cerca de
10 minutos, a única tarefa foi se olhar e se perceber. Intervenções eram feitas pelas
educadoras: “Observem como são seus olhos, qual é a cor deles?”, “Como é o seu
cabelo? Liso ou cacheado? Curto, longo, baixo ou volumoso?”, “Qual é a cor da sua
pele? Que tom de marrom ela tem? Será que esse lápis (o famoso cor de pele) é o
melhor para colorir o seu desenho?” e assim por diante. Depois da observação ini-
cial, os alunos desenharam novamente em uma folha A4 o segundo autorretrato.
Desta vez a representação foi mais fiel e os olhinhos brilhavam na hora de mostrar
para os colegas: “Tia, ficou igualzinho!”.

FIGURA 1: CONFECÇÃO DO AUTORRETRATO

Fonte: arquivo pessoal, 2017.


FIGURA 2: AUTORRETRATOS EXPOSTOS NA SALA

Fonte: arquivo pessoal, 2017.

Na medida em que a oficina ia sendo desenvolvida foi possível perceber a mu-


dança nos autorretratos, representações totalmente diferentes do que realmen-
te eram, -diga-se, embranquecidas- passaram a retratar com fidelidade os rostos
após as intervenções. Nariz, boca, olhos, cabelo e cor da pele iam tomando forma
e representando o real.
A segunda oficina “O que é belo?” foi um momento menos lúdico e de deba-
te com as turmas acerca do que é considerado como bonito. Com as três turmas
do turno matutino reunidas em uma sala, as professoras iniciaram perguntando se
todos gostavam de si como eram. A resposta unânime foi “mais ou menos” e as
professoras questionaram o que não gostavam e o porquê. A partir disso, o ques-
tionamento foi: o que gostariam de mudar fisicamente? Em seguida, a pergunta foi:
Como é uma pessoa bonita para você? As respostas foram registradas no quadro
branco:

238 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
FIGURA 3: O QUE VOCÊ GOSTARIA DE MUDAR?

Fonte: arquivo pessoal, 2017.

FIGURA 4: COMO É UMA PESSOA BONITA PARA VOCÊ?

Fonte: arquivo pessoal, 2017.


É notória a frequência em que os olhos e o cabelo aparecem como um elemento
que as crianças gostariam de modificar. Mais curioso é perceber como o padrão
ocidental do que é belo está engendrado no subconsciente das crianças. Uma pes-
soa bonita é considerada assim por ter olhos claros, cabelo liso, cor branca ou o
que mais se aproxima dela na percepção das crianças. Neste momento, a profes-
sora Maria do Socorro fez a seguinte indagação: “Então eu não sou bonita?” Os
alunos ficaram surpresos com a pergunta e de imediato responderam: “Não tia, a
senhora é linda!”. A professora então retomou:

“Vocês disseram que uma pessoa bonita tem os cabelos lisos,


olhos azuis, corpo de modelo, então nem eu, nem a tia Mércia
e nem a tia Dani somos bonitas! Se for assim, aqui nesta sala só
quem é bonito é o (citou o nome do aluno), pois só ele tem olho
azul, cabelo liso...” (Professora Socorro, 2017)

Por alguns segundos o silêncio pairou no ar. A fala proposital da professora


fez os alunos refletirem sobre algo que já estava naturalizado para eles. Como se-
ria possível achar as professoras lindas e ao mesmo tempo não descrever nenhuma
característica delas? Até então, a turma não sabia do que se tratava aquelas ativi-
dades com autorretrato e nem essa reunião para conversar sobre o que achavam
bonito. A partir desse momento foi possível iniciar um debate com a turma sobre o
que fomos ensinados a considerar como bonito, e então falar sobre a temática ra-
cial. Foi aí que aconteceu o momento mais intenso e desafiador de todo o projeto.
Um dos alunos levantou a mão para falar. “L.” era um aluno retinto, com diag-
nóstico de aluno especial, com baixíssima autoestima, mas com rendimento esco-
lar acima do nível da turma. Durante sua fala relatou que sofria “bullying” quando
estudava em uma escola no interior do Maranhão. Os colegas diziam que ele tinha
cara de peixe. Afirmou que não gostava da sua pele e que gostaria de ser branco.
Engasgou nas palavras. O choro escorreu no rosto perante toda a turma. Foi difícil
continuar a partir daí. Acompanhei “L”. até o banheiro para lavar o rosto. Lágrimas
enxutas -as minhas e as dele- voltamos para dar seguimento à oficina. As profes-
soras e a turma, num ritmo desconcertado, ainda sem saber como proceder diante
àquela situação, engoliram a angústia e continuaram a conversa. O objetivo agora
era mostrar o contrário, apresentar imagens em que pessoas negras não apareçam
em situações subumanas ou degradantes, imagens que são pouco veiculadas pela
mídia. A segunda parte dessa oficina foi, então, apresentar em slides uma “chuva”
de pessoas pretas, pardas, indígenas em que a beleza se apresenta em cada uma
na sua forma. As reações das crianças foram surpreendentes: “Olha, ela tem o cabe-
lo igual o meu”, “Minha tia tem tranças igual ao cabelo dela”. Esta fase da oficina foi
importante para que as crianças consumissem outro tipo de imagem que não fosse
o estereótipo de beleza constantemente visto e internalizado. Os tecidos, adere-
ços, tranças, turbantes, cabelos, entre diversos aspectos mostrados procuravam
ressaltar o quanto há beleza no que se convencionou a achar feio.

240 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A terceira oficina contou com o professor Carlos Mendes, coautor neste relato,
que buscou localizar os alunos a partir de sua ancestralidade situada no continen-
te africano. Para isso, conduziu uma aula na qual trouxe elementos Keméticos, da
cultura Yorubá, assim como referências de personalidades e personagens negros
presentes nos desenhos infantis e mídia em geral. Após a oficina os alunos ilustra-
ram o que mais gostaram, o que posteriormente deu origem às telas expostas na
exposição de arte da escola no encerramento do ano.

FIGURA 5: PINTURA EM TELA: OXÓSSI

Fonte: arquivo pessoal, 2017.

FIGURA 6: PINTURA EM TECIDO: AUTORRETRATO

Fonte: arquivo pessoal, 2017.


Quando a quarta oficina aconteceu, já se aproximava a semana da consciência
negra em novembro. Foi durante as comemorações que aconteceu a oficina “nós
de turbante”, onde as meninas participaram de um diálogo sobre beleza, autoesti-
ma, autocuidado com cabelos crespos e cacheados e confecção de turbantes. Além
dessa atividade, foi proposta uma produção de texto na qual as crianças deveriam
escrever, em sua opinião o que é ter consciência negra e quando o racismo acontece.
“M”. fez o seguinte relato:

“Racismo foi quando eu estava indo para o mercado comprar


pão com meu amigo e vinha um cara de cavalo e ele me pediu
uma massa. Ai eu falei: que massa, massa de pão? Ai ele falou:
massa de maconha. E ele colocou o cavalo pra cima de mim. E
quando eu cheguei lá em casa eu fiquei pensando: eu acho que
é porque eu sou negro. Ter consciência negra é… comer o que eles
comem, brincar como eles e dançar como eles.” (M., 10 anos).

RESULTADOS E ANÁLISE
Após semanas de muito trabalho as oficinas findaram e teve como resultado
um ensaio fotográfico cujo objetivo era ressaltar a beleza das crianças e contribuir
para elevar sua autoestima. Para isso foi realizada uma parceria com o fotógrafo
Matheus Alves, que aceitou realizar um ensaio fotográfico com todos os estudan-
tes voluntariamente. Os pais ou responsáveis concordaram, assinaram termo de
uso de imagem e colaboraram simbolicamente com 2 reais para imprimir as fotos.
Desta forma, após a exposição os familiares poderiam levar as respectivas foto-
grafias para casa. O ensaio foi precedido de muito entusiasmo pelas crianças. Na
data marcada trocaram o uniforme e colocaram a melhor roupa. As meninas leva-
ram pentes, cremes de pentear e arrumaram uma à outra de modo que os cabelos
ficassem bem cacheados e elas bonitas para a foto. Algumas meninas que antes
das oficinas só iam para a escola com o cabelo preso apareceram com os crespos e
cachos livres e soltos. Ser fotografado por um especialista na área era algo inédito.
Ver o resultado desse trabalho nos painéis da exposição, ou melhor, se ver naquele
lugar de importância foi fundamental para os alunos valorizarem a si mesmos e
ressignificar o seu pertencimento étnico racial.
Podemos afirmar que o objetivo inicial foi alcançado na maioria dos alunos. M.
citado anteriormente entrou nas aulas de capoeira da comunidade e relatava isso
com orgulho para a professora. F. que já era praticante passou a valorizar ainda
mais os ensinamentos da luta e participou de uma apresentação de capoeira na
escola com o professor de Educação Física. E., aluna especial, com dificuldade in-
telectual e motora, cuja autoestima era afetada por estes fatores e por ser negra,
começou a soltar o cabelo para ir para a escola. No início, com timidez, mas à medida
que foi se acostumando passou a não ter mais vergonha dos cachos. Meninas de

242 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
todas as turmas me paravam no corredor para mostrar o novo creme de pentear
que a mãe havia comprado e para relatar como estavam cuidando dos cabelos no
dia a dia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depois de vermos como o processo de racialização é internalizado nas crianças,
podemos ver porque “L” queria ser branco. De acordo com Fanon, se a única ex-
pressão da humanidade é sendo branco, quero ser branco também (FANON, 2008).
Deslocar essas subjetivações para um contexto coletivo é um dos maiores ganhos
que podemos ter em um projeto como este. Pois, só poderemos lidar com esses
processos coletivamente. No contexto do mundo pós-racializado que vivemos, a
produção artística, seja no contexto do Renascimento do Harlem, seja na oficina
com os estudantes precisa estar alinhada com o princípio da libertação e da re-
tomada de uma forma de ser. Temos aqui a importância de vincular as reflexões
fanonianas na nossa prática pedagógica, vislumbrando sempre a recolocação da
nossa percepção de mundo no nosso berço original. A Afrocentricidade é um dos
caminhos que nos possibilita esse retorno.
Mais do que esgotar a argumentação feita até aqui, percebemos a importância
de ampliar o debate. As perguntas só podem ser respondidas em contextos especí-
ficos. Antes de responder qualquer inquietação sobre que caminho tomar para vol-
tar a ser, podemos nos desacomodar das clausuras raciais e buscar nossas próprias
referências rumo a reconstrução. O auto reconhecimento possibilitado com esse
projeto representou um grande momento de construção de uma consciência negra
que se compromete com a percepção de uma forma de ser que nos reposiciona
no mundo para além da estética por si mesma. As práticas pedagógicas, projetos,
oficinas servem como um espaço onde essas questões podem ter uma dimensão
prática. Lidar com a dor das crianças negras racializadas e construir com elas saídas
mais humanas é uma das proposições que deixamos ao final desse trabalho.

REFERÊNCIAS

BIKO, Steve. Escrevo o que eu quero. São Paulo: Editora Ática, 1990

DIOP, Cheikh Anta. Unidade Cultural da África Negra. Lisboa: Edições Pedago. 2014.

DIOP, Cheikh Anta. The African Origin of Civilization: Myth Or Reality. Estados Unidos:
Lawrence Hill Books, 2014.

CÉSAIRE, Aimé. Diário de um Retorno ao País Natal. São Paulo: edUSP, 2012. CÉSAIRE,
Aimé. Discurso Sobre o Colonialismo. São Paulo: Veneta, 2020.

FANON, Frantz. Os Condenados da Terra. Juiz de Fora: edUFJF, 2005. FANON, Frantz. Pele
Negra, mascaras brancas. Salvador: edUFBA, 2008.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 243


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
MAZAMA, Ama. A Afrocentricidade como um novo paradigma. In: LARKIN, Elisa.

Afrocenticidade. Uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009.
111-127 MOORE, Carlos. Racismo e Sociedade. Belo Horizonte: Mazza, 2007.

NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo. São Paulo: Perspectiva, 2019.

AUTORIA
Danielle Soares Gomes
Universidade de Brasília
E-mail: daniellesoaresgomes@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8011963583979533

Carlos Vinicius da Silva Mendes


Universidade de Brasília
E-mail: carlosmendesljs@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1548159653420986

244 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 21
Esforços conjuntos
de pesquisa em
pensamento
negro descolonial
americano
PLEITO NEGRO, PROTESTO BRANCO
PRERROGATIVAS PARA A DESCOLONIZAÇÃO DO
CONHECIMENTO NUMA PERSPECTIVA NEGRA
Nádia Maria Cardoso da Silva

Desde sua criação na década de 30 até os anos 2000, a universidade no Brasil


continuou sendo lugar em que negros e negras estavam excluídos pelo racismo
estruturante da colonialidade de poder/saber no Brasil. O processo de institucio-
nalização da universidade no Brasil, a partir da década de 30, foi estruturado numa
relação epistemológica racializada: sujeito branco, objeto negro. Esse panorama
começou a ser desafiado a partir dos anos 2000, quando o ativismo negro e de mu-
lheres compreenderam que a universidade era estratégica como lugar para a pro-
dução da igualdade racial e de gênero no Brasil. Após todo século XX de insignifi-
cante presença negra nas universidades brasileiras, o século XXI trouxe a novidade
dos movimentos negros e de mulheres negras como sujeito político em disputa
pelo acesso negro à essas universidades. Esse artigo trata das mudanças causadas
nesse cenário, a partir do surgimento desse novo sujeito em disputa pela univer-
sidade no Brasil, potencializadas por uma nova política negra iniciada a partir dos
anos 2000 na qual exige do Estado brasileiro responsabilidade no que diz respeito
às políticas públicas de promoção da igualdade racial e de gênero.
No ano 2000, o senador Paulo Paim, apresentou o Projeto de Lei nº 3.198/00, o
qual foi submetido à Comissão Especial do Congresso Nacional, para que fosse apre-
ciado e proferido parecer sobre a criação do Estatuto da Igualdade Racial, visando
a defesa dos que sofreram e sofrem discriminação em função da sua etnia, raça
e/ou cor. Em 2004, o Poder Executivo apresenta o Projeto de Lei Nº 3627 no qual
propõe favorecer, especialmente, negros e indígenas no projeto de ampliação do
acesso à universidade. O que veremos a seguir é uma verdadeira guerra de relatos
entre os intelectuais brancos e os ativistas/intelectuais negros em torno dessas
duas legislações – a Lei de Cotas e o Estatuto da Igualdade Racial – por expressarem
conquistas significativas dos movimentos negros e de mulheres negras, no plano dos
direitos, para as populações negras.
Após um século de práticas discriminatórias e de ausência de políticas públicas
que visassem promover direitos para a população negra recém saída de 3 séculos
e meio de escravização, e, por outro lado, de atuação solitária dos movimentos ne-
gros e de mulheres negras brasileiros seja “desmascarando” a forjada democracia
racial brasileira e lutando por direitos, seja promovendo ações, sob sua própria
conta, de inclusão social dessas populações, o século XXI chega anunciando con-
quistas no plano institucional no Brasil (Silva, 2005). Já no debate para as eleições
presidenciais em 2002, essas conquistas já estavam na pauta do candidato vence-
dor. O ano de 2002 também foi o ano em que as Universidade Estadual da Bahia

246 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
(UNEB) e do Rio de Janeiro (UERJ), anunciaram a adoção de políticas de cotas para
negros e negras visando ampliar o número de negros e negras nessas instituições.
Por outro lado, esse cenário também tem provocado nos setores intelectuais
e socialmente privilegiados da sociedade brasileira, a explicitação pública de novas
formas de expressão do racismo para se contrapor às políticas públicas voltadas
para garantia de direitos para as populações negras historicamente discriminadas
no país. Exemplo expressivo disso, foram as manifestações contrárias ao processo
de implantação de políticas afirmativas para inclusão da população negra na Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul, em 2007, quando nos muros das ruas de
Porto Alegre (RS), apareceram pichações: “Negro só se for na cozinha do RU (Res-
taurante Universitário), Cotas, não”, e “Macaco é no zoológico”, e ainda “ Voltem
para senzala”. Em 2014, um professor da Universidade Federal do Espirito Santo
(UFES) foi denunciado à Ouvidoria dessa universidade por estudantes do curso de
Ciências Sociais, por ter feito declarações racistas dentro da sala de aula, durante uma
discussão sobre cotas raciais. Os estudantes se sentiram ofendidos pelo pronunciamento
em sala de aula do Professor que afirmava críticas às cotas raciais e afirmava preferir ser
atendido por um médico branco que um negro.
Portanto, o novo século também anuncia fortes barreiras para que tais políticas
fossem implementadas institucionalmente no Brasil. Essas barreiras começam tam-
bém a surgir através de práticas discursivas dos brancos brasileiros que acabaram
colocando em xeque o que a sociedade brasileira aprendeu a mais valorizar com
Gilberto Freyre, pois constitutiva da nossa identidade nacional desde a década de
30 – a miscigenação como produtora da mais democrática racialmente sociedade
do mundo: a nossa!!! César Benjamin, editor da Contraponto Editora e colunista
da Folha de S. Paulo, ao publicar o artigo “Tortuosos Caminhos”, em 2002, ques-
tionando a adoção de cotas para negros, reproduz de forma explicita a influência
de Gilberto Freyre no imaginário branco-brasileiro, utilizando o argumento chave
do pensamento freyriano sobre o Brasil: somos um país mestiço. Como em Freyre,
que dessa afirmação inferia a existência de relações raciais harmônicas no Brasil,
para Benjamim, isso torna impossível determinar quem é negro e quem é branco
na sociedade brasileira. No decorrer de todos os anos 2000, essa será uma das prin-
cipais linhas de argumentação de todos as práticas discursivas contra as cotas para
negros e negras no Brasil. Para sustentar sua posição contrária às cotas, Benjamin
(2002) apela ainda para o caráter falacioso do conceito de raça, já apontado pela
ciência contemporânea, para concluir que é reacionário, constituir uma identidade
baseada na raça, e é anacronismo, a implementação, na sociedade brasileira, de
políticas afirmativas/cotas para negros e negras.
A reação contra as cotas raciais avança, e, em abril de 2006, os intelectuais
brancos brasileiros, entregaram ao Superior Tribunal Federal (STF), o manifesto
intitulado Carta Pública ao Congresso Nacional
– Todos têm direitos iguais na República democrática. Assinado majoritaria-
mente por acadêmicos das universidades do Rio de Janeiro e de São Paulo e por

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 247


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
profissionais vinculados à Editora Globo1 - como podemos inferir ao analisar seus
signatários - o manifesto teve como objetivo argumentar contrariamente à admis-
são de cotas raciais na ordem política e jurídica da República, se posicionando
especialmente contra o projeto de lei que instituía a política de cotas nas universi-
dades federais e o que criou o Estatuto da Igualdade Racial, com reserva de vagas
para população negra no ensino superior e no serviço público.
No entanto, era a política de cotas para negros e negras acessarem às universi-
dades federais o que mais incomodava tais intelectuais. Tal manifesto foi entregue
por cinco dos seus signatários, aos presidentes do Senado, Renan Calheiros (PM-
DB-AL), e da Câmara, Aldo Rebelo (PCdoB-SP), solicitando aos parlamentares que
rejeitassem os dois projetos, argumentando que a adoção de políticas específicas
para negros poderia acirrar conflitos raciais ao dar status jurídico ao conceito de
raça, além de não atacar o problema estrutural da desigualdade no país, que é a fal-
ta de acesso universal à educação de qualidade. Tal Carta foi assinada pelo ex-pre-
sidente do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Simon Schwartz-
man – que afirmou que “o que explica a pobreza de grande parte da população
não-branca no Brasil não é a discriminação racial, mas a falta de oportunidades,
que afeta também um grande número de brancos, e que não podem ser discrimi-
nados”. A Carta também foi assinada pela ex- secretária de Política Educacional do
Ministério da Educação e professora da Universidade de Brasília, Eunice Durham
- que declarava ser favorável à criação de cursos pré-vestibulares para a população
pobre, pois “a universidade não é prêmio para a injustiça passada” e defendia que
“não se repara injustiça premiando descendentes de quem foi vítima da injustiça”
(Jornal O Globo, 2006). Os manifestos dos intelectuais brancos contra as políticas
de cotas para negros e negras nas universidades públicas e contra o estatuto da
igualdade racial foi assinado por antropólogos brancos brasileiros que vem tendo
como objeto de estudo, o negro e a cultura negra como Yvone Maggie e Peter Fly e
por intelectuais brancos renomados como Alba Zaluar, além dos já citados Eunice
Durham e Simon Schwartzman2.
Armados teoricamente de Nós não somos racistas, no dia 29 de junho de 2008,
esse mesmo grupo lança outro manifesto endereçado ao Congresso Nacional. De-

1 O Manifesto foi abaixo-assinado por personalidades como Maria Sylvia Carvalho Franco (Pro-
fessora Titular da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual de Campinas (UNI-
CAMP), Peter Henry Fry (Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Alba Zaluar
(Titular de Antropologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Luiz Werneck Vianna (
Professor Titular do Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), Roberto Romano
da Silva (Professor Titular da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Caetano Meloso (cantor),
José Arbex Jr. (jornalista), Gerald Thomas (dramaturgo), Ferreira Gullar (poeta), João Ubaldo Ribeiro
(escritor), César Benjamin (editor), Demétrio Magnoli (articulista do Estado de S. Paulo), Nelson Motta
(produtor musical, jornalista e escritor vinculado à Rede Globo) Reinaldo Azevedo (Jornalista articulista
da revista Veja), Ruth Correa Leite Cardoso (antropóloga), José de Souza Martins (sociólogo), Aguinaldo
Silva (telenovelista da Rede Globo)), entre outros.
2 Na matéria publicada sobre o manifesto, o jornal O Globo, em 30 de junho de 2006, destaca
os nomes do cantor e compositor Caetano Veloso, o poeta Ferreira Gullar e a professora Yvonne Mag-
gie.

248 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
nominado o Manifesto Centro e treze cidadãos não racistas contra as leis raciais
(2008). O texto do Manifesto tinha como linha de argumentação às posições defen-
didas por Ali Kamel - diretor de jornalismo da Rede Globo e autor do livro Nós não
somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor,
publicado em 2006. Com 13 capítulos e prefácio escrito pela antropóloga Yvonne
Maggie, o livro foi alvo de resenhas em todos os grandes jornais do país e tem como
eixo central da argumentação que somos uma nação predominantemente mestiça,
argumentação invocada aqui como autoridade para afirmar que não há negros e
brancos no Brasil e não há opressão racial na sociedade brasileira:

Certo dia, caiu a ficha: para as estatísticas, negros eram todos


aqueles que não eram brancos. [...] de repente, nós que éramos
tão orgulhosos de nossa miscigenação, do nosso gradiente tão
variado de cores, fomos reduzidos a uma nação de brancos e
negros. Pior: uma nação de brancos e negros onde os brancos
oprimem os negros. Outro susto: aquele país não era o meu.
(Kamel, 2006, p. 18).

Ao defender que o principal problema no Brasil é a pobreza e a educação inefi-


ciente, colocando o racismo como uma manifestação minoritária e não institucio-
nal, Kamel (2006) atinge o seu principal alvo - as reivindicações dos movimentos
negros e de mulheres negras por projetos de adoção de cotas raciais nas univer-
sidades públicas brasileiras. Assim, apresenta pesquisas e estatísticas para refu-
tar o racismo como característico da sociedade brasileira e aciona a derrubada do
conceito de “raça” pela ciência, a partir do mapeamento do DNA de populações
humanas, para sugerir que não há racistas pois “as diferenças entre um branco
nórdico e um negro africano compreendem apenas uma fração de 0,005 do geno-
ma humano” (Kamel, 2006, p. 45).
Em resposta a essa ação da elite branca brasileira, os intelectuais e ativistas dos
movimentos negros organizam, em 2006, o Manifesto em favor da lei de cotas e
do estatuto da igualdade racial endereçado aos/as deputados/as e senadores/as
do Congresso Nacional. Em 2008, esses mesmos intelectuais e ativistas negros e
negras elaboram o Manifesto 120 anos de Abolição Inconclusa: Manifesto em De-
fesa da Justiça e Constitucionalidade das Políticas de Inclusão, e no dia 13 de maio,
foram à Brasília entregá-lo ao Supremo Tribunal Federal. Assinado por 740 pessoas
- dentre eles juristas, artistas, políticos, professores, estudantes, pesquisadores,
ativistas dos movimentos negros e de mulheres negras bem como de outros movi-
mentos sociais, etc. - o Manifesto 120 anos de Abolição Inconclusa teve como obje-
tivo argumentar com o STF que o posicionamento dos ministros estava diretamen-
te relacionado à continuidade ou não das medidas que permitirão ao Brasil corrigir
as sequelas de seu passado escravista e seu presente discriminatório em busca de
um futuro justo e efetivamente democrático. Ao analisar o Manifesto 120 anos de
Abolição Inconclusa observamos que este se constitui num importante documento
de análise da sociedade brasileira e sua história de relação com suas populações

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 249


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
negras bem como das suas lutas e conquistas por direitos. O Manifesto constata a
exclusão dos negros e negras do ensino superior durante todo século XX e observa
que a demanda por políticas compensatórias específicas para os negros no Brasil
não é recente e nem está baseada em qualquer modelo estrangeiro. Lembra que o
Teatro Experimental do Negro publicou no primeiro número do jornal Quilombo, o
“Manifesto à Nação Brasileira” elaborado durante a Convenção Nacional do Negro
Brasileiro, realizada em 1945 e 1946, no Rio de Janeiro, no qual havia a primeira
apresentação formal de uma proposta por ações afirmativas fundamentada na de-
fesa da reparação dos danos causados pelo racismo da república brasileira.
Uma das estratégias do Manifesto 120 anos de Abolição Inconclusa foi mostrar
ao Supremo Tribunal Federal que “contrariando todas as irresponsáveis previsões
apocalípticas sobre uma suposta guerra racial, ou sobre a racialização de todos os
aspectos da vida nacional”(Manifesto, 2008, p.5 ), a adoção das políticas de cotas
para ampliar o acesso negro às universidades já vivia um franco processo de legiti-
midade social e acadêmica, já que iniciada então com uma meia dúzia de universi-
dades com cotas em 2003, mas, em 2007 já eram mais de cinquenta instituições de
ensino superior que estabeleceram alguma modalidade ou mecanismos de acesso
que direcionava uma porcentagem mínima de suas vagas a candidatos negros e in-
dígenas, entre universidades federais, estaduais, autarquias municipais e CEFETs3.
O Manifesto (2008, p. 10/11) ressalta ainda que esse cenário revela “uma ex-
traordinária mobilização e uma efervescência de debates ocorridos nos ambientes
universitários em todas as regiões do país” pois “a luta pelas cotas é uma explosão
de criatividade e seus resultados positivos para a produção de conhecimento e
ampliação dos saberes científicos e artísticos estão apenas no começo” já que com
novos estudantes negros e indígenas ingressando nas universidades brasileiras:

(...) surgem novos temas de pesquisa, demandas por novos cur-


rículos e também demandas por mais professores negros e indí-
genas. Afinal, não somente os saberes africanos, afro-brasileiros
e indígenas foram excluídos das nossas universidades que sem-
pre reproduziram apenas os saberes europeus em uma relação
claramente neo-colonial, mas o conjunto dos docentes e pesqui-
sadores sempre tem sido majoritariamente branco (Manifesto
120 anos de Abolição Inconclusa, 2008, p.10/11)

Tal Manifesto visibiliza as conexões saber/poder à que o grupo contra as cotas


está vinculado, enfatizando os interesses de classe que estão por trás já que o
Manifesto Centro e treze cidadãos não racistas contra as leis raciais foi entregue

3 O Manifesto (2008, p. 10/11) ressalta que esse cenário revela “uma extraordinária mobili-
zação e uma efervescência de debates ocorridos nos ambientes universitários em todas as regiões do
país” pois “a luta pelas cotas é uma explosão de criatividade e seus resultados positivos para a pro-
dução de conhecimento e ampliação dos saberes científicos e artísticos estão apenas no começo” já
que com novos estudantes negros e indígenas ingressando nas universidades brasileiras: “ (...) surgem
novos temas de pesquisa, demandas por novos currículos e também demandas por mais professores
negros e indígenas” (Manifesto, 2008, p.10/11).

250 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ao Supremo Tribunal Federal em apoio à Ação de Inconstitucionalidade (ADI) im-
petrada pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen)
através do Partido Democratas, expondo o grave comprometimento ético-político
na postura desses acadêmicos, já que vinculados às universidades públicas, rece-
bem verbas importantes para pesquisa das instituições públicas de fomento, mas
se aliam aos interesses do patronato das escolas particulares que lucram com os
padrões de exclusão educacional existentes.
O Manifesto 120 anos de Abolição Inconclusa (2008, p. 14) ainda desvenda
o lugar de fala do grupo de intelectuais contra as cotas, apresentando-os como
“uma pequena parte da elite acadêmica branca centrada no eixo Rio de Janeiro-
-São Paulo que solicitam o retorno ao estado de exclusão do racismo institucional
que imperava indiscriminadamente nas universidades brasileiras, e a manutenção
dos índices de presença da população negra que existia há anos atrás” pois
“apesar de se apresentarem como `intelectuais da sociedade civil, sindicalistas,
empresários e ativistas dos movimentos negros e outros movimentos sociais´, eles
são basicamente acadêmicos: 80 deles são professores universitários e pesquisa-
dores; desses 80, apenas um é negro”. Ao afirmar que a premissa que o sustenta
é a valorização da diversidade racial e social na produção e na disseminação das
ideias, o Manifesto sinaliza que o que questiona é a supremacia de pessoas brancas
no corpo discente e docente das universidades brasileiras e que, diante disso, não
pode deixar de analisar o manifesto ao qual se opõe nos termos de sua composi-
ção4,observando que:

Seus signatários, que aderem ao projeto educacional defendido


pela instituição representativa das escolas particulares, as quais
tentam agora barrar os projetos de inclusão racial e social em
andamento, reproduzem o mesmo padrão de exclusão racial
existente nas universidades brasileiras antes das cotas: 90% de
brancos e 10% de não-brancos (Manifesto 120 anos de Abolição
Inconclusa, 2008, p.15).

O Manifesto expõe a geopolítica do conhecimento no Brasil ao chamar à aten-


ção de que a base de origem dos signatários do Manifesto Cento e Treze cidadãos
não racistas contra as leis raciais obedece à mesma lógica de concentração do po-
der no Brasil localizado no sudeste brasileiro - um terço do total de assinantes vem
da UFRJ (16), USP (11) e Unicamp (5), com adesões importantes da UFMG:

Significativamente, a maior reação aos projetos de inclusão ra-


cial e social iniciado em 1999, está concentrada ainda hoje nas

4 O Manifesto observa ainda que: “Seus signatários, que aderem ao projeto educacional defen-
dido pela instituição representativa das escolas particulares, as quais tentam agora barrar os projetos
de inclusão racial e social em andamento, reproduzem o mesmo padrão de exclusão racial existente
nas universidades brasileiras antes das cotas: 90% de brancos e 10% de não-brancos” (Manifesto, 2008,
p.15).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 251


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
universidades mais importantes dos mesmos três estados onde
os mais poderosos escravocratas do país no século XIX bradaram
furiosamente contra a Lei dos Sexagenários, a Lei do Ventre Li-
vre e, mais ainda, contra a Abolição. O poder acadêmico que se
opõe aos projetos de inclusão, com enorme influência no MEC,
no CNPq, na CAPES, no Executivo como um todo e na mídia he-
gemônica, está quase que totalmente concentrado nos Estados
do Sudeste (Manifesto 120 anos de Abolição Inconclusa, 2008,
p.16).

Muitos intelectuais e ativistas negras e negros importantes participaram ativa-


mente desse movimento em defesa das cotas para negros e negras nas universida-
des, contribuindo intensamente com suas reflexões para o debate, como a filósofa
Sueli Carneiro, o antropólogo Kabenguele Munanga, o historiador Flávio Gomes e o
economista Marcelo Paixão. Munanga (2004) defende que o elogio da mestiçagem
brasileira é uma tentativa ideológica de esconder o racismo existente no país e a
exclusão do negro ao longo dos cinco séculos de formação do Brasil. Sueli Carnei-
ro, filósofa, doutora em Educação e ativista da luta contra o racismo e o sexismo,
já em 2003, no artigo intitulado “Ideologia Tortuosa”, faz críticas aos argumentos
contrários às cotas raciais utilizados por César Benjamim, decifrando a filiação do
seu discurso às ideias de celebração da mestiçagem e de democracia racial consoli-
dadas por Gilberto Freyre. Para Carneiro, tanto a crítica ao conceito de raça quanto
o elogio à mestiçagem “vem se prestando historicamente, não para fundamentar a
construção de uma sociedade efetivamente igualitária do ponto de vista racial, e
sim para nublar a percepção social sobre as práticas racialmente discriminatórias
presentes em nossa sociedade”. Carneiro (2003) argumenta que Benjamim (2002)
“reproduz a fórmula clássica do modus pensante e operandi nos marcos de nos-
sa democracia racial”, argumentos de fácil aceitação pois “reiteram as ideologias
presentes no senso comum”, à exemplo do elogio à mestiçagem. Acusando que,
deliberadamente, a análise de Benjamim deixa de fora os estudos contemporâneos
sobre as desigualdades raciais existentes no Brasil, além de silenciar “as evidências
empíricas da exclusão dos negros em todas as esferas privilegiadas da sociedade e
sua concentração desproporcional nos bolsões de miséria e pobreza”, Sueli Carnei-
ro (2003,) além de ressaltar esses dados na sua narrativa, afirma que “o negro é
apenas uma realidade estatística para deleite acadêmico”:

A constatação da inexistência das raças e de que a diversidade


intra grupos é maior do que entre os grupos diferentes, que a
ciência vem nos revelando nos últimos tempos, não tem impac-
to sobre as diversas manifestações de racismo e discriminação
em nossa sociedade e em ascensão no mundo, o que reafirma
o caráter político do conceito de raça e a sua atualidade, a des-
peito de sua insustentabilidade do ponto de vista biológico (...)
(...) Portanto, o negro é apenas uma realidade estatística para
deleite acadêmico. Não tem concretude como credor social, de-
mandador de políticas específicas em função das desigualdades

252 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
de que padece, posto que essas são só reconhecíveis no plano
virtual.

(...)A carnavalização das nossas relações raciais escamoteia a ri-


gidez da segregação espacial e social que separa negros e bran-
cos. Ignora solenemente a concentração dos negros nas favelas,
palafitas, cortiços, nas periferias das grandes cidades. (...)

Assim, Carneiro (2003) conclui que “encontra-se naturalizado o paradigma ca-


sa-grande e senzala, por isso trata-se com quase absoluta indiferença essas de-
sigualdades raciais”. Em outro artigo intitulado De Novo a Raça, Carneiro (2002)
dialoga com a reposição do debate sobre o conceito de raça, a partir da divulgação
das pesquisas sobre as origens genéticas da população brasileira, realizadas pelo
grupo de cientistas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), coordenados
por Flávia Parra e Sérgio Pena (este último é um dos signatários do manifesto con-
tra as cotas raciais). Amplamente divulgado pela imprensa em 2002, Carneiro ana-
lisa as conclusões dessas pesquisas publicadas no Jornal Folha de São Paulo, que
afirmava que “nem todo negro no Brasil é geneticamente um afrodescendente, nem
todo afro- brasileiro é necessariamente um negro”, decorrendo daí, de acordo com
os pesquisadores, o axioma que que raça é “somente” um conceito social. A princi-
pal consequência retirada do resultado desse estudo na grande mídia brasileira é de
natureza política, pois a conclusão do pesquisador Sérgio Pena, em entrevista a este
jornal, é taxativa - não existe base objetiva para a introdução de cotas raciais nas
universidades públicas. Enfatizando que há muito tempo, as ciências sociais já vem
demonstrando a inexistência das raças, o mais interessante do artigo de Carneiro
é quando ela visibiliza que a contribuição fundamental desses estudos genéticos
deveria ser a demonstração da ilegitimidade científica das teses racistas e das prá-
ticas discriminatórias que elas geram, fazendo com que esperemos uma “conde-
nação enfática das práticas racistas que produziram e permanecem reproduzindo
violências e exclusões ao longo de nossa história” e “a defesa de reparação dos
males provocados” como consequência ética obrigatória. Mas o que ocorre no
Brasil, destaca Suely Carneiro (2002), é o contrário – “as conclusões do estudo são
utilizadas para negar uma dessas possibilidades, a adoção de cotas para negros no
nível universitário”.
A estratégia de Carneiro (2002), nessa guerra de narrativas, foi tornar visível
que ao lado da afirmação da ciência de que não há base científica para uma classi-
ficação racial da humanidade, a ciência também nos informa que há, no entanto,
bases inesgotáveis para a discriminação. Carneiro (2002) se refere às conclusões
do estudo sobre os sistemas de ensino no Brasil, realizado pelo então pesquisador
do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), Ricardo Henriques, intitulado
“Raça e Gênero”, (Unesco, 2002) no qual afirma que 49% do diferencial salarial
entre brancos e negros resulta das diferenças associadas à escolaridade dos indiví-
duos de cada grupo - sendo que 27% deriva da discriminação gerada no interior do
sistema educacional e 22% do impacto direto da escolaridade dos pais. A conclu-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 253


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
são que a pesquisa chega é que no universo dos adultos, filhos pais e avós negros
vivenciaram, em relação aos seus contemporâneos brancos, o mesmo diferencial
educacional ao longo de todo o século XX, ou seja, apesar da melhoria dos níveis
médio de escolaridade de brancos e negros ao longo do século, o padrão de discri-
minação se mantém estável entre as gerações Mas, o que Carneiro (2002) enfatiza
é que com esse estudo, ele demonstrou, com abundância de dados estatísticos,
que o pertencimento étnico/racial ou de cor tem grande relevância na estrutura-
ção das desigualdades sócio- econômicas brasileiras, apontando que, para a rever-
são desse quadro, são necessárias políticas públicas explícitas de inclusão racial,
especialmente, políticas de ação afirmativa com preferência racial, para que assim
seja rompido o circuito de geração progressiva de desigualdade. Assim, Carneiro
(2002), conclui:

Estamos, então, diante de um paradoxo. De um lado, um tipo


de ciência que, ao provar a ‘insustentável leveza do ser negro”,
desautoriza ações reparatórias; de outro, uma ciência que reco-
nhece no ser negro uma condição concreta de inserção social
inferiorizada e advoga por políticas específicas de inclusão. En-
tre ambas, a metáfora de Hannah Arendt, invocada por Roseli
Fischmann em seu último artigo, “Do passado que se recusa a
passar e permanece assombrando o presente para impedir o
futuro”.

Maria Aparecida Bento - coordenadora executiva do CEERT – Centro de Estudos


das Relações de Trabalho e Desigualdades - doutora em Psicologia Social pela Uni-
versidade de São Paulo (USP), ativista da luta contra o racismo, e uma das primei-
ras pesquisadoras contemporâneas a estudar a branquitude brasileira - no artigo
intitulado Branquitude e Poder – a questão das cotas para negros (2005) afirma que
no Brasil, os lugares de poder são hegemonicamente brancos, sendo quase auto-
mática, a reprodução institucional destes privilégios5. Nos anos 2000, Bento (2005)
volta a desafiar esse privilégio branco de ver e não ser visto nesse contexto de plei-
to negro e protesto branco acerca das políticas de inclusão das negras e negros na
universidade. Bento (2005) afirma que foram naturalizadas as cotas de 100% para
brancos nos lugares de poder em nossa sociedade, construídas, silenciosamente,
ao longo de séculos de opressão contra negros e indígenas. Essa naturalidade com

5 Não esqueçamos que antes de Bento (2005), na sociologia, dois intelectuais negros, ainda na
década de 40, começaram a estudar os brancos brasileiros Em Atitudes dos alunos dos grupos escolares
em relação a cor de seus colegas (1955) Virgínia Leone Bicudo - socióloga negra que inaugurou o estu-
do das “relações raciais” no Brasil - pesquisa 4520 crianças de 09 a 15 anos de 108 escolas públicas de
São Paulo (SP), considerando a educação escolar como campo privilegiado de contatos raciais, e entre-
vista 29 famílias operárias brancas desses estudantes, buscando analisar as atitudes de rejeição/aceita-
ção dos colegas brancos em relação aos estudantes negros e a influência das famílias para tanto. Nesse
mesmo momento, entre os anos 40 e 50, o sociólogo negro Alberto Guerreiro Ramos, após constatar
o privilégio branco de ver o negro brasileiro, olha para o branco brasileiro e identifica seu sentimento
de vergonha com as origens raciais da população do Brasil e dele mesmo, colocando a brancura como
obstáculo para organização da nação (Silva, 2020).

254 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
que os brancos brasileiros convivem com cota de 100% em toda história do país,
é vivida às custas do silêncio sobre o peso que esta exerce sobre a exclusão dos
negros e negras pois “reconhecer a desigualdade é até possível, mas reconhecer
que a desigualdade é fruto da discriminação racial, tem custos, uma vez que este
reconhecimento tem levado à elaboração de legislação e compromissos internos e
externos do Brasil, no sentido do desenvolvimento de ações concretas com vista a
alteração no status quo”.
Bento (2005) defende que diante desse contexto de silenciamento histórico dos
privilégios sócio- econômicos da branquitude brasileira produzindo a exclusão dos
negros e negras, a explicitação da reivindicação de cotas para negros é uma es-
tratégia eficaz de enfrentamento, apesar das fortes barreiras que daí surgem em
defesa desses privilégios. Tais barreiras interpostas aos processos de mudança na
distribuição de negros e brancos no espaço institucional, são mapeadas por Bento
(2002) na sua tese de doutorado denominada Branquitude e poder nas organi-
zações empresariais e no poder público, para a qual coleta relatos dos brancos
brasileiros: “Não vejo os negros, nunca convivi com negros”; “que estranho”; “não
lembro da história desse país, escravidão?”, “o problema atual é resultado do fato
de que os negros foram escravos”; “as mudanças nas relações raciais tem que ser
lentas e graduais”; “é necessário competência para ocupar lugares de destaque
e poder dentro da instituição”; “estão querendo baixar o nível das nossas institui-
ções”, etc. Bento (2005) chama à atenção especialmente para a agressiva defesa
das cotas de 100% pelos brancos em lugares de poder da mídia brasileira, quando
se dão conta de que seu grupo racial perderá o filão de privilégios que mantém há
séculos, já que como formadores de opinião, estimulam reações agressivas dos
jovens brancos diante da implementação de políticas que visem corrigir o efeito da
discriminação vivida cotidianamente pelos negros e negras brasileiros.
Considerando que o embate relativo às cotas para negros nos oferece a pos-
sibilidade de melhor conhecer o branco, Bento (2005) mapeia os argumentos dos
brancos brasileiros, a partir do levantamento que o CEERT realizou em artigos de
revistas e jornais de grande circulação nacional, sites e mensagens, transmitidas via
e-mail. E observa que os argumentos não são nada criativos, e se repetem: “essas po-
líticas são assistencialistas, protecionistas, geram a discriminação às avessas”. Evo-
ca-se a justiça para os brancos, diante da possibilidade de políticas voltadas especi-
ficamente para os negros - “e os 19 milhões de brancos pobres, ficarão excluídos
das cotas?”. Observando que algumas estratégias e linhas de argumentações se
repetem no discurso de atores muito diferentes e que ocupam também diferentes
lugares sociais, mas que compartilham a condição comum de brancos - jornalistas;
acadêmicos (cientistas sociais e políticos) brasileiros ou norte-americanos; juízes
e advogados; dirigentes sindicais, políticos (senadores, ministros, presidente da
República) de diferentes matizes político-partidárias - Bento (2005), para descons-
truí-los, nos apresenta esses argumentos, dentre eles que “negros em geral não

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 255


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
têm qualificação para entrar nas universidades e/ou para ocupar cargos de chefia
/ melhor remunerados”6.
Um dos raros intelectuais brancos que se envolveu efetivamente na defesa das
cotas raciais foi o antropólogo e professor da Universidade de Brasília, José Jorge
de Carvalho, publicando vários artigos sobre o tema nesse momento e defendendo
que a questão central das cotas no ensino superior é o enfrentamento da desigual-
dade racial existente na graduação, na pós-graduação, na docência e na pesquisa
das universidades”. Vejamos o que ele diz sobre essa organização da elite intelec-
tual branco- brasileira contra as cotas para negros e negras acessarem às universi-
dades públicas em 2009:

Enquanto lutamos para mudar essa realidade, um grupo de


acadêmicos e jornalistas brancos, concentrado no eixo Rio-São
Paulo, reage contra esse movimento apontando para cenários
catastróficos, como se, por causa das cotas, as universidades
brasileiras pudessem ser palco de genocídios como o do nazismo
e o de Ruanda! Como não podem negar a necessidade de algu-
ma política de inclusão racial, passamos a repetir tediosamente
aquilo que todos sabem e do que ninguém discorda: não existem
raças no sentido biológico do termo. E, contrariando inclusive to-
dos os dados oficiais sobre a desigualdade racial produzidos pelo
IBGE e pelo Ipea, começam a negar a própria existência de racis-
mo no Brasil (Carvalho, 2015).

Foi nesse contexto de polêmicas no Brasil em torno de cotas para negros e


negras acessarem às universidades, que foi publicado o livro Divisões perigosas:
políticas raciais no Brasil contemporâneo, em 2007, organizado pelo antropólogo
inglês, Peter Fry, acadêmico bastante influente no Brasil que chegou aqui em 1970,
para participar como docente do processo de consolidação da pós-graduação em ci-
ências sociais da Universidade Estadual de Campinas. Fly foi um dos signatários dos
manifestos contra as cotas e um dos mais entrevistados pela grande mídia brasi-
leira sobre o tema. O livro Divisões perigosas (2007) tem como objetivo criticar as
políticas de ações afirmativas para negros e negras que vinha sendo paulatinamen-
te implantada no Brasil a partir do Governo Lula, em 2002, as quais denominam
ser um processo de “racialização” da política nacional. Composto por 46 ensaios,
na sua maioria, oriundos da imprensa escrita de circulação diária, publicados entre

6 Bento (2005) continua descrevendo os argumentos das elites e classes médias brasileiras
contra as cotas: universidades diminuiria a qualidade de seus alunos e, conseqüentemente, do ensino
universitário”; “as ações afirmativas e as cotas fazem parte de um modelo norte-americano, que alguns
querem artificialmente importar, mas que não funcionariam no Brasil, uma vez que nossa realidade
é outra”; “as cotas para negros em universidades seriam humilhantes para os negros que delas des-
frutassem, pois eles guardariam eternamente o ‘estigma’ de ‘parasitas do Estado’, ou de ter entrado
na universidade não por mérito próprio, mas por um ‘favor’ ou ‘concessão’ do Estado”; “a adoção de
cotas para negros em universidades contraria o princípio da meritocracia, ou seja, de que entram nas
universidades quem ‘faz por merecer’, por capacidade e esforço pessoal – o que seria muito mais justo
e democrático”.

256 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
os anos de 2002 e 2007 e escritos por 38 intelectuais de renome nacional - antropó-
logos, sociólogos, historiadores, geneticistas, etc.- o livro afirma em todos os seus
artigos a universalidade dos valores ocidentais e se posicionam contra a ideia de
políticas públicas com recorte racial, defendendo que assim estaríamos dividindo o
Brasil entre brancos e negros.
Tais artigos foram agrupados em quatro blocos, que pelos títulos já sugerem
como o livro quer interferir no debate. Raça, Ciência e História é o bloco no qual os
autores consensuam que não se justifica a criação de políticas públicas com recorte
racial pois não existem raças humanas do ponto de vista biológico e, além disso,
tais políticas que estão sendo implementadas no Brasil, são fortemente marcadas
pela experiência dos Estados Unidos, cuja identificação de grupos “raciais” são bem
definidos. As estratégias utilizadas para a classificação étnico-racial no âmbito das
atuais políticas de recorte racial no Brasil são questionadas no bloco Quem é Negro
no Brasil?, pelos autores que sustentam seus argumentos na celebrada miscigena-
ção que ao nos tornar todos “mestiços”, impede que reconheçamos quem é negro,
branco ou indígena no país. Assim, políticas públicas endereçadas aos negros para
esses autores tem por base “categorias fixas tomadas com base na cor da pele”,
assim contribuindo para divisão da sociedade brasileira em raças, contrariando a
história da cultura brasileira que nunca se viu como raças. O terceiro bloco, Edu-
cação, critica às políticas adotadas pelo Ministério da Educação (MEC) do governo
Lula, especialmente no que diz respeito à adoção do sistema de cotas raciais nos
vestibulares das universidades públicas, defendendo que a esta adoção, ao base-
ar-se em critérios raciais, prejudica a grande maioria dos concorrentes dos vesti-
bulares, em especial os pobres - que inclui brasileiros de todas as cores, além de
não atingirem o problema central – a baixa qualidade e a falta de vagas na educação
básica e gratuita para toda a população, principalmente para a população pobre. O
quarto bloco, Saúde, os autores criticam os movimentos negros, que apoiados por
setores da comunidade científica e do Ministério da Saúde, defendem uma política
de saúde focada na população negra (Veloso Filho; Kabad, 2010).
Mas, apesar de toda essa bélica instrumentação teórico-epistemológica das/
dos intelectuais brancos, o projeto de Lei das Cotas recebeu a aprovação da Câma-
ra dos Deputados em novembro de 2008. Assim é que os anos 2000 se transfor-
maram na década das cotas no ensino superior - em 2002, eram apenas três uni-
versidades, em 2009 já eram 94 universidades com ações afirmativas, em 68 delas
com recorte étnico-racial, apontando para o surgimento de uma nova consciência
acadêmica, exemplificada com a reserva de 600 bolsas de iniciação científica para
cotistas pelo Conselho Nacional de Pesquisa (CNPQ), indicando que se o século XX
foi da desigualdade racial, o XXI poderia ser de igualdade racial, ao menos no ensi-
no superior ( Carvalho, 2009).
Podemos perceber que nessa guerra de narrativas, que indicam formas diferen-
tes de intepretação do Brasil, a partir de interesses de raça/classe, o que está em
jogo é a manutenção da colonialidade de poderes e suas hierarquias de cor/raça

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 257


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
e, para tanto, se aciona os poderes político-partidários das elites e classes médias
brancas brasileiras. Dessa forma, ainda em 2009, o Partido dos Democratas entrou
com uma ação de inconstitucionalidade no (STF), questionando o sistema de cotas
raciais na Universidade de Brasília (UNB), a qual havia aprovado a reserva de 20% das
vagas do vestibular exclusivamente para negros e vagas para índios independentemen-
te de vestibular há 5 anos atrás.
Mas, após o trâmite de sete anos, o projeto de lei que cria o Estatuto foi aprova-
do pelo Congresso Nacional em 17 de junho de 2010 e sancionado pelo Presidente
Luiz Inácio Lula da Silva em 20 de julho do mesmo ano. E, por unanimidade, em
abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) validou a adoção das políticas de cotas
raciais nas universidades, considerando-as necessárias para corrigir o histórico de discri-
minação racial no Brasil, autorizando as universidades públicas brasileiras a adotá-
-las e assegurando sua constitucionalidade. Após tramitar por mais de 13 anos no
Congresso Nacional, em 08 de agosto, o Senado brasileiro sanciona a Lei de Cotas e
em 29 do mesmo mês, a presidente Dilma Rousseff também a sanciona, tornando
realidade jurídica, a inclusão de alunos oriundos de escolas públicas, negros e indí-
genas nas universidades e institutos federais de educação.
Quanto ao desempenho dos estudantes negros e negras que entraram pelo sis-
tema de cotas nas universidades brasileiras, vários jornais vêm noticiando que os
cotistas têm tido igual ou melhor desempenho que os não cotistas. Em entrevista
ao Programa Roda Viva, da Tv Cultura, em 3 de junho de 2013, o presidente do
Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), pro-
fessor Luiz Cláudio Costa, afirma que o Brasil avança com a presença de negros nas
universidades e fala do desempenho acima da média dos alunos cotistas (Correiro
Brasiliense, 2006). O Jornal O Estado de São Paulo (2010) informa que estudos
realizados pelas Universidades Estaduais do Rio de Janeiro (UERJ) e Campinas (Uni-
camp) mostraram que o desempenho médio dos estudantes que entraram pelo
sistema de cotas é superior aos alcançados pelos demais alunos. A Universidade
Federal de Minas Gerais divulgou dados nos quais constatam a equiparação das no-
tas de estudantes cotistas e não cotistas (Gobo.com, 2015). As mudanças no perfil
discente das universidades são explícitas. A edição de 2019 da Pesquisa Nacional
de Perfil Socioeconômico e Cultural dos (as) Graduando(as) das Instituições Fede-
rais do Ensino Superior, afirma que “passados 14 anos desde o início incipiente
das ações afirmativas em universidades, os estudantes negros e pardos são maio-
ria entre os estudantes das universidades federais do País”, pois, a partir de 2003,
“nota-se um crescimento da participação de pardos e pretos”. A pesquisa aponta
que negras e negros são 51% dos estudantes das 63 universidades federais do Brasil
(Carta Capital 2019).

258 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
1. EMERGE UMA NOVA AGENDA POLÍTICA:
DESCOLONIZAÇÃO EPISTÊMICA DO CONHECIMENTO NA
PERSPECTIVA NEGRA
O êxito da luta política por ampliação do acesso de negras e negras à universida-
de no Brasil, especialmente esse confronto de relatos entre intelectuais/ativistas
negros e intelectuais brancos que assumiram seu ativismo acadêmico, aponta para
algumas coisas importantes de serem assinaladas para compreendermos como
opera a colonialidade de poderes para manter as hierarquias raciais e de gênero
intactas no Brasil. O que mais chama à atenção é quão importante foi a presença
negra no campo intelectual e acadêmico brasileiro, comprometida com o anti-ra-
cismo nesse momento da história social brasileira. Essas e esses intelectuais ne-
gras e negros, ainda que formados numa universidade estruturada pelo racismo/
sexismo epistêmico que reproduz o privilégio epistêmico dos homens brancos de
apenas cinco países da Europa Ocidental europeus, como nos lembra Grosfoguel
(20013, 2016), se armaram teoricamente do que lá aprenderam e do que aprende-
ram no ativismo negro para confrontar a branquitude em sua tentativa de manter
seus privilégios raciais no campo acadêmico-brasileiro. Falam de um lugar de poder
tradicionalmente branco no Brasil – a vida intelectual/acadêmica universitária – e
desse lugar desafiam as narrativas brancas do Brasil, para que mais negras e negros
acessem esse lugar. Por outro lado, como tantas vezes Sueli Carneiro e Aparecida
Bento vem chamando à atenção, para defender seus privilégios na universidade, os
intelectuais branco-mestiços brasileiros foram obrigados a também se posiciona-
rem como ativistas em defesa dos seus interesses de branquitude, pois como lem-
bra Grada Quilomba (2016), “branco não é uma cor, é uma afirmação política”, pois
“representa uma história de privilégios, escravatura, colonialismo, uma realidade
cotidiana”, chamando também à atenção de que apesar disso: “as pessoas brancas
não se vêem como brancas, se veem como pessoas (...) e esse ser pessoa é a nor-
ma, que mantém a estrutura colonial e o racismo. E essa centralidade do homem
branco não é marcada”, afirmando que o seu trabalho de descolonização é marcar
e interrogar à diferença branca.
Portanto, a entrada dos movimentos negros na disputa pela universidade bra-
sileira que só ocorre em finais do século XX, e a vitoriosa conquista da amplia-
ção do acesso dos negros e negras nesse prestigiado espaço, no início do século
XXI, abriu uma agenda de descolonização do conhecimento no Brasil (Silva, 2005;
2018). Nessa perspectiva, nossos projetos intelectuais e acadêmicos, a partir de en-
tão, precisam tornar visível as experiências de produção de conhecimento de ne-
gros e negras e interessados em práticas político-culturais e intelectuais negras de
descolonização do conhecimento desenvolvidas a partir das fronteiras do mundo
moderno colonial. Para tanto, os saberes negros presentes nos terreiros de matriz
africana, na política negra, nas rodas de capoeira e nas comunidades quilombolas,
podem contribuir para a descolonização do conhecimento acadêmico no Brasil.
Pois estes lugares epistêmicos são espaços negros de produção de conhecimento

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 259


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
que, ainda que afetados pelos poderes coloniais através da estratégia de criminali-
zação, sua história de abandono pelas autoridades republicanas e democráticas a
partir do pós-abolição, talvez motivados pela lógica do “deixar morrer”, os conver-
teram em espaços de epistemologias de ancestralidades e resistências.
No entanto, a universidade do século XXI, na qual chegam esses novos sujeitos,
mantem fortes traços de colonialidade que permaneceram da experiência coloni-
zadora e de escravidão racial no Brasil. O ensino superior que surge em plena do-
minação colonial portuguesa, início do século XIX no Brasil, e, para atender a seus
interesses, e a universidade brasileira que emerge na década de 20, vem produzin-
do um conhecimento que transforma o poder de brancos brasileiros sobre negros
e indígenas em verdade científica. Um exemplo contemporâneo desses poderes
brancos ocorreu em 2015, quando foi realizado um trote na Universidade Federal
da Bahia com calouros da Faculdade de Arquitetura que deu margem a ser lido
como expressão do racismo, ao usar um boneco de cor preta enforcado para rece-
ber e simbolizar os calouros. Tal imagem foi disseminada nas redes sociais do Brasil
(Globo.com, 2015). Em artigo intitulado, O estranho caso de um inocente boneco pre-
to pendurado na UFBA, publicado no Portal Geledés (2010) a imagem da Faculdade de
Arquitetura foi comparada ao contexto de negros e negras que foram enforcados
e esquartejados por desafiarem a dominação escravista no Brasil, a exemplo da
Revolta dos Búzios ocorrida também em Salvador (BA), no século XVIII. No artigo,
a autora se pergunta se o caso da Faculdade de Arquitetura da UFBA não seria uma
forma de repudiar a ousadia que negros e negras estão tendo, cada vez mais, ape-
sar de passos tímidos, em entrar no espaço branco da Universidade.
Por tudo isso ainda há grandes desafios para que o Brasil supere a coloniali-
dade – com suas hierarquias raciais, de gênero e epistemológicas – que teima em
permanecer na sociedade brasileira. Ainda que as universidades brasileiras tenham
adotando políticas de ampliação do acesso dos negros, como resultado da luta
política dos movimentos negros e de mulheres negras, há uma grande dificuldade
de operarem mudanças epistemológicas que incluam com igualdade, os conheci-
mentos, saberes e cosmovisões das negras e negros e suas diásporas. Portanto, a
universidade brasileira do século XXI, como lugar também de negros e negras é
experiência que reclama mudanças epistemológicas.
Nesse sentido, consideramos que a ampliação da inserção negra, conquistada
pelas políticas de ações afirmativas na universidade, pode conduzir o Brasil para
um processo de descolonização do conhecimento acadêmico na medida em que in-
clua, com status de conhecimento acadêmico, saberes tornados “os outros” do co-
nhecimento “universal”, desconstruindo assim o “fundamentalismo eurocêntrico”
do conhecimento universitário e promovendo uma maior diversidade epistêmica
na academia brasileira. Consideramos ainda que a crítica decolonial latino-ameri-
cana é estratégica para o Brasil nesse momento, pois, se constitui como uma crítica
ao eurocentrismo a partir dos saberes silenciados pois subalternizados na América

260 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Latina, propondo uma perspectiva epistêmica que parta de lugares étnico-raciais
subalternos para formulação de uma teoria crítica decolonial.
Considerando então que esse racismo/sexismo epistêmico é estruturante da
universidade como efeito dos poderes coloniais e da colonialidade globais e locais
(Grosfoguel, 2013, 2016), entendemos que superá-lo é nosso principal desafio nes-
se cenário contemporâneo brasileiro de vitória dessa agenda do ativismo negro
e de mulheres negras de ampliação do acesso negro à universidade. A agenda da
descolonização do conhecimento na universidade vem se instalando no mundo,
principalmente a partir do pleito dos estudantes das universidades sul-africanas,
pois, o movimento estudantil da África do Sul, desde 2015, vem exigindo o direito
à uma educação pública (gratuita) e descolonizada nas universidades. No entanto,
esse movimento por descolonização vem crescendo em várias partes do mundo,
como nos movimentos negros e nas universidades portuguesas e até nas univer-
sidades localizadas no centro da colonialidade de poder-saber global, como as
inglesas. Nosso desafio é inserir o Brasil nessa rota da descolonização do conhe-
cimento acadêmico-universitário que têm tomado a agenda do movimento estu-
dantil negro na diáspora negra, a partir do caso sul-africano (Silva, 2019).
A sociedade brasileira e suas instituições vêm reagindo de diversas formas às
políticas públicas de ampliação do acesso dos negros e negras às universidades.
Uma dessas formas foi a contestação nada cordial dos intelectuais/acadêmicos
brancos do Brasil, acerca da legitimidade constitucional das conquistas dos mo-
vimentos negros e de mulheres negras no âmbito acadêmico-universitário brasi-
leiro, se organizando mais explicitamente, enquanto branquitude, para paralisar
tais conquistas e reiterar as hierarquias raciais da colonialidade brasileira na uni-
versidade, em meados dos anos 2000. Portanto, esse pleito negro gerou protesto
branco, num processo em que a elite branca e acadêmica se organiza para deter
as conquistas dos negros e negras em relação às políticas de ampliação do acesso
à universidade. Tal protesto branco expôs os poderes da colonialidade presentes
na geopolítica do conhecimento acadêmico-universitário brasileiro estruturado
pelo racismo/sexismo epistêmico. Nesse cenário, tal relação saber-poder colocou
homens brancos brasileiros em defesa da manutenção do seu histórico privilégio
epistêmico de ver o negro sem ser visto nas universidades brasileiras que se ex-
pandem a partir dos anos 30, especialmente nas ciências sociais, como desvendou
Guerreiro Ramos (1995), naturalizando a ausência dos corpos e dos pensamentos
das negras e negros.
No entanto, colocamos em cena a agência intelectual negra através da consoli-
dação de um ativismo intelectual-acadêmico que desafiou as narrativas branco-in-
telectuais e resultou no reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal (STF), por
unanimidade, da constitucionalidade das cotas raciais, em 2012. Intelectuais ne-
gras e negras do Brasil inteiro, representantes de uma geração contemporânea de
ativistas no campo intelectual brasileiro, se articularam para produzir e colocar em
visibilidade suas próprias narrativas de interpretação/interpelação do Brasil, em

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 261


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
que ressaltam como os poderes da colonialidade se apresentaram na geopolítica
do conhecimento acadêmico-universitário brasileiro para consolidar as universida-
des como instituição estruturalmente sem as negras/os e indígenas até pelo menos
a primeira década dos anos 2000, como efeito dos poderes do racismo/sexismo.
Portanto, o protesto branco resultou num ativismo negro também intelectual que
cada vez mais vem se fortalecendo e se sofisticando nesse ambiente acadêmico-in-
telectual brasileiro, cujo desafio contemporâneo é atender à uma agenda de des-
colonização/decolonialidade do conhecimento acadêmico-universitário no Brasil.

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pectiva negra. Tese (Doutorado) - Universidade Federal da Bahia. Programa Multidiscipli-
nar de Pós- Graduação em Cultura e Sociedade, Salvador (BA) 2018.

AUTORIA
Nádia Maria Cardoso da Silva
Ativista da igualdade racial e de gênero
Graduada em Antropologia (Universidade Federal da Bahia/UFBA) Especialista em
Direitos Humanos (Universidade Estadual da Bahia/UNEB) Mestra em Educação
(Universidade Estadual da Bahia/UNEB)
Doutora em Cultura e Sociedade (Universidade Federal da Bahia/UFBA
E-mail: nadiamariac19@gmail.com

264 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A LINHA DE COR ENTRE DU BOIS E FREYRE:
UMA ANÁLISE COMPARADA DAS OBRAS “AS
ALMAS DA GENTE NEGRA” E “CASA GRANDE &
SENZALA”
Roberth Daylon dos Santos Freitas

Jazem sepultadas neste local muitas coisas que,


se lidas com paciência, podem mostrar o estranho
significado de ser negro aqui, no alvorecer do
Século Vinte. Este significado não é destituído de
interesse para você, caro leitor, pois a questão do
Século Vinte é o problema da Linha de cor.
W.E.B Du Bois

INTRODUÇÃO
A partir de meados do século XIX as humanidades se voltaram para um concei-
to, que apesar de já existente, tornou-se basilar para a análise de seus objetos, o
conceito de raça. O conceito que visava instaurar um paradigma biológico e bio-
logizante nas análises das sociedades contemporâneas e históricas teve sua maior
envergadura nos estudos eugênicos que sob a égide de um método científico foram
mobilizados em meios acadêmicos e na elaboração de políticas públicas tanto na-
cionais quanto internacionais.
Apesar do grande sucesso da abordagem no que tange suas repercussões, ainda
no século XIX algumas de suas perspectivas, principalmente as eugênicas de hierar-
quização, foram contestadas. Dentre os agentes dessa contestação podemos citar
os movimentos e intelectuais abolicionistas e algumas correntes da Antropologia
Física, como àquelas representadas por Franz Boas, maior expoente da posterior-
mente chamada Antropologia Norte-Americana. Apesar de contestarem argumen-
tos, métodos, conclusões e políticas que derivam do pensamento eugênico nem os
abolicionistas, nem os antropólogos, é importante dizer, abandonaram o conceito
de raça em suas reflexões sobre as sociedades e os grupos humanos.
No fim do século XIX, ainda embasado nesses paradigmas sobre raça e cultura,
W.E. Du Bois defendeu na Alemanha a dissertação “O desenvolvimento da econo-
mia agrária dos estados do Sul dos Estados Unidos” iniciando com ele uma série
de reflexões acerca das relações sociais entre negros e brancos nos EUA. Poste-
riormente, publicou uma importante e repercutida obra pela Harvard Historical
Studies Series chamada “The Suppression of the African Slave Trade”.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 265


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Segundo Tukufu Zuberi essas duas obras de Du Bois trazem desde a elaboração
uma dimensão política centrada na crença de que uma verdade científica é neces-
sária para o avanço das reformas e justiças sociais. (ZUBERI, 2020, p571)
Zuberi afirma ainda que o segundo livro de Du Bois, “The Philadelphia Negro: A
social Study” é o primeiro estudo sociológico científico sobre raça na tradição esta-
dunidense. A obra enaltecida por contestar cânones da Sociologia estadunidense
revoluciona por seus métodos e por suas fontes. “As Almas da Gente Negra” é um
livro que continua a proposta de “The Philadelphia Negro” à partir de uma perspec-
tiva ensaística e literária. A obra é um dos mais importantes escritos do século XX
e foi seminal para o desenvolvimento do pensamento negro e pós-colonial que se
desenvolveu posteriormente.
Trinta anos depois do lançamento de “As Almas da Gente Negra”, mais ainda
fortemente influenciado pelo pensamento do século XIX, Gilberto Freyre lança no
Brasil seu principal livro, “Casa Grande & Senzala”. Devedor, segundo o próprio
Freyre, das influências do pensamento boasiano já consolidado na antropologia
norte americana seu livro é uma obra grande envergadura que versa sobre a His-
tória do Brasil à partir da perspectiva dos encontros raciais que aqui ocorreram,
principalmente entre o Branco (especificamente Português) o Negro e o Indígena.
Sua descrição é centrada na elaboração do conceito de sociedade patriarcal e da
descrição de seu funcionamento no Brasil. Assim como Du Bois e Boas a obra de
Freyre contesta o pensamento eugenista do século XIX, principalmente o de Nina
Rodrigues que elaborou teorias até então muito relevantes sobre os encontros ra-
ciais no Brasil.
À partir das convergências de temática e universo de referências acreditamos
que “Casa Grande & Senzala” e “As Almas da Gente Negra” acabam por aproxi-
mar-se o suficiente para que façamos uma análise comparativa das obras e dos
argumentos levantados pelos autores.

1. A INOVAÇÃO DAS FONTES E MÉTODOS


Pretendendo realizar um estudo social à partir da raça e cultura Freyre e Du
Bois deparam- se com o dilema da fonte. A documentação oficial, excessivamente
quantitativa, por vezes, não permite uma análise do contexto e da dinâmica social
do mundo estudado. Em Freyre é possível acrescer ainda o fato de seu estudo ser
eminentemente histórico em “Casa Grande & Senzala”. Sendo assim, às fontes que
os autores mobilizam e pelas quais são fortemente elogiados são um dos principais
elementos de aproximação entre as duas obras.
Claudio Marcio Coelho (2013), aponta dentre a diversidade das fontes utiliza-
das por Freyre os Livros de assentos, Fontes Inquisitoriais, Cadernos de recolha de
fatos, Relatos de Viagem, Cartas de Missionários, Crônicas e Romances, Jornais,
Fontes Iconográficas, além de uma análise arquitetônica e de outros elementos de

266 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
cultura material, como joias, móveis, livros. Acrescentamos ainda o uso de canções,
contos. mitos e tradição oral.
Apesar de não se trate de um estudo com a mesma envergadura e do caráter
ensaístico da obra de Du Bois muitas das fontes citadas são mobilizadas pelo autor
para a construção de sua argumentação e para a ambientação de seus escritos
literários que por vezes constituem uma narrativa sobre o passado.
É importante ressaltarmos como as canções, histórias, contos e a dança são vis-
tos pelos dois autores como a forma que o negro se inscreve no mundo social. Para
Martha Abreu na análise de Du Bois as canções aparecem como um “[...] legado
cultural dos africanos e seus descendentes no imaginário das sociedades moder-
nas.” (ABREU, 2015, p.184). A autora afirma ainda, que a análise dessas canções e
as concepções de Du Bois acerca delas era uma forma de “participar do debate e da
crítica sobre a hierarquia das raças e sobre as possibilidades de integração dos des-
centes de africanos”.(Idem) Em alguma medida podemos estender as afirmações
da autora para Freyre.
Os usos de novas fontes e métodos para a produção das ciências humanas de-
vem ser compreendidos como parte de um processo de contestação de uma ló-
gica excludente da ciência praticada do século XIX. Coelho (2013) inicia seu texto
contextualizando uma crise paradigmática do racionalismo cartesiano e do posi-
tivismo científico. É de suma importância compreendermos que às contestações
dessa lógica não se deram dissociadas da contestação à eugenia e às teorias de
hierarquização racial, antes, as obras de Du Bois e Freyre são exemplos da inter-
relação entre esses dois movimentos intelectuais de contestação não apenas das
hierarquias racistas consolidadas até o momento e também das ciências e métodos
que as embasaram.

2. O CARÁTER DEGENERADOR DA ESCRAVIDÃO


Mencionamos por vezes como os autores se contrapõe uma lógica de inferio-
ridade negro africana eugenista. Essa argumentação pode ser percebida em suas
obras na perspectiva degenerativa que os autores têm do processo de escravização
sobre todos os seus agentes.
Se retomarmos os discursos sobre a escravidão e abolição no século XIX, como
faz Célia Maria de Azevedo (1987) notamos que a inferioridade racial e cultural dos
negros, mesmo em diáspora, é atribuída na maior parte das vezes à permanência
de traços africanos. José Bonifácio, patrono da independência do Brasil, por vezes
se refere aos africanos como afeitos à selvageria e intelectualmente inferiores. Seu
discurso, não raro nos cenários políticos do Brasil oitocentista atribuía a culpa da
escravidão aos africanos, ora como possibilidade divina para sua redenção, ora
como fruto da sua barbárie cultural e social.
Segundo Azevedo, é em 1887 que se publica um artigo em jornais abolicionistas
que contrapondo a concepção vigente contesta a inferioridade do negro e atribui a

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 267


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
escravidão à “ganância do europeu” e não à barbárie africana. A argumentação de
Du Bois e Freyre caminha nesse sentido quando os autores propõem uma escravi-
dão atlântica que degenera as sociedades africanas e americanas.
Gilberto Freyre (2004) descreve a África como um lugar plural, que abriga em si
sociedades civilizadas e bárbaras das quais saíram negros de toda a natureza para o
tráfico. Para o autor a degeneração dos negros não se deve à um passado ou à uma
herança africana, mas antes pela condição de escravizados. (p. 390). Du Bois (1999)
de forma semelhante descreve a escravidão como um processo que atou as mão
e pés dos negros traficados e seus descendentes. Sua agência e inventividade ex-
pressa na grandiosidade das sociedades africanas antes da chegada dos europeus
(como o Egito e o império do Mali) foram tolhidas pelo processo de escravização
no modelo introduzido em África pelos europeus (p.43).
Para Du Bois ainda a escravidão agia como um discurso que imputava aos negros
um lugar de inferioridade e os aprisionava nele. Os anos de submissão ao regime,
para Du Bois, legitimaram o discurso não só para brancos, mas também para os
negros escravizados e posteriormente para seus descendentes livres e libertos. (p.
46)
É importante que notarmos um ponto importante na tese dos autores sobre a
degeneração causada pela escravidão é sua reciprocidade. A escravidão não dege-
nera apenas os negros e africanos, mas também os senhores brancos. A descrição
de Freyre da violência colonial, principalmente da violência feminina das senhoras
e sua percepção de um sadismo português que encontra reciprocidade em um su-
posto masoquismo do negro, e principalmente da negra, escravizados é um dos
momentos em que sua narrativa é mais explícita quanto à essa degeneração moral
e cultural da escravidão. C.L.R James (2000), autor contemporâneo de Freyre e
também leitor de Du Bois, em sua descrição da antiga colônia de São Domingos, en-
fatiza como a escravidão degenerou os povos negros africanos (p. 21) e a própria
cultura europeia não só nas colônias americanas, como no velho continente.
Por fim, é necessário pensar como esse discurso incide sobre a vida sexual das
negras e negros escravizados com os seus senhores e senhoras. Para Freyre (2004)
essa relação é o centro de sua análise sobre a contribuição do negro na sociedade
brasileira, a ponto de levá-lo à máximas como “não há escravidão sem perversão
sexual”. Du Bois (1999) se diferente pouco em relação à essa narrativa, para ele
às relações interraciais no contexto de escravidão contaminaram a mulher negra
obliterando o lar ou a família, tão central para as culturas africanas (p. 43). É impor-
tante pontuarmos a dimensão sexista que as duas abordagens tomam quando se
aproximam da temática da sexualidade, dimensão essa que acreditamos merecer
mais atenção com o desenvolvimento posterior deste trabalho.
As propostas dos autores em sua abordagem do caráter degenerador da escra-
vidão inverte a lógica eugênica do século XIX que por vezes apontava a escravidão
como consequência da degeneração dos negros e africanos e não sua causa. Gil-
berto Freyre, de forma controversa, diferencia em sua obra o negro do escravo

268 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
para demarcar como é o sistema de escravidão o responsável por muito do que os
pensadores eugênicos imputavam a raça, como a sexualização excessiva do negro,
sua subalternidade moral e intelectual em relação ao europeu.

3. O CARÁTER FORMADOR DA ESCRAVIDÃO


A escravidão é um dos temas mais controversos na obra dos dois autores. Em-
bora percebida como causa da degeneração dos indivíduos da sociedade escra-
vista o sistema não deve, para nenhum deles, ser visto de forma maniqueísta. Mas
enquanto para Freyre (2004)“Não foi toda de alegria a vida dos negros”(p.552) es-
cravos dos senhores brancos, Du Bois (1999) afirma que apesar da desumanização
do sistema que classificava juntos “o negro e o boi” há nele um “algo de bondade,
fidelidade e felicidade”.(p. 59) O autor norte americano acredita que apesar do
exercício insistente de reduzir o negro à menos que humano, manter sua humani-
dade através do afeto foi uma das formas de resistência do negro à escravização.
Freyre afirma de forma semelhante que em tudo que é expressão sincera de vida,
trazemos quase todos a marca da influência negra.
O modelo patriarcal para Freyre é exemplo no sucesso em conciliar as cultu-
ras africanas e europeias tão díspares em uma sua sociedade de antagonismos
equilibrados da qual a casa grande é a maior a síntese. Para Du Bois também é na
casa grande onde se pode encontrar a convivência entre brancos e negros em uma
harmonia estranha ao século XX. Apesar da escravidão e por vezes à despeito delas
é importante notar o quanto, para os autores uma ideia de cultura negra aparece
como complexa e essencial para a formação de uma cultura nacional. Essa cultura
é caracterizada eminentemente por sua dimensão afetiva, emocional.
Leopold Senghor (1935), leitor de Freyre e de Du Bois, endossa que a oposição
entre uma cultura europeia racional e analítica e uma “alma negra” emocional e
impulsiva é na realidade o que as faz complementares. Dessa complementarida-
de, já presente na obra de seus antecessores, surge a genialidade do mestiço e a
modernidade de nação pautada nos contatos culturais. Apesar da obra de Senghor
aproximar-se muito da de Freyre, nesse sentido é importante pontuarmos aqui
uma ruptura na relação entre Freyre e Du Bois.
Se nos determos nos seguintes trechos poderemos entender melhor essa ruptu-
ra: “No caso brasileiro, porém, é injusto acusar o português de ter manchado, com
instituição que hoje tanto nos repugna, sua grandiosa obra de colonização tropical.”
e conclui que “O meio e às circunstâncias exigiram o escravo”(FREYRE, 2004, p.322)
Enquanto Freyre argumenta a necessidade da escravidão para a colonização do
Brasil, inclusive desculpabilizando os portugueses em alguma medida, Du Bois é
implacável quanto a sua crítica ao sistema escravista e suas sequelas na sociedade
americana após a emancipação. A escravidão em Freyre aparece como uma mácula,
desonrosa, mas necessária para uma colonização bem sucedida, enquanto para Du
Bois aparece como ferida aberta

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 269


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
agravada por um processo de emancipação que afastou brancos e negros des-
truindo assim os laços harmônicos da casa grande, construídos à despeito da vio-
lência da escravidão.
A descrição de Du Bois sobre a cultura negra nesse sentido é bastante simbólica.
Para o autor, uma cultura negra norte americana sintetizada em grande parte pelas
“the sorrow songs” (canções de tristeza) é uma cultura marcada pela tristeza da
escravização, do desterro e do não pertencimento. Para o autor, porém, é dentro
dessa cultura que os ideais humanistas da Declaração de Dependência dos Estados
Unidos encontram “seu mais puro expoente” (Du Bois, 1999, p. 46). Os ideais hu-
manistas de uma sociedade escravista, embora não pensados para os indivíduos
escravizados encontra neles uma significação profunda e prática. C. L. R. James
(2000) reconhece o mesmo fenômeno em sua análise da reapropriação dos ideais
da revolução francesa que fazem os revolucionários haitianos e por seu líder Tou-
ssaint Louverture.
Apesar de se afastarem em algum ponto da argumentação a conclusão de Freyre
e Du Bois sobre a cultura negra volta a se aproximar quando os dois reconhecem a
importância de uma cultura negra indispensável na formação de uma cultura nacio-
nal, ou no caso de Du Bois que a sintetize.

4. CONCLUSÃO: A LINHA DE COR ENTRE DU BOIS E FREYRE


Como já indicamos os textos e Du Bois e Freyre tiveram grande importância
para o contexto intelectuais dos autores e representaram verdadeiros marcos de
ruptura em relação à tradição intelectual em que se inseriram. Por esse motivo suas
obras são constantemente retomadas e reapropriadas conforme uma diversidade
de contextos político e culturais. Devemos mencionar, sobre a circularidade desses
escritos a relação direta entre eles. Apesar de os tratarmos quase como contem-
porâneos durante a análise a obra de Du Bois é trinta anos mais antiga que a de
Freyre, sendo inclusive uma de suas referências. Apesar de pouco mencionada du-
rante a escrita do texto, acreditamos, devido às semelhanças de propostas e argu-
mentos que “As Almas da Gente Negra” foi um livro importante para as reflexões
de Freyre.
Em contrapartida, desde seu lançamento, “Casa Grande & Senzala” recebeu
elogios diversos e teve tradução para diversas línguas, dentre elas o inglês e o
francês. Cibele Barbosa (2020) aponta como nos Estados Unidos a expectativa para
a tradução do livro de Freyre mobilizou escritores assíduos da The Crisis, revista
fundada por Du Bois.
Para além da circulação direta das obras, suas trajetórias voltam a encontrar-se,
desta vez em cenário de maior tensão no período da Segunda Guerra Mundial. A
retomada alarmante das teorias eugênicas pelos governos fascistas, e principal-
mente pela Alemanha nazista, potencializou os discursos intelectuais que contes-
tavam a eugenia desde o século XIX. Mas é com o fim da Guerra e a ascensão dos

270 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
movimentos intelectuais e políticos contra o colonialismo europeu é que às duas
obras atingirão sua máxima expressão no cenário no cenário intelectual à nível
mundial.
W.E.B. Du Bois desponta, nesse cenário como um ativista e intelectual assíduo
contra o imperialismo e a opressão racial dentro e fora dos Estados Unidos. Sua
atuação em âmbito internacional foi marcada pela participação ativa nos movi-
mentos de independência de colônias anglófonas na África Ocidental e Centro
Ocidental (como Nigéria e Gana). Dentro dos Estados Unidos sua participação na
formação da Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor (NAACP) tam-
bém foi de extrema importância, principalmente se considerarmos a participação
da organização nos movimentos pelos direitos civis na década de 60.
Gilberto Freyre aproxima-se a partir da década de 50 do Governo Português de
António de Oliveira Salazar. O discurso de uma colonização portuguesa bem sucedi-
da no Brasil, mobilizado para valorizar a mestiçagem de um universo “luso-tropical”
em contraposição às eugenias europeias foi utilizado por Freyre e por Salazar para
justificar a manutenção do estatuto de colônia portuguesa nos territórios africa-
nos(Castelo, 1998). O discurso por vezes contrapunha a colonização
portuguesa com a britânica ou a belga. Tal postura foi duramente contraposta
por membros dos movimentos de libertação de língua portuguesa como Mário Pin-
to de Andrade (que publicou como Buanga Fele), Amílcar Cabral (CABAÇO, 2007) e
Eduardo Mondlane (MONDLANE, 1975).
Intensificando a ambiguidade da obra, porém, o luso-tropicalismo não foi com-
pletamente descartado nos movimentos de descolonização. Leopold Senghor,
muito afeito às ideias freyreanas propunha uma independência que não rompesse
bruscamente com a França e propôs uma identidade nacional baseada na mestiça-
gem racial e cultural, a la Freyre, para o Senegal independente.
A mais evidente distinção de “Casa Grande & Senzala” e “As almas da Gente
Negra” talvez se expresse na preocupação dos autores dos usos políticos de seus
textos. Acreditamos que a subjetividade dos dois atores e suas corporeidades in-
fluenciaram na produção de suas obras e nas suas visões de mundo e sociedade.
Assumindo essa subjetividade que o constitui a proposta de Du Bois é a, pr’além
de um texto científico, um texto político. Seu caráter ensaístico lhe permite a partir
de seu diagnóstico sobre a sociedades estadunidense e da posição do negro nes-
sa sociedade, projetar um futuro para outras pessoas negras combatendo nele o
analfabetismo, o encarceramento, sufrágio racializado, as políticas de segregação
e posteriormente o colonialismo. Freyre por sua vez, visava preservar o caráter
mestiço da sociedade brasileira frente as propostas de modernização do Estado
Novo Varguista de caráter eugênico e sanitarista e posteriormente legitimar a co-
lonização portuguesa sobre a África a partir dos ideais da mestiçagem.
Apesar das aproximações, os escritos de Du Bois e Freyre são escritos de luga-
res sociais diferentes e encarnam uma perspectiva desses lugares. Enquanto Freyre
trata de forma saudosa de uma sociedade patriarcal de um passado quase ances-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 271


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
tral, Du Bois por vezes transpõe em texto elementos biográficos que atribuem à
sua análise uma pungência contemporânea. Nos arriscamos a dizer que a linha de
cor entre Freyre e Du Bois é o que mais distingue seus textos e principalmente os
destinos políticos tão distintos das obras e autores que, tentamos demonstrar, em
muito se aproximam.

REFERÊNCIAS

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AZEVEDO, Celia Maria Marinho de. Onda Negra, Medo Branco: O Negro no Imaginário das
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BARBOSA, Célia. Gilberto Freyre e a geopolítica da raça: a circulação transatlântica de


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culos XVIII ao XXI. Set, 2020. Disponível em: https://www.transatlantic-cultures.org/pt/
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CABAÇO, José Luís de Oliveira. Moçambique: identidades, colonialismo e libertação. Tese


(Doutorado em Antropologia). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Uni-
versidade de São Paulo. São Paulo, 2007.

CASTELO, Cláudia. O Modo Português de estar no mundo. O luso-tropicalismo e a ideolo-


gia colonial portuguesa (1933-1961). Porto: Edições Afrontamento, 1998.

COELHO, Claudio Marcio. Gilberto Freyre e o Ofício de historiador. Sinais - Revista Eletrô-
nica – Núcleo de Estudos e Pesquisas Indiciárias, Universidade Federal do Espírito Santo,
Vitória, n.13, p 1- 26. Junho, 2013. ISSN: 1981-3988.

DA SILVA, D. T. Eugenia, saúde e trabalho durante a Era Vargas. Em Tempo de Histórias,


v. 1, n. 33, p. 190-213, 15 mar. 2019.

DU BOIS, William Edward Burghardt. As almas da gente negra. São Paulo: Lacerda, 1999.

FREYRE, Gilberto. Casa Grande e Senzala: Formação da Família Brasileira sob o regime da
economia patriarcal. São Paulo: Global Editora, 49ª edição, 2004.

JAMES, C.L.R. Os Jacobinos Negros, Toussaint L'Ouverture e a revolução de São Domingos.


São Paulo, Boitempo, 2000.

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272 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
SCHOLL, Camille Johann.Léopold Sédar Senghor no Brasil, por uma “comunidade luso-a-
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acesso em 08 Nov. 2020.

ZUBERI, Tukufu. O PROFESSOR: UM ENSAIO. Revista da ABPN, Uberlândia, v. 12, n. 33 , p.


564-585• jun – ago 2020.

AUTORIA
Roberth Daylon dos Santos Freitas
Mestrando no PPG-HIS UFMG
E-mail: roberthdaylon@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9543550065695992

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 273


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
PAN-AFRICANISMO E MOVIMENTO NEGRO
BRASILEIRO: UMA ANÁLISE DA OBRA:
O QUILOMBISMO – DOCUMENTOS DE UMA
MILITÂNCIA PAN-AFRICANISTA POR ABDIAS
NASCIMENTO (1980)
Tailane Santana Nunes

Eu não vim para trazer a calmaria das almas mor-


tas, das inteligências petrificadas, dos que não
querem fazer onda à flor das águas. [...]
Eu estava mesmo disposto a assumir o papel de
“boi piranha”. Todo mundo foge desse papel, mas
eu não me importo. Se eu for sacrificado em nome
do meu povo, estou recompensado de tudo.
Toda a minha vida é isso mesmo,
é o que indica minha biografia
(NASCIMENTO apud
ALMADA,2009. p,17)

INTRODUÇÃO
A presente pesquisa aborda como questão central a construção do conceito
de Quilombismo desenvolvido por Abdias Nascimento na década de 1980. Atra-
vés da análise de discurso do livro O Quilombismo: documentos de uma militân-
cia pan-africanista, publicado pelo autor em 1980 pela Editora Vozes, buscamos
tecer um paralelo entre os movimentos pan-africanistas expoentes da década de
1970 e a construção epistemológica da teoria quilombista desenvolvida por Ab-
dias. Ao construirmos a análise do discurso da obra O Quilombismo, buscamos não
tão somente uma interpretação dos textos e conceitos edificados por Abdias, mas
também uma cuidadosa análise acerca das redes de interdependência na qual a
trajetória de Abdias Nascimento está ancorada e os reflexos desta em sua teoria.
Portanto, adota-se a metodologia de análise de discurso no presente estudo para
compreender como o discurso Quilombista de Abdias é construído a partir de con-
cepções políticas e sociais demarcadas pelos contextos sócio históricos vivenciados
e pelos processos ideológicos do autor durante sua experiência pan-africanista.
Um dos alvos da ditadura militar brasileira instaurada em 1964 e findada em
1985, Abdias Nascimento dedicara inteiramente sua trajetória à luta contra o ra-
cismo brasileiro e por esta razão viu-se obrigado a deixar o país na década de 70,
sob intensa perseguição militar. Durante o autoexílio, Abdias pôde somar suas
contribuições aos movimentos de libertação pan-africanistas e a luta antirracista

274 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
mundial. Sua voz ecoou em eventos e universidades internacionais, denunciando o
mito da democracia racial brasileira e as condições subumanas impostas ao negro
brasileiro desde a falsa abolição. Ao formular o conceito teórico do Quilombismo,
Abdias ressalta a herança das lutas dos quilombos durante o período escravagista
e propõe uma estratégia de luta inspirada na organização e bases destes quilom-
bos. A partir do estudo aprofundado destas referências, podemos remontar nesta
pesquisa a trajetória social de Abdias Nascimento e os impactos de sua atuação
política no contexto brasileiro. Reconstruindo a ponte que liga os movimentos
pan-africanistas norte-americanos e o movimento negro brasileiro, buscamos de-
monstrar na figura de Nascimento, a representação do negro brasileiro no cenário
internacional da luta antirracista.

ABDIAS NASCIMENTO E OS EVENTOS PAN-AFRICANISTAS


Ao mergulharmos na trajetória do sábio Abdias Nascimento torna-se evidente
seu entrelaçamento com a história do movimento negro no Brasil. Engajado nas
lutas libertárias a nível mundial, Abdias imprimiu seu olhar político e seu pensa-
mento social nos livros, no teatro e nas artes. Segundo Sandra Almada (2009), Nas-
cimento respirou e dedicou sua vida às causas públicas, às lutas dos oprimidos e,
sobretudo à luta negra. Idealizador do Teatro Experimental do Negro – TEN, Abdias
foi um dos grandes colaboradores da luta antirracista e da cultura negra no Brasil.
Contudo, após o golpe militar de 1964 e a criação do AI-51, em 1968, as atividades
de política negra eram oficialmente proibidas.
Segundo Abdias, “a questão racial virou assunto de segurança nacional, fui in-
cluído em diversos inquéritos Policiais Militares, sob a estranha alegação de que
seria encarregado de fazer ligação entre o movimento negro e a esquerda comu-
nista” (SEMOG e NASCIMENTO, A, 2006, p.164). Nascimento decidira, então, partir
para um exílio de forma “voluntária” evitando as perseguições e inquéritos arbi-
trários. Embarcou para os Estados Unidos permanecendo por lá durante 13 anos.
Segundo Sandra Almada (2009), o exílio significaria outra etapa da luta de Abdias,
agora a nível internacional e pan-africanista.
A saída de Abdias do Brasil em direção aos Estados Unidos é classificada por ele
como uma sorte. Ao desembarcar numa América à beira de um colapso sócio racial
com os movimentos políticos dos direitos civis, humanos e políticos da população
afrodescendente, Nascimento se dispõe a somar na luta dos negros americanos.
De acordo com Sandra Almada (2009), embora a nação estadunidense estivesse
passando por um momento de alta tensão racial, o acolhimento de Abdias do Nas-

1 O Ato Institucional nº 5, conhecido usualmente como AI-5, foi um decreto emitido pela Di-
tadura Militar durante o governo de Artur da Costa e Silva no dia 13 de dezembro de 1968. O AI-5 é
entendido como o marco que inaugurou o período mais sombrio da ditadura e que concluiu uma tran-
sição que instaurou de fato um período ditatorial no Brasil.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 275


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
cimento no seio da comunidade afrodescendente proporcionou um novo passo
para a luta antirracista tanto do Brasil como nos Estados Unidos.

Naquela época – 1969/69_, os Estados Unidos ainda fumega-


vam em decorrência dos violentos protestos dos negros contra
o racismo e a discriminação racial de que foram vítimas, mesmo
após a luta da década anterior de direitos civis e as conquis-
tas conseguidas por ela. Talvez o conhecimento de outra expe-
riência de convivência racial fosse oportuno para mim e para
os norte-americanos. Talvez por isso acabei contratado como
Professor Associado do Centro de Pesquisas e Estudos Porto-Ri-
quenhos da Universidade do Estado de Nova York, em Buffalo
(NASCIMENTO.A, 1982, p.13)

Financiado pela Fairfield Foundation2 Abdias movimentou-se pelos Estados Uni-


dos conhecendo lideranças afro-americanas e organizações culturais. Visitara a
Spirit House3 do poeta Amiri Baraka em New Jersey e o Negro Theantre Ensemble4
no Harlem, além disso, fora acolhido pelo presidente do partido Pantera Negra5,
Bobby Seale, em São Francisco. Abdias apresentava nas suas exposições, retratos
de uma identidade estritamente ligada à experiência da cultura africana no Brasil.
O candomblé estava no centro da busca por uma estética que valorizasse as formas
culturais africanas perdidas do processo da disputa simbólica na diáspora. Nas-
cimento compreende, através das artes, um universo simbólico tomado de uma
riqueza cultural africana baseado no conhecimento da África Ocidental e inspirado
nas referências das lutas libertárias. O contato com intelectuais e líderes no exílio,
a militância antirracista e a notoriedade do Teatro Experimental do Negro propor-
cionaram a Abdias estar presente em diversos encontros do mundo africano, onde
sua conexão com o pensamento pan-africanista se intensificou.
Nos eventos pan-africanistas, a postura combatente de Abdias do Nascimento,
que culminou em seu autoexílio, se mantivera de uma forma ainda mais crítica. Em
1973, Nascimento participou da Conferência Pan-africana Preparatória de Kings-
ton, na Jamaica. Sofrendo bastante perseguição da ditadura militar, Abdias viajou
de forma independentemente somente com o visto de residência americano. Se-
gundo Moore (2002), neste evento Abdias optou por uma visão de pan-africanismo
global, independente dos blocos ideológicos e que incluísse a mulher negra, além

2 A Fairfield Foudation foi criada em 1952, nos Estados Unidos, com o objetivo de estimular a
expansão e o intercâmbio constantes de conhecimento nos campo das artes, letras e ciências, dando
assistência a organizações cujos programas tendam a fortalecer os laços culturais que ligam as nações
do mundo.
3 Teatro comunitário negro.
4 Companhia e oficina de teatro sediada em New York e criada em 1967 com o foco em traba-
lhos originais com temas baseados na experiência negra, cum uma perspectiva internacional.
5 Partido negro revolucionário norte-americano fundado em 1966, em Oakland, na Califórnia,
por Huey P. Newton e Bobby Seale. Seu objetivo era patrulhar guetos negros para proteger os residen-
tes dos atos de brutalidade.

276 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
de se posicionar contra a exclusão das populações negras que não fossem direta-
mente oriundas da África.

Em Kingston, ele teria como principal adversário Marcus Garvey,


Jr., o próprio filho do fundador do pan-africanismo diaspórico-
-continentalista. Mas também teria como aliada a ilustríssima
Amy Jacques Garvey, viúva de Marcus Garvey. Foi emocionante
ver essa senhora, aos 83 anos e somente quatro meses antes
de sua morte, concordar com Abdias do Nascimento, denunciar
como "aberrações" as posições de seu filho e ratificar o caráter
mundialista do pan-africanismo definido por Marcus Garvey, as-
sim como o novo papel que o gênero feminino estava destina-
do a cumprir nas tarefas libertárias desse movimento (MOORE,
2002.p, 24)

Abdias era adepto a uma perspectiva de pan-africanismo mundialista, onde não


só a cultura africana, mas as de seus descendentes na diáspora constituem uma
unidade libertadora e estruturam a cultura pan-africanista. Ao representar as mas-
sas afro-brasileira no VI Congresso Pan Africano em Dar-es-Slamm, na Tanzânia,
Nascimento apresenta o texto Revolução cultural e futuro do pan-africanismo6 re-
tificando que naquele evento “o elemento básico está no conceito da unidade afri-
cana na luta contra a exploração do povo negro (NASCIMENTO.1980,p.42)”. Neste
sentido, para Abdias, aqueles congressos tinham como tarefa básica demonstrar
que as culturas africanas não eram estáticas, mas sim flexíveis e criativas de acordo
com o dinamismo social.
Na sua atuação política e intelectual nos eventos pan-africanistas, Abdias de-
senvolveu e expôs suas perspectivas frente o modelo das relações raciais latino-a-
mericana, defendendo a singularidade da experiência dos povos afrodescendentes
em diáspora, que segundo ele, fixou um arranjo particular as lutas negras. De acor-
do com MOORE (2002), Abdias desmistificou entre os pan-africanistas a natureza
estrutural do racismo latino-americano,

Foram seus escritos e denúncias que mais contribuíram para


avançar a premissa teórica de que na América Latina se formou
um sistema de dominação étnico- racial e socioeconômico es-
pecifico baseado precisamente na “mestiçagem programada”
entre raças e etnias situadas em posições fixas de inferioridade
e de superioridade (MOORE. 2002.p.31).

Ao entrar em contato com as vertentes do pan-africanismo mundial, Abdias do


Nascimento desempenhou o papel de aglutinação das tendências políticas, educa-
cionais e culturais. Para Abdias, tratava-se de “um pan-africanismo em que a busca
pela equidade socioeconômica entre raças, etnias e gêneros está indissociamen-

6 Documento nº2 do livro O Quilombismo: documentos de uma militância pan-africanista


(1980)

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 277


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
te ligada ao desenvolvimento identitário de cada um desses agregados orgânicos
da sociedade civil contemporânea (MOORE. 2002,p.31)”. Destarte, no ângulo do
pan-africanismo global, Nascimento introduz na luta pan- africanista a consciência
fundamental de que os dilemas raciais dos povos da diáspora não desempenham
um papel secundário na luta pan-africana, e sim de igualdade e solidariedade aos
povos do continente africano.

QUILOMBISMO: RESISTÊNCIA AFRICANA


E NACIONALISMO NEGRO
Ao retornar do exílio, em 1981, Abdias insere nas discussões do Movimento
Negro Unificado conceitos como o birracialismo, multiculturalismo e afrocentrici-
dade e até mesmo o de raça, debatidos a nível mundial. Em Carrança (2008) apud
Almada (2009) Hamilton Cardoso nos diz

A gente estudava muito os movimentos de libertação em África,


partidos políticos, e achávamos que tinha que construir um mo-
vimento negro organizado. Quando Abdias veio com a palavra
“negro” nós abraçamos, porque queríamos uma única coisa:
organizar o povo negro! (ALMADA, 2009.p.115)

Segundo Guimarães (2005), Abdias tornar-se-ia o principal líder da reconstru-


ção no movimento negro brasileiro, ao propor ideias “integrados a matriz da iden-
tidade negra brasileira, à negritude brasileira, com suas inclinações nacional-po-
pulistas, seu anticolonialismo e anti- imperialismo, e de resistência (p.164)”. Ao
construir o conceito de Quilombismo, uma das principais matrizes ideológicas do
movimento negro nos anos 1980, Nascimento destaca a história do negro brasi-
leiro como resistência cultural e de revoltas políticas. De acordo com Guimarães,
“Abdias buscou integrar o programa do Quilombismo ao movimento pela redemo-
cratização do país, através de uma emancipação radical, de inspiração marxista
(GUIMARÃES, 2002, p.101)”.
Na elaboração da teoria Quilombista, Abdias orienta-se pelo exemplo do Qui-
lombo dos Palmares, no Brasil, que se tornou a experiência mais emblemática
das Américas por sua duração, grande número de habitantes e dinâmica socioe-
conômica. Isso se deve ao fato de que, nestas comunidades, eram desenvolvidas
práticas político-religiosas caracteristicamente africanas, conservando elementos
culturais e identidades étnicas no povo negro no país, e constituindo uma herança
dos africanos para a posteridade.
Para Abdias o Quilombismo, enquanto movimento nacionalista ensina que a
luta de cada povo por sua libertação deve estar enraizada na sua própria identida-
de cultural e experiência histórica. Através desta perspectiva que, ao desenvolver
tal teoria, Abdias resgata a contribuição dos quilombos para a experiência da luta
antirracista no Brasil. Caracterizado como ruptura afrocêntrica, o Quilombismo é

278 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
proposto como uma possibilidade político-social de combate ao racismo e de ela-
boração de uma sociedade inspirada na experiência histórica dos quilombos brasi-
leiros e nas culturas de matrizes africanas.
Dentro desta perspectiva, o Quilombismo traçado por Abdias configura-se em
um movimento político negro que tem como referência a vivencia histórica e cul-
tural dos quilombos, e objetiva a implantação de um Estado Nacional Quilombista,
orientado na experiência da República dos Palmares e de outros quilombos brasi-
leiros, onde assegurar a condição humana das massas afro-brasileira é o funda-
mento principal (NASCIMENTO, 1980). Para alcançar tal finalidade, Abdias reite-
ra que é imprescindível a luta pela recuperação da memória negro-africana. Ao
considerar que a reconstituição da identidade do negro brasileiro está atrelada a
retomada da consciência histórica negra, Nascimento evidencia o legado das lutas
afro-brasileiras para memória coletiva do negro no Brasil.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na elaboração desta pesquisa nosso principal objetivo constituía em demons-
trar a participação de Abdias Nascimento num dos maiores movimentos de liber-
tação dos países africanos colonizados: o pan-africanismo. Por meio das análises
dos materiais documentais e iconográficos encontrados na obra de Abdias Nasci-
mento, podemos ratificar sua contribuição a estes movimentos como um ator so-
cial que expressa seu pensamento afrocentrado a partir do contexto das relações
raciais brasileiras e de sua bagagem na luta antirracista no Brasil.
Em sua teoria quilombista, Abdias Nascimento demonstra a necessidade de per-
cebermos a experiência histórica dos povos afrodescendentes no Brasil enquanto
inspiração para nossas estratégias de luta antirracista. Ao analisar a obra O Qui-
lombismo: documentos de uma militância pan- africanista inferimos a capacidade
de Abdias Nascimento de materializar a perspectiva Sankofa, ao tecer perspectivas
futuras para o povo negro retomando experiências anteriores dos povos africanos
no Brasil. Buscando a construção epistemológica da teoria Quilombista de Abdias
sob as bases da memória africana brasileira.
Sendo assim, por meio da investigação da vivência pan-africanista de Abdias
Nascimento, desconstruímos a perspectiva de que o estudo das relações raciais no
Brasil deve ser orientado somente pela produção racial norte-americana. Através
desta obra, Abdias nos encoraja ao oferecer um olhar que ressalta as trajetórias de
luta dos quilombos brasileiros. Ao proclamar que Zumbi fora o primeiro pan-africa-
nista, Nascimento chama a atenção para o fato de que ideias pan-africanistas que
eram tidas como novidades, já eram postas em práticas nos quilombos brasileiros
e do mundo. Neste sentido, era preciso olhar antes para a estrutura de organização
destes povos organizados que em sua época construíram sociedades independen-
tes mesmo sob o julgo colonial, valorizando a memória destes e seus legados de
resistência.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 279


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
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AUTORIA
Tailane Santana Nunes
Mestranda do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais: Cultura, Desigual-
dade e Desenvolvimento da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
E-mail: tailanenunes@outlook.com:
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8427870735388747

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 281


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
APROXIMANDO PENSAMENTO SOCIAL
BRASILEIRO E PENSAMENTO PÓS-COLONIAL:
PRESSUPOSTOS E PISTAS PARA UM DIÁLOGO
DESCOLONIAL COM SÉRGIO BUARQUE DE
HOLANDA, À PARTIR DA RELEITURA CRÍTICA DE
“RAÍZES DO BRASIL”

Thiago de Oliveira Thobias

Minha última prece:


Oh, meu corpo!
Faça sempre de mim um
homem que questione!
(Frantz Fanon)

INTRODUÇÃO
Desde o final dos anos de 1980, a razão ocidental vem sendo colocada em xeque
pelas chamadas teorias insurgentes, uma tendência que tem sido definida como
desobediência epistêmica e que converge em um movimento mais amplo denomi-
nado giro decolonial. Essa investida teórico- epistemológica visa, principalmente,
deslocar os habituais lugares de enunciação para, assim, refazer a atual geopolítica
do conhecimento. Dito de outra forma, as perspectivas eurocêntricas estão sendo
abandonadas em detrimento das epistemologias do sul. Em consonância com este
contexto, o presente artigo promove uma leitura pós-colonial de “Raízes do Brasil”,
de Sérgio Buarque de Holanda, por meio da articulação dessa obra com algumas
sugestões pós-coloniais. Como ensaio histórico-sociológico, seu formato ensaístico
nos oferece uma obra aberta, que convida para o diálogo e reflexão crítica sobre
o Brasil. Trata-se, portanto, de um esforço teórico que toma uma obra clássica do
pensamento social brasileiro e extrai dela novas potencialidades.
Coloco o pensamento social de Sérgio Buarque de Holanda, presente em sua
obra Raízes do Brasil, em conexão com o pensamento descolonial de [1] Aimé Ce-
saire1, em seu Discurso sobre o colonialismo, [2] Albert Memmi2, em seu Retrato

1 Aimé Cesaire (1913-2008), nascido na Martinica, é reconhecido como um dos mais impor-
tantes poetas surrealistas do mundo e um dos grandes poetas de língua francesa do século XX, além de
dramaturgo, ensaísta, filósofo anti- colonial e político. É co-criador, junto com Leopold Sédar Senghor,
do conceito e movimento “negritude”, que formula dentro da própria França, uma crítica à opressão
cultural do sistema colonial francês e afirma as raízes africanas. Autor, dentre outras obras, de Discurso
sobre o colonialismo (1950) e Diário de um retorno à terra natal (1939).
2 Albert Memmi (1920-2020), nascido na Tunísia, foi um escritor e ensaísta. Em 1943, esteve

282 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
do colonizado, precedido de retrato do colonizador e [3] Frantz Fanon3 em seu Os
condenador da terra. Adoto esses três autores como tríade de pais fundadores
do pensamento pós-colonial porque, apesar de anteriores à institucionalização do
campo e de não o terem sistematizado, [1] já trabalhavam com essa divisão binária
do mundo, [2] inauguram a descrição do mundo da perspectiva dos não-brancos e
colonizados e [3] estão no interior do colonialismo, o que os favorece na proposta
de recontar a história da perspectiva do colonizado Para tanto, afasto-me das leitu-
ras weberianas, demasiadamente vinculadas à lógica eurocêntrica, em prol de uma
perspectiva do sul que permanece nas suas entrelinhas. A questão central é: o que
Sérgio Buarque teria a dizer se fosse afetado pelas provocações do pensamento
pós-colonial? A leitura e problematização pós-colonial produzirá inovações teóri-
co-metodológicas no campo sociológico. A relevância desse esforço teórico está
em apontar possíveis caminhos para uma Sociologia Pós- colonial no Brasil.
O objeto de análise deste artigo é “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Ho-
landa, um clássico do Pensamento Social Brasileiro. Ao todo, a edição inaugural de
1936, da Editora José Olympio, sofreu quatro modificações nas edições de 1948 (2ª
- Editora José Olympio), 1956 (3ª - Editora José Olympio), 1963 (4ª - Editora UnB) e
1969 (5ª - Editora José Olympio). A obra foi comemorada nas reedições especiais
de 1971, 1976, 1986, 2006 e 2016. A última, organizada por Lilian Moritz Schwarcz
e Pedro Meira Monteiro e editada pela Companhia das Letras, é um ótimo cotejo
das várias edições. Foram quase 30 edições da obra, traduzidas para espanhol, o
italiano, o francês, o japonês, o alemão e o inglês. Acredita-se que sua literatura
secundária poderia ocupar uma biblioteca e, até hoje, críticos e comentadores não
chegaram a um consenso sobre a interpretação correta de cada capítulo (COSTA
2014).
“Raízes do Brasil” é um ensaio de interpretação da formação da sociedade bra-
sileira, unindo história da colonização portuguesa e sociologia dos processos co-
lonizadores. Sérgio Buarque tem como tese central a cultura da personalidade ou
personalismo português como raiz principal da subjetividade, da sociabilidade e da
própria sociedade brasileira, bem como fonte da falta de racionalidade necessária
à modernização e democratização autênticas do Brasil. Utiliza-se do arcabouço te-
órico-metodológico weberiano, principalmente seus tipos ideais, e da metodologia
dos contrastes e contrários do pensamento latino-americano da época, para criar

em campos de trabalho forçado na Tunísia e, após a independência de seu país, emigrou para a França,
onde fixou residência. Em 1973 adotou nacionalidade francesa. Professor honorário da Universidade
de Paris. Possui vasta e premiada obra, traduzida para cerca de 20 idiomas. Além de Retrato do co-
lonizado, precedido do colonizador (1957), também é autor de A estátua de sal (1955) e Retrato do
descolonizado árabe-mulçumano (2007).
3 Frantz Fanon (1925-1961), nascido na Martinica, foi um psiquiatra, escritor e filósofo, que
atuou ativamente na luta pela independência da Argélia. Influenciou o pensamento do século XX e vem
sendo cada vez mais presente no século XXI. Suas obras foram inspiradas em mais de quatro décadas
de movimentos de libertação anti-coloniais. Dentre elas, destacam-se Pele negra, máscaras brancas
(1952), Sociologia da revolução (1959), Os condenados da terra (1961) e Em defesa da revolução afri-
cana (1964).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 283


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
seu conceito-chave de homem cordial, além de outras fontes da história social, da
antropologia, da sociologia, da etnologia e da psicologia. Divide-se em sete capí-
tulos: 1 (Fronteiras da Europa), 2 (Trabalho & Aventura), 3 (Herança Rural), 4 (O
Semeador e o Ladrilhador), 5 (Homem Cordial), 6 (Novos Tempos) e 7 (Nossa Re-
volução). Ao longo dos capítulos, o autor vai da colonização (tentativa de implan-
tação da cultura europeia) à pós-colonização (permanência dos velhos padrões co-
loniais), finalizando com sugestões para o futuro (necessidade de aniquilação das
raízes europeias).
Essas características da obra abrem a possibilidade de problematização no cam-
po do pensamento social brasileiro, articulado a perspectivas teóricas transnacio-
nais, como a teoria social e o pensamento pós-colonial. Essa é minha proposta: uma
leitura panorâmica da obra, extraindo fragmentos do texto, porém uma leitura
crítica, de uma perspectiva pós-colonial, distanciando-me das leituras weberianas
adotadas pelo autor, por estarem vinculadas sobremaneira à lógica eurocêntrica.
Articulando teoria e pensamento social brasileiro, meu objetivo, nos limites deste
artigo, será verificar em que medida a obra pode se converter também em uma críti-
ca da colonialidade.
Proponho-me a um exercício historiográfico (in)disciplinar que promete signifi-
cativas inovações teóricas. A partir daí, espero apontar possíveis caminhos para a
consolidação de uma Sociologia Pós-colonial no Brasil.

PARA ALÉM DAS LEITURAS WEBERIANAS


Até hoje, inúmeros pesquisadores refletem sobre os limites e possibilidades
de “Raízes do Brasil”, principalmente do conceito típico-ideal de homem cordial,
para um diagnóstico do presente (CANDIDO 1998; MARRAS 2012; SCHWARCZ e
MONTEIRO 2016). Vários trabalhos concluíram que o arcabouço teórico weberiano
utilizado pelo autor explica a história e a sociedade brasileira a partir da falta de ra-
cionalidade e suas consequências não modernas (CANDIDO 2011; BARBOSA 1989;
MONTEIRO e EUGENIO 2008). O ponto em comum entre os trabalhos elencados é
que “Raízes do Brasil”, tanto para autores consagrados quanto para os novos estu-
diosos da obra, está aberta a diversas interpretações, diferentes perspectivas e, a
cada balanço, cria-se a expectativa de novas e inovadoras investigações (ANHEZINI
2012). Esses balanços reúnem interpretações que, mesmo contrastantes, possibi-
litam uma significativa reflexão coletiva. Segundo Pedro Monteiro e João Eugênio,
o mais importante num balanço é permitir o diálogo crítico, criativo e apaixonado
com a obra (MONTEIRO e EUGÊNIO 2008).
O formato ensaístico torna “Raízes do Brasil” uma obra aberta que nos con-
vida a dialogar e refletir sobre o Brasil, trazendo novas questões a cada leitura
(WEGNER 2006). Por ter sido escrito na forma de um ensaio, fazia perguntas para as
quais não oferecia respostas fechadas. Assim, Holanda abriu possibilidade para que
os comentários pudessem ser articulados sempre de maneiras diferentes (WEGNER

284 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
2016a). A atitude ensaística, por um lado, é parte do posicionamento político de
Sérgio Buarque, que parece ter direcionado a obra ao debate na esfera pública e,
por outro, uma provocação à auto-reflexão de todo brasileiro que Holanda chama
de homem cordial, enquanto caráter nacional e brasilidade (WEGNER 2016b). Essa
abertura para a reflexão e diálogo sinaliza, portanto, a possibilidade de uma leitura
pós-colonial capaz de extrair questões que ajudem a pensar os indivíduos, suas so-
ciabilidades e a própria sociedade brasileira para além das perspectivas eurocêntri-
cas. Extrair perguntas alternativas às que surgem quando a leitura é feita utilizando
o arcabouço teórico weberiano.
Holanda foi duplamente influenciado no momento da escrita da obra (CANDIDO
apud HOLANDA 1995). Por um lado, incontestavelmente, pela teoria weberiana,
em especial sua sociologia histórica e metodologia dos tipos ideais. Por outro, pelo
pensamento latino-americano, marcado pela reflexão da realidade e da história
baseada no senso de contrastes e de contrários. Unindo teoria social (weberiana)
e pensamento social (latinoamericano), o autor construiu seu argumento baseado
numa metodologia dos contrários que amplia o pensamento latino-americano e
modifica a teoria weberiana. Tudo indica que Sérgio Buarque uniu teoria social
e pensamento social (CANDIDO apud HOLANDA 1995; RICUPERO 2007). Além de
outras fontes da história social, da antropologia, da sociologia, da etnologia e da psi-
cologia. Isto posto, muito provavelmente há, em sua obra inaugural, a abertura para
perspectivas críticas que coloquem em evidência aspectos relevantes em termos de
produção teórica atual, como um digno livro-problema (CASTRO ROCHA 2012).
João Marcelo Ehlert Maia, sociólogo brasileiro, que desenvolve pesquisa cen-
trada nas possibilidades de produzir discussão teórica atual a partir dos estudos do
pensamento social brasileiro, acredita que para extrair dos estudos de pensamen-
to brasileiro ferramentas teóricas significativas é preciso articular esses estudos
em campo teórico mais amplo e transnacional. O autor parte do pressuposto de
que a sociologia global vem passando por um processo de descentramento teórico,
à partir de trabalhos que questionam os fundamentos eurocêntricos da disciplina,
à partir de lugares outros e de discursos outros, da crítica de conceitos sociológicos
e da revisão de teorias de médio alcance (MAIA 2011). Maia afirma também que
se os clássicos formam o substrato que sustenta e nutre a discussão teórica con-
temporânea, é urgente a necessidade do esforço de (re)leitura e (re)interpretação
dessas obras, ou seja, de trabalhos em pensamento social. Para ele, esse esforço
é o que torna cada vez mais fértil a produção teórica em sociologia. Infere, à partir
daí, que não há uma separação tão rigorosa entre teoria social e pensamento so-
cial. O autor acredita que a teoria social é produzida e atualizada pela (re)leitura e
(re)interpretação dos clássicos e, por isso, é importante questionar a universalidade
das teorias, ou seja, seu eurocentrismo (MAIA 2011).
Mas a proposta é produzir um distanciamento estratégico da perspectiva we-
beriana, demasiadamente vinculadas à lógica eurocêntrica, em prol da perspectiva
pós-colonial, que questiona a racionalidade ocidental moderna eurocentrada, para

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 285


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
reexaminar as raízes de nossas sociabilidades e de nossa sociedade. Pergunto en-
tão se é possível identificar indícios, em “Raízes do Brasil”, de um possível diálogo
com o conceito de colonialidade, atualmente debatido no pensamento pós-colo-
nial? Ou, formulando de outra maneira: é possível interrogar Sérgio Buarque com
questões pós-coloniais e extrair pressupostos e pistas para um diálogo, mais amplo,
em torno da colonialidade? Minha hipótese é de que sim, para ambas as perguntas.
Além disso, numa perspectiva mais ampla, essa aproximação entre Pensamento
Social Brasileiro e Pensamento Pós- colonial promete inúmeras possibilidades de
produção de teoria social atual, como propõe Maia e, dentro da proposta deste GT,
tem o potencial para oferecer significativa contribuição aos esforços conjuntos de
pesquisa em pensamento negro descolonial americano.

CAMINHOS PARA UM DIÁLOGO DESCOLONIAL COM SÉRGIO


BUARQUE
Há duas afirmações muito significativas feitas por Sérgio Buarque, em “Raízes
do Brasil”. A primeira, no início da obra, coloca que somos desterrados em nossa
terra e a outra, no final, declara que desde nossas raízes, nossa sociedade foi mal
formada (HOLANDA 1995). Essas declarações podem ser comparadas à de Aimé
Cesaire, em seu “Discurso sobre o colonialismo” (1950), quando escreve que a co-
lonização produz sociedades esvaziadas delas mesmas e de homens desarraigados
de suas terras (CESAIRE 2010). Também de Albert Memmi, em seu “Retrato do
colonizado precedido de retrato do colonizador” (1957), quando discorre que a so-
ciedade colonial é uma sociedade enferma incapaz de produzir novas estruturas
e provoca mutilação social e histórica no colonizado, mesmo após a colonização
(MEMMI 2007). Assim como de Frantz Fanon, em seu “Os condenados da terra”
(1961), quando apresenta a sociedade colonial como um panorama social de de-
sordem absoluta, um mundo compartimentado em que o colonizado é relegado à
completa exclusão, como verdadeiro condenado da terra (FANON 2005). Esses au-
tores escreveram esses clássicos fundadores do pensamento pós-colonial 14, 21 e
25 anos, respectivamente, após “Raízes do Brasil”. Foi a partir desses indícios que
passei a indagar sobre se seria possível um diálogo pós-colonial com Sérgio Buar-
que de Holanda? É o que continuo investigando em minha pesquisa, reunindo os
pressupostos e pistas para esse debate.
Em “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque denuncia o processo de europeização nas
origens da sociedade brasileira, ou seja, apresentando nossas raízes como resulta-
do da implantação de sementes europeias em solo brasileiro. Sua convicção de que
este é o fato principal e de mais diversos desdobramentos, aponta para o sentido
da colonização e, consequentemente, para sua continuidade. Isso fica claro quando
escreve que nossa sociabilidade (nossas formas de convívio), nossa institucionalida-
de (nossas instituições) e nosso ideário (nossas ideias) foram importados da Europa

286 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
e, com isso, construiu-se nesta terra, chamada Brasil, uma pseudo-nação brasileira
e, logo, foi-nos negado o direito à essa nacionalidade (desterrados em nossa terra).
É significativo também destacar que, quando o autor assevera que somos her-
deiros de formas de convívio, instituições e ideias europeias e que entramos numa
espécie de evolucionismo social, onde tudo que (re)produzimos ou não, em todas
as dimensões de nossa existência social, participam de um sistema de evolução
outro.
Ao realizar a extração de excertos de “Raízes do Brasil” que apontavam para
o possível diálogo decolonial de Sérgio Buarque com a tríade de pais fundadores,
obtive 15 pressupostos. O primeiro pressuposto é europeização, desterro e evolu-
cionismo social (HOLANDA 1995, p. 31). O segundo é europeísmo, territórios-ponte
e herança ibérica (idem, p. 31). O terceiro é iberismo, cultura da personalidade e
originalidade portuguesa (ibidem, p. 32). O quarto pressuposto é aculturação, mis-
cigenação e alma comum à Portugal (ibidem, p. 40). O quinto é ética da aventura,
formação e evolução da sociedade brasileira (ibidem, p. 44-45). O sexto é civiliza-
ção de raízes rurais e significado da Abolição de 1888 (ibidem, p. 73). O sétimo é
ditadura dos domínios agrários, patriarcalismo e ideia de escravidão (ibidem, p. 80-
81) O oitavo é preeminência das elites rurais e supremacia das virtudes do intelecto
(ibidem, p. 82). O nono é ausência de burguesia urbana, mentalidade de casa-gran-
de e estrutura social sui generis (ibidem, p. 88-89). O décimo pressuposto é presença
massiva de negros e mouros cativos em Portugal (ibidem, p. 54). O décimo-primeiro
é mestiçagem, ausência de orgulho de raça e plasticidade social portuguesa (ibi-
dem, p. 52-53). O décimo-segundo é contato íntimo com a população de cor e o tor-
nar-se negro português (ibidem, p. 55 e 64). O décimo-terceiro é moral das senzalas
e sua influência nas várias esferas da sociedade (ibidem, p. 62). O décimo-quarto é
insuficiências do americanismo e permanência das raízes lusitanas (ibidem, p. 172).
E o décimo-quinto pressuposto é homem cordial, brasilidade e influência ancestral
(ibidem, p. 146-147)
Esses 15 pressupostos parecem abarcar a forma como Sérgio Buarque interpre-
ta, lê e busca sentido para o processo histórico e cultural de construção de nossa
sociedade. Ao buscar nossas raízes, Holanda tentou lançar luz sobre o que real-
mente se passou no contexto da colonização. Mesmo não abordando diretamente
o encontro colonial, o autor parece tratar, por um lado [1] da formação da socieda-
de colonial (europeísmo, europeização, herança ibérica, iberismo, cultura da per-
sonalidade, ética da aventura, civilização de raízes rurais, ditadura dos domínios
rurais, patriarcalismo, preeminência das elites rurais, ideia de escravidão) e [2] da
produção, reprodução e atualização da situação colonial (aculturação, miscigena-
ção, mentalidade de casa grande, insuficiências do americanismo, permanência
das raízes arcaicas, homem cordial, brasilidade e influência ancestral). Por outro
lado, parece negligenciar [3] as transformações das relações sociais com a situação
colonial e [4] as lutas de descolonização, ao suavizar o real aspecto da coloniza-
ção como forma social estruturada e estruturante pela racialização e pela violência

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 287


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
(significado da Abolição de 1888, alma comum com Portugal, presença massiva de
escravos negros e mouros cativos em Portugal, portugueses como povo mestiço,
ausência de orgulho de raça, plasticidade social, tornar-se negro português, moral
das senzalas influenciando toda a sociedade). Parece que Sérgio Buarque nega,
em sua história da colonização, a participação de africanos e ameríndios em sua
articulação dialógica conflitual com os portugueses, numa atitude historiográfica
eurocêntrica. Seria preciso inverter a lógica eurocêntrica, assumindo o ponto de
vista dos colonizados, com uma atitude historiográfica não-eurocêntrica.
Sérgio Buarque questiona “como esperar transformações profundas em país
onde eram mantidos os fundamentos tradicionais da situação que se pretendia
ultrapassar?” (HOLANDA 1995, p. 78). Afirma que enquanto perdurassem os pa-
drões econômicos e sociais herdados da era colonial, e expressos principalmente
na grande lavoura servida pelo braço escravo, as transformações mais ousadas te-
riam de ser superficiais e artificiosas. Reforça que ainda éramos presos à economia
escravocrata, mas com a fantasia de moderna de uma grande democracia bur-
guesa, um forte indicativo da profunda incompatibilidade entre as formas de vida
copiadas de nações socialmente mais avançadas, de um lado, e o patriarcalismo e
personalismo fixados entre nós por uma tradição de origens secular.
Holanda esclarece que durante a Monarquia e após, já durante a República,
fazendeiros escravocratas e seus filhos, cujo prestígio repousava sobre o trabalho
escravo, monopolizavam a política e as instituições. Mas muitos de seus represen-
tantes manifestaram inclinações anti-tradicionalistas e empreenderam significati-
vos movimentos anti-liberais. Sérgio Buarque acrescenta que o século XIX, e mesmo
após a proclamação da República, foi um período de febre intensa de reformas,
que somadas ao nativismo lusófobo, culminaram com a “abolição da escravidão”,
ou seja, a supressão do tráfico negreiro” (HOLANDA 1995, p. 74)
Continuando o trabalho de extração de fragmentos textuais, obtive 5 pistas para
o diálogo decolonial de Sérgio Buarque com Aimé Cesaire, Albert Memmi e Frantz
Fanon. A primeira pista é os movimentos reformadores de cima para baixo e a
grande massa do povo (HOLANDA 1995, p. 260-161). A segunda é a Abolição, a
grande revolução brasileira e o aniquilamento das raízes ibéricas de nossa cultura
(idem, p. 171-172). A terceira é resignificação dos ideais da revolução francesa e o
impersonalismo democrático brasileiro (ibidem, p. 179). A quarta é a antítese libe-
ralismo-caudilhismo, liquidação dos fundamentos personalistas e revogação da ve-
lha ordem colonial patriarcal (ibidem, p. 180). E a quinta pista é revolução vertical
e amalgamação das massas populares com as camadas superiores da sociedade
(ibidem, p. 181)
Essas 5 pistas de Sérgio Buarque dão a dimensão de sua ideia de revolução e
permitem algumas reflexões. Conforme já me referi, um dos significados de te-
oria é de relato normativo ou político, ampliando o esforço de produção teórica
para um projeto crítico, ético, político e epistemológico. Nesse sentido, o proje-
to de “Provincializar a Europa”, que visa deslocar a Europa e seu pensamento da

288 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
centralidade e hegemonia, em especial nas narrativas das histórias não europeias,
parece se aproximar [1] das ideias de aniquilamento das raízes ibéricas de nossa
cultura e liquidação dos fundamentos personalistas, propostas por Holanda. Isso
porque a autorrepresentação moderna da Europa é compartilhada, muitas das ve-
zes acriticamente, pelos nacionalismos terceiro-mundistas, como fundamento das
suas ideologias modernizadoras. Sérgio Buarque demonstra isso quando fala [2] da
ressignificação dos ideais da Revolução Francesa pela elite nacionalista brasileira e
consequente impersonalismo democrático, assim como com [3] da antítese libera-
lismo-caudilhismo. Mas considerando o projeto de “Provincializa a Europa” como
um projeto de reescrita da história da modernidade com suas contradições, uso da
força e tragédia, servindo de fator motivador e empoderador de lutas descoloniais
e de lutas sociais e políticas por direitos. O que mais chama a atenção na narrativa
buarquiana [4] do significado da Abolição de 1888 e da grande revolução brasileira
é mais uma vez a suavização dessas contradições, uso da força e tragédias. Holanda
até aponta que [5] aqui os movimentos sempre foram reformadores e de cima para
baixo, com a massa do povo à parte e sugere, para a revogação da velha ordem co-
lonial patriarcal, uma revolução vertical, de baixo para cima. Mas suaviza ou nega
as contradições e propõe a amalgamação das massas com as elites.
Cesaire, Memmi e Fanon parecem expressar uma ideia de colonialidade, em
suas obras, da seguinte forma: [1] a Europa é incapaz de resolver dois problemas
causados por sua existência, que são o problema do proletariado e o problema co-
lonial; [2] milhões de homens desarraigados de seus deuses, de suas terras, de seus
costumes, de sua vida, da vida, da dança, da sabedoria; [3] milhões de homens aos
quais sabiamente se lhes inculcou o medo, o complexo de inferioridade, o temor,
o pôr-se de joelhos, o desespero, o servilismo; [4] o racismo é o nutriente essencial
da imutabilidade da relação histórica entre colonizador e colonizado, que teve data
de nascimento, mas é eterna; [5] colonização seria eterna porque, além da missão
histórica civilizacional, seria impossível a ruptura da relação colonial, pois o coloni-
zado seria naturalmente dado à servidão e o colonizador à dominação.
Além disso, consideram revolução, como: [1] recusa absoluta da relação entre
colonizador e colonizado; [2] liquidação completa da situação colonial; [3] união
dos escravizados oprimidos (africanos, ameríndios, asiáticos e outros) com potên-
cias produtivas modernas (proletariado), empoderados com a antiga fraternidade
das ancestrais civilizações negras; [4] colonizado parar de se definir por categorias
do colonizador; [5] abandonar a antítese Oriente-Ocidente, que caracteriza o colo-
nizado negativamente; [6] revolução não é revolução dos métodos; [7] mobilização
das massas e luta no plano real; [8] reparação moral e material resultante de dupla
tomada de consciência do colonizador e do colonizado; [9] evolução dos povos co-
lonizados em autarquia coletiva; [10] revolução socialista, pela amalgamação das
“massas europeias” e das “massas subdesenvolvidas”.
Esse segundo sentido, parece se aproximar da ideia de “aniquilação das raízes
coloniais” de Sérgio Buarque, mas como ele não trata a situação colonial da mesma

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 289


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
forma que Cesaire, Memmi e Fanon, não é possível definir, por ora, se é o mesmo
fio condutor. Talvez, quando Sérgio Buarque fala de “revolução vertical”, de baixo
para cima, aproxime mais da idéia de revolução dos pais fundadores pós-coloniais,
mas teríamos que problematizar um pouco. De antemão, o que vimos é que Sérgio
Buarque fala da amalgamação das massas com as elites. Cesaire, Memmi e Fanon
falam da amalgamação das massas escravizadas com massas proletarizadas. Além
disso, a revolução que Cesaire, Memmi e Fanon propõem é violenta, a partir da
explosão do colonizado, em resposta à opressão do colonizador. Sérgio Buarque
propõe uma revolução lenta, sem deixar claro por que meios. De qualquer forma,
a aproximação entre os autores aponta para uma discussão sobre revolução no
sentido do protagonismo das massas populares.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A releitura crítica panorâmica de “Raízes do Brasil” permitiu colocar em evi-
dência alguns aspectos do clássico que as leituras weberianas identificavam como
dados, mas que identifiquei como pressupostos, vislumbrando possibilidades para
colocá-los em questão, a partir de nova releitura crítica, mais aprofundada e ampla,
em diálogo decolonial futuro. Além de colocar em evidência os 15 pressupostos do
pensamento de Holanda, ajudou a entender a estrutura básica do pensamento
Ocidental, que considera a Europa sujeito da História e de todas as histórias, o que
explicou o fato de Sérgio Buarque ter definido nossas raízes à partir da subjetivida-
de e das ações objetivas dos colonizadores portugueses. Do ponto de vista da di-
ferença colonial e imperial, Holanda faz sua macrointerpretação da perspectiva do
colonizador e da metrópole, valorizando o personalismo e o iberismo como deter-
minantes na constituição de nossa brasilidade [colonialidade], sociedade e cultura.
Cesaire, Memmi e Fanon invertem o olhar colonial e imperial, se propondo a
reexaminar e recontar a história da colonização da perspectiva dos colonizados,
negando o monólogo Ocidental que exclui os colonizados e afirmando o diálogo
não-Ocidental que valoriza o ponto de vista do subalterno. A aproximação entre
Holanda e a tríade explicou a posição coadjuvante dada por Holanda à africanos e
ameríndios na constituição de nossas raízes, inclusive negando a violência do en-
contro e da situação colonial, ao propor a ausência do orgulho de raça e da relação
amistosa dos portugueses com negros e índios, ao propor que são capazes de ame-
ricanizarem-se, africanizarem-se e tornarem-se negros por sua plasticidade social.
Essa aproximação, visando um diálogo decolonial, se mostrou muito mais poten-
cialmente frutífera do que minha hipótese supunha. Sendo assim, entendendo que
os limites da pesquisa não permitiriam a articulação em nível de aprofundamento e
amplitude necessários, considerando que é nas noções de “revolução” dos autores
que um diálogo decolonial se concretizaria, tanto nas aproximações quanto nos
afastamentos. Isso porque Sérgio Buarque propõe uma revolução em curso, uma
dissolução e um cataclismo lentos, ao contrário de Cesaire, Memmi e Fanon. Com

290 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
base nos 15 pressupostos e 5 pistas, confirmo a hipótese de que “Raízes do Brasil”
dialoga com a atual discussão de Colonialidade. A inovação teórico-metodológica
é a possibilidade de inversão do olhar e ponto de vista de Sérgio Buarque. A ques-
tão que fica, para reflexões futuras, é: seria a cordialidade, portanto, colonialidade
à brasileira? Partirei dessa questão no doutorado, onde desenvolverei o diálogo
descolonial mais amplo entre Ségio Buarque, Aimé Cesaire, Albert Memmi e Frantz
Fanon. Para ampliar o diálogo, trarei para o debate dois autores descoloniais muito
pouco estudados em Pensamento Social e Político Brasileiro, a saber: Paulo Freire
e Lélia Gonzales.

REFERÊNCIAS

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XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 291


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
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Janeiro e São Paulo. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 36, n. 73, p. 111-133, set./
dez. 2016b.

AUTORIA
Thiago de Oliveira Thobias
Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal Rural do
Rio de Janeiro (PPGCS/UFRRJ)
E-mail: thiago.thobias@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0639-6854
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1655377162509308

292 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 33
Lutas e
enfrentamentos
ao genocidio negro
e a gestão bio-
necropolitica do
espaço
SEGURANÇA PÚBLICA E SEGURANÇA HUMANA:
UMA PROPOSTA DE DEBATE SOBRE DIREITOS
HUMANOS E QUESTÃO RACIAL
Aline Cristina Campos de Souza

INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objetivo apresentar os resultados da pesquisa desenvol-
vida na monografia da especialização em Direitos Humanos e Cidadania, apresen-
tada no Instituto IDH/ISTA. No trabalho de conclusão de curso, dei continuidade às
questões iniciadas no mestrado realizado na mesma área de conhecimento. Bus-
quei uma análise que considerasse os direitos humanos e a temática racial no Bra-
sil. O estudo foi desenvolvido por meio da análise de três políticas públicas na área
de segurança com as quais desenvolvi trabalhos e pesquisas: Programa de Controle
de Homicídios - Fica Vivo!, Sistema Socioeducativo de Internação no DF; e Projeto
Cartas do Cárcere.
Considero que políticas públicas são ações intervencionistas e imperativas pro-
duzidas por setores das instituições governamentais e políticas, com diferentes
níveis de poder. A construção de políticas públicas é influenciada por (e também
influencia) valores, estruturas, ideais que estão na base da sociedade, que diz tam-
bém da relação entre povos e da concepção de Estado. A maneira pela qual os
problemas são conceituados no processo de formulação de políticas e as alternati-
vas apresentadas e selecionadas são questões fundamentais para a compreensão da
dinâmica da ação estatal (SOUZA, 2018).
Foram analisadas políticas de segurança pública a partir de três níveis de atu-
ação: um programa de prevenção à criminalidade; a internação do sistema so-
cioeducativo; e o sistema prisional. Considerando que a segurança vem de uma
demanda social, para que seja efetivada, precisa de estruturas estatais e outras or-
ganizações. Neste sentido, para garantir ações voltadas à segurança, adota-se um
sistema de segurança pública que contém como eixo político planos e programas
implementados, nos níveis individuais e coletivos.
A relação que pretendo traçar é entre direitos humanos, as políticas de segurança
pública no Brasil e o fenômeno do racismo. Trabalhando as seguintes questões: o
que o modelo d e segurança pública retrata sobre a concepção da sociedade acerca
do racismo? Qual o impacto do modelo de segurança pública sobre o segmento
da população negra? É possível criar modelos de políticas públicas diferentes do
modelo tradicional?

294 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
DIREITOS HUMANOS
A expressão direitos humanos abarca uma variedade de concepções e aborda-
gens. Joaquín Herrera Flores entende que todos e todas devemos estar compro-
metidas com “uma visão crítica e emancipadora dos direitos humanos a contrapor
outro tipo de racionalidade mais atenta aos desejos e às necessidades humanas que
às expectativas de benefício imediato do capital” (FLORES, 2009, p. 17). Seria a con-
versão para uma nova racionalidade, que levaria os direitos humanos a uma pauta
jurídica, ética e social, transformando-os em “processos institucionais e sociais que
possibilitem a abertura e a consolidação de espaços de luta pela dignidade huma-
na” (FLORES, 2009, p. 19).
Flores (2009) nos convida a pensar que se partirmos das questões que surgem
nas lutas pela dignidade não deixaremos de perceber os conflitos e as práticas so-
ciais “a partir de nossa inserção em tais conflitos que vamos assumir compromissos
e deveres com os demais, como o objetivo de conseguir um acesso igualitário aos
bens necessários para uma vida digna” (FLORES, 2009, p. 21).

CONCEPÇÃO HISTÓRICA DO RACISMO


O intelectual Carlos Moore propõe uma mudança paradigmática para as cate-
gorias raça e racismo a partir do conhecimento da origem do fenômeno na histó-
ria, perspectiva que pode proporcionar um novo olhar sobre o racismo e um outro
modo de lidar com as suas consequências. O autor defende a tese que, desde os
primeiros contatos entre grupos humanos, houve o reconhecimento das diferen-
ças fenotípicas observáveis, que ocorriam por meio da identificação das diferen-
ças morfenotípicas entre as espécies em contato umas com as outras. O uso do
termo fenótipo se refere tanto às características e mutações sofridas de acordo
com o meio, quanto a diferenciações perceptíveis inter e intra espécie. Para Moore
(2012), estas diferenças traçaram linhas de auto reconhecimento e de agrupamen-
to, e tiveram um papel importante em conflitos em torno de posse de recursos e
território.
Moore entende o racismo como um “fenômeno eminentemente histórico li-
gado a conflitos reais ocorridos na história dos povos” (MOORE, 2012, p. 31), que
existe antes mesmo de ser nomeado como tal. Esses conflitos duraram mais de
três mil anos, foram muito violentos e tiveram o racismo como um dos principais
subprodutos. O autor, por meio de análises de pesquisas de Cheikh Anta Diop e
Fournier- González, traz uma perspectiva de como foram esses conflitos no perío-
do neolítico, apresenta um estudo do imaginário coletivo dos povos euroasiáticos,
aborda construções de gregos e romanos, e trata do tráfico transoceânico do mun-
do árabe. Em relação a este último ponto, é importante ressaltar que o universo
árabe-islâmico, privilegiava a mão-de-obra africana escravizada em seu regime de
exploração, que ocorreu entre os séculos VII e XV. Os principais destinos eram o

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 295


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Oriente Médio, a Ásia Meridional, e, posteriormente, a Península Ibérica. O sistema
escravista árabe chegou à Europa, onde foi aprimorado e incorporou tecnologias
de crueldade.
Essas questões são apontadas para reforçar a tese que o racismo “apresenta-se
como forma de consciência grupal historicamente constituída, da qual proviriam
depois, construções ideológicas baseadas no fenótipo/raça” (MOORE, 2012, p.
197). Esse fenômeno, de acordo com Moore, é parte de uma ordem sistêmica de
profundidade histórica e grande cobertura geográfica, com objetivos de regular os
acessos a recursos da sociedade de forma racialmente seletiva. O racismo persiste
ao longo da história pela inteligibilidade, pela sua grande capacidade de adapta-
ção e por sua flexibilidade.
A conclusão que se apresenta é de que “o racismo teria surgido como uma
consciência grupal totalizante, arraigada na antiguidade, e não um fenômeno ge-
rado ideologicamente, em respostas a desigualdades sociais recentes”. (MOORE,
2012, p. 198). O autor conclui que o “racismo paira acima do mundo racional-
-consciente, na forma de uma meta-consciência envolvente, altamente plástica e
mutante, e sempre estruturadora das relações” (MOORE, 2012, p. 201). Moore traz
ainda no livro as características de plasticidade e capacidade de adaptação deste
fenômeno, o que auxilia na reflexão acerca d o s processos de mudança sobre a
questão racial observados no Brasil.

POLÍTICAS DE SEGURANÇA PÚBLICA NO BRASIL


Para compreender as mudanças pelas quais passaram as concepções de Se-
gurança Pública no Brasil, trarei a divisão proposta por Freire (2009), que trabalha
em sua análise com três paradigmas principais para o entendimento de segurança
pública, a saber: Segurança Nacional; Segurança Pública; e Segurança Cidadã. Se-
gurança Nacional foi um paradigma adotado no Brasil no período da Ditadura Militar
(1964 a 1985) e tinha como prioridade a defesa do Estado e a ordem política
e social. Conceitualmente, se baseava na Doutrina de Segurança Nacional, ideia
gestada pela Escola Superior de Guerra. Preservar o estado e o poder era a
meta, s e n d o q u e , para alcançá-la, usava-se medidas repressivas para elimi-
nação dos perigos. “A Lei e a Doutrina de Segurança Nacional deram sustentação
política e ideológica ao regime militar, e envolveu um arcabouço político, jurídico e
institucional, adotando-se um rigoroso controle social sobre a população” (SOUZA,
2018, p. 54).
O segundo paradigma, da Segurança Pública, tem como referência a Constitui-
ção Federal de 1988 (CF-88), onde registra-se que “a segurança pública é dever
do Estado e direito e responsabilidade de todos, e deve operar para a defesa
da ordem pública, da vida, e do patrimônio” (SOUZA, p. 54, 2018). Na Constituição
estabeleceu-se papéis diferenciados para municípios e estados, além da organiza-
ção de proposta de descentralização administrativa. Na divisão, os estados ficaram

296 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
responsáveis pelo gerenciamento da Polícia Militar, Civil e do Corpo de Bombeiros.
No paradigma da Segurança Pública prevalece o entendimento de proteção à or-
dem pública, é fortalecida a defesa do patrimônio e reforça-se medidas repressi-
vas. A diferença importante é que a segurança pública passa a ser tratada como
política pública, criando-se, desse modo, u m a “abertura para participação de
outras instituições e atores nas discussões e decisões sobre os rumos da seguran-
ça pública e de sua relação com os direitos humanos” (SOUZA, 2018, p. 54).
O paradigma da Segurança Cidadã começa a ser debatido na América Latina
nos anos de 1990. Tal abordagem p ressupõe ações interinstitucionais e interseto-
riais, com relação direta com outras políticas públicas. A Segurança Cidadã aborda
o fenômeno da violência de forma conceitual e o entende como multicausal. Neste
sentido, as ações da Segurança Pública estão no âmbito do controle e prevenção
da violência e da criminalidade. A violência, para esta perspectiva, é um dos prin-
cipais fatores de ameaça ao pleno exercício da cidadania. O município, por meio
de ações locais nas comunidades, recebe importante papel. “As ações comuni-
tárias ganham destaque nesse conceito e a construção de uma cultura cidadã na
comunidade, incluindo o respeito às normas de convivência e a resolução pacífica
de conflitos, é um dos pilares das ações de prevenção” (FREIRE, 2009, p. 53). Nos
paradigmas de Segurança Pública e Segurança Cidadã, ações de prevenção se rela-
cionam a ações de repressão. O fenômeno da violência, nesta concepção, atinge
a sociedade de modo geral, mas as ações de prevenção têm um público definido,
com local de moradia, cor, classe e idade.

AÇÕES DA SEGURANÇA PÚBLICA EM TRÊS NÍVEIS


Neste tópico irei abordar brevemente três políticas diferentes da Segurança Pú-
blica, sendo a primeira caracterizada como política de prevenção, onde analiso o
Fica Vivo!, que está relacionado, em seu discurso, à Segurança Cidadã. A segunda
política, que tem interface com a educação, é a internação no sistema socioe-
ducativo, v i n c u l a d a ao tratamento do Estado a adolescentes e jovens que
cometem ato infracional. Uso como referência uma consultoria que fiz no Sistema
Socioeducativo do Distrito Federal. A terceira política é a do sistema prisional, que
será analisado a partir da minha participação no Projeto Cartas do Cárcere.

PROGRAMA FICA VIVO!


O objetivo do Programa Fica Vivo! é definido como “controlar e prevenir a
ocorrência de homicídios dolosos em áreas com altos índices de criminalidade
violenta em Minas Gerais, melhorando a qualidade de vida da população ” (MINAS
GERAIS, 2015). O público-alvo, na faixa etária entre 12 e 24 anos, está circunscrito
à área de abrangência dos CPC ’s (Centros de Prevenção à Criminalidade) e há
atuação de dois eixos:

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 297


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
a. A proteção social, com atendimento dos jovens, trabalho em rede,
projetos locais e institucionais;
b. A intervenção estratégica, responsabilidade do Poder Judiciário,
das polícias e prefeituras, “tem como responsabilidade o planejamento
e a coordenação de uma repressão qualificada e eficiente ” (MINAS GE-
RAIS, 2015, p. 43).

Como técnica social do Programa Fica Vivo!, exerci um conjunto de responsa-


bilidades, dentre as quais acompanhar oficinas e oficineiros/as, realizar o atendi-
mento aos jovens, reuniões com moradores e lideranças comunitárias, mobilização
de jovens, reunião com a polícia e instituições que atuam nas localidades em que
o Centro de Prevenção a criminalidade está instalado. No processo de recordar as
situações vivenciadas para escrever a dissertação, lembrei- me de uma frase que
ouvia com muita frequência: “É melhor o jovem preso do que morto”, era dita em
ocasiões e por profissionais diferentes do programa. A ideia é que a vida dos jovens
é muito importante e deve ser preservada, contudo nem sempre se discutia a que
custo ou o que significava um jovem estar preso.
Na dissertação abordei o histórico de criação do programa e outros programas
que serviram como base, além de analisar o discurso das pessoas que fizeram par-
te do grupo que desenhou a política nos moldes que ela apresenta hoje. N o s d
o c u m e n t o s d o Programa Fica Vivo! a violência aparece como um fenômeno
multicausal, entretanto a sua atuação centra-se no controle de homicídios. Neste
sentido, articula ações de prevenção e repressão à criminalidade. E mesmo a vio-
lência sendo entendida como fenômeno que atinge todas as pessoas, as ações são
destinadas ao controle da vida e da morte dos grupos que estão na mira dos dados
estatísticos, os jovens negros, moradores da periferia, sem que com isso tenham
ações que tenham como base o combate ao racismo e discriminação.

INTERNAÇÃO NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO


A Lei 12.594/2012, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioedu-
cativo (Sinase), regulamenta a execução das medidas socioeducativas destinadas
a adolescente que pratique ato infracional e altera leis como o ECA (Lei no 8.069),
para melhor adequação ao Sinase. O Sistema Nacional de Atendimento Socioedu-
cativo é um documento que sistematiza os objetivos e diretrizes do sistema socio-
educativo e regulamenta a forma pela qual os diversos órgãos e agentes do poder
público devem prestar atendimento a adolescentes autores de ato infracional. É
um sistema integrado, que busca articular os governos estaduais e municipais, o
sistema de justiça e as políticas setoriais básicas (Assistência Social, Saúde, Educa-
ção, Cultura, etc.) para assegurar efetividade e eficácia na execução das Medidas
Socioeducativas de Meio Aberto, de Privação e Restrição de Liberdade, aplicadas
ao adolescente infrator?

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Objetiva ainda, de forma primordial, o desenvolvimento de uma ação socioe-
ducativa sustentada nos princípios dos direitos humanos, enquanto promove ali-
nhamentos conceitual, estratégico e operacional estruturados em bases éticas e
pedagógicas. Também se priorizaram as medidas em meio aberto (prestação de
serviço à comunidade e liberdade assistida) em detrimento das medidas privativas
ou restritivas de liberdade em estabelecimento educacional (semiliberdade e in-
ternação), haja vista que estas somente devem ser aplicadas em caráter de excep-
cionalidade e brevidade). Trata-se de estratégia que busca reverter a tendência
crescente de internação dos adolescentes, bem como confrontar a sua eficácia
invertida, uma vez que se tem constatado que a elevação do rigor das medidas
não tem melhorado substancialmente a inclusão social dos egressos do sistema
socioeducativo.
O último levantamento disponível para consulta aberta sobre perfil de adoles-
centes e jovens no sistema socioeducativo foi divulgado pela Secretaria Nacional
dos Direitos da Criança e do Adolescente do Ministério dos Direitos Humanos
(SNDCA/MDH) em 2018, com análise dos dados de 2016. Nesse ano, o número de
jovens nesse sistema era de 26.450; deste total, 25.929 (98%), estavam em cum-
primento de medidas de internação, internação provisória e semiliberdade, e o
restante, 521, estava em outras modalidades de atendimento. O perfil mostra que
96% era do sexo masculino, 59,08% foram considerados negros e 57% estava na
faixa etária 16 e 17 anos.

SEÇÃO SECUNDÁRIA PROJETO CARTAS DO CÁRCERE


A PUC Rio realizou a pesquisa, leitura, sistematização dos dados, produção de
livro, documentários e peças publicitárias para compartilhamento das experiências
no Projeto Cartas do Cárcere da Ouvidoria Nacional do Sistema Prisional. Eu parti-
cipei da equipe de leitura, arquivamento e catalogação. Analisamos cartas armaze-
nadas nos computadores do Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN) do ano
de 2016. A maior parte foi escrita de próprio punho, enquanto outras foram envia-
das por meio de um formulário padrão do DEPEN. As cartas vieram dos seguintes
estados: Bahia, Ceará, Distrito Federal, Espirito Santo, Goiás, Mato Grosso, Mato
Grosso do Sul, Minas Gerais, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Piauí, Rio de Janeiro,
Rio Grande do Norte, Rio Grande do Sul, Rondônia, Roraima, Santa Catarina e São
Paulo. Ao todo, analisamos 8.818 cartas no período de três meses.
Nas leituras das cartas encontramos diversas denúncias relativas às condições
do cárcere. Pessoas presas, familiares e instituições relatam, produzem documen-
tos sobre violências e violações que atingem quem está em privação de liberdade.
Essas denúncias falam sobre falta de condições mínimas de vida, como celas com
baratas, percevejos, pulgas, falta de água e de material de higiene e superlotação.
Além da falta de estrutura, tivemos contato com relatos de torturas psicológicas e

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 299


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
físicas, praticadas por agentes penitenciários, diretores e também por policiais no
momento das abordagens que levavam ao cárcere.
O Brasil conta com a terceira maior população carcerária do mundo: em 2019,
havia 812 mil pessoas presas. U m relatório do Infopen de 2016 descreve o perfil
da população carcerária: 55% das pessoas tinham entre 18 e 29 anos; 64% eram
negras; 75% não havia chegado ao ensino médio. Relatórios, como os da Comis-
são de Direitos Humanos das Nações Unidas, seguem produzindo informações de
denúncias de torturas e mortes nos presídios de todo país, apontando que não há
metas para garantir o encarceramento digno. A política de encarceramento segue
no controle da população negra e pobre. Quando se diz do encarceramento em
massa, se fala de como o mecanismo da prisão é utilizado como fato sócio- políti-
co-econômico de um estado genocida.

SEGURANÇA HUMANA
A proposta de um novo conceito para a segurança surge de questões que co-
meçam a ser elaboras por teóricas feministas e por teóricos/as negros/as e a Segu-
rança Humana aponta possibilidades ao questionar algumas premissas: quem é o
sujeito da segurança? A resposta deve apontar o sentido de qual o sujeito assegu-
rado. Quais valores devem ser protegidos? A proposta é que seja amplo e balizado
pelos direitos humanos. Quais são as ameaças à segurança? Desastres naturais ou
provocados, epidemias, genocídios, extermínios, regimes autoritários. Com que
meios pode-se garantir a segurança? Para a Segurança Humana, é com o desenvol-
vimento humano.
Os Estados, com ênfase na manutenção da lei, da ordem, e do patrimonialismo,
não estão atentos à promoção de segurança no território nacional para toda a
sua população. No contexto brasileiro, são apenas os considerados os “cidadãos
de bem(ns)” – que representam uma parcela mínima – que têm sido os sujeitos
assegurados. Ocorre que estudos e ações relacionadas à concepção tradicional de
segurança tendem a desconsiderar as ameaças e violências produzidas pelo pró-
prio Estado.
O Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD de 1994 –
lança, no relatório sobre desenvolvimento humano, o conceito de Segurança H
umana, que tem dois aspectos principais: “manter as pessoas a salvo de ameaças
crônicas como a fome, as doenças, a repressão e protegê-las de mudanças súbitas
e nocivas nos padrões de vida cotidiana, por exemplo, das guerras, dos genocídios
e das limpezas étnicas”. Por esta concepção, chega-se às seguintes dimensões de
segurança:

Segurança econômica: trabalho produtivo e remunerado; resolução de problemas


estruturais como desemprego, desigualdades socioeconômicas, trabalho precário,

300 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
trabalho análogo à escravidão; garantia de assistência social para a pessoa e sua
família;
Segurança alimentar: A Segurança Alimentar seria a garantia de acesso a alimen-
tos básicos, com presença dos nutrientes necessários partindo do entendimento
de que a fome é causada pela má distribuição de alimentos;

Segurança sanitária: relacionada a controle de epidemias, doenças contagiosas e


parasitárias, garantia de ambientes sem doenças crônicas e disponibilidade de cui-
dados médicos;

Segurança ambiental: ausência de ameaças como desmatamento, poluição do ar e


da água, processos de degradação de ecossistemas causados por grandes empreen-
dimentos; garantias de água potável, ar fresco etc.;

Segurança pessoal: garantia de segurança frente às violências do Estado, de outros


estados ou de indivíduos;
Segurança comunitária: segurança para viver e manifestar seus valores. Lutas inte-
rétnicas, como as reivindicadas por povos indígenas, são tratadas nesse ponto;

Segurança política: garantia dos direitos humanos. São discutidos nesse ponto ele-
mentos como repressão política por parte do Estado, desaparecimentos etc. Os
sete elementos apresentados são interdependentes e, se um deles está ameaça-
do, todos estarão comprometidos.

O conceito de Segurança Humana apresenta a mesma abordagem da Decla-


ração Universal dos Direitos Humanos, onde o ponto central é a pessoa humana
como o princípio da liberdade de viver sem medo e privações. Para que seja vista
como alternativa, é importante ter atenção a uma abordagem que se oriente para
a garantia dos direitos humanos. O que percebemos da segurança pública como
vem sendo praticada é uma orientação voltada para a manutenção da lei e da
ordem, para a defesa de patrimônio, do poder e do controle da população negra.
Um dos objetivos da segurança humana é garantir o exercício e expansão das
capacidades das pessoas, de modo que essas sintam-se livres de inseguranças. As
violências e violações causados pelo racismo impedem as pessoas negras de
exercerem de forma igual os direitos e escolhas. Esse fenômeno afeta a dig-
nidade humana da pessoa violentada e resulta em insegurança, dentre outras
consequências perversas. Portanto, neste sentido, pensar alternativas ao modelo
de segurança pública vigente é uma ferramenta fundamental na construção de um
outro modelo de sociedade.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 301


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Analisando as políticas de segurança nos níveis da prevenção, internação de
jovens e prisão de adultos, é possível perceber que o discurso que associa violên-
cia e criminalidade acaba colocando a população negra como alvo de controle. O
programa de prevenção analisado traz em seu discurso a segurança cidadã, o que
demonstra a intenção de construção de outros caminhos. Ainda assim o mesmo
repete estruturas ao institucionalmente saber a respeito do público alvo e meto-
dologicamente não ter ações que englobem mudanças na estrutura. Os jovens,
negros, moradores da periferia são alvo do controle de homicídios para a promo-
ção da sensação de segurança no restante da sociedade. O sistema socioeducativo
também aponta para uma alternativa ao modelo tradicional de segurança públi-
ca ao estabelecer relação com o ECA. Crianças e adolescentes são vistos/as deste
modo como sujeitos de direitos. Mas, quando o assunto são os atos infracionais
que esses sujeitos cometem, as alternativas continuam relacionadas ao controle e
o público alvo mantém o mesmo perfil: negros e moradores da periferia. O sistema
prisional tem poucos discursos ou práticas alternativas. Suas características perma-
necem próximas ao que era no período colonial: limitação da circulação de deter-
minados grupos, manutenção da ordem, controle sobre vidas, presídios insalubres,
violações de direitos dentre outros. Como vimos nas informações mais atualizadas,
o perfil também é de jovens, negros e pobres.

REFERÊNCIAS

Agência Brasil. Verdélio, Andréia. Com 726 mil presos, Brasil tem a terceira maior popula-
ção carcerária do mundo. Texto publicado em 2017. Disponível em: http://agenciabrasil.
ebc.com.br/geral/noticia/2017-12/populacao-carceraria-do-brasil-sobe-de-622202-para-
-726712-pessoas Acesso em: 2 de mai. 2020.

ALMEIDA, Ronaldo de. Bolsonaro presidente: conservadorismo, evangelismo e a crise bra-


sileira. Novos estudos. São Paulo: v. 38, n. 01, p. 185-213, jan-abr, 2019.
FLORES, Joaquín Herrara. A (re)invenção dos direitos humanos. Florianópolis: Fundação
Boiteux, 2009.

FREIRE, Moema Dutra. Paradigmas de segurança no Brasil: da ditadura aos nossos dias. In:
Aurora. São Paulo, ano III, nº 5, dez., 2009. Disponível em: http://www.marilia.unesp.br/
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Juventude; Subsecretaria Do Sistema Socioeducativo. I Plano Decenal De Atendimento
Socioeducativo Do Distrito Federal – PDASE. Brasília, 2016. Disponível em: https://www.
agenciabrasilia.df.gov.br/wp-conteudo/uploads/2016/06/1o-plano-decenal-de- atendi-
mento-socioeducativo-do-df-pdase.pdf Acesso em 20 de out. 2017.

302 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Governo do Estado de Minas Gerais. Secretaria de Estado de Defesa Social. Superinten-
dência de Prevenção a Criminalidade. Programa de Controle de Homicídios – Fica Vivo!
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Coordenadoria Especial de Prevenção Social a Criminalidade. Núcleo de Prote-


ção Social da Juventude. Fica Vivo! 2015.

Projeto de controle de homicídios Fica Vivo! 2003.

MOORE, Carlos. Racismo e Sociedade: novas bases epistemológicas para entender o racis-
mo. Belo Horizonte: Nandyala, 2012.

OLIVEIRA, Ariana Bazzano de. Segurança humana: o discurso ‘para’ ou ‘da’ periferia? Pu-
blicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 14 – Nº
40/2º Semestre 2014.

PIRES, Thula; FREITAS, Felipe. Vozes do cárcere: ecos da resistência política. Rio de Janeiro:
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ROCHA, Raquel Maria de Almeida. Segurança humana: histórico, conceito, utilização.


Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Relações Internacio-
nais do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo, 2017. Disponí-
vel em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/101/101131/tde-08092017-155459/publi-
co/Raquel_Maria_Almeida_Rocha.pdf. Acesso em 15 mai. 2020.

SOUZA, Aline Cristina Campos de. Fica Vivo!: imperativo de vida, cotidiano de morte.
150 páginas. Dissertação apresentada ao PPGDH/ CEAM da Universidade de Brasília como
requisito para o título de mestra. Brasília, 2018.

AUTORIA
Aline Cristina Campos de Souza
Membro-fundadora do Observatório das Cotas na Pós-graduação
E-mail: alinecoletivoprovisorio@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0317356383817788

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 303


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ESPAÇOS DE VIDA E DE MORTE: A PRODUÇÃO
RACIAL DO ESPAÇO E A REPRODUÇÃO DA
MORTE NA CIDADE DE SALVADOR

Uebert Vinicius das Neves Ramos


Nilcley Santos Rocha

“A cidade do colonizado...
É um lugar de má fama,
povoado por homens de má reputação.
Lá eles nascem, pouco importa onde ou como;
morrem lá; os homens vivem uns sobre os outros.
[...] A cidade do colonizado é uma vila agachada,
uma cidade ajoelhada”
(FANON, 1961, pág. 35)

INTRODUÇÃO
As máscaras racializadas do arranjo espacial do viver urbano demonstram es-
truturas ajoelhadas a uma lógica urbana na qual a cor, o poder aquisitivo e o local
de moradia podem definir a expectativa de vida e os direitos efetivados. Desse
modo, o espaço é categoria imprescindível para definição do grau de valor social
do indivíduo, pois a forma como grupos humanos são representados nos meios
culturais e espaciais determina o valor que eles possuem, seu status cultural, ma-
terial, social, político e financeiro, diminuindo consideravelmente as chances de
mobilidade social ascendente, vez que nega direitos fundamentais numa socieda-
de de relações hegemônicas.
Este artigo está recheado de inquietações que perceberam a necessidade de
analisar se existe uma distribuição da morte nos espaços urbanos da cidade de
Salvador/BA, refletindo sobre a política da segurança pública soteropolitana.
O trabalho se divide, então, em três seções. Inicialmente, lançamos mão do
conceito de Necropolítica, descrito por Achille Mbembe (2018), com o intuito de
fornecer as bases epistemológicas que refletem sobre papel ativo no direito de ma-
tar indivíduos histórica, política e socialmente assolados pelas formas de elimina-
ção que retroalimentam violências. Quanto à produção racial do espaço, lançamos
mão da concepção do Espaço de Milton Santos (2011), e, a importância da raça
como elemento que estrutura as relações sociais e espaciais. Por fim, foram usadas
as contribuições de Esteves de Calazans (2016) e de Jaime Amparo Alves (2010) so-
bre a espacialização da morte, nos quais lócus sociais são racialmente identificados
e violentamente estratificados.

304 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Com base no levantamento dos dados registrados na Secretaria de Segurança
do Estado, ano 2019, lançamos mão do recorte espacial das Áreas Integradas de
Segurança Pública (AISP), conforme Art. 2º da Portaria nº 05/2012, que define a
composição e os limites de tais áreas. Para tanto, foram estudadas 6 AISP, sendo 3
com maiores índices de homicídios de natureza dolosa, e as 3 com os menores índi-
ces. No tocante ao método, a pesquisa se caracteriza de natureza qualitativa, com
a articulação de dados bibliográficos. Na sequência, foram expostos e analisados
os dados coletados nos documentos. Encerrando-se com uma análise de todos os
elementos expostos à luz das teorias elencadas.

A NECROPOLÍTICA E A SELETIVIDADE DOS CORPOS


Ao partir da articulação entre o conceito de biopoder, desenvolvido por Mi-
chel Foucault, das noções de soberania e do estado de exceção (AGAMBEN apud
MBEMBE, 2018), Achille Mbembe (2018) traz uma nova articulação conceitual evi-
denciando que a expressão máxima da soberania consiste no ato de poder decidir
quem pode viver e quem deve morrer, a política enquanto um trabalho da morte.
Formas de soberania cujo objetivo central é a instrumentalização generalizada da
existência humana, a destruição material e simbólica de corpos humanos e popu-
lações especificas (MBEMBE, 2018). Importante destacar que, conforme Mbembe
(2018) o conceito de biopoder (Michel Foucault) deixou de ser suficiente para a
contemporaneidade uma vez que não poderia mais dar conta das formas em que
as instituições estatais têm como principal objetivo o extermínio dos sujeitos con-
siderados como os seus inimigos e que, para alcançá-lo, promove guerras e ondas
de terror direcionadas exclusivamente para esses grupos/populações.
Um ponto importante para que consigamos compreender de que forma a ne-
cropolítica é colocada em prática em determinados lugares, consiste em entender
que, entre outras especificidades, os grupos e sujeitos que são alvejados por ela
possuem um território/espaço em comum. Habitam em verdadeiros “campos da
morte”. De acordo a Mbembe (2018, pag. 08), “uma das características das popu-
lações que habitam nos campos da morte é a total inexistência de status político e
a redução dos seus corpos enquanto meramente biológicos”.
Além da especificidade territorial, é importante inserir o elemento racial nesse
processo de identificação dos grupos e populações que foram e são alvos dessas
práticas violentas/de extermínio. A raça sempre esteve presente no pensamento e
na prática das políticas desenvolvidas pelo Ocidente, sobretudo quando se propõe
a tratar do processo de desumanização dos povos estrangeiros e/ou as formas de
dominação que foram/são exercidas sobre eles (MBEMBE, 2018).
A necessidade da criação/existência de um inimigo ficcional é um outro ele-
mento fundamental para que possamos compreender a lógica da necropolítica e as
noções de soberanias contemporâneas. Nesse caso, todas as narrativas/discursos
sobre determinados sujeitos/populações são elaboradas e proferidas com o prin-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 305


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
cipal objetivo de desumanizá-los, marginalizá-los e dar legitimidade às violências e
políticas de extermínio às quais eles são alvos. Os grupos e populações que habi-
tam (n)esses espaços que podem considerados como campos da morte são vistos/
colocados enquanto potenciais inimigos, apresentando assim, sob a ótica estatal,
um enorme grau de perigo, exigindo a necessidade de um combate ostensivo, me-
didas de repressão e/ou de extermínio. “Portador de armas ou não, o inimigo a
punir é um inimigo intrínseco, um inimigo por natureza” (MBEMBE, 2017, p. 46).
A construção do Outro como um atentado à minha vida, um perigo absoluto,
no qual a eliminação do seu corpo reforçaria meu potencial de vida e segurança,
se constitui como um dos muitos imaginários de soberania, seja da primeira ou da
segunda modernidade (MBEMBE, 2018). A necessidade da aniquilação do Outro,
que é colocado e representado como um potencial perigoso, para a garantia da
segurança.
Na realidade soteropolitana, as periferias ganham o status de verdadeiros e
legítimos campos da morte, cujas pessoas que habitam neles, em sua maioria es-
magadora composta por pessoas negras, são vistas enquanto sujeitos sem status
político e enxergados, sob a ótica do estado necropolítico/genocida, como puros e
simples corpos biológicos, que são marginalizados/criminalizados e abatidos coti-
dianamente sob o argumento de salvaguarda da ordem pública. São esses espaços
e sujeitos tipificados como potenciais criminosos, alvejados cotidianamente pela
política de morte.

A PRODUÇÃO RACIAL DO ESPAÇO E AS RELAÇÕES


ASSIMÉTRICAS DO VIVER URBANO
O espaço é “conjunto indissociável de que participam, de um lado, certo arranjo
de objetos geográficos, objetos naturais e objetos sociais, e, de outro, a vida que
os preenche e os anima, seja a sociedade em movimento” (SANTOS, 1998, p. 10).
Assim, a configuração espacial deve ser analisada não somente sob a perspecti-
va físico-geológica, mas, sobretudo, como um produto das relações das pessoas
no espaço, analisando suas transformações físicas, sociais, econômicas, históricas,
temporais, culturais.
Nesse sentido, verifica-se que as cidades não podem se limitar na sua aparên-
cia (PIRALI, 2016), afinal elas não são espaços neutros (CORREIA; COELHO; SALES,
2018), passivos; mas, ao contrário, são fatores históricos que contribuem para a or-
ganização e reorganização de relações sociais! Segundo Andrelino Campos (2010,
p. 19), “o processo de construção espacial da cidade, em geral, não vem, ao longo
da história, contemplando os grupos denominados ‘minorias’”.
Assim, longe de uma análise puramente abstrata, universalizada e universali-
zante da categoria espaço, ele deve ser estudado a partir de uma análise materia-
lista e a importância de sua configuração enquanto elemento produtor e repro-
dutor das desigualdades; é uma estrutura social como as outras, uma vez que “a

306 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
atividade econômica e a herança social distribuem os indivíduos desigualmente no
espaço” (SANTOS, 2011, p. 75).
O viver urbano é um elemento revelador e legitimador de violências (ALVES,
2010). Urge necessário, portanto, analisar situações concretas do espaço a partir
das condições concretas da raça nos arranjos da produção da vida social, que dis-
tribuem desigualdades dos grupos de indivíduos em situações opostas nos arranjos
sociais e nas suas respectivas formas de sociabilidade.
O racismo é um modo de organização da vida, e não “uma patologia social e
nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural” (ALMEIDA, 2018, p. 38).
É regra, não a exceção. O racismo é um processo sistêmico que produz e reproduz
relações assimétricas de poder, de oportunidades, de direitos, cristalizadas numa
estrutura que constrói hierarquias de grupos racialmente definidos, em posições
diametralmente opostas.
Desse modo, se o espaço é uma construção social, e a raça é um elemento es-
truturante e estrutural das relações sócio-raciais hierarquicamente delimitadas, o
espaço é resultado de lutas discriminações baseadas em fatores raciais, que atra-
vessam a nossa vivência do espaço urbano (CORREIA; COELHO; SALES, 2018). Por
conseguinte, a lógica urbana é fundamental para se entender a espacialização da
violência no Brasil! Sendo assim, determinados corpos e alguns espaços são racia-
lizados, por meio mecanismos de atribuição de sentido, de signos e significações a
traços fenotípicos, distribuindo, desigualmente, direitos, e, sobretudo chances de
vida e de morte.
Assim sendo, verifica-se que a geografia sócio-espacial legitima também pa-
drões diferenciados de (in) segurança pública1, pois age em espaços socialmente
diferenciados e corpos racialmente marcados, nos quais determinadas áreas dis-
põe de serviços públicos eficientes e efetivos e, por outro lado, os moradores “da
Ponte Pra Cá” (RACIONAIS, 2002) recebem o “kit de esgoto a céu aberto e parede
madeirite”(IDEM, 2002), onde a cidadania não se efetiva e a dignidade humana,
princípio norteador do sistema constitucional do país e capitulada no artigo 1º, III,
da Constituição Federal, é cotidianamente violada.
Portanto, a categoria analítica, teórico-metodológica das condições concretas
da classe, raça, gênero e espaço, que têm relações sócio-históricas constituídas
como a pedra de toque da formação brasileira, nos mostra que são usados como
forma de perpetuar um projeto político de dominação. Portanto, este Espaço Sem
Cidadãos (SANTOS, 1998) é racialmente definido e violentamente identificado!

RESULTADOS E ANÁLISES
Em 2012, fora publicado o Decreto 13.561/2012, que instituiu as Regiões Inte-
gradas de Segurança Pública - RISP, as Áreas Integradas de Segurança Pública - AISP

1 Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/mapa-deixa-clara-a-con-


centracao-de- homicidios-em-bairros-pobres/. Acesso em 27 jun. 2020.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 307


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
no Estado da Bahia. No mesmo ano, fora publicada a Portaria nº 05/2012, que de-
fine a composição e os limites de tais áreas.
Com base numa análise qualitativa dos dados registrados na Secretaria de Segu-
rança do Estado, fora feito um recorte do objeto de pesquisa, pois foram estudadas
6 AISP, sendo as 3 com maiores índices de homicídios de natureza dolosa e as 3
com os menores índices de tal crime.
No ano de 2019, foram registrados na região de Salvador 987 vítimas de homi-
cídios dolosos. Verifica-se que, em 2019, a AISP 05 (Periperi)2, contabilizou 186 ho-
micídios dolosos, ficando, assim, em primeiro lugar na escala das taxas de mortes
de natureza letal na cidade de Salvador. A AISP 11 (Tancredo Neves)3 se posicionou
no segundo lugar, com 139 homicídios dolosos. Ademais, a AISP 04 (São Caetano)4
apresenta o índice de 115 homicídios de natureza dolosa, perfazendo o terceiro
lugar entre as mais violentas da cidade de Salvador.
Nesse sentido, observa-se que as três AISP’s que compõem o ranking dentre as
que apresentam mais homicídios, são responsáveis 440 dos casos de crime desta
natureza na cidade, totalizando aproximadamente 45% das mortes dolosas.
Por sua vez, no que se refere às AISP’s com menores índices de mortes dolosas,
verificamos que a AISP 14 (Barra)5 representa apenas 1 homicídio doloso no mês
de 2019. A AISP 16 (Pituba)6 apresenta 2 casos e, por fim, a AISP 15 (Nordeste)7 de-
monstra 16 assassinatos. Tais Áreas Integradas de Segurança Pública representam
somente 19 de casos, sendo responsáveis, em média, por 1,9% dos homicídios em
tais localidades.
Conforme os dados do IBGE (2012), (apud ESTEVES DE CALAZANS, 2016), no
que se refere à concentração população, os bairros de que tem a maior quantida-
de de pessoas negras são Pernambués, Itapuã (com 52.206 negros), seguido por
Brotas (49.804), Paripe (46.505), Fazenda Grande do Retiro (46.476), São Cristóvão
(45.505), Beiru/Tancredo Neves (43.523), São Caetano (43.162), Periperi (42.717),
Boca do Rio (38.447) e, por fim, o bairro da Liberdade (35.704).
Denota-se, assim, que dentre os 11 bairros que concentram a maior população
negra da capital soteropolitana, 6 deles constituem as AIPS que mais apresentam
crimes dolosos.

2 Composta pelos seguintes bairros: Plataforma; Lobato; Alto do Cabrito; Periperi; Praia Gran-
de; São João do Cabrito; Itacaranha; Alto da Terezinha; Rio Sena; São Tomé; Paripe; Fazenda Coutos;
Coutos; Nova Constituinte; Ilha de Maré.
3 Composta pelos seguintes bairros: Novo Horizonte; Nova Sussuarana; Sussuarana; Gran-
jas Rurais; Presidente Vargas; Calabetão; Jardim Santo Inácio; Mata Escura; Centro Administrativo da
Bahia; Arraial do Retiro; Barreiras; Engomadeira; Beiru/Tancredo Neves; Arenoso; Cabula VI; Cabula;
Pernambués; São Gonçalo; Resgate; Saramandaia; Narandiba; Saboeiro; Doron.
4 Composta pelos seguintes bairros: Retiro Campinas de Pirajá; Marechal Rondon; Capelinha;
Boa Vista de São Caetano; São Caetano; Fazenda Grande do Retiro; Bom Juá; Pirajá.
5 Composta pelos seguintes bairros: Vitória; Barra; Graça.
6 Composta pelos seguintes bairros: Pituba; Itaigara; Caminho das Árvores.
7 Composta pelos seguintes bairros: Amaralina; Nordeste de Amaralina; Vale das Pedrinhas;
Chapada do Rio Vermelho; Santa Cruz.

308 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Em 20/11/2014, o jornal Correio apresentou um mapa com os 20 bairros mais
negros e os 20 mais brancos de Salvador8, percentualmente, baseado no último
censo do IBGE. Em razão da escassez de dados atualizados neste sentido, tal estudo
é imprescindível como fonte de análise.
Neste caso, a análise destes dados é de forma percentual e não a concentração
populacional, pois esta depende de variáveis como contingente da população do
bairro como um todo. Observa-se que dos 46 bairros que constituem as AISP’s 05,
11 e 04, as quais concentram os maiores números de mortes dolosas, 11 deles
(Ilha da Maré; Fazenda Coutos; Rio Sena; Calabetão; Lobato; Saramandaia; Alto da
Terezinha; Nova Sussuarana; São João do Cabrito; Nova Constituinte, Boa Vista de
São Caetano) estão entre os bairros que, percentualmente, dispõe de população
de maioria negra. Assim, dos 20 bairros mais negros da capital baiana, 11 deles
concentram os maiores índices de homicídios de natureza dolosa.
Por outro lado, dos 11 bairros que compõem as AISP’s 14, 16 e 15, que tem o
menor número de homicídios dolosos, 7 deles (Vitória; Barra; Graça; Itaigara; Pitu-
ba; Caminho das Árvores; Amaralina) estão entre os bairros que, percentualmente,
tem o menor índice de negros em Salvador, sendo que apenas 4 não perfazem
tais dados (Nordeste de Amaralina; Vale das Pedrinhas; Chapada do Rio Vermelho;
Santa Cruz).
A análise qualitativa dos dados infere-se a configuração de um Mapa do Exter-
mínio Soteropolitano, no qual há uma distribuição territorial desigual que define
não somente a materialização da cidadania, mas também do direito à vida. As geo-
grafias racializadas da cidade soteropolitana denotam-se uma governança espacial
da necropolítica nos bairros empobrecidos do país, que estão em constantes en-
contros de feixes de relações de poder.

É o grau de afastamento a um centro que clarifica a posição pe-


riférica (física, social, morfológica, etc.) e esta é- o tanto mais
quanto maior é a visibilidade, o posicionamento, o poder e a
clareza dos atributos da condição central. Enquanto agregado
social, a periferia define-se por isso e, também, não pela den-
sidade ou pela intensidade do inter-relacionamento interno ao
nível local, mas sim, pela dependência, pela subalternidade face
às áreas centrais e aos locais de destino dos habitantes-pendu-
lares. (ESTEVES DE CALAZANS, 2016, p. 18)

Da mesma forma, denota-se que os espaços onde se concentram os maiores ín-


dices de violência são negros, enquanto os com menos índices de violência são ma-
joritariamente brancos. Em determinados arranjos espaciais, direitos fundamen-
tais e sociais plasmados na Constituição Federal se revelam ineficazes. “A violência
tem atingido de forma racialmente desigual a população civil” (VILMA REIS, 2005,

8 Disponível em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/fazenda-coutos-e-o-bairro-


-mais-negro-de- salvador-liberdade-fica-em-54o-lugar/. Acesso em 27 jul. 2020.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 309


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
p. 92). O racismo, portanto, sustenta as bases políticas e jurídicas da eliminação de
corpos que, cotidianamente vai se sofisticando (FLAUZINA, 2006).
Verifica-se uma nova forma de governar: é o governo do terror, “[...] governar
pelo terror já não tem tanto a ver com reprimir e disciplinar, mas sobretudo com
matar, seja em massa ou em doses mais contidas” (MBEMBE, 2017, pág. 61). Por
assim dizer, tal forma de governabilidade orienta a produção calculada da morte
em espaços urbanos diametralmente opostos que insere na política de segurança
pública soteropolitana a atuação sobre territórios e sobre corpos estruturalmente
marcados para morrer, potencialmente matáveis.

[…] A gestão do espaço urbano toma características mórbidas,


isto é, ela se dá por meio de uma necropolítica racial em que o
Estado mata por deixar morrer (omissão) ou por sua cumplici-
dade com a reprodução contínua e dissimulada de um padrão
de relações raciais que se quer cordial, mas que tem a sua ex-
pressão máxima na distribuição desigual da morte − prematura
e prevenível − entre negras e negros. (ALVES, 2010, p. 23).

Os segmentos territoriais onde a política de segurança pública baiana se efetiva


(Áreas Integradas de Segurança Pública – AISP), para além de agrupar municípios,
distritos e bairros, concentram em determinados arranjos espaciais e raciais um pa-
drão dinâmico do viver urbano, que moldam comportamentos, direitos e chances
de vida e de morte, conforme se observa na espacialização da morte em Salvador.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho buscou analisar se há uma distribuição da morte nos espa-
ços urbanos da cidade de Salvador/BA, refletindo sobre a política da segurança pú-
blica soteropolitana. Por conseguinte, a pesquisa é natureza qualitativa, lançando
mão da análise documental. Foram apresentados elementos da teoria da Necropo-
lítica, Espaço do Cidadão Necropolítica Espacial. Estas teorias forneceram as bases
epistemológicas e analíticas para avaliação dos dados coletados.
Fora constatado que a configuração sócio racial do espaço é um fator determi-
nante nas/paras as condições que reproduzem a morte de determinados sujeitos/
indivíduos que habitam e/ou circulam pelo local. Ao serem observadas a dispari-
dade entre os dados das Áreas Integradas de Segurança- AISP, de um e de outro
espaço e, posteriormente, analisar qual o perfil racial dos sujeitos que habitam
em tais locais, permitiu perceber que aqueles que habitam/compõem os lugares,
que são marginalizados historicamente, têm diferentes situações de vida e maior
probabilidade de morte em relação aos que compõem áreas que têm um maior
prestígio social e racialmente atribuído. As consideradas áreas nobres da capital
baiana não são alvos do projeto necropolitico soteropolitano.

310 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Em contrapartida, são as favelas e periferias dessa mesma cidade, e consequen-
temente os seus habitantes, compostos majoritariamente por negros e negras, os
locais e sujeitos que constantemente são alvejados pela política de morte nesse/
desse lugar. Portanto, não se trata de atribuir valor a essa ou aquela área da ci-
dade, mas sim de perceber o quanto há uma dinâmica racial e espacial da morte
na capital do Estado da Bahia. Uma dualidade entre espaços de vida e espaços de
morte!

REFERÊNCIAS

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ALVES, Jaime. Necro-política espacial: a produção racial da morte em São Paulo. Revista
da ABPN, v. 1, n. 3 - nov- fev, p. 89-114, 2010.

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BAHIA. Portaria nº 05 de 06 de janeiro de 2012. Define a composição e os limites das Re-


giões Integradas de Segurança Pública - RISP e das Áreas Integradas de Segurança Pública
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CORREIO. Mapa deixa clara a concentração de homicídios em bairros pobres. Disponível


em: https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/mapa-deixa-clara-a-concentracao-
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ESTEVES DE CALAZANS, Marcia et al. A Espacialização da Morte e Padrões Mórbidos de


Governança Espacial: Homicídios de Jovens em Salvador 2010-2015. Cadernos do CEAS:
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FANON, Frantz. Os condenados da terra. Tradução de Serafim Ferreira. Lisboa: ULISSEIA,


1961.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 311


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
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RACIONAIS MC’S. Da Ponte Pra Cá. In Racionais MC’s. Nada como um dia após o outro dia.
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RACIONAIS MC’S. Negro Drama. In Racionais MC’s. Nada como um dia após o outro dia.
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REIS, Vilma. Atucaíados pelo Estado: as políticas de segurança pública implementadas nos
bairros populares de Salvador e suas representações, 1991- 2001. Dissertação de Mes-
trado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2005.

SSP.BA. Principais Delitos-Capital. Período: 01/01/2019 à 31/12/2019. Disponível em:


http://www.ssp.ba.gov.br/arquivos/File/Estatistica_2019/CAPITAL_2019/CAPITAL/
03CAPITAL2019JANADEZp2.pdf. Acesso em 27 jul. 2020.

AUTORIA
Uebert Vinicius das Neves Ramos
Graduando do curso Bacharelado em Direito pela Universidade do Estado da Bahia
– UNEB, DCH IV, Campus Jacobina.
E-mail: uebertvinicius@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6967193408711796

Nilcley Santos Rocha


Graduando do curso Licenciatura em História pela Universidade do Estado da Bahia
– UNEB, DEDC XIV, Conceição do Coité.
E-mail: nilcley0308@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3364690624354656

312 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 53
Racismo, Guerra
às Drogas,
Encarceramento
em massa e
Juvenicídio
NECROPOLÍTICAS CARCERÁRIAS: RACISMO,
POLÍTICAS DA MORTE E SACRIFÍCIO

Diego dos Santos Reis

“Prisão é uma maneira muito cara


de tornar os homens piores.”
(SP5 – 1011, Vozes do Cárcere)1

INTRODUÇÃO
Ao tensionar o discurso monofônico ocidental, o questionamento das catego-
rias e das perspectivas hegemônicas têm redimensionado as bases epistemológi-
cas do Direito Penal e dos estudos criminológicos. Esse reposicionamento parte da
tese segundo a qual os rastros, as estruturas e os efeitos persistentes da coloniali-
dade nos territórios subalternizados materializam-se na continuidade dos padrões
de extermínio, de exclusão e de precarização da existência de corpos racialmente
inferiorizados. Esses padrões, centrados nos processos de estigmatização de terri-
torialidades, de racialização e de generificação, são traduzidos no tratamento dife-
renciado conferido pelo Direito Penal a determinados segmentos sociais, sexuais
e raciais.
Problematizar os reflexos da colonialidade no sistema jurídico-penal brasileiro
impõe, então, que se questionem as premissas dos pactos que o embasam, com-
preendendo a base desse sistema radicada em uma cultura punitivista, orientada
pelos marcadores de raça, gênero e classe como moduladores das sanções dife-
renciadas. Essas diferenciações, para além de meras categorias analíticas, cons-
tituem o fundamento da episteme moderna colonial, na medida em que, de um
lado, como destaca Aníbal Quijano (2005, p. 107), “a ideia de raça foi um modo
de outorgar legitimidade às relações de dominação impostas pela conquista”; de
outro, enquanto colonialidade do gênero, nas trilhas de Maria Lugones (2008, p.
79), “é um dos eixos do sistema de poder e, como tal, permeia todo o controle do
acesso sexual, autoridade coletiva, trabalho e subjetividade/intersubjetividade, e a
produção de conhecimento a partir do interior dessas inter- relações”.
Não é fortuito que a designação racial – e sexual – opere como “[...] o meio pelo
qual certas formas de subvida são produzidas e institucionalizadas, a indiferença

1 Com o objetivo de preservar o anonimato e a segurança das autoras e dos autores das cartas
remetidas pelas pessoas privadas de liberdade, o livro Vozes do Cárcere: ecos da resistência política,
organizado por Thula Pires e Felipe Freitas, desidentifica a autoria dos escritos, marcando apenas os es-
tados de procedência das cartas, numerando-as. A epígrafe com a qual inicio este texto foi retirada de
uma dessas cartas. Cf. REIS, Diego; STANCHI, Malu. Um cárcere de memórias. Revista Direito e Práxis, v.
10, n. 4, p. 3126-3133, 2019.

314 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
e o abandono justificados, a parte humana no outro violada, velada ou ocultada
e certas formas de encarceramento e até mesmo de abate toleradas” (MBEMBE,
2018, p. 70). A racionalização das políticas de morte, integrada a uma rede estru-
turada de subjugação e dominação racial/sexual, confere as premissas daquilo que
Achille Mbembe (2018b) chamará de necropolítica ao tematizar as tecnologias con-
temporâneas de assassinato, voltadas a “eliminar um grande número de vítimas
em um espaço relativamente curto de tempo” (MBEMBE, 2018b, p. 22).
Em um cenário no qual ampliam-se as demandas punitivas, a necropolítica car-
cerária irá respaldar o padrão mórbido das relações raciais, sustentado pelo siste-
ma de justic criminal, que produz a normalização das iniquidades, da produção e
distribuição de morte - e da morte-em-vida, na asfixia imposta pelas grades aos/às
reféns do cárcere.
O objetivo deste trabalho inscreve-se na tentativa de relacionar os altos índices
de encarceramento no Brasil com a sobreposição de vulnerabilidades decorrentes
dos processos de colonização, a fim de propor uma crítica decolonial ao sistema de
justiça criminal brasileiro. Compreende-se o ambiente político-institucional atual
a partir dos obstáculos à concretização das conquistas democráticas à população
negra, em razão de permanências autoritárias e racistas, pautadas na lógica da
branquitude (BENTO, 2002). O reflexo desse processo é expresso pela realidade
de morte e pelos efeitos perversos do racismo no exercício do controle e deter-
minação do delito no Brasil, materializados tanto na população mais encarcerada
quanto exterminada no país: jovens negros. Trata-se, então, de discutir a prática
institucional do superencarceramento da juventude negra e de que modo o Estado,
marcado pela colonialidade, promove uma discriminação transversal de raça, etnia,
classe e gênero, que se revela no modo seletivo de operar do sistema de justiça
criminal brasileiro.

ALVOS CONDENADOS, ALVAS ABSOLVIÇÕES


O fato de que a branquitude detém historicamente o privilégio de impor um
modelo universal de humanidade não é novidade. A supremacia branca sustenta
suas prerrogativas por meio de estruturas racistas, sob as quais operam a perpetu-
ação de práticas que institucionalizam a criminalização, punição e estagnação dos
corpos negros. Para a sustentação de privilégios do homem, branco, heterossexual
e proprietário (PIRES, 2017), o ser passa a definir-se pelo não ser negro, elaborando
uma dualidade patológica entre negros e não negros. Desta forma, a supremacia
branca delimita as fronteiras raciais entre a zona do ser e a zona do não ser, con-
forme conceitua Fanon (2008), deslocando subjetividades, dividindo projetos de
humanidade e possibilitando que os corpos situados na zona do não ser sejam aba-
tidos, violados, chacinados.
Fanon nomearia esse processo de “epidermização dessa inferioridade” (FA-
NON, 2008, p. 28) cuja semiótica visível da cor da pele “deve tornar-se ódio” (Idem,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 315


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
p. 61). E recordaria que: “o colonialismo não é uma máquina de pensar, não é
um corpo dotado de razão. É a violência em estado bruto” (FANON, 1968, p. 46).
Questionar esse pacto racial/sexual é fundamental para uma crítica efetiva da per-
manência das desigualdades raciais/sexuais no país. Pois, se as relações sociais e
os status jurídicos foram forjadas no seio de sociedades transpassadas pelas expe-
riências de violência política e organizadas sobre esse legado, colocar em questão
essas estruturas é se perguntar também pelos pressupostos raciais inscritos nos
termos e na lógica de um sistema que categoriza hierarquicamente os sujeitos de
direitos.
Trata-se de considerar a hipótese colonial como lente de análise para a questão
criminal (DUARTE, 2017) e a função desta lógica na articulação entre racismo e sis-
tema penal. Isto porque os processos de racialização estão na base do sistema,
compreendido como mecanismo de regulação, organização e produção das dife-
renças. A lógica estigmatizante da justic criminal se concretiza na atuação das age
cias punitivas, na letalidade policial, no superencarceramento, nas práticas siste-
máticas de tortura e violação aos Direitos Humanos e no aniquilamento através da
presunção de criminalidade, que escancara “as cumplicidades do ordenamento
constitucional brasileiro vigente com as hierarquias de humanidade herdadas do
projeto moderno colonial de base escravista” (FLAUZINA; PIRES, 2018, p. 20). O
que seria remarcado também por Angela Davis (2009, p. 40 e 48):

Eu também venho tentando pensar mais sistematicamente sobre


as maneiras pelas quais a escravidão continua a existir em ins-
tituições contemporâneas - como nos casos da pena de morte
e da prisão, por exemplo. [...] comecei a pensar [...] na possibi-
lidade de uma análise que pautasse a sua ênfase na instituição
da prisão, não apenas como um aparato para reprimir ativistas
políticos, mas também como uma instituição profundamente co-
nectada com a manutenção do racismo [...] as prisões tornam-se
uma maneira de dar sumiço nos problemas sociais que elas [as
populações dispensáveis da sociedade] representam.

Daí o processo constante de desumanização de pessoas racialmente/sexual-


mente subalternizadas, submetidas à força necropolítica de Estado e aos efeitos
de políticas públicas que expressam a face mais nefasta do racismo/sexismo ins-
titucional, do classismo e da fragilidade dos pactos democráticos no Brasil con-
temporâneo. Não é de espantar que esse processo culmine na ampliação das vul-
nerabilidades e iniquidades, que agravam a violação da integridade dos sujeitos
criminalizados e conferem o caráter racialmente genocida dos sistemas penais. O
Estado, segundo Lúcia Xavier (2018, p. 352-353):

[...] aposta na morte física e social da pessoa condenada pelo


crime de “ser quem é”, negros. Pois, num país que não existe
autorização legal para a morte ou para a supressão de direitos
fundamentais, essas ações se circunscrevem num projeto geno-

316 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
cida [...]; reconhecer o projeto genocida em curso composto por
morte e encarceramento, nos obriga a uma revisão do sentido
da democracia e do direito quando tratamos de grupos raciais/
étnicos excluídos.

Desse modo, “o refúgio mais certo [do racismo] é o sistema prisional” (DAVIS,
2018, p. 111). O significante racial realiza a presunção de criminalidade, vinculan-
do-o às práticas de punição e ao castigo (STANCHI; REIS, 2018). Soma-se a isso
outros modos de controle e de instrumentalização da vida que perpetuam lógica
similar de modulação racista, que evidencia a administração penal2 da vida em
“zonas inteiras das cidades, onde os poderes públicos só aparecem para reprimir,
[e] são invadidas a qualquer momento, sob qualquer pretexto, por uma polícia
que pratica extorsões, falsifica flagrantes, tortura e mata” (KOLKER, 2002, p. 42).
Terror racial naturalizado, cromatismo da dominação, prática de morte-em-vida:
para que(m) serve o sistema penal quando não temos dúvidas de que “a gestão pe-
nal da insegurança social alimenta-se de seu próprio fracasso programado” (WAC-
QUANT, 2001, p. 145)?
Fracasso, mas funcional. Isto porque “a máquina mortífera de terror contra a
ralé livre”, como define Vera Malaguti Batista (2003, p. 145), é exitosa no que se
propõe: criar a arquitetura legal e institucional de exclusão e de extermínio ope-
rada pelas forças militares/policiais e pelo sistema de justiça criminal. E isso sob a
ordem democrática, com os braços armados do Estado mobilizados para a garantia
da paz (qual?), da segurança (de quem?) e da ordem (a que preço?). O genocídio,
então, passa a ser “condição necessária para que as hierarquias de humanidade se
mantenham” (PIRES; CASSERES, 2017, p. 1459). Não à toa, as políticas securitárias
nutridas por esses Estados racistas criam inimigos ficcionalizados que:

Vivem entre nós, mas não são verdadeiramente dos nossos,


devem ser rejeitados, postos no seu lugar ou simplesmente re-
cambiados para fora das nossas fronteiras, no contexto do novo
Estado securitário que atualmente marca as nossas vidas. A pa-
cificação interna, a guerra civil silenciosa ou molecular, as pri-
sões em massa, a dissociação entre nacionalidade e cidadania,
as execuções extrajudiciais no contexto da política criminal e pe-
nal contribuem para confundir a antiga distinção entre seguranc
interna e segurança externa, num contexto de exacerbação dos
sentimentos racistas (MBEMBE, 2017, p. 93).

2 Segundo dados do Banco de Monitoramento de Prisões do Conselho Nacional de Justiça


(CNJ), a população carcerária no Brasil era de 812.564 em julho de 2019 – a terceira maior população
carcerária do mundo. Desse total, 337 mil, o equivalente a 41,5%, eram presos/as provisórios/as e
aguardavam julgamento. De acordo com o último levantamento realizado pelo Departamento Peni-
tenciário Nacional (Depen), em 2016, a população encarcerada era predominantemente composta por
pretos e pardos (65%), identificações de cor que compõem o grupo racial negro. Mais da metade do
total de presos era de jovens entre 18 e 29 anos. A maior parte das acusações criminais estava ligada
ao tráfico de drogas (28%), cuja política proibicionista funciona como alicerce da lógica da guerra e da
atuação do aparelho repressivo-policial do Estado. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/sistema-car-
cerario/cidadania-nos- presidios/ Acesso em: 01 out. 2020.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 317


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
As instituições penais, ao tecer restrições sociais diversas às possibilidades de so-
brevivência e vida dignas, imprimem, histórica e compulsoriamente, práticas de
violência orquestradas contra as trajetórias de grupos marcados pela estigmatiza-
ção da criminalidade:

Atentando para realidade brasileira, a atuação estatal na produ-


ção da morte está inscrita nas diversas vulnerabilidades cons-
truídas em torno do segmento negro. A pauta de extermínio que
inundou os discursos do século XIX, principalmente com a proxi-
midade da abolição, será recepcionada no interior da República
dentro dessa nova metodologia. Assim, embalado na cantiga
da democracia racial, o Estado foi, pela precarização da vida do
contingente negro, construindo as condições para o descarte do
segmento (FLAUZINA, 2006, p. 100).

É nesse contexto que os atos excepcionais de violência são normalizados em


territorialidades racialmente designadas, promovendo a ostensividade como for-
ma de direito em nome de políticas securitárias. Em prol da manutenção dos privi-
légios da branquitude, a população negra é morta, torturada e encarcerada pelas
forças policiais do Estado Soberano. Porque, para a manutenção da seletividade do
sistema penal, exige-se o controle social violento, que tem como paradigma secu-
ritário o incremento da letalidade do sistema penal (REIS, 2020).
Não deixa de ser curioso, igualmente, o debate suscitado em torno da privati-
zação das prisões quando o superencarceramento passa a ser uma realidade. Se
a liberdade é um dos valores centrais do mundo neoliberal e a seguranc o seu
produto rentavél, a pena privativa de liberdade, em contrapartida, se torna o me-
canismo privilegiado da burocracia penal em resposta às desordens inerentes à
disseminação da insegurança social e da consequente marginalização urbana. Se
“todo camburão tem um pouco de navio negreiro”3, ele aporta diretamente nas
instituições de confinamento penal.
Nas brechas da discussão acerca da legitimidade de punir, na fenda instaurada
entre a função da prisão e o objetivo da empresa, multiplicam-se as situações vio-
latórias e reiteram-se as críticas ao cárcere como instrumento de controle social e
geração de lucro por meio da expansão de sua clientela. Sabe-se que a prevalên-
cia da defesa do encarceramento em detrimento de alternativas penais agrava a
superlotação das unidades prisionais, acentua práticas autoritárias no controle da
violência e o racismo institucional, que impõe penas mais duras e rigorosas aos
segmentos historicamente subalternizados: negros e pobres4.

3 O RAPPA. Todo camburão tem um pouco de navio negreiro. Rio de Janeiro: Sony. 1994. Disco
sonoro.
4 Segundo o IPEA, em relatório de pesquisa divulgado em 2015 e intitulado A aplicação de
penas e medidas alternativas no Brasil, o rigor da Justiça Criminal com negros é maior comparado aos
brancos, que têm mais acesso às penas alternativas: “Existe um maior número de réus negros nas varas
criminais, onde a prisão é a regra, e maior quantidade de acusados brancos nos juizados, nos quais pre-
valece a aplicação de alternativas penais”, informou o estudo. Pode-se concluir, sem dificuldade, que

318 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O exercício da descolonização das práticas jurídicas e dos sistemas de justiça pe-
nais exige a elaboração de uma gramática decolonial de análise crítica e das lutas,
com vistas a enfrentar os obstáculos do racismo/sexismo institucionais e seus efei-
tos deletérios. As hierarquias raciais e sexuais, que estão na base da colonialidade
das relações de poder, (re)produzem estereótipos essencialistas e modelos discri-
minatórios, que respaldam a desumanização de sujeitos não brancos.
As necropolíticas carcerárias em curso evidenciam que “o dilema entre recu-
perar e punir dissolve-se, em verdade, na constatação de que o sistema [peni-
tenciário] constitui aparelho exemplarmente punitivo e funciona exclusivamente
como depósito de corpos e mentes” (FISCHER; ADORNO, 1987, p. 78). Pois,

A forma como nosso sistema penal incide sobre os corpos está


condicionada pela corporalidade negra, na negação de sua hu-
manidade. [...] Assim, o racismo deu o tom e os limites à violen-
cia empreendida pelo sistema penal, e este a carrega consigo na
direção e toda clientela a que se dirige. É o racismo que controla
o potencial de intervenção física do sistema: daí toda sua agres-
sividade (FLAUZINA, 2006, p. 82).

A alternativa que emerge a partir da abordagem decolonial não está dissociada


das práticas e das lutas concretas de sujeitos corpo-politicamente situados. So-
bretudo em sociedades atravessadas pela razão colonial e pelo arranjo estrutural
da violencia, no cerne do qual a tortura e o encarceramento não são meras con-
sequencias, mas modos de funcionamento da política de extermínio dos inimigos
racializados. E que apontam, igualmente, para o imaginário de violencia que fun-
damenta subjetividades, agências e instituições marcadas pelo expediente civiliza-
tório e marginalizante (REIS, 2020b).
O debate em torno da descolonização dos sistemas de justiça criminais, desta
feita, não prescinde da discussão epistemológica, ontológica e política, especial-
mente no que concerne à estigmatização de sujeitos racial e sexualmente inferiori-
zados. Por isso, interrogar o sistema de privilégios e prejuízos engendrado por ela
é fundamental para uma crítica radical ao sistema de justiça criminal, implicada nas
lutas antirracistas/antissexistas. E que, talvez, possa ampliar os horizontes em dire-
ção ao desencarceramento e a uma criminologia apreensível em pretuguês, como
propõe Thula Pires (2017), que paute “raça, classe, sexualidade e outras categorias
genderizadas como princípios estruturais e estruturantes da sociedade contempo-
ranea”, na contramão dàs “práticas utilitaristas e pulverizadoras de vidas huma-
nas” (STANCHI; DIAS, 2018, p. 17). De vidas negras.

há nas próprias insta cias do direito penal “processos de construção de desigualdades e de reprodução
de opressões nas instituições brasileiras, que conferem a cor negra aos nossos cárceres”. Disponível
em: http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/relatoriopesquisa/150325_relatorio_apli-
cacao_penas.pdf. Acesso em: 01 out. 2020

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 319


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
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AUTORIA
Diego dos Santos Reis
Universidade Federal da Paraíba/Professor Adjunto
E-mail: diegoreis.br@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6977-7166
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4681354757357359

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 321


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A NATURALIZAÇÃO DA EXCEÇÃO: A GUERRA
JUSTA CONTEMPORÂNEA

Maira Damasceno

Para a parede e algemas na mão;


Para o meio do mato você é arrastado;
E uma arma é apontada em sua direção;
De repente um tiro é disparado (BUM);
E uma vida é arrancada sem compaixão;
Por esses falsários que dizem ser
a nossa proteção.
(Policiais, De menos Crime, 1995)

INTRODUÇÃO
Este trabalho, pretende refletir brevemente acerca a naturalização dos assas-
sinatos em confrontos policiais, desde que, “justificados” pelo fato da vítima ser
“bandido”, ou possuir alguma passagem pelo sistema prisional. Tal qual uma “guer-
ra justa”1, ou seja, brechas jurídicas e morais que permitem os assassinatos através
de determinadas regras que envolvem decisões impulsivas e subjetivas, como a le-
gítima defesa, presente no artigo 232 do código penal, e o “iminente risco de vida”,
regra que permite ao policial utilizar a força, representada aqui, por suas armas
municiadas pelo Estado. Ano após ano, as estatísticas de mortes em confrontos so-
mente aumentam. Porém, a morte em confrontos policiais deveria ser a exceção,
pois, a regra vigente é a defesa da vida. Fica a questão: defesa de que vidas? As ví-
timas são majoritariamente jovens e negros e, em primeiro momento, acusados de
tráfico ou roubo. No segundo momento, descobre-se que alguns seriam culpados,
outros, inocentes. Mas, se não há pena de morte no Brasil, por que tantas pessoas
pretas são mortas, inocentes e culpados, sumariamente por agentes do Estado,
sem direito à investigação e julgamento justo?

1 A doutrina da “Guerra Justa”, ganhou notoriedade através de Agostinho, padre católico que
viveu no século 4 e acreditava que uma guerra poderia ser justa, desde que, tivesse como finalidade
a defesa, alcançar a paz e evitar o mal maior. No século 11, outro padre católico, Tomás de Aquino,
utiliza Agostinho como fonte e cria critérios para que uma guerra fosse considerada justa. Desse modo,
justificavam moralmente as guerras consideradas justas pela Igreja e seus parceiros. Esse dispositivo foi
amplamente utilizado por colonizadores europeus em suas invasões aos continentes africano, asiático
e americano contra quem não colaborava com os projetos coloniais.
2 Art. 23 - Não há crime quando o agente pratica o fato: I - em estado de necessidade; II - em
legítima defesa; III - em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. Disponí-
vel em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/del2848compilado.htm. Acesso em outubro
de 2020.

322 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A regra contemporânea, apesar de não ser oficial, parece ser o pré julgamento,
a partir do preconceito histórico enraizado no país e em suas instituições. A justiça e
a polícia, no Brasil, foram criadas, entre outras coisas, para garantir os direitos dos
brancos proprietários sobre os pretos escravizados, principalmente dos insurgen-
tes. A igualdade jurídica, tão propagada atualmente (sob a bandeira do “somos to-
dos iguais”), foi criada sob séculos acumulados de injustiças, não bastando, assim,
para reverter a situação estrutural, chamada, pelo sociólogo peruano Aníbal Quija-
no (1997, 2010), de “colonialidade de poder”, ou seja, a continuidade contempo-
rânea das estruturas do poder colonial, que classificam, racializam e descartam os
seres, conforme a conveniência do projeto de poder em voga.
A colonialidade do poder é tão presente e naturalizada que, é relativamente co-
mum, familiares de vítimas atestarem sua inocência, ou se conformarem com o
“destino” de alguém. Nesse sentido, pretende-se discutir a partir de questões histó-
ricas relacionadas com a frase: “ele não era bandido” vista em diversas falas poste-
riores à mortes originadas em confrontos policiais. Tratados como “casos isolados”
pelos Estados, essas, cada vez mais frequentes, penas de morte são (in) justificadas
tal qual uma guerra justa. Se é “bandido” pode ser morto? E, que critérios fazem da
pessoa ser/virar um marginal à Lei? Através de revisão de documentos históricos e
análise crítica de discursos estatais de época, pretende- se explorar a historicidade
das narrativas de classificação subjetiva que envolvem categorias como pobre tra-
balhador versus pobre bandido. Enquanto o primeiro é tolerado, o último merece
a aniquilação sumária, ou seja, uma pena de morte inconstitucional, porém, mesmo
assim, praticada persistentemente por agentes da Lei e, de certo modo, naturali-
zada pela população.

ANTECEDENTES: A PENA DE MORTE AOS PRETOS NO BRASIL


A violência, sempre foi um meio eficaz de manter a opressão. No Brasil, foi
vastamente utilizada contra a população escravizada, que não era possuidora de
direitos, mas de muitos deveres, como o de não se revoltar, por exemplo. São vas-
tamente conhecidos, atualmente, os métodos aflitivos e coercitivos de desumani-
zação aplicados aos pretos Brasil afora, para mantê-los nos lugares em que os colo-
nizadores acreditavam que deveria ser o deles: o de submissão. Para que isso fosse
possível, inúmeras leis regulatórias de direitos dos brancos proprietários (muitos
deles políticos) foram promulgadas, para melhor auxiliar os propósitos racistas e
desumanizantes.
Nesse sentido, temos a Lei nº4, de 10 de junho de 1835, exclusiva para a puni-
ção dos escravizados e resposta direta aos que estavam pretendendo revoltar-se e
transgredissem as leis imperiais sendo considerados marginais a essas e, por isso,
merecendo a morte:

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 323


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Art.1º Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escra-
vas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem
veneno, ferirem gravemente ou fizerem outra qualquer grave
offensa physica a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou
ascendentes, que em sua companhia morarem, a administrador,
feitor e ás suas mulheres, que com elles viverem. Se o ferimento,
ou offensa physica forem leves, a pena será de açoutes a pro-
porção das circumstancias mais ou menos aggravantes. (BRASIL,
1835)

Para ser enquadrado nessa lei e ser aplicada a pena de morte, o critério era: ser
preto escravizado e ofender fisicamente o branco proprietário, o administrador ou
o feitor, além, dos descendentes desses. Ou seja, todos que tinham o direito de
realizar ofensas ao escravizado, deixando bem exposta a relação de poder e violên-
cia, presentes nessa sociedade, além, de mostrar a representação do “marginal”,
merecedor da morte.
De forma comparativa, temos o Decreto de 23 de maio de 1821, que “Dá pro-
vidências para garantia da liberdade individual” (BRASIL, 1821) e era destinado às
pessoas “livres”:

Ordeno, que desde a sua data em diante nenhuma pessoa livre


no Brazil possa jamais ser presa sem ordem por escripto do Juiz,
ou Magistrado Criminal do territorio, excepto sómente o caso
de flagrante delicto, em que qualquer do povo deve prender o
delinquente. (...) que, em caso nenhum possa alguem ser lan-
çado em segredo, ou masmorra estreita, ou infecta, pois que
a prisão deve só servir para guardar as pessoas, e nunca para
adoecer e flagellar; ficando implicitamente abolido para sempre
o uso de correntes, algemas, grilhões, e outros quesquer ferros
inventados para martyrisar homens ainda não julgados a soffrer
qualquer pena afflictiva por sentença final; entendendo-se to-
davia que os Juizes, e Magistrados Criminaes poderão conservar
por algum tempo, em casos gravissimos, incomunicaveis os de-
linquentes, contanto que seja a casa arejadas e commodas, e
nunca manietados, ou soffrendo qualquer especie de tormento.
(BRASIL, 1821)

É perceptível, o tratamento diferenciado destinado aos livres e aos escraviza-


dos. Mesmo a pena de morte, quando aplicada aos livres, poderia ser convertida
em prisão perpétua, ou trabalhos forçados através de apelação judicial em 1ª ins-
tância, enquanto a apelação dos escravizados era somente através de uma mano-
bra judicial, muitas vezes requerida pelos próprios proprietários dos escravizados,
para impedir o prejuízo por sua morte, segundo levantamento de Ricardo Figueire-
do Pirola (2012). Chama a atenção, ainda, a proibição de flagelos aos presos atra-
vés de acomodações impróprias, além de proibir também o uso de algemas ou
materiais que causassem martírios, nem pena aflitiva.

324 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A partir do Decreto Nº1.310 de 2 de janeiro de 1854, há a instrução para os tri-
bunais não mais aceitarem as apelações dos escravizados e as remeterem somente
ao imperador:

Declarar que a Lei de 10 de Junho de 1835 deve ser executada


sem recurso algum (salvo o do Poder Moderador) no caso de
Sentença condemnatoria contra escravos, não só pelos crimes
mencionados no Artigo primeiro, mas tambem pelo de insur-
reição, e quaesquer outros em que caiba a pena de morte (...)
(BRASIL, 1854) 3

Ampliando, ainda, o alcance da Lei nº4 de 1835, aos insurgentes e revoltosos


e não mais, somente aos ofensores de proprietários e agregados. Segundo a pes-
quisa de PIROLA(2012), inicialmente, D. Pedro II quase não concedia graças aos
escravizados, porém, o número foi aumentando com o passar do tempo, mas não
por bondade do imperador, pois segundo PIROLA “(...)o processo sistemático de
comutações que passou a adotar o Imperador, naquela época, não foi acompanha-
do da publicação de nenhuma lei ou decreto que colocasse um fim definitivo na
pena capital no Brasil.” (2012, p.290).

ACABOU A PENA DE MORTE AOS PRETOS NO BRASIL?


Segundo consta em duas matérias do ano de 2016, do portal de notícias do Se-
nado Federal, intituladas “Há 140 anos, a última pena de morte do Brasil” e “Jornal
de Alagoas narrou em detalhes última pena de morte executada no Brasil”4 que,
segundo as fontes, teria ocorrido no ano de 1876 na cidade de Pilar, Estado de
Alagoas. A vítima seria o escravizado Francisco, acusado e sentenciado pela morte
de um capitão da Guarda Nacional e sua esposa, fato documentado pelo jornal da
cidade:

Declarou que ia morrer, mas que ninguém se gloriasse com a


sua morte, que havia sido um dos assassinos do capitão João
de Lima, porém que o fato não se dera como se contava e que
só ele e Deus sabiam, e, finalmente, que pedia perdão a todos e
que a todos também perdoava. (...)Subiu a escada do patíbulo
[palanque de execução] a pé firme, seguido de uma praça, e
logo após o carrasco, seguido de outra (...) Chegado que foi ao
topo da escada, dirigiu-se ao centro do patíbulo, torceu o laço,
que estava colocado sobre a nuca, para a garganta e disse adeus

3 Decreto Nº1.310 de 2 de janeiro de 1854. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/


fed/decret/1824- 1899/decreto-1310-2-janeiro-1854-558491-publicacaooriginal-79822-pe.html Aces-
so em outubro de 2020.
4 4 Fonte: Agência Senado. Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/mate-
rias/2016/04/04/ha-140-anos- a-ultima-pena-de-morte-do-brasil e https://www12.senado.leg.br/
noticias/materias/2016/04/04/jornal-de-alagoas- narrou-em-detalhes-ultima-pena-de-morte-execu-
tada-no-brasil. Acesso em outubro de 2020.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 325


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ao povo acenando com o chapéu, que logo após deixou cair ao
chão. Em seguida, ajoelhou-se e principiou a acompanhar um
dos sacerdotes que faziam parte da execução em rezar o Cre-
do. Nessa ocasião, o carrasco vendou-lhe os olhos e, ao chegar
às palavras ‘vida eterna’ desprendeu-se do patíbulo ao simples
movimento do carrasco para impeli-lo. Depois o carrasco, des-
cendo pela corda, apoiou os dois pés sobre os ombros do conde-
nado e forcejou por abreviar- -lhe a morte, o que se reproduziu
por duas vezes e foi o mais horrível da cena. Estava consumado
o ato. (Jornal do Pilar, 1976 apud Agência Senado, 2016)

Ricardo Pirola, em sua tese, nos diz que essa data e década (1870), foi relaciona-
da ao último enforcamento, pois, coincidiu com as visitas de D. Pedro II ao poeta
Victor Hugo, em Paris, que era crítico às penas capitais. PIROLA (2012) acredita
que foi uma espécie de marketing feito pelo imperador com a pretensão de “(...)
reforçar a imagem de um monarca que acompanhava o pensamento ‘civilizado eu-
ropeu’”. (p. 290). O autor cita, ainda, um caso de enforcamento de escravizado em
1855, onde, um proprietário, dois libertos e um escravizado foram condenados
pelo assassinato de uma família inteira, desafeto do proprietário.
Desse modo, essa pequena exposição, nos permite refletir, historicamente, so-
bre umas das questão colocadas inicialmente: que vidas são protegidas? Até 1890,
oficialmente, no Brasil a prioridade era a proteção dos homens livres e proprietá-
rios, contra o maior medo deles: uma revolta dos escravizados, como a “Revolta
das Carrancas” citada como estopim para a criação da Lei nº 4, de 1835, que esti-
pulava a pena de morte aos escravizados que cometiam ofensas físicas aos proprie-
tários, seus agregados e famílias. Antecedendo o projeto de 1833, que viraria a Lei
nº4, o ministro da justiça escreve as seguintes palavras:

As circunstâncias do Império em relação aos escravos africanos


merecem do corpo legislativo amais séria atenção. Alguns aten-
tados recentemente cometidos contra fazendeiros convencem
dessa verdade (...) A punição de tais atentados precisa ser rápida
e exemplar. (Agência Senado, 2016)

Segundo a fonte, os atentados citados pelo ministro, são revoltas realizadas


em Minas Gerais e São Paulo, onde escravizados matam famílias inteiras de pro-
prietários em diversas fazendas, inclusive, a família de um deputado. Portanto, o
medo de uma insurreição, como a acontecida no Haiti, a poucos anos (1791/1804)
pondo fim à escravidão e levando a morte muitas pessoas pertencentes à elite
haitiana “Os dominantes do Brasil agem como agem; Os dominantes do Haiti se
liga”(DAMASCENO, FERREIRA, PEREIRA, 2000) aí foi um fator que apressou o en-
durecimento das leis contra os escravizados. Ou seja, tal qual uma guerra justa, os
escravizados eram os alvos que poderiam morrer na forca, caso revidassem com
proporcionalidade de forças aos seus algozes.

326 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
PENA DE MORTE EXTRA OFICIAL:
O ESTADO DE EXCESSÃO CONTEMPORÂNEO
No ano de 1888, é concedida a liberdade dos escravizados e em 1890 a pena de
morte é extinta oficialmente, porém, os estigmas e estereótipos, construídos pelo
medo e violência do branco, de que os pretos revidassem as agressões de séculos,
continuou, e, de certo modo, até piorou. Os grandes proprietários agora contrata-
vam mão de obra livre e assalariada vinda da Europa e os ex escravizados, agora,
desocupados de seus antigos trabalhos, causam ainda mais medo nos brancos.
As questões em relação ao trabalho sempre pesaram muito para as concepções
opacas dos brancos proprietários, que não reconheciam o trabalho feito pelos es-
cravizados como tal, pois, esse reconhecimento ficava restrito ao que eles próprios
faziam ao gerir seus negócios, e nisso, inclui-se, a vida e os corpos dos escravizados,
tal qual um maquinário moderno. Configurando uma inversão total da realidade,
essa noção distorcida e diferenciadora sobre profissão e ocupação, perdura até os
dias de hoje. Os cargos de chefia, ou seja, gerenciamento de pessoas e processos,
ainda são os mais valorizados, enquanto outros, de execução, são extremamen-
te desvalorizados, subalternizados e mal pagos, vistos como mera “ocupação” ou
“serviço”. Fato é, que sobra mão de obra no Brasil e falta oportunidades de qualifi-
cação, fazendo felizes os proprietários contemporâneos que enriquecem às custas
de salários mínimos.
Historicamente, o trabalho foi utilizado como regra de boa conduta em diver-
sas ocasiões. Para citar uma, não muito distante da Proclamação da República em
1889, temos a era trabalhista de Getúlio Vargas a partir de 1930. Como o nome
bem diz, o trabalho foi muito valorizado nessa época e foi critério para a polícia
realizar o enquadramento dos “marginais”, “bandidos” e “desocupados” que es-
tavam sem a carteira de trabalho, recém instituída, devidamente assinada. Para o
contexto da época, após 40 anos da libertação dos escravizados, intenso processo
de importação de mão de obra europeia, as desigualdades já existentes, somente
aumentam, pois o Estado, aos pretos, só oferece violência e repressão. Assim, já
sabemos quem foram os maiores prejudicados por essas políticas entre os anos de
1930 à 1964, bem como, as vidas selecionadas à proteção social.
A ditadura militar, iniciada em 1964, ampliou o tratamento de torturas desuma-
nizantes, originalmente destinado somente aos pretos e índios, à todos que eram
considerados inimigos do Estado, desde 1920, representado pelo “comunismo”
que pregava o levante dos oprimidos, contra o sistema opressor, e, no Brasil, o nú-
mero de oprimidos sempre foi maior que o total da elite. Novamente, percebemos
aqui, aquele antigo medo do revide, que os proprietários sempre conservaram em
relação à população preta e oprimida através da violência.
Com a chegada da democracia, a situação periférica não é privilegiada e está
realmente crítica com a cristalização de imaginários de marginalização e pericu-
losidade cultivados por proprietários desde o período colonial. As percepções de
parte da elite, que havia se envolvido com as questões da abertura democrática, os

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 327


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
levaram à falsas concepções de liberdade, pois, nas periferias os “autos de resis-
tência”, utilizado, segundo Fernanda Pradal (2017), a primeira vez em 1969 no Rio
de Janeiro, estava em crescente uso. Também, a “guerra às drogas”, acirrada no
início de 1990, impulsionou o assassinato de traficantes “suspeitos”. Em sua tese,
a autora identifica análises desses “autos de resistência”, de 1990 atá 2017, e tem
o seguinte resultado:

(...) os elementos centrais neste procedimento de legitimação


legal do extermínio de um contingente populacional formado
de jovens, negros e moradores de favelas ou periferia são: i) a
modificação da cena do crime; ii) a ausência de elementos no
inquérito policial que contraponham a narrativa policial sobre a
morte; iii) indícios de execuções em exames cadavéricos ou au-
sência desses exames no inquérito; iv) modelo genérico de regis-
tro dos fatos, repetido em muitos diferentes casos; e v) inversão
do sujeito investigado, passando a conduta anterior da vítima de
homicídio a ser objeto de investigação (se os familiares afirmam
que era traficante, se não tinha família etc..), inclusive com a
incorporação da Folha de Antecedentes Criminais do morto no
inquérito policial (...). A figura do “traficante” enquanto sujeito
perigoso e a presunção de um ambiente de “estado de guerra”
legitimam, a priori, a morte de centenas de pessoas anualmente
no Estado do Rio de Janeiro (...) (PRADAL, 2017, p.164)

Estas análises, expõem a realidade do racismo estrutural brasileiro, onde, o


preto e pobre é sentenciado à morte, sempre considerado um elemento perigoso
para uma parte da sociedade, ele incomoda e assombra, por isso, a “excessão”
na violência estatal sempre foi necessária para conter os rebeldes. André Ricardo
Dias Santos, no trabalho “Violência e poder: o conceito de Estado de Exceção para
Walter Benjamin e algumas de suas implicações na Filosofia Política contemporâ-
nea”(2010) nos diz que, “Na tentativa de legitimar seus meios –e fins –o direito
(que aqui explicitamente é política de Estado) forja uma convenção para obter a
legitimidade de determinada ação que tem por fim um bem (justiça) previamente
entendido como tal (p.109)”. Esse parece ser o caso do “auto de resistência”, uma
convenção de exceção, forjada para legitimar a continuidade das ações coloniais
de extermínio contra os jovens pretos no Brasil contemporâneo.
Assim, tal qual uma guerra ‘justa’, tão subjetiva e desigual quanto, as regras
são díspares e adaptadas conforme a necessidade de legitimação do momento. Se-
gundo interpretação de Fernanda Pradal (2017), na concepção de Michel Foucault
(1981) essas ações de exceção são a “(...) biopolítica da segurança pública belige-
rante nas periferias.” (p. 202). É ela que julga e decide, na hora, quem será prote-
gido e quem é descartável.

328 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conclui-se que, durante toda a história brasileira, os brancos proprietários vive-
ram sob o medo de que as populações oprimidas por eles, revidassem na mesma
proporcionalidade. Desse modo, as elites de todas as épocas buscaram na polícia e
justiça sua proteção, naturalizando e cristalizando, nas estruturas de poder, ações
de exceção e punições desumanizantes a grupos específicos, vistos como perigo
iminente, legitimando assim, o assassinato de uns, em prol da vida e bem estar
de outros, sendo internalizado até pelos próprios oprimidos. Pessoas não nascem
ruins, mas podem tornar-se amargas através dos seus processos de identidade mar-
cados pela histórica violência, na maioria das vezes refletidas em seus atos (Mem-
mi, 2007).
Para ser assassinado em confronto com maus policiais, ser culpado ou inocen-
te, não parece ser um critério tão relevante, quanto à cor da pele e o bairro onde
mora. Historicamente, no Brasil, a noção de “bandido” sempre foi manejada em
direção a criminalização de pretos e pobres, sendo algumas vezes ampliada a ou-
tros segmentos, mas nunca com tantas gerações de violações e vítimas estatais.
Portanto, fica exposta a proteção histórica de um grupo de brasileiros privilegiados
pela segurança pública, que, em nome de sua pretensa segurança, torna a exceção
deles, virar regra para outros.

REFERÊNCIAS

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Menos Crime, Rap das Quebradas. São Mateus/SP, gravadora Sky Blue/RDS, 2000.

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tólica do Rio de Janeiro, Departamento de Direito, 2017 QUIJANO, Aníbal. Colonialidad y
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XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 329


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
QUIJANO, Anibal. Colonialidade do poder e classificação social. In: SOUSA SANTOS, Boa-
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n. 16, p. 102-120, 24 abr. 2010.

AUTORIA
Maira Damasceno
CAPES/Universidade do Vale do Rio dos Sinos
E-mail: maira_dms@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2383-9883
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4704076171769241

330 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
UMA CRIMINOLOGIA MARCADA PELA
PERSPECTIVA PUNITIVA
Andaraí Ramos Cavalcante

INTRODUÇÃO
Este artigo tem como objetivo evidenciar que no Brasil, historicamente, tem
predominado uma criminologia marcada pelo punitivismo, perspectiva esta que
tem sido imposta principalmente a um determinado grupo da sociedade brasileira:
os corpos negros. O estudo é parte de um capítulo da tese que teve como objeto de
estudo o nexo entre o racismo e as formas de concretização das manifestações de
violências contra jovens negros no Brasil, resultante de uma construção histórica
do racismo em moldes estruturais, marcante nas relações sociais nesta sociedade
e estruturante no nosso país, a partir da análise de casos de assassinatos de jovens
negros, decorrentes de ações de policiais militares e de linchamentos praticados
por populares, na cidade de Salvador-BA.
Desta forma, consideramos importante ressaltar a figura de Luís Gama, que vi-
veu no século XIX, filho de uma africana, Luísa Mahi numa liderança negra parti-
cipante da Revolta do Malês. Em 1860, passou a atuar como jornalista, advogado,
abolicionista, defendendo com veemência, em sua prática enquanto advogado e
sua atuação jurídica, a luta pela libertação dos escravizados. Segundo registros,
“sozinho, foi o responsável pela libertação de mais de mil cativos”. Consta ainda
que atuava “exclusivamente com o uso da lei”, conforme as normas que prevale-
ciam na época.
No estudo, busca-se evidenciar os diversos discursos e representações que ali-
mentam o imaginário social brasileiro acerca das penas, punições e castigos. Res-
saltando também que ao estudar a questão da punição na sociedade brasileira é
necessário abordar o tema da polícia, principalmente a Polícia Militar (PM) e serão
apresentados, em linhas gerais, aspectos de programas de Segurança Pública. Em
acordo com o que ficou registrado a partir da última semana do mês de maio de
2020, o modus operandi da polícia no Brasil e em vários outros países, com des-
taque para os Estados Unidos, vem sendo questionado, após mais um episódio de
violência de policiais contra um homem negro.

PUNITIVISMO COMO REFERÊNCIA


Iniciamos citando Freitas (2015, p. 13), que ressalta os diversos discursos e
representações que alimentam o imaginário social brasileiro acerca das penas,
punições e castigos, tais como: superlotação dos presídios; cenas de torturas;

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 331


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
“perversos chefes do crime”; notícias de linchamentos; execução de jovens que
supostamente têm envolvimento com práticas delituosas; questões referentes à
epidemia das drogas e à reiterada noção de guerra ao tráfico e aos traficantes,
com destaque para “militarização de comunidades e ocupação de territórios”; a
formatação e realização de programas e propagandas de TV com divulgação de
propostas que visam leis penais mais severas e mesmo o extermínio dos “crimino-
sos” e “delinquentes”.
Assim, o imaginário da solução da criminalidade a partir da “ideia de um Estado
penal forte e de um sistema de justiça criminal implacável” ganha hegemonia na
sociedade. Reafirmam- se, desse modo, os desejos punitivos hipertrofiados, não só
por parte do “cidadão comum” como também no meio parlamentar, “ou mesmo
nos campos de reflexão acadêmica sobre o direito” (FREITAS, 2015, p. 13).
Para discutir a questão do punitivismo, Flauzina e Freitas, dentre outros, des-
tacaram o processo de tramitação da lei 13.142/2015, que trata do agravamento
das respostas penais aos crimes de homicídio e lesão corporal praticados contra
os mais diversos operadores e seguimentos da área da segurança pública. Fica evi-
dente a contradição em relação aos “significados do alargamento do rol dos crimes
hediondos para o sistema de justiça criminal, tendo em conta o quadro geral de
homicídios no país, suas implicações raciais e os desafios atinentes à vitimização e
letalidade policial” (ibid., p. 8).
Desta forma, é importante assinalar que o contexto contemporâneo brasileiro
tem sido marcado pela prevalência, no parlamento, de propostas de leis e proces-
suais penais impulsionadas por um suposto crescimento da violência, que acaba
contribuindo para implantar na sociedade um “implacável combate por meio da
via jurídica penal”. As observações de Freitas (2015) são de fundamental importân-
cia, no sentido de evidenciar que a aprovação da lei 13.142/2015, entre outras, só
contribui para agravar ainda mais o quadro da violência brasileira, marcada pelos
altíssimos índices de “mortes de jovens-homens-negros”, as expressivas taxas de
encarceramento e o modelo de segurança baseado em paradigmas bélicos, quan-
do na verdade esses seriam os temas que mais deveriam preocupar gestores públi-
cos, intelectuais e legislativos brasileiros (ibid., p. 31).
Em linhas gerais, é como se estruturam o contexto histórico das leis, a ideia
do direito penal, bem como a criminologia em um país marcado pela ocorrência
da escravidão. Oshima (2012) destaca que, nas últimas décadas do século XIX, a
criminologia começa a ganhar força no Brasil, tratando também da importância e
aceitação no país das ideias sobre criminologia expostas pelo médico italiano Ce-
sare Lombroso. Tendo vivido no século XIX, Lombroso relacionava, em seu estudo,
doenças e crimes, sendo que suas pesquisas foram realizadas em prisões e asilo, e
focalizava também o homem negro.
Duarte (2017), discutindo sobre direito penal, criminologia e racismo, estabe-
lece três momentos marcantes no diálogo “entre a questão criminal e as relações
raciais”. Primeiro, o autor identificou a especialização da Criminologia como ciên-

332 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
cia, cujo período é a década de 1870, sinalizando ainda que a obra inaugural foi O
Homem Delinquente, de Césare Lombroso. Tratava da existência de uma “crimi-
nalidade diferencial dos negros e indígenas que era explicada/justificada com o
argumento da inferioridade das raças” (DUARTE, 2017, p. 28).
Um segundo momento seria a partir da década de 1960, período caracterizado
por uma “revolução de paradigmas científicos” no âmbito da Criminologia, devido
à ocorrência do que seria para o autor um “impulso desestruturador de descons-
trução e deslegitimação do sistema penal” (ibid., p. 30). As consequências foram
denúncias da violência institucional e da desigualdade de tratamento no sistema de
justiça criminal. Quanto ao terceiro momento, o ponto central foi, de acordo com o
autor, a convivência contraditória da defesa de propostas de desencarceramento,
descriminalização e despenalização, fundamentadas em diversos movimentos de
política criminal (abolicionismo, minimalismo, garantismo etc.).
É importante destacarmos também a postura de Nina Rodrigues em relação ao
código penal, já que ele foi influenciado pelas ideias do Conde Arthur de Gobineau.
Tido por muitos não só como o pai da teoria da degenerescência, mas também o
pai das teorias racistas, ele considerava que a miscigenação contribuía para a dege-
neração. Neste sentido, defendia a impossibilidade de punir da mesma forma raças
com níveis de evolução diversos, de certa forma, contribuindo com punições mais
severas para um determinado grupo em especial.
Sobre a questão da punição, trazemos ainda Carvalho (2013), a partir da for-
mulação da pergunta: Por que castigar? Este autor afirma que a questão suscitada
pode ser entendida em dois sentidos diferentes: o científico e o filosófico. Mas,
argumenta que a primeira indagação estaria sustentada na existência do fenôme-
no pena (fato punição), significando problemas de ordem histórica ou sociológica
(criminológica, sobretudo). A segunda questão revelaria o dever-ser (jurídico) da
pena, isto é, do direito de punir, que remeteria às prescrições normativas de acor-
do (FERRAJOLI, 1998).
A partir daí, ressaltamos também o fenômeno do encarceramento massivo,
marcante na realidade contemporânea e também brasileira. Esta estratégia de
prisionalização tão utilizada pelo Estado atual não vem obtendo os resultados es-
perados de redução das taxas de criminalidade. Evidencia, por outro lado, a sele-
tividade do sistema penal e a vulnerabilidade de determinadas pessoas e grupos à
criminalização, chamando a atenção para a tensão entre Estado de polícia (poder
de coação direta) e Estado de direito (limitação do poder).
Com Codino (2015), avançamos no debate da necessidade de construção de
um conjunto de teorias que averiguem a especificidade da realidade latino-ame-
ricana e africana, no que foi identificado pelo autor como a criminologia do sul,
ou primeira criminologia autóctone ao continente. Traz como marco a Venezuela,
onde foram realizados eventos de grande importância que reuniram criminólogos
europeus e latino-americano nos anos 70, com o objetivo de analisar a violência,
momento liminar na criminologia regional.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 333


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O referido autor dá um destaque especial ao fato de que a criminologia tra-
dicional, marcada por ideias punitivistas estranhas à realidade latino-americana,
entre outras questões, não dispunha de ferramental para análise das especificida-
des destes países. Mas, com relação à realidade brasileira, mesmo com questiona-
mentos por parte da sociedade e movimentos sociais, críticas no âmbito do mundo
acadêmico e também, de certa forma, por parte de parlamentares, há ainda muito
por fazer para atingir outra perspectiva, a fim de “desafiar os estatutos legitimados
do racismo que não só promovem, mas, sobretudo naturalizam o terror do Estado”
(CODINO, 2015, p. 11).

PUNITIVISMO COMO PRÁTICA


A pesquisa mostrou que para estudar a questão da punição na sociedade brasi-
leira é necessário abordar o tema da polícia, principalmente a Polícia Militar (PM)
mas, por se tratar de uma questão complexa e de difícil abordagem, faremos ape-
nas algumas sinalizações. A criação da PM data do início do século XIX, e se es-
trutura marcada pela hierarquização, com a missão de realizar um policiamento
ostensivo e repressivo entre a população. Contudo, historicamente, vem ficando
evidente a forma diferenciada de proceder da força policial de acordo com a raça/
cor, condição social e território de moradia das pessoas com as quais lida. Uma atu-
ação que, em diversas situações, burla as leis ou faz o que em seu entendimento é
a justiça para públicos específicos.
Em acordo com o que ficou registrado na última semana do mês de maio de
2020, o modus operandi da polícia no Brasil e em vários outros países, com desta-
que para os Estados Unidos, vem sendo questionado. Nos EUA tornou o centro das
atenções diante de mais uma morte de um afro-americano George Perry Floyd Jr.
asfixiado em 25 de maio de 2020 por policiais brancos, em decorrência da violência
racial. A partir deste episódio, a reação do povo negro embasado nas palavras de
ordem “Vidas Negras Importam”, as mobilizações por justiça têm reunido milhares
de pessoas em várias partes do mundo; pelo menos nos EUA começam a ter como
resultado propostas de mudanças nessa forma de ação por parte da instituição
policial.
No Brasil, em relação à sua forma de atuação, algumas propostas têm sido fei-
tas: a desmilitarização da polícia, o fim da polícia e ainda a união das duas polícias,
a militar e a civil. Para se pensar em tais propostas, cremos ser necessária a seguin-
te observação: qualquer mudança só atingirá o objetivo de reverter as distorções
existentes na atuação da instituição policial se esta decorrer de um enfrentamento
do racismo estrutural por parte da sociedade brasileira.
Vale ressaltar que não é só a forma de atuação das polícias que tem que ser
repensada. Na verdade, são também necessárias ações efetivas por parte da socie-
dade brasileira relacionadas à questão da Política de Segurança, devido aos altos
índices de mortes violentas e por violência letal, como também em decorrência das

334 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
medidas tomadas pelos governos estaduais e federais na área da Segurança Públi-
ca, com destaque para as ações de intervenção e ocupação territorial, as Unidades
de Polícia Pacificadora (UPPs) no Rio de Janeiro. Já na Bahia, em especial em Salva-
dor, a ocupação territorial tem se dado através do programa de Base Comunitária
de Segurança Pública/Pacto Pela Vida.
Freitas (2015, p 31) apresenta de forma marcante o significado do que é e do
que tem sido a política e o modelo de Segurança Pública no Brasil, atentando que:

O modelo de segurança pública adotado no Brasil é resultado de


uma série de opções beligerantes e militarizadas que tem como
saldo índices insuportáveis de letalidade.

Nesse sentido, tendo por base os argumentos expostos por Freitas (2015), apre-
sentaremos, em linhas gerais, aspectosdos programas: Programa Nacional de Se-
gurança com Cidadania - PRONASCI, Programas Nacionais de Segurança Pública
/ Governo Federal e Política Pública de Defesa Social Programa Pacto pela Vida /
Governo do Estado da Bahia.
Conforme Lei nº 11.530 de 24 de outubro de 2007, que institui o Programa
Nacional de Segurança com Cidadania - PRONASCI1 e dá outras providências o Pro-
grama “Inova no combate ao crime” ao articular e implementar “políticas de segu-
rança com ações sociais”. Neste sentido, “prioriza a prevenção e busca atingir as
causas que levam à violência, sem abrir mão das estratégias de ordenamento social
e repressão qualificadas”.
Todavia, quando da sua implantação em Salvador, Souza (2009) apresenta qua-
tro aspectos que marcaram e de certa forma contribuíram para a inviabilidade do
programa. O primeiro deles foi “a distância existente entre a elaboração e a exe-
cução do programa”, dificuldades de articulação entre os municípios, divergências
quanto à necessidade da participação da sociedade civil. Por fim, o programa não
foi bem compreendido pelo corpo técnico-administrativo responsável pela sua im-
plantação.
O programa de Segurança Pública em vigência no Estado da Bahia foi implan-
tado através da Lei nº 12.357 de 26 de setembro de 2011, que institui o Sistema
de Defesa Social, o Programa Pacto pela Vida2, e dá outras providências. O Pacto
Pela Vida tem continuidade no governo em exercício. Tem como proposta a ideia
de atuação conjunta de várias secretarias de governo. Também estão previstas
ações estratégias “que objetivem, no âmbito do Estado da Bahia, a progressiva e
contínua redução das taxas de criminalidade, em especial aquelas relacionadas aos
Crimes Violentos Letais Intencionais”

1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2007/Lei/L11530.htm
2 https://www.jusbrasil.com.br/topicos/26380878/lei-n-12357-de-26-de-setembro-de-2011-
da-bahia.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 335


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Mas os dados sobre violência letal na Bahia evidenciam a gravidade da situação
e contradições do Programa. Segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública
20183,1.756 pessoas foram mortas, decorrentes de intervenções policiais entre
2014 e 2017,evidenciando crescimento de 137%, sendo que só em 2017, foram
668 mortes. No primeiro semestre de 2019, segundo o Monitor da Violência4,a
Bahia passou a ser o 3º estado do país com a maior quantidade de pessoas mortas
pela polícia, ficando atrás apenas do Rio de Janeiro, com 885 mortes, e de São
Paulo, com 426 vítimas.
O ano de 2018 foi marcado por outras ações na área da segurança pública por
parte do governo federal. O Plano Nacional de Segurança Pública5 foi lançado no
mês de fevereiro, com execução prevista para o ano em curso. No mês de abril do
mesmo ano, também foi aprovado na Câmara federal, o projeto de lei que cria o
Sistema Único de Segurança Pública e a Política Nacional de Segurança Pública e
Defesa Social.
O plano foi aprovado com previsão de vigência de uma década (2018-2028),
apresentando um conjunto de ações e metas, bem como traçar um contexto histó-
rico da situação da violência no Brasil e compromissos firmados pelo governo brasi-
leiro, inclusive relacionados com os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, que
contemplam “17 Objetivos e 169 metas, entre elas as que dizem respeito à redução
da violência, ao fomento de uma nova governança e da transparência dos sistemas
de justiça e segurança” (Plano Nacional de Segurança Pública, 2018, p. 09).
É importante ainda abordamos sobre a questão da Segurança que tem sido alvo
de discussões e proposta de alteração no cenário atual da sociedade brasileira em
função do posicionamento político do atual presidente. Pode-se citar como exem-
plos: alteração do Estatuto do Desarmamento, em vigor desde 23/12/2003, com o
objetivo de facilitar a posse de armas de fogo, ampliação dos tipos e quantidade de
armas que o cidadão comum pode ter em sua residência e também o aumento da
quantidade de munição.
A outra medida de grande repercussão foi o chamado Projeto de Lei Pacote
Anticrime, apresentado pelo ex Ministro de Justiça e Segurança Pública, que visa
alterar um conjunto leis em vigor e Código de Penal Brasileiro. O projeto que teve
com uma das questões mais polêmicas o excludente de ilicitude e, apesar das críti-
cas, foi aprovado mesmo com alterações.

3 https://www.forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2018/09/FBSP_ABSP_edicao_es-
pecial_estados_faccoes_2018.pdf
4 https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2019/10/14/monitor-da-violencia-bahia-e-3o-esta-
do-com-maior-no-de-pessoas-mortas-pela-policia-no-1o-semestre.ghtml
5 LEI Nº 13.675, DE 11 DE JUNHO DE 2018Plano Nacional de Segurança Pública https://www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13675.htm

336 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalizamos apresentando algumas possíveis alternativas para esse contexto
histórico marcado pela prevalência da ideia punitivista, propagada na realidade
brasileira, com o objetivo de pensar saídas para a questão da violência. Mas para se
pensar em tais propostas, cremos ser necessária a seguinte observação: qualquer
mudança só atingirá o objetivo de reverter as distorções existentes se esta decor-
rer de um enfrentamento do racismo estrutural por parte da sociedade brasileira
Vale destacar ainda, conforme e referenciada em Freitas (2015), a necessidade
da construção de “uma agenda que reduza o encarceramento” e o “controle da
violência pelas instituições”, mas destacando que para avançar na construção de
alternativas reais às violências a que são submetidos os grupos sociais historica-
mente excluídos, há necessidade de uma profunda inversão de prioridades. (FREI-
TAS, 2015, p. 38)
É importante também a pactuação de uma agenda em matéria penal, mas com
o objetivo de fugir das ciladas punitivas, visando a colocação em debate na socie-
dade brasileira de valores efetivamente democráticos, e para o enfretamento das
persistentes práticas autoritárias, da programada omissão em relação ao caráter
seletivo e violento do poder punitivo, buscando consolidar modelo atual de segu-
rança pública que seja democrático e garantista, conforme (FREITAS, 2015, p. 39),
mas que também tenha como perspectiva principal a defesa, desencarceramento,
descriminalização e despenalização.

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Ciências Criminais. vol. 135. ano 25. p. 17-48. São Paulo: Ed. RT, set. 2017.

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In Discursos Negros: legislação penal, política criminal e racismo. Brasília: Brado Negro,
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XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 337


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SOUZA Marcos Antonio de. O PRONASCI como políticas públicas para a cidade de salvador
– avaliação do processo de implantação e dificuldade. Trabalho de Conclusão de Curso
apresentado a RENAESP, PROGESP E UFBA Salvador – BA, 2009.

INFORMAÇÕESDO(A)(S) AUTOR(A)(ES)
Andaraí Ramos Cavalcante
Universidade Católica do Salvador
E-mail: andaraircavalcante@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7789717469180516

338 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
DO TRÁFICO AO PRESCRITO: REFLEXÕES
ANTIPROIBICIONISTAS E CONTRA COLONIAIS
SOBRE O RACISMO NA ESCOLA

Izabela Amaral Caixeta

ACENDENDO1
Como professora de sociologia da rede básica de ensino público, residente e
atuante em escola periférica da capital brasileira, percebo que mobilizar violências
no espaço escolar faz parte da nossa atuação institucional. Em meio as políticas de
inimizade (MBEMBE, 2017) hegemônicas presentes também no ambiente escolar,
é neste espaço que o racismo estrutural enquanto norma prescrita ganha contor-
nos didáticos. Como exemplo, o epistemicidio presente nos currículos coloniais,
nos livros didáticos eurocentrados e nos corredores que silenciam, fazendo-se ati-
vo nos constantes apagamentos de diversas referências outras. Também presente
nos rituais pedagógicos do silêncio (CAVALLEIRO, 2020) que comprometem e afe-
tam as relações étnico-raciais na escola.
Mesmo com as leis 10639/03 e 11645/08 que versam da imprescindível impor-
tância do ensino/estudo das histórias e culturas indígenas, africanas, afro-brasilei-
ras nos currículos escolares, ainda temos desafios reais de existência e alcance de
outros saberes, dos comunitários, dos periféricos, dos locais, dos saberes subalter-
nizados. Pois “um dos efeitos nefastos do racismo é o ocultamento e a tentativa de
destruição da memória ancestral.” (MACHADO, 2019, p. 05). A história contada nas
escolas é uma só, a partir da perspectiva dos ditos ‘vencedores, conquistadores,
europeus, civilizados’.
O racismo estrutural enquanto ideologia dominante também se apresenta atra-
vés das instituições (de)formadoras com a ausência de pessoas negras nos espaços
de poder dentro da escola, da invisibilidade, da criminalização, da animalização da
juventude negra (PONTES, 2017). Mesmo compondo a maioria na rede pública,
crianças e adolescente negras são muitas vezes compreendidas através de estere-
ótipos que perpassam por desafeto, violência, desumanização.

1 O nome das sessões aqui utilizadas são expressões puramente alegóricas inspiradas pelos
movimentos cíclicos do ato de fumar maconha, onde etapas como o ato de ascender, puxar, prender
e passar são permeados por diferentes ritualidades e contextos comuns que podem ser observáveis.
Esses passos também foram retratados na música “Cachimbo da Paz” (1997), do artista Gabriel, o
Pensador onde são abordadas , entre outras, as temáticas do proibicionismo, da hipocrisia acerca das
substâncias legais e ilegais e , principalmente, ao racismo contra os povos originários representado no
videoclipe de forma caricata como o “índio da paz”.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 339


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Muito desse estereotipo racista está associado a criminalização da pobreza, a
redução do jovem negro e periférico a uma relação com o tráfico de drogas e as
demais produções históricas raciais que nos envolvem.
Tema muito debatido na escola sob o viés moralista, cristão, desinformado e
racista, a tal ‘questão’ das drogas muitas vezes se restringe ao uso de maconha e a
justificativa de comportamento ‘desviante’ pelo uso de substâncias ilegais. Quase
nunca se aborda a importância de uma educação sobre drogas, um investimento
em compreender a saúde em seu sentido amplo, de se repensar sobre a medica-
mentalização de nossas vidas e a hipocrisia por traz de discursos proibicionistas.
Nesse breve ensaio pretendo refletir sobre a relação intrínseca entre educação,
racismo e proibicionismo, através dos impactos da colonização ao longo da moder-
nidade capitalista em nosso país e suas instituições. Pensar em que medida a escola
pode atuar na manutenção de um projeto colonizador de encarceramentos, da
criminalização da juventude negra e para a perpetuação do racismo estrutural.
A contra-colonialidade como pensamento-ação é aqui trazida enquanto com-
promisso com a transformação dessa realidade concreta, desigual e ceifadora de
vidas pretas e africanas em diáspora, de vidas originárias, de vidas que são consi-
deradas dispensáveis e excedentes nesse sistema. Uma perspectiva contra colonial
na educação nos oportuniza repensar práticas institucionalizadas de marginaliza-
ção e estereotipia para que possamos ouvir, sentir, potencializar e produzir outras
tantas narrativas possíveis. Existem podas que são necessárias para que as plantas
possam crescer e florescer. É também sobre isso.

PUXANDO
Enquanto agentes institucionalizados da violência, nós, educadoras e educado-
res da rede pública muitas vezes atuamos como potenciais “sujeitos-dobradiças”
(Flores, 2018) no reforço ao histórico discurso racializado proibicionista. O concei-
to de sujeito-dobradiças é utilizado pela professora Tarsila Flores (2018) a fim de
ilustrar como policiais militares e demais agentes da lei podem atuar como dobra-
diças em uma porta, atendendo as ações institucionais legais e ao mesmo tempo
exercendo práticas ilegais, como milícias e execuções. São eles:

[...]representantes do Estado em suas funções, porém, igualam-


-se a criminosos, em suas práticas ilegais. Como a imagem de
uma dobradiça: duas partes de um mesmo conjunto, contrários
no que se percebe quando a porta está fechada; mas, quando
se abre, a dobradiça coloca as duas partes em pé de igualdade.
Quando a porta se abre, a situação entre a legalidade e a ilegali-
dade se iguala. (FLORES, 2018 :89)

Faço aqui uma comparação destes sujeitos dobradiça com a nossa atuação en-
quanto educadoras e educadores por alguns motivos. Primeiro que, mesmo aten-

340 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
dendo uma maioria negra de estudantes, ainda somos responsáveis por produzir
intersubjetividades mediadas pelo nomos da violência, tão forte como o mito da
democracia racial. Reproduzimos currículos folclorizados e positivistas. Também
questionamos pouco o tratamento dado pela polícia militar aos nossos estudan-
tes, seja na ‘aceitação’ da militarização das escolas públicas, seja na corroboração de
‘revistas e baculejos’ atrás de drogas em nossas salas de aula a procura de “margi-
nais traficantes”. Reproduzimos ainda desinformações a respeito das substâncias e
trazemos pouco à cena o espectro da saúde nesse debate.
Alegando segurança e disciplina para combater o ‘fracasso escolar’ onde a
maioria de estudantes que saem/são expulsos/evadem da escola é negra, estão
os discursos de vilanização das drogas, nomeadamente um causador da ‘doença’
escolar. Atribui-se a substância e ao usuário a culpabilização de um fracasso que
é estrutural, marginalizando existências e enclausurando potências negras em ou-
tridades desumanizadas. A guerra as ‘drogas’ há muito já se comprovou ser uma
guerra contra pessoas negras (BORGES, 2018).
O curioso é que cada vez mais o ambiente escolar está ‘infestado’ de substan-
cias, sejam fármacos prescritos ou contrabandeados, uma vez que experienciamos
os efeitos da medicamentalização do ambiente escolar, com crianças, jovens e
adultos vivendo sob o controle de tarjas pretas. O índice de adoecimento mental
entre docentes da rede pública do Distrito Federal
, por exemplo, é um dos mais altos do país (SEPLAG, 2018). Brinca-se infor-
malmente entre professoras e professores que na escola deveríamos ter rivotril e
ritalina nos bebedouros, tanto para estudantes como para docentes, tamanho é a
força desse discurso neste ambiente.
Enquanto um campo de gestão das diferenças, a medicamentalização segundo
o antropólogo Ruy Harayama não se limita somente a prescrição de remédios, mas
a todo um aparato que

inclui diagnósticos, testes, exames de imagem, discursos, e so-


bretudo uma lógica que tenta internalizar diversos problemas e
variáveis como uma questão do indivíduo e do seu corpo bioló-
gico, indivíduo que aprende uma nova forma de sofrer e de se
relacionar com os outros. (HARAYAMA, 2012, p 2).

E é justamente nas relações com o outro, essa diferenciação nas relações entre
quem é usuário/paciente de alguma substancia prescrita e de quem é traficante
que perpassa a hierarquização de humanidade e onde reside o paradigma racial do
proibicionismo .
As contradições são muitas, uma vez que o ““uso de drogas”’ convive de ma-
neira harmônica com o consumo institucionalizado (desejado e até mesmo estimu-
lado) de psicofármacos” (VIEGAS et all, p.99). E embora a relação com substancias
(drogas) seja milenar e complexa entre seres humanos, natureza, na escola esse

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 341


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
debate segue permeado por estigmas e silenciamentos. Do tráfico ao prescrito, a
régua é racial.

PRENDENDO
Segundo Lorena Oliveira (2018), “uma das estratégias do racismo de Estado
brasileiro foi construir uma imagem negativa do negro, colocando este, agora,
como uma ameaça política para a supremacia branca” (p. 72). Não à toa, o alveja-
mento de uma família negra com mais de 200 tiros por parte do Estado é tido como
aceitável aja vista que o perfil criminológico brasileiro é pautado na patologização
criminal e suspeição prévia de pessoas pretas2.
O conceito de necropolítica, trazido pelo historiador e filósofo camaronês Achil-
le Mbembe, na esteira de Michel Foucault e Franz Fanon, pode ser entendido como
uma prática do racismo de estado, em que a violência é a linguagem da chamada
guerra permanente (OLIVEIRA, 2018). O racismo:

é a pratica que tem dado sentido à gestão política dos Estados


nos últimos séculos e que este racismo se revela especialmen-
te genocida, ao analisarmos as vias pelas quais suas táticas e
estratégias fazem um corte entre o que deve viver e o que se
deve morrer, possibilitando-nos compreender que o conceito de
necropolítica , apresentado pelo camaronês Achille Mbembe ,
expressa esta face soberana do Estado (OLIVEIRA, 2018, p. 12).

Essa prática de ‘civilizar as maneiras de matar’ (MBEMBE, 2017) encontra vil


expressão no assassinato e encarceramento em massa de jovens negros e periféri-
cos. Muito presente no ambiente escolar enquanto relação de justificativa para o
sistema prisional, o paradigma do proibicionismo , a chamada “guerra às drogas”
amplamente globalizada e encampada pelo estado norte americano nos anos 70,
encontra histórico anterior em terras brasilis. Normatizado em 1830 no Código de
Costumes da Cidade do Rio de Janeiro, entre outras, existia uma lei municipal que
proibia a prática do fumo chamado ‘pito de pango’ (cannabis sativa, maconha), cul-
tura atribuída aos africanos escravizados que teriam trazido as sementes da erva
(BOITEUX, 2019) nesse processo de sequestro histórico.
Segundo Juliana Borges, autora do livro “O que é encarceramento em massa?”
(BORGES, 2018), ao explicar o contexto histórico de atrelamento da guerras as dro-
gas ao encarceramento da população negra enquanto política de extermínio , nos
explica que:

2 Para melhor reflexão sobre a teoria do criminoso nato- atavismo, as influências do italiano
Césare Lombroso e o maranhense Nina Rodrigues na crimonologia forense brasileira, a noção de peri-
culosidade e o racismo científico ver: Andre Rocha Lemos, Sérgio Carrara , albúm AmarElo, do rapper
brasileiro Emicida, em especial a faixa “Ismália” (2019) e o trabalho do grupo Racionais MC´s.

342 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A participação do Brasil na Liga das Nações de 1925, em atuação
com o Egito, foi vanguardista no entendimento do uso
de cannabis como caso de proibição e política. O médico Per-
nambucano Filho afirmava que o “pito do pango” era mais pe-
rigoso que outras substâncias largamente utilizadas no período,
por considerar que este seria um atraso ao país e à construção
eugenista da figura do negro como ser de “natureza criminosa”.
No mesmo período e reforçando a criminalização, o psiquiatra
Rodrigues Dória chegou a afirmar que a maconha era como uma
vingança dos negros contra os brancos pela escravização (2018,
nota 7)

Os dados de mulheres negras jovens (15 a 17 anos) cumprindo medidas socio-


educativas chegam a 68% no país, com maioria de atos infracionais relacionados a
tráfico de drogas e roubos. O ranço patriarcal-racista ainda estrutura o contexto de
vulnerabilidades de nossa juventude, sendo o Brasil o quarto país em índice de ca-
samento infantil, com taxas de feminicídio que só aumenta entre mulheres negras.
Segundo dados sobre feminicídio no país, coletados pelo Instituto Patrícia Galvão,
mais de 60% dos casos foram contra mulheres negras nos últimos anos, com a maio-
ria das vítimas apresentando baixa escolaridade.
O jargão do “bandido bom é bandido morto” encontra no corpo negro o bode
expiatório da violência racial que rege as relações uma vez que “a noção de necropo-
lítica permite reconhecer, nas mortes de jovens negros, uma face seletiva de produ-
ção de morte constitutiva da modernidade”(CASTRO, 2019, p.1) . O Brasil hoje figura
como o país com a polícia militar mais letal do mundo e a que mais morre. Cenário
mais bizarro (porém naturalizado e banalizado a força) quando vemos os pedidos
nos tetos de escolas no Rio de Janeiro que precisam alertar aos helicópteros que ali
naquele território está localizada uma “Escola: não atire”.
Vivemos também sobre o regime dos crimes organizados, milícias, grupos que
funcionam como verdadeiros agentes de chacinas e “execuções em massa [que]
podem mesmo ser levadas a cabo de maneira invisível” (MBEMBE, 2017,p. 136)
afinal “matar é a maneira mais econômica de sobreviver” (idem, p. 145). As dobra-
diças continuam.
O discurso do proibicionismo, atrelado ao genocídio institucionalizado da popu-
lação negra como nos atenta os dados sobre violência (Atlas da Violência, 2019),
encarceramento e desigualdades sociais (SILVEIRA, 2018) reflete na escola de mui-
tas formas. Fonte de tanta discussão no espectro do debate sobre violência na esco-
la, a guerra as ‘drogas’ é um tema permeado de complexidade e contradições.
Existe forte presença do histórico discurso religioso cristão, a normativa da cri-
minalização do usuário, as contraditórias flexibilizações sobre a relação das drogas
lícitas (álcool, tabaco) e drogas ilícitas (cannabis/maconha). Pois é muito diferente
o tratamento que se dá ao ator branco, da rede globo, Fábio Assunção que luta
contra a dependência química, como a que se dá às pessoas em situação de rua ,
por exemplo, que podem ser mortas e violentadas em prol do higienismo social sem

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 343


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
nenhuma empatia ou comoção do público. A seletividade , o filtro, são práticas
aprendidas, assimiladas socialmente. E a escola tem papel estrutural na (re)produ-
ção dessas práticas.

PASSANDO
Como um passo ‘final’ desse ensaio, mas que, como numa roda de ganja, o
movimento busca continuidade através da coletivização, do diálogo, trago aqui
minhas considerações- indagações finais a respeito dessa imbricação entre escola,
racismo, cultura da proibição/repressão e juventude. A juventude negra e perifé-
rica muitas vezes é lida, já dizia o Racionais MC, como ‘violentamente pacífica’,
potenciais bandidos e sem chance de ressocialização.
Esse congelamento no estereotipo do ‘bandido’ na escola pode ser lido desde
a proibição do uso de bonés, à repressão das rodas de funk, de batalhas de rima,
etc. São corpos que incomodam e por isso o discurso antidroga encampa. Uma das
sutilezas que as tecnologias raciais vêm fabricando a décadas é também seu ocul-
tamento enquanto mecanismo estrutural.
Considerando como horizonte a emancipação (cognitiva, cultural, mental, sub-
jetiva, material) através da luta contra colonial na educação, busquei compreen-
der em que medida uma atuação docente pode se mover conforme uma educação
transgressora (hooks, 2019). Talvez caiba numa práxis transformadora a necessida-
de de revisitar e deslocar o olhar docente mais ao sul para pensarmos os desafios
virtuais borbulhantes no chão da escola.
Destaco assim a importância de um fortalecimento e qualificação de uma ética
contra colonial frente às iniquidades na educação que possa auxiliar na resistência
ao projeto colonial de extermínio de vidas negras e na desconstrução dos este-
reótipos das substâncias ilegais que servem como combustível para o motor do
necropoder.
Destaca-se que experiências intersetoriais entre saúde e educação em territó-
rios educacionais contribuem para a abordagem mais ampla a respeito das drogas,
tanto na escola como na comunidade. Uma prática educacional orientada pela con-
tra colonização é também , necessariamente, antiproibicionista, a favor da saúde
pública em seu conceito amplo, uma vez que quem mais utiliza o Sistema único de
Saúde são pessoas pretas e pardas. O conceito ampliado de saúde, formulado em
1986, na importante 8ª Conferência Nacional de Saúde consta que saúde abrange
o resultado:

das condições de alimentação, habitação, educação, renda,


meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer, liberdade,
acesso e posse da terra e acesso a serviços de saúde. É, assim,
antes de tudo, o resultado das formas de organização social da
produção, as quais podem gerar grandes desigualdades nos ní-
veis de vida. A saúde não é um conceito abstrato. Define-se no

344 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
contexto histórico de determinada sociedade e num dado mo-
mento de seu desenvolvimento, devendo ser conquistada pela
população em suas lutas cotidianas (Anais da 8a CNS, 1986) [gri-
fos da autora].

Pensar em saúde é também pensar em educação. A noção contra colonial nos


proporciona ver para além da fragmentação e setorização da vida cartesiana que
nos é ensinada e compreender as dinâmicas interdependentes que temos enquan-
to seres sociais, enquanto natureza, enquanto ambiente.
Uma “verdadeira revolução de valores”(hooks, 2019 ) se faz necessária em meio
a esse cenário de crises. Crises na educação pública, crises na saúde pública, crises
na política, crises de existências no/do capital. Entre o ‘caos’ ou a ‘comunidade’
(idem) ouçamos uma das grandes lideranças dos povos originários, Ailton Krenak e
suas ideias para adiar o fim do mundo (KRENAK, 2019): “Se as pessoas não tiverem
vínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão susten-
tação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilha-
mos” (p. 9). Que possamos aprender.

REFERÊNCIAS

BOITEUX, Luciana. O controle penal sobre as drogas ilícitas: o impacto do proibicionismo


sobre o sistema penal e a sociedade. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em
Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

BORGES, Juliana. O que é: encarceramento em massa? Belo Horizonte-MG: Letramento:


Justificando, 2018

CASTRO, Rosana. Necropolíticas e adoecimento: genocídio negro, gênero e sofrimento.


Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro , v. 35, n. 6, e00075319, 2019 .

CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar ao silêncio escolar: racismo, preconceito
e discriminação na educação infantil. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2020.

FLORES, Tarsila. “Os sujeitos-dobradiça”: a tênue linha entre a legalidade/ilegalidade do


Estado brasileiro. In: Cenas de um Genocídio: homicídios de jovens negros no Brasil e a
ação de representantes do Estado. Editora Lumen Juris, Rio de Janeiro, 2018.

HARAYAMA, Ruy. Medicalização: O que os fonoaudiólogos têm a ver com isso? 20° Con-
gresso Brasileiro de Fonoaudiologia, Brasília, 2012

hooks, bell. . Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade. São Paulo
Martins Fontes, 2019.

KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1 ed. Companhia das letras. 2019.

MACHADO, Adilbênia Freire. Resumo da Apresentação. Problemata, Revista Internacional


de Filosofia, v.10, n. 3 ,2019.

MBEMBE, Achille. Políticas da Inimizade. Lisboa: Antígona, 2017.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 345


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
OLIVEIRA, Lorena. RACISMO DE ESTADO E SUAS VIAS PARA FAZER MORRER. Disserta-
ção apresentada ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da Universidade Federal
de Uberlândia, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Filosofia,
Uberlândia/MG, 2018.

PONTES, Katiúscia Ribeiro. Kemet, escolas e arcádeas: a importância da filosofia africana


no combate ao racismo epistêmico e a lei 10639/03. [Dissertação de mestrado]. Rio de Ja-
neiro: Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca, CEFET/RJ. 2017.

SEPLAG, Secretaria de Estado de Planejamento, Orçamento e Gestão do Distrito Federal.


Relatório de Inspeção na área de pessoal da Subsecretaria de Segurança e Saúde no Tra-
balho, Subcontroladoria de Controle Interno – SUBCI, 2º/2018

SILVEIRA, Aline e SITO, Laura. A COR DA VIOLÊNCIA: FEMINICIDIO DE MULHERES NEGRAS


NO BRASIL. 10 de janeiro de 2018.

VIÉGAS Lygia..; OLIVEIRA Elaine.; HARAYAMA, Rui. . Revista Teias v. 17 • n. 45 • (abr./jun.


- 2016): Drogas, Medicalização e Educação.

AUTORIA
Izabela Amaral Caixeta
Secretaria de Educação do Distrito Federal-SEDF e Fiocruz-Brasilia.
E-mail: izabelacaixeta@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2103-187X
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3462073497927256

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
“QUEREM QUE NOSSA PELE SEJA PELE DO
CRIME”: SISTEMA PENAL, RACISMO E GUERRA
ÀS DROGAS
Priscila Andrade

Eles querem um preto com arma pra cima


Num clipe na favela gritando:
Cocaína
Querem que nossa pele seja a pele do crime
Que Pantera Negra só seja um filme.
Bluesman, Baco Exu do Blues.

INTRODUÇÃO
Este trabalho advém da possibilidade de discutir o racismo estrutural brasileiro,
revelando as refrações sobre os jovens negros, a partir do discurso de guerra às
drogas. O sistema penal que hoje atua no Brasil, trabalha em conjunto com a lei
de drogas 1.343 de 26 de agosto de 2006 que vem aumentando o encarceramento
no país e lidando cada vez mais com o combate ao tráfico. Se pressupõe que a po-
pulação negra é o grupo que leva revés desse Estado penal, quando se faz a busca
do processo histórico brasileiro relacionado aos afrodescendentes e o campo do
direito. Estabelecer as categorias opressão e exploração dentro da discussão se
faz preciso na medida em que se busca a totalidade dos fenômenos, e a partir do
materialismo histórico e dialético que une as esferas econômica, histórica, política,
cultural entre outros para se chegar com maior proximidade aos resultados par-
ciais dessa pesquisa.
O combate às drogas se torna internacional, após uma política norte-americana
que institui a droga como inimigo comum no pós guerra-fria. Esse combate circula
por todo o mundo num sistema antidrogas em que população negra é fortemente
atingida, inclusive em nosso país. No Brasil o sistema penal fica cada vez mais rígido
e através do discurso de segurança pública, a política antidrogas é aplicada, em que
“Aos jovens de classe média, que a consomem, aplica-se o estereótipo médico, e
aos jovens pobres, que a comercializam, o estereótipo criminal” (BATISTA, 2003,
p.84).
A violência que é utilizada nos corpos negros, vai da física à simbólica revestin-
do de desumanidade os sujeitos negros, fazendo com que todo o sistema penal
busque legitimação em sua atuação de controle social. O crescente encarceramen-
to desses jovens, e também um número alto de mortes acarretados por policiais,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 347


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
apontam que essa realidade existe e a partir do pretexto das drogas se formula a
imagem no jovem negro traficante que deve ser combatido.

1. GUERRA ÀS DROGAS: UM TRAJETO AO PROIBICIONISMO


O uso de drogas é uma prática milenar, que foi regulamentada no mundo mo-
derno levando-se em conta diferente esferas, inclusive a política, econômica e
cultural, realizando a divisão destas entre a legalidade e ilegalidade. Uma tática
imperialista do século XX foi o proibicionismo de drogas, não meramente seletivas,
a partir de um discurso de inimigo comum que tornou a guerra às drogas , uma
guerra racial.
A gênese tem como marco a primeira Conferência Internacional sobre o Ópio,
em 1912, Haia, tendo no início do século XX, o controle internacional sobre nar-
cóticos e substâncias psicotrópicas. (FERRUGEM, 2019). Os Estados Unidos, após
a guerra fria, continua com suas políticas imperialistas, dentre elas o combate às
drogas ditando um modelo proibicionista central para todo o mundo, modelo este
que contém na xenofobia e no racismo o entendimento de como se deu esse pro-
cesso.
É a partir de 1961 na Convenção Única sobre entorpecentes, realizada em Nova
York, que os países latinos americanos ficam a mercê dessa política. Os Estados
Unidos assim , com o presidente Richard Nixon, inicia o discurso de combate às
drogas, mas é no governo de Reagan, que se consolida a guerra propriamente dita,
tornando-o um experimento de um macrosistema antidrogas. A música ‘Reagan’
de Killer Mike, diz “Eles declararam guerra contra as drogas, como uma guerra
contra o terror; Mas o que realmente fizeram foi deixar a polícia aterrorizar quem
quer que fosse; Mas em sua maioria garotos negros, [...].” (Tradução nossa) . A
letra retrata , o que ocorre nos Estados Unidos, uma busca incessante de manter
subalternizados grupos de negros e latinos, através subjugação dentro criminalida-
de, começando a prender jovens por atos infracionais ínfimos, mas que tem sen-
tido, de tirar a possibilidade de liberdade emitida pela 13 emenda constitucional
norte-americana.
O Brasil é o país que aplica no primeiro código criminal, a primeira lei que pe-
naliza o uso da maconha, destacando um país estruturalmente racista, fruto do
patriarcado conservador, como coloca Ferrugem (2019), “ No caso do Brasil, a con-
vergência de uma abolição inconclusa, de uma república ainda frágil, uma elite
conservadora, foram alguns fatores que contribuíram para a instauração da guerra
às drogas, quase ao mesmo tempo histórico nos EUA.” As características da forma-
ção brasileira, introduz no país um aspecto extremamente racista no sistema judi-
ciário, em que a criminalização de uso e venda, é baseada na cor, intensificado no
governo Getúlio Vargas, em que “As senzalas metamorfosearam-se de presídios.”
(FERRUGEM, 2019).

348 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O elemento ‘droga’, apesar de ter sua existência milenar, e seu uso articulado
desde que o homem descobriu seu valor subjetivo, aparece na história “como um
sistema do mal e como um emblema da saúde” (CARNEIRO, 2018, p.16). Na mo-
dernidade, não tão somente se torna um problema que deve ser tratado no campo
da saúde, mas também no campo jurídico e da penalidade. De fato, expressões
do nosso tempo, criam demandas no que tange ao tratamento da drogadição, e o
envolvimento abusivo com as drogas, porém o debate é bem mais complexo que a
proibição das drogas, por um bem-estar social:

[...] Apenas 10% dos usuários de drogas desenvolvem um pro-


blema com a substância. Com isso, 90% dos que usam não são
prejudicados pelas drogas. Esse número não é tirado de alguma
ONG que luta pela legalização, mas do próprio escritório das Na-
ções Unidas sobre Drogas e Crime.(Unodc). (HARI, 2018, p.200)

Seu uso é determinado, pelo contexto cultural e social, e toma as rédeas de um


sistema jurídico baseado no que vale mais, um comércio legalizado, ou ilegal? A
droga é revestida pela tática proibicionista, por conta da criação de um hiper-valor
que foi construído através do sistema ilegal implantado, sendo neste mesmo cir-
cuito, que contribui para a mais-valia pelas drogas, que a violência mata milhões de
pessoas para manutenção desse valor. As drogas se tornam “as únicas mercadorias
cujo único efeito é a produção pura de subjetividades.” (CARNEIRO, 2018, p.26).
A vínculo do combate às drogas está alicerçado no contexto comercial, surgindo
na medida em que se buscava soluções de enfrentamento à crises, e de continui-
dade de aspectos da colonização. Os Estados Unidos, como potencial mundial, dis-
semina a guerra às drogas, como controle dos status quo, sob novas ferramentas,
inclusive pelo racismo.

2. SITUANDO O RACISMO
Como na música, Bluesman, de Baco Exu do Blues, “Eles querem um preto com
arma pra cima, num clipe na favela gritando ‘cocaína’, querem que nossa pele seja
a pele do crime” o retrato da realidade permite sintonizar o jovem, que é negro,
advindo de periferia como sendo o sujeito marginalizado e envolvido com drogas.
Essa narrativa é uma construção que coloca esse grupo na vulnerabilidade e vitimi-
zação com relação aos agentes do Estado e dentro da nossa sociedade brasileira.
É uma narrativa moralista, racista e classista que divulga e promove a manutenção
da figura do negro subalterno dentro das relações sociais.
O racismo se configura em todos os âmbitos das relações, e extravasa a urgência
de debate, quando o aparato legal do Estado, é mantenedor dessa estrutura. Para
Almeida (2019 p.22) o racismo “É uma forma sistemática de discriminação que tem
na raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes
ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 349


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
depender do grupo social ao qual pertençam.” (grifos do autor) . Desse modo pode-
mos compreender, que a sistematização do racismo, permite que este percorra as
dimensões legais da vida social, e mantenha privilégios , a partir da subalternidade
de grupos minoritários, sendo diferente do preconceito e da discriminação que se
dão de formas individualistas.
O fenômeno do racismo estrutural, e a posição dos sujeitos se intercepta por
relações sócio-histórico-estruturais, contendo formas de violência distintas se le-
varmos em conta os recortes raciais. As categorias de raça, classe e gênero são
imprescindíveis para entender as imbricações que surgem para um jovem negro e
jovem negra periférico(a); Quando se debate a criminalização da juventude negra,
se faz necessário falar também sobre a criminalização da pobreza, na medida que
existe uma interceptação do racismo institucional para a manutenção de condições
sócio econômicas desvantajosas para a população negra, e também na segregação
espacial que o racismo contribui, sendo nas periferias que os agentes do Estado,
vão em busca do sujeito suspeito.
Numa lente macrossocial, temos a estrutura capitalista como base de repro-
dução da vida, que incorpora os elementos opressão, exploração e colonialidade
que estão aglutinados e anexados a essa estrutura vigente de modo de produção.
Levando-se em conta o debate da modernidade que encorpa os sujeitos, a hierar-
quia racial (FERRUGEM, 2019) é mantida preservando características interligadas
a fenótipos de raça, objetificando o sujeito negro e trazendo expressões para a
população negra, de genocídio e encarceramento em massa diante de um sistema
de produção/reprodução da vida baseado na desigualdade, própria do capitalis-
mo. Entender a dinâmica do sistema capitalista se faz presente da discussão sobre
o racismo, e suas variáveis, como no caso, o racismo nas instituições, que se ex-
pressa dentro de condições estruturais de existência mas age como um molde de
manutenção de determinado grupo no poder , assim como processos históricos
que revestem os sistemas racialistas, no caso do Brasil, de raízes patriarcalistas e
escravagistas que permanecem em novas formas de manifestação.
A partir de uma política estadunidense que cria um sistema antidrogas global,
os efeitos do racismo se evidenciam na construção do elemento suspeito e no ini-
migo da nação: As drogas. Galvão (2019) traz o recorte do Brasil, que adotou a luta
proibicionista relatando:

[...] o Brasil também alterou os códigos criminais, porém os


códigos de conduta da segurança pública se mantiveram até a
atualidade, comprovando os estados de exceção produzidos no
seio da sociedade, notadamente as exceções produzidas pelo
elemento racial, de classe e gênero. (p.25)

O Estado como mediador das relações institucionais de uma nação, mantém a


estrutura racialista, como ferramenta do capitalismo de perpetuar a exploração.
Diversos mecanismos são utilizados para construir a narrativa que acarreta nesse

350 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
processo de desumanização da população negra. “a descartabilidade de vidas é
determinada pelos marcadores fenótipos de raça, pelos territórios de moradias,
renda e ocupação social, que expressam classe social”. (FERRUGEM, 2019, p.92).
Um desses mecanismos é o embate às drogas e a vinculação destas a juventude
negra, que se cristaliza numa estereótipo e estigma do que é o jovem negro, perpe-
tuando o preconceito racial. O aparato midiático é um dos instrumentos utilizados
que definem uma imagem à juventude negra, interligada à violência a aos males de
uma sociedade contemporânea, como o uso e tráfico de drogas:

Ao analisarmos a guerra às drogas torna-se perceptível que as


construções histórico-estruturais da colonialidade dos saberes e
do poder agregada a produção discursiva racialista do legalismo
e da midiatização dos estereótipos, produz e reproduz o imagi-
nário falso moralista da proteção e do “necessário investimento
de segurança” como forma de anuviar e legitimar o real interes-
se por trás da política, sua prática genocida e de limpeza social.
Valendo-se também, da seletividade penal como subterfúgio,
ou, um instrumento de política pública jurídica racialista para a
negação de direitos fundamentais.(GALVÃO, 2019, p.122).

Levando em conta os elementos citados, chega-se a um fenômeno que se ins-


tala na vida das periferias, que é a violência. O acesso à violência, por parte do
aparelho estatal percorre o racismo, como categoria estrutural e estruturante, de
forma desigual imperando o privilégio da branquitude na relação com a segurança
pública e no acesso à direitos, como o de justiça, que é negado à grande maioria da
juventude negra. Então o privilégio de alguns terão como consequência o genocí-
dio e encarceramento de outros; E os “outros” são os de pele negra. O sujeito ne-
gro é alicerçado a ideia de um sujeito passível ao uso de drogas, por características
que foram construídas ao longo da história, a partir de teorias eugenistas, tendo-se
um imaginário de elementos negativos associado à violência, delinquência, pobre-
za entre outros, como comenta Mbandi (2017, p.129):

Em alguma medida podemos afirmar que há uma tentativa de


tornar o negro como alguém que vive um pertencimento social
inacabado, utilizando para isso da animalização dos mesmos
tanto por atribuições físicas colocando - o sempre como um ser
indominável de natureza selvagem, como também de atribui-
ções consideradas imorais como o vício sobretudo da embria-
guez, desonestidade e impulsos incontroláveis.

O imaginário comum, dá sustentação da estrutura escravagista, e é mantida


por instrumentos que vão do acervo midiático às políticas de Estado. O negro é
subalternizado a partir de um imaginário comum que desumaniza, e tem o negro
como um não-sujeito, então é passível de ser tratado de forma animalesca, ou
objetificado. A autora Ani(1994) traz consigo os fenômenos acarretados do racis-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 351


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
mo estrutural, como denominado de Maafa. Este quer dizer “os fenômenos de
sequestro, cárcere, escravidão colonização, objetificação, guetificação e genocídio
que a população negra, independente da territorialidade, sofre diretamente deste
1500.” ( NJERI, 2019 apud ANI, 1994).
O povo negro é desprovido de sua herança cultural, patrimonial, e inserido no
mundo ocidental e branco, que desatina a impor moldes de relações sociais, que
tem no negro, objeto de exploração e opressão, desumanizado, vivendo em cons-
tante estado de Maafa.

3. SELETIVIDADE RACIAL E PENAL: A ATUAÇÃO DA POLÍCIA E


DO SISTEMA JUDICIÁRIO

Trazer à tona a atuação da polícia, se faz preciso assim como também o da vio-
lência que não está em um universo distante do processo de seletividade racial,
sendo “a violência elemento constitutivo da realidade social brasileira” (BATISTA,
2003). A forma discriminatória sob qual o sistema policial trabalha, engloba a nega-
ção de direitos aos cidadãos de cor, assim como ocorre no sistema judiciário que a
partir de uma legislação ambígua e aberta a julgamento moral, encarcera cada vez
mais jovens negros de baixa renda em um processo de necropolítica do nosso Esta-
do. Um dos fenômenos que trazem essa realidade é a legalização dos autos de re-
sistência que matam, e tem na fala do policial a verdade sobre os acontecimentos.
Outro fenômeno bastante comum, é a da chamada “bala perdida” em que re-
vela que dentro das favelas, se pode conter a violência com violência, por ser uma
região do crime de tráfico. O sistema trabalha de forma discriminatória, e tem no
alicerce do discurso de segurança pública o aval para a manutenção da violência
sobre os corpos negros e pobres. Se verificarmos os índices de encarceramento,
vemos um Estado cada vez mais punitivo, voltado à subordinação do indivíduo
“marginal” a esse sistema. A cor do indivíduo e seus fenótipos , apesar de diversos
componentes que a polícia brasileira podem julgar como suspeito, vai prevalecer
como principal característica de suspeição.
O tratamento por gênero, se dá de modo diferenciado, mas ainda sim perpas-
sando pelos elementos raciais. Na pesquisa realizada por Silvia Ramos e Leonarda
Musumeci (2005) sobre a atuação da polícia no Rio de Janeiro, ‘mostrou que a
variável gênero é a mais importante quando relacionada à experiência de ser ou
não parado(a) pela polícia em qualquer modalidade de abordagem.” Isso não quer
dizer que não há um crescente encarceramento de mulheres negras, mas que o
jovem do sexo masculino é ainda o principal alvo.
O sistema judiciário encontra legitimação nos estereótipos e estigmas que são
cristalizados em nossa sociedade, perante a colaboração dos meios de comuni-
cação que define quem é o criminoso, consolidando um apartheid que envolve a
cor e classe do sujeito. A penalidade vai ser o instrumento de controle da massa

352 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
pauperizada, em que muito se utiliza a maconha, como droga responsável pelo au-
mento da criminalidade, e impõe aos corpos jovens e negros o destino do cárcere.
Galvão (2019, p.55) ratifica que a condição de classe é a que prevalece no sistema
judiciário penal, onde invoca questões:

Qual seu principal interesse então? Controlar as populações


pobres e majoritariamente brancas. Quais seus principais mé-
todos? Usar o sistema jurídico penal para legitimar o encarcera-
mento massivo e o genocídio em zonas pobres com o artifício do
combate às drogas e ao crime organizado.

Batista (2003), explora o processo histórico que coloca os corpos negros numa
situação de vulnerabilidade, e criminalização pela exclusão do mercado de traba-
lho na pós-abolição. Esse processo estrutura as classes subalternas em que “ a
penetração da ideologia do trabalho se cristaliza na sua antítese: a malandragem”
(BATISTA, 2003, p.60), legitimando a partir da ideologia da ordem burguesa, a este-
reotipação do negro avesso ao trabalho, de importância para os discursos e proces-
sos jurídicos. Em consonância com o apelo midiático, a juventude negra é cerceada
ao perfil negativo de atributos muitas vezes ligada à criminalização.
É na tentativa de mostrar que existem instrumentos em termos legislativos,
midiáticos e até estatísticos, que esse trabalho sustenta a realidade da seletividade
racial vivida pela população brasileira e como estes resultados conferem a intenção
de colocar os corpos negros, como corpos do crime a partir de uma necropolítica.
Esse termo advém do autor Achille Mbembe, na ideia de pensar as políticas como
uma forma de instituir que pode viver, e quem não, iniciada por Michel Foucault,
com o Biopoder, numa dimensão macro de um Estado que possui uma configura-
ção em que “a violência constitui a forma original do direito, e a exceção propor-
ciona a estrutura da soberania.” (MBEMBE, 2020, p.38)
A soberania do Estado promove a subalternização do negro, quando consegue
definir quem ocupa os espaços. Segundo Mbembe (2020, p. 39) “Soberania signifi-
ca ocupação, e ocupação significa relegar o colonizado a uma terceira zona, entre
o estatuto do sujeito e objeto.” Não é tão difícil pensar, que espaços predicam a
terceira zona, e quem ocupa esses espaços, e que o Estado tenha o controle da vida
, e ainda sim sustente a reprodução capitalista.
O Brasil apesar de não apresentar uma política segregacionista propriamente
dita, tem no conjunto de indicadores relacionados à desigualdade social, desem-
prego, violência, acesso a serviços, entre outros, uma grande assimetria entre pes-
soas de cor branca e negra. A população negra está em números, sempre em situa-
ção subalterna aos índices da população branca, e é penalizada cada vez mais pelo
fenômeno da criminalização.
Apesar de ocorrer em diversos âmbitos, como este estudo prevê, a inci-
dência por parte da polícia é exorbitante. Não só a violência física, que em
números não são apresentados pelos “autos de resistência” que são mortes

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 353


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
acarretadas por policiais, como “Elemento legitimador da polícia-justiça-
-meios de comunicação racialista-higienista em discurso e prática” (Galvão,
2019, p.12) mas também a violência simbólica de tratamento que a juventude
negra enfrenta nas ruas, e a partir do encarceramento nos sistemas prisionais.
Apesar do não demonstrativo nos índices, a violência policial é muito presente, e
invisibiliza os sujeitos negros como vítimas do Estado. Como traz COSTA (2019) “
Se o país tem um número exorbitante de mortes realizadas por agentes do Estado,
é porque várias agências do sistema de justiça criminal trabalham em cooperação
para possibilitar o campo de impunidade necessário para essa atuação homicida,
reiterada e seletiva”
Se verifica que a violência por parte da polícia e como um todo tem um recorte
característico que coloca a juventude negra masculina nesses índices. Em relação
ao aprisionamento da juventude negra pelo porte de drogas, verifica-se que o índi-
ce continua sendo o segundo maior que encarcera, segundo Conselho Nacional de
Justiça num total de 97,21% de pessoas presas, 24,74% correspondem a tipo penal
de tráfico de drogas.
Quanto à faixa etária 30, 52% têm entre 18 e 24 anos, e 23,39% têm entre 25 e
29 anos. Quanto à cor/raça o mapa do encarceramento traz 54,96% classificados
como pretos ou pardos. Se verifica, segundo uma outra fonte alternativa ao IBGE,
o Infopen, no documento mapa do encarceramento: os jovens do Brasil, uma di-
ferença mais expressiva entre encarcerados de cor branca e de cor negra após
a configuração da lei 11. 343 de 2006. Antes da lei não foram achados dados na
Infopen ou no cadastro nacional de presos quanto ao tipo penal, ou em relação à
cor. Apesar disso existe um entendimento que a população carcerária aumenta no
passar dos anos, segundo MENA, 2018 : “A alta de 213% no número de presos bra-
sileiros desde o ano 2000 não foi acompanhado de incremento em infraestrutura
e pessoal.”
Pode-se notar um aumento de encarceramento de indivíduos brancos ou não-
-brancos, mas ainda sim em 2012, a taxa de negros encarcerados dobra a taxa de
brancos. Atualmente a legislação vigente enquadra a Lei de drogas 1.343 de 24 de
agosto de 2006, que tem suas ambiguidades e se mostram abertas ao julgamento
moral por parte de quem dará a penalização ao réu, como nesse trecho:

§ 2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pes-


soal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância
apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a
ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta
e aos antecedentes do agente. (BRASIL, 2006)

Se leva em consideração vários elementos que o juiz julgará, se o réu é trafican-


te ou usuário, inclusive locais que se desenvolveram a ação sendo muitos dos jo-
vens negros encontrados em periferias, locais que vão ser considerados violentos,
locais de criminalidade e tráfico pelos agentes do sistema penal.

354 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O plano Juventude Viva, implementado à época da presidência de Dilma, traz
diretrizes para combater o racismo e a violência da juventude negra, em que GAIO-
SO (2017, p.7) coloca “Constitui-se objetivos do Plano neste eixo ‘os processos for-
mativos, capacitações e qualificações, sensibilização dos agentes estatais, fortale-
cimento dos órgãos de controle externo, assim como orientações específicas para
as forças policiais’. Apesar disso estamos vivendo um momento de explicitações
racistas, facistas na ascensão de um governo de extrema direita e um definhamen-
to no que tange aos direitos.
A importância de meios alternativos de informação se fazem imprescindíveis
para se verificar elementos como a desigualdade racial que se instala em diversas
áreas da vida social, em especial a partir do sistema penal que é tratado neste tra-
balho. O resultado se dá de forma parcial, na medida em que o racismo é inerente
à estruturação da sociedade capitalista , e se torna de tamanha complexidade, que
à pequenos passos se pode trazer como o racismo atravessa os corpos negros no
Brasil. Se evidencia ainda a falta de dados relacionados à atuação policial, mas que
ainda sim mostra que existem uma maior penalização para a população negra e um
grande contingente a partir do tráfico de drogas.
As alternativas à nossa realidade, devem ser pensadas para que não haja ape-
nas o combate ao racismo, mas também um novo projeto societário e também
valorização da identidade afro brasileira, e de nossos antepassados.
Sendo o racismo estrutural, tem se muito o que fazer para fragmentar essas
atuações banais dos sistemas racialistas brasileiros e isso percorre no acesso aos
espaços de poder, espaço esse que coordena e mantém nosso antepassado escra-
vagista, até porque as drogas existirão independente dos projetos estabelecidos
pelos homens, e tirar a autonomia dos sujeitos e criminalizá-la coloca a população
negra à mercê de uma sub humanidade.

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XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 357


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 28
Juventudes negras
e indígenas:
encarceramento
e genocídio
- reflexões
decoloniais e
interseccionais
PROJETO-DE-VIDA E JUVENTUDE KANHGÁG
NA COMUNIDADE INDÍGENA POR FI GA,
SÃO LEOPOLDO-RS: MÃO DE OBRA NA
COLÔNIA, ARTESANATO E CONHECIMENTO.
Gabriel Chaves Amorim

INTRODUÇÃO
Até a promulgação da Constituição de 1988 os Kanhgág do Rio Grande do Sul
eram confinados às reservas demarcadas pelos governos. Com a possibilidade de
trânsito regulado pelo direito de ir e vir (DAMASCENO, 2015) surgem novos terri-
tórios, coletividades e dinâmicas.
A juventude da comunidade indígena Por Fi Ga (terra da passarinha), em São Le-
opoldo, Rio Grande do Sul, é exemplo de Comunidade Indígena localizada próxima
a um centro urbano, formada majoritariamente por migrantes das grandes aldeias,
terras de Nonoai-RS, Guarita-RS, Serrinha-RS e Votouro-RS (AMORIM, 2018, 2019,
2020).
Dentro deste contexto, o objetivo deste trabalho é analisar como a família tem
influenciado a construção dos projetos-de-vida da juventude indígena? O uso do re-
curso discursivo do hífen, não por acaso, demonstra que esse projeto não se separa
da vida comunitária e cultural. Sobre a grafia de projetos-de-vida, o uso do hífen
simboliza a relação do projeto com a vida, a ausência deste símbolo significa, por-
tanto, a separação do projeto da vida da pessoa. As pesquisas sobre projeto de vida
se concentram como técnica analítica da psicologia, disciplina escolar ou projeto
de formação pessoal institucionalizado (coaching).
Também a ênfase na juventude é proposital, pensando no questionamento
levantado, pela sociologia das juventudes, à categoria jovem como uma conven-
ção ocidental. Partindo da etimologia filosófica o termo juvēntus,ūtis remete ao
período da vida entre a infância e o desenvolvimento pleno de seu organismo. O
desenvolvimento remete ao ato de tirar o que envolve ou cobre a criança, significa
desembrulhar. Neste sentido, juventude se relaciona com o tempo de aumentar a
capacidade ou possibilidade de ser, fazer e progredir. Neste sentido, o desenvolvi-
mento do jovem pode também ser percebido como sua desvinculação do coletivo
familiar, como uma independência de si mesmo em relação à coletividade, destar-
te disso que juventude é por vezes associado à intransigência. Contudo, a juventu-
de também se relaciona com aquilo que está por vir, com a renovação do antigo e
com a esperança. Juventude também pode ser utilizada como adjetivo de qualidade
daquilo que é recente.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 359


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Os kanhgág tem proposto uma rica discussão sobre a infância e a juventude,
que pode ser agregada às principais correntes psicológicas, pedagógicas e de po-
líticas públicas para infância e a juventude. Para os Kanhgág kãsir significa “criança
menor” ou bebê de colo, Gir remete à “criança”, Kyru “moço” possui uma variação
kyrun que significa ficar moço. Tytãg é a variação feminina de jovem. “Fi tÿ nugje
nðn kÿ fi tóg, tÿ tytãg ni há”. Quando a filha tem seios está ficando moça” (WIESE-
MANN, 2002,p.89). A infância está condicionada ao aprendizado motor e corporal,
não há separação tão clara entre atividades de adulto ou de criança.
Na primeira parte apresenta o grupo de dança da comunidade (filhos da terra),
como manifestação de protagonismo cultural na preservação das tradições. O arte-
sanato também é um meio-de-vida aprendido com os mais velhos, cestos, balaios e
sua venda, são, desde a juventude, forma de emancipação econômica.
Na segunda parte analisa as redes de contatos profissionais que os mais velhos
possuem com empregadores das colônias (alemã e italiana) e que são transmitidos
para os mais jovens como um capital conquistado. O trabalho temporário para os
colonos, representa uma alternativa viável comparativamente ao emprego formal,
tendo em vista o trabalho de quinze dias e a quantia arrecadada neste tempo. O
contexto de trabalho nas colônias é agravado pela natureza do serviço na roça,
em alojamentos precários, sob vigilância de encarregados, drogadição, isolamento
cultural e geracional durante o período de trabalho. São os únicos jovens e índios
que trabalham na roça.
Através de aporte teórico do feminismos comunitários de Julieta Paredes Carva-
jal e Lorena Cabnal se pretende discutir os significados do gênero na execução do
trabalho, de homens, nas plantações e lavouras em contrapartida com o artesa-
nato, cuidados com a comunidade e os filhos, tarefas de mulher. Por fim analisa a
repercussão do conhecimento formal e conclui que a escola e a universidade tem
pouca importância já que se tornam obstáculo no desenvolvimento de um projeto-
-de-vida de núcleo familiar e de capital social de redes de trabalho. A universidade
tem uma potência adormecida pela falta de acesso.

KYRU TYTAG EMIN EG MY RÁ POR FI GA EMÃ:


PROJETOS-DE-VIDA DA JUVENTUDE KANHGÁG NA POR FI GA
A colonialidade manifesta como obstáculo ou questão na vida kanhgág, incide
por exemplo na educação que os pais proporcionam para os filhos para mediar os
meios-de-vida. O artesanato é um meio-de-vida que compõe os projetos-de-vida
kanhgág, e para incutir essa referência-de-vida junto às crianças, os mais velhos en-
sinam na prática. A coleta de matéria prima, a confecção do artesanato e a venda
é aprendida em passos e práticas, que as crianças vivenciam, o resultado da venda
é gasto com elas mesmas. Antes da constituição de 1988 os Kanhgág eram levados
de volta às aldeias grandes se fossem “pegos” vendendo artesanato nos centros
urbanos, sem a devida autorização da Funai e do cacique. Após 1988 os kanhgág co-

360 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
meçaram um movimento de retomada e conquista de novos territórios (AMORIM,
2020), incluso junto à grandes centros urbanos, foi a possibilidade da consolidação
de novos meios de vida. Não obstante, esses movimentos coincidiram com a pro-
mulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), colocando os conselhos
tutelares no encalço dos indígenas.
O básico para se definir uma situação é conhecer os contextos, neste caso, faz
cerca de dez anos que acompanho a comunidade indígena Por Fi Ga, entre pes-
quisas, extensões e cursos preparatórios para conclusão do ensino médio. Mas,
o inusitado deve ser inquirido com a seguinte pergunta: O que está acontecendo
aqui? O que acontece para que as juventudes indígenas processem projetos-de-
-vida emancipadores? Como eles chamam isso? A partir daí se começa a definição
de situação, dos quadros básicos da experiência. Neste caso, no campo etnográ-
fico já pude reformular as definições do que significa projeto-de-vida, agora re-
arranjado como Emin Eg My hà, que significa Caminho bom. Quando se define o
que está acontecendo, se entende a participação dos sujeitos sociais na produção
do conhecimento e de suas vidas. A partir da definição de situação, tentar definir a
probabilidade deste fenômeno possuir reciprocidade dos pontos de vista. A inter-
culturalidade se dá então nessa possibilidade de reciprocidade de pontos de vista.
Portanto, o que acontece é que na limitação da vida, imposta pela situação mate-
rial difícil a juventude Kanhgág explora o trabalho, rãnhrãj. Rãnhrãj é meio-de-vida,
literalmente significa trabalho, contudo, tudo que se faz na vida é considerado ato
de trabalhar.
Supondo que o projeto-de-vida tem um método, meio ou caminho este item
se propõe a refletir sobre os meios-de-vida. Contrariando a proposta de procedi-
mento chamado “metodologia”, que precede o caminho do conhecimento, essa
pesquisa propões uma hodós-metá que permite ao caminhar determinar o expe-
rimentar dos conhecimentos e da vida. “Essa reversão consiste numa aposta na
experimentação do pensamento – um método não para ser aplicado, mas para ser
experimentado e assumido como atitude [...] mais próximo dos movimentos da
vida” (PASSOS, 2015, p.11). A metodologia quando impõe regras previamente esta-
belecidas remetendo etimologia da palavra: metá-hódos, um caminho (hódos) de-
terminado pelas metas teorias, conhecimentos históricos, preconceitos e anseios
essencializados. “Por sua vez, a cartografia propõe uma reversão metodológica:
transformar o metá-hódos em hódos-metá. Essa reversão consiste numa aposta
na experimentação do pensamento” (PASSOS, 2015, p.10). Neste sentido, a proces-
sualidade do projeto-de-vida não atua com uma fórmula fixa, os meios cambiáveis
acompanham a dinâmica da captura/escape.
Para esse paper utilizei análises advindas das entrevistas coletadas, para o
projeto de mestrado, buscando privilegiar a versão dos informantes indígenas da
comunidade Por Fi Ga. A análise se divide em três partes, refletindo as principais
estratégias percebidas: 1) O artesanato 2)O trabalho na roça e 3)O conhecimento
formal. A psicóloga kanhgág Rejane Nunes de Carvalho fala em ég my há, que é a

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 361


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
forma-de-vida-kanhgág e define como “o que nos faz bem como kanhgág”, (CAR-
VALHO, 2020, p.11), “modo de vida”, “bem viver coletivo”, formas de produzir e
viver. O compartilhamento de categorias é um complicador entre os kanhgág uma
vez que a definição e os significados são construídos comunitariamente, contudo,
Rejane nos traz uma filosofia objetiva através do Kanhgág ég my há. As categorias
kanhgág Kyru (rapaz) e Tytãg (moça), advindas da comunicação-da-vida coletada
em escuta étnica, remetem à uma concepção de juventude que implica uma rela-
ção direta com o aprendizado pela experiência de vida, no sustento pelo trabalho,
na formação familiar.
Na comunidade Kanhgág Por Fi Ga se espera que os Kyrus se casem com as
Tytãg e vice- versa, assim que ambos se interessarem, isto é, quando começam
a namorar se casam. O interesse assim como o desenvolvimento do corpo, bem
como a aprovação comunitária e das famílias envolvidas acabam por selar a rela-
ção. O Kyru vai morar com seu sogro, o pai da moça, angariando recursos para a
nova parcialidade.
Desde as primeiras experiências os pais e mães kanhgág introduzem as crian-
ças ao trabalho junto do artesanato, na colheita das matérias primas, no preparo,
na confecção e na venda. Os que trabalham na roça, procuram ensinar aos filhos
o capital intelectual que lhes permite usar esses conhecimentos para si. Quando
em espaços educacionais, costumam levar seus filhos para palestras, formações e
aulas. As crianças não são educadas, no sentido qualitativo e de valores, dentro
dos estabelecimentos do Estado. Mas nas rodas de artesanato, nas roças coletivas,
nas festas, enfim, na sociabilidade comunitária.

RÃNHRÃJ VÃGFY TY EMIN EG MY HÁ: TRABALHAR


ARTESANATO É (UM CAMINHO BOM) PROJETO-DE- VIDA
Meu grande amigo, Diego Severo, antropólogo, que ainda lembro na memória o
primeiro dia que me conduziu até a comunidade Kanhgág, escreveu sua dissertação
de mestrado sobre o artesanato na Por Fi Ga. Diego vivencia e relata as dinâmicas
familiares para organizar a coleta, confecção e venda do artesanato. Em seu tra-
balho de campo Diego evidencia alguns significados do fazer os artesanatos entre
os kanhgág. “Propus desvendar e penso ter demonstrado que o fazer dos objetos
artesanais apresenta relações mais amplas que o simples comércio aos fóg, ampli-
tude essa que revela as ideias nativas sobre vida, educação e trabalho ameríndio”
(SEVERO, 2014, p.133). Como bem pontuou Diego em sua dissertação, a educação
e o trabalho antecipam o significado que o artesanato traz consigo, ao mesmo
tempo que é referência geracional passada de pais para filhos é meio-de-vida. O
peso geracional e a socialização das referências-de-vida dos regrê, parentes, com a
juventude leva kyrus e tytags (moços e moças) a: Muna rãnhrãj vãgfy ty emin eg
my há (caminharem para um trabalho que seja um bom caminho, projeto-de-vida):

362 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A minha mãe me ensinou a fazer o artesanato, também minhas
tias e as minhas amigas também me ensinaram algumas coisas
que eu também não sabia, agora eu sei várias coisas de artesa-
nato. (Liliane de Paula, 06 de Junho de 2019)

Analisando a questão dos meios-de-vida, presente na comunicação-de-vida ex-


pressa pelos kanhgág durante a escuta étnica, percebe-se que o artesanato está li-
gado à forma-de-vida kanhgág como potência de emancipação do mercado formal,
dos patrões e da indolência que relega o artesão ao passado. A razão metonímica
descrita, por Boaventura de Sousa Santos, como aquela que não admite outras ma-
nifestações de entendimento sobre a mesma categoria. Muitos jovens produzem
narrativas como: “Eu nunca trabalhei, só trabalhei com artesanato”. Ao afirmarem
que nunca trabalharam, se referem ao trabalho formal no sistema capitalista, con-
tudo, representa o artesanato como possibilidade da categoria trabalho e ressalta
que a diferenciação que é feita pelo fog, não indígena. A razão colonial não admite
outras manifestações da categoria trabalho. “São, pois, partes desqualificadas de
totalidades homogéneas que, como tal, apenas confirmam o que existe e tal como
existe. São o que existe sob formas irreversivelmente desqualificadas de existir”
(SANTOS, 2002, p.249). Como confirma o Kyru, moço, artesão Vanderson Kanheró,
“Artesanato não vende tanto mais como antigamente” (Vanderson Kanheró, 4 de
Agosto de 2020). A relação do que fabricar passa a ser interseccionado pela logica
do ganho, uma vez que os brancos transeuntes das ruas antecipam o artesanato
como produto indesejado.
A liderança anualmente articula incursões nas escolas para palestras e vendas
de artesanato junto das Secretarias de Educação. A ida nas escolas é acompanhada
de apresentações de dança, que por vezes são espontaneamente realizadas outras
requisitadas. As apresentações de dança da comunidade tem como participantes
as juventudes. Atualmente, no ano de 2020, o contexto de distanciamento social
e paralização das aulas presenciais fez com que as apresentações e incursões em
escolas ficassem prejudicadas. As narrativas que atualmente circulam é que “logo
tudo voltará a ser como era”:

Mas nós estamos aí pra desviar dessas doenças aí e vim ganhar


o nosso, pra nós se manter até essa pandemia passar aí, pra ter
o nosso alimento né. Por que do dia 19 nós trabalhemos muito
com nossos...nós mostremos muito nossas cultura que é a...nós
temos nossos grupos de dança ainda também que é o Por Fi
Gá, nós fazemos muitas palestras nos colégios também e esse
ano não deu, tá ruim pra todos (Valdir Loureiro, 23 de Agosto
de 2020)

Como disse Valdir, está ruim para todos. As palestras canceladas significaram
um ano perdido nas sociabilidades entre as crianças de diversas idades e escolas
com os conhecimentos Kanhgág. Valdir Loureiro serve como tipo ideal para compa-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 363


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
rações, jovem que sabe fazer o artesanato, que trabalha com a roça e que planeja
terminar os estudos. Valdir vê no trabalho na roça um meio de ganho justo, mas,
“sonha” em terminar os estudos. Atualmente vem se aproximando das lideranças
para auxiliar na construção de projetos-comunitários, portanto, seu projeto-de-vi-
da está em consonância com o coletivo.

RÃNHRÃJ EGYPY EMIN TY EG MY HÁ: TRABALHAR A ROÇA É


(UM CAMINHO BOM) PROJETO-DE-VIDA
Ao iniciar o projeto de pesquisa do mestrado junto veio a pandemia e o distan-
ciamento social, que impuseram novas configurações metodológicas tanto neste
texto quanto no projeto original. Esperava poder vivenciar em campo as redes e
processos que compõe o fenômeno estudado, o trabalho nas egypy, roças. Para
tanto entrei em contato com um amigo da comunidade, o Valdir Loureiro, que
organiza os kyrus para muna rãnhrãj egypy. Através de uma relação de reciproci-
dade, passamos a conversar por aplicativos, trocando mensagens, áudios e vídeos.
Ao longo dessas conversas fui mediando para Valdir o que significava o projeto
de pesquisa, quais o objetivos e métodos que pretendia utiliza, como a pesquisa
participativa. De informante de pesquisa, Valdir passou a participante, entrevis-
tando a juventude que trabalhava na roça dos colonos entre os meses de maio até
setembro.

FIGURA 1 - RÃNHRÃJ EGYPY EMIN TY EG MY HÁ: TRABALHAR A ROÇA


É (UM CAMINHO BOM) PROJETO-DE- VIDA

Foto: Valdir Loureiro Julho de 2020, trabalho nas roças dos colonos.
Essas roças não são dos kanhgág, pertencem e ficam nas terras dos colonos da
serra gaúcha. O rãnhrãj, trabalho, é, portanto, temporário. Ao mesmo tempo que
se configurou como problema- de-vida que intenta separar os projetos da própria
vida da pessoa Kanhgág é oportunidade de ganhar dinheiro, ser meio-de-vida.

Como a gente faz parte do trabalho do branco aqui, a um tem-


po né. Temos dois tempo, tempo de trabalhar, tempo das plan-
tação, como nós tamos agora plantando cebola, que também
faz parte da nossa, faz parte do trabalho, tudo que faz bem pra
cabeça, a gente tem que estar fazendo. (Valdir Loureiro, 23 de
Agosto de 2020)

Esse pequeno trecho foi transcrito e recortado do universo de entrevistas que


Valdir tem contribuído para o banco de dados do projeto. Valdir se refere ao traba-
lho na roça, como “trabalho do branco” e que é temporário. Como é uma atividade
que está referenciada nos conhecimentos de vida a precarização das condições de
trabalho são relativizadas. Não se trata de atribuir nem mecanicidade(exploração)
nem tradicionalidade a ação social de trabalhar para os colonos, a resposta está no
meio. Tanto no sentido de analisar a mediação entre a divisão social do trabalho,
que estabelece o lugar dos índios na sociedade, como as referências-de-vida que
permitem aplicar os conhecimentos tradicionais nas roças. Também o sentido de
ser um meio-de-vida, por isso as respostas estão nos meios. Certamente a colonia-
lidade está presente, tanto nos discursos dos kyrus, jovens, quanto nas práticas de
trabalho dos colonos fóg, brancos.
É um meio-de-vida, mas também um meio-comunitário, pois, muitos desses jo-
vens enviam repasses de dinheiro para seus parentes, esposas e filhos que ficaram
em casa, injetando assim, fluxos de capital na comunidade. Esses fluxos de capital
são canalizados para necessidades básicas, mas também para a compra de mate-
riais para confecção de artesanato. Portanto se conclui que o trabalho na roça é
uma referência-de-vida, mesmo em condição precária e temporária e justificado
pela natureza do trabalho, “que lembra o trabalho nas roças das grandes aldeias,
dos tempos de infância”. É um meio-de-vida pois canaliza fluxos de capital para
geração de vida e de projetos- comunitários.

RÃNHRÃJ JYKRE EMIN TY EG MY HÁ: TRABALHAR


CONHECIMENTO É (UM CAMINHO BOM) PROJETO- DE-VIDA
O trabalho em empregos públicos dentro da comunidade tem se tornado um
meio-de-vida considerado pelas juventudes por conta das referências-comunitá-
rias, isto é, outras pessoas que conquistaram trajetórias. Como o caso dos profes-
sores Dorvalino Refej (2014) e do Josme Konhko1 (2019). Atualmente a escola se

1 Josme faleceu no decorrer desta pesquisa. Konhko era uma grande referência-comunitária,
deixou sua experiência de vida. Sempre muito alegre e sorridente, assim vou lembrar do Josme Fortes

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 365


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
encontra fechada por conta do distanciamento social, mas comumente conta com
uma proposta pedagógica diferenciada. Muitos jovens já entenderam o papel da
escola, não como formadora educacional, mas como potência de trabalho. O jykre,
conhecimento, pode ser entendido como uma roça ou artesanato. Isto é como roça
deve ser cuidado, ter o solo preparado, plantar sementes e contar com inúmeras
variáveis para que no final haja uma colheita satisfatória. No caso essa metáfora
remete à trajetória educacional rumo à universidade, são muitas etapas que de-
vem ser enfrentadas, como a conclusão no ensino médio. E foi pensando nisso que
a Maira Damasceno, junto da comunidade organizou uma pesquisa(ação), dentre
uma das ações realizadas estava a Educação Popular para conclusão no ensino mé-
dio. A conclusão no ensino médio é condição para assumir cargos públicos dentro
da comunidade.
Dentre as possibilidades de rãnhrãj jykre emin ty eg my há, isto é trabalhar o
conhecimento como (um caminho bom) projeto-de-vida, se destacam: Docência
pedagógica e administração escolar; enfermagem, odontologia; saúde coletiva(a-
gência de saúde); ministro religioso e construção civil. Em entrevista com a Tytãg
Mayara Sales, perguntei diretamente qual era o seu projeto-de- vida e ela me res-
pondeu: “_ O meu projeto de vida é um dia fazer os jovens de hoje ou do futuro
gostar de estudar, abraçar nossa cultura nossas raízes têm muitos jovens que tão
se perdendo, é sim, resgatar eles” (Mayara Sales, 06 de Agosto, 2020).

CONCLUSÃO
Atualmente, 2020, diversos projetos sociais articulados pela comunidade, al-
guns em parceria de outras organizações, como as roças coletivas, hortas individu-
ais, criações de animais e bancas de artesanatos, construídas no modelo de coope-
ração, buscam suprir as famílias com segurança alimentar e atividades econômicas
rentáveis. A Juventude tem mostrado interesse em reproduzir as dinâmicas ob-
servadas em seus pais, como o trabalho temporário nas lavouras e artesanato,
contudo, são também incentivados para continuarem os estudos na universidade.
O estudo aponta a escola comunitária como uma potência emancipadora, pois,
auxilia a comunidade a consolidar projetos-de-vida que proporcionem o bem viver
individual-coletivo, concluiu que as juventudes indígenas kanhgág constroem seus
projetos-de-vida trazendo consigo às suas referências familiares, comunitárias e
históricas.
O artesanato pode ser potencializado com iniciativas de empreendimentos so-
ciais solidários e redes de cooperação econômica. Durante a pandêmica de corona

Konhko, um professor que trouxe sentimentos para o conhecimento. Seu Trabalho de Conclusão de
Curso foi escrito num processo bem difícil, em relação às orientações e defesa. Também neste tempo
sua esposa faleceu. Deixou muitas filhas e filhos, netos e sobrinhos. Abriu portas para a criação do
Coletivo Indígena uma das pontes entre a comunidade Por Fi Ga e a Universidade do Vale do Rio dos
Sinos (UNISINOS).

366 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
vírus que impôs o isolamento social, as redes sociais foram uma alternativa para
a venda do artesanato. Portanto fica diagnosticado a necessidade de intervenção
junto às demandas comunitárias por organização do empreendimentos familiares
de artesãos e sua inserção em pontos de venda que consolidem o meio-de-vida.
O trabalho nas roças pode ser mais bem aproveitados com uma terra kanhgág
para plantio, com cooperativas e iniciativas que potencializem as referências-de-vi-
da como meios. Com a formação de cooperativas de serviço pode haver a democra-
tização do acesso à esses serviços, que atualmente se dão em redes de compadrio.
Contudo, como o trabalho temporário está definida por uma relação temporária
não se planeja a vida contando com esse meio. A aquisição e conquista de novas
áreas podem ser possibilidades para o empreendimento de roças próprias que co-
letivizem os ganhos e socializem as demandas.
A inserção na universidade e em trabalhos públicos na comunidade pode ser po-
tencializada por iniciativas de fortalecimento da escola comunitária, para fornecer
certificação no ensino fundamental e médio. Os cursos de educação popular em-
preendidos por extensões universitárias são bons, como paliativos. Políticas públi-
cas escolares devem ser empreendidas.

REFERÊNCIAS

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Terra Indígena Kanhgág Emã Por Fi Ga, São Leopoldo/RS. Trabalho de Conclusão de Curso
de Licenciatura em História, avaliado com distinção. Unisinos. São Leopoldo-Rio Grande
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AMORIM, Gabriel Chaves A. REFEJ. Dorvalino Cardoso Refej. Aprendizaje y Conocimento


del patrimonio imaterial: Organizacion de Jerarquias y derecho consuetudinario en la co-
lectividad ameríndia kanhgág. Anales del congreso XXXIi ALAS. Uruguay. 2017 ISBN. 978-
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CARDOSO. Dorvalino Refef. Aprendendo com todas as formas de vida do Planeta educa-
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CARVALHO, Rejane Nunes de. Kanhgang Êg My Há : para uma psicologia Kaingang. Tra-
balho de conclusão de graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio Grande do

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 367


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
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DAMASCENO, Maira. O ir e vir Kanhgág. Ressignificações e resistências na cidade de São


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SEVERO, Diego Fernandes Dias. Educar, viver, trabalhar: os significados do fazer os artesa-
natos entre os Kaingang da emã Por Fi Ga. Dissertação de Mestrado. UFSM. Santa Maria.
2014

Valdir Loureiro, Entrevista concedida em 23 de Agosto de 2020 Vanderson Kanheró, Entre-


vista concedida em 04 de Agosto de 2020.

WIESEMANN, Ursula Gojtéj Kaingang - Português | Português - Kaingang Dicionário / Ur-


sula Gojtéj Wiesemann; Curitiba : Editora Evangélica Esperança, 2002

AUTORIA
Gabriel Chaves Amorim2
CAPES/PROSUC; PPGCS-UNISINOS; Coletivo Indígena
E-mail: gcamorim@edu.unisinos.br ; gchavesamorim@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7454-7867
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2316175296685346

2 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal


de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001

368 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
MULHERES NEGRAS E CÁRCERE: PERSPECTIVA
INTERSECCIONAL ENTRE RAÇA, GÊNERO E
CLASSE EM UNIDADE PRISIONAL DO MUNICÍPIO
DE JOÃO PESSOA
Suéria Dantas de Oliveira

INTRODUÇÃO
Esta pesquisa refere-se ao trabalho produzido e descrito em dissertação de
mestrado, realizada no âmbito do Programa de Pós Graduação em Sociologia da
Universidade Federal da Paraíba - UFPB, e que se apresenta como um desdobra-
mento das inquietações pessoais iniciadas ainda na minha atuação enquanto poli-
cial militar durante uma década. Nesse período, pude observar a importância dos
atributos de raça, classe e gênero na produção de vulnerabilidades sociais que con-
tribuem para o encarceramento em massa de mulheres negras no estado da Paraí-
ba. Tendo em vista, a metodologia de formação do policial militar até como se dá a
noção de suspeição no imaginário da corporação, pude compreender como a ima-
gem do indivíduo preto e pobre vai se construindo como o alvo de predileção das
operações policiais. Já na condição de integrante do Núcleo de Estudos Afro-brasi-
leiros e Indígenas – NEABI/UFPB, tive a oportunidade de contato com a literatura
acerca das relações raciais no Brasil, e de como a herança escravocrata contribuiu
para produzir e reproduzir a diferença centrada na pessoa negra, e, nela, legitimar o
aprisionamento e extermínio dessas pessoas enquanto política pública de Estado.
Sabendo que mulheres negras respondem por cerca de 25% da população bra-
sileira, mas que, quando se considera o percentual dessas mulheres encarceradas,
elas chegam a representar algo em torno de 70% das mulheres nessa condição,
somando-se a isso, há a constatação de que a partir de 2009 elas passam a ser
responsáveis pela chefia de 51,1% das famílias (BRASIL, 2013), demonstrando, a
gravidade social representada pela privação de liberdade dessas mulheres. Dessa
forma, este estudo se propôs a prestar especial atenção à relação entre raça, classe
e gênero na distribuição das mulheres sujeitas ao encarceramento no estado da
Paraíba, e através da compreensão de suas trajetórias, objetivou descrever pela
ótica dessas mulheres, como se deu a dinâmica dos eventos que as conduziram a
atual situação de cárcere, auxiliando a pensar na maneira como elas elaboram e
reelaboram seus comportamentos a partir das experiências antes e após a prisão;
e identificar os elementos do social presentes nesse processo, mas também, algo
de protagonismo como parte integrante dos eventos que corroboraram para esse
desfecho.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 369


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
APORTE TEÓRICO
Na América Latina, especialmente no Brasil, México e na Argentina, a eugenia,
tanto do ponto de vista de ciência da hereditariedade humana, quanto de movi-
mento social para melhoria da composição hereditária de suas populações, pro-
duziu percepções e técnicas que conformaram interpretações culturais e levaram
ao desenvolvimento de estratégias higienistas como: saneamento, reforma social,
puericultura, psiquiatria, movimento médico-social e legislações, na busca pela re-
generação nacional e pelo aprimoramento racial de populações miscigenadas. O
movimento eugênico utilizou as categorias raça e gênero como seus principais ins-
trumentos de análise e de demarcação de corpos desviantes e por consequência,
puníveis. A eugenia, como ciência, supunha uma nova compreensão das leis da he-
reditariedade humana e incluía deliberada seleção social, tais como: o controle de
nascimentos indesejáveis, promoção de casamentos entre determinados grupos
e desencorajamento de certas uniões consideradas nocivas à sociedade (STEPAN,
2005).
Os representantes do movimento preocupavam-se particularmente com as mu-
lheres, porque consideravam que a reprodução definia o papel social delas muito
mais que o dos homens, além disso, acreditavam que as mulheres eram mais vul-
neráveis e socialmente dependentes do que os homens, o que fazia com que seus
corpos fossem objeto de especial interesse. Intervir no gênero feminino era funda-
mental para o gerenciamento de populações consideradas inadequadas (STEPAN,
2005).
Raça e gênero, portanto, foram as ferramentas políticas utilizadas pelos euge-
nistas na construção de um discurso da diferença que ajudou a demarcar os cida-
dãos de bem daqueles considerados indesejáveis nas jovens nações latino-ame-
ricanas. Na verdade, diferenças fenotípicas e de gênero foram biologizadas para
acomodar privilégios e demarcar diferenças como enfatiza Stepan:

As infindáveis discussões dos cientistas sobre as classificações


raciais e a impossibilidade de encontrar uma classificação que
satisfizesse, de uma vez por todas, os requisitos de uma forma
definitiva de dividir a espécie humana em tipos fixos, são indica-
dores poderosos de que as categorias raciais não são represen-
tações de grupos biológicos de compreensão transparente, mas
distinções baseadas em complexas convenções e práticas discri-
minatórias, sejam elas político-científicas ou de outros tipos. As
distinções raciais não são perpétuas, mas foram constantemente
renegociadas e experimentadas de diversas formas nos distintos
períodos históricos (STEPAN, 2005, p.19).

Considerando esse contexto sócio-histórico brasileiro, optou-se por orientar


este estudo à luz da perspectiva da Interseccionalidade, a qual, remete à uma te-
oria transdisciplinar que visa apreender a complexidade das identidades e das de-
sigualdades sociais, por intermédio de um enfoque integrado. Ela refuta o enclau-

370 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
suramento e a hierarquização dos grandes eixos da diferenciação social que são as
categorias de sexo/gênero, classe, raça, etnicidade, idade, deficiência e orientação
sexual. O enfoque interseccional vai além do simples reconhecimento da multipli-
cidade dos sistemas de opressão que operam a partir dessas categorias e postula
sua interação na produção e na reprodução das desigualdades sociais (BILGE, 2009,
p. 70).
O interesse teórico e epistemológico de articular sexo e raça, por exemplo,
fica claro nos achados de pesquisas que não olham apenas para as diferenças en-
tre homens e mulheres, mas para as diferenças entre homens brancos e negros
e mulheres brancas e negras, como observado nos trabalhos realizados no Brasil
mobilizando raça e gênero para explicar por exemplo as desigualdades salariais
ou diferenças quanto ao desemprego dentro das especificidades dessas categorias
(GUIMARÃES, 2002).
Alguns trabalhos no campo da psicologia social, por exemplo, centraram suas in-
vestigações acerca da categoria gênero, como pode ser visto em Rocha (1995) e
Vilhena (2002), os quais apontaram para os custos psicológicos em termos de es-
tigma e preconceitos em relação à mulher encarcerada. Basicamente, tais autores
buscaram responder à seguinte questão: Que tipo de subjetividade se constitui
no espaço prisional feminino? Como as mulheres elaboram e lidam com a falta de
liberdade? (ALVES, 2015).
Apesar de tais estudos auxiliarem no entendimento da dimensão de gênero nas
prisões, uma vez que elas têm o mérito de desmasculinizar as narrativas sobre o
universo prisional, eles têm se revelado insuficientes no que diz respeito à especifi-
cidade da mulher negra. Esta pesquisa se propôs a uma reflexão interseccional de
como raça, gênero e classe social produzem a categoria mulher-negra-pobre-en-
carcerada, tomando como ponto de partida a perspectiva feminista negra como
desenvolvida por Lélia Gonzalez (1983), Patrícia Hill Collins (1990), Sueli Carneiro
(1995) e Kimberley Crenchaw (1995). De acordo com as autoras, os processos de
produção de vulnerabilidade social e de dominação não podem ser entendidos sem
se levar em conta a intersecção das categorias sociais: raça, gênero e classe social.

PROBLEMA DE PESQUISA
O problema estudado girou em torno da questão: Os marcadores sociais da
diferença e a intersecção entre estes, foram significativos para a condição de pri-
vação de liberdade na qual se encontravam as mulheres negras custodiadas no
Centro de Reeducação Feminina Maria Júlia Maranhão em João Pessoa? A hipótese
a ser testada, versou sobre a afirmação de que a intersecção entre os marcadores
sociais da diferença presentes na vida de mulheres negras custodiadas no Centro
de Reeducação Feminina foi significativa para o desfecho privação de liberdade
dessas mulheres.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 371


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Para se problematizar sociologicamente a realidade apontada, partiu-se então,
do pressuposto de que as minúcias da complexa relação com o sistema carcerário
feminino, e especificamente, tendo em vista, a forte criminalização dessas mu-
lheres apresentada pelos dados preliminares, não podiam, ser satisfatoriamente
apreendidas sem que se levasse em consideração suas trajetórias de vida, bem
como, as forças e tensões sociais que marcam e demarcam as suas posições na
sociedade e as relações estabelecidas com o sistema prisional enquanto mulheres
negras e pobres. Dessa forma, o estudo dessas relações pode ser revelador não
apenas do lugar social do ponto de vista dos direitos civis e sociais (ou da ausência
destes) de mulheres negras em um mundo no qual a sua própria condição racial e
de classe as coloca em situação de vulnerabilidade, mas, também, em relação às
garantias legais de igualdade e liberdade.
A partir da perspectiva dessas mulheres, destaca-se a seguinte questão: quais
são as experiências particulares e coletivas socialmente agenciadoras do lugar
social dessas mulheres que se reproduzem e se reafirmam, mas também que se
redefinem e se transformam, no processo de privação de liberdade? Este questio-
namento, tanto a respeito dos elementos de afirmação de novos lugares sociais (no
caso, a prisão), quanto daqueles passivos de reprodução de padrões sociais que
inferiorizam e negam reconhecimento social a essas mulheres, serve de alicerce
articulador para essa questão.
A problemática delineada concebe substância quando traduzida em duas ques-
tões que se pretende abordar ao longo da pesquisa: Que sentidos essas mulheres
atribuem ao seu lugar social antes e depois da privação de liberdade? Em que me-
dida, tais sentidos formulados por essas mulheres, sugerem de um lado, elemen-
tos resultantes da incorporação das estruturas que lhes foram impostas (condição
social da mulher negra, condições de acesso à educação, trabalho, estruturas fami-
liares e sociabilidades, etc.) e, de outro, algo de resistência, protagonismo e reela-
boração, traduzidos, sobretudo, na trajetória até a privação de liberdade. Do ponto
de vista operacional, no que diz respeito aos relatos que foram fornecidos por elas,
seguiu-se o desafio de responder à problemática sem abandonar a pretensão de se
adicionar considerações sociológicas com alguma possibilidade de generalização.

METODOLOGIA
Este estudo se caracteriza como sendo qualitativo, tendo em vista, sua pre-
tensão em apreender a realidade pela perspectiva dos sujeitos através das narra-
tivas decorrentes das experiências vividas. Visando conhecer o perfil socioeconô-
mico delas, foi realizada a coleta de uma série de dados socioeconômicos, como
por exemplo: renda mensal, escolaridade e condições de moradia. Para a pesquisa
dos hábitos de vida anteriores e após a vida no cárcere se utilizou de entrevistas
com base na metodologia de entrevistas com roteiro semiestruturado, no intuito,
de entender como se deu o encarceramento e responder às questões que deram

372 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
origem a essa investigação, às quais se basearam em perceber através das parti-
cularidades dessas mulheres sobre como as suas vivências às conduziram nessa
trajetória perpassada pela experiência de cárcere, e como elas se utilizam dessa
experiência para reelaborar sua autopercepção, bem como, o que elas pensam ser
a visão do Estado sobre elas.
Foram entrevistadas uma única vez quatro mulheres negras que se encontravam
cumprindo pena privativa de liberdade no Centro de Reeducação Feminina Maria
Julia Maranhão. As quatro mulheres se autodeclararam pretas e pardas, às informei
previamente sobre os objetivos da pesquisa e de sua finalidade estritamente acadê-
mica. Na ocasião, disponibilizei às mesmas o amplo acesso ao Termo de Consenti-
mento Livre e Esclarecido – TCLE, no qual consta, principalmente, o compromisso
desta pesquisadora com a preservação de suas identidades e a garantia do sigilo
necessário à conduta ética em pesquisa.
Esta pesquisa foi elaborada de acordo com as diretrizes e normas regulamen-
tadas de pesquisa, envolvendo seres humanos, atendendo à Resolução nº 466, de
12 de dezembro de 2012, do Conselho Nacional de Saúde do Ministério de Saúde,
Brasília, DF, que prevê o apontamento dos riscos e desconfortos às participantes e
que, em nenhum sentido, contribuiu para o agravamento da condição de vulnera-
bilidade social das mulheres informantes.
Para a coleta dos relatos foi elaborado um roteiro de entrevista que serviu de
norte, contendo dados como a raça/etnia, situação sociodemográfica, socioeco-
nômica, características individuais, interação social, contextos socializadores etc.
Estas questões estavam de certa forma diluídas dentro da interação proporcionada
pelas entrevistas e tinham como finalidade ampliar o horizonte de conhecimento
dos diversos fatores que poderiam ter influência sobre a privação de liberdade de
mulheres negras, e traçar um parâmetro dentro da gramática social apresentada
que permitisse observar como elas percebem o olhar do Estado sobre elas, e como
elas próprias se enxergam. A variável dependente foi a privação de liberdade, e
as variáveis independentes foram referentes aos marcadores sociais da diferença
presentes, e a relação de Interseccionalidade entre eles, envolvendo raça, idade,
acesso à educação, à saúde, à qualidade de vida, à inserção no mercado de trabalho,
etc.
As entrevistas foram realizadas sempre individualmente, a primeira em uma sala
de aula que no momento estava sem atividades regulares, a segunda em um salão
que era utilizado como oficina de costura, a terceira e a quarta foram realizadas
em uma área externa semelhante a um terraço. Tinham duração média de duas
horas, começavam às 14h30min, e eu tinha a preocupação de não poder deixar
a atividade extrapolar o limite da claridade natural do dia, não me era permitido
estar dentro da unidade ou em contato com nenhuma apenada se o dia já estivesse
escurecendo. De acordo com a especificidade das trajetórias de vida de cada entre-
vistada, a dinâmica da atividade ia se desenrolando, tendo sido em sua totalidade
entrevistas densas, demoradas e repletas de emoção.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 373


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Como as mulheres negras eram convidadas, e, mediante à explicação da ativi-
dade elas iam aceitando participar da pesquisa, eu não as conhecia e nem sabia
previamente de qualquer informação a respeito delas ou de seu processo judicial.
Inicialmente, havia o planejamento de realizar análise documental dos prontuários
dessas mulheres, no entanto, e de última hora, já durante a atividade de campo,
fui informada de que não seria permitido o meu acesso a tais documentos, devido
haver uma outra atividade de extensão de um curso de graduação em direito, rea-
lizando esse tipo de coleta de dados, pelo que, a administração da unidade julgou
ser “muita gente mexendo nesses documentos”, impossibilitando para esta coleta
o acréscimo de informações contidas nos prontuários das mulheres. Na pesquisa de
fontes estatísticas, foram realizadas coletas de dados oficiais em órgãos públicos,
como Secretaria de Segurança Pública do Estado; Ministério da Justiça - MJ, através
do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias, Departamento Peniten-
ciário Nacional – DEPEN, e Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, com obje-
tivo de contextualizar o estudo no âmbito demográfico da super representação das
mulheres negras nas prisões paraibanas.
Durante as entrevistas, as agentes carcerárias não interviam nas atividades,
apenas observavam à distância, não tendo dessa forma, acesso às informações
prestadas pelas mulheres, que em nenhum momento demonstraram incômodo em
visualizar as agentes, ainda que à distância. As entrevistas ocorreram de modo in-
formal e sem o uso de gravador de voz (não foi permitida utilização de qualquer
aparelho eletrônico), apenas me utilizei de anotações no diário de campo. Algumas
anotações não eram realizadas na presença das entrevistadas, ao sair da unidade,
ainda no estacionamento, anotava as informações mais importantes e aproveitava
para relembrar impressões, eventos ou situações presenciadas e as emoções expe-
rienciadas, as transcrevia nesse momento, evitando-se que passagens importantes
ficassem de fora das descrições apresentadas por elas.
Houve ainda, a pretensão de observar a vida das mulheres no espaço, no caso,
a instituição prisional e suas nuances na rotina delas. Além disso, as entrevistas, por
serem informais, permitiram que a performance esperada dos agentes do Estado
para com a pesquisadora não sofresse a interferência de discursos perpassados
por formalidades que poderiam vir a mascarar a realidade cotidiana à qual se pre-
tendeu captar com a observação de campo, tanto daqueles que desempenhavam
papeis de atuação diretamente relacionado às presas, bem como, dos responsáveis
pela gestão da instituição.
Houve a preocupação com a definição de alguns termos que eram utilizados em
comum por todas elas, os quais, as posicionavam nas situações de maior ou menor
severidade, quanto ao regime de privação de liberdade. Dessa forma, foi utilizada
a descrição de categorias nativas, conceituadas em nota de rodapé, através de de-
finições apresentadas em comum por todas as mulheres. Após a transcrição desse
material, seguiu-se sua análise a partir de categorizações analíticas que engloba-
ram as unidades temáticas abordadas nas entrevistas.

374 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
RESULTADOS E ANÁLISE
As participantes desta pesquisa foram selecionadas a partir do critério de auto-
declaração racial. A maioria delas têm poucos anos de estudo e/ou ensino funda-
mental incompleto, apenas uma possui ensino fundamental completo. Têm a partir
de 3 filhos, e somente uma não tinha filhos. Uma delas possuía estrutura de autono-
mia financeira, com renda mensal proveniente de um salão de beleza próprio em
sua residência, as demais, apresentavam grande vulnerabilidade econômica, uma
delas trabalhava esporadicamente como doméstica, outra com prostituição e a úl-
tima fazendo bicos como manicure. Duas delas foram presas por roubo à mão ar-
mada (assalto), e as outras duas foram presas por tráfico de drogas. Três das quatro
mulheres eram primárias, com faixa etária entre 32 e 45 anos de idade. Apenas uma
possuía advogado particular, e somente essa, teve concedido um benefício proces-
sual de prisão domiciliar fechada, as demais, responderam aos processos presas,
duas delas conseguindo após período fechado a progressão para o semiaberto.
Três delas, no momento da entrevista, encontravam-se em regime fechado por
terem cometido “quebra”1. Todas são oriundas de bairros pobres da capital e do in-
terior, e tiveram outros membros da família presos anteriormente às suas prisões.
Nas trajetórias de vida, observa-se correlação entre os tipos de crime imputa-
dos a elas (tráfico de drogas e roubo) e a severidade na aplicação da pena. Suas
experiências com a justiça criminal foram muito semelhantes: elas permaneceram
em privação de liberdade antes da sentença condenatória; tiveram punições se-
veras aplicadas, sem que lhes fosse considerada para benefício a condição de pri-
mariedade; a maioria delas retornou ao regime fechado por meio de uma noção
de castigo por uma quebra de regra considerando-se para tanto, motivos fúteis
em comparação à penalidade; todas elas têm passado de sofrimento de violência
física, sexual e emocional, bem como, exclusão socioracial.
Em todos os casos aqui analisados, houve o relato da incapacidade da (o) juíza
(z) criminal em exercer uma conduta que pudesse transmitir proporcionalidade
entre conduta criminosa e punição, que não fosse alicerçada sobre exclusões e
omissões próprias de um Estado racista e reprodutor de diferenças, que precariza,
de tal forma, a vida daquelas indivíduas não desejáveis, de maneira que, a única
solução para estas é o seu encarceramento em massa.
A prisão tem sido a solução punitiva para uma gama completa de problemas
sociais, para os quais, o Estado tem sido incapaz de oferecer respostas. Feministas
abolicionistas tem alertado para o que chamam de “farra do aprisionamento”: em
vez de construírem moradias, jogam os sem- teto na cadeia; em vez de desenvol-
verem o sistema educacional, jogam os analfabetos na cadeia. Jogam na prisão os
desempregados decorrentes da globalização do capital e do desmantelamento do
estado de bem estar social (DAVIS, 2003; WACQUANT, 2001).

1 Quebra é a forma como as entrevistadas se referiram ao ato de descumprir por parte delas,
as regras dos regimes de prisão domiciliar fechada e semiaberto.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 375


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
CONCLUSÕES (OU CONSIDERAÇÕES FINAIS)
Constatou-se que o lugar que estas mulheres ocupam dentro sistema penal é
um lugar historicamente demarcado, pesando sobre seus corpos a própria cate-
gorização paradigmática do encarceramento brasileiro. Percebeu-se a persistente
presença do racismo institucional no olhar do judiciário, seja na aplicação de penas
muito duras, seja na negação à garantia dos direitos assegurados através da Lei de
Execução Penal durante o cumprimento das penas impostas, ou ainda, na imposi-
ção de ideias de castigo baseadas em julgamentos pessoais por parte dos juízes,
alicerçadas claramente em componentes de raça, classe e gênero.
Demonstra-se, dessa forma, que a aplicação da pena não se basta na condenação
(ou apenas em prisão preventiva sem sentença transitada em julgado), mas, ultra-
passa o momento da leitura sentencial. Ela é aperfeiçoada diariamente nas imposi-
ções de castigos no interior e fora da unidade, na determinação do sofrimento, e na
retirada sistemática dos direitos.
Por meio do racismo se empreende decisivamente a metodologia de sua abor-
dagem, a saber: no viés policial, por meio de condenação antecipada no momento
da abordagem, no olhar dos juízes e promotores, através do lugar racial e social de
privilégio que ocupam, na ineficácia da defensoria pública em cumprir seu papel na
garantia dos direitos dessas pessoas, bem como, dos demais atores que compõem
a estrutura responsável pela alimentação do sistema prisional brasileiro.
Entende-se que esta pesquisa cumpriu seus objetivos, pois, por meio da litera-
tura utilizada e do trabalho realizado no campo empírico, foi possível examinar e
compreender as peculiaridades da exclusão socioracial na vida das entrevistadas,
e como ela se manifesta no encarceramento em massa dessa população, trazendo
entendimento a respeito das nuances que instrumentam a seletividade penal, a
qual, se constitui como uma realidade no Brasil, verificada através dos números alar-
mantes que trazem mulheres negras e pobres como sendo a maioria absoluta das
encarceradas no contexto nacional.

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376 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


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social e sua inscrição na cultura contemporânea. Fortaleza: Revista Mal-Estar Subjetivida-
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WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.

AUTORIA
Suéria Dantas de Oliveira
Universidade Federal da Paraíba/UFPB - PPGS
E-mail: sueriadantas@yahoo.com.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4756-9563
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3089785123426262

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 377


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
MORTES DE JOVENS NEGROS EM SALVADOR
Andaraí Ramos Cavalcante

E nas quebradas, nos guetos


Nós juventude negra,
continuamos a ser exterminado.
Quem se importa com o genocídio de uma população
que não era nem pra existir?
A reposta é simples,
é melhor a limpeza étnica;
Pra quando o IBGE chegar
não ter tanta gente preta no senso.
É melhor leis serem criadas
pra dar passe livre à polícia,
pra que esse genocídio continue instalado,
do que as cotas sejam louvadas como reparação,
e não como vitimismo,
pra classe burguesa não se trata de vidas.
(Trecho da poesia Favela na Veia, de Mateus Silva)

INTRODUÇÃO

Este artigo se propõe a apresentar o aumento dos índices de violência na cidade


de Salvador, mesmo nestes tempos tão difíceis que vêm abalando o mundo, desde
os meses iniciais do ano de 2020, em decorrência da pandemia do novo coronavi-
rus – COVID-19. Uma experiência de proporções inimagináveis para a humanida-
de, que no Brasil segue tornando ainda mais visíveis as marcas históricas de desi-
gualdade, em paralelo à magnitude dos impactos desse problema de saúde global,
dados estatísticos publicados em diversas mídias têm chamando a atenção para
esse fato o aumento da violência. Um dos aspectos mais enfatizados com relação à
pandemia pelas autoridades e órgãos de saúde diz respeito exatamente à atribui-
ção aos idosos como sendo grupo de maior risco em relação ao novo coronavírus,
mas mesmo em tempo de pandemia em que a humanidade passou a viver uma
paralisação, não impediu nem diminuiu o riscode situação de violência e mortes de
jovens, em especial os jovens negros.
O objetivo do artigo é evidenciar que em um momento pandêmico e trágico
como este, os problemas históricos que fazem parte do que pode ser identificado
como as “mazelas brasileiras” contribuem para agravar ainda mais o quadro atual.
Em balanço já publicado nos três primeiros meses deste ano, é demonstrado o

378 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
crescimento da violência. Situação que não surpreende, já que na minha pesquisa
de doutorado, cujo objetivo foi a compreensão de como esse racismo estrutura as
manifestações de violência no país, a partir da análise de casos de assassinatos de
jovens negros, decorrentes de ações de policiais militares e de linchamentos por
populares, na cidade de Salvador, Bahia foram evidenciadas as marcas históricas
do racismo na sociedade brasileira.
Apresentaremos alguns casos de violência racial contra jovens em Salvador,
identificados e noticiados com grande repercussão pelas mídias sociais, em ple-
na pandemia, demonstrando o modo operativo de agir como uma prática histó-
rica, em relação aos corpos negros, nas comunidades que têm como maioria a
população negra. Outro aspecto que será sinalizado é a prevalência, por parte da
sociedade civil, da indiferença e do silenciamento frente à permanência de um
cotidiano de violência em relação ao jovem negro que continua. Mas apesar disso,
foram identificadas também várias formas de protesto, com destaque para os mo-
vimentos das mães de vítimas da violência do Estado. Em Salvador, o que chama a
atenção também são os protestos nos bairros periféricos onde ocorrem as mortes,
assim como grupos organizados de poetas que usam a arte como forma de denún-
cia e resistência.

JUVENTUDES BRASILEIRAS
Desta forma, considero importante começarmos com trechos da poesia Favela
na Veia, que narra o extermínio e o genocídio cotidianos, vivenciados pelos jo-
vens negros nas quebradas, nos guetos, nas favelas. E apresentando a seguinte
questão:Que são os jovens brasileiros? No Brasil, de acordo com o Estatuto da
Juventude são considerados jovens a parcela da população com idade de 15 a 29
anos. Neste sentido, como no presente estudo o destaque são as juventudes bra-
sileiras, em particular a juventude negra, tais questões introdutórias são impor-
tantes, entre outros aspectos, porque, por um lado, historicamente a questão do
reconhecimento da diversidade ainda é um processo em construção e, por outro,
os jovens alvos deste estudo, os jovens negros, vivenciam profundamente o estado
de vulnerabilidade.
Quanto ao quantitativo de jovens na população brasileira, segundo dados do
IBGE do censo de 2010, o número de jovens corresponde a um quarto da popula-
ção no Brasil, ou seja, em 2020 53,02 milhões de pessoas. Segundo esse mesmo
censo, tais jovens se autodeclararam, com relação à raça/cor e sexo, de cor parda
45%, preta 15%, branca 34%, sendo 49,6% homens e 50,4% mulheres.
Quanto nível de escolaridade os números são: 33,1% estudaram só o funda-
mental, 48,8% concluíram só o ensino médio e só 16,2% dos jovens no Brasil têm
ensino de nível superior. Dos jovens de 15 a 24 anos que frequentavam o nível
superior, 31,1% dos estudantes eram brancos, enquanto apenas 12,8% eram pre-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 379


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
tos e 13,4% pardos, evidenciando um aumento de estudantes com curso superior,
mesmo que as desigualdades se mantiveram.
Tomando por base os dados da OMS e a partir de uma pesquisa realizada por
pesquisadores da Austrália, Grã-Bretanha e Suíça, publicada pela revista The Lan-
cet, a principal causa da morte em termos de números de jovens entre 10 e 24
anos são os acidentes de trânsito. Os acidentes causam 11% das mortes de jovens
no mundo, sendo os homens os maiores atingidos. Como segunda causa aparece
a violência, sendo o suicídio a terceira maior causa de morte de jovens no mundo.
Mas o Brasil segue uma tendência diferente. Os homicídios estão como primeira
causa de morte de jovens. Conforme os dados constantes dos Anuários publicados
pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública1 ficam evidenciados não só tal tendên-
cia como também um aumento contínuo nos números das violências intencionais
no período de 2012 a 2017. Segundo o 11º Anuário Brasileiro de Segurança Pública,
publicado em 2017, o Brasil, em 2016, teve um total de sete pessoas assassinadas
por hora. As mortes foram resultantes de homicídios dolosos, lesões corporais se-
guidas de morte, latrocínios e ações policiais. Conforme consta no Atlas da Violên-
cia 2019, o Brasil atingiu a marca de 31,6 mortes para cada 100 mil habitantes em
2017.
Historicamente quem são, na população brasileira, os alvos das violências in-
tencionais? São homens, em sua maioria jovens, que ao longo de décadas vêm sen-
do a maioria das vítimas, em especial da violência policial. Documento que inclui
o posicionamento de décadas atrás do MNU sinaliza também que os números de
mortes violentas no Brasil superam mortes em países que vivenciaram situações
de guerra. Tais mortes atingem, em sua maioria absoluta, jovens do sexo mascu-
lino em idade entre 15 e 29 anos. Ainda de acordo com o documento, a cada 100
pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras, oque significa dizer que os negros,
no país, têm uma probabilidade 23,5% maior de serem vitimados de assassinato
em relação aos demais grupos étnico-raciais.
Tais obstáculos concretizados através do racismo manifesto têm sido histori-
camente tão determinantes que, a despeito de todas as lutas que têm marcado a
trajetória do povo negro no Brasil e, em tempos mais recentes, de todo processo
de luta do MNU, só a partir da mobilização para participação na III Conferência de
Durban passou a ser travado um debate mais efetivo sobre o racismo presente nas
estruturas do Estado brasileiro. No país, na maioria das vezes, só reconhecemos o
racismo interpessoal, o que consequentemente tem reafirmado, ao longo da nossa
história, que as desigualdades são resultantes das questões sociais.
Telles (2006) destaca em sua pesquisa realizada no Brasil que práticas sutis indi-
viduais e institucionais são comumente caracterizadas como racismo institucional.
Na realidade brasileira, tais práticas derivam da forma de pensar que naturaliza a

1 Foram usados especialmente os Anuários dos anos 2016 e 2018, nos quais constam números
relativos aos anos de 2012 a 2017 e Atlas da Violência 2019, referente à informação sobre taxa de mor-
te por 100 mil habitante em 2017.

380 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
hierarquia racial e causam mais danos do que os menos comuns e mais divulgados
insultos raciais.
O racismo institucional, segundo Jones (1976), pode ser definido como as prá-
ticas, as leis e os costumes estabelecidos que sistematicamente refletem e pro-
vocam desigualdades raciais na sociedade norte-americana. Citando Carmichael
Hamilton e tomando como referência exemplos de situações concretas por ele
destacadas, afirma que este identificou a representação de um dos dois sentidos
do racismo institucional como sendo “a manipulação consciente de instituições, a
fim de atingir objetivos racistas” (JONES, 1976, p. 05). Com isso, as instituições ra-
cistas são apenas extensões do pensamento racista individual. Entretanto, somos
contrários ao entendimento do autor, por considerarmos que o racismo institucio-
nal e o individual se retroalimentam, têm em comum a desumanização do povo
negro. Ressaltamos aqui, para aprofundar e ampliar a compreensão do debate, a
importância de pensar o racismo em termos estruturais.
Assim, a partir de mais um episódio de demonstração do racismo no Brasil,
ocorrido durante a realização de uma partida de futebol no dia 29 de agosto de
2014, em Porto Alegre, a ONU afirma, através de relatório publicado em 12 de
setembro de 2014, em Genebra, a constatação do reconhecimento de que o ra-
cismo neste país é estrutural e institucionalizado, conforme citação a seguir. Este
posicionamento é completamente diferente das tentativas feitas há mais de 80
anos pela UNESCO, através das pesquisas apresentadas nas seções anteriores e
que tentaram mostrar o Brasil como exemplo de democracia racial.

GENEBRA ­O racismo no Brasil é “estrutural e institucionalizado”


e “permeia todas as áreas da vida”. A conclusão é da Organiza-
ção das Nações Unidas (ONU), que publicou nesta sexta feira,
12, seu informe sobre a situação da discriminação racial no País.
No documento, os peritos concluem que o “mito da democracia
racial” ainda existe na sociedade brasileira e que parte substan-
cial dela ainda “nega a existência do racismo”.2

Posicionamento nessa linha já havia sido pontuado pelos peritos da ONU no


relatório resultante de visita realizada entre 04 e 14 de dezembro de 2013, donde
se lê que

os negros no País são os que mais são assassinados, são os que


têm menor escolaridade, menores salários, maior taxa de de-
semprego, menor acesso à saúde, são os que morrem mais cedo
e têm a menor participação no Produto Interno Bruto (PIB). No
entanto, são os que mais lotam as prisões e os que menos ocu-
pam postos nos governos.3

2 http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,racismo-e-estrutural-e-institucionalizado-no-
-brasil-diz-a-onu,1559036.
3 http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,racismo-e-estrutural-e-institucionalizado-no-
-brasil-diz-a-onu,1559036.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 381


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Em 07/05/2015 a ONU publicou em seu portal que os jovens negros são as prin-
cipais vítimas da violência no país. O portal da Anistia Internacional no Brasil, ao
tratar do fato, utiliza a expressão extermínio da juventude negra para expressar a
gravidade da situação, reafirmando, como a ONU, ser a juventude negra a maior
vítima de homicídios. Do mesmo modo, os movimentos negros, como forma de de-
nunciar toda essa situação, também falavam e continuam falando em extermínio
ou genocídio dos jovens negros, como o fez Nascimento em 1978, quando colocou
como título do seu livro Genocídio do Negro Brasileiro, para tratar sobre o racismo
no Brasil.

MORTES DE JOVENS NEGROS EM SALVADOR


Se nos parágrafos anteriores procuramos apresentar, de um modo geral, dados
estatísticos sobre os números da violência e alguns aspectos sobre a violência no
Brasil, passaremos a centrar atenção nos dados sobre a Bahia. É importante come-
çarmos constatando que, conforme matéria publicada pelo Monitor da Violência
há uma mudança quanto às regiões que anteriormente apresentavam números
mais elevados, sendo que nesta última década são as regiões Norte e Nordeste
que detêm oito das dez polícias mais letais do país. Na Bahia os dados são preocu-
pantes.
A Bahia, e em particular Salvador, não é diferente das demais regiões do Brasil
no que diz respeito ao perfil das vítimas. Muito pelo contrário, inclusive, neste
estado e em sua capital a maioria da população se autodeclara negra, sendo apro-
ximadamente 75% dos baianos e 80% da população soteropolitana. No estado e na
capital a maioria absoluta dos mortos por policiais são homens negros com idade
entre 15 e 29 anos, como também adolescentes entre 10 e 15 anos. De acordo com
o 12º Anuário, as operações da Polícia Militar são responsáveis por aproximada-
mente 90% dos óbitos provocados por policiais no estado.
Nesse sentido, as permanências de práticas racistas sobre novas roupagens e
a sua concretização através das manifestações violentas têm contribuído com o
aumento dos indicadores de violência. Paim (2008), ao tratar da complexidade e
dificuldade da definição de violência, sugere utilizarmos a expressão violências.
Mesmo que Salvador na época apresentasse dados de violência menores que o
Rio de Janeiro e São Paulo, já apontava um acelerado ritmo do seu crescimento na
passagem da década de oitenta para a de noventa.
Constatou ainda que, naquele período,

Os homicídios têm ocupado o primeiro lugar entre as causas de


morte violenta, constatando-se uma maior mortalidade mascu-
lina para todas as faixas etárias, especialmente entre adolescen-
tes e adultos jovens, além de uma desigualdade social diante do
risco de morrer (Almeida, 1998; Paim et al., 1999; Macedo et al.,
2001). (PAIM, 2008, p. 159).

382 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Ficando evidenciado ainda que

Nesse tipo de violência, apenas 1% das mortes teve como víti-


mas pessoas de cor branca (Santos et al., 2000), ou seja, a maior
parte dos homicídios decorrentes da intervenção policial, na
cidade do Salvador, atingiu aos negros e aos mulatos. (PAIM,
2008, p. 159)

Como visto na citação, o aumento sistemático da violência em Salvador, já na


década de noventa do século XX, contribuiu com as mobilizações para que, ainda
em 1996, se criasse o Fórum Comunitário de Combate à Violência, que à época
teve como objetivo propor políticas e ações de combate do crescimento da violên-
cia em Salvador, já um grave problema naquele período. Dentre as muitas ativida-
des realizadas pelo Fórum, destaca-se a entrega, em 2008, ao então governador,
de uma Carta aberta de entidades da cidadania4, assinada por 21 organizações, em
sua maioria entidades e movimentos sociais que lutam por questões relacionadas
à juventude.
O documente é finalizado com a solicitação, para o governador, da construção
de “uma Bahia socialmente mais justa, que proteja e cuide de seus jovens cida-
5

dãos, lhes assegurando assim o direito fundamental à vida.” Fica evidente, assim, a
tentativa de prevenção de uma realidade que, com passar do tempo piorou muito,
atingindo números alarmantes.
Tratando mais especificamente sobre a capital baiana, Calazans (2016), em pes-
quisa realizada sobre a Organização Social do Território e os Homicídios dos Jovens
em Salvador, referente ao período de 2012-2013, contribui para reafirmar dados já
registrados há mais de 15 anos, num estudo realizado por Paim (2008), bem como
os dados dos movimentos negros e das organizações internacionais, com relação
às mortes dos jovens negros. A autora aponta que há uma distribuição desigual de
mortes por homicídio doloso no espaço urbano da cidade de Salvador, no período
analisado. Essa espacialização das mortes é demonstrada pela elevada ocorrência
delas nas áreas mais pobres das áreas urbanas da cidade.
Olhando os dados do primeiro semestre, se confirma o que as mídias sociais têm
destacado, mesmo sendo a pandemia o foco principal. Em 2020, em comparação
como 2019, houve um crescimento de 7% no número de ocorrências,6 sendo 2.934
em 2019 e 3.148 em 2020 de modo geral. Mas ressalta ainda que outro assunto
também tem chamado atenção das mídias e imprensa, que são as manifestações
em todo mundo, mas principalmente no EUA contra morte de um homem negro

4 Ver: https://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1250176-carta-aberta-de-entida-
des-da-cidadania-ao- governador-jaques-wagner
5 Ver: https://atarde.uol.com.br/bahia/salvador/noticias/1250176-carta-aberta-de-entida-
des-da-cidadania-ao- governador-jaques-wagner
6 Ver: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/2020/09/03/no-de-pessoas-mor-
tas-pela-policia-cresce- no-brasil-no-1o-semestre-em-plena-pandemia-assassinatos-de-policiais-tam-
bem-sobem.ghtml

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 383


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
por policias brancos, mas é importante ressaltar que mesmo em meio às manifes-
tações e debates resultantes desse episódio, no Brasil a violência racial segue se
materializando sem mais a sutileza predominante.
São vários casos de violência policial contra jovens por todo o Brasil, mas vale
citar alguns: o caso João Pedro Pinto que ocorreu no Rio de Janeiro quando o jovem
de 14 anos morreu mesmo seguindo as orientações da OMS porque teve a sua casa
metralhada com pelo menos 70 tiros. O caso do jovem Guilherme Silva Guedes de
15 anos em São Paulo que ficou desaparecido e o corpo foi encontrado depois com
marcas de tiros em Diadema.
Em destaque, casos que ocorreram em Salvador, com repercussão também na
imprensa e mídias sociais nos quais a ação violenta da polícia reproduziu a violên-
cia racial impetrada. Destaca-se aqui o caso da criança de 11 anos morta no bairro
da Sussuarana, o caso do jovem agredido por policial no bairro de Paripe, o caso
do jovem morto no bairro de Santa Cruz/Nordeste de Amaralina, o caso ocorrido
no bairro da Liberdade, onde cerca de oito jovens foram física, moral e psicolo-
gicamente agredidos por policiais militares, o caso do bairro de Nova Brasília de
Valeria, onde três jovens foram baleados, o caso de dois jovens um de 20 outra de
25 mortos em “confronto com a polícia” no bairro da Paz e o caso do jovem negro
de 22 anos preso, segundo a polícia, por suspeita de roubo; o argumento utilizado
para justificar a prisão foi a cor da sua pele, como foi identificado por quem o acu-
sou de roubo.
Outro aspecto relevante é a prevalência, por parte da sociedade civil, da in-
diferença e do silenciamento frente à permanência de um cotidiano de violência
em relação ao jovem negro. E, apesar disso, foram identificadas várias formas de
protestos, com destaque para os movimentos das mães de vítimas da violência
do Estado. Em Salvador, o que chama a atenção também são os protestos nos
bairros periféricos, que mesmo durante a pandemia as comunidades realizaram
protestos nos bairros de Santa Cruz/Nordeste de Amaralina, Paripe e no bairro da
Paz onde ocorrem as mortes, assim como grupos organizados de poeta que usam
a arte como forma de denúncia e resistência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalizamos, reafirmado como sinalizado por Almeida (2018), que “algumas
questões ainda persistem”. Na verdade, consideramos importante ultrapassar essa
afirmativa e reforçar que muitas questões permanecem mesmo que com novas
roupagens. Assim, não só o racismo interpessoal, individual, nem só o institucional
dá conta da complexidade do racismo na realidade do nosso país; estes são parte
de um racismo que é estrutural e estruturante na sociedade brasileira. Destaca-
mos, assim, duas formas de compreensão do racismo estrutural, que se comple-
mentam.
Oliveira (2016, p. 36) constata que o racismo estruturante é

384 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O racismo como elemento estruturante das divisões de classe,
uma vez que o processo transitório do modo de produção do
escravismo colonial para o capitalismo aconteceu sem rupturas
e protagonizado pelas mesmas elites dirigentes do período an-
terior.

Almeida (2018, p. 38), de forma sintética, apresenta uma complexa dimensão


conceitual do que é racismo estrutural, afirmado que

o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou seja,


do modo “normal” com que se constituem as relações políticas,
econômicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia
social e nem um desarranjo institucional. O racismo é estrutural.
Comportamentos individuais e processos institucionais são de-
rivados de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção.

Em suas distintas compreensões sobre o racismo estrutural, Oliveira (2016) des-


taca o racismo como estruturante das divisões de classe e, principalmente, como
um processo de continuidade entre o escravismo colonial e o capitalismo, atentan-
do particularmente para a relação de continuísmo histórico das elites dirigentes. Já
Almeida (2018) destaca que o racismo é decorrente da estrutura social e, por isso,
perpassa todos os feixes de relações. Reafirma que não se trata apenas de uma
patologia social, uma falha institucional ou individual, e sim de “uma regra”, um
traço marcante das relações estabelecidas pelo povo brasileiro.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA S; O que é Racismo Estrutural, coordenação DJAMILA RIBEIRO Minas Gerais le-
tramento 2018 coleção Feminismo Plural.

ESTEVES de C., M. A. Espacialização Da Morte E Padrões Mórbidos De Governança Espa-


cial: Homicídios De Jovem Em Salvador 2010 - 2015Cadernos do CEAS, Salvador, n. 238,
p. 568-594, 2016.

JONES. M. J. Racismo e Preconceito, da Universidade de Harvard, 1972 e traduzido em


1973 pela Universidade de São Paulo.

OLIVEIRA de D., Dilemas da luta contra o racismo no Brasil In.Racismo, Coleção Margem
Esquerda, Revista da Boitempo, 27 2º semestre 2016

PAIM J. S., Condições De Vida, Violências e Extermínio. In.Como Anda Salvador, Org. CAR-
VALHO, I. M. M de., PEREIRA C. G., Salvador; Edufba, 2006.

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Sarau da Onça Galinha Pulando 1º edição Vitoria da Conquista BA 2017.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 385


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
NASCIMENTO, A. do, O Genocídio do Negro Brasileiro: processo de um racismo mascara-
do, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1978.

AUTORIA
Andaraí Ramos Cavalcante
Universidade Católica do Salvador
E-mail: andaraircavalcante@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7789717469180516

386 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 27
Justiça Racial na
Diáspora Africana:
contribuições do
pensamento e
experiência afro-
latino-americana
ANÁLISE DAS AÇÕES DO ALTO COMISSARIADO
DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS
PARA AS CRIANÇAS NEGRAS EM SITUAÇÃO DE
REFÚGIO NO BRASIL

Carolina Rovaris Pezente


Jóicy Rodrigues Teixeira Hundertmark

INTRODUÇÃO
O tema principal de pesquisa deste trabalho é o Alto Comissariado das Nações
Unidas para Refugiados - ACNUR e crianças negras. Nesse sentido, a relevância do
artigo proposta está na demonstração de que as ações do Alto Comissariado das
Nações Unidas para Refugiados no Brasil não protege crianças negras de forma
efetiva, acarretando em uma insegurança que persegue esses corpos diante do
racismo e do adultocentrismo de nossa sociedade.
Vale ressaltar, ainda, que o enfoque de nosso objeto de pesquisa, portanto,
ronda na necessidade de demonstrar essa ausência por parte da ACNUR Brasil no
que diz respeito à proteção de crianças refugiadas negras.
A principal coleta de dados, para conseguir alcançar esse enfoque, foi realizada
por meio do site das Nações Unidas, no que se refere à ACNUR especialmente.
Além de livros de autores/as importantes para nossa pesquisa.
Esse artigo advém do projeto de dissertação de uma das autoras que buscaria
aprofundar o assunto posteriormente em sua pesquisa de mestrado, o que está
acontecendo no decorrer deste ano.

O RACISMO ENQUANTO DEMARCADOR ESPECÍFICO EM


CORPOS DE CRIANÇAS NEGRAS
Crianças são um foco muito importante do nosso trabalho porque fazem parte
da sociedade e possuem as suas próprias experiências de mundo, contrapondo à
concepção universalista do homem adulto (NUNES, 2016).
Observando que essas pessoas em específico se encontram em desenvolvimen-
to, é possível concluir que estão em mudança por meio de uma constante dinâmi-
ca, o que lhes permite construir olhares novos sobre os antigos problemas sociais
(NUNES, 2016).
Mas, fora isso, imprescindível destacar a diferença na motivação pela qual as
crianças negras e brancas não são ouvidas, nem mesmo vistas em determinadas
situações, demonstrando a importância da raça em toda e qualquer discussão. En-
quanto estas não “recebem atenção justamente por serem crianças, aquelas não

388 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
recebem por não terem nem sido consideradas, por muito tempo, crianças” (NU-
NES, 2016, p. 390).
E isso acontece diante da colonialidade1 que desumaniza os corpos de popu-
lações negras. E é exatamente por esse motivo que a decolonialidade se faz im-
prescindível na elucidação desse fato em nossa sociedade (BERNARDINO-COSTA;
MALDONADO-TORRES; GROSFOGUEL, 2020).
Essa colonialidade demarca também a necropolítica, permitindo que violências
extremas sejam perpetuadas contra populações inteiras em uma realidade em que
a morte está na frente da vida. E, em especial as populações negras, vivem para a
morte (MBEMBE, 2016).
Nesse sentido, o racismo que, nas palavras de Silvio Almeida (2018), é discri-
minação sistemática baseada na raça, manifestando-se por práticas que são (in)
conscientes e trazem desvantagens/privilégios para as pessoas, dependendo do
seu grupo racial, circunscreve de forma diferenciada os corpos de crianças negras.
E, demonstrando a realidade de meninas negras, a situação ficaria ainda mais
complexa, pois seus corpos se circunscrevem em uma infinidade de opressões, ca-
racterizando a interseccionalidade2. Nesse sentido, apesar de serem atreladas à
condição de mulher biologicamente, são marcadas por sua característica própria
enquanto crianças. Portanto, estão também definidas pela infância, além do gê-
nero e da raça (bem como outras formas de subalternização) (BARBOSA; SOUZA,
2018).
Pelo exposto, destacamos que não se pode ignorar as experiências específicas
de crianças negras. Além de analisá-las enquanto importantes atores e atrizes so-
ciais que possuem suas demandas específicas.

AÇÕES PROPOSTAS PELO ALTO COMISSARIADO DAS NAÇÕES


UNIDAS PARA REFUGIADOS EM SITUAÇÃO DE REFÚGIO
No Brasil, historicamente, a proteção da criança e do adolescente esteve atrela-
da à filantropia, à boa vontade, à compaixão ou à bondade. Com o passar dos anos,
mudou-se a concepção mediante a situação de vulnerabilidade social das crianças
e dos jovens, momento este, em que o Estado passou a adotar políticas públicas,
que se diferem da filantropia. Porém, este papel não foi assumido de forma espon-
tânea, não havia intenção de remover as crianças da rua, a real preocupação, era
referente às questões de segurança nacional e à implementação de uma política
higienista (REIS; CUSTÓDIO, 2020).

1 A colonialidade seria a desumanização de alguns corpos sem uma colônia formal, o que se
evidencia por meio da modernidade. Por esse motivo o grupo latino-americano modernidade/colonia-
lidade (MALDONADO-TORRES, 2020).
2 A interseccionalidade é caracterizada pelas consequências das sobreposições de opressões
presentes nos corpos de determinadas pessoas (CRENSHAW, 2002). Para nós, em específico no caso
proposto, seria a sobreposição de subordinações em meninas negras.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 389


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O impedimento para a efetividade dessa ação, eram as próprias crianças e jo-
vens entre zero e dezoito anos que constituem mais da metade das pessoas refu-
giadas no mundo (ONU, 2020). O objetivo era retirá-los das ruas, colocando-os em
abrigos, longe dos olhares da sociedade, sem questionar seus direitos. Algo que
não é possível realizar com as crianças refugiadas, além da grande demanda, por
ser um assunto que está em comento.
Diante da necessidade de amparo destes, surgem ações para minimizar o im-
pacto e regularizar a situação, como a Operação Acolhida. Fruto da parceria entre
o Comitê Federal de Assistência Emergencial Brasileiro, das Nações Unidas e da so-
ciedade civil, instaurada no início de 2018, é um programa que ordena a fronteira
entre o Brasil e a Venezuela, oferecendo acolhimento aos imigrantes e refugiados,
tendo beneficiado, aproximadamente, 16 mil pessoas em dois anos de execução.
O programa atua nos locais de rota da migração, consequente da localização geo-
gráfica, atendendo em ambientes que possuem acomodações, três refeições di-
árias, banheiros, lavanderia, atendimento médico e segurança, em que é possível
a obtenção gratuita de orientações acerca do processo de solicitação de refúgio,
documentação, integração social e econômica em outras regiões do país (DEFESA,
2020).
Além do acolhimento e dos trâmites legais, são ofertadas atividades de recrea-
ção, esportes e vacinas, tendo como público principal crianças e jovens, visando a
recuperação emocional e bem estar destes (ONU, 2020). Essa ação, busca amenizar
o impacto causado pelo radical processo de saída forçada da sua casa, do seu país,
onde a criança/jovem são forçados a se adaptarem à nova realidade incerta: um
novo país, uma nova língua, uma nova cultura, novos costumes, trazendo consigo
traumas e a história do seu país, sua língua, sua cultura e seus costumes. Sendo im-
portante a inclusão cultural do refugiado na cultura brasileira, com o aprendizado
da língua portuguesa, das questões históricas, das festas tradicionais, do modo de
viver, entre outros (BERTOTTI; CASAGRANDE, 2020).
Oriundas da Operação Acolhida, auxilia no acolhimento e proteção das crianças
e adolescentes desacompanhados,, com o intuito de aproximá-los do contexto e da
rotina familiar, por intermédio do trabalho executado por psicólogos e assistentes
sociais (ONU, 2020).
As ações e políticas elaboradas para as pessoas em situação de refúgio, são
provenientes da legislação brasileira, são referências para os demais países latino-
-americanos, apontada como a legislação no âmbito dos refugiados, mais moderna
da América do Sul e uma das mais avançadas do mundo (GETIRANA; LIMA, 2020).
Apesar da legislação não ser totalmente bem-sucedida no quesito aplicabilidade,
ainda é possível considerar sua desenvoltura, um progresso.

390 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
OS BENEFÍCIO E A EFICIÊNCIA DAS AÇÕES DO ALTO
COMISSARIADO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA REFUGIADOS
PARA COM AS CRIANÇAS EM SITUAÇÃO DE REFÚGIO
Inicialmente, destacamos que os direitos fundamentais são valores básicos para
uma vida com dignidade. O que não se pode confundir com as condições de pri-
vilégio em que vivem algumas pessoas (REIS; CUSTÓDIO, 2020). Nesse sentido, o
reconhecimento de direitos para os refugiados, por meio da ação de acolhimento,
possibilita a proteção efetiva dessas pessoas que estão em condição de vulnerabili-
dade, o que é essencial. Essa garantia assumida pelo Estado e sociedade civil, tem
o dever de assegurar a efetivação dos direitos fundamentais, convertendo-os em
algo acessível e real (FARIAS, 2020).
Conscientemente, a efetividade das políticas públicas, como a Operação Acolhi-
da, contribui para o manejo das crianças e jovens refugiados. Porém, essas ações
sozinhas, não resolvem todos os problemas de todas as crianças em situação de
refúgio, mas garante a permanência delas em abrigos. Nestes abrigos há acesso à
saúde e educação, portanto, diminui esta desventura que assola a sociedade con-
temporânea (FARIAS, 2020).
Na situação de refúgio, a necessidade da garantia jurídica é de extrema impor-
tância, principalmente para crianças, adolescentes e jovens desprotegidos, desam-
parados e expostos a margem de se tornarem vítimas das variações de violência,
tráfico ou recrutamento militar. Este é o alvo do trabalho da ACNUR, garantir que
os refugiados tenham seus direitos sejam assegurados (ONU, 2020).
O trabalho deste órgão visa a proteção dos direitos dos jovens contra as formas
de abuso, negligência e exploração, enquanto crianças devem viver, aprender e
brincar em espaços seguros e protegidos, como lhe é garantido. Fazendo-se neces-
sária a participação ativa destes nas decisões que os envolvem. Remando contra a
maré da universalização dos direitos, deve-se também assistir as crianças e adoles-
centes, embasado em suas necessidades específicas. As atividades de apoio psicos-
social e educação, são essenciais para auxiliar as crianças e os jovens a reconstruir
suas vidas (ONU, 2020).
Sabida a lentidão do processo de solicitação de refúgio, bem como os seus efei-
tos negativos radicais e permanentes, consequentemente, coloca-se o/a solicitan-
te de refúgio em um limbo jurídico e social, não sendo efetivamente reconhecido
no novo país, na sociedade, nem possuindo um definitivo local de residência, onde
priorizam a reconstrução de suas vidas, por intermédio do trabalho, ou no exemplo
das crianças e dos jovens, que lhes é negado a obtenção de acesso à educação,
saúde e outros direitos garantidos (RIBEIRO; SILVA, 2020).
Devendo além da celeridade da solicitação de refúgio, o incentivo de políticas
públicos que fomente ações inclusivas, preenchendo as pautas regularizadas nos
tratados ou convenções, garantindo segurança jurídica, celeridade do Estado, pro-
movendo o legítimo exercício dos direitos essenciais, bem como a dignidade, um
dos princípios basilares dos direitos humanos. Elaborando um cenário de recepção

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 391


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
desejada ao grupo de pessoas em situação marginalizada e desamparada, a cons-
tatação de existência dos direitos individuais e coletivos, geram constituem uma
estabilidade nas relações (RIBEIRO; SILVA, 2020).
Com enfoque sob a infância, que não pode mais ser vista meramente como
uma fase de preparação ao mundo adulto. Nessa fase, deve a criança dever ser
preparada para desempenhar o papel que o mundo adulto lhe impõe. Devendo a
criança ser protegida das ações diretas e indiretas que porra influenciar no compro-
metimento da formação do seu caráter, índole e moral, e que, mais tarde, poderão
comprometer a sua atuação na sociedade (REIS; CUSTÓDIO, 2020).
No atual contexto de incertezas, aumento do número de conflitos e, conse-
quentemente, aumento do fluxo de deslocamento no mundo e no Brasil, a Ope-
ração Acolhida não atinge a todas as crianças, nem serve a todos o país, atuando
na recepção e um pré-encaminhamento da criança e do jovem. Seria necessária a
ampliação dessa Operação, para que fosse possível realizar o acompanhamento
destes, uma vez que, é sabido que as dificuldades encontradas pelo refugiado, vão
bem além da fronteira. O papel do Estado não é de mero expectador, mas sim de
responsável para a conquista da erradicação da pobreza e redução das desigualda-
des sociais (REIS; CUSTÓDIO, 2020).

APORTE TEÓRICO
O trabalho demonstra os processos de colonialidade que caracterizam nossa so-
ciedade atual, por meio da decolonialidade. Definindo, em especial, as populações
negras nessa condição de suposta subalternidade (BERNARDINO-COSTA; MALDO-
NADO-TORRES; GROSFOGUEL, 2020).
Complementamos essa perspectiva por meio da necropolítica, trabalhada por
Achille Mbembe, em que as populações vivem para morte, nessa realidade em
que perdem seus filhos por meio de balas e seus pais para o encarceramento em
massa.

PROBLEMA DE PESQUISA (E/OU HIPÓTESE E/OU OBJETIVOS)


A pergunta geral que cerca a proposta que aqui desenvolvemos é: As ações do
Alto Comissariado das Nações para Refugiados, especialmente no que diz respeito
às crianças, protege também crianças negras?
Nesse sentido, trouxemos como hipótese principal a ideia que apesar de suas
ações serem sim muito importantes às/aos refugiadas/os, não abarca todas as ca-
racterísticas específicas de cada criança e aqui em especial de crianças negras.
Para responder ao questionamento proposto, nosso objetivo geral é: Analisar
se as ações do Alto Comissariado das Nações para Refugiados, em especial às crian-
ças em condição de refúgio, protege as crianças negras.

392 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
METODOLOGIA
O método de abordagem utilizado foi o dedutivo (GIL, 2008), utilizando-se do
método de procedimento monográfico (GIL, 2008). Usamos da pesquisa do tipo
documental indireta, especificamente bibliográfica (LAKATOS; MARCONI, 2017).
Para isso, além de pesquisas em livros e artigos de revista, realizamos buscas no
site das Nações Unidas, especialmente no que diz respeito à ACNUR.

RESULTADOS E ANÁLISE
Com nossa pesquisa, observamos que a ACNUR possui a Operação Acolhida que
é sim muito importante às crianças em situação de refúgio. Ela oferece uma alimen-
tação saudável, atendimento médico, segurança, recreação, vacinas e educação.
Contudo, apesar da importância advinda do programa, não existem determi-
nações específicas para crianças negras. Nesse sentido, não se pode esquecer que
elas vivem condições especiais com os processos de colonialismo e a necropolítica
presentes em nossa sociedade brasileira. Por isso, apesar das importantes deter-
minações do programa, não abarca de forma efetiva essas pessoas que estão na
marginalidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Respondendo, neste momento, à problemática inicialmente proposta, apesar
de as ações do Alto Comissariado das Nações para Refugiados serem muito impor-
tantes sim para as crianças, inserindo-as no contexto brasileiro, não observa as es-
pecificidades de crianças negras, o que é muito essencial, confirmando, portanto,
nossa hipótese de base.
Acreditamos que desenvolvemos o objetivo geral proposto de fazer uma análise
se ações do Alto Comissariado das Nações para Refugiados, em especial às crianças
em condição de refúgio, protegeria as crianças negras ou não.
Neste sentido, destacamos que a universalidade ronda ações das Nações Uni-
das, acreditando em uma suposta universalização de direitos que efetiva e asse-
gura todas as pessoas, o que é uma inverdade. Primeiramente, analisamos um
adultocentrismo que demarca inúmeros direitos e previsões, sem voz ou vez para
crianças enquanto atores e atrizes sociais. Mas, sendo estes portadores de experi-
ências específicas, há que se assegurar uma participação mais efetiva.
Principalmente no que diz respeito às crianças negras demarcadas com esses
processos de colonialismo e necropolítica, resultados do racismo presentes na so-
ciedade brasileira. Crianças essas que não têm suas especificidades analisadas e
acabam permanecendo às margens da criança branca infantilizada.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 393


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
REFERÊNCIAS

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GIL, Antonio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. – 6. ed. – São Paulo: Atlas,
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394 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


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RefugiadosoBra sil.pdf>. Acesso em: 31 jan. 2020.

AUTORIA
Carolina Rovaris Pezente
Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade do Extremo Sul Catarinen-
te (PPGD/UNESC)
E-mail: carolrpezente@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8876-1506
Lattes:http://lattes.cnpq.br/8956693536256018

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 395


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
DIREITO À (PRIVA)CIDADE: DA CÂMERA
NA CATRACA ÀS PRISÕES COM USO DO
RECONHECIMENTO FACIAL VIGILÂNCIA E
PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS NO DISTRITO
FEDERAL

Elizandra Salomão

Assustado na madrugada QNQ,


Expansão
Vou catiando no meu seis bocão
Ouvindo o som de responsa dos meus irmãos
Da quebrada
(Tropa de Elite, 2004)

INTRODUÇÃO

Quando Gu da Cei projetou imagens de usuários do transporte coletivo no teto


da Rodoviária Central de Brasília, seu objetivo principal talvez não tenha ficado cla-
ro aos transeuntes. Solicitadas via Lei de Acesso à Informação, as capturas foram
realizadas como parte do procedimento de concessão do passe livre estudantil no
Distrito Federal, que regulado pela portaria de nº 15, de 30 de abril de 20181, ins-
tituiu a utilização de sistema de reconhecimento facial para combater fraudes às
gratuidades tarifárias vigentes. O artista questionou a vigilância do usuário pelo Es-
tado2, e em sua intervenção, o tratamento dessas imagens, que puderam ser-lhe
entregues pela via institucional, quase sem barreiras.
Tratadas pelas empresas de transportes e auditadas pela Secretaria de Mobi-
lidade do DF, o sistema determina pela comparação com imagens de cadastro se
a pessoa fotografada é a mesma a quem se concedeu o benefício. A tomada de
decisão pelo software tem largo histórico de falhas, com casos de usuários que por
cortes de cabelo, óculos ou adereços diferentes das fotos de cadastro
foram apontados como fraudadores3. Ainda assim, o GDF começa a apostar na
tecnologia para identificação de pessoas em contexto de segurança pública, onde

1 DISTRITO FEDERAL. Portaria no 15, de 30 de abril de 2018. Disponível em: <http://www.sinj


.df.gov.br/sinj/Norma/39e7cf5acaba49a4a381f9dc2d74e92d/Portaria_15_30_04_2018.html>. Acesso
em: 8 out. 2020.
2 RODRIGUES, Robson. Artista expõe fotos tiradas pelo sistema de biometria facial de ônibus.
Disponível em: <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/diversao-e-arte/2018/07/18/in-
terna_diversao_arte,695764/estudante-expoe-fotos-tiradas-por-biometria-facial-de- onibus.shtml>.
Acesso em: 10 nov. 2020.
3 TEIXEIRA, Isadora. Biometria facial nos ônibus não reconhece mudança visual de alunos.
Disponível em: <https://www.metropoles.com/distrito-federal/transporte-df/biometria-facial-nos-o-
nibus-nao-reconhece- mudanca-visual-de-alunos>. Acesso em: 2 nov. 2020.

396 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
as consequências de uma falha da máquina seriam muito maiores que no acesso a
transportes.

APORTE TEÓRICO
Como aporte teórico, me utilizarei dos estudos sobre vigilância desenvolvidos
por Simone Browne, da descrição do Sistema Penal como disposto por Ana Luiza Pi-
nheiro Flauzina e do conceito de Racismo Estrutural trabalhado por Silvio Almeida.

PROBLEMA DE PESQUISA
Com este trabalho, busco relatar a análise parcial das relações do Governo do
DF com sistemas de reconhecimento facial para monitoramento de usuários do
transporte público, e seu avanço no sentido da segurança pública, na vigilância e
identificação de indivíduos em vias públicas, procurando identificar a autonomia
do usuário sobre dados captados, a transparência e qualidade do tratamento de
dados. Tal análise fundamente pesquisa monográfica para conclusão do curso de
Direito na Universidade de Brasília.

METODOLOGIA
Como metodologia de pesquisa será empregado o método de abordagem dedu-
tivo, e como método de procedimento o histórico e o monográfico4. Serão aplica-
das ainda técnicas de pesquisa documental e bibliográfica.

A BIOMETRIA FACIAL E O PASSE LIVRE ESTUDANTIL


Em uma de minhas memórias mais antigas, guardo um avião cruzando o céu
“de Brasília”. O voo, vindo do Japão, trazia a seleção campeã ao encontro do Presi-
dente da República. O mesmo céu que eu via do quintal de um lote dividido com
mais quatro famílias na Ceilândia era aquele na televisão de 14 polegadas, na qual
a família de 7 pessoas havia visto a final. Durante minha infância esse era o mais
próximo que chegávamos de um aparato tecnológico. Falando em termos de 2002,
nossa renda abaixo de qualquer índice de pobreza, e uma impressão de que a tecno-
logia dava acesso a outro mundo. Os discursos inflamados de “visitar outros lugares
navegando pela internet” no seu auge, eram ainda muito distantes da realidade
em que vivíamos.
De lá pra cá, entre catracas e grades em estabelecimentos públicos às câmeras
de vigilância em cada esquina, a cidade foi conectada ao Plano Piloto pela linha reta
do metrô de Brasília. Linha quase única, não fossem as três estações na cidade de

4 CRESWELL, J. W.; PLANO CLARK, VL. Pesqui. métodos mistos. [S.l: s.n.], 2013.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 397


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Samambaia. Por ela me foi possível sair de casa às 6h da manhã, seguir 25km até
a Rodoviária Central de Brasília e ainda assim, por falta de veículos na linha 110,
que liga aquele ponto da cidade à Universidade de Brasília, chegar atrasada para a
aula das 8h.
E foi no 110, lotado até não conseguir fechar a porta que o Governo do Distrito
Federal decidiu iniciar a implantação de sistemas de identificação biométrico-fa-
ciais. Num processo unilateral, impôs aos beneficiários dos sistemas de gratuidades
tarifárias, que incluem estudantes e pessoas com deficiência, a captação compul-
sória de suas imagens, no momento de rodar a catraca, para averiguar se a pessoa
que estava se utilizando do benefício era aquela a quem ele seria autorizado.
Medida adotada em 2018, inicia o projeto de Brasília como cidade conectada,
ou smart city, com uso de softwares de reconhecimento facial no transporte públi-
co para dirimir fraudes num sistema que custou R$290,8mi naquele ano. Os custos
com a implantação do sistema, bem como o tratamento das imagens, foram redi-
recionados para as empresas de ônibus, denominadas “operadoras” no decreto
que conformou a política, vinculando o repasse de verbas destinadas ao Passe Livre
apenas aquelas empresas que se adequassem à nova norma.
O histórico de falhas do sistema é patente, deixando de reconhecer o rosto de
usuários por uso de adereços, cortes de cabelo, e outras situações nas quais, com
o batimento por um ente humano do dado elencado pela máquina – a não iden-
tificação – se abre um procedimento administrativo para verificação de fraudes,
onde o beneficiário da política pública de passe livre estudantil e para pessoas com
deficiência, tem a oportunidade de apresentar o contraditório.

A VIGILÂNCIA
Como num processo evolutivo do Panóptico de Bentham descrito por Foucault,
a ideia da vigilância oculta partindo da torre central para as celas de parede externa
acessível se desloca para os monitores de CCTV. Centenas deles levam imagens das
cidades que compõem o Distrito Federal em espaços de grande fluxo, sendo eles
vias de grande circulação, rodoviárias e terminais de ônibus, estações do metrô,
grandes centros comerciais, entre outros, a monitoramento policial5. Quando traze-
mos essa realidade para a arquitetura do Plano Piloto de Brasília surgem questões
muito interessantes.
Enquanto os prédios residenciais têm suas câmeras privadas voltadas para a
rua, na rua se tem câmeras voltadas para pessoas. Enquanto os condomínios de
luxo se associam para obter maiores recursos de vigilância - que poderão ser ofe-
recidos à polícia em caso de acordo - não há qualquer retorno para as pessoas
que são retratadas por esses meios. Quase como um direito de vigília definitiva

5 BRASÍLIA*, Agência. Ceilândia agora tem um parque de videomonitoramento. Dis-


ponível em: <https://www.agenciabrasilia.df.gov.br/2020/01/23/ceilandia-agora-tem-um-parque-de-
-videomonitoramento/>. Acesso em: 8 out. 2020.

398 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
do Estado e dos detentores de patrimônio, o passante filmado diuturnamente tem
cada gesto passível de ser seguido por câmeras sobre as quais não tem nenhum
controle.
Essa questão se aprofunda quando cada um desses passos pode ser processado
por um software de reconhecimento facial, cuja qualidade não está transparente.
Quando esses dados, em se tratando de segurança pública, não são abarcados pela
Lei Geral de Proteção de Dados6, e ainda que passem a contar, com base na tramita-
ção do PL 936/2020 - CLDF e num contexto pandêmico, não há qualquer discussão
com a sociedade civil, representada somente pelos deputados distritais durante
uma crise de representação.

DIREITO À CIDADE

A ocupação do Planalto Central, bem como sua estrutura, é plenamente plane-


jada. Surgida a necessidade de prosseguir com a remoção de invasões das proximi-
dades do Plano Piloto na década de 60, criou-se a Companhia de Erradicação de
Invasões, loteou-se umas centenas de terrenos e afastou-se milhares de pessoas
a 30 kms do centro da cidade. Afinal (Figura 1), se quase toda a terra ao redor do
avião estava vazia (Figura 2), por que todo esse distanciamento?

FIGURA 1 7

Fonte: Agência Brasília

6 Brasil. Lei 13.709 de 14 de agosto de 2018. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-


2018/2018/lei/L13709.htm
7 Imagem: Reprodução. Agência Brasília. Disponível em: https://www.agenciabrasilia.df.gov.
br/2019/10/31/e- surgem-as-cidades-satelites/
FIGURA 2 8

Fonte: Brasil Turismo

A questão se amplifica na medida em que políticas públicas de atenção à popu-


lação no seu acesso à cidade se esvaziam aos finais de semana, com os raros ônibus
passando pelas paradas de acrílico e um dos 29 trens em circulação no Metrô-DF a
cada hora aos domingos. O adendo fica por conta da câmera na catraca, que apesar
de nem estar usando um cartão concedido pelo Estado, ainda te fotografa.
O acesso a aparelhos culturais, serviços de saúde, escolas e universidades, ain-
da centralizados no Plano Piloto9, não se limita ao horário comercial. A população
periférica, afastada do centro, paga a maior quantia de impostos em proporção à
renda e, além de ter negado o direito à cidade no bloqueio do sistema de “Passe
Livre” aos finais de semana, ainda tem uma câmera apontada para a testa, como
uma ameaça silenciosa da hipervigilância do Estado.
Uma cidade construída sobre os ombros de operários que ali nunca puderam
sonhar em morar. O distanciamento do dia a dia de pessoas comuns, trabalhadoras
de toda sorte, faz crescer uma ideia de deslocamento existencial quando me vejo,
nascida e criada numa família muito pobre da Ceilândia, ocupando um espaço eli-
tizado em posição semelhante aos moradores dali, em oposição a pessoas muito
parecidas comigo, vendendo panos de chão alvejados e sacos de lixo a R$10, faça
chuva ou sol, sendo tratadas na expectativa de plena subserviência a uns poucos,
que calharam de nascer ali.

8 Imagem: Reprodução. Brasil Turismo. Disponível em: https://www.brasil-turismo.com/distri-


to-federal/mapa- transportes.htm Acesso em 10/11/2020
9 SILVA, Frederico Augusto Barbosa da; ZIVIANI, Paula. Os Territórios da cultura: o Distrito Fe-
deral no plural. Políticas públicas, Econ. criativa e da Cult. Brasília: IPEA, 2020. p. 219–244.
Disponível em: <http://repositorio.ipea.gov.br/bitstream/11058/10261/1/OsTerritóriosCulturaDistri-
to Federal no plural_cap05.pdf>.

400 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
DIREITO À PRIVACIDADE
A busca pela segurança é uma constante nas justificativas para aplicação de
tecnologias de vigilância em políticas de Estado, mas num contexto de disputa her-
menêutica nos limites do Direito Público e do Direito Privado o apontamento de um
aparato tão invasivo em áreas tão específicas da cidade e em cidades tão especí-
ficas faz pensar na validade do Direito à Privacidade na periferia e para os perifé-
ricos. Afinal, teria o usuário do transporte público brasiliense algum arbítrio sobre
sua imagem coletada? Sabe ele como e por quem ela será tratada, por quanto
tempo e onde será guardada? Para que será usada?
Soltas no espaço crítico da força policial e de uma elite proprietária, informações
de pessoas que mal sabem que estão sendo filmadas, a quem não é dado o condão
de escolher sobre informações de sua circulação e que, nesse contexto, são todas
equiparadas a uma ameaça constante à utópica realidade dos plano pilotenses.
Alguns dos m² mais caros do país, e a certeza de que, quem ali vem, se é pobre
somente presta serviços. Se não está a serviço, deveria estar ali? Afinal, aquele
espaço não é exclusivo?
Os proprietários têm direito sobre as imagens daquelas pessoas, que somente
transitam. A polícia tem direito sobre as imagens daquelas pessoas, que são uma
ameaça ao patrimônio. O olhar deslocado parece equivocado, mas enxerga sutile-
zas doídas de admitir até para si mesmo.

O SISTEMA PENAL E O FETICHE TECNOLÓGICO


Ansioso para capturar suspeitos, o sistema penal do Distrito Federal se dire-
ciona para os vigiados. Pesquisa da Companhia de Planejamento do Distrito Fede-
ral – CODEPLAN em 201810, a população do DF comporta mais de 50% de pessoas
negras, em relação ao número absoluto desatualizado de 2.569.380 (dois milhões
quinhentos e sessenta e nove mil trezentos e oitenta) pessoas. Dessa parcela,
1.443.732 (um milhão quatrocentos e quarenta e três mil setecentas e trinta e
duas) pessoas são negras, vivendo na Região Administrativa de nº 1, o Plano Piloto,
o ínfimo nº de 64.126 (sessenta e quatro mil cento e vinte e seis) pessoas negras.
Quando observamos dados como o trazido pelo cientista político Pablo Nunes11,
de que 90,5% das pessoas presas com o uso do reconhecimento facial são negras, e
aqueles trabalhados por Joy Buolamwini e Timnit Gebru12 sobre a margem de erro

10 CODEPLAN. População negra. Disponível em: <http://www.codeplan.df.gov.br/639-da-popu-


lacao-negra-do- df-mora-em-ras-de-media-baixa-e-baixa-renda/>. Acesso em: 10 nov. 2020.
11 NUNES, Pablo. EXCLUSIVO: LEVANTAMENTO REVELA QUE 90,5% DOS PRESOS POR MONITO-
RAMENTO FACIAL NO BRASIL SÃO NEGROS. Disponível em: <https://theintercept.com/2019/11/21/
presos-monitoramento-facial-brasil-negros/>. Acesso em: 10 nov. 2020.
12 BUOLAMWINI, Joy; GEBRU, Timnit. Gender Shades: Intersectional Accuracy Disparities in
Commercial Gender Classification. Conference on Fairness, Accountability, and Transparency, p. 1–15,
2018.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 401


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
na identificação de pessoas pelos softwares de reconhecimento facial, endossados
pelo National Institute of Standards and Technology’- NIST, sobre um sem número
de softwares que falhou muito mais na identificação de pessoas negras, especifi-
camente mulheres, vemos um risco significativo no uso desse tipo de tecnologia no
âmbito criminal.
Voltadas para a resolução de delitos de patrimônio e bem distantes do come-
timento de crimes de colarinho branco, o software aplicado às câmeras de reco-
nhecimento facial pode estar viciado desde o momento de sua programação a não
reconhecer corretamente o rosto de 57,6% da população do DF, composta por
pessoas negras. Nesse ponto, a informação a respeito da qualidade e das especi-
ficações a respeito da qualidade de câmeras e softwares utilizados não é lá muito
transparente. Sabemos estar sendo vigiados, mas no universo de possibilidades do
Estado, não temos certeza sobre a confiabilidade dos produtos dessa vigilância.
O Racismo Algorítmico manifestado na alimentação de bancos de dados tem
um duplo risco possível: 1. o de simplesmente não reconhecer um rosto negro
como um rosto, como demonstra Joy Buolamwini em seu Ted Talk13; 2. o de reco-
nhecer falsamente uma pessoa negra por erro da máquina, programada de forma
que se possa confundir feições e apontar para alguém completamente alheio à
situação apurada.

RACISMO ALGORÍTMICO E DESIGN DISCRIMINATÓRIO


O viés da máquina ou machine bias é colocado no centro da questão quando ci-
dades inteiras14 decidem banir o uso da tecnologia de reconhecimento facial pelas
forças policiais, numa forte ressaca após o covarde assassinato de George Floyd. O
movimento negro estadunidense se organizou em torno da luta por um sistema de
justiça que considere essa parcela população, muito menor nos EUA que no Brasil,
pessoas cujas vidas importam. Nesse sentido, o design discriminatório contido na
organização das violências cotidianas, como o erro generalizado na identificação
de pessoas negras como criminosas já está inserido no sistema na sua forma origi-
nal, e se reproduz na formulação algorítmica de suas ações.
O Algoritmo desenhado de forma que calcula perfis afilados, peles claras e tra-
ços padronizados por programadores brancos é plenamente capaz de reproduzir
erros de pessoas, como as constantes identificações fotográficas errôneas e por
vezes tão opacas e inacessíveis que podem causar danos irreversíveis. As prisões
da bailarina Babiy Querino, “reconhecida pelo cabelo”, e Luiz Carlos da Costa Justi-
no, violoncelista sem quaisquer antecedentes, são demonstrações de como o erro

13 BUOLAMWINI, Joy. How I’m fighting bias in algorithms. Disponível em: <https://www.youtu-
be.com/watch?v=UG_X_7g63rY>. Acesso em: 21 jul. 2020.
14 METZ, Rachel. Portland passes broadest facial recognition ban in the US. Disponível em: <ht-
tps://edition.cnn.com/2020/09/09/tech/portland-facial-recognition-ban/index.html>. Acesso em: 10
nov. 2020.

402 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
de pessoas pode fundamentar violências imensuráveis sobre a vida de pessoas ne-
gras no Brasil.
Quando esse viés de raça é trazido para a máquina, num país estruturalmente
racista, vemos falar da solução algorítmica como revolução nos costumes e mostra
máxima da imparcialidade das autoridades em investigações. Definitivamente esse
não é o caso, e a máquina não é neutra. Permeada pelas ausências de diversidade
no desenho, no pensamento e na tomada de decisões, a máquina reproduz a iden-
tidade epistêmica de seu operador. A matemática per si pode não ser parcial, no
entanto ela pode, e é usada parcialmente no cotidiano, em amostras estatísticas,
softwares de pesquisa, bancos de imagens, entregas algorítmicas em redes sociais
e outras formas que podemos ou não ter conhecimento.

CONCLUSÕES
Se faz necessário compreender que o ideal da máquina despida de valores é
coisa utópica, tão distante da realidade quanto é possível. Se as companhias de
crédito podem baixar seu score considerando onde você mora, se políticas osten-
sivas de segurança pública são aplicadas no seu bairro porque lá se concentram os
delitos visíveis pelo sistema, e se você pode ser vigiado em cada passo e falsamente
apontado como incurso em artigos tais e tais do velhíssimo Código Penal e legisla-
ções correlatas, tem uma seta apontando pra você: a seta da parcialidade da má-
quina desenhada para te manter onde está, sob constante vigilância, disciplinado
e dócil, controlável e frágil.
O Distrito Federal é estratificado na sua configuração física e no imaginário vir-
tual, distanciando o objeto da vigilância, o usuário do transporte público, o passan-
te no centro do Plano Piloto, o morador das regiões administrativas periféricas, do
centro da cidade moderna e planejada de Brasília, desenhada no software da catra-
ca e na câmera na rodoviária para demonstrar que quem vem ali não se pertence,
e se pertence a outro lugar, ainda não tem direito à autonomia sobre seus passos.

REFERÊNCIAS

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AUTORIA
Elizandra Salomão Aqualtune
Lab
E-mail: elizandrasalomaon@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3089785123426262

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 405


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
“O LIXO VAI FALAR, E NUMA BOA”:
REFLEXÕES SOBRE A SUBALTERNIDADE
LADINOAMEFRICANA E SUAS ESTRATÉGIAS DE
EMANCIPAÇÃO A PARTIR DO DIREITO

Bruno de Oliveira Cruz


Gabriela Grupp

E línguas como que de fogo


tornaram-se invisíveis.
E se distribuíram e
sobre cada um deles
assentou-se uma.
E todos eles ficaram cheios de espírito santo
e principiaram a falar em línguas diferentes.
Objeto Semi-Identificado - Gilberto Gil, 1969.

INTRODUÇÃO
A presente investigação advém das inquietudes do grupo de pesquisa sobre
Teoria Crítica da Raça, do R.A.P. - Resistência Ativa Preta, grupo de produção de co-
nhecimento negro da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná, ao
se deparar com a exclusão sistemática de corpos negros e indígenas pelo Direito a
partir da ideologia do embranquecimento, que visa a manutenção das hierarquias
raciais estabelecidas pelo processo de colonização. Um dos debates levantados
refere-se à luta pelo reconhecimento de uma identidade afro-brasileira, cuja fina-
lidade é tanto enfrentar criticamente o universalismo moderno excludente quanto
refletir sobre a possibilidade de um Direito que concretamente espelhe esses cor-
pos subalternizados na realização de seus direitos e garantias.
A temática da pesquisa aproxima-se do conceito de amefricanidade, cunhado
por Lélia Gonzalez, a qual reconhece a dinâmica político-cultural latino-americana,
enfocando nas diferenciações e fragmentações desprendidas da noção de racismo
disfarçado, responsável pela subordinação de grupos sociais distinguidos pela colo-
nização moderna. Por meio da Teoria Crítica da Raça, a reflexão parte de premissas
basilares do racismo, compreendendo a construção social do conceito de raça, a
importância da denúncia do sistema de supremacia branca, e, principalmente, a
noção anti-essencialista da raça. Dado que, não obstante apresente pontos em
comum na historicidade, considera-se que cada grupo racializado se encontra em
constante desenvolvimento, contrariando a ideia de uma identidade imutável e
estática.

406 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O escopo desta pesquisa é, portanto, de aproximar o conceito territorial de
amefricanidade de possíveis estratégias de emancipação dos corpos negros e in-
dígenas por meio do Direito, bem como identificando seus limites, buscando re-
conhecer a dinâmica cultural do continente, a qual submete a subalternidade ao
racismo implícito, sustentado pelo mito da democracia racial, responsável pela do-
minação de diferentes sociedades no referido território.
Para tanto, em um primeiro momento, a investigação expõe a colonialidade
a partir do questionamento da perspectiva do narrador branco e a consequen-
te formação da identidade ladinoamefricana, aprofundando-se nas alienações da
igualdade formal assegurada pelo Direito moderno. Sequencialmente, explora a
crise da noção de universalidade do sujeito de direito, tendo em vista a racialização
diferenciada e o anti-essencialismo do sujeito ladinoamefricano. Como forma de
aprofundamento da teoria crítica, expõe o racismo disfarçado no contexto brasilei-
ro, que cultiva o mito da democracia racial e exclui corpos negros e indígenas por
meio do Direito, seja na sua criação, seja na sua execução.
Por fim, apresenta uma discussão sobre a possibilidade de emancipação do ser
ladinoamefricano, partindo da ideia de um Direito ladinoamefricano, considerando
a sua capacidade de enxergar a subjetividade negra e indígena ao invés de afastá-
-las da sua tutela por meio do discurso da universalidade e da neutralidade, per-
passando pela impossibilidade de fala do subalterno a partir da teoria de Spivak
que identifica a limitação do poder de fala pelo discurso do colonizador, e alcan-
çando a proposta de práticas descolonizatórias, conforme entendimento da Silva
Rivera Cusicanqui, visando impedir a continuidade do monopólio do exercício de
poder pela ideologia do embranquecimento.
Em referência à metodologia adotada, o presente trabalho, de abordagem in-
vestigativa e lógico-dedutiva, parte da Teoria Crítica da Raça no combate à suposta
neutralidade política do âmbito jurídico por meio da intervenção racial no discurso
acadêmico, contestando o discurso jurídico dominante. Diante do recorte territo-
rial ladinoamefricano, tal marco permite reflexões sobre o racismo como aspecto
estrutural da sociedade, aproximando as dimensões jurídicas das relações raciais,
tendo em vista o papel do Direito na manutenção das desigualdades e exclusões.

A AMEFRICANIDADE EM REAÇÃO À COLONIALIDADE


Ao se estudar o Direito, deve-se ter em vista que a principal e única fonte de
conhecimento tida como válida é a Ocidental. A doutrina europeia, que diz ser o
Estado a instituição responsável pelo bem comum de sua população, e que, por-
tanto, legislará visando ações compatíveis com este objetivo, faz com que o concei-
to de Direito seja único e universal, independentemente da sociedade estudada. E
a academia, ao transportá-la à realidade ladinoamefricana, naturalizando-a como
referencial teórico, descarta a existência de fenômenos distintos a partir de expe-
riências e valores dos espaços submetidos à colonialidade.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 407


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Sobre a temática, Dora Lúcia de Lima Bertúlio, responsável pela consolidação da
Teoria Crítica da Raça no âmbito jurídico brasileiro, entende que o referido “bem
comum” almejado por este Estado liberal padece de nova significação da palavra
“comum”, uma vez que os beneficiários do modo organizacional e de disponibiliza-
ção de serviços estatais são uma minoria diante do todo social.1 O papel do Direito
vem, assim, exclusivamente como de coerção sobre a população subalternizada, e
não de garantidor de direitos.
Partindo de um olhar metodológico descolonizatório, Thula Pires identifica que
diante das experiências quilombistas e indígenas amparadas em um modelo de
liberdade radical e não hierarquizada, as elites brasileiras locais escolheram mode-
los constitucionais centralizadores, autoritários e genocidas, cuja inspiração adveio
do mundo europeu e estadunidense.2 Nesse sentido, Pires conclui que a eficiência
na crença na universalidade e neutralidade do constitucionalismo moderno, cone-
xo ao contexto brasileiro alicerçado no mito da democracia racial, resultou que o
impacto de sua reprodução para fomentar a contraposição às desigualdades, evi-
dentemente as raciais, sociais e de gênero, permanecesse vazio.3
O reflexo disso acompanha o histórico jurídico das demais colônias, que faziam
uso do ordenamento europeu para resolução dos seus conflitos. Com a indepen-
dência e a necessidade da Constituição própria, o Direito destes campos teorica-
mente descolonizados transplanta os ideais e princípios da democracia estaduni-
dense e as liberdades e garantias de direitos da Revolução Francesa, que ainda
hoje reverberam na estrutura jurídica e política do espaço ladinoamefricano. A
história desse território foi e é contada pelo homem branco europeizado.
Achille Mbembe demarca que “a transnacionalização da condição negra foi (...)
um momento constitutivo da modernidade, tendo sido o Atlântico o seu lugar de
incubação.”4 Com as transformações do mundo colonial que desembocou o surgi-
mento dos Estados-nações, novas configurações das relações de dominação sobre
afro-latinos emergiram, de modo que “as velhas questões de heterogeneidade,
diferença e liberdade foram ressuscitadas, ao passo que as novas elites se apro-
veitaram da ideologia da mestiçagem para negar e desqualificar a questão racial.”5
Franz Fanon identifica que o artifício moderno de indiferença à cor era uma es-
tratégia de dar sustentáculo ao branco. Além de lograr reflexões profundas sobre a
violência colonial em sentido material, Fanon acrescenta o denominado colonialis-
mo epistemológico, que retira da negritude a legitimidade de fala, de identidade,
de cultura. Também destaca que o povo colonizado, que nasce com um complexo
de inferioridade em face do sepultamento de sua originalidade cultural, absorve a
linguagem da nação de projeto civilizatório, a qual decorre da cultura do coloniza-
dor.6
A colonialidade que assola a realidade do espaço investigado orienta a refle-
xão para a devida localização histórico-geográfica do racismo. Nesse aspecto, Lé-
lia Gonzalez é referência fundamental para se compreender como o racismo tem

6 FANON, Franz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 34.

408 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
manifestações distintas em determinadas localidades: racismo aberto e o racismo
disfarçado. Sob essa perspectiva, Gonzalez demarca a especificidade latino-ameri-
cana, pois ao contrário de realidades anglo-saxônica, germânica ou holandesa,
“temos o racismo disfarçado ou, como eu o classifico, o racismo por denegação.
Aqui, prevalecem as ‘teorias’ da miscigenação, da assimilação e da ‘democracia
racial.’”7 Dessa maneira, a pesquisa defende a compreensão de que há uma sofis-
ticação do racismo no território latino- americano, ao manter as populações negra
e indígena na condição de objetos submetidos à ideologia do branqueamento,8
reivindicando, aqui, a categoria político-cultural de amefricanidade para uma rein-
terpretação da realidade.
A presente investigação se nutre, em razão disso, das premissas basilares da
Teoria Crítica da Raça, como forma de enfrentamento ao ponto de vista universa-
lizante, a saber: i) o racismo não consiste em um comportamento anormal, mas
uma vivência cotidiana na sociedade; ii) o critério racial que sujeita determinados
grupos a indicativos de subalternidade e inferioridade não é caracterizado por uma
acepção biológica, pois a raça é uma construção social; iii) a denúncia do sistema
de supremacia branca (white-over-color ascendancy) que realiza, de um lado, a
subalternização e degradação material e simbólica dos bens sociais que promovem
respeito e consideração social à negritude, e de outro, posiciona os brancos em um
sistema de privilégios declarados como naturais; iv) a construção da raça possui
peculiaridades próprias a sua específica origem e história que está em permanente
desenvolvimento, intrinsecamente vinculada a ideia de racialização diferenciada,
bem como aos conceitos de interseccionalidade e anti-essencialismo; v) os grupos
minoritários devem ter a aptidão de falar por si, reivindicando o caráter científico
da experiência e narrativas, destacando, nesse aspecto, a relevância da legal story-
telling em contraposição às discursividades jurídicas vigentes.9

A SUBALTERNIDADE LADINOAMEFRICANA
A orientação teórico-política voltada à realidade ladinoamefricana guarda re-
lação com as reflexões de Gayatri Chakravorty Spivak, especialmente quando esta
perquire sobre a mulher subalterna enquanto categoria social exclusa de represen-
tação política e legal. Para Spivak, se, no contexto da colonialidade, o sujeito su-
balterno não possui história e não pode falar, a mulher subalterna está ainda mais
distante de alcançar um espaço emancipatório.10 Relacionando sua compreensão
de subalternidade à amefricanidade de Gonzalez, constata-se uma aproximação

9 SILVA, Caroline Lyrio; PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Teoria crítica da raça como referencial
teórico necessário para pensar a relação entre direito e racismo no Brasil. In: DANTAS, Fernando Anto-
nio de Carvalho; GORDILHO, Heron José de Santana; STEINMETZ, Wilson Antônio (coords.). Direitos dos
conhecimentos. Florianópolis, 2015, p. 63- 68.
10 SPIVAK. Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad.: Sandra Regina Goulart Almeida;
Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 67.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 409


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
quando se compreende que a pessoa subalterna – aqui representada pela ladi-
noamefricanidade – não ocupa uma categoria monolítica e indiferenciada, sendo
inevitavelmente heterogênea.11
Assim como Gonzalez, que reconhece a especificidade do racismo no território
Améfrico Ladino a partir do seu caráter denegatório, sem fazer com que as expe-
riências sejam universalizadas nesse contexto,12 Spivak entende que o discurso da
subalterna está sempre impregnado pelo discurso do agente dominante, incorpo-
rado na figura do colonizador, fazendo com que a figura da subalterna, além de
não poder falar, quando tenta, não encontra os meios para se fazer ouvir.13 Nes-
se sentido, Gonzalez aponta: “Quanto a nós, negros, como podemos atingir uma
consciência efetiva de nós mesmos, enquanto descendentes de africanos, se per-
manecemos prisioneiros, “cativos de uma linguagem racista”?”.14 É a partir dessa
indagação que é reivindicado o conceito de amefricanidade.
Para além de questionar a possibilidade de fala da subalternidade ladinoame-
fricana, esta investigação expõe como o discurso da colonialidade foi estabelecido
como normativo,15 para a partir disso buscar alternativas, em especial por meio
de ferramentas jurídicas. Não por acaso, um dos objetos de crítica consolidados
por Spivak corresponde ao entendimento de teóricos brancos e europeus sobre a
possibilidade de fala dos sujeitos oprimidos. O principal embate é o fato de os teó-
ricos terem ignorado tanto a questão ideológica quanto seu próprio envolvimento,
enquanto ocidentais, na história intelectual e econômica.
Para Spivak, indagar sobre para quem ideias da colonialidade estão sendo pro-
duzidas, com que propósito, com qual interesse e em que condições materiais, são
insuficientes se as perguntas sobre o que não é dito deixarem de ser feitas. Não
por acaso, discute-se aqui a existência de um racismo disfarçado, em que seus si-
lêncios e suas supressões dizem sobre as operações ocultas do poder e as relações
sociais que as englobam tanto quanto as narrativas estatal e jurídica explícitas. A
contextualização territorial, econômica, política e cultural é fundamental para a
compreensão da subalternidade.16

11 ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. Prefácio: Apresentando Spivak. In: SPIVAK. Gayatri Chakra-
vorty. Pode o subalterno falar? Trad.: Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André
Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 11.
12 GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de
Janeiro, v. 92, n. 93, p. 69-82, jan./jun. 1988, p. 78.
13 SPIVAK. Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad.: Sandra Regina Goulart Almeida;
Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 90.
14 GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de
Janeiro, v. 92, n. 93, p. 69-82, jan./jun. 1988, p. 76.
15 SPIVAK. Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad.: Sandra Regina Goulart Almeida;
Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 48.
16 SPIVAK. Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad.: Sandra Regina Goulart Almeida;
Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 42.

410 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Compreende-se, desta forma, a influência da racialização diferenciada,17 ou
seja, o reconhecimento de uma identidade flexível, mutável e plural do indivíduo
na construção e, consequentemente, na luta pela emancipação do ser ladinoame-
fricano, a qual, ao mesmo tempo em que apresenta o racismo por denegação como
aspecto comum, carrega em sua multiplicidade histórica e originária determinadas
especificidades que refutam a ideia de uma unicidade e universalidade do Direito,
bem como dos seus sujeitos abstratamente reconhecidos.

A AMEFRICANIDADE COMO CAMINHO EMANCIPATÓRIO


Assim como Gonzalez, Bertúlio entende a necessidade de se reconhecer o ra-
cismo estratégico do discurso de democracia racial, em que se aceita a figura do
mestiço enquanto formadora do povo na proporção do seu percentual de sangue
branco, que a tornava socialmente aceitável.18 Isso porque, apesar de se partir do
pressuposto de que não há que se falar em raça num território ocupado pela mis-
tura de negros, indígenas e brancos, numa tentativa de sugerir uma igualdade ine-
xistente, a colonialidade comprova a dominação racial sobre as populações negra
e indígena.
Com o intuito de impedir a continuidade do monopólio do exercício do poder
pela ideologia do embranquecimento, reconhecer a categoria de amefricanidade
significa a reivindicação de práticas descolonizatórias. Isso pois, conforme enten-
dimento da Silva Rivera Cusicanqui, há uma função do discurso da colonialidade
que as palavras servem não para designar, mas para encobrir posicionamentos.
Por isso a descolonização não pode ser só pensamento ou retórica, mas deve estar
diretamente vinculada às práticas.19
Refletir sobre a afirmação de Spivak, de que nenhum ato de resistência ocorrer
em nome da pessoa subalterna sem que esse ato esteja imbricado no discurso he-
gemônico,20 significa, portanto, questionar de onde e de quem advém a narrativa.
Em se tratando de uma emancipação a partir do Direito, Bertúlio reconhece que
não se pode perder de vista as peculiaridades do racismo em perspectivas locais,
considerando os diversos modos que ele se apresenta.21

17 SILVA, Caroline Lyrio; PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Teoria crítica da raça como referencial
teórico necessário para pensar a relação entre direito e racismo no Brasil. In: DANTAS, Fernando Anto-
nio de Carvalho; GORDILHO, Heron José de Santana; STEINMETZ, Wilson Antônio (coords.). Direitos dos
conhecimentos. Florianópolis, 2015, p. 66.
18 BERTÚLIO, Dora Lucia de Lima. Direito e Relações Raciais: Uma Introdução Crítica ao Racismo.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 44.
19 CUSICANQUI, Silvia Rivera. Ch’ixinakax utxiwa: Una reflexión sobre prácticas y discursos des-
colonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010, p. 06.
20 ALMEIDA, Sandra Regina Goulart. Prefácio: Apresentando Spivak. In: SPIVAK. Gayatri Chakra-
vorty. Pode o subalterno falar? Trad.: Sandra Regina Goulart Almeida; Marcos Pereira Feitosa; André
Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010, p. 12.
21 BERTÚLIO, Dora Lucia de Lima. Direito e Relações Raciais: Uma Introdução Crítica ao Racis-
mo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 202.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 411


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
É essencial para o Direito, nesse sentido, abandonar sua função de “instância
perpetradora do poder político e econômico de elite, de defensor do poder do Es-
tado e do econômico”,22 com o intuito de extrapolar conceitos prontos, como o de
sujeito universal de direitos, cuja adaptação à condição específica da subalternida-
de ladinoamefricana é vital para qualquer êxito.23 Afinal, a questão racial não só faz
parte do Direito e do Estado, como compõe toda a sociedade. Rejeitar ou omitir a
responsabilidade acerca do tema é mais uma das muitas práticas da colonialidade
de invisibilização do racismo, que induz a perpetuação e a reprodução do racismo
disfarçado e o institucionaliza. 24
Urge, assim, cogitar a emancipação do ser ladinoamefricano partindo da ideia
de um Direito ladinoamefricano, considerando a sua capacidade de enxergar as
subjetividades negras e indígenas ao invés de afastá-las da sua tutela por meio do
discurso da universalidade e da neutralidade. A impossibilidade de fala do sujeito
subalterno a partir da teoria de Spivak que identifica a limitação do poder de fala
pelo discurso do colonizador é justamente a passagem de alcance à proposta de
práticas descolonizatórias, conforme entendimento de Cusicanqui, visando impe-
dir a continuidade da estratégia colonial de controle por meio de um racismo dis-
farçado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A criação da categoria amefricanidade foi a forma encontrada por Gonzalez de
propor um olhar diferenciado sobre a formação histórico-cultural do Brasil, que
insiste em afirmar suas origens exclusivamente europeias e brancas,25 quando em
verdade, corresponde a um território de predominante presença negra e indígena.
Tal reconhecimento é premissa essencial para a proposição de novas realidades.
O enfrentamento da colonialidade pela amefricanidade de Gonzalez está no re-
conhecimento de um sistema de dominação operado pelo racismo, que só será
desmantelado com o questionamento de espaços e estruturas tidos como naturais.
Nesse sentido, esta pesquisa questiona o Estado enquanto estrutura e institucio-
nalidade imposta ao território ladinoamefricano com a colonização e consequen-
te inferiorização dos povos negros e indígenas diante da supremacia do sujeito
masculino, branco e europeu, e que perpetua seus interesses por meio do Direito.
Outros caminhos são, portanto, possíveis.

22 BERTÚLIO, Dora Lucia de Lima. Direito e Relações Raciais: Uma Introdução Crítica ao Racis-
mo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 201.
23 BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e Relações Raciais: Uma Introdução Crítica ao Racis-
mo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 202.
24 BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e Relações Raciais: Uma Introdução Crítica ao Racis-
mo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 201.
25 GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de
Janeiro, v. 92, n. 93, p. 69-82, jan./jun. 1988, p. 69.

412 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A desconstrução da universalidade de conceitos de cosmovisão europeia jus-
tifica a necessidade de uma pesquisa não neutra. Como bem coloca Bertúlio, “a
formação histórica de cada sociedade engendra especificidades, cujo desconheci-
mento é fatal para a viabilidade de avanço na história”.26 Este estudo, no mesmo
sentido, não seria possível sem reivindicar uma nova narrativa para a contação
dessa história. Conclui-se, assim, que somente revisitando discursos tidos como
universais é possível propor a emancipação da subalternidade ladinoamefricana
por meio de práticas efetivamente descolonizatórias.

REFERÊNCIAS

BERTÚLIO, Dora Lucia de Lima. Direito e Relações Raciais: Uma Introdução Crítica ao Ra-
cismo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

CUSICANQUI, Silvia Rivera. Ch’ixinakax utxiwa: Una reflexión sobre prácticas y discursos
descolonizadores. Buenos Aires: Tinta Limón, 2010.

FANON, Franz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. Tempo Brasileiro, Rio de


Janeiro, v. 92, n. 93, p. 69-82, jan./jun. 1988.

MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra. 3. ed. São Paulo: n-1 edições, 2018.

SILVA, Caroline Lyrio; PIRES, Thula Rafaela de Oliveira. Teoria crítica da raça como referen-
cial teórico necessário para pensar a relação entre direito e racismo no Brasil. In: DANTAS,
Fernando Antonio de Carvalho; GORDILHO, Heron José de Santana; STEINMETZ, Wilson
Antônio (coords.). Direitos dos conhecimentos. Florianópolis, 2015.

SPIVAK. Gayatri Chakravorty. Pode o subalterno falar? Trad.: Sandra Regina Goulart Almei-
da; Marcos Pereira Feitosa; André Pereira Feitosa. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010.

PIRES, Thula. Por um constitucionalismo ladino-amefricano. In: BERNARDINO-COSTA, Jo-


aze; MALDONADO-TORRES, Nelson; GROSFOGUEL, Ramón (orgs.). Decolonialidade e pen-
samento afrodiaspórico. 2. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019, p. 285-303.

AUTORIA
Bruno de Oliveira Cruz
Graduando em Direito pela Universidade Federal do Paraná
E-mail: cruz.o.bruno@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1655-9234
Lattes: http://lattes.cnpq.br/7273170214114312

26 BERTÚLIO, Dora Lúcia de Lima. Direito e Relações Raciais: Uma Introdução Crítica ao Racis-
mo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 202.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 413


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Gabriela Grupp
Graduanda em Direito pela Universidade Federal do Paraná
E-mail: gabrielagrupp@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2223-154X
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2389079517761818

414 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O DIREITO FUNDAMENTAL À NÃO-
DISCRIMINAÇÃO: DISPUTAS EM TORNO DO
CONCEITO DE RACISMO NA MODERNIDADE E A
ILUSÃO PROTETIVA DO DIREITO PENAL
Danilo dos Santos Rabelo

INTRODUÇÃO
A Carta Magna de 1988 assentou em seu texto normativo um importante pon-
tapé no enfretamento ao racismo no Brasil. Não apenas ao tornar a conduta racista
um crime inafiançável e imprescritível, mas, principalmente, em consonância com
a hipótese trabalhada na presente investigação, por impor o direito fundamental à
não-discriminação como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil.
Assim, da promulgação da Carta Magna até os dias atuais um número expressi-
vo de normas jurídicas com o mesmo objetivo de prevenir ou punir atos discrimina-
tórios foram criadas. Todavia, isso não significou a superação do racismo, tampou-
co uma redução drástica nas representações negativas contra as minorias raciais.
Desse modo, a hipótese aqui elaborada, com fulcro na bibliografia caracterizado-
ra do racismo utilizada, é que a principal legislação antirracista nacional, a Lei nº
7.716/89 (conhecida popularmente como Çei “Carlos Caó”), tipifica uma conduta
claramente reducionista do que seria o racismo, bem como suplica o cumprimento
de requisitos definidores, como intencionalidade, arbitrariedade e anormalidade,
que não mais alcançam a diversidade e a pluralidade de novas e constantemente
modificáveis modalidades das práticas racistas.
De outro lado, diversos e robustos estudos têm se debruçado sobre a compre-
ensão da multiplicidade das formas de discriminação racial, seja a partir de teses
sociológicas e psicológicas, políticas e jurídicas, ou ainda econômicas. Através tan-
to de um movimento de diferenciação de modalidades de racismo, como também
de aproximação, principalmente quando apresentadas as perspectivas do racismo
como um fenômeno interseccional, multidimensional e estrutural, um projeto de
“dominação” dotado de racionalidade. Portanto, apesar dos diplomas normati-
vos gozarem de um propósito claramente progressista, a compreensão limitada e
inadequada de mecanismos discriminatórios atuais pode perpetrar uma profunda
dificuldade de alcançar os importantes preceitos constitucionais da igualdade de
tratamento e da não-discriminação, mais ainda quando diversos mecanismos de
poder continuam por alimentar a “cordialidade” do povo brasileiro.
Nesse sentido, o intento do presente trabalho é, a partir de uma revisão biblio-
gráfica, traçar os contornos de alguns conceitos de racismo, através de suas varia-
das modalidades, com vistas a uma maior e atualizada compreensão sobre a sua

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 415


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
abrangência e sobre o papel e o alcance do Direito Penal no combate ao racismo.
Por fim, faz-se importante destacar qual foi o recorte investigativo dado à revisão
bibliográfica a seguir apresentada. Por razões de acessibilidade, contemporaneida-
de nas discussões e conectividade com o Direito, o levamento conceitual apresen-
tado teve como base a literatura jurídica-nacional antirracista.
Todavia, isso não significou serem os conceitos encontrados específicos e res-
tritos ao debate brasileiro, isso porque majoritariamente estas obras alimentam-
-se de teorias, autores, referências internacionais, principalmente da Teoria Crítica
da Raça, desenvolvida no contexto estadunidense. Desse modo, buscou-se em um
primeiro momento a apresentação das definições e dimensões do racismo majo-
ritárias na literatura levantada, para que assim, em um momento posterior, fosse
delineada e questionada a concepção de racismo presente na Lei Carlos Caó e,
inevitavelmente, o campo de atuação do sistema penal no combate às práticas
racistas.

CONCEPÇÕES BIBLIOGRÁFICAS DO RACISMO:


MODALIDADES E CONEXÕES
Em primeiro lugar, resta essencial uma breve explanação sobre a concepção
individualista do racismo. Como destaca o especialista em Direito Antidiscrimina-
tório, Adilson Moreira, as primeiras concepções fazem parte da primeira geração
das Teorias da Discriminação, resultantes principalmente da luta dos diversos mo-
vimentos por direitos civis (MOREIRA, 2017, p. 97). Além disso, essa vedação à dis-
criminação ganhou conjuntura e importância jurídica a partir do momento em que
o constitucionalismo moderno passou a introduzir o tratamento isonômico como
uma política estatal legítima e, portanto, merecedora de proteção.
A discriminação racial direta como marco embrionário das teorias antidiscrimi-
natórias parte da vedação às discriminações pautadas em fundamentos irracionais,
geralmente por meio de atos facilmente identificáveis, contra as minorias raciais.
Assim, pode-se afirmar que o Estado protege determinados direitos fundamentais
e que para essa modalidade de racismo haveria meramente uma lesão direta, in-
tencional e individual a eles. Nesse sentido, seria esta considerada uma conduta
simplesmente irracional, vez que fere um ideal igualitário constitucionalizado (MO-
REIRA, 2017, p. 57).
Em razão dessas características, grande parte das discriminações raciais ocorri-
das nos estádios de futebol, por exemplo, presentes nas reproduções de gestos e
sons de primatas seriam consideradas discriminações diretas. Além disso, no mun-
do colonial, a proibição de casamentos mistos, a esterilização forçada e a separa-
ção coativa de espaços “brancos” e “negros”, enquadram- se manifestadamente
nessa concepção do racismo. Ocorre que, nem sempre as práticas discriminatórias
são tão explícitas, ou intencionais, ou ainda oriundas de um único fator de opres-

416 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
são/exclusão, como só a raça, só o gênero, ou exclusivamente a classe social (MO-
REIRA, 2019, p. 41).
Somado a isso, não haveria na discriminação racial do tipo direta a concepção
das práticas discriminatórias serem parte de um todo maior, um sistema de domi-
nação e manutenção de um “estoque racial” de vantagens ao grupo dominante
(NASCIMENTO, 2016, p. 101). Mas sim, uma análise dos atos racistas como elemen-
tos meramente comportamentais, nos quais indivíduos dotados de uma concepção
universal de racionalidade, a desconsidera e desrespeita um padrão igualitário de-
fendido em estados democráticos.
Em segundo lugar, resta essencial compreender os contornos da concepção in-
consciente do racismo, esta que segundo Moreira (2017, p. 121) ingressaria na se-
gunda geração das teorias de discriminação, ao demonstrar que a intencionalidade
além de nem sempre ser perceptível, parte de um ideal de que as relações sociais
são equânimes e que atos discriminatórios seriam meramente arbitrários por rom-
perem a estabilidade da dinâmica social.
A revolução dessa teoria, dada principalmente no campo da Psicologia Social,
deu-se ao demonstrar que a mente humana nem sempre funciona por meios de
atos conscientes, muito pelo contrário – o inconsciente seria o responsável pela
maioria das nossas decisões1. Isso porque, os estereótipos, em síntese, são esque-
mas mentais oriundos de processos naturais de classificação de informação. Ocor-
re que essa categorização é formada pela percepção de normas culturais explícitas
ou implícitas, e nesse ponto se reside a correlação entre o inconsciente e o racismo
(MOREIRA, 2017, p. 123). Assim, conforme Frantz Fanon (2018, p. 48), a consequ-
ência lógica é de que “em uma cultura racista, o racista é, pois, o normal”.
Como demonstrativo dessa teoria, várias e conhecidas experiências foram pro-
duzidas à título científico e publicitário, ao interpelaram crianças e adultos com vis-
tas a demonstrar como diversos estereótipos negativos são interligados a pessoas
negras. O “experimento Clark” (em referência à psicóloga desenvolvedora Mamie
Clark), ou “Teste da Boneca”, como ficou conhecido, foi um experimento psicológi-
co elaborado nos Estados Unidos, na década de quarenta, que objetivava testar o
grau de marginalização e exclusão, causado pelo preconceito e a segregação racial,
sentido por crianças afro-americanas.
Nessa experiência, a boneca dita legal, bonita e agradável foi apontada pelas
crianças (frise- se, estas eram negras) como sendo a de cor de pele branca, enquan-
to a maldade e a feiura foram associadas à boneca de cor de pele preta. Ao fim do
vídeo, é questionado “qual delas se parece com você?”. Nesse momento uma con-
creta aflição passa a compor a feição das crianças ao perceberem em que lado da
moeda (ou dos julgamentos morais “inconscientes”) elas e a sua cor estão. Assim,
de acordo com Almeida (2019, p. 67), os meios de comunicação, o sistema educa-

1 Importante reportagem sobre o assunto disponível em <https://super.abril.com.br/cien-


cia/o-mundo-secreto-do-inconsciente/>. - Acesso em 04 ago. 2019.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 417


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
cional e o sistema de justiça exerceram e exercem um papel incisivo na construção
dessa ideologia excludente.
Em terceiro lugar, encontra-se a concepção cultural do racismo e quanto a esta
vale destacar a importância do psiquiatra, filósofo e ativista político anticolonial e
antirracista, Frantz Fanon, autor de importantes obras sobre o caráter alienatório
e sistemático do racismo, como “Pele Negra, Máscaras Brancas” e os “Condenados
da Terra”, nome central quanto à relação entre o racismo e a cultura, principal-
mente pelo seu pioneirismo. Segundo o autor, se a cultura é o conjunto de com-
portamentos motores e mentais nascido do encontro do homem com a natureza e
com o seu semelhante, pode-se dizer sem sombras de dúvidas que o racismo é um
elemento cultural (FANON, 2018, p. 39).
Nesse sentido, visualizá-lo sobre o filtro da cultura é reconhecer o seu caráter
dinâmico, renovável, conflitivo. O racismo que em um primeiro momento se apre-
sentava de maneira simplista, primitivo, encontrou na biologia e na geografia o ar-
cabouço teórico necessário para a sua manutenção em uma sociedade cientificista
e positivista. Formas comparadas de crânio, dimensões das vértebras, orelhas e
narizes, aspecto da epiderme, somados à influência do clima tropical, eram carac-
terísticas da “degenerescência” humana.
Esse tipo de pensamento, identificado como racismo científico, gozou de gran-
de prestígio nos meios acadêmicos e políticos do século XIX, principalmente por
não conflitar com os ideais democráticos e liberais, pois seriam as diferenças con-
sideradas “naturais” entre “as raças” humanas, como atestam as obras de Arthur
de Gabineau, Cesare Lombroso, Enrico Ferri, Gustavo Le Bon e, no Brasil, as de
Nina Rodrigues, Sílvio Romero e Francisco José de Oliveira Vianna (ALMEIDA, 2019,
p. 29). Contudo, tais afirmações brutais e maciças dão lugar a uma argumentação
mais “fina” e sutil, principalmente a partir do momento em que há no pós-guerra
uma evolução das “técnicas” e das “tecnologias”, como as dos meios de comunica-
ção, conjuntamente a uma maior conscientização e organização dos movimentos
sociais e dos trabalhadores (FANON, 2018, p. 40).
Em quatro lugar, a concepção institucional do racismo significou um importante
avanço nos estudos das relações raciais, principalmente por transpor a atenção da
perspectiva individualista do racismo à atuação normal das instituições que passam
ainda que, inconscientemente, a concederem privilégios e desvantagens fundadas
na raça (SCHAWARCZ, 1993, p. 26). Segundo Almeida (2019, p. 38), as instituições
são responsáveis por manter a estabilidade dos sistemas sociais, através da sua
capacidade de absorver os conflitos inerentes à vida humana. Portanto, seria desse
papel de absorção e normalização que as instituições formariam os sujeitos através
da sua inserção em um sistema de comportamentos anteriormente estabelecidos.
Assim sendo, não se pode, sobre o manto da “neutralidade institucional” esque-
cer que as instituições são compostas por indivíduos, majoritariamente do grupo
dominante, que disputam os espaços de poder, em busca não apenas do seu con-
trole, mas sobretudo da sua produção (FOUCAULT, 2015, p. 238-239). Com efeito,

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
a análise do racismo passa, mediante a concepção institucional, a ser concebido
como um projeto de dominação, salto importante frente às teorias individualistas
do racismo, que visualizavam as práticas racistas como condutas sempre diretas e
“irracionais”. A concepção institucional possui, portanto, uma dimensão coletiva,
já que expressa a maneira como as instituições sociais funcionam, por atos comis-
sivos ou omissivos, para promover a subordinação de minorias raciais.
Dessa forma, estigmas sociais e estereótipos negativos formados institucional-
mente sobre pessoas negras desembocam, por exemplo, em uma maior proba-
bilidade de repressão e encarceramento destas frente o mesmo delito cometido
por pessoas brancas, em situação semelhante ou até menos gravosa. Os modos de
operação discriminatórios institucionais, públicos e privados, do ponto de vista his-
tórico, tornaram-se procedimentos puramente silenciosos, impessoais e técnicos
(MBEMBE, 2018, p. 21), e mais, mediante a legitimidade concedida na modernida-
de a essas organizações, seus atos passam a gozar de uma respeitável irrefutabili-
dade por grande parte de sociedade, contexto que só dificulta a percepção dessa
modalidade de discriminação racial.
Em quinto lugar, a concepção interseccional surge em um momento teórico no
qual passa- se a ser questionada a influência de uma única forma de poder atuan-
te sobre um processo de exclusão. Assim, Michel Foucault, por meio de sua obra
“Microfísica do Poder”, destacou que as relações de poder não estão em um lugar
especial e específico, mas estão por toda a sociedade, como uma verdadeira “rede
produtiva” (FOUCAULT, 2015, p. 04). Nesta toada, é sobre o filtro da intersecciona-
lidade que o racismo e o machismo, passam a ser vistos não apenas como proces-
sos que se afastam do ideal de tratamento igualitário, mas sim, como verdadeiros
e diversos projetos de dominação, formadores de várias hierarquizações sociais.
A Teoria da Interseccionalidade, segundo Moreira (2017, p. 110), surge a partir
do importante papel de diversas mulheres, feministas negras que começaram a
contestar os papéis exercidos por elas na luta antirracista, já que os líderes dos
movimentos negros eram quase todos homens (BERTH, 2019, p. 60). Ademais, per-
cebia-se a existência de um grande silêncio nesses espaços quanto às especificida-
des da condição feminina na sociedade. Portanto, o objeto central dessa teoria é
a constatação e a averbação de que deve se dar uma atenção específica para as
formas opressivas que coagem e formatam o sujeito singularizado. Isso significa vi-
sualizar que embora o homem negro seja marginalizado pelo viés racial, a situação
das mulheres negras se compõe por um processo de dupla marginalização que a
coloca em uma situação diversa, visto que contornar apenas o racismo não possi-
bilita a sua emancipação social.
Segundo a concepção institucional do racismo, padrões, condutas e a imposição
de determinados critérios são mecanismos utilizados pelo grupo dominante com
o objetivo de resguardar um sistema de manutenção de privilégios, por um lado,
e a exclusão e a subordinação, por outro lado. Ocorre que, as instituições não po-
dem ser analisadas como organizações autônomas e afastadas da ordem social na

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 419


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
qual faz parte, é dizer: “as instituições são racistas porque a sociedade é racista”
(ALMEIDA, 2019, p. 47). É dessa breve introdução que um novo questionamento
se apresenta – se a concepção do racismo institucional restringe o seu estudo às
instituições, onde estaria a “raiz” do racismo na sociedade, de onde ela vem, rami-
fica-se, e para aonde vai?
Desse modo, na atualidade, o racismo passa a ser debatido através de uma ên-
fase estrutural, movimento que não significa excluir a visão quanto à atuação dos
sujeitos racistas e à estigmatização do sujeitos racializados, nem tão pouco dirimir
a existência do seu enfretamento, através de políticas institucionais antirracistas
ou da punição de atos discriminatórios diretos. Significa que deve-se desconstituir
as análises superficiais e simplistas sobre a questão racial, significa que analisar o
racismo como “estrutura”, apesar de não formar um álibi para os sujeitos racistas,
permite concluir que a responsabilização jurídica não é suficiente para que a so-
ciedade deixe de ser uma “máquina produtora da desigualdade racial” (ALMEIDA,
2019, p. 51). Isso porque, não é apenas prática opressiva e exclusiva do poder so-
berano, é também biopoder, é subjugação da população negra a partir de difusas
tecnologias.
É o racismo estrutural, conforme Almeida (2019, p. 123), que permite, portanto,
a naturalização de sangrentos sistemas discriminatórios, que permite a “confor-
mação das almas” à extrema violência que populações inteiras são submetidas, na
qual a maioria étnica, quase sempre é negra, como também que se conviva com
áreas inteiras sem saneamento básico, que se exterminem milhares de jovens ne-
gros todos anos.

A LEI CARLOS CAÓ (Nº 7.716/89): A APOSTA NA SANÇÃO


PENAL QUANTO AO COMBATE DO RACISMO
A Lei Carlos Caó, promulgada em 05 de janeiro de 1989, é apresentada por
alguns estudiosos, à exemplo de Garavito; Días (2015, p. 68), como o resultado
de um cenário latino- americano que aposta na sanção penal como principal fer-
ramenta de combate ao racismo - um efeito muito mais simbólico do que instru-
mental. Responsável por criminalizar o racismo, visto que a Lei Afonso Arinos (nº
1.390/51), primeira norma contra a discriminação racial no Brasil, o enquadrou
como contravenção penal, a Lei Carlos Caó apresentava-se como a esperança de
que o endurecimento das penas possibilitaria a passagem da “simbolicidade” do
diploma anterior para a “instrumentalidade”, para a efetividade (GARAVITO; DÍAS,
2015, p. 43).
Esse diploma normativo compõe-se de 22 (vinte e dois) artigos, nos quais em
19 (dezenove) deles há um delimitado rol de práticas racistas passíveis de sanção
penal, sendo que 12 (doze) artigos deste restringem-se a criminalizar o ato de im-
pedir o ingresso a determinado local, impedir a liberdade de locomoção. Nesse
último recorte chama à atenção a ausência de tecnicidade em sua redação, ao ten-

420 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
tar enumerar diversos ambientes nos quais negros não poderiam ter a sua entrada
impedida, como se ao fim das contas, houvesse ainda locais em que lhe negar o
ingresso, em razão da sua cor, fosse possível.
Ademais, fato curioso é que durante os dez primeiros anos de vigência da Lei
Carlos Caó, houve apenas três condenações por racismo, sendo que os tribunais de
máxima instância (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de Justiça), nesse
mesmo período, não tinham julgado uma ação sequer (GARAVITO; DÍAS, 2015, p.
70). A partir das concepções de racismo aqui apresentadas, retomando-as: con-
cepção direta (individualista); inconsciente; cultural; institucional; interseccional e,
por fim, estrutural, resta evidente que a Lei Carlos Caó criminaliza e, mesmo assim
parcialmente, a concepção direta do racismo, esta que segundo Moreira (2017, p.
97), faz parte da primeira geração das teorias da discriminação.
A hipótese inicial da presente investigação seria a de que embora essa legisla-
ção antirracista tivesse uma natureza aparentemente progressista, a efetividade
dela estaria comprometida em função de uma compreensão limitada do que se-
riam as práticas racistas na atualidade. Parcialmente, esse pressuposto manteve-se
até o fim, visto que após a revisão bibliográfica elaborada, chega-se à conclusão de
que sim, legisladores nacionais e operadores do direito possuem uma noção muito
restrita e reducionista do racismo, ao se chegar a mesma conclusão verificada por
Moreira (2017, p. 20). Outro fato verificado é que em razão da responsabilidade
penal ser individual, o foco está no suposto autor e não nos padrões estruturais
(sociais, políticos e legais) que alicerçam a desigualdade racial (GARAVITO; DÍAS,
2015, p. 92).
Todavia, ao aprofundar a análise do racismo como um fenômeno estrutural,
no qual o próprio Direito faz parte da mesma estruturação social que reproduz o
racismo como prática política e como ideologia, até que ponto ocorreria por meio
dele a reversão de uma sociedade racista? Neste caminho, Roberta Baggio, Alice
Resadori e Vanessa Gonçalves, no artigo científico “Raça e Biopolítica na América
Latina: os limites do direito penal no enfretamento ao racismo estrutural”, publica-
do na revista Direito e Práxis, tomam tais conclusões:
Diante desse quadro, ao refletir sobre os limites do direito penal ante sua ine-
ficiência e de seu alcance individual e seletivo, o presente artigo considera a sua
impossibilidade concreta de romper com as lógicas sociais, jurídicas, políticas e
culturais que estabelecem e reforçam o racismo enraizado nas práticas sociais e
institucionais das sociedades latino-americanas (BAGGIO; RESADORI; GONÇALVES,
2018, p. 1.859).
Neste viés, apesar de existir uma concordância parcial com a conclusão trazida
pelas autoras, poderia se dizer que seria dessa impossibilidade concreta de romper
com o caráter sistêmico do racismo que seria o sistema penal completamente inú-
til quanto ao combate do racismo?
A conclusão da presente investigação é a de que problemas estruturais suplicam
correções estruturais, fato que desagua na inviabilidade do sistema penal vencer

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 421


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
solitariamente a luta contra o racismo, mas não na sua completa “inutilidade”. Si-
tuação identificada inclusive pelo histórico advogado Luiz Gama, conforme averba
Almeida (2019, p. 148-149) - “é importante reiterar que Luiz Gama não partilhava
que o direito era o reino da salvação; era apenas umas das armas que, na luta pela
liberdade, poderiam e deveriam ser utilizadas contra os senhores”.
Isso porque, além da Constituição Federal de 1988 trazer em seu bojo um novo
paradigma – o do antirracismo, completamente diverso, por exemplo, da defesa de
práticas eugênicas presentes expressamente na Constituição Federal de 1937; não
há dúvidas que por mais simbólico que seja, é majoritariamente nos estudos crimi-
nológicos e no direito penal que a indiferença teórica sobre a desigualdade racial é
remexida, posta em debate (como faz este próprio trabalho), isto é, a consciência
do racismo como algo absolutamente “normal” e “corriqueiro” é desnudada.

CONCLUSÃO
A partir da revisão bibliográfica levantada, resta evidente o quanto os novos
estudos sobre o racismo averbam ser a sua atuação na modernidade, difusa, rami-
ficada, interseccional, e ao mesmo tempo, camuflada, sutil, encoberta. De outro
lado, alguns autores examinados demonstraram o quanto as sanções penais são
apresentadas como principal ferramenta de erradicação do racismo, fato que gera
uma lacuna imensurável entre o mundo jurídico e a atual estrutura opressiva ra-
cial, entre o “não existe mais racismo” e a luta diária de grupos discriminados.
Nesta toada, restou apresentado que uma das razões para isto, dar-se-ia da
compreensão do racismo como prática comportamental e individualizada, no qual
a aplicação da pena seria capaz de restaurar a situação anterior ao cometimento
da discriminação direta, “arbitrária” e “irracional”. Portanto, seria da exposição,
da concentração e da defesa do Direito Penal como principal modo combativo,
este que inerentemente não alcança, através da criminalização, práticas coletivas,
sistêmicas, inconscientes e estruturais do racismo, que se forma um ideal contexto
de perpetuação destas, de manutenção do racismo como estratégia biopolítica.
Contudo, isso não significa que a responsabilização criminal de sujeitos que pra-
ticaram atos racistas, seja desnecessária ou desprezível, defender isto seria ignorar
importantes lutas do movimento negro nacional e internacional, bem como o pa-
pel “simbólico” que o Direito Penal desempenha. Além de maiores estudos e deba-
tes serem necessários quanto à atualização e ao aperfeiçoamento da Lei Carlos Caó
(nº 7.716/89), contexto que, invariavelmente, implica no questionamento quanto
ao limite do Direito Penal no enfretamento ao racismo, manifesta-se também, e
principalmente, a necessidade de uma diversificação das respostas do combate ao
racismo, que em igual sentido ao seu aspecto estrutural, devem ser difusas, sistê-
micas e interseccionalizadas.
Em outras palavras, seria da retirada do sistema penal como principal agente
combativo e da sua soma a outros campos de atuação e de reflexão sobre o ra-

422 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
cismo dentro do próprio Direito, que poderá essa ciência, embora não exclusiva-
mente e dentro do campo de disputas na qual se encontra, cumprir o seu papel
constitucional emancipatório, ser um verdadeiro agente de transformação.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BARCELOS, Iuri; DOMENICE, Thiago. Negros são os mais condenados por tráfico e com
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negros- sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/>. Acesso
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BAGGIO, Roberta; RESADORI, Vanessa; GONÇALVES, Alice. Raça e Biopolítica na América


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to Práx., Rio de Janeiro, v. 10, n. 03, p.1834-1862, ago., 2019. Disponível em: <https://
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ceito de raça ou de cor. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 06
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reito: Justificando, 2017.

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SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia da Letras, 2014.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 423


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
AUTORIA
Danilo dos Santos Rabelo
Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Sergipe, sendo bolsista/CAPES.
E-mail: danilorabelorabelo00@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6973-0576
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4523129123146854

424 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 09
As práticas e
vivências das
religiosidades
afro-brasileira e
afro-indígena no
cenário Amazônico
UM SUCESSO EXPLICADO: APONTAMENTOS
SOBRE A IMPLANTAÇÃO DA ASSEMBLEIA DE
DEUS NA COMUNIDADE QUILOMBOLA SÃO
PEDRO, PARÁ, BRASIL

Alef Monteiro

A cultura é uma espécie de teatro em que várias causas


políticas e ideológicas se empenham mutuamente.
Longe de ser um plácido reino de refinamento apolíneo,
a cultura pode até ser um campo de batalha onde as
causas se expõem à luz do dia e lutam entre si.
(Edward Said)

INTRODUÇÃO
Nas últimas duas décadas, o número de evangélicos vem crescendo vertigino-
samente no Brasil a ponto de algumas pesquisas apontarem que até o ano de 2032
as igrejas evangélicas ultrapassarão a Igreja Católica, em número de fiéis (ALVES et
al., 2017). Esse crescimento populacional dos evangélicos, com destaque para seu
maior segmento, o pentecostalismo, também avança nas comunidades tradicionais
do país (ABUMANSSUR, 2011) demandando estudos que esclareçam a causa desse
crescimento, bem como os impactos do pentecostalismo aos modos de vida e às
intensas lutas políticas que as populações tradicionais travam contra as ações et-
nocidas e genocidas do Capital e do Estado nacional que ele controla.
Tentando contribuir com a compreensão desse fenômeno entre os quilom-
bolas, venho realizando minha pesquisa de mestrado junto a uma congregação
da Assembleia de Deus, na Comunidade Quilombola São Pedro, no município de
Castanhal, Pará. O objetivo da minha pesquisa é descrever as relações estabele-
cidas entre concepções religiosas, identidade quilombola e ação política nessa co-
munidade. Dentre os dados gerados até o presente momento, selecionei para esta
comunicação aqueles que elucidam o processo de inserção da igreja pentecostal na
comunidade e que permitem compreender algumas dimensões do sucesso desse
empreendimento religioso no quilombo.
Por diversos motivos dentre os quais destaco, neste trabalho, aqueles que se
mostraram mais relevantes, a Igreja Assembleia de Deus é a instituição religiosa
com o maior número de fiéis em São Pedro. Das 52 famílias da comunidade, 28
integram a igreja. Essa é uma situação relativamente recente, pois, até os anos de
1990, a religiosidade da comunidade era predominantemente católica – havendo
um catolicismo negro típico de comunidades quilombolas, tal qual aquele deline-

426 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ado por Souza (2002) – com a “pajelança cabocla”1 e a umbanda existindo como
uma espécie de prolongamento do catolicismo.
O método usado por mim na execução da pesquisa foi a realização de entrevis-
tas preparadas de acordo com o paradigma da História Oral (THOMPSON, 1998)
e a observação participante (WINKIN, 1998). Os dados gerados em campo têm
sido analisados a partir de uma perspectiva descolonial que reúne autores negros,
pós-coloniais e decoloniais. Em minhas reflexões são centrais as considerações de
Abdias Nascimento (2016) e Frantz Fanon (2005; 2019) sobre racismo e cultura,
o paradigma estrutural-culturalista, segundo Stuart Hall (2013), e o conceito de
colonialidade elaborado pelo Grupo Modernidade/Colonialidade (QUIJANO, 2010;
LANDER, 2005; MALDONADO-TORRES, 2007).
Entendo que os quilombos são comunidades que sempre lutaram e ainda lu-
tam contra o colonialismo moderno colonial agora transfigurado em colonialismo
global, via capitalismo financeiro. Por estar baseada no racismo, a divisão social
do trabalho no capitalismo sempre submeteu a população negra à exploração e
à precariedade absoluta – a colonialidade do poder pesa sobremaneira sobre a
população negra (QUIJANO, 2010). Nesse contexto, as comunidades quilombolas
surgiram e ainda existem como grupos de resistência ao genocídio do negro que
ocorreu e ocorre no Brasil tanto por meio do extermínio cultural, quanto físico
(nesse caso, via assassinato mesmo, ou via miscigenação) (NASCIMENTO, 2016).
Mas, é importante ressaltar, que as comunidades quilombolas vistas como ló-
cus de resistência não nasceram de uma postura consciente e organizada frente ao
racismo do mundo moderno colonial. Pelo contrário, a resistência ao escravismo e
ao extermínio físico e cultural foi uma necessidade básica ligada ao próprio instinto
de sobrevivência presente em qualquer ser humano. Em sua origem, os quilombos
são a manifestação da necessidade de transformação que existe em estado bru-
to na vida dos homens e mulheres colonizadas (FANON, 2005). Os quilombos nada
mais são do que os espaços onde era possível continuar vivo sendo gente.
A tomada de consciência da dimensão dos prejuízos do colonialismo à popu-
lação quilombola, a politização dessa resistência e a produção de uma narrativa
de afirmação etnicorracial dos quilombos é um produto historicamente recente
elaborado pelo Movimento Negro a partir dos anos de 1970 (AMADOR DE DEUS,
2019). E a educação dessas populações acerca de sua história e do lugar social que
ocupam no sistema-mundo capitalista ainda é um processo em curso que se choca
com a colonialidade do saber e do ser engendrados nos quilombolas via meios de
comunicação de massa, com destaque para a TV e internet; contato com os am-
bientes externos (escola, mercado de trabalho, etc.); e também através de institui-
ções sociais afins que, imbuídas de colonialidade, fixam-se entre os quilombolas e
fazem adeptos, como é o caso das igrejas pentecostais.
Sem delongas, vejamos as causas mais evidentes do crescimento da Assembleia
de Deus no Quilombo São Pedro.

1 Ver Maués e Villacorta (2011).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 427


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
CAUSAS SOCIAIS DO CRESCIMENTO DA ASSEMBLEIA DE DEUS
EM SÃO PEDRO
Os dados reunidos até o momento me permitem dizer que pelo menos quatro
fatores beneficiaram, de forma mais significativa, a inserção e o crescimento da As-
sembleia de Deus em São Pedro: a configuração de parentesco local, a experiência
social de “fim de mundo”, o analfabetismo e a baixa escolaridade, e a reelaboração
do imaginário mítico da comunidade. Esses fatores correspondem ao período de
inserção da igreja na comunidade, de 1961 (quando o casal Feitosa Rodrigues che-
gou à comunidade e começou a realizar cultos e atividades evangelísticas) a 1991
(quando foi oficialmente fundada a congregação Monte Moriá da Igreja Evangélica
Assembleia de Deus, em São Pedro).

A CONFIGURAÇÃO DE PARENTESCO LOCAL


A Comunidade Quilombola São Pedro é originalmente formada por cinco sítios
antigos que correspondiam a cinco troncos familiares (os Pontes, os Maias, os Fei-
tosa Rodrigues, os Silva, e os Jesus). Por causa do isolamento geográfico da comuni-
dade – por muito tempo só existia uma via de acesso pelo Igarapé Pitimandeua, os
membros dessas famílias casavam entre si e apenas muito raramente casavam com
pessoas de outras comunidades. Essa propensão à endogamia pode ser percebida
nos sobrenomes dos moradores. Em geral, são combinações dessas cinco famílias
havendo raras exceções, como é o caso dos sobrenomes Sá, Barros, Paixão e Pan-
toja. Esses sobrenomes vêm de lugarejos e núcleos urbanos circunvizinhos como
Pitimandeua, Itaboca, Castanhalzinho, Inhangapi e Castanhal.
Até a década de 1990, a autoridade moral estava nas mãos dos mais velhos,
chamados de “Pais-velhos” e “Mães-velhas”. A origem dessa autoridade pode ser
encontrada na cultura bantu que, por motivos cosmológicos, privilegia os mais ve-
lhos com o exercício da autoridade, originando uma sociedade gerontocrática. Além
disso, cada sítio foi fundado por ex-escravizados fugidos e suas famílias, dispostas
em uma estrutura hierárquica definida pela idade e pelo gênero: pai > mãe > filhos
mais velhos > filhos mais novos. Conforme cresciam e formavam seus próprios nú-
cleos familiares, os filhos (com seus cônjuges e filhos) construíam suas casas ao
redor da casa de seus pais (os “Pais-velhos) a quem todos estavam moralmente
submetidos. Em cada núcleo familiar o poder moral estava nas mãos dos pais, mas,
em cada sítio, o poder moral estava nas mãos dos Pais- velhos. Conforme iam en-
velhecendo, os sítios poderiam ter mais de um Pai-velho ou Mãe-velha, porém,
a relação de poder entre eles era ordenada pela idade: quanto mais velho, mais
autoridade. Outra característica das famílias de São Pedro é o elevado número de
filhos.
Essas três peculiaridades do parentesco da comunidade favoreceram o cresci-
mento da igreja porque os pais-velhos da família Feitosa Rodrigues (Pedro e Se-

428 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
bastiana) se converteram à Assembleia de Deus e, juntamente com eles, a igreja
ganhou também os filhos do casal (no total, 13 filhos). Por estarem apadrinhados
por aqueles que possuíam a autoridade moral da família, os missionários não en-
contraram qualquer resistência às suas pregações em São Pedro. E a grande quan-
tidade de filhos e netos do casal Rodrigues que se uniram em laço matrimoniais aos
membros das demais famílias do quilombo também somaram à igreja o número de
membros, de sorte que a igreja ganhou grande número de adeptos na comunidade
via laços de parentesco entre os convertidos e outros moradores que foram evan-
gelizados e se juntaram ao seio de congregados.
Esse processo que ocorreu em São Pedro corrobora as observações de Fanon
(2005) que diz que, ao contrário dos grupos revolucionários, uma das estratégias
mais comuns das instituições coloniais2 é controlar as massas segundo os esque-
mas existentes a priori em seus territórios, pois, os dominadores sabem muito bem
que nas comunidades tradicionais o indivíduo se curva diante da comunidade com
maior naturalidade que nas sociedades ocidentais. Diz Fanon (2005, p. 132):

É preciso lembrarmos o fato de que o colonialismo muitas vezes


reforçou e baseou sua dominação organizando e petrificando os
campos. Enquadrados pelos sacerdotes, feiticeiros e chefes tra-
dicionais, as massas rurais ainda vivem em estágio feudal, sendo
a onipotência dessa estrutura medieval alimentada pelos agen-
tes administrativos ou militares do colonialismo.

No quilombo São Pedro, a estratégia da Assembleia de Deus foi a conversão dos


patriarcas e a conversão dos seus filhos e netos que, por sua vez, se ligaram às ou-
tras famílias dos sítios que hoje compõem o Quilombo.

A EXPERIÊNCIA SOCIAL DE “FIM DE MUNDO”


Chamo de experiência social de “fim de mundo” a experiência do contexto de
precariedades causadas como produto direto e indireto do colonialismo moderno
e colonialismo global. O nome vem da tradição cristã que propaga a ideia de um
fim do mundo futuro em que Cristo voltaria à terra para estabelecer o Reino de
Deus (Céu) e encerrar Satanás, seus demônios e os pecadores não arrependidos no
inferno (lago de fogo). Essa é uma crença que existe em todos os seguimentos do
cristianismo, em uns ela é mais enfatizada do que em outros. Mas, em todos há
a concordância de que o fim do mundo é caracterizado por problemas de ordens
diversas: problemas sociais, ambientais, políticos, problemas de salubridade física
e psíquica, enfim, uma série de sofrimentos individuais e coletivos.

2 Fundada em meio à colonialidade, a Assembleia de Deus reproduz e contribui com o siste-


ma-mundo em que nasceu e que dá substância às suas representações religiosas. Por esse motivo, é
comum que essa igreja seja uma instituição colonizadora. Esse é o caso da Assembleia de Deus em São
Pedro que, infelizmente, não é uma exceção da regra da colonialidade na religião.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 429


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
No catolicismo que vigorava em São Pedro, o fim do mundo era um evento
pouco falado, mas, na pregação pentecostal, ele é central. No imaginário pentecos-
tal, o mundo está dividido entre a luta entre Deus e seu séquito versus o Diabo
e seus demônios. Sabendo que o fim se aproxima, o Demônio engana e provoca
sofrimento na humanidade para que, desesperados, os seres humanos se afastem
de Deus procurando consolo e refúgios nos lugares errados que o Demônio arranja,
tais como alcoolismo, drogas ilícitas, luxúria, etc. Quem produz as calamidades do
fim do mundo, por permissão divina, é o Diabo. “Para as lideranças pentecostais
[...] o diabo e os demônios são os responsáveis por todos os malhes que afetam a
humanidade. ‘Doenças misérias, desastres e todos os problemas que afligem o ser
humano desde que este iniciou sua vida na terra têm uma origem: o Diabo’, prega
Edir Macedo” (MARIANO, 2007, p. 130).
Os quilombolas de São Pedro sempre tiveram suas vidas marcadas por muitos
infortúnios. Seja durante a colonização da região no final do séc. XIX e início do séc.
XX, por ocasião do Ciclo da Borracha, à abertura da Rodovia Belém Brasília às mar-
gens da qual muitas fazendas foram construídas, os quilombolas tiveram muitos
conflitos agrários com grileiros, fazendeiros e posseiros. A terra que hoje corres-
ponde ao Assentamento Cupiuba foi roubada pela família Espinheiro Gomes, uma
rica família de fazendeiros do Nordeste do Pará; o território do atual Assentamen-
to João Batista foi roubado por Domingos Rangel, um falecido fazendeiro conheci-
do em Castanhal por ser o mandante de inúmeros assassinatos. As histórias guar-
dadas na memória sobre esse período são bárbaras e a elas somam-se as situações
de vulnerabilidade econômica e carência social que marcaram os anos em que a
Assembleia de Deus evangelizou os quilombolas.
Até o ano de 2003 não existia energia elétrica em São Pedro. O cotidiano das
pessoas era marcado pelos cursos d’água (córregos, igarapés e rios) de onde tira-
vam seu sustento e faziam a higienização de suas roupas, objetos e higienização
pessoal. A pobreza era extrema, a maior parte dos móveis eram rústicos e fabrica-
dos pelos próprios quilombolas, as casas eram de taipa e cobertas de palha, e muitas
só tinham como bens mais importantes as redes em que as pessoas dormiam. As
pessoas viviam sem qualquer acesso a saneamento básico ou a serviços de saú-
de. Por esse motivo, adoecimentos eram comuns. E o difícil acesso aos médicos nas
cidades reforçava o serviço de benzedeiras, parteiras e pajés. É possível imaginar a
precariedade econômica do passado olhando para o presente: atualmente, cerca
de 88% das famílias da comunidade recebem Bolsa Família e dois terços das famí-
lias vivem com uma renda média de até um salário mínimo3. Anos atrás, antes de
existirem quais quer programas de transferência de renda, a situação econômica da
comunidade era ainda mais difícil.
Esse contexto de problemas sociais revestiu com ar de factualidade ao discur-
so apocalíptico do pentecostalismo que afirma serem todos os males presentes

3 Esses dados socioeconômicos ainda estão sendo atualizados, eles integram o banco de dados
que estou organizando sobre a comunidade.

430 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
causados por Satanás, ao mesmo tempo que são sinais necessários do final dos
tempos, cujo desfecho é a iminente volta de Jesus. Sem ter como dar explicações
mais plausíveis às suas vivências, os quilombolas aceitaram a pregação do pente-
costalismo e se converteram. Porém, essa conversão traz consigo um problema: o
fundamentalismo pentecostal tem sido um entrave à conscientização das causas
históricas dos problemas que afetam a comunidade. Ocorre o reforço da colonia-
lidade do ser4 entre os pentecostais. Ao naturalizarem suas mazelas como aconte-
cimentos necessários do fim dos tempos, os pentecostais se fecham para aquisição
de a consciência histórica, que é condição sine qua non de uma transformação
substancial na ordem de mundo que vivem.

O ANALFABETISMO E A BAIXA ESCOLARIDADE


Outra situação que favoreceu a inserção do pentecostalismo em São Pedro foi
o predomínio do analfabetismo e a baixa escolaridade dos membros da comunidade
até os anos 2000. Não obstante mais de um século de existência, a comunidade ga-
nhou uma escola apenas no ano de 2008 e apenas cinco anos antes (2003) um ôni-
bus escolar passou a levar os quilombolas às escolas da cidade para continuar seus
estudos nas séries mais avançadas. Antes, os estudantes se dirigiam à Pitiman-
deua, comunidade vizinha, para estudar apenas a Educação Infantil na pequena
escola construída na década de 1980. E, quando não havia escola em Pitimandeua,
o acesso à educação escolar era quase impossível, pois os quilombolas tinham que
se dirigir à Inhangapi ou Castanhal.
Fernando Rodrigues (48 anos), primeiro quilombola da comunidade a obter nível
superior, e atual coordenador pedagógico da escola da comunidade, lembra de
sua árdua labuta para continuar os estudos: “Eu tinha que acordar quatro e meia da
manhã e sair daqui no máximo cinco e meia para chegar a tempo na escola [Escola
Estadual Cônego Leitão, no centro de Castanhal]. Eu ia de bicicleta. Tu quer ver foi
quando me roubaram [ a bicicleta] e durante um tempo eu fiquei indo de pés...
Ai eu tinha que sair ainda mais cedo daqui”. O percurso de Fernando até a escola
totalizava mais de 16 quilômetros.
Principalmente por falta da educação escolar, não havia acesso a outros mode-
los de pensamento capazes de fornecer diferentes possibilidades de sentidos aos
acontecimentos do cotidiano, logo, os quilombolas lidavam com situações que não
podiam explicar de outra maneira daquela já cultivada na comunidade e que deu
substância à pregação pentecostal e seu teleologismo apocalíptico.

4 No mesmo sentido trabalhado por Maldonado-Torres (2007).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 431


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A REELABORAÇÃO DO IMAGINÁRIO MÍTICO DA COMUNIDADE
Em quarto lugar, destaco a eficaz reelaboração do imaginário mítico da co-
munidade pelos pentecostais. Ao contrário do protestantismo histórico que não
consegue alcançar as classes populares da sociedade brasileira por rejeitar a reli-
giosidade sincrética do país encarando-a como primitivismo e/ou “crendices” que
não dialogam com a fé cristã, e que devem apenas ser ignoradas e abandonadas
(DROOGERS, 1987), o pentecostalismo faz da religiosidade sincrética do Brasil o
seu alicerce. A assim foi em São Pedro.
A cosmologia da comunidade era muito parecida àquela verificada por Heraldo
Maués na Região do Salgado Paraense (1995): Deus criou um mundo com muitas
entidades divididas em três categorias: materiais, espirituais e encantadas. Elas es-
tão hierarquicamente colocadas, a saber: Deus> Santos> Espíritos e Encantados>
Seres humanos e outros entes naturais. O Diabo até está presente nessa cosmolo-
gia, mas seu papel é mínimo. Apesar de disputar as almas das pessoas com Deus,
ele não interfere diretamente no cotidiano das pessoas, ao contrário dos espíritos
e encantados que são constantemente presente, de forma que a relação boa ou
má entre eles e os seres humanos é responsável por sucessos e infortúnios no dia
a dia.
Os pentecostais não rejeitaram essa cosmologia, apenas a adaptaram à sua
doutrina que, como já foi dito, considera o mundo o palco da luta entre Deus e o
seu séquito versus o Diabo e suas forças. Nessa perspectiva que assimilou a cosmo-
logia local, a igreja pertence a Deus e os seres que habitam as matas e o fundo das
águas (espíritos e encantados) foram identificados como demônios a serviço de Sa-
tanás. Essa reinterpretação foi bastante aceita porque emancipou os quilombolas
convertidos (que são, segundo o imaginário religioso, templo e morada do próprio
Deus, na pessoa do Espírito Santo) das malinezas, flechadas de bicho, panemas e
outros males causados por encantados e espíritos aos quilombolas “ímpios”, isto é,
não convertidos. Além de que esclareceu a ambiguidade dos encantados e espíritos
que ora faziam o mal e ora faziam o bem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
As comunidades quilombolas são produto da diáspora africana e, nessa situação
diaspóricas que as caracteriza, lembra Stuart Hall (2013, p. 29), “as identidades se
tornam múltiplas. Junto com o elo que as unem a uma ilha de origem específica,
há outras forças centrípetas”. Sem dúvidas, o pentecostalismo é uma das forças
centrípetas que desloca as comunidades quilombolas para direções diferentes
do elo a que estão presas – a negritude originada no passado e no presente de
resistência ao racismo vigente.
Neste trabalho, ao elucidar algumas das principais causas do sucesso da im-
plantação da Igreja Assembleia de Deus no Quilombo São Pedro, contribuo com o

432 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
aumento do conhecimento das causas do crescimento dos evangélicos, principal-
mente os pentecostais, entre as comunidades quilombolas no Brasil. Como se pode
concluir, os evangélicos possuem um discurso dotado de notável plasticidade que
se acomoda muito bem às particularidades locais em que se instala, igualmente,
ele absorve sem dificuldades os elementos do imaginário local adaptando-os à sua
doutrina. Um entrave à cosmologia pentecostal e seu fundamentalismo é a edu-
cação formal. Ela é capaz de fomentar uma consciência antirracista e afetar con-
sideravelmente a religiosidade dos pentecostais (MONTEIRO, 2019), mas, como o
acesso à educação escolar de qualidade em São Pedro é precária e praticamente
inexistente no passado, o pentecostalismo não teve dificuldades para incutir na
mentalidade dos convertidos as categorias de seu bojo doutrinário fundamentalis-
ta e preconceituoso.

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AUTORIA
Alef Monteiro
Cientista social formado pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Mestrando no
Programa de Pós- Graduação em Sociologia da UFPA. Integrante do NEAB Grupo de
Estudos Afro-Amazônico (GEAM/UFPA).
E-mail: alefmonteiro1@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6956-0012
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0913064139471556

434 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 26
Intolerância
Religiosa e
Racismo
Religioso no Brasil
Contemporâneo
ILÉ ÈKÓ E O RACISMO RELIGIOSO:
POSSIBILIDADES DE RE-EXISTIR DE ESTUDANTES
ADEPTOS DE RELIGIÕES DE MATRIZ AFRICANA

Maritana Drescher da Cruz

Hoje deveríamos estar nos movendo


como uma espécie de professor-militante,
que, de seu próprio deserto,
de seu próprio terceiro mundo,
opera ações de transformação,
por mínimas que sejam.
Sílvio Gallo

INTRODUÇÃO
O texto foi composto a partir de reflexões realizadas a partir da vivência en-
quanto professora de História e Ensino Religioso da rede estadual de educação do
Paraná, filha de axé e pesquisadora em formação. Pesquisa que se inicia no mes-
trado e se desdobra no doutorado tenho pensado Educação e Religiões de Matriz
Africana.
Durante os anos de atuação percebi que o assunto Religiões de Matriz Africana
vai além de ser um tabu na escola, ela é silenciada. Estudantes e professoras e
professores adeptos dessas religiões são calados e por vezes oprimidos por seus
pares e até por outras professoras e professores, pois estes com medo da opressão
se reservam ao silêncio e quando ousam expor suas crenças podem sofrer violência
verbal, simbólica e até física.
Para essa escrita penso em aliança com dois conceitos, o de racismo religioso
de Sidnei Nogueira (2020) e Educação Menor de Silvio Gallo (2016), metodologica-
mente adoto a cartografia que foi enunciada por Gilles Deleuze e Félix Guattari, ela
nos permite acompanhar processos, que vão à contramão de um caminho previsto,
linear, com uma rota definida para que chegue ao fim, assim abre-se possibilidades
de acompanhar percursos. A pergunta que faço é, como estudantes Umbandista e
Candomblecistas se identificam nas aulas de Ensino Religioso?

CAMINHOS METODOLÓGICO
A cartografia foi a metodologia de pesquisa acolhida para essa composição. Ela
se propõe acompanhar processos. Ela vai à contramão do caminho previsto, linear,

436 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
com uma rota definida para que se chegue ao fim. Segundo Barros e Passos (2015,
p.31) “o método, assim, reverte seu
sentido, dando primado ao caminho que vai sendo traçado sem determinações
ou prescrições de antemão dadas”. Com a cartografia abrem-se possibilidades de
tecer, acompanhar percursos, se deixar contagiar por narrativas, transpor dicoto-
mias, disseminar multiplicidades. Deleuze e Guattari (1997) ao pensar a cartografia
afirmam que um mapa não é fechado, mas aberto para conexões em todas as suas
dimensões.
O desafio é o de realizar uma reversão do sentido tradicional de método- não
mais caminhar um caminhar para alcançar metas prefixadas, mas o primado do ca-
minhar que traça, no percurso, suas metas. (BARROS; PASSOS, 2015, p. 17). Acom-
panhar tais processos no sentido de processualidade como apontado por Kastrup e
Barros (2015), caminhar junto com a/na pesquisa. A cartografia pode ser constituí-
da de passos que se sucedem, sem separar a pesquisadora do participante do pro-
cesso de pesquisa em curso. Pois, segundo Barros e Passos (2015, p. 31) “conhecer
o caminho de constituição de dado objeto equivale a caminhar com esse objeto,
constituir esse próprio caminho, constituir-se no caminho”.
O caminho se deu entre itans (lendas) os afetamentos nas aulas de ensino reli-
gioso, estudantes, terreiro, diário de bordo fui caminhando e compondo a pesquisa
de mestrado. E apresento um recorte dela nesse texto.

ILÉ ÈKÓ E O RACISMO RELIGIOSO


O Candomblé é um lócus de resistência da cultura africana, pois nos terreiros
mantem-se cultura, a língua e costumes trazidos do além-mar. No documentário
“Atlântico Negro – na rota dos orixás”, o narrador diz que nos porões dos navios,
além de músculos, vinham ideias, sentimentos, tradições, mentalidades, hábitos
alimentares, ritmos, canções, palavras, crenças religiosas e formas de ver a vida. Ilê
ékó em Yorubá uma língua agenciada em Candomblés, ilê (casa) ékó (educação) a
junção dessas palavras entendemos por escola.
Segundo Caputo (2012) é na escola sobretudo as públicas que crianças e ado-
lescentes adeptos de Religiões de Matriz Africana sofrem mais preconceito/ intole-
rância. Apesar desse termo ser amplamente usado tenho adotado o termo racismo
religioso por compreender que o conceito intolerância não explica adequadamen-
te o preconceito sofrido por esses estudantes. Assim sendo adoto o termo racismo
religioso, conceito que vem ganhando espaço em detrimento ao de intolerância
religiosa. O conceito é novo, mas as perseguições são seculares, sobretudo na His-
tória do Brasil.
Para Nogueira (2020) a forma como a manifestação das intolerâncias religiosas
tem se manifestado foram modificando ao logo da História de acordo com cada
sociedade a partir de sua organização política, cultural e econômica. Questiona o
autor por que racismo em vez de intolerância? E ele nos diz que o objeto desse

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 437


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
tipo de racismo não é o homem em particular, mas uma negação de uma forma
de existir de uma certa coletividade, que atinge sua humanidade, e tal processo de
demonização de suas crenças e rituais caracterizaria a negação dessa humanidade.
Pois o racismo religioso não concerne apenas sobre as caraterísticas fenotípicas, ele
vai além condena as matrizes e as formas de existência das religiões, assim sendo,
não são apenas Umbandistas e Candomblecistas negros e negras que sofrem racis-
mo religioso, mas indiscriminadamente todos e todas independente de sua raça,
que professam tais religiões padecem com essa manifestação de racismo.

Assim essas religiões como seus adeptos são postas sobre ações
das mais variadas formas de violências, são estigmatizadas, des-
prestigiadas e desmoralizadas, a partir da ignorância e argumen-
tos falaciosos de grupos que se dizem cristãos.
Estigmatiza-se para excluir, segregar, apagar, silenciar e apartar
do grupo considerado normal e de prestígio”. (NOGUEIRA,2020,
p.19).

Essa modalidade de racismo o religioso está presente na escola, esse assunto


é amplamente discutido pelos estudos de Stela Guedes Caputo, pois costumeira-
mente estudantes adeptos da Umbanda e do Candomblé sofrem em silêncio vio-
lência simbólica e em alguns casos violência verbal e física, que são chamados de
“macumbeiros” “bruxas” “do diabo” “pretos macumbeiros” etc. Logicamente es-
sas crianças e jovens são silenciadas pela opressão pelo preconceito, pois normal-
mente não se declaram pertencentes a Umbanda ou ao Candomblé por medo, por
vergonha ou pelos dois. Esse comportamento é recorrente em vários lugares como
afirma Caputo: A estratégia de “se tornar invisível” é construída dolorosamente por
crianças e jovens do Candomblé.

Crianças e jovens de Candomblé estão na escola, mas a grande


maioria oculta uma guia do Órísà que ama, bem escondida em-
baixo do uniforme. Sob a manga da camisa podem estar as mar-
cas da iniciação. Algumas chegam a inventar uma doença para
justificar a cabeça raspada para o santo, ou fazem primeira comu-
nhão, para não serem perseguidas. (CAPUTO,2008, p.178-179)

Esse silenciamento é entendido também como negação de suas identidades,


negando suas raízes, negando a eles uma formação integral como ser humano,
nesse sentido movimento-me numa tentativa de intervenção pedagógica. Apre-
sento a seguir tais intervenções e no espaço exíguo das aulas de Ensino Religioso,
possibilidades que abrem como rachaduras de re-existir da professora com seus
estudantes.

438 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
EDUCAÇÃO MENOR E AS POSSIBILIDADES DE RE-EXISTIR
Pelas ações no cotidiano escolar, numa relação direta entre professora e es-
tudantes, fui cavando brechas e pequenas fissuras, com multiplicidades criando
novos espaços de existência. Mas espaços foram sendo cavados e alargados coti-
dianamente nas proposições de minhas aulas, trabalhar às mitologias e mais espe-
cificamente à mitologia Yorubá. Pinceladas suaves sobre mitologia e Candomblé
foram sendo dadas nas aulas de Ensino Religioso, e em História nos sextos anos do
ensino fundamental, e quando se percebia aberturas do currículo em outros mo-
mentos. Apesar dos sensores da educação maior, como direção escolar e pedagó-
gica e parte de um corpo docente fazerem oposição a tais conteúdos e abordagens.
Espaços foram sendo cavados dentro de minha prática pedagógica, abriu-se um
lócus para que estudantes pudessem se expressar, falar de suas crenças, daquilo
que lhes faz sentido.
Tais espaços foram criados e alargados na perspectiva de uma educação menor
proposta por Silvio Gallo, mas antes de abordar a educação menor, faz-se importan-
te apresentar a educação maior. Para Gallo educação maior é aquela dos gabinetes,
dos projetos, das secretarias de educação e dos núcleos regionais, das estruturas,
do oficial. Em contrapartida a educação menor é aquela da resistência, de um ato
de revolta contra as políticas impositivas no ambiente escolar. Enquanto a educa-
ção maior é produzida na macro-política, a educação menor é produzida na micro-
política. Enquanto aquela é produzida nos gabinetes e chega por meio de ofícios e
documentos, essa se expressa nas resistências, no cotidiano das relações na escola,
em sala de aula. Se a educação maior
se apresenta como máquina de controle, reproduzindo regularidades e visando
produzir indivíduos em série como numa linha de produção -, por outro lado, a
educação menor se apresenta como máquina de guerra, resistência às tentativas
de impedir a proliferação de diferenças. Nas palavras de Gallo (2016, p.67) “se a
aprendizagem é algo que escapa que foge ao controle, resistir é sempre possível”.
Estar atenta ao que escapa ao que foge dos padrões, das regularidades. Atenta
ao movimento, às mudanças e invenções de outros modos de existência. Com Gallo
(2016, p. 53) “pensar educação como acontecimento, como conjunto de aconte-
cimentos”. Durante dois anos nas aulas estudantes que se sentiam amedrontados
em expressar sua religiosidade foram gradativamente se expressando se apresen-
tando adeptos, alegando que seus pais frequentavam esses espaços religiosos e
aqueles que se apresentavam de outras denominações foram também demons-
trando curiosidade e cultivando o respeito. Relato aqui a identificação e os olhinhos
atentos e brilhantes quando contei sobre a criação do mundo e da humanidade
a partir de uma itan(lenda) Yorubana. Conhecimento nos terreiros é transmitido
pela oralidade então transcrevo aqui a itan contada reproduzida por mim na sala
de aula.
Olorum é o Deus supremo, criador do mundo, dos orixás e dos humanos. Oxalá
foi o primeiro orixá a ser criado, ele é bastante obstinado e independente. Ele re-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 439


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
cebeu uma missão de Olorun, a de criar o mundo! para cumprir sua missão, antes
da partida, Olorum entregou-lhe o "saco da criação" para que com os elementos
contidos nele o Orixá pudesse criar, dar forma e vida ao mundo. Mas Oxalá deveria
submeter-se a certas regras e de respeitar diversas obrigações orientadas por Olo-
run. Devido seu caráter altivo, ele recusou-se a prestar homenagens ao orixá Exu,
pois deferia-lhe fazer oferendas antes de iniciar sua viagem para criação do mundo.
O velho orixá partiu com seu cajado chamado opaxorô e quando ia passar a por-
ta do Além, deu de cara com Exu. Esse orixá é responsável pela Comunicação entre
os mundos. Exu não gostou da desfeita de Oxalá que não o homenageou como
orientado por Olorum e resolveu pregar uma peça em Oxalá fazendo com que ele
sentisse muita sede e então Oxalá bebeu muito vinha de palma. Bebeu tanto que
ficou bêbado e dormiu.
Odudua, irmão de oxalá vendo Oxalá dormindo pegou o saco da criação e foi
até Olorun e o criador mandou então que ele mesmo cumprisse a missão já que
Oxalá não o fez. Odudua saiu assim do Além e encontrou adiante de
uma extensão ilimitada de água. Deixou cair a substância marrom contida
no "saco da criação". Era terra. Formou-se, então, um montículo que ultrapassou
a superfície das águas. Aí, ele colocou uma galinha cujos pés tinham cinco garras.
Esta começou a arranhar e a espalhar a terra sobre a superfície das águas. Onde
ciscava, cobria as águas, e a terra ia se alargando cada vez mais, o que em iorubá se
diz ilè nfè, expressão que deu origem ao nome da cidade de Ilê Ifé. Esta começou
a arranhar e a espalhar a terra sobre a superfície das águas. Onde ciscava, cobria
as águas, e a terra ia se alargando cada vez mais, o que em Yorubá se diz ilè nfè,
expressão que deu origem ao nome da cidade de Ilê Ifé.
Quando Oxalá acordou não viu mais saco da criação e chateado voltou a Olorum
e este, como castigo pela sua embriaguez, o proibiu de beber vinho de palma e
mesmo usar azeite-de- dendê. Mas Confiou-lhe, entretanto, como consolo a tarefa
de modelar no barro o os seres humanos, mas a criação da humanidade por Oxalá
é uma outra itan.
Essa itan abre a possibilidade de compreensão por parte dos estudantes que
existem outros mitos de criação do mundo e da humanidade além daquele divul-
gado na Bíblia, conforme eu ia contando e os orixás iam sendo apresentados duran-
te a fala alguns alunos e alunas iam se colocando numa postura mais confiante e
orgulhosa de sua cultura religiosa.
Abaixo um desenho de uma estudante do sétimo ano do ensino fundamental a
qual pediu para desenhar o quadro sua orixá de cabeça, após uma aula de Ensino
Religioso.

440 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
FIGURA 1 - DESENHO DO ORIXÁ NANÃ FEITO POR UMA ESTUDANTE NO QUADRO,
NA AULA DE ENSINO RELIGIOSO, EM SETEMBRO DE 2016.

Fonte: Acervo pessoal

CONSIDERAÇÕES
Considero que a sala de aula, um espaço exíguo um espaço da educação menor.
Estudantes resistiam com suas crenças, conhecimentos, tiveram espaços de fala,
de escuta e representação da diversidade religiosa que, até então suprimidas. A
partir das aulas de Ensino Religioso em que além dos saberes judaico cristãos fora
pela professora abordado também elementos da Religiões de Matriz Africana em
especial a Umbanda e o Candomblé. Esses estudantes foram se sentindo represen-
tados e acolhidos, nos conteúdos abordados. Aqueles que escondiam suas guias
passam timidamente exibi-las, passam a desenhar seus orixás e falar acredito com
um pouco mais de segurança por também sentirem se representados na figura da
professora que também se posiciona como adepta dessas religiões.
Acredito que a transformação se dá a partir de pequenas mudanças, atos re-
volucionários que escapam a educação maior. Espaços que cotidianamente são
conquistados, mas que ainda precisam ser alargados. Minha aposta é na formação
de professores e professoras, pesquisa sobre a qual me debruço nesse momento.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 441


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
REFERÊNCIAS

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(Feminismos Plurais / coordenação de Djamila Ribeiro)

AUTORIA
Maritana Drescher da Cruz
Doutoranda em Educação – UFPR e professora da rede estadual de educação do
Paraná- SEED
E-mail:maritana.historia@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2344-1135
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4181808149919977

442 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
GUINADA PROTOFASCISTA E RACISMO
RELIGIOSO NO BRASIL: OS CASOS CONTRA
OS PRATICANTES DE RELIGIÕES DE MATRIZ
AFRICANA NO RIO DE JANEIRO CONFORME A
MÍDIA OFICIAL

Geiziane Angélica de Souza Costa


Leonardo Patrício de Barros
Lúcia Maria da Silva Soares

Bahia, Oh! África


Vem cá nos ajudar... (2x)
Força baiana,
Força africana,
Força divina, vem cá, vem cá
[Ponto de umbanda de domínio público
para pretas(os) velhas (os)]

INTRODUÇÃO
O trabalho analisa os casos de racismo religioso contra praticantes de religiões
de matriz africana - especificamente candomblé e umbanda – entre os anos de 2014
e 2020 no Rio de Janeiro na transição entre os governos de Roussef, Temer e Bol-
sonaro.
Ao longo da pesquisa inspirada no método dialético, observou-se que nos dois
primeiros governos o discurso religioso não aparecia na propaganda oficial, entre-
tanto, o atual governo, já na campanha eleitoral em 2018 utilizava o slogan “Brasil
acima de tudo. Deus acima de todos” numa exaltação do monoteísmo judaico-cris-
tão que rompe com a laicidade. A eleição do candidato demonstra que o discurso
antidemocrático possui ecos na sociedade como se constata nos ataques às casas
de umbanda e candomblé no Brasil por meio de invasões, agressões, roubos e de-
predações. Considerando que a Constituição Federal de 1988 em seu artigo 5º,
inciso VI, determina a inviolabilidade da liberdade de crença religiosa, reflete-se os
principais aspectos que relacionam o cenário político brasileiro ao agravamento da
violência contra os praticantes das religiões de matriz africana.
Os números de crime de racismo religioso constantes no Disque 100 desde
2011 até o primeiro semestre de 2019 seguem contagem diferente do que é ex-
presso pela mídia. Observa-se aumento da veiculação de casos, especialmente no
ano de 2017, ao passo que os dados oficiais demonstram um decréscimo no mesmo
período. É importante destacar que a maior parte dos índices em denúncia tem

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 443


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
como credo não informado, o que impede reprodução exata da realidade, além da
possibilidade de muitos casos não serem registrados por medo. A pesquisa quali-
tativa de delineamento bibliográfico e documental contou com dados em fontes
secundárias (33 reportagens em páginas eletrônicas da mídia oficial: O Dia, Extra
Digital, O Globo, Folha de São Paulo) e na base do Disque 100. Para interpretação
da atual conjuntura política brasileira, marcada pela ascensão do bolsonarismo,
partimos dos raciocínios de Fontes (2019) e Iasi (2017) e quanto ao agravamento
das violações de direito à liberdade religiosa sofridas pelos praticantes das religiões
de matriz africana, nos debruçamos sobre Dhesca Brasil (2016), Gênero e Número
(2019) e Dias (2019). Para fundamentar nossa discussão sobre racismo estrutural,
nos inspiramos nas abordagens de Almeida (2018) e Nascimento (2016). Já para
melhor delimitar os principais pilares do racismo na sociedade brasileira, utilizamos
Moura (1988,2014) e Goés (2018). Na reflexão sobre racismo religioso estão as con-
tribuições de Mota (2018), Nascimento (2017) e Rufino e Miranda (2019).

APORTE TEÓRICO
Desde a posse em janeiro de 2019, o governo Bolsonaro tem se caracteriza-
do por uma condução conservadora e reacionária do Brasil com tons populistas
de extrema-direita. Para além do abissal retrocesso impingido às conquistas da
Constituição Federal de 1988 que põem as condições de sobrevivência da maio-
ria em cheque, são aterradores o desmonte da proteção ambiental bem como a
permissividade diante da violação de direitos das populações lgbtiqa+, indígena e
negra, com destaque para as mulheres negras como maiores vítimas do feminicídio
e da violência doméstica (SINDICATO DOS BANCÁRIOS, 2020 e REDE BRASIL ATUAL,
2020).
Neste cenário regressivo, agravado pela pandemia do COVID-19, interessa-nos,
particularmente, a severidade das violações de direito à liberdade religiosa sofridas
pelos praticantes das religiões de matriz africana. Primeiramente, é preciso resga-
tar que o rompimento aberto com a laicidade do Estado pelo governo Bolsonaro re-
força uma tradição republicana brasileira de intercâmbio entre religião cristã e po-
lítica, a exemplo do catolicismo, mas que neste momento denota forte presença de
segmentos neopentecostais conservadores em combate conjunto da “ideologia de
gênero” em favor da família tradicional e da moral e dos bons costumes1. Ao mesmo
tempo, o ensino religioso de tipo confessional ganha espaço significativo nas es-
colas pelo país em benefício das religiões majoritárias, em vez do ensino religioso
não-confessional que envolve conhecimento ampliado da história e da filosofia das
religiões na perspectiva do respeito aos diversos credos (DHESCA BRASIL, 2016).

1 O movimento “Escola sem Partido”, de autoria de advogado Miguel Nagib, constituiu expres-
são desse intuito de cerceamento político-ideológico de professores em sala de aula, sobretudo sobre
temas referentes a gênero e sexualidade (DHESCA BRASIL, 2016). Importante frisar que, após o Su-
premo Tribunal Federal (STF) julgar inconstitucional uma lei estadual de Alagoas inspirada no referido
movimento, seu autor anunciou em agosto deste ano sua saída (UOL, 2020a).

444 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
As perseguições aos praticantes de religiões de matriz africana são fruto da
conjuntura com raízes bastantes longínquas, pois o racismo religioso é também
cultural no cenário da sangrenta formação social brasileira, isto é, diz respeito a
uma estigmatização do conjunto do saber ancestral trazido pelos indígenas e afri-
canos ao território nacional no rastro do genocídio histórico destas populações.
Como é sabido, o avanço das relações sociais capitalistas no país se deu ancorada
numa ideologia de branqueamento cujos fins almejados, em nome do progresso,
era “regenerar” a mestiçagem para que a população se compusesse etnicamente
cada vez mais próxima dos fenótipos europeus (GOÉS,2018 e NASCIMENTO,2016).
O encobrimento destas “ancestralidades desconfortáveis”, nas palavras de Guima-
rães (2019), contou com forte desempenho da Igreja Católica que, por meio de
uma “aculturação” forçada, atacou, desde o período colonial, as crenças religiosas
indígenas e africanas em nome do modelo de homem branco cristão “civilizado”.
Sem falar nas conexões com o crime organizado no país, hoje tal investida parte
sobretudo das igrejas neopentecostais que arregimentam seus “soldados de Jesus”
com grande apelo midiático para combate ao demônio, não raro associado ao orixá
Exu no candomblé ou às entidades exus e pombagiras na umbanda (SILVA, 2015).
As perseguições sofridas, ao longo dos anos, pelas religiões de matriz africana
podem ser entendidas como uma das várias faces do racismo que estrutura a so-
ciedade brasileira:

[...] o racismo é sempre estrutural, ou seja, de que ele é um ele-


mento que integra a organização econômica e política da socie-
dade. Em suma, o que procuramos demonstrar é que o racismo
é a manifestação normal de uma sociedade, e não um fenôme-
no patológico ou expressa algum tipo de anormalidade. O racis-
mo fornece o sentido, a lógica e a tecnologia para as formas de
desigualdades e violência que moldam a vida social contempo-
rânea” (ALMEIDA, 2018, pp. 15 – 16).

Na formação social brasileira, a subalternização do negro foi elemento propul-


sor do funcionamento da sociedade, seja nos âmbitos sociais ou econômicos. Por
aproximadamente 388 anos o negro foi tratado como propriedade privada (1550
– 1888) e no pós-abolição (1888) e ascensão da República (1889) as legislações cria-
das não lhes ofereceram qualquer lastro de cidadania ou compensação pelos sécu-
los de exploração vividos, mas, na contramão do reconhecimento do negro como
cidadão o código penal da República (Decreto nº. 847 de 11 de outubro de 1890)
proibiu contundentemente as práticas dos negros como, por exemplo, a capoeira
sob pena de prisão. Como bem observa Nascimento (2016, p.148): “Venderam o
espírito africano na pia do batismo católico [...]” e desde esse momento até os dias
atuais o vilipêndio das crenças e práticas dos negros é processo real que se desen-
volve cotidianamente.
Tanto a economia brasileira, como as dos países colonizadores, foi fundamen-
tada no processo de escravização do negro que só foi possível pelo racismo. Seja

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 445


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
pelo lucro proveniente do comércio de escravizados ou pela produção e valorização
de capital resultante da exploração do trabalho dos escravizados, o contingente
de capital que financiou o capitalismo europeu foi produzido e reproduzido por
mãos negras. É partindo desses pontos que podemos observar que a estrutura da
sociedade contemporânea está fundamentada no racismo, pois foi pelo conceito
de raça e na sua diferenciação por meio do darwinismo social e teorias eugenistas,
como nos elucida Goés (2018), que essa sociedade se orientou.
O negro no Brasil sequer foi considerado à formação da classe trabalhadora até
os anos 1930 e esta foi formada pelo Estado via imigração de europeus (KOWARICK,
1994). É importante destacar que esse processo imigratório foi em larga escala jus-
tificado pela intenção de produzir o branqueamento da sociedade brasileira e isso
sustentado pela ideologia de que o europeu era mais acostumado com o trabalho
livre que o negro recém-liberto.
Entendemos que a formação social brasileira desde a colonização teve seus
fundamentos na violência racista. Portanto, reconhecendo as religiões de matriz
africana como espaços de manutenção da crença e cultura dos negros, não há pos-
sibilidade de se tratar os ataques historicamente sofridos por essa população como
resultado apenas de preconceito ou ignorância.
Recordemos do racismo que outrora se realizou, também, nas batidas policiais
aos terreiros de candomblé na República Velha e que, atualmente, se materializa
na depredação dos templos religiosos ou nos ataques diretos aos adeptos dessas
religiões.
Trata-se de crime de racismo e não de prática de intolerância, pois os Orixás, Ca-
boclos, Pretos Velhos dentre outras divindades e entidades das religiões de matriz
africana são demonizadas de forma mais violenta pelo fato de estarem no escopo
da tradição dos negros. Não se despende o mesmo fôlego na condenação da ado-
ração a um santo católico como na demonização de Exú. É mais comum entre as
pessoas ter medo de Tranca Rua que de Santo Antônio. Nascimento (2017, p.54)
esclarece que mais que o rechaço a questões unicamente religiosas está o despre-
zo, preconceito e desejo de expurgo a tudo o que se refere a cultura negra

Não é apenas, ou exclusivamente, o caráter religioso que é recu-


sado efetivamente nos ataques aos templos e pessoas vivencia-
doras dessas tradições. É exatamente esse modo de vida negro,
mesmo quando vivenciado por pessoas não negras, que se ata-
ca; ou seja, mesmo pessoas brancas que vivenciem as tradições
de matrizes africanas podem ser vítimas de um racismo original-
mente destinado a elementos negros dessas tradições.

O crime de intolerância religiosa é descrito de acordo com o Código Penal, através


do artigo 208, como qualquer ato de “escarnecer de alguém publicamente, por
motivo de crença ou função religiosa; impedir ou perturbar cerimônia ou prática de
culto religioso; vilipendiar publicamente ato ou objeto de culto religioso”. A prática
delituosa tem pena prevista de um a três anos de detenção, e não há prescrição

446 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
para o crime. Inúmeros são os casos envolvendo “intolerância religiosa” noticiados
pela grande mídia. Entretanto, o número de denúncias oficiais que podem ser regis-
tradas através do canal oficial do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos através do Disque 100, é menor do que o relatado. Tal fenômeno pode
ser justificado pelo medo, uma vez que muitos crimes de depredação e ataques
a terreiros e barracões são exercidos através do tráfico em favelas pelo nome de
“Deus”, especialmente no Rio de Janeiro, por intermédio de um avanço neopente-
costal já mencionado.
A crescente religiosa neopentecostal pode ser observada no Brasil de maneira
sistemática e assumindo poder por volta dos anos 1980, quando a bancada religio-
sa no Congresso começa a ganhar corpo durante a confecção da atual constituição.
Através do lema “irmão vota em irmão” o movimento começa a ganhar visibili-
dade e novos adeptos. Hoje, através de uma campanha política que tinha como
slogan “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”, a hegemonia que beira ao
fundamentalismo alimenta ainda mais episódios de crime e violência à religiosida-
de afro-brasileira. Conforme Santos em Gênero e Número (2019):

Nos presídios, por exemplo, virar evangélico é significado de


bom comportamento. O papel de alguns pastores dentro do sis-
tema prisional é garantir a relação de tranquilidade com o poder
local, com o diretor do presídio. A igreja também é uma ponte
com a família, pois concede cestas básicas e assistência jurídica
enquanto a pessoa está presa. Então, ao sair da prisão, ela tem
que pagar o benefício que recebeu. Como paga? Continua no
tráfico e acaba expulsando a umbanda e o candomblé dos ter-
ritórios. Esses espaços também se tornaram currais eleitorais. É
uma engenharia social complicada

O estado do Rio de Janeiro possui a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos


e Cidadania da ALERJ, que acolhe denúncias do mesmo modo que acompanha ca-
sos, contando ainda com a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância
(DECRADI), desde dezembro de 2018. Entretanto, como pode ser observado, mes-
mo com tais medidas, estamos longe de ter o direito garantido materialmente à
liberdade religiosa, direito este fundamental da pessoa humana e parte inalienável
da formação de sua identidade face a crescente de uma intolerância de padrões
racistas que vem ratificada e hierarquizada politicamente.

PROBLEMA DE PESQUISA (E/OU HIPÓTESE E/OU OBJETIVOS)


Buscamos aclarar a relação da ascensão do bolsonarismo ancorado no conser-
vadorismo religioso no Brasil - destaque para a expansão neopentecostal que in-
fluencia a economia e a política nacionais haja vista a bancada evangélica expressi-
va no Congresso que apoia o governo – com a violência do racismo religioso sofrido
pelos praticantes das religiões de matriz africana na contemporaneidade.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 447


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
É fato que as culturas ancestrais das populações indígena e negra não deixaram
de ser achincalhadas em nenhum momento da história do país, todavia, sob nosso
ponto de vista, o fenômeno do neopentecostalismo entre nós repõe o racismo
religioso com força na cena pública uma vez que na ferrenha disputa por mercado
religioso que determinados segmentos evangélicos empreendem, a escolha de ini-
migos faz-se crucial e a realidade vem demonstrando que outras religiões não são
perseguidas nem de longe como a umbanda e o candomblé, as religiões de matriz
africana mais conhecidas . Tal saga vai ao extremo da conversão de traficantes de
drogas que passam a aterrorizar, por dívida a alguns pastores como já aqui exposto,
quem é assumidamente de axé.

METODOLOGIA
A pesquisa qualitativa para o presente trabalho apresentou delineamento bi-
bliográfico e documental a partir da análise de reportagens sobre o racismo religio-
so no estado do Rio de Janeiro noticiadas em páginas eletrônicas da mídia oficial, a
saber: jornais Extra Digital (24), O Dia (4), O Globo (3), e Folha de São Paulo (2). Os
dados foram coletados nestas fontes secundárias a partir das seguintes variáveis:
jornal da reportagem; parte do jornal onde a reportagem foi veiculada; data da re-
portagem; número de casos contidos na reportagem; locais das violências; sujeitos
e instituições envolvidas nos casos; tipos de violência e encaminhamentos.
Em relação à localidade dos casos de racismo religioso noticiados, encontramos
Niterói, Mesquita, Teresópolis, Ilha do Governador e Nilópolis com apenas um caso;
Campos, Vila da Penha, Complexo do Lins, São Gonçalo e Duque de Caxias com
dois casos; Baixada Fluminense com quatro casos; Rio de Janeiro com oito casos.
O maior número de crimes aparece nos anos de 2017 e 2019 com onze casos cada
um, concentrando no município de Nova Iguaçu a maior parte das ocorrências, 16
no total.
Dentre as violências observadas, a mais frequente foi a depredação do espaços
religioso (14) atrás de ameaça (6); apedrejamento (5); expulsão pelo tráfico, dis-
criminação por indumentária, bullying com quatro casos cada; discriminação por
vídeo, proibição de culto, invasão ao espaço religioso, violência não abordada com
três casos cada; agressão física (2) e demissão de emprego, discriminação religio-
sa e negação de atendimento em espaço público com um caso cada . Importante
esclarecer que não raro uma única reportagem tratava de mais de uma violência
sofrida por praticantes de religiões de matriz africana.
Entre os encaminhamentos realizados, majoritariamente está presente o aten-
dimento pela Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (DECRADI) em
nove casos seguido pelo registro em delegacias com sete casos. Além disto, apare-
cem o atendimento da Secretaria de Estado de Direitos Humanos e Políticas para
Mulheres e Idosos (SEDHMI) com quatro casos; atendimento do Ministério Público
do Rio de Janeiro (MPRJ) em três casos; atendimento pela Comissão de Combate à

448 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Intolerância Religiosa (CCIR) em dois casos. Também aparecem dados de prisão em
dois casos e atendimento pelo Conselho Estadual dos Direitos do Negro (CEDINE).
Entretanto, é essencial esclarecer que esses dados noticiados não se aproxi-
mam dos dados oficiais disponibilizados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos
Direitos Humanos através do Disque 100, uma vez que muitos não realizam a de-
núncia para compor as estatísticas, principalmente naquelas que há como agente
do crime o tráfico local envolvido, na qual o medo leva ao silêncio.

RESULTADOS E ANÁLISE
A investigação e análise dos dados nos permitiu observar que se no Brasil os le-
gados culturais indígena e africano nunca deixaram de ser perseguidos em virtude
da “aculturação” imposta pela Igreja Católica, hoje tal investida parte das igrejas
neopentecostais que arregimentam seus “soldados de Jesus” com apelo midiáti-
co para combate ao “demônio”. Na disputa por “mercado religioso”, constatou-se
uma relação entre o aumento da violência contra os praticantes de religiões de
matriz africana e a conversão de traficantes de várias localidades do estado do
Rio de Janeiro às denominações evangélicas. Na grossa parte dos casos, são os trafi-
cantes evangélicos os principais autores da violência, seguidos pela vizinhança das
vítimas num menor segundo lugar. Chama a atenção que os órgãos de segurança
pública não contam nem com estratégia nem com estrutura para o enfrentamento
da questão.

CONCLUSÕES (OU CONSIDERAÇÕES FINAIS)


Quem é assumidamente de axé sofre com a administração do governo fede-
ral. Recentemente, em setembro de 2020, no discurso da Assembleia Geral das
Organizações das Nações Unidas (ONU) o atual presidente declarou que no Brasil
há, o que ele chama, de “cristofobia”. Entretanto, como pensar a existência de tal
fenômeno em uma sociedade majoritariamente cristã, segundo o censo realizado
em 2010, se seus membros ocupam espaços no governo, partidos políticos, feriados
religiosos? A fobia é contra as religiões de matriz africana pois, de acordo com o Dis-
que 100 do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos entre 2015 e
2017, enquanto católicos e protestantes foram vítimas de 1,8 e 3,8 das denúncias
de intolerância religiosa respectivamente, os adeptos da umbanda e do candomblé
reuniram 25% do total e isto porque há significativa subnotificação (UOL, 2020b).
Neste momento nacional, são inarredáveis a defesa intransigente da demo-
cracia e dos direitos humanos, inclusa a liberdade religiosa, bem como a defesa
de uma reconciliação histórica com as religiões de matriz africana, o que envolve
atenção político-jurídica estatal de monta que não está no horizonte.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 449


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
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AUTORIA
Geiziane Angélica
SEEDUC-RJ
E-mail: geizianecosta@hotmail.com
Lattes: : http://lattes.cnpq.br/3337009014920528

Leonardo Patrício de Barros


PPGSS/UERJ
E-mail : leonardo_pbarros@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1782-2233
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9755926951236106

Lúcia Maria da Silva Soares


ESS/UFF
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-2260-705X
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9388229064193093

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 451


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ARTICULAÇÃO POLÍTICA ENTRE COMUNIDADES
DE TERREIROS E AS CAMINHADAS CONTRA A
INTOLERÂNCIA RELIGIOSA EM SALVADOR-BA.

Aline de Jesus da Cruz

INTRODUÇÃO
O processo de estabelecimento do candomblé, enquanto religião afro-brasi-
leira, fez parte de um processo histórico de perseguição e resistência que marca
toda sua trajetória desde o período colonial até a contemporaneidade. Após de-
senvolver diferentes estratégias para sobreviver a proibição da Igreja Católica e a
repressão policial, atualmente o povo de axé tem como desafio o enfrentamento
ao racismo religioso, prática que foi denominada pela academia, legislações e mo-
vimentos sociais de intolerância religiosa.
Conforme Estatuto da Igualdade Racial e Intolerância Religiosa do Estado da
Bahia1, esta compreende toda discriminação de caráter depreciativo e manifesta-
ções de ódio individuais, coletivas ou institucionais que promova prejuízos mo-
rais, materiais ou imateriais, às religiões e seus adeptos. Se tratando das religiões
afro-brasileiras, tendo em vista o histórico de perseguição, baseado nas influências
africanas presentes nos ritos, crenças e formas de sociabilidade das comunidades de
terreiros, a “intolerância” neste caso representa, sobretudo, uma expressão do ra-
cismo estrutural e institucionalizado no país.
Casos dessa natureza têm crescido significativamente a partir da expansão das
religiões evangélicas no Brasil. Estas, sobretudo as denominações neopentecostais,
que mais tem ganhado adeptos nas últimas décadas são as principais responsáveis
pelo ataque direto as religiões afro- brasileiras2. Aproveitando-se do histórico de
rejeição contra as religiões de matrizes africanas esse segmento transformou-as
em um inimigo a ser combatido, formando verdadeiros exércitos, sobretudo nas
periferias, onde protagonizam ataques aos seus adeptos, patrimônios e símbolos.
Diante dos crescentes casos muitos grupos religiosos de matrizes africanas têm
se organizado e realizam protestos em formato de caminhadas pelas ruas de diver-
sas cidades do país. Esses eventos vêm se tornando espaços de denúncia de casos
de racismo religioso, de reafirmação do direito à liberdade religiosa bem como de
reivindicação por respeito e intervenções do poder público.

1 Lei nº 13.182/2014, Artigo 2º, Inciso VII.


2 Conforme os dados do Relatório da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, sobre Intole-
rância e Violência Religiosa no Brasil, que levantou um total de 903 casos, no período de 2011 a 2015,
por meio da análise de dados relatados pela imprensa escrita, denunciados em ouvidorias e os que
chegaram ao judiciário, demonstra que, fora os dados em que não se registrou a informação de reli-
gião, as vítimas são majoritariamente de religiões afro-brasileiras e os acusados são evangélicos.

452 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Previstas em Constituição Federal3 as manifestações no espaço público são uma
importante ferramenta de transformação política e social para a sociedade civil,
sobretudo os movimentos sociais e grupos negligenciados pelo Estado. Em Salva-
dor, ocorrem diversas caminhadas em bairros periféricos a partir da articulação
política de comunidades de terreiros, movidos pelo repúdio a atos de intolerância
e ameaça aos seus cultos, a exemplo da Caminhada pelo fim da Violência e do Ódio
Religioso e pela Paz realizada no Engenho Velho da Federação, a Caminhada dos
Terreiros do Subúrbio e Adjacências e a Caminhada do Povo de Santo do Nordeste
de Amaralina que serão aqui apresentadas.

DA PROIBIÇÃO ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS: O CANDOMBLÉ E


SUA TRAJETÓRIA DE PRSEGEUIÇÃO E RESISTÊNCIA
A história das religiões de matrizes africanas no Brasil é marcada por episódios
de proibição e perseguição. Apesar da influência do colonialismo em suas tradições,
negros escravizados sempre criaram estratégias de sobrevivência ao projeto co-
lonizador de extinção total de suas práticas. Exemplo disso foi a necessidade de
reivindicarem o status de religião.
Conforme Nascimento (2017), os terreiros de Candomblé ultrapassam o conceito
ocidental de religião, por terem se desenvolvido como um importante espaço de
resistência ao colonialismo, ainda que com limitações. Nestas comunidades, onde
muitas vezes se articulavam rebeliões e formavam-se quilombos, para além dos
rituais, reproduzia-se também um modo de vida com referências africanas, na ten-
tativa de reestabelecer laços rompidos pelo racismo e pela colonização.
De acordo com Parés (2016), reivindicar o status de religião representou uma
forma de resistência política, mais uma estratégia de sobrevivência diante da proi-
bição baseada na acusação de que eram práticas tipificadas como crime no código
penal4. É também um reflexo da colonialidade pois a concepção de sociedade oci-
dental cristã na tentativa de desqualificar esses rituais denominava de “baixo espi-
ritismo” e “feitiçaria”. Enquanto isso, até os anos 1940 candomblecistas da Bahia
se reconheciam enquanto seitas, expressão que tem origem na África pré-colonial
e que hoje tem um tom depreciativo (PARÉS, 2016).
Outros aspectos dessa resistência foram a plurirreligiosidade em que se assu-
mia a religião católica obrigatoriamente, mas não deixava de cultuar a crença de
origem escondido, em alguns casos associando-a aos símbolos da religião domi-
nante, o que ficou conhecido como sincretismo religioso. Para burlar a fiscalização

3 Constituição Federal de 1988. Artigo 5, inciso XVI: Todos podem reunir-se pacificamente, sem
armas, em locais abertos ou públicos, independentemente de autorização, desde que não frustrem
outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo exigido aviso prévio à autoridade
competente (BRASIL, 1988).
4 O código penal de 1890, qualificava de crime contra a saúde pública a prática do espiritismo
(art. 157) e do curandeirismo (art. 158), este último ainda é vigente no código atual que incluiu tam-
bém o charlatanismo (art. 283) termo utilizado para difamar lideranças do candomblé.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 453


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
da Delegacia de Jogos e Costumes muitos se passavam por centros espíritas que
eram considerados “alto espiritismo” ou inseriam na estrutura hierárquica de suas
casas, pessoas que tinham certa influência na política do período, dando-lhe cargos,
facilitando assim a liberação dos registros bem como as negociações e articulações
políticas junto aos órgãos oficiais.
Essa articulação que ganhou força na década de trinta aproximou lideranças
de terreiros, que ganhavam espaço no campo da mobilização cultural, intelectual
e artística negra do período, e pessoas de maior prestígio da sociedade baiana, a
exemplo de artistas, escritores, acadêmicos e políticos, que se aliaram a luta pela
defesa da liberdade religiosa, utilizando do seu lugar de representação nos espaços
institucionais para reivindicar as demandas das religiões de matriz africana. (BRA-
GA, 1995)
A principal vitória desse processo veio na década de setenta com o fim da obri-
gatoriedade de registro, pagamento de taxas e licença policial aos terreiros. Confor-
me Parés (2016), diante disso o Candomblé passa a ganhar mais visibilidade na es-
fera pública, por meio do reconhecimento, ainda que pontual, da sua participação
no legado cultural africano para a sociedade brasileira.
Nesta nova conjuntura as reivindicações passam a ser por proteção do Estado
através de legislações, reconhecimento enquanto povos e comunidades tradicio-
nais, regularização fundiária, imunidade tributária, investimento através de polí-
ticas públicas de salvaguarda por parte dos órgãos de patrimônio, representação
política nos espaços de decisão institucionais, obrigatoriedade do conteúdo de his-
tória e cultura afro-brasileira nas instituições de ensino, dentre outras. Esse movi-
mento foi favorecido com a redemocratização do país na década de oitenta, pela
inserção na agenda política do movimento negro, criação da Fundação Palmares,
realização da Conferência de Durban, em 2001, bem como pela criação da SEPPIR
em 2003. (PARÉS, 2016; SILVA, 2017).
Enquanto as religiões afro-brasileiras avançavam ocupando os espaços de pro-
moção de políticas de igualdade racial e conquistando reconhecimento, ainda que
simbólico, os evangélicos cresciam sustentados em estratégias de desqualificação
do campo afro-religioso. É nesse contexto de reconhecimento e acirramento de
disputas internas no campo afro- religioso que o neopentecostalismo avança de-
senvolvendo novas práticas de perseguição ao Candomblé e outras denominações.
“De forma paradoxal, quando a elite do candomblé passou a ser reconhecida como
‘cultura’ pelo Estado, sua base social estava sendo minada e convertida pelo dis-
curso da antifeitiçaria neopentecostal” (PARÉS, 2016:537).
As principais características da atuação desse segmento é o intenso proseli-
tismo de caráter fundamentalista, que na voz de muitos líderes reverbera em tom
bélico e propaga discursos de ódio e demonização ao candomblé, seus símbolos e
adeptos. Tais ataques ocorrem através de cultos, meios de comunicação e espaços
públicos, estimulando atos de agressão verbal, física ou patrimonial sob a justifi-
cativa de combate ao mal e defesa de um país cristão. A sua atuação parlamentar

454 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
e institucional, que passa a ganhar força com a formação da Frente Parlamentar
Evangélica, conhecida popularmente como Bancada Evangélica, também tem sido
bastante eficaz na propagação das práticas de racismo religioso a partir de uma
agenda política. (ORO; BEM, 2008).
Esta atuação política representa uma ameaça aos direitos das comunidades de
terreiro a medida que, por exemplo, tentam proibir o sacrifício de animais nos
rituais, dificultam a implementação da lei 10.639/2010 que estabelece a obrigato-
riedade do ensino da história e cultura afro-brasileira ou tentam por meio da “des-
culturalização”, ressignificar símbolos do legado africano e suprimir a contribuição
do candomblé para a construção destes (SILVA, 2017).
A conjuntura demandava do povo de axé o desenvolvimento de novas estraté-
gias de resistência. Conforme Parés (2016) “o confronto tem tido efeitos positivos
no sentido de mobilizar politicamente as comunidades de terreiro, estabelecendo
alianças com os movimentos negros antirracistas e outros atores do Estado e da
sociedade civil”. Uma das ações desenvolvidas têm sido as manifestações públicas,
prática que faz parte da história do Brasil e desde a redemocratização do país tor-
nou-se um direito assegurado em constituição.

“QUEM TEM FÉ, VAI A PÉ”: CAMINHADAS COMO ESTRATÉGIA


DE COMBATE A INTOLERÂNCIA RELIGIOSA
As ruas tradicionalmente se configuram como espaços de denúncia, expressão
social e disputa política. As manifestações em espaços públicos fazem parte do
exercício da democracia e têm sido determinante ferramenta de metamorfose po-
lítica e social utilizada pela população, sobretudo de setores historicamente negli-
genciados, como forma de pressionar o Estado e levar suas demandas a agenda
pública nacional.
Para as comunidades tradicionais de terreiro essa forma de protesto tem sido
muito útil uma vez que, diferente de grupos cristãos, o povo de axé não possui
monopólio de mídia pública como canal em TV aberta e programas de rádio. A
falta de representação parlamentar e em instituições decisivas para a formulação
de políticas públicas também dificulta o atendimento de suas demandas. Além do
poder institucional os evangélicos também realizam marchas em todo Brasil como
forma de mostrar seu poder político e eleitoral.

Nesse contexto, as religiões afro-brasileiras mostram-se relati-


vamente frágeis, exatamente por não possuírem presença e in-
fluência semelhante à apreendida pelos evangélicos no campo
político. Mesmo que alguns líderes religiosos de matrizes africa-
nas possam ao longo do tempo ter estabelecido um diálogo polí-
tico, isto não configura comparativamente a ação exercida pelos
grupos religiosos evangélicos de pentecostais e neopentecostais
que conseguem fidelizar seus votos. [...] O desenvolvimento des-
sa ‘nova arena’ da participação democrática afeta intensamente

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 455


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
a organização das ações religiosas voltadas para a intervenção
social, expandindo os limites do que passa a ser percebido como
objeto da ética e do trabalho. (SANTOS, 2019, p.87-88)

Além de se articular com as poucas representações institucionais que possuem,


sejam elas de religiões de matriz africana ou aliados do movimento negro e de
partidos de esquerda, quando os ataques ganham repercussão na mídia e redes
sociais o povo de axé ocupa os espaços públicos para reivindicar a manutenção
dos seus direitos. Um exemplo nacional de mobilização desse tipo foi o julgamento
pelo STF sobre a constitucionalidade do sacrifício de animais em cultos religiosos,
o que gerou mobilizações em todo país em março de 2019. Caso parecido ocorreu
na Câmara Municipal de Salvador em 2013 em decorrência de um projeto de Lei do
vereador Marcell Moraes que tinha o mesmo teor intolerante e racista5. Lideran-
ças religiosas se articularam rapidamente e ocuparam o plenário em uma sessão
histórica.
A perseguição as religiões de matrizes africanas faz parte da política da família
Moraes. Em 2019 foi criada a Frente Nacional Makota Valdina em decorrência de
um ato desrespeito de racismo religioso da vereadora Marcele Moraes, irmã do
vereador supracitado. A mesma interrompeu uma homenagem pelo falecimento
de uma importante liderança religiosa, Valdina de Oliveira Pinto, fazendo uma es-
drúxula comparação com um animal. Os adeptos e parlamentares presentes pro-
testaram imediatamente e em frente à casa se reuniram e fundaram o grupo. A
organização se apresentou a sociedade através de uma manifestação no mesmo
local, nomeada de Ebó Coletivo. No candomblé fazer ebó significa fazer rituais,
seja uma oferenda ou uma limpeza, como forma de fortalecer a conexão com o
sagrado. Politicamente entende-se o ebó coletivo como oferenda de presença viva
que luta para não deixar que o projeto colonial desarticule, enfraqueça ou aniquile
esse corpo social. Estar em estado de ebó coletivo é estar em mobilização, reivindi-
cando direitos e mostrando para a sociedade que não importa o contexto, sempre
serão criadas estratégias de manter viva a tradição.
Nesta mesma perspectiva de se manter em estado de mobilização, porém dife-
rente desses atos que são realizados em resposta a um determinado acontecimen-
to, as caminhadas dos bairros acontecem anualmente e já fazem parte do calendá-
rio de muitas comunidades tradicionais de terreiros. Dentre os três eventos aqui
apresentados, a Caminhada pelo fim da Violência e do Ódio Religioso e pela Paz
realizada no Engenho Velho da Federação é a mais antiga. Inspirada neste modelo
mas com suas particularidades, a RREMAS – Rede Religiosa de Matriz Africana do
Subúrbio começou a realizar no ano de 2008 a Caminhada dos Terreiros do Subúr-
bio e Adjacências. Três anos depois foi a vez dos terreiros do bairro do Nordeste

5 PL nº 308/2013. Disponível em: http://g1.globo.com/bahia/noticia/2013/05/projeto-tenta-


-proibir-sacrificio-de- animais-em-religioes-e-gera-protesto.html. Acesso em: 13 set. 2020.

456 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
de Amaralina e entorno iniciarem a Caminhada do Povo de Santo do Nordeste de
Amaralina, que já completou sete edições.
A organização das caminhadas começa com meses de antecedência. É a par-
tir do contato com órgãos da prefeitura, governo estadual, instituições parceiras,
mandatos de parlamentares que apoiam a luta contra o racismo religioso, bazares,
seminários de mobilização e coleta de dinheiro (vaquinha) entre os terreiros parti-
cipantes que é levantado os materiais e equipamentos necessários para a realiza-
ção do evento.
A principal pauta que move a caminhada é o combate a intolerância religiosa,
no entanto a cada ano os eventos trazem um tema diferente relacionado não só
aos adeptos de religiões de matrizes africanas mas também a toda comunidade ne-
gra das periferias, como laicidade do estado, direito a espaços públicos sem prega-
ções religiosas, contra a violência policial, em defesa da educação, enfrentamento
a violência contra a mulher, a busca do povo negro pelo poder político através das
eleições municipais, direito a cidade e principalmente a preservação ambiental.
É na região do Subúrbio por exemplo que está localizado o Parque São Bartolo-
meu, uma reserva natural que conta com rios, cachoeira e matas. O local é de gran-
de significado para toda a comunidade e principalmente para os adeptos de religi-
ões de matrizes africanas devido a sua forte ligação com a natureza. Infelizmente
por falta de políticas públicas o lugar se tornou inseguro, devendo ser frequentado
com cuidado e de preferência em grupo. O tema do meio ambiente também é uma
das prioridades dos organizadores da caminhada do Nordesde de Amaralina pois
esta região fica próxima a importantes espaços sagrados como a praia de Amara-
lina, e o Parque Joventino Silva, popularmente conhecido como Parque da Cidade,
local de grande reserva de folhas sagradas.
Segundo Mãe Val de Ayrá, liderança do Terreiro do Cobre e idealizadora da
caminhada no Engenho Velho da Federação, após sucessivos casos de intolerân-
cia religiosa praticados por neopentecostais da Igreja Universal do Reino de Deus,
localizada em frente ao terreiro, ela e Makota Valdina, do terreiro Tanuri Junsara,
iniciaram uma mobilização junto aos terreiros do bairro para realizar um protesto.
A caminhada que teve início em 2004 foi ganhando mais adesão a cada ano e não
só atraiu lideranças e adeptos de outros bairros como influenciou os mesmos a
realizarem caminhadas em suas regiões. Realizada sempre no feriado do dia 15 de
novembro, a caminhada que já completou 15 anos integra as atividades do mês da
consciência negra.
A região do Engenho Velho da Federação é de grande significado para a história
da formação do Candomblé na Bahia pois foi inserida na categoria de Quilombo
Urbano a partir do decreto nº 4.887, de 20 de novembro de 2003 devido a sua
localidade abrigar elementos históricos de resistência cultural de matriz africana a
exemplo da tradicional comunidade de terreiro, de nação Jeje, o Zoogodô Bogum
Malê Rundó. Representando a força das religiões afro-brasileiras nesse território,
está localizada no final de linha o Busto de Mãe Runhó, um monumento que ho-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 457


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
menageia a Yalorixá que liderou o terreiro do Bogum. É neste ponto histórico que
ocorre a concentração para a caminhada.
O momento da concentração, em todas as caminhadas, é de encontros, reen-
contros, registros fotográficos e jornalísticos, abraços e saudações. Neste momen-
to também ocorre uma certa tensão entre os organizadores que fazem os últimos
ajustes e ficam um pouco ansiosos para que tudo ocorra dentro do que foi planeja-
do. Com trajes da religião e de branco, os participantes soltam fogos na saída anun-
ciando o início do evento e ao som de cânticos para Exu, guardião das ruas que abre
os caminhos. Diferente das outras, a caminhada do Engenho Velho da Federação
não oferece o padê na saída, a sua marca é a comissão de frente formada por crian-
ças que segurando a faixa com tema do ano e soltando pombos brancos simbolizam
o pedido de paz e o futuro das religiões de matrizes africanas.
Durante todo o percurso é jogado bastante milho branco e pipoca. No trio elé-
trico as músicas ao som de atabaques só são interrompidas para os discursos que
em geral são das comissões organizadoras, lideranças políticas e religiosas ou par-
ticipantes de organizações sociais, que a partir de suas intervenções informam a
população sobre seus direitos, realizam denúncias, orientam o cortejo quanto ao
percurso, agradecem aos parceiros, registram presenças, etc.
No candomblé os cânticos (pontos, oríkì) e a dança são uma das mais importan-
tes formas de conexão com o sagrado e estão presentes em todos os rituais. Nas ca-
minhadas, que como vimos representam um ebó coletivo, não é diferente. Durante
todo o percurso os participantes de diferentes gerações dançam para as entidades
que estão sendo homenageadas nos trios. Foi possível observar que o momento em
que se canta para os caboclos é o mais empolgante provavelmente devido ao ritmo
ser mais animado, principalmente o famoso samba de caboclo.
Os fogos anunciam quando o trio chega em frente a um terreiro, é um dos mo-
mentos mais bonitos, onde se faz as saudações e canta para o orixá, inkice, vodun,
caboclo ou encantado que rege a casa. Da porta das casas as pessoas, algumas visi-
velmente emocionadas, respondem jogando milho branco, cantando e dançando.
Emoção também é perceptível no encerramento quando se canta para Oxalá e no
caso do Nordeste de Amaralina quando o grupo entrega o presente a Iemanjá nas
águas do mar. Muita gente abandona o cortejo durante o percurso, mas no caso
do Engenho Velho da Federação o encerramento está sempre cheio pois é o mo-
mento da confraternização e da distribuição do amalá (alimento do orixá Xangô)
no Terreiro do Cobre.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os conflitos internos do campo religioso afro-brasileiro colaboraram para refor-
çar a difundida ideia de que há entre essas religiões certa inaptidão a organização
política (SILVA, 2017). A fama de uma “religião desunida” demonstra a necessidade
de mais investigações sobre as atuais formas de articulação política entre os reli-

458 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
giosos de matriz africana e alerta para o cuidado de não desqualificar o processo
histórico de luta comunitária do povo de axé, uma vez que apesar das tensões
internas foi possível conquistar avanços coletivos.
Nesse sentido, as caminhadas cumprem seus papeis a medida em que denun-
ciam os casos de intolerância religiosa, ao demonstrar para a comunidade, poder
público e para a mídia que também tem força e organização política, ao fortalecer
os vínculos entre os terreiros das regiões, ao mostrar que resistem colocando na
rua o que um dia já foi proibido e duramente perseguido pelo Estado.
Em algumas cidades existem caminhadas ecumênicas o que é muito importante
também, mas a particularidade das caminhadas de bairro em Salvador é que são
abertas a todos de qualquer segmento religioso que queira apoiar a luta pelo res-
peito religioso e pela paz mas sem perder a característica de ser uma caminhada
de povo de axé. No Engenho Velho da Federação por exemplo o Padre Lázaro é um
grande parceiro que apoia e participa do evento.
O trabalho aqui exposto converge com autores que compreendem que a defe-
sa da liberdade religiosa pressupõe o enfrentamento do motor desse sistema eu-
rocêntrico: o racismo estrutural e institucionalizado. O que torna este tema uma
questão central para compreender o tratamento dado às religiões afro-brasileiras,
uma vez que apesar dos poucos avanços no âmbito das legislações os crescentes
ataques que tem sofrido, demonstram a omissão do Estado em garantir condições
para que essa liberdade seja de fato exercida. Não existe liberdade religiosa se o
Estado não garante os meios necessários para que as pessoas de diferentes crenças
exerçam suas práticas e sejam respeitadas institucionalmente e socialmente.

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AUTORIA
Aline de Jesus da Cruz
Universidade Federal da Bahia – Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em
Estudos Étnicos e Africanos
E-mail: alinecruz.ss@outlook.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8574417734981721

460 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
INTOLERÂNCIA RELIGIOSA OU RACISMO
RELIGIOSO? UM PERCURSO PELA LINGUAGEM
DOS DIREITOS

Lidyane Maria Ferreira de Souza

Não se trata, portanto, de negar a importância da noção


de intolerância religiosa, mas em perceber que ela não
recobre todas as nuances do fenômeno de ataque às
tradições de matrizes africanas em nosso país, além
de deixar sem tematização o tema do racismo, que é
estrutural em nossa sociedade e,
portanto, também das práticas intolerantes.1

INTRODUÇÃO
Dada a variedade dos tipos de violência contra pessoas e templos praticantes
de religiões de matriz africana, é desafiador encontrar um termo que as englobe
em uma única descrição. Entre seus descritores encontra-se, frequentemente, a
expressão “intolerância religiosa” e, menos frequentemente, a expressão “racismo
religioso”.
Aquelas/es cujas práticas culturais de matrizes africanas foram reconhecidas
como religiosas são vítimas de diferentes tipos de violências, para além do simbó-
lico: tratamento estatal desigual no (não) atendimento aos direitos de organização
religiosa; tratamento estatal discriminatório de indivíduos por motivos religiosos;
violências físicas ou verbais praticadas por particulares contra praticantes de religi-
ões de matrizes africanas, motivadas por seu pertencimento religioso.
Diversas pesquisas têm aprofundado o estudo e a classificação das violências
praticadas especialmente por indivíduos ou grupos e organizações religiosas evan-
gélicas, sobretudo as neopentecostais, contra religiões de matrizes africanas. Uma
pesquisa frequentemente citada é a de Vagner Gonçalves Silva que sistematizou
os diversos relatos de violência que encontrou na mídia e na literatura acadêmica:

1) ataques feitos no âmbito dos cultos das igrejas neopentecos-


tais e em seus meios de divulgação e proselitismo; 2) agressões
físicas in loco contra terreiros e seus membros; 3) ataques às
cerimônias religiosas afro-brasileiras realizadas em locais públi-
cos ou aos símbolos dessas religiões existentes em tais espaços;
4) ataques a outros símbolos da herança africana no Brasil que
tenham alguma relação com as religiões afro-brasileiras; 5) ata-

1 NASCIMENTO, Wanderson Flor do. O fenômeno do racismo religioso: desafios para os povos
tradicionais de matrizes africanas. Revista Eixo, v. 6, n. 2, p. 51-56, 2017. p. 55.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 461


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ques decorrentes das alianças entre igrejas e políticos evangé-
licos e, finalmente; 6) as reações públicas (políticas e judiciais)
dos adeptos das religiões afro-brasileiras.2

Estas violências são descritas de diferentes formas, sobressaindo-se a mobili-


zação das noções de “tolerância religiosa” e “racismo religioso” que, possivelmen-
te, relacionam-se aos espaços de atuação dos sujeitos mobilizantes.3 A partir da
provocação de Wanderson Flor do Nascimento (epígrafe), o texto a seguir coteja
alguns aspectos destas noções tendo como fio condutor uma análise crítica da lin-
guagem dos direitos e da afirmação do direito à liberdade religiosa.

(IN)TOLERÂNCIA RELIGIOSA – DIMENSÃO EDUCATIVA


O termo “tolerância religiosa” se difundiu a partir da formação das nações eu-
ropeias e do acontecimento das guerras de religião, com o sentido de admissão
de práticas religiosas diferentes das da maioria ou das do governante, ainda que
essa admissão por vezes fosse relativa e condicional. Sua contraparte, o direito à
liberdade religiosa ou de consciência, descreve uma esfera de liberdade protegida
da intervenção do Poder soberano. Quando se tratava de tolerância, o sujeito era o
governante: cabia ao governante praticar a tolerância de modo a melhor governar.
Quando se tratava de liberdade, o sujeito era o súdito.
Embora tenham funções diferentes, tolerância religiosa e liberdade subjetiva
integram um mesmo conjunto temático presente no nascimento da filosofia po-
lítica moderna, geralmente localizado na Europa. Especificamente quanto à tole-
rância, ressalta-se especialmente um escrito de John Locke intitulado Carta sobre
a Tolerância. Embora as ideias ali discutidas não fossem originais, o fato de este
pequeno texto ter sido traduzido ao inglês e publicado em Londres um ano após a
Revolução Gloriosa, oportunizou-lhe este reconhecimento.4 Na Carta, embora Lo-

2 SILVA, Vagner Gonçalves da. Prefácio ou Notícias de uma guerra nada particular: Os ataques
neopentecostais às religiões afro-brasileiras e aos símbolos da herança africana no Brasil. In: SILVA,
Vagner Gonçalves da. (org.) Intolerância religiosa: impactos do neopentecostalismo no campo religioso
afro-brasileiro. São Paulo: Edusp, 2007. p. 9-28.

3 MIRANDA, Ana Paula Mendes de; MELLO CORRÊA, Roberta de; ALMEIDA, Rosiane Rodrigues
de. Intolerância Religiosa: A Construção de um Problema Público. Revista Intolerância Religiosa 2(1), p.
1-19, jul-dez, 2017. p. 10.
4 MARTÍNEZ, Ignacio Sotelo. Educacion y Democracia. In: BERNÁRDEZ, Pablo Manzano. (org.)
Volver a pensar la educación (Congreso Internacional de Didáctica). Vol. 1.Morata, Paideia: Madrid, La
Coruña, 1995. P. 34-59. p. 42. A Revolução Gloriosa (1688) pôs fim a um período de instabilidade polí-
tica na Inglaterra, em cujo trono sucederam- se católicos, anglicanos e protestantes, com significativas
consequências também para a liberdade religiosa, e as vidas, de cada um destes grupos. Era um perío-
do conturbado. Em 1685, na França, o rei Luís IVX havia revogado o Edito de Nantes, assinado em 1589
por Henrique IV justamente em uma tentativa de contenção dos conflitos religiosos. O Edito concedia
algumas liberdades a protestantes frente a uma maioria francesa católica. Sua revogação iniciou perí-
odo de perseguições e exílio em massa. A divulgação da primeira Carta sobre a Tolerância, portanto,
se dá em momento oportuno e provoca um debate inflamado, levando Locke, em exílio na Holanda

462 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
cke parta de uma crítica a crenças falsas no Cristianismo, ele “advoga a tolerância
nos sentidos religioso e político de liberdade religiosa e liberdade civil” (Tradução
nossa).5 Observe-se, portanto, como em Locke a expressão “tolerância religiosa” é
trabalhada como limite que a subjetividade dos súditos impõe à intervenção pelo
poder político.
Na genealogia que elabora da Filosofia Política Moderna, Enrique Dussel aponta
como o colonialismo constitui a modernidade ao passo em que marca a abertura da
Europa para o Atlântico e o subsequente fenômeno cultural relacionado ao desen-
volvimento acelerado nos séculos anteriores à Revolução Industrial.6 Deveríamos,
então, buscar os primeiros debates influentes sobre tolerância na filosofia hispâni-
ca da Conquista, quando se discutia se a guerra feita por espanhóis a indígenas era
injusta e, a fundo, a questão do consenso como origem do exercício legítimo do
poder. Está, portanto, ligado a uma série de outros temas caros à filosofia política
moderna, como o dos direitos subjetivos, sendo a discussão muito direcionada à
solução da pergunta sobre o que pode e o que deve o Soberano fazer.
Conforme o discurso dos direitos e a defesa das liberdades individuais foi lo-
grando inscrição progressiva nas Declarações de Direitos, a expressão tolerância
foi sendo abandonada. Assim, a Declaração dos Direitos da Virgínia (1776) previu
o “livre exercício da religião” e a francesa Declaração dos Direitos Civis do Homem
e do Cidadão (1789) estabeleceu que ninguém deveria ser perturbado por suas
opiniões religiosas, se estas fossem manifestadas de acordo com a lei. Em seguida,
as Constituições estabeleceram a liberdade de consciência e/ou religiosa como di-
reito individual.
No âmbito das Nações Unidas, também este direito foi reconhecido. Em 1948,
a Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada pela Assembleia Geral
com a previsão do direito à liberdade de pensamento, consciência e religião, in-
cluindo os direitos de manifestação e de prática individual ou coletiva, em parti-
cular ou pública. Mais tarde, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos
reforçou a Declaração, indicando que somente a lei poderia prever motivos justi-
ficáveis para limitações à liberdade religiosa, para fins de proteção da segurança,
ordem, saúde ou moral públicas e de direitos alheios. Há ainda uma Declaração
que menciona explicitamente a Intolerância, mas cujo conteúdo é sobre direitos:

Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas de Intolerân-


cia e de Discriminação com base na Religião ou Crença (1981),
Art. II, §2º. Aos efeitos da presente declaração, entende-se por
" intolerância e discriminação baseadas na religião ou nas con-

por conta de seu envolvimento com a causa da tolerância, a escrever mais três Cartas em defesa da
primeira.
5 “The Letter advocates toleration in the twofold religious and political sense of religious lierty
ans civil liberty, irrespective of the particular god one worships.” (TULLY, James. Introduction. In: LOCKE,
John. A letter concerning toleration. Indianapolis: Hackett, 1983. p.1)
6 DUSSEL, Enrique. Origen de la Filosofía Política Moderna: Las Casas, Vitoria Y Suárez (1514-
1617). Caribbean Studies, Porto Rico, v. 33, n. 2, pp. 35-80, Jul./Dez., 2005.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 463


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
vicções" toda a distinção, exclusão, restrição ou preferência fun-
dada na religião ou nas convicções e cujo fim ou efeito seja a
abolição ou o fim do reconhecimento, o gozo e o exercício em
igualdade dos direitos humanos e das liberdades fundamentais.

A categoria “tolerância” também tem sido promovida através da educação em


direitos humanos. Em 1993, a Declaração e Programa de Ação de Viena, fruto da
Conferência Mundial sobre Direitos Humanos, reforçou a necessidade de promo-
ção da tolerância na educação em direitos humanos.7 E em 1995, naquele que tal-
vez seja o marco da agenda internacional da tolerância, a UNESCO adotou uma
Declaração de Princípios sobre a Tolerância que tem por objetivo promover a tole-
rância definida, entre outros, como “harmonia na diferença. Não é só um dever de
ordem ética; é igualmente uma necessidade política e jurídica.” (1.1.) “A tolerância
é, antes de tudo, uma atitude ativa fundada no reconhecimento dos direitos uni-
versais da pessoa humana e das liberdades fundamentais do outro.” (1.2). Tam-
bém aqui, como se percebe, o aspecto jurídico é ressaltado. Todavia, já se nota a
referência à tolerância como apelo às consciências individuais, para que respeitem
os direitos alheios.
Este aspecto da tolerância enquanto apelo a atitudes individuais respeitosas da
diferença parece ter superado sua valência jurídica, restrita agora à linguagem dos
direitos. É como se se desenhasse uma parábola em que a tolerância surge como
balizadora do governo do território, torna-se veículo teórico para a afirmação de
direitos subjetivos inicialmente previstos como zonas protegidas das ações dos go-
vernantes e posteriormente estendidos às relações entre particulares - algo como
“meu direito vai até onde começa o seu” – para então passar a significar atitude
individual de respeito, embora também seja promovida internacionalmente como
recomendação para os governos das populações.
A expressão “Intolerância religiosa” tem sido mais mobilizada para descrever
atitudes privadas ou coletivas que o modo de funcionamento de estruturas e insti-
tuições. Talvez por isso seja termo bastante empregado no diálogo interreligioso e
no trabalho de educação que muitas ministras de culto realizam, por entenderem
que as violências contra suas religiões e também para consigo resultam de precon-
ceito e discriminação promovidos institucional e culturalmente e, contemporane-
amente, também através das práticas de demonização. É um trabalho incessante
e que muitas vezes tem por função a própria permanência dos cultos religiosos na
localidade em que se encontram, quando os ataques são da própria vizinhança.

7 “33. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos reafirma que os Estados estão vincula-
dos, conforme previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem, no Pacto Internacional sobre
os Direitos econômicos, Sociais e Culturais e noutros instrumentos internacionais de Direitos Humanos,
a garantir que a educação se destine a reforçar o respeito pelos Direitos Humanos e liberdades funda-
mentais. A Conferência Mundial sobre Direitos Humanos realça a importância de incluir a questão dos
Direitos Humanos nos programas de educação e apela aos Estados para o fazerem. A educação deverá
promover a compreensão, a tolerância, a paz e as relações amistosas entre as nações e todos os grupos
raciais ou religiosos, e encorajar o desenvolvimento de atividades das Nações Unidas na prossecução
destes objetivos.”

464 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O atual deslocamento semântico do vocábulo “tolerância” parece guardar rela-
ção com processos sociais, econômicos, tecnológicos e culturais contemporâneos
que sequestram as atenções do campo institucional-político para o personalístico.
São transformações que fazem as atenções convergirem para o pessoal e o par-
ticular e, sem o aporte do aspecto institucional- jurídico, resvalam facilmente na
culpabilização individual, fazendo com que o adjetivo de sinal oposto – intolerante
–, com seu tom acusatório mas não responsabilizante, substitua o substantivo to-
lerância.
A identificação do inimigo, contudo, tem permitido que a categoria seja “ressig-
nificada como um elemento de mobilização e aglutinação de pessoas e grupos em
torno de reivindicações políticas”. Conforme o Babalawo Ivanir dos Santos, inter-
locutor da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa, “Intolerância une. Quan-
do fala discriminação atinge apenas determinados segmentos... Intolerância une
negros, religiosos, homossexuais. Hoje, ninguém quer ser taxado de intolerante.”8
A tolerância, então, tem se caracterizado como atitude necessária para a con-
vivência com “o outro”. Este ‘outro’ é definido a partir da sua desconformidade
com o ‘normal’, é a pessoa que não tem o privilégio de não ser identificada a partir
de marcadores sociais – raça, gênero, origem, idade, capacidade etc . Este deslo-
camento, ao mesmo tempo em que marca a oposição – “o diferente” -, acaba por
reduzir a referência ao grupo de pertencimento - é apenas um “outro” – e, com
isso, pulveriza ainda mais o aspecto de violência estrutural, presente em muitos
ataques qualificados como de intolerância religiosa, reforçando a ideia de que os
ataques são de indivíduos a indivíduos e decorrem de posturas individuais pouco
reflexivas.
Um dos riscos deste entendimento individualizado sobre a tolerância é de di-
ficultar a identificação de discursos de ódio que são apresentados como opinião
e exercício da liberdade de expressão. Configuram-se como discurso de ódio as
formas de expressão (imagem, escrita, oral) que incitam o dano a uma ou várias
pessoas pelo fato de pertencerem a um determinado grupo social.9 O combate ao
discurso de ódio é necessário para conter não apenas o sujeito que o enuncia, mas
também para conter a circulação pública da mensagem de ódio. É um discurso de
discriminação que tem por efeito instigar as violações de direitos e limitar as liber-
dades dos indivíduos pertencentes às minorias.
No âmbito religioso, uma tentativa de proteção dos discursos de ódio se dá
também através de sua apresentação como liberdade de doutrina religiosa. É as-

8 MIRANDA, Ana Paula Mendes de; MELLO CORRÊA, Roberta de; ALMEIDA, Rosiane Rodrigues
de. Intolerância Religiosa: A Construção de um Problema Público. Revista Intolerância Religiosa 2(1), p.
1-19, jul-dez, 2017. p. 10.
9 GAGLIARDONE, Iginio et al. Countering Online Hate Speech. Unesco Series on Internet Free-
dom. 2015. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0023/002332/233231e.pdf Acesso em:
07 de novembro de 2020. Esta publicação se insere no contexto da Resolução n. 52 da Unesco, apro-
vada na 37ª Conferência Geral (Novembro de 2013), referente à necessidade de produção de estudos
sobre temas relacionados à internet, tais como informação, conhecimento, liberdade de expressão,
privacidade e dimensões éticas da sociedade da informação.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 465


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
sim que a demonização das religiões de matrizes africanas, entre outras práticas,
são apresentadas como direito de liberdade religiosa. A linguagem dos direitos,
portanto, também se tornou campo de disputas e de ressignificações e talvez não
seja suficiente para tratar a dimensão estrutural dessas violências.

LIBERDADE RELIGIOSA – DIMENSÃO JURÍDICO-


INSTITUCIONAL
A expressão “tolerância religiosa” parece ter progressivamente perdido sua va-
lência institucional e jurídica, ao passo em que esta foi se fixando na linguagem
dos direitos constitucionais, como liberdade de consciência, liberdade de culto,
liberdade de organização religiosa.
Embora nenhuma das Constituições brasileiras tenha declarado textualmente
o “direito à liberdade religiosa”, todas afirmaram, ao menos, a liberdade de exer-
cício público da religião e de associação religiosa. A Constituição do Império do
Brasil (1824), por um lado reafirmou a religião oficial do Império, permitindo o
culto doméstico, e sem forma exterior de templo, às “outras religiões” (Art. 5). Por
outro, espelhando os termos do Tratado de Comércio e Navegação entre o Reino
de Portugal e a Coroa Inglesa, reconheceu o direito a não ser “perseguido por mo-
tivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não ofenda a Moral Pública”
(Art. 179, V).
A Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (1891) confirmou a
inviolabilidade dos direitos concernentes às liberdades, podendo indivíduos e con-
fissões religiosas exercerem pública e livremente seus cultos; instituiu o princípio
da laicidade do Estado e com ele o casamento civil, o ensino leigo, a secularização
dos cemitérios - “ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos
ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as
leis” (Art. 72, §5ª)- e proibiu subvenções a qualquer culto religioso.
Contudo, durante a vigência da “concordata moral”, um acordo não escrito en-
tre Estado e Igreja Católica que durou até os primeiros anos do regime militar,
foram (re)inseridas na Constituição a possibilidade de cooperação em prol do in-
teresse coletivo, a imunidade tributária, o ensino religioso confessional e de fre-
quência facultativa nas escolas públicas, a validade civil do casamento religioso, a
indissolubilidade do casamento e a assistência religiosa em instituições de interna-
ção coletiva.
Salvo a proibição do divórcio, a ordem constitucional atual mantém esta mesma
configuração, com algumas pequenas modificações e uma importante novidade
referente ao reconhecimento expresso, como patrimônio cultural brasileiro, dos
bens “portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes
grupos formadores da sociedade brasileira” (Art. 216 caput).10

10 SOUZA, Lidyane Maria Ferreira de. Duzentos anos de liberdade religiosa no Brasil: Quase.
Derecho y religión, n. 7, p. 189-211, 2012.

466 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Na legislação infraconstitucional são delineadas algumas formas de proteção a
estes direitos. O Código penal prevê pena de detenção ou multa para quem “im-
pedir ou perturbar cerimônia ou prática de culto religioso” ou “vilipendiar publica-
mente ato ou objeto de culto religioso”, com o objetivo de proteger o “sentimento
religioso”.11
A linguagem dos direitos tem por função retirar o ataque ou a violência do âm-
bito da liberalidade de quem a prática. Serve como fundamento legítimo (porque
legal e constitucionalmente institucionalizado, pressupõe-se que há consenso
quanto a tais limites) à impossibilidade de justificação da violência por motivação
religiosa. Recoloca a violência no campo fático, físico e/ou simbólico, independen-
temente das subjetividades e atitudes individuais ou coletivas. É necessária porque
protege a dignidade humana - não apenas da pessoa que sofreu o ataque, mas de
todas as pessoas -, sempre que estes limites são reafirmados legal, policial ou judi-
cialmente. E recorda a possibilidade de responsabilização individual e coletiva, me-
diante sanções, remetendo o conflito a um espaço onde (supostamente) mesmo
os sujeitos menos privilegiados teriam oportunidade de defesa e de resposta favo-
rável, por parte de um representeante (supostamente) neutro do Poder Judiciário.
A linguagem dos direitos, portanto, tem a vantagem de recuperar a dimensão
institucional-jurídica das violências, acenando para um tratamento oficial do con-
flito que pode vir a atribuir sanções a partir do reconhecimento das responsabilida-
des. Ainda assim, em um país caracterizado por desigualdades tão estruturantes,
seria a linguagem dos direitos suficiente?
Os obstáculos no acesso à Justiça são consideráveis. Mesmo as pessoas que
conhecem seus direitos não necessariamente buscam o sistema judiciário para a
solução de seus conflitos, por receio de represálias por parte de poderosos, por
experiências anteriores desagradáveis que contribuem para sua falta de confian-
ça.12 O acesso à Justiça tem um custo financeiro, seja o custo do processo, caso
não se obtenha o benefício da justiça gratuita, seja o custo do tempo que precisa
ser retirado das diversas atividades cotidianas, inclusive das atividades rentáveis,
para as idas e vindas às instituições relacionadas ao acesso à Justiça (delegacias
policiais, escritórios de advogacia, Defensoria Pública, Ministério Público, Poder
Judiciário), sendo este tempo mais duradouro quanto maior for a morosidade da
Justiça e quanto maior for a distância entre a residência da pessoa agredida e tais
instituições.13
Este quadro sintético dos obstáculos à Justiça pode ser afinado se consideradas
as experiências de indivíduos e grupos agredidos por seu pertencimento a religiões
de matrizes africanas no registro jurídico da violação de seus direitos.

11 Código Penal, Decreto-lei n. 2848, de 1941, Art. 208.


12 SANTOS, Boaventura de Souza. A sociologia dos tribunais e a democratização da justiça. In:
SANTOS, Boaventura S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez,
v. 3, 1997.
13 EWICK, Patricia; SILBEY, Susan S. The common place of law: Stories from everyday life. Chica-
go, Londres: University of Chicago Press, 1998.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 467


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
RACISMO RELIGIOSO – DIMENSÃO ESTRUTURAL
Historicamente, o Estado brasileiro não foi aliado das religiões de matrizes
africanas. Curas, danças e batuques eram frequentemente enquadradas nos ti-
pos penais de curandeirismo e charlatanismo. O transe dos negros, chamado de
possessão, era visto como uma patologia racial e dos ministros de culto se exigia
registro em Secretarias de Segurança Pública, mediante a apresentação de um lau-
do psiquiátrico de sanidade mental, para o funcionamento dos “cultos africanos”.
A descriminalização da possessão, e não necessariamente das religiões de matriz
africana, só se daria com o debate entre ciências médicas e antropológicas, duran-
te a primeira metade do século XX.14
As formas dos ataques estatais às religiões de matrizes africanas e seus prati-
cantes se sofisticaram. São ataques estatais sempre que o Estado não diligencia
para reprimir ações discriminatórias praticadas por seus servidores, na condição
de servidores. Então, há ataque estatal nas interrupções e nos impedimentos a
cultos religiosos, justificados por suposta poluição sonora; na não predisposição de
ambiente neutro para as diversas práticas religiosas e no impedimento ao uso de
certos materiais na assistência religiosa em prisões15; nas escolas públicas, quando
crianças e adolescentes, mas também docentes, são constrangidos em função de
seu pertencimento religioso.
Em maio de 2019, lideranças de religiões de matriz africana apresentaram um
documento em Audiência Pública realizada pelo Ministério Público Federal. A “Car-
ta ao Povo de Nova Iguaçu” ilustra ainda algumas outras formas de ataque: a im-
posição de requisitos constitucionalmente não previstos à concessão da imunidade
tributária dos templos de matrizes africanas; ações de assistência social e de Con-
selhos Tutelares pautadas nas crenças religiosas de servidoras/es.16
Um olhar sobre o acesso à justiça completa o quadro institucional. Para além
dos obstáculos já mencionados, não há, “na maioria das vezes, respostas positivas
às vítimas quando apreciadas no Judiciário”17. Em pesquisa realizada entre 2008
e 2011, na qual foram mapeados 847 terreiros no Rio de Janeiro, 430 relataram
ter sofrido algum tipo de discriminação religiosa, mas apenas 58 dos casos foram

14 MONTERO, P. Religião, pluralismo e esfera pública no Brasil. Novos Estudos – CEBRAP, São
Paulo, v. 74, 2006. p. 52-56. GIUMBELLI, E. Heresia , doença , crime ou religião : o Espiritismo no discur-
so de médicos e cientistas sociais. Revista de Antropologia, São Paulo, v. 40, n. 2, p. 31-82,1997.
15 “(…) o DESIPE alega que meu atabaque e meu adjá podem se tornar instrumentos de morte,
armas lá dentro. Agora, o fio da guitarra e o pandeiro podem ser, igualmente, instrumentos utilizados
para fazer armas.” (PINTO, Flávia. Casa do Perdão: resistências e estímulos aos umbandistas. Comuni-
cações do ISER – Religiões e Prisões, 61, pp. 53-56, 2005)
16 A Carta foi reproduzida na Recomendação n. 9/2019, exarada no âmbito do Inquérito civil nº
1.30.017.000099/2019-94.
17 SILVA, Luiz Víctor do Espírito Santo. "Não chute, é macumba!": resposta judicial aos conflitos
entre (neo) pentecostais e praticantes de religiões de matriz africana. 64 fl. Trabalho de Conclusão de
Curso, Graduação em Direito. Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2015. p. 30.

468 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
encaminhados a instituições relacionadas ao acesso à Justiça.18 Em outra pesquisa,
observou-se como os casos de fato relatados em Delegacias como intolerância re-
ligiosa são qualificados como crimes de ameaça, injúria e ultraje a culto, em vez de
serem enquadrados na Lei Caó, como “prática de discriminação ou preconceito de
raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional” (Lei 7716/1989, Art. 2º).
A Lei Caó recebe o nome do Deputado que iniciou sua propositura. Trata-se
de Carlos Alberto Caó que, integrante da Assembleia Nacional Constituinte, pro-
pôs emenda para a criminalização do racismo - “A prática do racismo constitui
crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei”
(Art. 5º, XLII) - e não de práticas discriminatórias ou preconceito, como previam os
projetos iniciais.19 Pouco tempo após, a Lei Caó (Lei nº 7.716/1989) regulamentou
este dispositivo. Em 1997, a partir de proposta legislativa do então deputado Paulo
Paim, à Lei Caó foram acrescentadas as referências a etnia, religião ou procedência
nacional.
Carlos Alberto Caó, contudo, não atuou sozinho. Como anota Nilma Lino Go-
mes, as reivindicações coletivamente construídas e avançadas pelos Movimentos
Negros se constituem como “importante ator político que constrói, sistematiza,
articula saberes emancipatórios produzidos pela população negra ao longo da his-
tória social, política, cultural e educacional brasileira”.20 Dentre os consensos cons-
truídos está justamente a necessidade de criminalização do racismo. É nesse sen-
tido de construção e sistematização dos saberes emancipatórios que Gomes trata
do Movimento Negro Educador. Estes movimentos estiveram presentes em todas
as fases do processo Constituinte, com a mobilização para eleição de Constituintes
negres, a participação de intelectuais e representantes em audiências públicas, o
envio de documentos como sugestões, propostas de emenda ou ainda moção de
repúdio, além da mobilização política e midiática.
A Lei Caó é um documento normativo importante que, no entanto, tem sido
pouco aplicada pelo Poder Judiciário. Em pesquisa recente em sistemas de busca
de jurisprudência presentes nos sites oficiais dos tribunais de justiça estaduais,
Cléber Lázaro Julião Costa, no total de quatro biênios, catalogou 149 casos sobre
racismo, preconceito ou injúria (racial). Destes, 44% resultaram em condenações
e 46% em não condenações. Costa identificou uma tendência do Judiciário a absol-
ver réus acusados de injúria racial e de racismo contra pessoas negras. Quanto às
diferenças entre os crimes, notou que os crimes de violência racial foram julgados

18 SANTOS, Babalawô Ivanir dos et al. Intolerância religiosa no Brasil: relatório e balanço. Rio de
Janeiro: Kliné, 2016. p.31- 31.
19 SANTOS, Natália Neris da Silva. A voz e a palavra do movimento negro na Assembleia Nacio-
nal Constituinte (1987/1988): um estudo das demandas por direitos. 205 f. Dissertação, Mestrado em
Direito. Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. São Paulo, 2015. p. 155.
20 GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por eman-
cipação. Petrópolis: Editora Vozes Limitada, 2019. p. 24-27.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 469


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
como racismo quando as vítimas eram pessoas judias, mas, na maioria dos casos
em que as vítimas eram pessoas negras, foram julgados como injúria.21
O aparato jurídico-institucional, como se percebe, nem sempre está disponível
à proteção dos direitos das religiões de matrizes africanas. O tratamento desigual,
as barreiras não ditas, os obstáculos apresentados como requisitos supostamente
neutros para o exercício de direitos, podem ser melhor compreendidos enquanto
manifestações de racismo.
À parte sua formulação jurídica, o racismo descreve um sistema de opressão
que desumaniza e violenta grupos de pessoas por conta de sua raça, cor ou etnia.
É um sistema operante e observável em diferentes dimensões (ideologia, política,
e economia, segundo Patricia Hill Collins22, e também no Direito, segundo Silvio
Almeida23) e sobre ele há diferentes concepções. Em um esforço de sistematização,
Almeida identificou as concepções individualista, institucional e estrutural. A pri-
meira compreende o racismo enquanto fenômeno ético ou psicológico atribuído
a indivíduos ou grupos isolados, nada além de comportamentos preconceituosos
a serem tratados com educação e conscientização. A concepção institucional do
racismo atenta para o fato de que este organiza o funcionamento das instituições,
não sendo, portanto, algo decorrente apenas de comportamentos individuais. Já a
concepção estrutural chama a atenção ao modo como o racismo estrutura a pró-
pria sociedade. Assim, ainda que a composição das instituições seja alterada (com
a inserção de pessoas negras, por exemplo), isso não implicaria eliminação da lógi-
ca racista em seu funcionamento.
O racismo em sua concepção estrutural, então, permite estabelecer a cone-
xão entre violências de diferentes tipos e perpetradas em diferentes locais contra
praticantes de religiões de matrizes africanas, bem como relacionar práticas es-
pecíficas de violência ao contexto histórico- cultural de opressão. É elemento que
possibilita a compreensão do que se passa quando, por exemplo, um juiz nega o
caráter religioso às práticas religiosas de matrizes africanas. Mesmo o uso da lin-
guagem dos direitos no âmbito institucional esbarra na lógica de desumanização,
dada sua amplitude.
Nesse sentido, tratar de racismo religioso pode ser mais interessante para
apontar também o caráter epistemicida presente nas violências praticadas contra
religiões de matrizes africanas. Como observa Sidnei Nogueira,

Trata-se de epistemicídio de práticas e saberes de resistência


que compõem a memória africana da diáspora. Os espaços do

21 COSTA, Cléber Lázaro Julião. Crimes de racismo analisados nos tribunais brasileiros: o que as
características das partes e os interesses corporativos da magistratura podem dizer sobre o resultado
desses processos. Revista de estudos empíricos em Direito, 6(3), p. 7-33, 2019.
22 COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e a política
do empoderamento. São Paulo: Boitempo Editorial, 2019.
23 ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural. Sueli Carneiro, Pólen: São Paulo, 2019.

470 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
sagrado negro são locus enunciativos que operam na recompo-
sição dos seres alterados pela violência colonial.
24

Em que pese a necessidade de uma maior especificação das aplicações da cate-


goria,25 caberia, ainda, refletir sobre se o uso frequente do termo racismo poderia
diminuir sua força semântica. Porém, há que se recordar que a enumeração das
modalidades de racismo - racismo ambiental, racismo escolar e racismo religioso,
por exemplo - cumpre importante função educadora, apontando espaços e con-
textos em que se manifesta o racismo estrutural, visibilizando as práticas racistas
neles ocorridas e provocando o compartilhamento de formas de resistência.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tratamento estatal desfavorável e as violências e violações de direitos perpe-
tradas contra indivíduos e grupos praticantes de religiões de matrizes africanas só
são compreendidos em sua inter-relação se observados como manifestações de
racismo.
Mesmo o discurso intolerante só é inteligível a partir de uma realidade social
e de um sistema cultural vigente que desumanizam grupos de pessoas por conta
de seu pertencimento religioso – que, no caso das religiões de matrizes africanas,
assim como as indígenas, é também racial/étnico - e se perpetua em nossa socie-
dade, apesar das transformações institucionais dos últimos anos. “Macumbeiro”
não seria uma ofensa se o objetivo não fosse afirmar a inferioridade de todo um
sistema de crenças ancestral cuidadosamente guardado e transmitido, reafirman-
do a inferioridade da população negra.
A expressão “intolerância religiosa” pode facilitar alianças no diálogo interreli-
gioso e contribuir para a educação para o respeito “à diferença”. Entretanto, sua
origem histórica, seus modos de institucionalização e seus usos pouco podem con-
tribuir para o tratamento de seu aspecto estrutural.
Ao diluir as violências em ações de intolerância contra o “outro diferente”, a
carga da categoria “intolerância” acaba por reafirmar a posição privilegiada do eu
“normal”; pressupõe o indivíduo agressor como exceção, como ser isolado cujas
ações não guardam relação com o contexto; desvincula o indivíduo agredido de
seu pertencimento racial, reforçando seu caráter de “outro”, uma vez que seu per-
tencimento é considerado secundário, torna-se apenas mais um pertencimento
entre tantos.

24 NOGUEIRA, Sidnei. Intolerância religiosa. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2020. p. 30.
25 “Faz-se necessário aprofundar a discussão e encontrar os elementos que auxiliem a carac-
terizar essa noção de racismo religioso, tornando a categoria mais precisa com o objetivo de poder
compreender melhor o fenômeno dos ataques às tradições brasileiras de matrizes africanas.” (NASCI-
MENTO, Wanderson Flor do. O fenômeno do racismo religioso: desafios para os povos tradicionais de
matrizes africanas. Revista Eixo, v. 6, n. 2, p. 51-56, 2017. p. 55)

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 471


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A categoria “racismo”, então, para além de recuperar a linguagem dos direitos,
permite resgatar a dimensão estrutural dessas violências e ressaltar a necessidade
de uma educação para as relações étnico-raciais que, no país do mito da democra-
cia racial, parece ser bem mais exigente que a educação para a tolerância.

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AUTORIA
Lidyane Maria Ferreira de Souza
Universidade Federal do Sul da Bahia
E-mail: lidyane.ferreira@ufsb.edu.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0990-2249
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8388807218992728

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 473


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 54
Relações raciais e
desigualdades no
Brasil: trabalho,
direitos e políticas
sociais
A INVISIBILIDADE DO TRABALHO DOMÉSTICO
NO CAPITALISMO CONTEMPORÂNEO:
A DIVISÃO SOCIAL, RACIAL E DE GÊNERO

Lilian Luiz Barbosa

INTRODUÇÃO
Este trabalho traz análises que vão apontar reflexões dos rebatimentos do tra-
balho constante do cuidar do lar e da casa. Partindo da categoria trabalho, tentamos
percorrer a totalidade que incide diretamente o trabalho das mulheres negras, que
sintetizam o nó raça, classe e gênero.
Para caminhos norteadores faremos reflexões através de bibliografias essenciais
para entender os processos. No primeiro momento mergulharemos no funciona-
mento dos trabalhos improdutivos no capitalismo e sua gênese, no que tange aos
afazeres de casa como de responsabilidade da mulher, e como ainda são funcionais
para quem apropria do mais valor baseados principalmente em Frederic (2017). No
segundo momento vamos questionar sobre a racialização deste processo, trazendo
em voga a intenção de invisibilizar pelo racismo as violências no trabalho negro, e
assim perpassando pelos lastros relacionados com a particularidade da formação
social brasileira e o racismo. Por último iremos concluir as reflexões destacando o
cenário atual, e indagando algumas tendências destas relações que tentam invisibi-
lizar a causa desta relação.

O TRABALHO DOMÉSTICO: INVISÍVEL PRODUÇÃO E


REPRODUÇÃO DE VIDA
No que tange ao trabalho doméstico, se torna profícuo sinalizar para esta afir-
mação de Federici (2017) que a constituição da família moderna nos moldes do ca-
pitalismo industrial é “centrada no trabalho reprodutivo, em tempo integral e não
remunerado da dona de casa” (FEDERICI 2017, p.194). Cabe situar que o patriar-
cado e racismo apagam não apenas o trabalho dos corpos femininos em casa mas
também na sociedade geral. A valorização real desta mercadoria, a força de traba-
lho do cuidado doméstico, não passam a serem visualizados no processo coletivo
de trabalho socialmente construído pela sociedade, e perpassa também por uma
ideologia de não ver que sem ele o próprio trabalho gerador de valor não existiria.
Esta ideologia se estende do âmbito privado ao público, aonde o processo de valo-
rização do trabalho feminino é despreciado. Desta forma cabe citar Federici (2017)
no trecho abaixo quanto à desvalorização do trabalho da mulher no advento do
capitalismo:

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 475


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Rapidamente, todo trabalho feminino, quando realizado em
casa, seria definido como ‘tarefa doméstica’ e até mesmo quan-
do feito fora de casa era pago a um valor menor do que o traba-
lho masculino – nunca o suficiente para que as mulheres pudes-
sem sobreviver dele. (FEDERICI, 201, p.184)

Nesta passagem Federici (2017) discorre sobre as mudanças na compreensão


sobre o trabalho feminino e doméstico na sociedade industrial em formação, onde
ocorre um controle moral sobre a vida das mulheres e a opressão da suposta “supe-
rioridade” produtiva masculina. Ao mesmo tempo, a autora fala do fenômeno que
se deu entre o século XVI e XVII para que as mulheres fossem “domesticadas” para
atender a necessidade do Capital e dos maridos, pois a nova dinâmica necessitava
também do trabalho das mulheres dentro e fora de casa:

As proletárias, em particular, encontravam dificuldades para ob-


ter qualquer emprego além daqueles com status mais baixos:
empregadas domésticas (a ocupação de um terço da mão de
obra feminina), trabalhadoras rurais, fiandeiras, tecelãs, bor-
dadeiras, vendedoras ambulantes ou ama de leite.” (FEDERICI,
2017, p.182)

O trabalho doméstico integrado a sociedade capitalista, como mostra esta pas-


sagem, parte de processos desprestigiados e embutidos na reprodução da vida,
que são apropriadas de forma indireta ao metabolismo do capital. Este processo
se dá em consonância com a relação à reprodução da vida necessária aos indiví-
duos sociais no âmbito social, compondo parte da valorização coletiva para bens
socialmente constituídos e necessários para a reprodução do sistema. Refletindo
sobre este processo o mesmo reverbera até a atualidade, com algumas transfor-
mações, onde a divisão sexual de trabalho, segundo Hirata (2010), pode-se destacar
relações de diferenciação no que tange ao processo feito em casa (vida privada) e
ao trabalho externo (vida pública), em que ambos confirmam o modelo ideal de
serem estes ainda serviços femininos:

Trata-se de uma nova configuração da divisão sexual do trabalho


de “care”, que ainda hoje é assumida, principalmente, pelas mu-
lheres, tanto casa, como nas instituições, tanto gratuitamente,
como trabalho remunerado. A naturalização e a essencialização
do “care” como inerente à posição e à disposição (“habitus”)
feminina tem como consequência a desvalorização da profissão
do “care”. O “care”, como atividade profissional, tem um caráter
explosivo, pois questiona a gratuidade do trabalho doméstico,
a “servidão voluntária” efetuada no espaço privado. O “care”
como profissão implica no reconhecimento e na valorização do
trabalho doméstico e familiar como trabalho. As cuidadoras e as
auxiliares de enfermagem são cidadãs trabalhadoras. As empre-
gadas domésticas não são plenamente cidadãs, nem trabalha-
doras, mas sim mulheres, que não tem direito a FGTS, seguro

476 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
desemprego, indenização de acidente de trabalho e hora extras.
(HIRATA, 2010, p.5)

No intuito de desvelar o real valor do trabalho doméstico refletimos sobre a


improdutividade, o trabalho doméstico é trabalho improdutivo, pois não gera va-
lor, todavia, para Federici (2017) as atividades realizadas em casa são essenciais
para sobrevivência da geração de valor na produção. Logo podemos afirmar que
este improdutivo é diluído no processo global das necessidades para as relações de
produção social, em que sem ele não haveria produção. O trabalho doméstico seja
integrado a sociedade capitalista como serviços de care,1 de diaristas ou “donas de
casa” são processos de reprodução e produção de vidas que o são apropriado ao
metabolismo do capital, e são partes essenciais para a dinâmica de produção deste
sistema.

O TRABALHO INVISÍVEL NEGRO E A GÊNESE PARTICULAR DO


TRABALHO DOMÉSTICO NO BRASIL
O trabalho invisível, conceito utilizado neste ensaio está vinculado também ao
escravismo em nossa realidade brasileira, no qual ao falarmos no trabalho domés-
tico este é feito por determinações locais e históricas. Assim levantamos uma pre-
missa, quem precisa fazer este trabalho de reprodução na casa de alguém no Brasil?
Se faz necessário problematizar que o trabalho doméstico é falar da divisão social
e racial de gênero e sua gênese em nosso país. A formação social brasileira mostra
que o racismo se torna inerente ao capitalismo brasileiro, e está diretamente vin-
culado ao trabalho doméstico. Furno (2016) afirma que:

O trabalho doméstico é uma das marcas da escravidão e guarda


uma série de similitudes com seu modo de funcionamento nas
sociedades modernas. Entre as características permanecidas ao
longo do tempo destaca-se a sua não identificação como um
trabalho, prioritariamente comparados às demais categorias so-
ciais; precarização das relações trabalhistas e, sobretudo, uma
lógica serviçal ancorada na demasiada ideia de diferenciação
social. (FURNO, 2016, p.2)

O germe do trabalho invisível brasileiro pode ser evidenciado nas casas gran-
des, seguindo uma forma altamente violenta que o formava, identificando-se dire-
tamente com a violência sexual:

1 A categoria care é utilizada a partir do momento que se localiza o trabalho do cuidado na


perspectiva feminista, problematizando-o no contexto contemporâneo como mercadoria. Além dis-
so, o identificamos enquanto atividade majoritariamente feminina, vinculada a determinada “essência
feminina”, sustentada pela divisão sexual do trabalho e afirmado pela precarização. Grifos de Passos
(2016.p.282)

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 477


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Enquanto mucama, cabia-lhe a tarefa de manter, em todos ní-
veis, o bom andamento da casa grande; lavar, passar, cozinhar,
fiar, tecer, costurar e amamentar as crianças nascidas do ventre
livres das sinhazinhas. Isto sem contar com as investidas sexuais
do senhor branco que, muitas das vezes, convidava parentes
mais jovens para se iniciarem sexualmente com as mucamas
mais atraentes. (GONZALES, 2018, p. 39)

O período escravagista forma o germe do capitalismo brasileiro, onde não dá


para desvincular do trabalho doméstico as suas formatações da escravidão, da ex-
ploração e da explicita violência. A ideologia dominante da atualidade, trata este
tipo de ócio, como extensão da Casa Grande moderna, em que contrata -se uma
trabalhadora doméstica para fazer o trabalho que outras mulheres não dão conta
ou não querem fazer marcada pelo seu pertencimento de classe. Portanto ainda
hoje há uma composição étnica do trabalho doméstico, sendo este negro.
Assim como ocorreu a divisão sexual, que já foi sinalizado neste trabalho, a
categoria raça é o revelador da sistemática divisão trabalho, no qual, como dife-
rença as suas marcações possuem lastros na criação do colonialismo imposto pelo
Capitalismo ao “novo mundo”, aonde o lugar de não europeu não branco, foram
construídas identificações a diversos povos, caracterizados de índios e negros para
uma subalterna relação de dominação e exploração subalternos aos piores servi-
ços(QUIJANO,2005). Nisto é preciso entender que estas fundações, também for-
mam correlação ao capitalismo para com a extração máxima de valor da periferia,
e repassou-se a exploração, dominação do povo negro no capitalismo, aonde a
construção ideológica dominante das relações sociais capitalistas também fincou o
fundamento do racismo estrutural. A forma estrutural implementada do colonia-
lismo ao capitalismo é bem aludida por Almeida (2018):

O racismo de acordo com esta posição é uma manifestação da


estrutura do capitalismo, que foram forjadas pela escravidão. Isto
significa dizer que a desigualdade racial é um elemento constitu-
tivo das relações mercantis e das relações de classe de tal sorte
que a modernização da economia e até seu desenvolvimento
podem representar momentos de adaptação dos parâmetros ra-
ciais e novas etapas de acumulação capitalista. (ALMEIDA, 2018,
p.144)

O autor fala da direta relação do racismo ao metabolismo de acumulação do


capital, onde isto incide também nas relações de gênero como já sinalizado nes-
te trabalho, contudo nas mulheres negras possuem particularizações, em que na
dinâmica desta divisão sexual do trabalho estão em papéis mais subordinados e
em trabalhos considerados invisíveis no âmbito privado, estas são colocados mais
invisiblizados pelo longo passado da casa grande, e se tornam funcionais para o
capitalismo. Trazemos reflexões para enegrecer a questão: “A divisão racial do tra-
balho pode ainda ser amplamente constatada nas sociedades contemporâneas” (

478 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
AMEIDA, 2018, p.81).Acerca disso, podemos identificar profissionais atuais que es-
tão relacionadas a ocupações historicamente delegadas a população negra no pa-
radigma colonial, como empregadas domésticas, cuidadora, auxiliares de serviços
gerais, seguranças, babás, diaristas, cozinheiras, serventes etc.
Continuando a falar sobre o racismo estrutural na sociedade capitalista, Rufino
(2010) diz:

[...] é uma forma de dominação estrutural na sociedade brasi-


leira que só adquire sentido por meio da luta social, da luta de
classes, da luta contra a ordem. O racismo é um fator estrutural,
está na própria essência da formação brasileira. Se não pensar-
mos assim, vamos tomar o preconceito racial um sinônimo de
racismo, e aí o problema vai longe, vai cair na reivindicação iso-
lada, justa, mas isolada, vai cair em certas ilusões que alguns ne-
gros têm de que se, por exemplo, o negro puder estar na televi-
são, se o negro puder ser general, se puder ser executivo, que o
problema estaria resolvido, o racismo estaria sendo combatido.”
(RUFINO, 2010, p. 29)

Este é o alerta sobre o racismo estrutural, onde também Almeida (2018) afir-
ma que as formas sociais contemporâneas evidenciam como as estruturas racistas
são úteis ao capital. O racismo para o autor, não é apenas resquícios da escravidão,
pois, racismo, escravidão e capitalismo são elementos constitutivos da sociedade
moderna, não podem ser analisados dissociáveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de toda explanação, entendemos que o trabalho invisível feminino e ne-
gro está marcada até hoje na formação social e coletiva de nossa cultura, e prin-
cipalmente da forma particular em que situa a mulher negra brasileira neste con-
texto. Cabe mencionar que em sua maioria na particularidade das mulheres negras
brasileiras, estas também possuem o cuidado exclusivo dos filhos, quando os pais
se ausentam por opção social e desempenham papéis “forjados de guerreiras”
para reproduzir suas triplas jornadas na dinâmica da vida social, elas acabam viran-
do alvo do aborto social2 (BARBOSA, 2018).
Outra particularidade gritante é a como a expressão da violência recai sobre a
mulher negra, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública – FBSP de 2019
os casos de feminicídio registrados são de 1.206 no Brasil em 2018, no total destes
homicídios 61% das mulheres analisadas eram negras. No que tange autoria dos

2 Abordo social é um conceito em construção que autora desenvolveu para Trabalho de Con-
clusão de Curso. “fenômeno como mortes causadas pelo Estado, pelo braço coercivo que deixam mães,
avós e irmãs sem seus entes querido” ( BARBOSA, 2018, p. 27) Aborto social é toda violência física ,
psicológica , simbólica causada nas mulher negras com intuito de aborta as mesmas desta sociedade
utilizando mecanismo diversos para fazer cumprir sua finalidade.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 479


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
casos, 88,8% quem pratica é companheiro ou ex- companheiro. Sobre os casos
de violência doméstica podemos afirmar segundo FBSP (2019) que ocorre 1 re-
gistro a cada 2 minutos, isto equivale à 263.067 casos de lesão corporal dolosa.
Nos dados relativos à violência sexual da mesma fonte, afirma que aumentou 4,1%
com relação a 2017, sendo os números de caso de estupros 180 por dia. Segue no
estrupo também a prevalência principal das mulheres negras, 50,9 % eram negras
e 48,5 eram brancas. Estes dados mostram a conectividade com a forma violenta
que o passado colonial se faz presente na marcação de raça e cor de nossa popu-
lação, onde podemos trazer fortes hipóteses que atravessam o trabalho feminino
negro e também o trabalho doméstico. Estes estão relacionados a invisibilidade do
trabalho feminino negro na sociedade capitalista, aonde também afirma Almeida
(2018):

A situação das mulheres negras exemplifica isso: recebem os


mais baixos salários, são empurradas para o trabalho improdu-
tivo- aqueles que não produzem mais valia, mas que são essen-
ciais, a exemplo das babás e empregadas domésticas, em geral
negras que, vestida de branco, criam os herdeiro do capital, são
diariamente vítimas de assédio moral, da violência doméstica e
do abandono, recebem o pior tratamento nos sistemas univer-
sais de saúde e suportam e a mais pesada tributação” ( ALMEIDA,
2018, p.145-146)

Evidencia-se então a mulher negra na base da pirâmide social e a relação de sua


condição de trabalho é perpassada pela constante violência, com baixa remune-
ração, e constantes ataques aos seus direitos. Neste artigo refletimos como o tra-
balho doméstico é invisibilizado tanto na esfera privada quanto na esfera pública.
O trabalho invisível poderia ser visível e responsabilidade de todos os residentes
da casa, ou se fosse socialmente distribuído pelo Estado poderia definir profissões
bem remuneradas para tal. Caso a realidade da vida social não considerasse o tra-
balho doméstico e cuidados de pessoas, como exclusividade do feminino social-
mente construído, as mulheres trabalhariam 4,8 horas por semana a menos que
homem segundo o IBGE.
Seguindo os dados já expostos neste trabalho as mulheres negras seguem sen-
do as mais assassinadas, e nossa maior hipótese neste trabalho é que este trabalho
também está perpassado pela violência, pois perpassando os traços históricos de
nossa realidade social eles se fundamentam. O trabalho de lavar, passar cozinhar
e tomar conta dos seus filhos e dos da patroa tem sido uma carga histórica que
recaiu sore os ombros das mulheres negras, e sempre invisíveis a variados tipos de
violência que os atravessam, e precisamos os tornar visíveis.
Neste contexto de pandemia, há também um fortalecimento do ultra- conser-
vadorismo, no qual querem nos obrigar a ficarem no lugar de casa, e aquelas que
não aceitarem podem serem impostas a mais formas de violências. Nosso trabalho
se solidariza com todas as mulheres que passam invisíveis neste momento, ataca-

480 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
das pelo machismo e racismo, queremos que sejamos um alerta que existe cami-
nhos possíveis para nossa emancipação. Há uma necessidade de derrotada desta
expressão de submissão, uma construção de outro processo social, aonde abre
espaço para nossa visibilidade. Por isso entendemos como Davis nos alertou “quan-
do a mulher negra se move, toda estrutura da sociedade se movimenta como ela”.
Companheiras falamos em alto bom som para descontruir este processo de mar-
cação racial e de classe que nos aprisiona, derrotaremos Bolsonaro, o racismo e as
estruturas capitalista que nos condiciona, assim como seu Estado da elite branca e
burguesa que matam nossos filhos. Não abaixaremos a cabeça para este estado de
coisas que nos querem submeter aos trabalhos mais precarizados invisibilizados,
queremos dignidades, salários justos e visibilidades para nossos esforços sejam re-
munerados, queremos uma outra forma societária, sem hierarquia e opressão de
gênero, raça, sexualidade. Machistas não passarão!

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AUTORIA
Lilian Luiz Barbosa
Mestranda Programa Pós-Graduação Escola de Serviço Social-UFRJ
E-mail: amosculor@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9596337283427657

482 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
AS AMARRAS COLONIAIS NA CONSTRUÇÃO DA
FORÇA DE TRABALHO FEMININA NEGRA

Rayhanna Fernandes de Souza Oliveira

INTRODUÇÃO
A epistemologia decolonial direciona a geografia do conhecimento para além
das fronteiras eurocêntricas ao evidenciar subjetividades e narrativas invisibiliza-
das, campo fértil para a presente investigação alçada sobre as zonas subalternas
das relações de poder. É cediço que as desigualdades raciais são inerentes ao pro-
cesso de formação histórica, cultural, social e econômica do Brasil e que um dos
grandes espaços por onde essas discrepâncias se reproduzem e se manifestam é o
mercado de trabalho. Este, tem sua formação inserida no processo de acumulação
primitiva do capital, ainda nos séculos XVI e XVII, fruto da colonização implemen-
tada na América Latina e, assim, torna-se um dos pontos dos estudos decoloniais.
A proposta desse trabalho, portanto, é apresentar a subvalorização da força de
trabalho como projeto colonial capitalista onde forma-se o sistema de classificação
e dominação de subjetividades, principalmente, da mulher negra. Propõe-se, nas
próximas páginas, demonstrar como operam a colonialidade do poder e a colonia-
lidade de gênero sob as trabalhadoras negras do Sul, a partir da percepção sobre
remuneração e salário. A pergunta proposta foi: como se explicam as distinções la-
borais refletidas nas diferenças remuneratórias das trabalhadoras negras do Brasil
e originárias do capitalismo emanente da era colonial?
Por conseguinte, a hipótese que se lançou para teste supunha que as distin-
ções laborais teriam origem no capitalismo emanente da era colonial, cujas desi-
gualdades raciais e sexistas seriam reproduzidas em diferenças salariais devido a
duas condicionantes: raça e gênero. Isso porque haveria imensa expressividade
de mulheres negras que seguem em trabalhos precários, subalternos e com baixos
rendimentos e no trabalho doméstico remunerado, o que significa, por si só, a des-
valorização da sua mão de obra.
Constatar e reafirmar a visibilidade de sujeitas, historicamente subalternizadas
nas relações laborais, ou seja, mulheres negras, marca os estudos justrabalhistas,
haja vista que há uma tendência pré-concebida, quando trata de quem é “o sujeito
trabalhador”. A percepção social dessa construção jurídica remonta, quase sem-
pre, ao perfil masculinizado, branco, economicamente estruturador da família e
detentor do “pátrio” poder. Contudo, propõe-se ir além dessas amarras, ao ques-
tionar o lugar de mulheres negras no mercado de trabalho brasileiro, por meio da
análise dos parâmetros remuneratórios.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 483


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Nesse sentido, o artigo visa explicitar a hipótese colocada para teste, demons-
trando suas nuances a partir de pressupostos metodológicos vinculados à pesquisa
qualiquantitativa. As seções subsequentes dividem-se, assim, em: A) Raça, gênero
e exploração: a inseparabilidade histórica no capitalismo periférico; B) O lugar e o
não lugar; C) A troca e o troco: desigualdades raciais nas relações de trabalho.

RAÇA, GÊNERO E EXPLORAÇÃO: A INSEPARABILIDADE


HISTÓRICA NO CAPITALISMO PERIFÉRICO
Discorrer sobre a inseparabilidade histórica criada nos contornos da coloniza-
ção é falar sobre padrão histórico de poder, entendido sob os vieses espaço-tempo
e produção de conhecimento, os quais deslocam o lugar de fala para vozes silen-
ciadas. Para tal, determina o espaço como sendo a posição geográfica da América
Latina, no contexto das colônias periféricas do Sul, no qual, obviamente, inclui o
território brasileiro. O tempo ou a era é localizada na chamada modernidade, en-
tre os fins do Século XV que traz consigo concepções que moldaram padrões de
comportamento e exploração do colonialismo que ainda hoje se fazem presentes.
O colonialismo europeu, não só pela durabilidade nas Américas, como também
pela sua forma bem articulada, segundo padrões da modernidade, constitui ins-
trumento de dominação eficaz, pois as relações sociais fundadas propriamente na
ideia de raça produziram identidades sociais como índias/os, negras/os e mestiças,
que as colocavam, invariavelmente, no locus subalterno. A ideia de raça, assim,
uniu-se ao desenvolvimento das relações sociais de forma a redefinir posições hie-
rárquicas e sociais. Aníbal Quijano aponta que:

Assim, termos como espanhol e português, e mais tarde euro-


peu, que até então indicavam apenas procedência geográfica ou
país de origem, desde então, adquiriram também, em relação às
novas identidades, uma conotação racial. E, na medida em que
as relações sociais que se estavam configurando eram relações
de dominação, tais identidades foram associadas às hierarquias,
lugares e papéis sociais correspondentes, como constitutivas
delas e, consequentemente, ao padrão de dominação que se
impunha (2005, p.117).

O autor ainda enaltece de forma evidente que esse mesmo padrão foi e ainda
é responsável pela distribuição de sujeitos e sujeitas nas estruturas de poder da
sociedade:

Historicamente, isso significou uma nova maneira de legitimar as


já antigas ideias e práticas de relações de superioridade/inferio-
ridade entre os dominantes e os dominados. [...] Desse modo,
raça converteu-se no primeiro critério fundamental para a dis-
tribuição da população mundial nos níveis, lugares e papéis na
estrutura de poder da nova sociedade (2005, p.118).

484 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A referência da América justifica-se por ser o espaço-tempo em que tal mani-
festação de poder tomou suas bases e permitiu seus avanços em nível mundial e,
por isso, a primeira “identidade da modernidade” (QUIJANO, 2005, p.117). Assim,
a formação da América deu-se por dois eixos indispensáveis, que convergiram num
mesmo sentido de dominação e sujeição: a diferenciação entre colonizadores e
colonizadas/os pela concepção racializante definida como “supostamente distinta
estrutura biológica que situava a uns em situação natural de inferioridade em rela-
ção a outros” (QUIJANO, 2005, p.117); e o desenrolar de todas as formas históricas
de controle do trabalho em torno do capital e do mercado mundial.
Neste mesmo viés, as relações de poder se constituem no controle desses âm-
bitos da existência social – trabalho, sexo, autoridade coletiva e subjetividade – e
que, embora não derivem umas das outras, também não existem umas sem as ou-
tras (QUIJANO, 2002). Nesse ponto, traçamos as manipulações sistêmicas no capi-
talismo periférico, associando o trabalho, enquanto força de trabalho disponível, o
gênero e as subjetividades negras subalternizadas por este sistema de poder.
Neste contexto, o capitalismo assume e se constitui como “padrão universal de
exploração social” em que as variações de controle do trabalho se articulam em
torno do fluxo de produtos e da produção mundial. Mais ainda, articulam-se sob
determinados padrões sociais que recaem sobre fenótipos, marcadamente deter-
minados, como não-europeus ou não-brancos, estabelecendo, desde já, condições
prévias de trabalho. Com isso, a formação ou redefinição de identidade histórica,
produzida sob a visão eurocêntrica da ideia de raça, foi quase que diretamente as-
sociada à natureza dos papéis e lugares no fluxo mundial do controle do trabalho.
Para além disso, a categoria gênero é determinante. María Lugones chama de
“sistema moderno-colonial de gênero” o entrelaçar entre o conceito de intersec-
cionalidade e colonialidade do poder (LUGONES, 2008, p. 77), mais precisamente
um “sistema colonial de gênero” ou colonialidade de gênero marcado pela inter-
secção entre raça, gênero, sexualidade e classe. Analisa- se de que forma as dife-
renças de gêneros servem ao projeto de dominação e exploração construído pelo
capitalismo global eurocentrado:

Se no sistema de gênero moderno, eurocentrado, capitalista,


colonial por um lado, a categoria “mulher” significa ideologi-
camente, direciona a uma pessoa frágil, sexualmente contida,
relegada ao doméstico, sem razão y sem rol público, e por outro,
a classificação racial – e, portanto, racista – “negro” ou “índio”
aponta ideologicamente a seres primitivos em todo sentido, não
realmente humanos, capazes de grande violência, sexualmente
sem controle, com enorme capacidade y resistência para o tra-
balho físico, o que dizer da “mulher indígena”, “mulher negra”?
(LUGONES, 2012, p. 133, tradução nossa).

Dessa forma, baliza o centro da discussão decolonial, haja vista que este proces-
so reconhece que o capitalismo global colonial e eurocêntrico utilizou mecanismos

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 485


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
que vão além das conjecturas racializantes. Nesta esteira, é importante compreen-
der que esse sistema de gênero é parte constitutiva e retroalimenta o sistema de
dominação por classificação racializante, nos moldes de Aníbal Quijano.
A reificação de subjetividades que não se enquadram no padrão eurocêntrico
utiliza desta mesma engenharia de dominação para fomentar o capitalismo. Neste
viés, a enunciação da fala, a busca pela sua origem, a visibilidade deste processo é
determinante para se reconhecer existências silenciadas que, sequer, foram consi-
deradas no decorrer da construção do capitalismo periférico colonial. Neste ponto,
enquadra-se a mulher negra e, portanto, interessa posicionar o locus social dessa
mulher.

O LUGAR E O NÃO LUGAR

Os estudos de Márcia Lima (2001), no campo da Sociologia do Trabalho e da An-


tropologia, trazem contribuições significativas na relação entre mercado de tra-
balho e “cor” no Brasil. Tais pesquisas coadunam para o alcance do objetivo desta
seção, que é analisar a construção da categoria “lugar” para alçar o quadro demons-
trativo que relega a negros e, especialmente, negras o locus quase pré-concebido de
subalternidade originário do padrão racializante colonial.
Suas observações e conclusões introduzem de forma precisa o espaço ocupado
por negras e negros no mercado de trabalho, tanto em termos de ocupação, quan-
to em termos de disparidades socioeconômicas. A pesquisadora concluiu que o
“lugar” desses sujeitos tem sido marcado pelas atividades de menor prestígio, de
baixa escolaridade e menores rendimentos e, portanto, as representações criadas
socialmente estabelecem que há um locus específico destinado a eles. Conclui a au-
tora: “Há um padrão e o negro que ascende socialmente está saindo dele” (LIMA,
2001, p. 157). Nesse sentido, a pesquisa dialoga com a presente investigação, na
medida em que parte dessa concepção de “lugar”, estatisticamente demonstrado
em seus estudos. Os relatos também servem para mensurar o racismo estrutural
arraigado na sociedade brasileira o que dá concretude ao que é proposto aqui.
A concepção de lugar, segundo seus estudos, assume duas representações que
se complementam: os estigmas atribuídos à população negra e as discriminações
advindas dessa estereotipização com a ideia de “estar no lugar” e “fora do lugar”.
Todas elas conjugadas são reproduzidas no mercado de trabalho, locus principal de
suas manifestações.
O primeiro ponto diz respeito à estereotipização da negra e do negro ao exercer
atividades laborais, ou seja, a visão estigmatizada entre ser negra ou negro e a
competência em realizar determinadas funções. No caso dessa pesquisa, atenta-se
à subalternização da mulher negra trabalhadora nesse processo. As representa-
ções empobrecidas de suas figuras são mais aguçadas, pois a elas o lugar é mais
hostil. Por isso, o elemento gênero, nos estudos sobre “cor” e “raça”, tende a afir-
mar que mulheres negras pertencem à base obscura da pirâmide social-laboral no
estado brasileiro. Ao citar Goffman (1988), Márcia Lima aborda sobre a relação bi-

486 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
lateral existente entre estigmas e estereótipos, mecanismos que direcionam cada
indivíduo em “seu lugar” (LIMA, 2001, p. 172). Estereótipos, portanto,

(...) são formulações que têm como objetivo simplificar caracte-


rísticas e podem ser utilizados tanto de forma negativa quanto
de forma positiva, levando a uma formulação preconceituosa.
Essa atitude, muitas vezes, leva a uma prática discriminatória
que pode atuar de diversas formas – hierarquizando, incluindo,
excluindo - sobre indivíduos e grupos que podem vir a se tornar
indivíduos e grupos estigmatizados (LIMA, 2001, p. 172-173).

Ao dialogar com Oracy Nogueira, Márcia Lima afirma que o elemento “cor” se
transforma em estigma justamente porque é pela aparência que as discriminações
raciais são concretizadas (LIMA, 2001, p. 173). Interessante observar, nesse senti-
do, que a estudiosa deixa claro que a “cor” no Brasil traz, em si, a própria desigual-
dade social, uma vez que as características individuais fenotípicas se transformam
no próprio preconceito racial. Além disso, os estereótipos e a aparência assumem
relevância da discussão, pois, segunda a autora, permitem a compreensão da cons-
trução da ideia de “raça” no território nacional, o que, de fato, é um dado im-
portante para a chave de compreensão sobre desigualdades raciais e sobre onde
estão essas mesmas discrepâncias (LIMA, 2001, p. 59-60). Esse arranjo cultural, por
consequência, reflete em todos os segmentos da vida social, em todas as formas de
controle e dominação já citadas neste trabalho, em referência a Aníbal Quijano, e,
não menos, na própria formação do mercado de trabalho brasileiro.
As características fenotípicas individuais, desde o início da formação colonial no
Brasil, compuseram os elementos sociorraciais que recaíram nas estruturas de do-
minação dos colonizadores sobre as dominadas e os dominados, como visto ante-
riormente. Estabeleceram mecanismos quase que imobilizadores para as popula-
ções “etnodominadas” que formaram as estratificações e determinaram o espaço
que sujeitas e sujeitos ocupariam. A dominação étnica, portanto, foi fator e, ainda
é, constitutivo de definição de espaços sociais e laborais. Conforme salienta Clóvis
Moura, em diálogo com a teoria racial-laboral de Márcia Lima:

Nos países poliétnicos, formados em consequência dessa expan-


são do colonialismo, essas populações foram alocadas inicial-
mente em espaços sociais delimitados rigidamente pelas forças
dominadoras que estabeleceram o papel, o status e a função de
cada uma no processo de trabalho e seu nível de valorização ét-
nica. (...) Houve, portanto, uma imbricação entre etnia e status,
etnia e valores sociais e etnia e papéis sociais e culturais. Estabe-
leceram-se critérios que determinaram a posição de cada grupo
ou segmento étnico nos diversos níveis de estratificação, com
barreiras e fronteiras que impediam o processo de mobilidade
social em nível de igualdade de cada etnia dominada em direção
ao cume da pirâmide social (MOURA, 2017, p. 183).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 487


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Nessa esteira, o segundo ponto desta teoria, a questão “estar no lugar” e “estar
fora do lugar”, a qual relaciona “cor” e ocupação. A isso, Márcia Lima esclarece
que a representação pode associar tanto ocupações menos qualificadas, o “lugar
atribuído”, ou seja, aquele que segue o fluxo histórico de ocupações sem grande
valorização social, quanto afazeres em que há melhor colocação dentro do mercado
de trabalho, o que causa “o estranhamento do lugar” (LIMA, 2001, p. 176).
A construção dessas representações, de fato, remonta ao processo histórico-la-
boral da formação da ideia de raça enquanto projeto do capitalismo colonial que
desmembra efeitos atuais que, associada ao gênero, recai em opressões sobretudo
sobre as mulheres negras. Ao encontro dessa conjuntura, Sales Augusto dos Santos
(2014) afirma que “raça não é uma realidade natural (...). Ela existe socialmente”.
Os indivíduos fazem uso de classificações raciais no seu dia a dia”. Sadi Dai Rosso
(2014), por sua vez, afirma que a cor da pele é agente que causa efeitos diretos no
mercado de trabalho.
Nessa esteira, o mercado de trabalho é o espaço-tempo que produz e reproduz
desigualdades, onde “diversas dimensões ou características se cruzam no decorrer
da construção de trajetórias ocupacionais dos indivíduos, destacando-se sexo e
raça” (LIMA, 2001, p. 92). Este é o ponto principal da formação teórica de Márcia
Lima aplicada a esta pesquisa: o mercado de trabalho é o locus onde as relações
laborais se manifestam como relações de poder, uma vez que as subjetividades são
realocadas de acordo com padrões racializantes e sexistas. Portanto, este sistema
laboral de raízes coloniais é campo fértil para a atuação dos instrumentos de do-
minação, tanto sob o viés da colonialidade do poder, quanto sob a perspectiva da
colonialidade de gênero. Assim, permitem que os corpos femininos negros traba-
lhadores e marginalizados ocupem espaços poucos frutíferos em termos de postos
de trabalho e, consequentemente, de contrapartida remuneratória.
Os argumentos da socióloga vão ao encontro do continuísmo histórico das
opressões vivenciadas pelas mulheres negras em qualquer forma de exploração da
sua força de trabalho. E, nessa esteira, Daniela Muradas e Flávia Máximo afirmam
que a distribuição do trabalho no sistema capitalista moderno-colonial, nas formas
do trabalho escravo, servil e livre associado aos padrões de “raça” e gênero, criou
sujeições interseccionais que explicitam a colonialidade de opressões de classe,
raça e gênero ainda hoje presentes na divisão laboral brasileira (MÁXIMO; MURA-
DAS, 2018, p. 2134).
A distribuição da população nas Américas e, posteriormente, no resto do mun-
do foi estabelecida seguindo padrões de raça e de gênero que se reproduziram du-
rante o desenvolvimento do capital e que identificam grupos específicos ao abor-
dar binômios como: dominantes e dominados; sujeito e objeto; centro econômico
e capital periférico. Todas estas manifestações relacionam a raça e a “classificação
do preço dos indivíduos no mercado de trabalho” (ROSSO, 2017, p. 252). Sadi Dai
Rosso explica:

488 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Trabalhadores negros são remunerados com salários menores,
trabalhadores brancos com salários maiores. Surge a pergunta:
uns produzem menos valores para receber menores salários e
outros produzem mais e recebem maiores salários? A propo-
sição mostra-se não verdadeira. Raça e cor são uma condição
social que permite pagar remuneração diferenciada, embora
essa condição social não interfira, de modo algum, no desempe-
nho da força de trabalho na produção de valores. Dessa forma,
raça e cor são classificações que conduzem a maior apropriação
de mais valor pelos empregadores, pelas empresas e pelos go-
vernos por comprimir o tempo de trabalho necessário (ROSSO,
2014, p. 252).

A desigualdade nos limites deste trabalho será estudada sob a perspectiva re-
muneratória das relações laborais das mulheres negras. Contudo, o caminho de
análise deve considerar variáveis como o nível educacional não-adestrador e ocu-
pacional dessas sujeitas. A inserção na conjuntura capitalista colonial depende da
trajetória desses corpos, onde a “cor” pode ser elemento que canaliza ou obstacu-
liza esse processo. Portanto, o levantamento de dados e o recorte demonstrativo da
pesquisa tratará dessas análises como mecanismo que expõe o lugar de mulheres
negras no mercado de trabalho.
A disparidade entre os dados a serem vistos na próxima seção apontam para
baixos rendimentos direcionados a perfis específicos, marcados por gênero e raça,
cujos percentuais traduzem os fluxos historicamente predeterminados, escanca-
rando a vulnerabilidade desses grupos ainda hoje. E, por isso, afirma-se que a base
da pirâmide laboral-econômica é, sobretudo, composta por negras com baixa re-
muneração.
Este é o lugar da “cor” no Brasil. Conforme aduz Márcia Lima:

O “lugar” do negro no mercado de trabalho tem sido o lugar das


ocupações de menor prestígio, baixa escolaridade e baixos ren-
dimentos. A partir dessas condições, criou-se uma representa-
ção na sociedade brasileira de que há lugares estabelecidos. Há
um padrão e o negro que ascende socialmente está saindo dele.
A expressão “ponha-se no seu lugar” demonstra não somente
que há lugares, mas também que cada um sabe qual é o seu.
E esse “lugar” (...) tem também a marca da cor (LIMA, 2001, p.
157).

A herança colonial torna-se ainda mais evidente quando se percebe que a remu-
neração oscila, cresce ou decai, mas não se aproxima do patamar de rendimentos
dos demais grupos sociais: homens brancos, mulheres brancas e homens negros.
O recorte étnico e de gênero tende a demonstrar que grupos racializados estão
mais vulneráveis ao processo de desvalorização da força de trabalho e sofrem seus
efeitos com maior intensidade. Nessa esteira, Bila Sorj aponta, com base em suas
pesquisas, que os atributos próprios de cada gênero desempenham fator prepon-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 489


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
derante no recrutamento de homens e mulheres para diferentes tipos de trabalho
(SORJ, 2000).
Diante do exposto, atribui-se à ideia de “lugar” contribuições para a presente
pesquisa: uma vez que a hipótese é sustentar a permanência da colonialidade de
gênero sob o enfoque de rendimentos, entende-se que a concepção sobre per-
manência só é possível se há canal de comparação em termos de estratificação
social. Ou seja, a ideia de lugar aqui permite compreender se há continuidade de
ocupações sócio-laborais que implicam baixa valorização da força de trabalho devi-
do às características individuais dos sujeitos. A partir disso, sustenta a hipótese de
que mulheres negras no capitalismo periférico colonial, no Brasil, são relegadas aos
contornos da subalternidade, sobretudo, pelos seus rendimentos. A construção da
sociedade brasileira é marcada pelo estigma que coloca os corpos femininos ne-
gros em posições quase inflexíveis de inferioridade.

A TROCA E O TROCO: DESIGUALDADES RACIAIS NAS


RELAÇÕES DE TRABALHO
Seguindo os estudos de Márcio Túlio Viana:

Se perguntarem a um de nós o que é o salário, talvez responda-


mos algo assim: “É o que um homem, trabalhando para outro,
recebe em troca do seu trabalho”. Mas um conceito como este,
embora correto, não seria completo – pois esconde dois fenôme-
nos importantes. De um lado, porque, num sentido mais super-
ficial, o que há é mais do que uma troca pura e simples. Ou – se
preferirmos dizer assim – é uma troca que pode envolver não só
o trabalho, mas a falta dele. De outro lado, porque, em sentido
mais profundo, o que há é menos do que uma troca. Ou – mais
exatamente – é uma troca desigual. Uma troca... com um troco
(VIANA, 2014, p. 15).

A perspectiva de salário, neste sentido, é muito mais do que os termos dogmá-


ticos podem propor, indo além da compra e venda da força de trabalho. A Declara-
ção Universal dos Direitos do Homem de 1948 recepcionou o termo remuneração,
afirmando categoricamente que todo ser humano “tem direito a uma remunera-
ção justa e satisfatória que lhe assegure, assim como à sua família, uma existência
compatível com a dignidade humana” (DECLARAÇÃO, 1948).
Nesse sentido, a proposta de Márcio Túlio Viana é reconhecer que um dos efeitos
do salário é regular o nível social da trabalhadora e do trabalhador, em termos de
desenvolvimento humano, de poder aquisitivo e construção de uma vida digna
(VIANA, 2014). O salário, portanto,funciona como o medidor de distribuição de ren-
da, pois, entre outros efeitos, é base não só para sobreviver, mas, sobretudo, para
viver e projetar a vida. Assim, assevera:

490 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Receber um salário é poder comprar, o que significa muito numa
sociedade que, às vezes, nos mede mais pelo que temos do que
pelo que somos. E como – ao comprar – escolhemos, é também
a possibilidade de nos sentirmos livres e nos afirmarmos fora do
trabalho, ainda que ao preço de nos subordinarmos e nos alie-
narmos dentro dele. É o prazer de pagar a conta do armazém, a
rodada da cerveja ou o futebol de domingo (VIANA, 2014, p. 25).

De fato, a usurpação da mão de obra é inerente ao desenvolvimento do capita-


lismo. Tanto no espaço-tempo do colonialismo, quanto no espaço-tempo da colo-
nialidade as existências são direcionadas ao sistema de produção, do lucro e das
relações de poder. O ponto dessa questão se atenta no fato de que mulheres negras
sempre foram a base desse sistema. A questão não é sobrepor sofrimentos e lutas,
mas sim, atentar-se ao fato de que não só foram oprimidas e silenciadas, mas são
até hoje. O índice de rendimento recebido por uma trabalhadora negra ser abaixo
de todas os parâmetros, mesmo quando apresentam percentual escolar acima da
média de homens negros, por exemplo, representa como a existência delas é colo-
cada no último plano do mercado de trabalho.
Observa-se que o salário também serve como medidor de desigualdades e re-
produtor dessas. Neste sentido, Márcio Túlio Viana reitera que “o salário também
pode facilitar as discriminações (...). E as discriminações têm efeito sinergético,
uma acentuando a outra: é o caso, por exemplo, da mulher negra, feia, analfabeta
e doméstica” (VIANA, 2014, p. 25-26).
Aparência, cor, raça, seja qualquer denominação aos atributos fenotípicos, bas-
tam para que importâncias remuneratórias que representam o caráter alimentar, o
poder de compra, a capacidade de desenvolvimento social e econômico, pessoal e
familiar, sejam subtraídos de trabalhadoras. Consequentemente, seu plano de vida
também é obstaculizado e as barreiras se tornam quase que instransponíveis.
Mérito? Nas lutas feministas negras não há como considerar que, pelo argu-
mento da meritrocracia, chega-se ao patamar esperado. Muito antes disso, vidas
são silenciadas pelos baixos salários. É o “troco” em troca de uma vida de “cor”,
uma “cor feminina”.
A partir das análises estatísticas dos principais institutos de pesquisa do país,
como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto de Pes-
quisa Econômica e Aplicada (IPEA), por meio da série histórica de vinte anos que
expressou a curva dessa permanência nos quantitativos remuneratórios. Da base
de dados, conclui-se que, em termos de formalidade e informalidade: verifica-se
crescente a formalização do emprego, ao longo das duas décadas, tanto para ho-
mens quanto para mulheres. Contudo, a taxa de formalização para a mulher ne-
gra é menor, se comparada à mulher branca, ou seja, emprega-se mais mulheres
brancas do que negras no mercado formal. Observou-se também que os homens
negros estão em nível inferior aos homens brancos, pois apresentam taxas que os-
cilam em menor porcentagem, da mesma forma que a informalidade negra é mais
aguçada do que a informalidade branca.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 491


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Quanto às disparidades de rendimentos, concluiu-se que: a) em termos de ren-
dimentos por hora de trabalho, nas principais regiões metropolitanas do Brasil,
o homem branco tem a hora de trabalho mais valorizada do que qualquer outro
segmento social, sendo que as mulheres negras seguem como a hora de traba-
lho com menor valor; b) no rendimento médio mensal da população ocupada no
trabalho principal, segundo gênero e “raça”, destaca-se a branquitude masculina,
com rendimentos maiores do que a média nacional. O feminino negro tem menor
percepção remuneratória, não apresentando qualquer tendência de aproximação
em relação aos homens negros, mulheres brancas e, obviamente, o homem bran-
co; c) no tocante à diferença da média de rendimentos para aquelas e aqueles
que trabalham no setor formal e a outra parte que trabalha no setor informal, as
diferenças são significativas: o setor formal apresenta quantitativos sempre acima
de R$1.400,00; já o setor informal tem seus maiores rendimentos médios, apenas
em 2013, percebendo valores em torno de R$1.250,00. Isso demonstra o efeito das
garantias trabalhistas que incluem todas as verbas salariais e remuneratórias atre-
ladas ao contrato de trabalho.
Na média geral desses rendimentos, ao incluir a variável “raça”, segundo a posse
da carteira de trabalho, o quadro apresentado foi: a população branca com passe da
carteira de trabalho recebe mais do que a população negra sob as mesmas condi-
ções. A mesma lógica é aplicada para aquelas e aqueles sem carteira de trabalho
assinada: branquitude recebe mais do que negras e negros. O ponto conclusivo
que ficou em evidência é o fato de que, em alguns períodos, a somatória dos rendi-
mentos médios das populações branca e negra, sem posse da carteira, ultrapassa
a população negra que recebe via contrato de trabalho.
No segmento formal, analisando a série histórica, concluiu-se que: homens
brancos recebem, em média, 2,02 vezes a mais do que a mulher negra; a mulher
branca 1,15 ponto percentual a mais e o homem negro, 1,11 vez a mais, o que
baliza, de fato, que há uma hierarquia econômica laboral em que a mulher negra
permanece estratificada no locus da subalternidade. Já no setor informal, a média
da série histórica informa que o rendimento médio das mulheres negras apresen-
tou-se na margem de 53%, isto é, homens brancos receberam 1,89 vez a mais do
que elas no mercado informal. Essa variação diminui em referência às mulheres
brancas, pois a tendência da série apresentou o comportamento de 64% dos valo-
res recebidos pela mulher negra, ou seja, a mulher branca recebe 1,57 vez a mais
do que o feminino negro. Por fim, a média do homem negro se aproxima a do seu
gênero oposto, uma vez que no mercado informal a série informa que ele recebeu
1,11 a mais do que elas, o que representa 89% da remuneração dos homens negros.
Domésticas, por que as negras? É um questionamento inicial, probatório, mas
que se ramifica em várias outras indagações: desvalorização da força de trabalho,
por que as negras? Subalternidade, por que as negras? Precarização, por que as
negras? Enfim, por que as negras? A (des)valorização da sua própria existência no
capitalismo periférico colonial é reiterada, constantemente, no valor ofertado à

492 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
sua força de trabalho, e os dados analisados escancaram essa realidade, não dei-
xando margem à questionamentos contrários.
Esse desenvolvimento histórico torna-se real e impactante, quando as estatís-
ticas são expostas, quando se percebe que essa realidade é numérica e tem valor,
não só monetário, mas simbólico e infere o poder de resistência diário dessas mu-
lheres. Eixos “raça” e gênero não são simples variáveis para aplicação de questio-
nários, pelo contrário, constituem e reafirmam que as características individuais
atuam como mecanismos localizadores de sujeitos dentro da sociedade brasileira.
Representam a construção do Estado por um pequeno grupo dominante, em últi-
ma análise, patriarcal e racista. Voluntariamente, portanto, escolheram, e ainda
escolhem, quem pertence e quem não pertence à utopia promissora proposta pelo
capitalismo.

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494 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
AUTORIA
Rayhanna Fernandes de Souza Oliveira
Universidade Federal de Minas Gerais E-mail: rayhanna.fernandes@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7421-7374
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3764777770643363

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 495


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS
NA EDUCAÇÃO E AS NARRATIVAS DOS
ESTUDANTES NEGROS: VIVÊNCIAS NA
CONSTRUÇÃO DA REPARAÇÃO
Maria Aparecida Miranda

INTRODUÇÃO
O artigo apresenta parte dos resultados da pesquisa de tese “Ações Afirmativas
no Ensino Médio do IFRJ: um estudo de caso sobre a implementação e as narrativas
dos estudantes negros”, defendida em julho de 2020, sob a orientação da Profes-
sora Doutora Andréia Clapp Salvador, no Programa de Pós- Graduação em Serviço
Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). O interesse
em pesquisar o tema das ações afirmativas surgiu das vivências na atuação profis-
sional como assistente social no campo da educação, numa instituição que oferta
formação profissional e tecnológica nas modalidades de ensino médio, pós-médio,
graduação e pós-graduação, e compõe a rede federal de educação. Os aportes ju-
rídicos que regulamentaram as ações afirmativas contribuíram para novas requisi-
ções e frentes de atuação para os profissionais da educação.

BREVE HISTÓRICO DAS MOBILIZAÇÕES EM BUSCA DA


REPARAÇÃO
A escravidão foi um regime agroexportador, estruturado em um nível de ex-
ploração econômica mundial para favorecer o capitalismo moderno. E teve como
população-alvo a africana, cujo tráfico foi uma das maiores mobilidades forçadas
de humanos já vista na história, e para manter esse sistema de exploração que
serviu de acumulação primitiva do capitalismo – era preciso justificar a dominação
de um povo: o negro. Isto foi feito através do racismo, um sistema ideológico de
dominação estrutu rado nos campos científico, jurídico e político para garantir a
exploração e espoliação da mão de obra escravizada (Barros, 2016, pg. 21).
Contrariando as demandas e reivindicações do movimento abolicionista, no
Brasil o que observamos foi o incentivo à imigração europeia branca, atendendo a
uma política de Estado de construção de um projeto de branqueamento da popula-
ção. Maria Aparecida Silva Bento revela que "quando se estuda o branqueamento
constata-se que foi um processo inventado e mantido pela elite branca brasileira,
embora apontado por essa mesma elite como um problema do negro brasileiro"
(2014) (Bento, 2014, p. 5-6).

496 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A partir de estudo realizado por Ana Paula Procópio da Silva (2017), compreen-
demos que “todos os modos de exploração do trabalho e de controle da produção
-apropriação distribuição de produtos foram articulados em torno do acúmulo de
capital e da expansão do mercado mundial” (Silva, 2017, p. 4-5). Conforme Silva, os
modos de produção - escravista e o capitalista - constituem modos de exploração
de trabalho e produção e apropriação de riqueza, resultando no processo de acu-
mulação capitalista. Esses processos históricos precisam ser estudados e analisa-
dos para que possamos desvendar as implicações que carregam e que atravessam
a dinâmica societária.
O Brasil e conseguiu ao longo de sua história produzir um quadro de extrema
desigualdade entre os grupos étnico-raciais negro e branco. E sobre à desigualda-
de, "o conceito refere-se à privação de direitos ou de acesso a recursos para uma
pessoa ou um grupo, o que cria distinções entre os indivíduos e grupos" (Therborn,
2009). Essas diferentes possibilidades de privação não se apresentam isoladas, em
muitos casos estão relacionadas entre si e se reforçam mutuamente, e para com-
bater um tipo de desigualdade, é necessário também combater os outros.
A persistência da desigualdade entre grupos raciais na sociedade brasileira tem
sido um objeto central na agenda de alguns pesquisadores das ciências sociais bra-
sileiras (Hasenbalg, 1988; Paixão, 2013; Henrique, 2000). Para esses autores, as
desigualdades vivenciadas pela população negra, têm relação direta não apenas
com a escravidão, mas também com a discriminação, o preconceito e o racismo
pelo qual foram e continuam sendo vítimas.

MOVIMENTO NEGRO, PROTAGONISMO E INSURGÊNCIA


Ao investigarmos o significado da educação para o Movimento Negro (MN)
no cenário brasileiro, estudos de Petrônio Domingues revelam que a “educação
é considerada um instrumento de importância capital para enfrentar o racismo e
garantir a integração e prosperidade do afro -brasileiro na sociedade" (Domingues,
2009, p. 963).
Em sua trajetória o MN assume mobilizações e organiza a “Marcha Zumbi Con-
tra o Racismo, pela Igualdade e a Vida” (1995) em Brasília/DF na Esplanada dos
Ministérios, com mais de 30 mil participantes1. A mobilização configurou um ato
de "indignação e protesto contra as condições subumanas em que vive a popula-
ção negra". Ao final da mobilização, representantes do MN entregaram ao então
Presidente da República, o documento "Por uma política nacional de combate ao
racismo e a desigualdade racial” (1995).2
No contexto das reivindicações do MN por ações afirmativas, tivemos a parti-
cipação na III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xeno-

1 A manifestação aconteceu no aniversário de 300 anos da morte de Zumbi dos Palmares,


símbolo da resistência escravista Memorial da Democracia.
2 Centro de Documentação, Comunicação e Memória Afro-brasileira. Disponível em: https://
www.irohin.org.br/index.php/memoria-negra/marcha-zumbi-1995.html

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 497


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
fobia e Intolerância Correlata, em 2001, na cidade de Durban, na África do Sul. A
comitiva brasileira contou com representantes do governo brasileiro e do MN na-
cional. O Brasil assumiu um acordo de âmbito internacional, o compromisso com a
agenda de promoção da igualdade racial, elaborando programas direcionados aos
negros nas áreas de educação, ações afirmativas, saúde, habitação, saneamento
básico e proteção ao meio ambiente.
Entre os compromissos assumidos pelo MN, encontramos em Gomes (2017),
o papel “como movimento educador, produtor de saberes emancipatórios e um
sistematizador de conhecimentos sobre a questão racial no Brasil" (Gomes, 2017,
p.14).

POLÍTICAS DE AÇÕES AFIRMATIVAS COMO DESAFIO PARA


REPARAÇÃO
Contribuição do jurista Joaquim Benedito Barbosa Gomes define as ações afir-
mativas como um "conjunto de políticas públicas ou privadas de caráter compul-
sório, facultativo ou voluntário, concebidas com vistas ao combate à discriminação
racial, de gênero, por deficiência física e de origem nacional". Para o autor, es-
sas políticas podem ainda "corrigir ou mitigar os efeitos presentes da discrimina-
ção praticada no passado, tendo por objetivo a concretização do ideal de efetiva
igualdade de acesso a bens fundamentais como a educação e o emprego" (Gomes,
2001, p.135).
Considerando o que identificamos em documento elaborado pela Secretaria
Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR)3 de que "as ações
afirmativas podem ser de três tipos: com o objetivo de reverter à representação
negativa dos negros; para promover igualdade de oportunidades e para combater
o preconceito e o racismo". Além disso “objetiva alterar a forma de interpretação
da participação dos africanos e de seus descendentes na história do Brasil” (Brasil
- SEPPIR, 2003).
Os professores Kabengele Munanga e Nilma Lino Gomes, afirmam que as ações
afirmativas "constituem políticas, ações e orientações públicas ou privadas de ca-
ráter compulsório, facultativa ou voluntária, que tem como objetivo corrigir as de-
sigualdades historicamente impostas a determinados grupos sociais" (Munanga &
Gomes, 2006, p. 186).
Para Antônio Sérgio Alfredo Guimarães (2012) “as políticas de ações afirmativas
têm por objetivo promover o acesso (e a permanência) à educação, ao emprego
e aos serviços sociais em geral de membros de grupos estigmatizados e sujeitos

3 A SEPPIR foi vinculada ao Ministério dos Direitos Humanos, nasceu do reconhecimento das
lutas históricas do Movimento Negro Brasileiro. Foi criada por medida provisória em 21 de março de
2003, data em que é celebrado o Dia Internacional pela Eliminação da Discriminação Racial, instituído
pela Organização das Nações Unidas (ONU) em memória do Massacre de Sharperville, quando 69 pes-
soas negras foram assassinadas durante manifestação pacífica na África do Sul em 1960.

498 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
a preconceitos e discriminações”. Elas possibilitam “assegurar oportunidades de
recrutamento e acesso, através de tratamento preferencial ou mesmo no estabe-
lecimento de cotas para membros desses grupos” (Guimarães, 2012, p. 113).

ACHADOS DA PESQUISA
Na perspectiva de identificar os resultados da implementação da política de
ações afirmativas, realizamos o Mapeamento do Quantitativo dos Estudantes Ne-
gros, que ingressaram pelo sistema de reserva de vagas de corte racial no período
de 2013 a 2018. A partir do mapeamento, aferimos que no período, 484 estudantes
ingressaram a partir da reserva de vagas de corte racial, ou seja, se autodeclararam
pretos e pardos. Dentre eles, 279 estudantes pertencem ao grupo 1-A que possui
renda familiar bruta mensal per capita de até um salário mínimo e meio, e 205 per-
tencem ao grupo 2-A, formado pelos também autodeclarados pretos e pardos, mas
sem comprovação de renda. Os dados revelam que ocorreu um aumento gradativo
na inserção de estudantes negros a partir da implementação da política de reserva
de vagas de corte racial, conforme reza o Artigo 8º da Lei n° 12.711/2012.4
Na pesquisa as referências que destacamos configuram achados e pistas que
nos permitiram apresentar o que definimos como os três eixos das ações afirmati-
vas na educação, a partir da institucionalização de aportes jurídicos e normas que
as legitimam nas instituições federais de educação. O primeiro eixo da ação afir-
mativa está configurado na implementação da Lei nº 12.711/2012, que possibilita
o acesso através da reserva de vagas de corte racial e social, constitui defesa de di-
reito e oportunidades, objetiva reverter à representação negativa dos negros, pro-
mover à igualdade racial e incentivo aos estudantes negros para o acesso às vagas
nas instituições federais de educação (ensino médio e superior). O segundo eixo da
ação afirmativa está configurado nos aportes Lei nº 10.639/2003 que alterou a Lei
nº 9.394/96 e institui no currículo oficial a obrigatoriedade do Ensino da História
e Cultura Africana e Afro-brasileira, e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais. A ação tem o objetivo de reverter à repre-
sentação negativa dos negros, ao resgatar sua história, cultura e conhecimento e
assim, combater o racismo e a discriminação. E o terceiro eixo da ação afirmativa
está configurado na institucionalização do Decreto nº 7.234/2010, que institui a
assistência estudantil e outras estratégias que objetivam garantir a permanência.
Nesse eixo a ação afirmativa configura uma política social de priorização, e tem
como característica a seleção de um determinado público para ser alvo de uma
ação de transferência de renda (auxílios) e outros serviços e benefícios. Nas narra-
tivas dos estudantes, buscamos identificar como a efetivação dos três eixos pode
contribuir no processo formativo.

4 As Listas de estudantes foram fornecidas pela Secretaria de Ensino Médio Técnico do Campus
Rio de Janeiro/IFRJ após solicitação formal, para constituírem parte da pesquisa de campo.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 499


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
AS NARRATIVAS DOS ESTUDANTES NEGROS
A emergência em dar visibilidade as percepções dos estudantes negros sobres
suas trajetórias e vivencias quanto a implementação dos eixos das ações afirmati-
vas na educação, pode contribuir para avaliarmos os limites, possibilidades e de-
safios da implementação dessas políticas. Elas revelam aquilo que os olhos e as
vivências alcançam a partir do lugar que ocupam.
Nos procedimentos metodológicos da pesquisa, realizamos abordagens diretas
com os estudantes, utilizando dois instrumentos para a coleta de dados: Ficha de
Identificação e o Roteiro de Entrevista. Esses instrumentos possibilitaram a apre-
ensão das maneiras de agir, pensar e sentir dos sujeitos da pesquisa. E na escolha
de nomes fictícios para representar os entrevistados, fomos motivadas a realizar
uma viagem no tempo, e identificar uma forma de homenagear os estudantes. A
viagem, nos levou às escavações dos pesquisadores Munanga e Gomes, que nos re-
velaram que "todos os africanos levados para o Brasil, o foram através da rota tran-
satlântica, envolvendo povos de três regiões geográficas", e destacam: África Oci-
dental, África Centro-Ocidental e África-austral (Munanga & Gomes, 2010, p. 205).
O conhecimento das regiões geográficas de onde foram sequestrados africanos e
africanas, e trazidos para o Brasil, contribui para a busca por conhecimentos sobre
a história, cultura e as vivências nas áreas política, religiosa, filosófica e tradições.6

PERSPECTIVA DOS ESTUDANTES ACERCA DO EIXO AÇÃO


AFIRMATIVA DE ACESSO POR RESERVA DE VAGAS DE CORTE
RACIAL: LEI Nº 12.711/2012
Ao perguntarmos sobre as percepções dos entrevistados acerca da inserção de
estudantes pretos e pardos (negros) na educação, através da política de reserva de
vagas, obtivemos as seguintes respostas:

5 Conforme os estudos de Munanga e Gomes (2010), temos: na África Ocidental, Senegal,


Mali, Niger, Nigéria, Gana, Togo, Benin, Costa do Marfim, Guiné Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Ver-
de, Guiné, Camarões; África Centro-Ocidental, povos do Gabão, Angola, República do Congo, República
Democrática do Congo (antigo Zaire), República Centro-Africana e, África-austral, povos de Moçambi-
que, da África do Sul e da Namíbia.
6 A pesquisa sobre os nomes foi realizada no site do Geledés. Disponível em: https://www.
geledes.org.br/significados-dos- nomes-proprios-africanos.
TABELA 1 - POLÍTICA DE RESERVA DE VAGAS DE CORTE RACIAL

POLÍTICA DE RESERVA DE VAGAS COTAS PARA PRETOS E PARDOS FREQUÊNCIA

Importante 5

Obrigatória 3

Oportunidade para as pessoas negras 2

Reparação da dívida histórica devido ao assado escravista 2

Necessária para igualar oportunidades 3

Reconhecimento desse auxílio para o negro 1

Eu tenho que ter o direito de estudar, importante 1

Contribuição para a sociedade 1

Facilita o acesso dos estudantes negros 1

trazer uma maior diversidade 1

Política de cotas e de permanência se fazem necessárias 1

Ter mais jovens negros na universidade e fora do crime 1

Aumentar o conhecimento da população negra 1

Eu acho muito bom mesmo 1


Fonte: Entrevistas realizadas com os Estudantes (2019)

No quadro acima observamos que as percepções sobre a ação afirmativa de


acesso por reserva de vagas de corte racial ou cotas é percebida como fundamen-
tal, importante e de que a política é uma "oportunidade de ingresso, forma de
reparação da dívida histórica e necessária".
Fragmentos dessas narrativas, traduzem desejos de alteração da realidade,
entendendo a escolarização e formação profissional como caminhos que podem
oportunizar a mobilidade social. Identificamos a defesa da política de cotas de cor-
te racial no ensino público de formação técnica e nas universidades, como forma de
acesso a conhecimentos e formação que oportuniza a ocupação de lugares outros,
a mobilidade e ascensão social a partir de uma qualificação. Observamos ainda que
está no centro da política de reserva de vagas de corte racial, a representação do
negro nos espaços de saber e poder, o que pode contribuir para que se constituam
como referência para outros negros.
Está presente nas narrativas, a vivência de uma formação caracterizada como
de "base fraca" ou insuficiente e a busca por cursos preparatórios para participa-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 501


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ção nos processos seletivos de ingresso. Outro aspecto é o da convivência com
estudantes que vieram de escolas particulares, que ofertam um conteúdo mais
abrangente comparado às escolas municipais. Temos ainda as percepções sobre
os privilégios da brancura, quando destacam as desigualdades de oportunidades:
"a gente não tem as mesmas oportunidades, às vezes, do que pessoas brancas"
(Entrevistado Chinua, masculino,19 anos).
O entrevistado Chinua traz o reconhecimento das desvantagens dos estudantes
negros ao destacarem os privilégios e garantias acumuladas pela branquidade, que
acessa escolas privadas que disponibilizam o ensino com melhores investimentos e
recursos. Ressalta-se ainda as percepções sobre a importância desta política como
direito, estratégia de democratização do acesso, e que a mesma precisa ser mais
divulgada e ampliada. Foi possível perceber que para os estudantes, a escola re-
presenta uma trajetória obrigatória para realizar algum tipo de mobilidade social.
A busca pela formação e pelo diploma representa, para as famílias de classes po-
pulares - negras, pobres - e médias, a possibilidade de acesso a melhores salários,
aquisição de conhecimentos, mobilidade e reconhecimento social.

PERSPECTIVA DOS ESTUDANTES ACERCA DO EIXO


AÇÕES AFIRMATIVAS DE EDUCAÇÃO: LEI N° 10.639/2003
E DIRETRIZES CURRICULARES PARA A EDUCAÇÃO DAS
RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Interessa-nos aqui destacar como o eixo da educação para as relações étnico-
-raciais se materializa no cotidiano do espaço institucional. Ao perguntarmos aos
entrevistados se a instituição realiza ou já realizou debates e aulas sobre as ques-
tões étnico-raciais, apresentamos temáticas que poderiam ter sido desenvolvidas
e estarem alinhadas aos aportes e marcos jurídicos. Para isto apresentamos os des-
critores abaixo, a serem apontados por livre escolha dos entrevistados. No quadro
abaixo apresentamos os resultados das percepções dos entrevistados:

TABELA 2 - TEMÁTICAS DESENVOLVIDAS

TEMAS FREQUÊNCIA

Racismo 19

Desigualdades Raciais 18

Movimento Negro 16

Mulheres Negras 15

Gênero e etnia 15

Educação e questão racial 15


História dos Afro-Brasileiros 12

História da África 11
Fonte: Entrevistas realizadas com os Estudantes (2019).

As respostas dos estudantes apresentam pistas, de que houveram avanços ins-


titucionais no campo da educação étnico-racial. A expressiva frequência da temá-
tica do racismo na narrativa dos 19 entrevistados, denota a experiência de estudos
e debates quer seja na sala de aula, quer seja nos espaços de vivencias em grupos
ou coletivos no âmbito escolar.
Entendemos o racismo como uma rede complexa de atitudes e ações sociais
centradas no uso político das ideias sobre raça, diferenças, inferioridades e supe-
rioridades para discriminar negativamente um determinado grupo social. O racis-
mo parte da suposição irracional da superioridade de um grupo racial sobre outro.
É a crença de que determinado grupo possui defeitos de ordem moral e intelectu-
al próprios. A educação antirracista demanda o envolvimento comprometido dos
agentes da educação, articulando ensino, pesquisa e extensão, e busca de novas
epistemologias para uma educação afrocentrada.
Na sequência temos as desigualdades raciais, e o estudo deste tema é funda-
mental para uma análise e conhecimento crítico acerca da realidade Brasileira.
Sobre o tema temos as contribuições da socióloga Rosana Heringer (2002), para
quem “as desigualdades raciais, ao afetarem a capacidade de inserção dos negros
na sociedade brasileira, comprometem o projeto de construção de um país demo-
crático e com oportunidades iguais para todos” (Heringer, 2002, p. 57).
A terceira temática é a do MN, que ganha destaque com seu protagonismo no
combate às desigualdades, o racismo e na defesa das políticas de ações afirmativas
no Brasil. Ao denunciar as desigualdades e propor políticas públicas, o MN contri-
bui para beneficiar a toda a população em situação de pobreza no país. E nesse
alinhamento temos também as lutas do Movimento de Mulheres Negras, que ga-
nham destaque nas narrativas dos entrevistados, assim como a temática Gênero e
Etnia. Ao estudar ou debater em grupos e coletivos estas temáticas, os estudantes
estabelecem aproximações e vivencias com questões e temas que estão na ordem
do tempo presente, e que configuram o que Miranda e Silva definem como “de-
mandas e urgências interseccionais” (2015, p. 631). Para as autoras a interseccio-
nalidade é uma categoria teórica que focaliza múltiplos sistemas de opressão, em
particular, articulando raça, gênero e classe. É o estudo da sobreposição ou inter-
secção de identidades sociais e sistemas relacionados de opressão, dominação ou
discriminação. Outro tema foi o da Educação e
Questão Racial. Reconhecendo que a escola contribui na produção de conheci-
mentos, e se apresenta como mais um espaço privilegiado para o desenvolvimento
de diálogos, a educação e a questão racial se apresentam nas narrativas dos es-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 503


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
tudantes através de diferentes temáticas: racismo, discriminação, desigualdades
raciais, preconceitos, políticas de ações afirmativas e outros.
Já as temáticas História dos Afro-Brasileiros e História da África, também es-
tudadas, exigem mais investimentos. Entendemos com essa aferição que se faz
necessário avançar no estudo e desenvolvimento de temáticas que estão na cen-
tralidade da Lei n° 10.639/2003, e das Diretrizes Curriculares Nacionais para a Edu-
cação das Relações Étnico-Raciais.

PERSPECTIVA DOS ESTUDANTES ACERCA DO EIXO DE AÇÕES


AFIRMATIVAS DE PERMANÊNCIA: DECRETO Nº 7.234/2010 E
OUTRAS ESTRATÉGIAS
As narrativas dos estudantes sobre a implementação do Programa de Assis-
tência Estudantil (PAE), instituído no IFRJ, bem como de outras estratégias que
contribuem para a permanência, possibilitam aproximações com as realidades vi-
venciadas.7 O PAE é um programa que tem caráter seletivo, sendo destinado prio-
ritariamente a estudantes de baixa renda. Um dos critérios à participação no pro-
grama é que o estudante deve comprovar a renda familiar per capita não superior
a 1,5 salário mínimo.8
Dentre os objetivos, propõe democratizar as condições de permanência dos jo-
vens na educação, minimizar os efeitos das desigualdades sociais e regionais na
permanência e conclusão da educação, reduzir as taxas de retenção e evasão e
contribuir para a promoção da inclusão social pela educação. No grupo de 19 en-
trevistados, identificamos que 14 acessaram o programa e 05 não acessaram. Dos
estudantes que acessaram temos a seguinte configuração de acesso, modalidades
de auxílios e dos valores recebidos:

TABELA 3 - RENDA PER CAPITA FAMILIAR E AUXÍLIOS RECEBIDOS

ESTUDANTES RENDA PER CAPITA AUXÍLIOS

Ashanti 0,00 Alimentação, didático e emergencial

Bakari 150,00 Alimentação

Akilah 200,00 Alimentação

7 No IFRJ, instituição de educação que oferta ensino nos níveis médio e superior, o PNAES foi
efetivamente implementado através do Programa de Assistência Estudantil (PAE), que constitui um
programa de alocação de recursos financeiros a estudantes que comprovem situação de vulnerabilida-
de socioeconômica.
8 O estabelecimento da renda per capita de até 1,5 salário mínimo como indicativo de vulne-
rabilidade socioeconômica está fundamentado no Art. 50 do Decreto nº 7.234/2010, que regulamenta
o PNAES (BRASIL, 2010).
Aisha 263,00 Alimentação, didático

Tsehai 293,00 Emergencial, Alimentação, didático,

Terehasa 300,00 Alimentação

Anaya 450,00 Alimentação

Uruhu 490,00 Alimentação e didático

Berta 500,00 Didático, transporte e alimentação

Wub 500,00 Didático e alimentação

Amina 600,00 Alimentação

Akil 625,00 Alimentação e transporte

Sushaunna 950,00 Alimentação

Adjatay 1.125,00 Alimentação


Fonte: Ficha de identificação do Entrevistado (2019).

No programa, o auxílio didático é fornecido em apenas uma parcela para gastos


com material, e o auxílio transporte é fornecido para os estudantes que compro-
vam a existência dessa demanda, por utilizar transporte alternativo ou o tipo de
transporte não permita o uso do cartão RIOCARD. Ao indagarmos sobre as contri-
buições percebidas a partir do acesso aos auxílios do PAE, os estudantes expressa-
ram as seguintes percepções: dos 19 entrevistados, 12 destacaram a contribuição
no gasto com alimentação (almoço e ou lanche), e na sequência temos as percep-
ções que vincularam a contribuição para a permanência na instituição e no gasto
com material escolar (cópia de apostilas, impres são de trabalhos, óculos, luvas,
uniformes, etc.). Além disso apresentam as despesas com lazer, moradia, visitas
técnicas e saúde. Entendemos que estas despesas configuram necessidades bási-
cas no cotidiano do processo formativo, e de vida.
Ao apresentarem que o acesso aos auxílios “ajuda na despesa familiar” e na
"redução dos gastos dos pais", percebemos que os auxílios assumem importância
na composição do orçamento familiar, que já é insuficiente, dadas as constatações
da apuração da renda familiar per capita. As narrativas põem em evidência as for-
mas de utilização dos auxílios pelos estudantes, bem como respondem aos gastos
com as demandas básicas do cotidiano. Terehasa destaca a contribuição para a
alimentação, o material escolar, e a desoneração dos gastos da mãe com a estu-
dante. As percepções nos revelam a importância do acesso ao auxílio permanência
nas vivências dos estudantes, e que configuram oportunidade para a permanência.
Observamos nas narrativas dos estudantes do Ensino Médio Técnico Integrado,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 505


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
um cotidiano semelhante aos dos estudantes universitários, onde são desafiados a
assumirem diferentes responsabilidades na administração do processo formativo,
como: participação em grupos e coletivos; editais para inserção no PAE; processos
seletivos para monitorias, projetos de pesquisa, extensão e estágio etc. Além da
implementação do PAE, identificamos as estratégias que motivam ou possibilitam
a permanência dos estudantes, e são ofertadas nas instituições de educação, tais
como: monitorias9, bolsas de pesquisa, bolsas de extensão, estágio remunerado
etc. O ingresso dos estudantes nas atividades ocorre por diferentes motivações e
de diferentes formas. Algumas vezes são divulgados processos seletivos, em outras
os professores convidam estudantes para a inserção. Em relação a participação
dos entrevistados nas estratégias de permanência em questão, identificamos que
dos 19 entrevistados, 6 afirmaram ter participado. Na realidade, configuram mais
uma oportunidade de acesso a renda (bolsas) e na apropriação de conhecimentos.
As monitorias ofertadas ao longo dos anos que antecederam a implementação do
PAE, possibilitaram a inclusão de estudantes que apresentaram demanda socioe-
conômica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Compreendemos que, a implementação de políticas de ações afirmativas vi-
sando a democratização do acesso e permanência de estudantes negros, requer
um acompanhamento e avaliação das situações que emergem no cotidiano dos
espaços de formação. Na atualidade, somos chamados a refletir sobre os achados e
pistas que emergem das experiências acumuladas pelos estudantes que vivenciam
as políticas de ações afirmativas, na medida em que estas, e as novas gerações de
estudantes negros e negras que vêm ingressando todos os anos nas escolas e uni-
versidades, demandam esforços e respostas no processo de construção de uma so-
ciedade mais justa, com igualdade de oportunidades de acesso, de saber e de ser.
As entrevistas indicaram a emergência de considerarmos as vivencias e refle-
xões presentes nas narrativas dos estudantes negros, fortalecer as estratégias de
protagonismo e buscarmos nos espaços de formação - escolas e universidades -
respostas para as demandas e pautas, considerando as possibilidades criadas a
partir das políticas de ações afirmativas.

9 A monitoria é uma atividade remunerada e pode ser realizada nos laboratórios ou na biblio-
teca do campus, possibilitando um aprendizado, ou ainda como monitoria acadêmica, ofertada para
esclarecimentos de dúvidas das disciplinas de matemática, física e química. Essas atividades são super-
visionadas por servidores técnicos e por professores.

506 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
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p.145- 156, jul. 2010.]
AUTORIA
Maria Aparecida Miranda
Afiliação institucional: Assistente Social que integra o quadro de servidoras do Ins-
tituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ) – Campus
Rio de Janeiro.
Estudante do Programa de Pós-Graduação em Serviço Social da Pontifícia Universi-
dade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Bolsista CAPES – bolsa taxa.
E-mail: cidamiranda.miranda@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3086-4307
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1928249929738128

508 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A LUTA É DE CLASSE OU DE RAÇA?
Bruna Tainá Rodrigues

“O escravizado que ainda mora em mim


tem muito a dizer”
Carla Akotirene

INTRODUÇÃO
Neste trabalho busca-se compreender as dicotomias existentes entre raça e
classe. Através de um olhar que não pretende mais pautar um mundo baseado na
raça branca e universal que se encontra no norte global, o presente trabalho busca
construir novas travessias acerca de raça e classe. O artigo começa com um dialogo
entre Denise Ferreira da Silva e Frantz Fanon que atraves do mythos e do logos
nos permitem compreender um problema que para ambos é muito importante a
descolonização do sujeito negro, é no subconsciente que está guardada a chave
que pode libertar o homem de cor de si próprio. A segunda parte, trata da luta de
classes e as relações raciais. Wilderson discorre sobre as limitações do discurso
marxista em face do sujeito negro, segundo ele explica, existe um antagonismo
que coloca o branco como universal e o capitalismo como a única variável na com-
posição de relações sociais/subjetividades. Assim, o sujeito negro está revelando
a incapacidade do marxismo de pensar a raça branca localizada no norte global
como a base de toda a estrutura, pois, ela é tanto o sujeito privilegiado do discurso
marxista ―o subalterno que recebe um salário - quanto aquele que é detentor do
capital e que paga esse salário. A última parte do trabalho traz um questionamento
que pode ser ainda mais polêmico. Existe luta de classes quando já sabemos quem
será o ganhador? Nota-se que existe uma manutenção da estrutura de poder e
acredita-se também neste trabalho que o conceito de classe, que veio do ocidente
e se universalizou, não consegue dar conta de um dos grupos raciais existentes―a
raça negra. Se teorias hegemônicas universais são incapazes de possibilitar direitos
aos operários que tudo produzem e nada pertence, imagine para a diáspora que
não possui liberdade econômica, social e cultural.

APORTE TEÓRICO
Aimé Césaire em O discurso sobre o colonialismo (1978) vai dizer que “a verdade
é que a civilização dita europeia, a civilização ocidental, é incapaz de resolver os
dois problemas maiores a que a sua existência deu origem: o problema do proleta-
riado e o problema colonial. Achille Mbembe em Necropolítica: biopoder soberania

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 509


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
estado de exceção política da morte escreve que a expressão máxima da soberania
vai dizer quem pode viver e quem pode morrer. Assim pretende-se denunciar a au-
toridade da branquitude, desconstruir a ideia da diferença absoluta e essencial do
homem negro e mostrar as diferenças da escravidão assalariada para com a escra-
vidão não remunerada. Sueli Carneiro vai dizer que o racismo epistêmico permite
“A construção do outro” como não-ser como fundamento do ser e pretendemos
analisar como esse processo se dá. As indagações da sociologa Denise Ferreira da
Silva, do psiquiatra Frantz Fanon e do escritor Frank Wilderson III formam a prin-
cipal fonte para o aporte teórico deste artigo. A partir desses autores busca-se
desenvolver novas travessias a cerca de raça, classe e subconsciente.

1. AS CONTRADIÇÕES DA RAÇA
Denise Ferreira da Silva nos faz perguntas que são capazes de nos levar a mui-
tos lugares seja pela sua urgência, seja pela impaciência existente na socióloga e
em cada corpo que também é vítima. Ela começa perguntando ainda nos anos 80
porque as mortes de pessoas negras na maioria jovens nas mãos dos agentes do
Estado de aplicação de lei a polícia ou as que são justificados nas cortes de justiça
que se acham justas no momento de julgamento, porque essas mortes não causam
uma crítica ética, uma inflexão moral na sociedade? Porquê nós aceitamos essas
mortes e não fala porque?
Frantz Fanon em Pele Negra Máscaras Brancas (2008) vai dizer que “para o ne-
gro, há apenas um destino. E ele é branco.” (Fanon, 2008, p. 28). O autor ainda
afirma que:

“a verdadeira desalienação do negro implica uma súbita tomada


de consciência das realidades econômicas e sociais. Só há com-
plexo de inferioridade após um duplo processo: — inicialmente
econômico; — em seguida pela interiorização, ou melhor, pela
epidermização dessa inferioridade.” (Fanon, 2008, p. 28)

O problema para Fanon era muito importante: o negro é um homem negro e


isso o coloca refém de si próprio, a alternativa é curá-lo de si, o impedimento: o ho-
mem branco. Nos anos 90 surge a segunda pergunta qual é o papel da racialidade
que é um arsenal governado pelo conceito do racial a racionalidade que é essa ideia
de diferença humana e que foi produzida pelo pensamento moderno, o que é que
ela permite e o que é que ela impede e porque ela continua tão efetiva depois de
mais de cem anos de rejeição da categoria de raça e mais de cem anos de denúncia
da subjugação racial? A engenhosidade deste trabalho nos permite afirmar que
o homem afrakano e o homem ocidental não podem ser iguais, nenhum homem
pode. Não pretendemos aqui reforçar a ideia1 de que raça é um constituidor de

1 Retirado do trabalho de conclusão de curso “O Desenvolvimento Econômico a Partir da Ótica

510 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
subjetividades dos sujeitos, Fanon tenta desconstruir a ideia da diferença absoluta
e essencial do homem negro, portanto não estamos falando da diferença humana
produzida pelo pensamento moderno que inferioriza tudo que é diferente dele.
Estamos falando de formas de ver e estar no mundo. A filósofa Katiuscia Ribeiro no
curso de Filosofia Africana afirma que o europeu cria a individualidade e o egoísmo
aquilo que nasceu do EU, EU, EU tem permissão para destruir tudo que for diferen-
te dele. Ferreira da Silva (2019) escreve que o colono, pela política, em nome da
civilização, declara brutalidades, e nós sabemos que a conquista de sua ética é
em nome da destruição. O racismo epistêmico permite segundo Sueli Carneiro “A
construção do outro” como não-ser como fundamento do ser.
Para a filosofia africana matéria e espírito estão colados, portanto, nesta escre-
vivência não será diferente. Frantz Fanon (2008) acreditava que o homem é um
sim vibrando com as harmonias cósmicas. Na cultura Yorubá2 os 16 Orixás tem seus
respectivos domínios, e a Yemonja é dado o domínio do transe, meditação, sonhos
e autoprogramação. Obaluaê o senhor da saúde também é uma divindade que
pode estar ligada ao subconsciente. Compreender Yemonja e Obaluaê é compre-
ender o caminho saudável do transe para o subconsciente. Segundo Zaus Kush um
dos principais problemas que enfrentamos hoje é a má compreensão da diferença
entre nossa mente consciente e nossa mente subconsciente. Nossos Ancestrais
mais sábios tentam nos explicar a Ciência através de Divindades.

“O homem não é apenas possibilidade de recomeço, de nega-


ção. Se é verdade que a consciência é atividade transcendental,
devemos saber também que essa transcendência é assolada
pelo problema do amor e da compreensão.” (FANON, 2008, p.
26)

É no subconsciente que está guardada a chave que pode liberar o homem de cor
de si próprio, a mente consciente não é mais poderosa que o subconsciente. Pérola
Njiwa no artigo Sobre imagem, auto imagem e subconsciente publicado na revista
Òkòtó em 2019, diz que o surgimento dos Europeus, ou pessoas brancas, como os
detentores de poder do mundo e sua habilidade em convencer milhões de pessoas
de que esse é o jeito que as coisas deveriam ser é o maior milagre propagandís-
tico da história3. A raça branca é especialista em programar secretamente nossas
mentes afirma Zaus Kush, que diz ainda ser essa programação secreta a razão pela
qual os negros adoram subconscientemente os brancos, o materialismo branco, a
autoridade branca, mesmo que conscientemente os reconheçamos como perigo-
sos. É por isso que, mesmo quando matam nossos filhos inocentes, nunca paramos
de nos submeter a eles. Eles conquistaram nosso poder subconsciente através das
imagens, sejam elas imagens religiosas ou imagens de holywood. A racialidade per-

Negra: Um Olhar Racializado da Formação Econômica do Brasil.” RODRIGUES, Bruna Tainá, 2019.
2 Reprodução por Zaus Kush do original em IFA: Yoruba Scientific Spirituality.
3 Trecho retirado do texto escrito por Zaus Kush.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 511


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
mite que a racionalidade daquele que pensa cartesianamente seja aceita e respei-
tada, o racismo então se alimenta disso. Se não penso cartesianamente logo não
existo.

2. A LUTA DE CLASSE E AS RELAÇÕES RACIAIS


Segundo Erick Kayser (20l9) o termo proletariado vem do latim, na Roma antiga,
“proletarii” e significa cidadãos da classe social mais baixa, que não detinham pro-
priedades e que para o Estado sua única utilidade era o de gerar filhos para o exér-
cito imperial. Marx no século XIX vai utilizar o termo proletariado para designar
aqueles que também não detinham propriedades, a única coisa que que tinham
era sua força de trabalho. Contudo o termo proletariado ressignificado por Marx
nem sempre esteve associado diretamente ao operário e sim aos trabalhadores das
sociedades capitalista, os trabalhadores assalariados.
Frank Wilderson III (2003) com o artigo Marx negro de Gramsci: para onde o
escravo na sociedade civil? Traz reflexões sobre como tem sido a experiência negra
nos Estados Unidos, podendo na minha opinião ser estendida para a experiência
que os corpos negros têm experimentado também no Brasil. Wilderson escreve
sobre as limitações do discurso marxista em face do sujeito negro, segundo ele ex-
plica, existe um antagonismo que coloca o branco como universal e o capitalismo
como a única saída, a percepção desses fatos sem véus pode levar a uma mobiliza-
ção em massa que causaria uma grande crise nas instituições, isso porque não só
os Estados Unidos como também o Brasil, foi construído sob a interseção de uma
matriz supremacista branca e capitalista.
O sujeito privilegiado do discurso marxista é um subalterno que está resguar-
dado por um capital variável ―o salário. O subalterno então está estruturado pelo
capital. Estando o subalterno estruturado pelo capital não é possível colocar a
abordagem da raça na problemática das classes sociais e luta de classes, isso por-
que “o marxismo assume um subalterno que é estruturado pelo capital, não pela
supremacia branca.” (Wilderson, 2003, p. 1)
Wilderson ainda diz que o pensamento crítico e a originalidade política do dis-
curso gramsciano nas categorias de trabalho, progresso, produção, exploração,
hegemonia e autoconsciência histórica, estão acompanhadas de uma “desarticula-
ção ontológica” quanto aos sujeitos deste discurso. Onde está o sujeito negro nos
Prison Notebooks [cadernos do cárcere] de Antonio Gramsci? Qual a posição do
sujeito negro nas categorias de sua teoria? Questiona o autor.
O marxismo gramsciano é capaz de pensar todas as suas categorias através de
um sujeito que é capaz de fornecer “formações de identidade antagônicas” que se
coloquem contra a exploração salarial e a exploração presente na hegemonia, mas
é incapaz de sistematizar ideias que confrontem a escravidão não remunerada.
Assim, o sujeito negro está revelando a incapacidade do marxismo de pensar a raça
branca localizada no norte global como a base de toda a estrutura pois ela é tanto

512 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
“o sujeito privilegiado do discurso marxista - o subalterno que recebe um salário”
(Wilderson, 2003, p. 1), quanto aquele que é detentor do capital e que paga esse
salário.
Não assumir que apenas uma raça ―a raça branca participa do jogo capital/
salário e patrão/empregado é não assumir raça como fator principal para que se
compreenda as nuances nada sutis do conceito de luta de classes impossibilitanto
que a raça negra se coloque no mundo. No Brasil isso se dá pelo fato da economia
escravista não remunerada4 não permitir que se estabeleça uma relação de pro-
dução e troca ―capitalista ou pré-capitalista, tornando o negro um não sujeito. A
base do materialismo histórico é exatamente a produção, que traz consigo a troca
de produtos que é a base de toda a organização social, Gramsci não percebe que
não é universal a aplicabilidade reivindicada em Prison Notebooks, pois somente a
raça branca poderá desfrutar da liberdade proposta. Não será possível a liberdade
econômica, social e cultural para a população negra enquanto insistirmos em nos
encaixarmos em ideias e dogmas que se dizem universais.
O desejo marxista de chegar ao socialismo e de democratização do trabalho nos
moldes que estão postas só faz “garantir a coerência dos valores "fundamentais"
da produtividade do progresso da Reforma e do Iluminismo” (Wilderson, 2003, p.
3), excluindo tudo que for diferente disso.
Reintroduzir a categoria impensada do escravo na formação do estado/capital é
criar um antagonismo sobre as ideias que estão propostas, como afirma Wilderson
2003 “o escravo faz uma demanda, que está em excesso da demanda feita pelo
trabalhador.”

“O trabalhador exige que a produtividade seja justa e democrá-


tica (a nova hegemonia de Gramsci, a ditadura do proletariado
de Lenin), o escravo, por outro lado, exige que a produção pare;
parar sem recorrer à sua democratização final.” (Wilderson,
2003, p. 8)

A escravidão não é central para Gramsci nem para Marx.

3. EXISTE LUTA DE CLASSES QUANDO JÁ SABEMOS QUEM


SERÁ O GANHADOR?
Piero Sraffa escreveu três artigos para o L´Ordine Nuovo em 1921, nestes arti-
gos Sraffa vai examinar como era a ação da burguesia capitalista sobre a classe ope-
rária, o artigo escrito por Maria de Mello Malta intitulado de Um comunista italia-
no na Marshall Library: a propósito de Piero Sraffa, nos mostra com um pouco mais
de profundidade a trajetória deste autor e questiona os motivos do seu trabalho

4 Retirado do trabalho de conclusão de curso “O Desenvolvimento Econômico a Partir da Ótica


Negra: Um Olhar Racializado da Formação Econômica do Brasil.” RODRIGUES, Bruna Tainá, 2019.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 513


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
“estar sendo excluído do corpo dos principais debates da história do pensamento
econômico” (Malta, 2012, p.1)
Em Londres, Sraffa estava motivado a conhecer a economia política inglesa, na-
quela época pelo pensamento Marshalliano, trabalhando com marxistas britânicos,
foi possível que Sraffa a partir da experiência inglesa e americana se aprofundar
nas dinâmicas das relações trabalhistas destes lugares. “O radicalismo crítico apre-
sentado pelo autor pode ser medido na frase “na terra que se costuma considerar
como terra da liberdade, até mesmo as mais elementares liberdades são negadas
a quem trabalha”. (Malta, 2012, p. 8)
Havia por parte dos industriais naquela época uma resistência muito grande
quanto a presença sindical nas indústrias. Sraffa vai denunciar a “violência exis-
tente na política inglesa contra as conquistas dos trabalhadores,” (Malta, p. 8) ele
também escreve sobre a “associação do governo com os patrões em detrimento
da classe trabalhadora”. O autor não acreditava que o Estado podia ser mediador
na luta de classes, a classe trabalhadora não detinha nenhum poder, ele vai dizer
que ela era:

“Incapaz de identificar a fraude sistematicamente perpetrada


em seu prejuízo, ainda não conseguiu livrar-se das ilusões sobre
a conciliação entre capital e trabalho e sobre a imparcialidade do
Governo: a reação industrial, na sua cegueira, contribuiu eficaz-
mente para o esclarecimento da consciência do proletariado”
(Sraffa, 1921b, apud Auletta, 2010, p.138). ” (Malta, 2012, p. 8)

O terceiro artigo publicado por Sraffa é o que me chama mais atenção o I “La-
bour Leaders” vai falar sobre os líderes dos movimentos de trabalhadores na Ingla-
terra, dando ênfase para os líderes dos sindicatos. “Sraffa expõe claramente uma
concepção das noções de classe e fração de classe típicas do pensamento marxis-
ta.” (Malta, 2012, p. 8):

“(…) são pequeno-burgueses estreitamente associados ao siste-


ma capitalista. Na hierarquia social, só são inferiores à grande
burguesia e esperam um dia poder superá-la. Para alcançar seu
objetivo, especulam com a força do proletariado e tentam chan-
tagear a grande burguesia fazendo-a entrever o espectro da re-
volução: mas assim que o espectro ameaça tomar corpo, ficam
aterrorizados com isso e se unem à burguesia para combatê-lo”
(Sraffa, 1921c, apud Auletta, 2010, p.140).” (Malta, 2012, p. 8)

Aimé Césaire em O discurso sobre o colonialismo (1978) vai dizer que “a verdade
é que a civilização dita “europeia”, a civilização ocidental, tal como a modelagem
dos dois séculos de regime burguês, é incapaz de resolver os dois problemas maio-
res a que a sua existência deu origem: o problema do proletariado e o problema
colonial; que, essa Europa acusada no tribunal da razão como no tribunal da cons-
ciência, se vê impotente para se justificar; e se refugia, cada vez mais, numa hipo-

514 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
crisia tanto mais odiosa quanto menos susceptível de ludibriar.” (Césaire, 1978, p.
6)
Assim fica uma outra grande questão Existe luta de classes quando já sabemos
quem será o ganhador? A resistência dos trabalhadores por todo mundo é louvá-
vel, entretanto, apesar dos direitos “básicos” adquiridos, aos operários que tudo
produzem nada pertence. Assim me questiono se a luta de classes de fato existiu,
ou se ela é mais uma das artimanhas do Estado burguês, para construir no subcons-
ciente dos indivíduos a ideia da existência de uma luta, mas que luta é essa que
favorece desde sua concepção apenas um dos grupos ―o dos patrões.

METODOLOGIA
A estratégia metodológica utilizada para elaboração deste trabalho parte do
método histórico estrutural e da noção de controvérsias. A utilização de elemen-
tos históricos permite que vá se construindo a partir de ideias já utilizadas, novas
formas de compreensão acerca de um tema. A história do pensamento econômico
é composta por diversas análises, cada qual formulada a partir de um lugar, de um
olhar, onde teoria e história seguem juntas para uma melhor compreensão, crítica
e analítica do tema trabalhado. Carla Curty e Maria Malta vão dizer que,

“―existem diversos métodos para abordar a história do pensa-


mento econômico (HPE). Um caminho é a partir da noção de
controvérsia. Tomando como referência o movimento histórico,
percebe-se que análises diferentes podem ser formuladas so-
bre o mesmo objeto, estas diferentes análises podem ser orga-
nizadas a partir de elementos ideológicos, políticos, teóricos e
sociais específicos, suscitando assim controvérsias em torno do
objeto em análise.” (CURTY e MALTA, 2019, p. 1)

OBJETIVOS DE PESQUISA
GERAL:
• Compreender as dicotomias existentes entre raça, classe e subconciente,
como a autoridade branca age sobre os corpos negros conciente e inconcien-
temente?

ESPECÍFICOS:
• Compreender como à exclusão capitalista da raça negra pode explicar a
violência letal contra estes ainda neste século.
• Construir um mundo que não esteja baseado na raça branca, universal que
se encontra no norte global.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 515


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
• Explicitar a categoria raça como uma categoria econômica conforme pro-
põe o professor José Fernando de Azevedo acerca das reflexões de Denise Fer-
reira da Silva, sendo essa categoria uma crítica a necroeconomia política.

RESULTADOS E ANÁLISE
A análise está no seu começo, entretanto podemos observar que a supremacia
branca esta sem respostas para o problema econômico, social e cultural. Confor-
me escreve Aimé Césaire em O discurso sobre o colonialismo (1978) “a verdade é
que a civilização dita europeia, a civilização ocidental, é incapaz de resolver os dois
problemas maiores a que a sua existência deu origem: o problema do proletariado
e o problema colonial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O conhecimento paralelo como afirma o sociólogo Marcos Romão é o único
caminho possível para tomar um conhecimento descolonizado em um mundo colo-
nial. A cosmopercepcão permitiu enxergar o anacronismo existente entre a classe
de Marx e classe tal como temos hoje em diáspora e concluímos que a escravidão
remunerada não possui similaridade com a escravidão não remunerada, logo a es-
pecificidade do homem branco não é igual a do homem negro. A classe de Marx
fere os ladinoamefricanos reforçando a manutenção das desigualdades. E se é que
existe luta de classe, em diáspora afrakana não poderá ser superada pela luta de
raça.

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AUTORIA
Bruna Tainá Rodrigues
Universidade Federal Fluminense
E-mail: brunarodrigues.ri@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0997328092737251

518 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
IMIGRAÇÃO HAITIANA, GARANTIA DE DIREITOS
E DISCRIMINAÇÃO: INTERSECÇÕES NA
DIÁSPORA CONTEMPORÂNEA

Thiago Luiz de Souza


Renata Waleska Pimenta
Luiz Herculano de S. Guilherme

INTRODUÇÃO
Um dos fenômenos sociais que marca o século XXI é o aumento do processo
migratório em escala mundial. Essas movimentações, também conhecidas como
diásporas contemporâneas, tem formado expressivas comunidades de imigrantes
que buscam melhores condições de vida e estabelecem novas configurações so-
ciais nos países “acolhedores”. A justificativa para o deslocamento de indivíduos
de seu país de origem para outras nações é, em sua maioria, a busca por melhores
condições econômicas, ou seja, o mercado de trabalho é o fator de atração que
encoraja essas pessoas. Todavia, o processo migratório não pode ser visto somente
pelo arcabouço econômico, afinal estamos nos referindo a cenários que tem como
atores centrais seres humanos. Assim, discutir o fenômeno imigratório por meio do
enfoque social e jurídico reveste-se de importância.
Esse contexto delineou-se no Brasil a partir da Lei nº 13.445 de maio de 2017
(Lei de Migração), segundo a qual o Estado brasileiro garante o acolhimento huma-
nitário dos imigrantes no território nacional. Todavia, se por um lado a legislação
ampara uma inserção desses sujeitos históricos de forma a garantir a dignidade
da vida humana, por outro a realidade se vê permeada por práticas e concepções
amparados no racismo estrutural que coloca os imigrantes em situações adversas
no que se refere à garantia dos seus direitos.
A presente pesquisa teve como objetivo compreender a realidade dos imigran-
tes haitianos tomando como recorte os que migraram para a região do Médio Vale
do Itajaí e foram estudantes do Instituto Federal de Santa Catarina, campus Gas-
par, no curso de Língua Portuguesa e Cultura Brasileira para Estrangeiros, a partir
de 2014. O estudo parte de uma análise sociojurídica, baseando-se numa análise
interdisciplinar sobre o tema por considerar a complexidade que envolve esse fe-
nômeno social.
No Haiti, país situado na América Central, mais exatamente na região do Caribe,
o movimento diaspórico em direção aos Estados Unidos e América Latina e, nesta
análise principalmente o Brasil, foi intensificado após o terremoto de 2010, ainda
que não seja este o seu único motivador. Mesmo que a imigração de haitianos no
Brasil seja uma realidade desde o século XX, devido a questões de ordem econô-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 519


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
mica e política vivenciadas por eles, houve um aumento significativo após 2010,
com o terremoto que abalou o país, acarretando um cenário de extrema pobreza
e violência que potencializou as vulnerabilidades desta nação. No sul do Brasil, es-
pecificamente na região do Médio Vale do rio Itajaí-Açu, a presença de imigrantes
haitianos, ainda que existente desde 2011, torna-se mais perceptível a partir de
2013 (MAGALHÃES; BENINGER, 2016).
No município de Gaspar, a partir de 2013, observa-se o aumento expressivo
de grupos recém-imigrados de haitianos e assim surgem inúmeras demandas por
políticas públicas que garantam sua inclusão na sociedade, bem como qualidade
de vida e, consequentemente, acesso ao trabalho, lazer, escola, saúde e políticas
de assistência social. Todavia, o desafio da inclusão já se verifica no atendimento
a essa população nos órgãos públicos que, para além das barreiras linguísticas,
também apresentam outras questões que dificultam o atendimento qualificado de
ausculta e o encaminhamento de ações.
Com o acesso garantido de permanência no território brasileiro, nos questiona-
mos como esses imigrantes estão se estabelecendo. De que maneira estão aces-
sando o bem público? De que forma estão se apropriando da cultura do trabalho,
inclusive no aspecto jurídico que ampara e protege o trabalhador? Por fim, como
é possível o processo de aculturamento sem o domínio do idioma? Somamos a
esses questionamentos a problemática do racismo estrutural, afinal, numa socie-
dade que se baseia na discriminação pela cor e que se ampara numa desigualdade
social naturalizada, entendemos o desafio para a garantia da inclusão social desses
imigrantes.

GARANTIAS DE DIREITOS AOS IMIGRANTES:


UM PANORAMA LEGAL
No intuito de avançar as discussões à luz do objetivo desta pesquisa, ques-
tiona-se de que forma os pressupostos legais acerca da garantia de direitos são
compreendidos quando o público a ser atendido são os imigrantes. É garantido
ao imigrante o acesso aos direitos sociais, amparado em tratados internacionais
ratificados pelo Brasil e previsto a todos que residem no Brasil através do artigo 6º,
205 e ss. da Constituição Federal de 1988. Os direitos sociais para José Afonso da
Silva (2015, p. 288-289):

(...) são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta


ou indiretamente, enunciadas em normas constitucionais, que
possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direi-
tos que tendem a realizar a igualização de situações sociais de-
siguais. São, portanto, direitos que se ligam ao direito de igual-
dade.

520 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
À luz do princípio da isonomia, o Estado deve se organizar para efetivar os di-
reitos sociais, inclusive o atendimento aos imigrantes. Sendo estes exigíveis e de
aplicabilidade imediata, inclusive com tutela do judiciário para garanti-lo.
Conforme apontado anteriormente, no Brasil está em vigor a Lei n. 13.445/2017,
conhecida como a nova Lei de Migrações, que focaliza as migrações no Brasil sob
a ótica dos Direitos Humanos. Desde 1980 até o advento da Lei de Migrações, vi-
gorava o antiquado estatuto do Estrangeiro, Lei n. 6.815/1980, criado no período
da ditadura militar, objetivava a preservação da segurança nacional e antevia na
imagem do imigrante uma ameaça à nação.
Com o advento da Constituição Cidadã de 1988, e seus princípios que contem-
plam a centralidade da dignidade da pessoa humana, em uma sociedade “sem
preconceitos de origem, raça, seco, cor, idade, e quaisquer outras formas de dis-
criminação” (CF, art. 3º, IV), os ditames da Lei 6.815/80 se tornam obsoletos, pois
o movimento jurídico consolidado pela carta magna brasileira de 1988 era de pre-
valência dos Direitos Humanos enquanto o estatuto do Estrangeiro tinha um viés
autoritário e nacionalista.
Rodrigues e Pereira (2017), analisando o Estatuto do Estrangeiro relacionando-
-o com a Constituição de 1988 e a necessidade de atualização desta norma, obser-
vavam que:

O texto em vigor, portanto, não se coaduna com o incremento


dos fluxos migratórios e a presença cada vez maior de imigrantes
em território brasileiro, fenômeno que requer a devida atenção
e a adoção de posturas que tutelem e confiram efetividade aos
direitos humanos dos imigrantes em terras brasileiras por parte
dos poderes constituídos, inclusive o legislativo, para quem sur-
ge a responsabilidade de editar uma legislação condizente com
a realidade migratória atual.

Diante da emergente necessidade de tutela à luz dos direitos humanos aos mi-
grantes, em 24 de maio de 2017 com vacatio legis de 180 dias, foi instaurada a Lei
n. 133.445, a Lei de Migração, que direciona a política imigratória brasileira em di-
reção a corrente mundial de zelo pela dignidade humana e garantia e preservação
dos direitos fundamentais, contemplada pelo sistema internacional de proteção
dos direitos humanos.
Revogada a Lei 6.815 de 1980, os elementos trazidos pela nova legislação abor-
dam mais garantias aos migrantes, reconhecendo-os como sujeitos de direitos, e
passa a considerá-los com isonomia ante aos nacionais brasileiros.
Na Seção II da Lei de Migração, que normatiza os princípios e garantias que re-
gem a nova política migratória no Brasil. Percebemos que, já no primeiro inciso do
artigo 3º os princípios relacionados aos direitos do homem, àqueles denominados
fundamentais, são explanados. Desta forma a política migratória brasileira, passará
a ter como seu ditame basilar, a universalidade, a indivisibilidade, e a interdepen-
dência dos direitos humanos. Já no inciso II, demonstra que o Brasil não admitirá,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 521


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
e trabalhará para prevenir os crimes de xenofobia, racismo, e quaisquer formas de
discriminação direcionado aos migrantes, assim como para com os nacionais. Já no
artigo 4º da Lei em comento, são explanadas as garantias dos imigrantes em todo
o território nacional.
Importante salientar que nos incisos X, e XI do artigo 3º, e os incisos VIII, e X, do
artigo 4º, a previsão de igualdade de tratamento e de oportunidade ao migrante
em relação ao nacional, assim como o acesso igualitário e livre a serviços, pro-
gramas e benefícios sociais, bens públicos, educação, saúde, gera uma incerteza
em relação ao modo em que os imigrantes usufruirão destes direitos sendo que
a maioria não fala a língua portuguesa, muitos vêm com poucos documentos pes-
soais ou até mesmo sem documentos. Estes direitos apesar de previstos no texto
maior, e nesta legislação especial, requerem que a pessoa tenha uma certa profi-
ciência de inserção social.
De fato, a Lei de Migração trouxe mais amparos legais aos imigrantes, atuali-
zando o Brasil à contemporaneidade do tratamento aos migrantes, inovando em
positivar a acolhida humanitária, a prevenção e repúdio às práticas xenofóbicas,
discriminatórias e racistas, descriminalizando o imigrante irregular. Em efeito, con-
siderando o cenário internacional e as retrações de direitos dos migrantes, basta
pensar na Europa por exemplo, a nova Lei levou o Brasil à vanguarda mundial em
se tratando de legislações relacionadas ao imigrante e às migrações.

O DIREITO À EDUCAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE INCLUSÃO


SOCIAL E ACESSO AOS DEMAIS DIREITOS
Apesar de o Brasil ser destacado pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Refugiados (ACNUR) pelo trabalho desenvolvido na proteção internacional dos
refugiados, integrando, inclusive, o Comitê Executivo desta organização, e também
receber destaque a maneira como a nação brasileira estabeleceu as condições le-
gais para a vida dos imigrantes em solo brasileiro, ao estender as leis brasileiras aos
imigrantes, observa-se as dificuldades de materialização destes direitos. O direito
de estar no Brasil em igualdade de condições com os demais não é o suficiente para
que os imigrantes usufruam de serviços públicos em sua totalidade, ou acessem
algumas políticas, como por exemplo, a lei de cotas.
No Brasil verificamos que as ações de acolhimento dos imigrantes são organi-
zadas em nível estadual e municipal (SÃO BERNARDO, 2016, p.18-19). A ausência
de políticas públicas nacionais que amparem e garantam o acolhimento destes in-
divíduos e grupos estabelece um silêncio acerca das responsabilidades públicas. O
que observamos são ações locais, muitas vezes articuladas entre entidades como
instituições civis, públicas e religiosas, voltadas para o acolhimento dos imigrantes.
O imigrante, ao não dominar minimamente a língua do país que o acolhe, en-
contra obstáculos para expor suas dúvidas, solicitar esclarecimento e expor suas
necessidades. Essa dificuldade para estabelecer uma relação dialógica com o meio

522 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
social promove, por consequência, um impedimento de afirmação de sua própria
identidade cultural e da sua cidadania no novo país. Importante destacar que o
conceito de cidadania adotado nesta pesquisa está baseado nas ideias de Arendt
(1989) e se refere ao direito a ter direitos.
Neste contexto, a aquisição da língua passa a ser considerada uma etapa pri-
mordial enquanto forma de proporcionar a integração desses imigrantes à cultura
e estilo de vida do novo país. Foi a partir desta compreensão que o Instituto Fede-
ral de Santa Catarina (IFSC)1 inseriu a oferta de cursos voltados para os imigrantes
em campus distintos no estado.
A educação é um instrumento fundamental para a inclusão social. Freire (1967,
p.42), ao tratar sobre o homem e sua relação cultural, nos diz que “a sua integração
o enraiza”. O processo educacional que leva em conta a alfabetização na língua ma-
terna e/ou na língua da comunidade em que se insere o migrante, garante a inser-
ção e integração no meio social em que o indivíduo se encontra (SÃO BERNARDO,
2016, p.19). Ainda de acordo com a autora, a linguagem funciona como um vetor
que direciona os imigrantes para a inclusão social:

Nessa situação de imigração forçada, como a busca por refúgio,


aprender a língua do país de acolhimento favorece a inclusão so-
cial e profissional de imigrantes. Esse conhecimento gera maior
igualdade de oportunidades para todos, facilita o exercício da ci-
dadania e potencializa experiências enriquecedoras para quem
chega e quem acolhe. (SÃO BERNARDO, 2016, p.19)

Se é a linguagem a forma como o indivíduo se insere e se integra ao meio social,


podemos inferir que uma das grandes dificuldades encontradas pelos imigrantes
ao chegar em outro país que não tenha a mesma língua materna está justamente
na adaptação ao novo idioma.
Ao falar sobre aprender a língua do país acolhedor, Oliveira (2010, p.63) nos
diz que é “um importante meio de integração social por fornecer competências
essenciais ao nível dos contatos pessoais e sociais, do desempenho e evolução es-
colares e profissionais e da resolução de problemas do quotidiano”. Desta maneira,
o aprendizado da língua é um fator essencial para a realização da cidadania e da
inserção de forma efetiva.
O não domínio do idioma do país receptor faz com que o imigrante encontre
dificuldade de interagir socialmente. De acordo com Pereira (2017, p. 125), “ele
não consegue ou têm muitas dificuldades de demonstrar o que trouxe como ba-
gagem cultural e como consequência não pode se afirmar ao ‘outro’”. Quando se
trata da situação dos haitianos no contexto brasileiro, soma-se o preconceito e a
discriminação racial.

1 Para informações e acesso aos projetos pedagógicos de cursos aprovados pelo Conselho
Superior do IFSC, vide: http://cs.ifsc.edu.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&i-
d=15&Itemid=83.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 523


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O ensino do português, enquanto língua de acolhimento, baseia-se nessa ideia
de uma educação que leva em consideração a pluralidade dos envolvidos: o que
aprende e o que ensina. Dessa relação ficam evidentes possíveis conflitos dadas as
múltiplas realidades envolvidas, todavia esse processo de aprendizado, enquanto
forma de acolhimento, estabelece um vínculo de diálogo e alteridade. O aprendiza-
do capaz de integrar e incluir ultrapassa a perspectiva educacional, pois é também
uma ação social e política. Isso porque proporciona condições para consumação de
outros direitos a partir de uma participação cidadã consciente e responsável.

PERFIL DO ESTUDANTE HAITIANO DO CURSO DE LÍNGUA


PORTUGUESA E CULTURA BRASILEIRA PARA ESTRANGEIROS
DO IFSC GASPAR
As aulas do curso de Português e Cultura Brasileira para Estrangeiros são or-
ganizadas a partir da compreensão educacional histórico-crítica. Na intenção de
compreender a realidade do grupo atendido, verificar como os imigrantes conce-
bem as concepções identitárias acerca de si mesmo, sobretudo da sua condição de
imigrante, são realidades atividades de ensino que exploram os discursos do grupo
e também são capazes de diagnosticar circunstâncias de aprendizados e também
a realidade em que estão imersos esses indivíduos. Nos casos dos imigrantes hai-
tianos atendidos pelo câmpus Gaspar do IFSC, o que se observa é a ânsia pelo
domínio da língua portuguesa enquanto forma de garantir melhoria na qualidade
de vida no Brasil.
As informações oriundas do questionário socioeconômico respondido pelos
estudantes imigrantes do curso demonstram que o público atendido é composto
por jovens adultos, com idade entre 24 e 35 anos, tanto do sexo masculino como
feminino. Em torno de 50% dos imigrantes são casados e tem filhos entre 1 e 12
anos, em idade escolar. Algumas dessas crianças (77,8%) estão matriculadas em
estabelecimentos de ensino públicos (educação infantil e fundamental 1), o que já
denota o acesso a uma política pública educacional.
Então, o que se observa não é o problema ao acesso aos estabelecimentos de
ensino, mas sim às condições de aprendizado dessas crianças uma vez que a equipe
pedagógica não está plenamente capacitada para atender esse público. Tanto que
o câmpus Gaspar do IFSC se viu na responsabilidade de também promover ações
de extensão/capacitação junto à rede municipal de assistência social e educação
de Blumenau e Gaspar no intuito de levar informações sobre a cultura e contexto
sociocultural dos imigrantes haitianos para os agentes públicos que atendem dia-
riamente esse público de imigrantes. Esses agentes públicos relatam a extrema
dificuldade de comunicação, orientação e compreensão das demandas em virtude
do não domínio do português por parte de muitos imigrantes. Assim, inferimos
que o acesso à política pública é impossibilitado ou ineficiente, tendo o português
como obstáculo.

524 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Ao serem questionados sobre a importância do aprendizado da língua portu-
guesa, os imigrantes revelam entusiasmo, sobretudo para melhor se comunicarem
em seus locais de trabalho e vislumbrar progressos na vida social, acadêmica e/ou
profissional. Porém, eles não associam diretamente a importância em aprender o
português enquanto forma de acesso a direitos. Entretanto, apesar de não fazerem
uma relação direta sobre essa necessidade, eles compreendem que o domínio do
português é primordial para um processo de inserção social efetivo.
Em relação ao tipo de serviço público utilizado por esse grupo de imigrantes,
observamos que o acesso à bolsa família e à educação são os serviços mais procu-
rados, superando a busca pela saúde pública. Esses dados revelam que o aprendi-
zado é o caminho desejado como forma de inserção social e condições de melhores
condições de vida, mas também nos leva ao questionamento sobre o conhecimen-
to dessa população a respeito do Sistema Único de Saúde.
A maior incidência para o acesso ao programa bolsa família parece lógico, uma
vez que muitos dos imigrantes estão desempregados, com muitas dificuldades de
acesso ao mercado de trabalho ou possuem uma renda mensal de até mil reais.
Nos dados apresentados não especifica se a renda mensal é per capita ou se diz
respeito ao valor da renda individual do estudante. De qualquer maneira, 50% dos
estudantes atendidos pelo IFSC possuem uma renda de até R$ 1.000,00, o que sig-
nifica uma condição social precária. Para parâmetros de análise, de acordo com os
dados do IBGE de 2018, o rendimento domiciliar per capita do brasileiro foi de R$
1373,00, sendo que no estado de Santa Catarina foi de R$ 1.660,00.
Muitos dos haitianos que migram para o Brasil com o objetivo de reconstruírem
suas vidas são qualificados profissionalmente, com formações técnicas e superior
e muitos com fluência em mais de três idiomas. Tal constatação revela que esses
imigrantes não são iletrados e sem preparo para o mercado de trabalho. Todavia,
ao serem empregados no Brasil, ocupam vagas de emprego que não são condizen-
tes com a sua formação e muitas vezes são explorados, inclusive com o descumpri-
mento de direitos trabalhistas (MORAES; ANDRADE; MATTOS, 2013, p.106). Essa
realidade pode ser compreendida a partir das concepções sobre e dos imigrantes
haitianos que estão pautadas em uma conjuntura histórica repleta de significações
advindas do choque cultural e a ausência de conhecimento do outro.
De acordo com SILVEIRA; PIMENTA; CORDEIRO (2016, p. 6), ao analisarem a
representação que perpassa o imaginário da população do Médio Vale do Itajaí
acerca dos imigrantes haitianos, apontam uma visão restrita aos elementos cultu-
rais remanescentes da colonização europeia que marcou a região.

[…] em Santa Catarina, no médio Vale do Itajaí, constituíram-se


municípios em que, em virtude da maneira como se efetivou
a colonização, foram cultivados valores e hábitos culturais que
implicam, contemporaneamente, na configuração de setores
produtivos - principalmente a indústria do vestuário - com forte
tradição alemã no que diz respeito à gestão dos processos e da
produção. Assim, entendemos que os sentidos que emergem

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 525


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
do discurso mencionado sobre a demanda formativa dos imi-
grantes haitianos estão pautados em uma conjuntura histórico-
-cultural e axiológica muito particular e no estranhamento em
relação à cultura do outro.

Ao constatar que muitos imigrantes haitianos são letrados, mas que, ao che-
garem ao Brasil ocupam vagas de emprego que em nada se aproximam da sua
formação demonstra o quadro de necessidade que fazem esses indivíduos saírem
de seu país de origem, mas também podemos analisar este dado a partir da ideia
de estranhamento. Isso porque, para a sociedade brasileira, em especial a comu-
nidade do Médio Vale do Itajaí, os imigrantes haitianos são percebidos a partir
de um prisma sócio-histórico que os associa à condição única de miserabilidade,
interseccionalizada com a ideia de baixa escolarização, o que legitima a ausência
de oportunidades profissionais especializadas, de acordo com a formação desses
sujeitos históricos. Tanto que o público que foi alvo desta pesquisa não estava em-
pregado na sua área de formação.
O trabalho desenvolvido pelo IFSC, câmpus Gaspar, revela que, tratando-se da
comunidade de imigrantes haitianos, há certas questões que contribuem para um
processo de exclusão ou dificuldade de integração social e exercício da cidadania,
sendo as principais delas:

1. as empresas situadas no médio Vale do Itajaí recebem,


com frequência, trabalhadores estrangeiros, o que pare-
ce ser visto por eles como desejável e ser valorado posi-
tivamente em seu discurso, no entanto, ao trabalhador
haitiano, também estrangeiro, é atribuído um valor nega-
tivo e um acento depreciativo, seja em virtude da ques-
tão racial que estimamos estar aí subentendida, seja em
virtude do próprio status atribuído ao seu país de origem;
(2) ainda que negros, sob o ponto de vista fenotípico e da
cultura, os haitianos não são africanos (ainda que pos-
samos entendê-los numa perspectiva de africanidade), o
que veta o acesso deles a programas existentes em uni-
versidades da região para o acolhimento de estudantes
de países de língua portuguesa na África; (3) por fim, os
haitianos, em virtude de não terem (e por vezes não de-
sejarem) a cidadania brasileira, não têm acesso a políticas
públicas como a lei de cotas para acesso às universidades.
Interessante também sublinhar o fato de que o Haiti é
um país em que a imensa maioria da população é negra,
portanto, para muitos dos imigrantes o preconceito racial
ou a diferenciação racial - a partir de uma percepção de
negritude, espaços de negritude e africanidade - é uma
novidade. Conforme as observações verbalizadas por es-
ses sujeitos, agora nossos estudantes, ver-se e saber-se
negro a partir do olhar do outro - do brasileiro residente
no Vale do Itajaí - é um desafio a mais no processo de
imigração e de inserção social da comunidade haitiana,
em parte por que a maneira como a comunidade local os

526 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
vê é divergente daquela como eles mesmos se enxergam.
(SILVEIRA; PIMENTA; CORDEIRO, 2016, p. 10).

A premissa de que o aprendizado do português é a porta de acesso para outros


direitos sociais parece simples e óbvia, mas ao analisarmos o contexto que envolve
a cultura, as condições de migração e as representações nas quais os imigrantes
haitianos estão envolvidos percebe-se o quão complexo é este fenômeno social.
A dificuldade de comunicação é, sem dúvida alguma, um grande obstáculo para
a inserção e integração desses indivíduos na sociedade brasileira. Mas também
é possível percebermos que aspectos culturais também podem ser considerados
como obstáculos. As concepções brasileiras pautadas em um racismo estrutural
criam empasses no estabelecimento de vínculos e de novos sentidos a respeito
deste novo grupo social que hoje compartilha a cidadania com o povo brasileiro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente trabalho buscou compreender o processo migratório contemporâ-
neo que se configura na chegada de centenas de imigrantes haitianos ao Brasil. O
foco desta pesquisa foram as regiões de Blumenau, Gaspar e Pomerode a partir da
análise do perfil dos estudantes do Curso de Português e Cultura Brasileira ofere-
cido pelo IFSC, câmpus Gaspar por compreendermos que o acesso à língua portu-
guesa faz parte de uma política de acolhimento e serve de porta de entrada para os
demais direitos, propiciando assim a inclusão e participação social dos imigrantes.
De forma sucinta buscou-se compreender como a noção jurídica sobre o direito à
educação foi se desenvolvendo historicamente e de que maneira esse direito abar-
ca o grupo de imigrantes que chegam ao Brasil.
Ao analisar o contexto diaspórico que resultou na entrada expressiva de imi-
grantes haitianos no território brasileiro, com respaldo legal do governo, observa-
-se a necessidade urgente de estabelecimento de políticas educacionais destinadas
à formação linguística desses imigrantes. O acesso ao idioma do país que acolhe
esses imigrantes transcende o aprendizado do idioma e agrega elementos para o
acolhimento desse público. Através do ensino do português como língua de acolhi-
mento há a promoção da pluralidade e da alteridade, num processo contínuo de
interação e ressignificação do outro.
A partir da ideia de isonomia, entende-se que cabe ao Estado o provimento da
educação básica e sendo o IFSC uma instituição pública, a oferta de cursos desti-
nados especificamente à população imigrante vai ao encontro dessa prerrogativa
legal. O objetivo de educar os imigrantes, sobretudo na língua do país acolhedor,
é capacitá-lo a ter consciência sobre seus direitos e deveres enquanto cidadão, já
que a constituição brasileira, em seu art. 5º prevê que nacionais e estrangeiros são
tratados à luz do princípio da isonomia.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 527


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
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528 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


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XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 529


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ANÁLISE JURÍDICO-HISTÓRICA DA LEGISLAÇÃO
BRASILEIRA À LUZ DAS RELAÇÕES RACIAIS – O
NEGRO COMO SUJEITO DE DIREITOS
Lais Méri Quirino Gonçalves1

Considerando que o Estado Brasileiro, sendo um Estado democrático de Direito,


baseia-se num conjunto de normas jurídicas que têm por objetivo regular as ati-
vidades e interações sociais, econômicas, políticas, individuais e coletivas, o orde-
namento jurídico brasileiro, desde a promulgação da Constituição do Império, vem
apontando uma série de contradições em relação a população negra. Primeiro, por
não considerar os escravizados como sujeitos de direito e sim como objetos de direi-
to e, mais adiante, pelo silenciamento nas questões que diziam respeito aos direi-
tos e garantias individuais da população negra no pós-abolição. Assim, o presente
trabalho tem como objetivo principal elencar como a ordem jurídica brasileira – no
que diz respeito a legislação ordinária e complementar- codificou e sistematizou as
questões relativas ao negro e seus direitos e garantias individuais, através da aná-
lise histórica da legislação desde a escravização até a contemporaneidade. Neste
sentido, verifica-se que, a mobilização do Movimento Negro fez com que a agenda
referente a questão racial no Brasil incluísse a cominação de pena, primeiro para
a discriminação racial e, em seguida, com a inclusão do racismo na categoria de
crime, no sistema jurídico brasileiro. Nesta perspectiva, através de revisão biblio-
gráfica pautada na legislação, discorreremos sobre os aspectos legais – sejam Leis,
decretos ou jurisprudência - que tratam da questão das relações raciais na socieda-
de brasileira, pautando-nos na abordagem relacionada a população negra.

Palavras-chaves: Direito, Legislação Brasileira, direitos individuais.

INTRODUÇÃO
Sendo o Brasil um país fundado nos moldes da colonização portuguesa e, sobre-
tudo, levando-se em consideração que o sistema de escravidão negra foi a base da
economia colonial, uma vez que foi este sistema que garantiu as lavouras açuca-
reira e cafeeira e posteriormente, a extração de ouro e demais metais preciosos,
entende-se que a criação da sociedade brasileira foi calcada na subalternização de
parte da população que já compunha o país.

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Étnico-Raciais (PPRER), do Centro


Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca/ Rio de Janeiro (CEFET/RJ). Advogada. Di-
retora Presidente da Comissão de Igualdade Racial e Combate a Homofobia da 8ª Subseção da Ordem
dos Advogados do Brasil – São Gonçalo. Conselheira, no Conselho de Promoção de Igualdade Racial do
Município de São Gonçalo – COMIRSG

530 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Sendo assim, analisaremos como o ordenamento jurídico brasileiro tratou e vem
tratando a questão racial desde o Império até os dias atuais, através da análise da
legislação codificada em conjunto com a Jurisprudência Pátria.

DA CONSTITUIÇÃO DO IMPÉRIO A ABOLIÇÃO


Não obstante o ordenamento jurídico imperial brasileiro possuir uma série de
leis e decretos que, em tese, beneficiariam os escravizados garantindo-lhes, em
casos específicos o status de emancipados e/ou libertos, observa-se pela aplicação
das leis que o “real” se afastou bastante do “legal”, considerando “legal” o que
está normatizado e formalizado através de um dispositivo - seja lei (de natureza
complementar ou ordinária) ou decreto.
Com a Constituição Imperial outorgada em 1824, o Brasil passou a ter uma le-
gislação própria, completa por uma série de leis ordinárias, com única emenda- o
Ato Adicional – e única reforma de texto, adotada pela Lei de 12 de agosto de 1834.
Ocorre que, a Constituição Imperial silenciava formalmente em relação a exis-
tência de trabalho escravo no Brasil. Neste sentido, rezava em relação a naciona-
lidade, in verbis:

“TITULO 2º

Dos Cidadãos Brazileiros.


Art. 6. São Cidadãos Brazileiros
I. Os que no Brazil tiverem nascido, quer sejam ingenuos,
ou libertos, ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este
não resida por serviço de sua Nação.
II. Os filhos de pai Brazileiro, e os illegitimos de mãi Brazi-
leira, nascidos em paiz estrangeiro, que vierem estabelecer do-
micilio no Imperio.
III. Os filhos de pai Brazileiro, que estivesse em paiz estran-
geiro em serviço do Imperio, embora elles não venham estabe-
lecer domicilio no Brazil.
IV. Todos os nascidos em Portugal, e suas Possessões, que
sendo já residentes no Brazil na época, em que se proclamou a
Independencia nas Provincias, onde habitavam, adheriram á esta
expressa, ou tacitamente pela continuação da sua residencia.
V. Os estrangeiros naturalisados, qualquer que seja a sua
Religião. A Lei determinará as qualidades precisas, para se obter
Carta de naturalisação.” (destaques e grifos nossos, mantida a
grafia original)

A mesma Constituição acrescentava, no artigo 179, XVIII c/c XIX, os dispositivos


acerca dos direitos civis e políticos, in verbis:

“Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Ci-


dadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 531


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do
Imperio, pela maneira seguinte.
(..)
VIII. Organizar-se-ha quanto antes um Codigo Civil, e Crimi-
nal, fundado nas solidas bases da Justiça, e Equidade.
IX. Desde já ficam abolidos os açoites, a tortura, a marca de
ferro quente, e todas as mais penas crueis.” (destaques e grifos
nossos, mantida a grafia original).

Observe-se que, a escravidão ainda era uma realidade no Brasil, apesar da Cons-
tituição “garantir” direitos civis e políticos com base na liberdade, entendida neste
contexto, como direito individual que era negado aos escravizados.
Dentre as leis complementares com impacto direto sobre os escravizados, des-
tacam-se as seguintes:

a. A de 16 de dezembro de 1830 (Código Criminal);


b. A lei de 7 de novembro de 1831 (que declarava livres
todos os escravos vindos de fora do Império);
c. A de 20 de dezembro de 1832 (Código de Processo Cri-
minal);
d. A de nº 261 de 3 de dezembro de 1841 (Reforma do Có-
digo de Processo Criminal;
e. A de nº 556 de 25 de junho de 1850 (Código Comercial);
f. A de nº 581, de 4 de setembro de 1850 (Lei Eusébio de
Queiroz);
g. A de nº 601, de 18 de setembro de 1850 (Lei de Terras);
h. A de nº 2040, de 28 de setembro de 1871 (Lei do Ventre
Livre);
i. A de nº 3.029, de 9 de janeiro de 1881 ( Lei Saraiva), que
instituiu o voto direto;

Destaque-se que esta Lei, faz menção expressa às exceções Constitucionais para
o registro de eleitor, fazendo remissão ao artigo 94 da Constituição Imperial, in ver-
bis:

“ Art. 94. Podem ser Eleitores, e votar na eleição dos Deputados,


Senadores, e Membros dos Conselhos de Provincia todos, os que
podem votar na Assembléa Parochial. Exceptuam-se:

I. Os que não tiverem de renda liquida annual duzentos


mil réis por bens de raiz, industria, commercio, ou emprego.

II. Os Libertos.” (destaques e grifos nossos, mantida a grafia


original).
a. Lei nº 3.270, de 28 de setembro de 1885 (Lei do Sexage-
nário);
b. A de nº 3.353, de 13 de maio de 1888 (Lei Áurea).

532 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A análise da professora Eunice Aparecida de Jesus Prudente2, a respeito do ad-
vento do Código Criminal, de 1830 destaca os aspectos diferenciados na comina-
ção da pena, em caso de ser o réu escravizado. Senão, vejamos:

“(...) Entretanto, o Código Criminal que veio à luz em 1830 im-


punha as tais penas cruéis ao escravo, já proibidas pela Carta
Magna, justamente quando este resistisse à escravização. Isso
em pleno florescimento da doutrina liberal. O art. 60 do Código
Criminal do Império é grotesco em sua severidade: "Se o Réu for
escravo, e incorrer em pena que não seja capital ou de galés
será condenado na de açoites e, depois de os sofrer, será entre-
gue a seu senhor, que se obrigará a trazê-Io com um ferro, pelo
tempo e maneira que o juiz designar"(grifos no original).

É importante destacar ainda, o Decreto nº 1303, de 28 de dezembro de 18533,


que declarava que os africanos livres (em consequência do alvará 1818, art. 5º4),
cujos serviços foram arrematados por particulares, ficam emancipados depois de
quatorze anos, quando o requeiram, e providencia sobre o destino dos mesmos afri-
canos.
No entanto, todo o arcabouço jurídico para garantir a emancipação e o con-
sequente status de liberto aos escravizados, após o advento do Decreto nº 1303,
de 1853 e da Lei de Euzébio de Queiróz (1850), não foi suficiente para garantir a
efetividade das normas.
Neste sentido, Daryle Williams5 faz menção ao jurista Agostinho Marques Perdi-
gão Malheiro, citando o “Ensaio histórico-jurídico-social sobre a escravidão no Bra-
sil”, onde afirma o jurista que o africano livre era tratado como escravo.
Nesta perspectiva, com o apanhado das leis que constituíram o direito positi-
vo brasileiro, no período compreendido entre 1516 e 1888, pode-se afirmar que o
negro, na situação de escravizado, era apenas objeto de direito, sobre quem se
firmavam acordos, sobre quem se legislava, mas não para quem se legislava.
Durante o período fixado (1516-1888), verificamos que as inúmeras normas
legais codificadas excluíam os escravizados, deixando-os a margem da sociedade
imperial: não tinham assegurados os direitos individuais, nem gozavam da prote-
ção do Estado. Tal proteção, só lhes era garantida enquanto propriedade privada
dos senhores e sobre quem, estes mesmos senhores, poderiam exercer todos os
direitos decorrentes da condição de proprietário.

2 PRUDENTE, E. A. de J. O negro na ordem jurídica Brasileira. Revista da Faculdade de Direito.


Universidade de São Paulo, v. 83, 1988, p. 138
3 Coleção de Leis do Império do Brasil- 1853, p. 420, v. 1. pt. II, disponível em www2.camara.
leg.br.
4 Determinava que os escravos resgatados do tráfico fossem destinados a servir como libertos
por tempo de 14 anos, em algum serviço público ou particular.
5 WILLIAMS, Daryle. A necessária distinção entre liberdade e emancipação: noções africana,
inglesa e brasileira do que é ser emancipado. In: Instituições Nefandas: o fim da escravidão e da ser-
vidão no Brasil, nos Estados Unidos e na Rússia. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2018,
p.156. disponível em:www.rubi.casaruibarbosa.gov.br.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 533


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Embora houvessem leis que previam “direitos e garantias individuais”, as nor-
mas já nasciam eivadas de nulidade, tendo em vista a principal contradição da
Constituição Imperial prever a “liberdade” como cláusula fundamental, ao mesmo
tempo em que as Leis complementares e ordinárias negavam formalmente as con-
dições necessárias para que estes direitos e garantias individuais fossem alcança-
dos.

O PÓS-ABOLIÇÃO
Observa-se que o pós-abolição foi um período marcado pela inexistência de
ordenamento jurídico que garantisse a população negra a efetividade dos direitos
já consagrados na Constituição da República, sobretudo no que diz respeito ao
direito ao trabalho, uma vez que o que se seguiu, foi uma política imigratória que
explicitava a preferência ao imigrante – branco- sob a alegação de que não havia
no país uma força de trabalho suficiente, a despeito da mão- de-obra negra.
Neste sentido, é oportuno trazer à colação os ensinamentos de Ribeiro (2014),
quando analisa a elaboração das leis e assevera que:

“(...) verifica-se a necessidade de quebrar a lógica da neutralida-


de e/ou imparcialidade que tem sido desempenhada pelo Estado
em relação aos problemas gerados pela escravização e pelas es-
tratégias capitalistas, que resultaram na não inclusão dos negros
após a abolição com graves repercussões nos dias atuais”.

Nesta perspectiva, a mobilização do Movimento Negro, fez com que em 1951,


fosse editada a Lei Afonso Arinos.
A Lei nº 1.390, de 3 de julho de 1951 – a Lei Afonso Arinos, tipificou como con-
travenção penal a prática de discriminação racial. No entanto, apesar da existência
de norma que tipificava a conduta e previa a sanção para a contravenção, havia
grandes dificuldades na qualificação do tipo penal. Tanto é que, tornou-se famosa a
declaração da jornalista Glória Maria, ao afirmar que foi uma das primeiras pessoas
a “utilizar” a Lei, na década de 70, quando foi impedida de entrar em um hotel pela
porta da frente.
Com o advento da Constituição de 1988, houve a inclusão no texto constitucio-
nal da palavra racismo, ao invés de discriminação racial, sendo preceituado no art.
4º, inciso VIII, “o princípio do repúdio ao terrorismo e racismo” e no art. 5º, inciso
XLII, a disposição de que “a prática do racismo constitui crime inafiançável e impres-
critível, sujeito à pena reclusão, nos termos da lei”.
A Lei a que se refere o art. 5º, inciso XLII, da CF/88, só foi sancionada e publicada
no ano seguinte, sendo a Lei nº 7.716/89 – Lei Caó – o marco para a definição das
condutas que configurariam racismo, sujeitas a pena de reclusão, em complemen-
to ao texto Constitucional.

534 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Já a Lei nº 9.459/97, acrescentou o § 3º ao artigo 140 do Código Penal, criando
o tipo penal da injúria racial ou qualificada, que comina pena de reclusão de 1 (um)
a 3 (três) anos, “se a injúria consiste na utilização de elementos referentes a raça,
cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de defici-
ência” a que conceitua o tipo penal, na medida em que injuriar seria ofender
a dignidade ou o decoro utilizando elementos de raça, cor, etnia, religião, origem
ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência.
Em novembro de 2003, foi criada a Política Nacional de Promoção da Igualdade
Racial – PNPIR, através do Decreto nº 4886 e o Decreto nº 4885 que criou o Conse-
lho Nacional de Promoção de Igualdade Racial – CNPIR. Ambos Decretos elencam
aspectos normativos e executivos para a condução das políticas públicas referen-
tes a promoção de igualdade racial, a nível federal.
É importante ressaltar também que, com o advento da Lei nº 10.639/2003, hou-
ve a alteração da Lei nº 9394/96 – Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB),
para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática
"História e Cultura Afro-Brasileira".
Em 2008, a publicação da Lei nº 11.645/08, alterou novamente a LDB para incluir
no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e
Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
Em 2010, a Lei nº 12.288/10 Instituiu o Estatuto da Igualdade Racial, com o obje-
tivo de “garantir à população negra a efetivação da igualdade de oportunidades, a
defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e difusos e o combate à discrimi-
nação e às demais formas de intolerância étnica”.
Já o Decreto nº 8136, de 5 de novembro de 2013, aprovou o regulamento do
Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial (SINAPIR), instituído pela Lei nº
12.288/10.
Em sede jurisprudencial, merece destaque o julgamento pelo STF do habeas
corpus nº 82.424, que reconheceu e validou os princípios constitucionais da impres-
critibilidade do crime de racismo, em decisão que versava sobre publicação de livro
com conteúdo antissemita, cujos trechos da ementa destacamos quatro itens que
elucidam os conceitos jurídicos de imprescritibilidade e a abrangência do crime de
racismo, in verbis:

“(...) 7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de


delito dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa,
a cláusula da imprescritibilidade, para que fique ad perpetuam
rei memoriam, verberado o repúdio e a abjeção da sociedade
nacional à sua prática.

8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos


etimológicos, etnológicos, sociológicos, antropológicos ou bio-
lógicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional
do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Constituição
Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, polí-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 535


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ticas e sociais que regem sua formação e aplicação, a fim de
obter-se o real sentido e alcance da norma.

(...)

15. “Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este


tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória,
o esquecimento. No estado democrático de direito devem ser
intransigentemente respeitados os princípios que garantem a
prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da
memória dos povos que se pretendem justos os atos repulsivos
do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais
por motivos raciais de torpeza inominável.

16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifi-


ca-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã,
para que se impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados
conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admi-
tem.” (destaques e grifos nossos).

Neste sentido, é importante verificar que o processo de subalternização foi se


modernizando, acompanhando a evolução do pensamento social brasileiro. Pri-
meiro, na negativa da existência de qualquer tipo de discriminação/preconceito
que tivesse como origem a raça e depois, pelo parcial reconhecimento de que ha-
viam certas impossibilidades para negros e negras, que advinham da cor da pele.
É importante destacar que, a mobilização social teve impacto na promulgação
de normas jurídicas específicas acerca da condição do negro no Brasil. E, quando
dizemos mobilização social, referimo-nos a mobilização sobretudo, do Movimento
Negro nas mais diversas áreas de atuação – educação, cultura, justiça e articula-
ções com a sociedade civil.
Ianni (2004) leciona que, “(...) no limite, a questão racial, em todas as suas impli-
cações sociais, políticas, econômicas, culturais, ideológicas, pode ser vista como
uma expressão e um desenvolvimento fundamentais do que tem sido a dialética
escravo e senhor no curso da história do mundo moderno”.
Segundo Ianni (2004) “é a ideologia racial que articula e desenvolve a gama
de manifestações, signos, símbolos ou emblemas com os quais indivíduos e coleti-
vidades “explicam”, “justificam”, “racionalizam”, “naturalizam” ou “ideologizam”
desigualdades, tensões e conflitos raciais”.
E é neste sentido que Almeida (2019) afirma que “o racismo é sempre estru-
tural, ou seja, de que ele é um elemento que integra a organização econômica e
política da sociedade”.

CONCLUSÃO
Pela análise da legislação apresentada, observa-se que apenas a partir dos anos
80, o ordenamento jurídico brasileiro passou a considerar afrontas aos direitos e

536 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
garantias individuais da população negra como um problema da sociedade brasi-
leira.
Resultado do senso comum de que não existe discriminação racial no Brasil, os
avanços em relação a cominação de penas para as práticas racistas e discriminató-
rias foram lentas e continuam exigindo um esforço contínuo da sociedade civil, no
sentido de provar que o racismo é uma realidade brasileira e permeia as relações
em todos os níveis de interação – seja individual ou coletiva.
SANTOS (2017), afirma que “o racismo institucional, enquanto ideologia, (...)
não atua somente no campo das estruturas; ele cria modos de ser e pensar, é
sistêmico, por isso determina as ações dos indivíduos na medida em que define e
impregna a cultura”.
Assim, conclui-se que o ordenamento jurídico brasileiro desde a Constituição
Imperial é permeado pelo racismo, mesmo quando nega a existência dele. E, o fato
de negar-lhe a existência, é um indicador de como operam as instituições brasilei-
ras, solapadas pelo racismo estrutural e institucional
Neste sentido, apenas a mobilização da sociedade civil pode e efetivamente
impacta na elaboração de leis e regulamentos com o objetivo de coibirem os crimes
de natureza racial e finalmente atingir o objetivo de que negros e negras sejam efe-
tivamente sujeitos de direitos.

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XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 537


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 55
Relações Raciais
no Brasil,
Subjetivação e
Psicologia
A DOCÊNCIA NO ENSINO SUPERIOR E AS
FRONTEIRAS DAS RELAÇÕES DE MEDIAÇÃO
INTERÉTNICAS: REFLEXÕES EM TORNO DA
FORMAÇÃO DE PROFESSORES INDÍGENAS
A’UWE XAVANTE

Andréia Maria de Lima Assunção

INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como propósito tecer reflexões em torno da docência,
tomada enquanto lócus de construção de pensamentos e práticas no campo das
relações étnico-raciais no ensino superior, particularmente no que tange à forma-
ção de professores indígenas A’uwe Xavante.
O enfoque dessa discussão circunscreve as ações do Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID) do curso de Licenciatura em Pedagogia,
modalidade a distância, de uma universidade pública do centro-oeste brasileiro,
cujo fazer docente foi desenvolvido na condição de professora não indígena, sob o
regime de trabalho contratual. Por se tratar de um curso de ensino superior EaD,
este encontrava-se vinculado à Universidade Aberta do Brasil (UAB), tendo sido re-
alizado sob o apoio de uma infraestrutura de suporte pedagógico, administrativo e
tecnológico denominada polo, o qual propiciava a interlocução entre o campus uni-
versitário e o município mais próximo das aldeias de residência dos quatro acadêmi-
cos indígenas do curso pertencentes à etnia Xavante, na ocasião, bolsistas do PIBID.
O processo de construção, orientação e desenvolvimento desse projeto foi viabi-
lizado pela realização de encontros presenciais – mediante deslocamentos regula-
res ao polo UAB do município fronteiriço com a terra indígena e/ou, propriamente,
à sala anexa da escola indígena onde o PIBID foi desenvolvido, localizada em uma
das aldeias do território A’uwe Xavante – e reuniões a distância, propiciadas por
videoconferências e pela plataforma virtual de aprendizagem da universidade.
O programa dispôs da presença de um professor supervisor, fluente na língua
materna dos estudantes e atuante nas escolas indígenas do território, o qual de-
sempenhava a função de acompanhamento cotidiano das ações construídas e de
suporte direto ao desenvolvimento do trabalho, tendo em vista a modalidade em
que o projeto se situou alicerçado.
O curso de Pedagogia a distância, o qual os estudantes encontravam-se vincula-
dos, não dispunha objetivamente de um projeto político pedagógico que tomasse
como centralidade a formação de professores/as indígenas e as modulações ten-
cionadas pelas perspectivas de formação e educação fundadas pelas cosmologias
ameríndias, em entrelaçamento com a interculturalidade e a construção de diálo-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 539


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
gos interétnicos. Neste sentido, o escopo da experiência formativa no interior do
PIBID afirmava um movimento de reposicionamento institucional fomentado pelo
núcleo docente que compunha o curso de Pedagogia, modalidade a distância.
As ações delineadas no projeto debruçaram-se sob a construção de processos
formativos que operassem na fronteira das relações interétnicas a qual o curso
de Pedagogia EaD situava-se imerso, tendo em vista que possuía em seu quadro
docente exclusivamente pessoas não indígenas, de tal maneira que a professora
orientadora também não partilhava tal pertença étnico-racial.
Além da inscrição de uma fronteira de mediação interétnica, o trabalho situou-se
permeado por um caráter interdisciplinar na medida em que a docente responsável
pela orientação do projeto PIBID enfocado compunha a categoria de professora da
área de psicologia, campo do conhecimento historicamente convocado nos percur-
sos de formação de professores/as, sobretudo a partir dos acúmulos teóricos elabo-
rados no escopo da psicologia do desenvolvimento e da aprendizagem, bem como
a partir do viés psicométrico, forjando frequentemente intervenções reducionistas
e adaptacionistas destinadas ao reajustamento das chamas “crianças-problema”,
tal como sintetiza Patto (2015).
Considerando tal marca histórica desse campo de conhecimento, o trabalho em
questão precisaria ser tecido a partir da consideração de concepções epistemo-
lógicas ancoradas no compromisso de produzir inflexões frente ao imperialismo
cultural e científico que perpetua a colonização dos processos de constituição das
mentalidades e sociabilidades humanas (JAHODA, 2016).
Deste modo, convidou-se para a tecitura destas reflexões o quadro conceitual
e teórico da psicologia cultural dialógica, em complementariedade ao escopo que
tem sido convencionado como psicologia indígena; considerou-se, complementar-
mente, o campo das políticas públicas educacionais, bem como as contribuições
interdisciplinares cultivadas na interface entre educação, psicologia e antropologia,
potentes ao anúncio de horizontes profícuos ao diálogo interétnico no contexto
educacional.
As modulações apresentadas constituíram o enredamento da presente trama,
cujas configurações engendraram desafios pertinentes às relações de mediações
interétnicas na medida em que estas animam processos de confrontação com as
margens, de distância indefinida, entre as diferentes cosmologias em negociação
para a construção de um espaço intermediário comum mutuamente formativo.
Nesta amplitude, a experiência interétnica, além de tensionar a criação de con-
dições para o trânsito e negociação entre saberes ao longo das fronteiras que cons-
tituem as diversas formas de conceber o mundo, também potencializou experi-
ências transformativas para a docência no ensino superior, na medida em que a
professora não indígena e a universidade se defrontaram com a alteridade das
ontologias ameríndias (GUIMARÃES, 2017).

540 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A PRODUÇÃO RACIALIZADA DA INCOMPETÊNCIA
NOS CONTEXTOS DE ESCOLARIZAÇÃO: TECENDO
CONSIDERAÇÕES
Ao dedicar-se ao estudo das raízes históricas que concorreram para a elabora-
ção de concepções sobre o fracasso no interior do sistema educacional brasileiro,
Patto (2015) identifica elementos que fornecem pistas para a desnaturalização dos
discursos e das práticas que historicamente sustentaram a existência de uma su-
posta inferioridade e inaptidão de pessoas indígenas, negras e oriundas de classes
populares para a aprendizagem dos conteúdos escolares.
O quadro histórico e político do final do século XIX e XX subsidiou a análise das
desigualdades sociais a partir de sua tradução enquanto desigualdades de natureza
pessoais, biologicamente determinadas, alicerçadas, sobretudo, pelo cientificismo
ingênuo e pelo racismo perpetrado pelas teorias inatistas, pelo chamado “darwi-
nismo social”, bem como pelo discurso eugenista, que se exprimiam a partir de
“[...] tentativas de comprovação empírica das teses de inferioridade racial de po-
bres e não brancos.” (PATTO, 2015, p. 56).
Neste campo, a pobreza também foi esboçada sob o subsídio da suposição de
uma inferioridade inata, empregada para justificar as diferenças no rendimen-
to escolar, bem como para fortalecer o mito da igualdade de oportunidades e da
democracia racial defendida pelo pensamento liberal. O liberalismo, intimamente
conciliado às teses das hierarquias raciais, defendia que as desigualdades seriam
originárias da suposta inferioridade das pessoas não brancas, a fim de naturalizar
as abissais discrepâncias sociais e econômicas (PATTO, 2015). Assim,

[...] numa sociedade em que a discriminação e a exploração inci-


dem predominantemente sobre determinados grupos étnicos, a
definição da superioridade de uma linhagem a partir da notorie-
dade de seus membros só pode resultar em [...] acreditar que é
natural o que, na verdade, é socialmente determinado. (PATTO,
2015, p. 63).

No bojo histórico das explicações das dificuldades de aprendizagem escolar no-


tabiliza-se a vertente biologicista do século XIX, arraigada de pressupostos racistas
e elitistas; e, em complementariedade, emerge uma direção que considerava as
influências ambientais, amplamente comprometida com os ideais da liberal demo-
cracia do século XX. Ambas as tendências coexistiram e produziram marcas que se
atualizaram nas políticas educacionais e nas explicações sobre as dificuldades de
aprendizagem (PATTO, 2015).
No interior desta segunda tendência, partidária da supremacia das influências
ambientais, destaca-se a teoria da carência cultural, que passou a reivindicar, pela
determinação cultural, as explicações para a formação de supostas deficiências e
da inaptidão para a aprendizagem escolar das classes populares (PATTO, 2015),

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 541


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
engendrando também efeitos sob os grupos étnicos constituídos pela heteroge-
neidade de cosmologias.
O conceito de raça é, nesta perspectiva, supostamente obliterado pelo conceito
de cultura, que passaria a ser o elemento explicativo privilegiado, onde ao invés de
raças inferiores, haveriam culturas e grupos familiares atrasados e inadequados, os
quais gerariam crianças e adultos/as inaptas. As classes populares seriam, assim,
comparadas ao padrão cultural burguês para serem consideradas depositárias da
formação de defeitos e degenerescências humanas, cujos modos de vida represen-
tariam o limiar do enlace entre o [colonizador] civilizado e o [colonizado] selvagem
(PATTO, 2015).
Diante disso, em alusão à Guimarães (2010), conjectura-se que os modelos
usuais de educação não abrangem a complexidade que a cosmovisão dos povos
ameríndios possibilita, na medida que aqueles foram historicamente elaborados
no campo de uma tradição eurocêntrica e, diante dessa condição, produziu-se efei-
tos de interpretações da existência do outro a partir da ideia de ausência e de falta.
Este sistema de inteligibilidade sustenta-se, pela via dos processos identitários, a
partir da demarcação de diferenças edificadas pela exclusão (WOORWARD, 2003),
de tal maneira que quem produz a categoria de classificação situa a si e o seu grupo
enquanto pertencentes ao topo desta hierarquia, sob a pretensão de figurar-se em
um expoente máximo de centralidade e hegemonia.
Deste modo, tais “[...] práticas de significação que produzem significados envol-
vem relações de poder, incluindo o poder para definir quem é incluído e quem é
excluído.” (WOODWARD, 2003, p. 18). Os sistemas simbólicos que sustentam estas
definições operam, por esta via, como fonte de sentidos para as experiências de
divisão e de desigualdades, bem como fomentam as categorias interpretativas por
intermédio das quais grupos específicos são estigmatizados (WOORDWARD, 2003).

CONTEXTUANDO O PIBID: NUANCES CONSTITUTIVAS DA


TERRITORIALIDADE QUE O ABRIGOU

O projeto de iniciação à docência delineado no âmbito do curso de Licenciatura


em Pedagogia, a distância, de uma universidade pública do centro-oeste brasileiro
adquiriu contornos singulares convocados, em primeira análise, pela caracteriza-
ção inscrita pela modalidade de Educação a Distância (EaD) a esse trabalho, que foi
desenvolvido na interface entre dois programas governamentais específicos: o Pro-
grama Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), uma dentre as inicia-
tivas que compõem a Política Nacional de Formação de Professores (BRASIL, 2009;
2016), e o Sistema da Universidade Aberta do Brasil (UAB).
Neste âmbito, salienta-se que o enquadramento formalizado especificamente
pelo PIBID privilegia em sua concepção as condições estruturais, técnicas e de pes-
soal dos cursos de ensino superior em uma modalidade presencial, institucionali-

542 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
zando lacunas pertinentes ao âmbito EaD ofertados pelas universidades públicas,
como as distâncias geográficas que requerem o deslocamento aos polos UAB, a
temporalidade que se efetiva em outra perspectiva em contextos interculturais de
ensino-aprendizagem mediados por tecnologias digitais, a comunicação que requi-
sita estrutura técnica de computadores e conexão de internet estável em regiões
interioranas dos estados brasileiros, dentre outras idiossincrasias centrais para a
elaboração coletiva do trabalho formativo em um contexto EaD não contempladas
objetivamente nos editais do PIBID.
De modo particular, destaca-se que o campus universitário, espaço-tempo ime-
diato em que a presença do corpo docente encontrava-se situada, localizava-se na
capital do estado e os polos UAB, espaços-tempos fronteiriços ou imediatos em
que os/as acadêmicos/as de Pedagogia se reportavam às docentes e à universida-
de, encontravam-se em distintos municípios.
Em um segundo aspecto, as nuances inscritas no processo constitutivo do pro-
jeto PIBID apresentado alicerça-se sob a particularidade de sua construção em um
território constituído por múltiplas pertenças étnico-raciais e por referências inter-
culturais edificadas pelo registro da heterogeneidade. Em atenção a isso, importa
destacar que o referido projeto de formação para a docência na educação básica
contemplava em seu escopo estudantes de Pedagogia indígenas e não indígenas,
referenciados por polos UAB de diferentes cidades.
Os/as estudantes participantes constituíram cinco grupos. A vinculação destes
coletivos entre os cinco subprojetos abrigados no interior do PIBID foi delimitada a
partir da referencialidade a um mesmo polo UAB, de modo a constituir grupos de
trabalho que permitiriam a proximidade física entre estudantes e em relação às uni-
dades escolares participantes do programa, as quais pertenciam às microrregiões
de moradia dos/as acadêmicos/as que constituíam um mesmo grupo.
No que tange especificamente ao subprojeto de formação para a docência ela-
borado junto aos acadêmicos indígenas A’uwe Xavante, discutido na presente oca-
sião, o polo UAB de referência circunscrevia um município circunvizinho à Terra
Indígena de moradia dos licenciandos em Pedagogia, a qual está localizada há cen-
tenas de quilômetros de distância da capital do estado onde o campus universitário
se situa. Este subprojeto enfocou a sala anexa de uma escola indígena, situada em
uma das aldeias de moradia dos quatro licenciandos em Pedagogia participantes
do programa.
A autora do presente texto, na condição de professora universitária contratada,
era a coordenadora responsável pela orientação e construção de dois dos cinco
subprojetos desenvolvido. No referido texto, serão destacadas, particularmente, as
mediações e experiências transformativas vivenciadas ao longo do desenvolvimen-
to do projeto de formação para a docência junto aos acadêmicos indígenas A’uwe
Xavante, as quais foram forjadas no bojo do desafio da construção de diálogos
interétnicos no ensino superior e do encontro com a alteridade entre cosmologias
para a elaboração de um espaço intermediário comum, mutuamente formativo.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 543


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A INICIAÇÃO À DOCÊNCIA E O DIÁLOGO INTERÉTNICO EM
CONTEXTO UNIVERSITÁRIO: CONSIDERAÇÕES AO DIÁLOGO
A presença dos estudantes indígenas Xavante no curso de Licenciatura em Pe-
dagogia, modalidade a distância, era permeada por processos de sintonização de
afetos e experiências (GUIMARÃES, et al., 2019; GUIMARÃES, 2017) engendrados
no campo dos encontros com referências étnicas e culturais estrangeiras, cuja dis-
ponibilidade e abertura para comportar a alteridade e as experiências inquietantes
(SIMÃO, 2003, p. 450) abrigadas na relação com o outro demandavam esforços
assimetricamente regulados entre seus expoentes constitutivos.
A inserção dos estudantes A’uwe Xavante na universidade requeria, considera-
velmente, mais processos de adaptação (PATTO, 2015) destes em relação ao currí-
culo não indígena, do que a condução de mediações institucionais que abrigassem
oportunidades de diálogo e negociação entre cosmologias, capazes de potenciali-
zar possibilidades de ser e estar na universidade distanciadas da égide da simples
subordinação.
Neste sentido, o PIBID buscou configurar-se como um exercício de diálogo
e de construção de processos formativos que operassem na nebulosa fronteira
(GUIMARÃES; BENEDITO, 2018) das relações interétnicas sob a qual o curso de
Pedagogia EaD situava-se imerso, ensejando a busca pela construção de práticas
inspiradas por um giro epistemológico, o qual a educação intercultural em contex-
tos interétnicos exige e encerra ao legitimar a consideração de cosmologias não
eurocentradas.
O programa contou com a existência de um professor supervisor fluente na lín-
gua materna dos estudantes, que detinha um histórico profissional de extensa atu-
ação nas escolas indígenas deste território, e era responsável por realizar o acom-
panhamento cotidiano das ações vinculadas ao PIBID. A introdução dessa parceria
foi uma conquista proveniente dos tensionamentos que a condução do projeto
PIBID vinculado a um curso EaD e em contextos interculturais requisitou.
O processo de co-construção do trabalho na relação com os estudantes foi via-
bilizado por encontros presenciais – pelos deslocamentos regulares ao polo UAB
deste município fronteiriço com a terra indígena de morada dos estudantes e à
sala anexa onde o PIBID foi desenvolvido, localizada no interior de uma das aldeias
deste território – e a distância – via webconferências, postagens e mensagens ins-
tantâneas no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) da universidade.
Por intermédio das verbas federais destinadas ao deslocamento da docente à
escola indígena e ao polo UAB para o encontro presencial com os acadêmicos e as
lideranças indígenas locais, foram possibilitadas afetações, vivências e a produção
de inflexões que se inscreveram no corpo e nos sentidos de temporalidade (GUI-
MARÃES, et al., 2019), imprescindíveis ao processo de sintonização rítmica (GUI-
MARÃES, 2017) para o desenvolvimento de um trabalhonas fronteiras interétnicas,
entre pessoas não indígenas e pessoas indígenas A’uwe.

544 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Tais experiências apresentaram-se como marcadas por uma temporalidade e
intensidade outra, as quais evidenciaram uma zona de ruídos oriunda do encontro
entre culturas, que demandou certa regulação na relação para que o propósito dia-
lógico do encontro fosse estabelecido (GUIMARÃES, et. al., 2019).
Nesse sentido, a configuração desse trabalho, na medida em que foi sendo con-
formada na relação com a alteridade, explicitava as largas margens do excedente
de visão (BAKHTIN, 1997) e de conhecimento sobre o outro, sob as quais a formação
da própria orientadora do projeto situava- se alicerçada. A partir do reconhecimen-
to e da afirmação deste excedente foi tensionada a produção de referências ético-
-pedagógicas para a construção de um trabalho formativo que abarcasse em seu
cerne a presença de pessoas indígenas e não indígenas, a ser conduzido a partir do
encontro, trânsito e negociação entre cosmologias.
Em uma breve menção, destaca-se o processo de mediação para a negociação
institucional dos próprios critérios para a composição com as produções escritas
elaboradas pelos estudantes e postadas no Ambiente Virtual de Aprendizagem,
as quais tensionaram a disputa por leituras que possibilitassem a permanência da
inscrição das idiossincrasias impressas pelos estudantes A’uwe (como o empre-
go de cores variadas ao longo dos parágrafos dos textos elaborados) e ao mesmo
tempo pudessem, a partir desse encontro com as produções textuais, possibilitar
oportunidades de ensino-aprendizagem das normas técnicas de conteúdos acadê-
micos tanto para os fins de formação universitária como para a instrumentalização
ao diálogo com as instâncias políticas e administrativas municipais, as quais se for-
malizaram como horizontes delineados ao longo do trabalho junto às lideranças e
aos acadêmicos indígenas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em breve análise acerca das experiências suscitadas no interior do projeto de
formação para a docência junto à acadêmicos indígenas A’uwe, licenciandos do
curso de Pedagogia, modalidade EaD, enfatiza-se que a distância reconhecida en-
tre os/as professores/as universitários/as e as ontologias ameríndias pode engen-
drar a produção de uma zona de desconforto e estranhamento oriunda do choque
cultural produzido nas relações de diferenças entre matrizes cosmológicas, cujo
encontro tem sido, historicamente, pouco vivenciado a partir de uma coexistência
sem subordinação (GUIMARÃES; BENEDITO, 2018).
A universidade e o corpo docente universitário, em um contexto de atuação
interétnica, estão permeados pelas armadilhas de perpetuar a colonização ao ocu-
parem-se do papel exercido pelos grupos de evangelização cristãos na medida que
impõem suas referências localizadas de real como universais, em oposição ao com-
promisso ético-político de produção de fronteiras permeáveis ao diálogo menos
assimétrico, a fim de que os conhecimentos teóricos e pedagógicos colonialistas

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 545


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
possam ser revisitados para que as aproximações e o compartilhamento mútuo
para a elaboração de sínteses sejam possíveis (GUIMARÃES, 2017).
A multiplicidade de perspectivas proeminentes na situação interétnica engen-
dra processos de intercâmbio regulados entre as expressões do convívio nos dife-
rentes contextos, cujo esforço conciliatório pode resultar em sincretismo e hibri-
dização, ou em um paralelismo que não alcança nenhuma síntese (GUIMARÃES;
BENEDITO, 2018). Nisso reside um dos grandes desafios que a referida experiência
potencializa refletir no campo de formação de professores/as em contextos de me-
diação interétnica, sobretudo quando conduzida por formadores/as não indígenas,
o que amplia a necessidade de reflexividade para a construção de territórios co-
muns para o diálogo interétnico orientado para uma educação antirracista.
A respeito deste processo, destaca-se que a universidade, como um contexto
elitista assentado em um saber hegemônico e excludente, adquire o compromisso
de instituir e formalizar condições para que as situações interétnicas vivenciadas
em seu interior sejam imprescindivelmente orientadas para o reconhecimento das
cosmologias indígenas como conhecimentos legítimos.
Esse processo torna-se indispensável na medida em que potencializa a descolo-
nização das condutas pedagógicas acadêmicas, não raro intencionadas à imposição
e à hierarquização de conhecimentos, para que se produzam relações menos assi-
métricas entre pessoas, cosmologias e epistemologias.

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AUTORIA
Andréia Maria de Lima Assunção
Doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia Escolar e do Desenvolvi-
mento Humano da Universidade de São Paulo.
E-mail: andreiaml@live.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7198-5896
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0980857963098011

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 547


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
DA GRADUAÇÃO AO OFÍCIO DOCENTE:
NEGRITUDES E CONSTRUÇÃO DE CARREIRA NA
PSICOLOGIA

Vilmar Pereira de Oliveira

INTRODUÇÃO
Nesta comunicação são apresentadas algumas reflexões feitas durante a pes-
quisa de doutorado do autor, que analisa as trajetórias profissionais e de vida de
pessoas que se autodeclaram negras, e que passaram por cursos de pós-graduação
stricto sensu em Psicologia, almejando a carreira docente em Instituições de Ensino
Superior. A discussão é realizada através de uma perspectiva crítica que articula
saberes advindos dos campos da Psicologia Social e da Orientação Profissional.
A partir deste prisma, diferente de como é feito em um viés organizacional e/
ou desenvolvimentista, pondera-se que a carreira não deve ser concebida como
uma elaboração individual, mas como uma produção relacional, a qual sujeito e
sociedade tornam-se partes de um indissociável continuum, que molda e tensio-
na os processos de subjetivação. Mais que uma referência quanto a escolha de
uma profissão, a construção da carreira, nesta proposta, deve ser abordada como
sinônimo da construção da própria vida, pois diz respeito ao projeto que o sujeito
tem de si mesmo e para si mesmo e o meio onde vive (constituição de identidade,
transformação social e qualidade de vida). Os estudos sobre carreira, nesta ótica,
estabelecem conexões entre a Educação e o mundo do Trabalho, dimensões que,
através de uma leitura interseccional, tecem relações com as questões raciais, ex-
primindo a paisagem assimétrica, historicamente construída, entre pessoas negras
e brancas na sociedade brasileira.
A pesquisa em questão surgiu do incomodo do autor quanto ao pequeno con-
tingente de docentes negras/os nos cursos de Psicologia da Região Metropolitana
de Belo Horizonte, Minas Gerais. Acrescenta-se a isto o aumento das ações afirma-
tivas e do número de pessoas negras que têm conquistado espaço nos cursos de
mestrado e doutorado em Psicologia do referido território, em contraste com a bai-
xa entrada profissional destas, após a obtenção do grau. Além da compilação dessas
observações, a investigação feita recorreu metodologicamente à escuta de histórias
de quatro informantes (duas mulheres e dois homens) cruzadas através da com-
posição de narrativas ficcionais, que versam sobre carreira, negritude e racismo.

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
APORTE TEÓRICO
Tradicionalmente, a produção teórica sobre as questões da negritude no Brasil
hermeticamente tece relações com o mundo da Educação e do Trabalho. Tal apro-
ximação não é em vão, pois como colocado por Costa (1982), “a escravidão marcou
os destinos da nossa sociedade” (p. 9). Para além de salientar a função estruturante
do trabalho, é importante considerar a assimetria historicamente construída e que
marca a presença negra no mercado de trabalho, retomando o contexto da escra-
vização e o registro das desigualdades e preconceitos que ocasionam rebatimentos
amplos no tocante à inserção social deste grupo até os dias de hoje.
Ao trazer o tema para o cerne dos estudos sobre carreira, compreende-se este
campo em sua natureza psicossocial e interdisciplinar. Na Psicologia, por exemplo,
os estudos sobre carreiras poderiam ser facilmente alocados à Psicologia Social, à
Psicologia articulada à Educação, à Psicologia do Trabalho e à Psicologia Clínica,
dentre outras, embora tenha ganhado mais atenção no âmbito da Psicologia Or-
ganizacional. No entanto, ao se propor abordar o tema a partir de uma perspectiva
psicossocial, pretende-se ampliar os estudos sobre carreiras para além de sua atri-
buição no desenvolvimento organizacional, entendendo, desta forma, que a orien-
tação ou a educação para a carreira pode auxiliar as pessoas na elaboração de suas
trajetórias de vida, não se restringindo à dimensão profissional/laboral.
Ao propor discutir sobre carreira em uma perspectiva psicossocial, entende-se
que a carreira não deve ser concebida como uma construção estritamente indi-
vidual, mas como uma construção relacional. O conceito de carreira implica “[...]
um passado vivenciado pelo sujeito e um futuro planejado que traz algum signifi-
cado para direcionar as ações do sujeito no presente. Então pensar sobre carreira é
também pensar sobre um projeto de vida” (DIAS; SOARES, 2009, p. 213). A carrei-
ra nessa concepção assume a dimensão da narrativa que o sujeito faz de si mesmo,
na interface da experiência social e da fabricação de sua identidade. Ribeiro (2014)
afirma que ampliar o escopo da utilização do termo carreira para as relações entre
pessoas e o mundo do trabalho, é contribuir, em termos políticos, com a constru-
ção de uma sociedade mais democrática e com a transformação social. Escutar as
vozes daqueles historicamente marginalizados, “[...] abre a possiblidade de discur-
sos alternativos para o campo dos estudos da carreira” (FLUM apud RIBEIRO, 2014,
p. 77).
Pensar carreira sob uma dimensão psicossocial tal como se propõe aqui, é dar a
esse campo a função limiar salientada por Ladson-Billings (2006), implicando-se,
então, com a reflexão e a construção de uma Psicologia que não fique congelada
no tempo e no espaço, e que contribua, com respeito à dignidade e à diversida-
de humana, com a desestabilização das lógicas excludentes da sociedade contem-
porânea. Visa então pensar nesta experiência iluminada pelas contribuições das
Teorias Críticas da Raça que visam, ainda conforme esta autora, a apreensão e a
denúncia das “[...] formas pelas quais as perspectivas dominantes distorcem as
realidades do outro, em um esforço para manter as relações de poder que conti-

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
nuam colocando em desvantagem aqueles que estão do lado de fora da corrente
dominante” (p. 265).

PROBLEMA E HIPÓTESE DE PESQUISA


Como destacado por Sales e Aranha (2017), “a diferenciação entre negros e
brancos é prática contumaz, verdadeiramente estrutural das formas de organiza-
ção do trabalho no Brasil” (p. 47). A discriminação racial no campo do trabalho ocor-
re desde os processos de seleção e admissão às rotinas laborais em si e aos proces-
sos de ascensão funcional, de progressão de carreira e de remuneração. Em todos
estes domínios pode-se observar a diferenciação racial com prejuízo direcionado
à população negra. Em decorrência disto e por outras razões já apontadas, esses
sujeitos têm se inserido em setores econômicos menos valorizados, têm menos ga-
nhos como resultado do incremento de escolarização e sofrem mais agudamente
os efeitos do desemprego.
Considerando que, na perspectiva do desenvolvimento profissional, refletir so-
bre a carreira é um aspecto importante para qualquer indivíduo, o que pensar en-
tão sobre aqueles sujeitos cuja empregabilidade é colocada em xeque por conta de
sua identidade étnica? Entretanto, quando Dutra, citado por Dias e Soares (2009),
realizou um estudo com profissionais de nível superior em 1993, observou que so-
mente 2% dos participantes havia pensado de forma sistematizada sobre a própria
carreira. Não obstante, considerando que a política de emprego de nossa socie-
dade é extremamente excludente, argumenta-se sobre a inclusão da orientação
profissional e de carreira como parte das ações afirmativas destinadas à população
negra.
Segundo dados do Censo Demográfico realizado pelo Instituto Brasileiro de Ge-
ografia e Estatística (IBGE), referente à coleta finalizada no ano de 2010, a popu-
lação negra representa aproximadamente 51% do total de brasileiros (soma das
categorias parda, 43,42% e preta 7,52%). Conforme a estatística, apenas 7,46%
da população possuía curso superior concluído, sendo que destes, 20,96% se de-
clararam pardos e 3,76% pretos. Números que vêm exponencialmente crescendo,
devido ao boom dos programas sociais e das ações de promoção ao ensino, tais
como as políticas de bônus e cotas, e o Programa Universidade para Todos (ProUni),
entre outros. Já no que diz respeito à quantidade de estudantes negros no mestra-
do e no doutorado, o Censo permitiu vislumbrar que apenas 0,32% dos brasileiros
possuía, até o ano de 2010, mestrado, e 0,12% doutorado. No entanto, ao observar
o contingente de mestres e doutores em suas totalidades, constatou-se que os
pardos contabilizam 15,70% dos mestres e 12,21% dos doutores, enquanto os que
se declararam pretos somam apenas 3,11% dos mestres e 2,36% dos doutores. Em
contrapartida, enquanto os brancos correspondiam a pouco mais de 47% da popu-
lação, 80% das pessoas com mestrado e doutorado no Brasil são brancas. Dentre
o número de professores, observa-se, conforme disposto no Censo da Educação

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Superior de 2012 , publicado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educa-
cionais Anísio Teixeira, órgão vinculado ao Ministério da Educação (BRASIL, 2012),
que entre o contingente de declarantes, 22% dos docentes são negros (20% pardos
e 2% pretos), enquanto 77% são brancos.
Este conjunto de dados permite pensar que ainda pouco se tem feito para a
inserção da pessoa negra na pós-graduação, na carreira acadêmica e docente. É
recente o movimento de se criar ações-afirmativas para a pós-graduação. Contudo,
auxiliar a entrada de tais sujeitos na pós- graduação ainda não é o suficiente, pois
isso não garante a sua permanência nos programas de formação, visto que uma
série de aspectos econômicos e psicoculturais devem ser assistidos; e, vencida a
etapa de um mestrado, nada assegura a continuidade dessa carreira em um dou-
torado ou na entrada no mercado de trabalho como docente. Levanta-se, desde
modo, a hipótese de que entraves sociais, historicamente colocados para a pessoa
negra, tais como o racismo e a desigualdade material e de oportunidades de vida,
dificultam a presença de referidos sujeitos nessa paisagem.

METODOLOGIA
A proposta metodológica do referido estudo consistiu em um convite direcio-
nado a egressos de programas de pós-graduação (mestrado e doutorado) em Psi-
cologia, que participaram
da produção de dados para a pesquisa através da realização de “entrevistas
narrativas” (JOVCHELOVITCH; BAUER, 2011). Foram ao todo quatro sujeitos, dois
homens e duas mulheres, sendo entre os homens um doutor, um pós-doutor; e as
ambas as mulheres doutorandas em processo de finalização de suas pesquisas.
As histórias foram reconstruídas através da sistematização de “narrativas fic-
cionais” (REIGOTA, 1999), sendo mescladas entre si e com outras informações do
campo, isto é, experiências que o pesquisador foi tomando nota em suas andanças
acadêmicas e empíricas, cujo registro não passou pelo encontro formal de entre-
vistas, mas se deu através de conversas sobre o tema e da observação de cenas
cotidianas. Como foram escutadas duas mulheres e dois homens, as histórias de
histórias levaram em conta as especificidades do gênero, sendo apresentado um
conto sobre uma personagem feminina que recebeu o pseudônimo de Niara; e ou-
tra masculina, que conta a história de Akin (nome fictício), para que assim possam
ser debatidas questões psicossociais da carreira.
Disso, extraiu-se as categorias conjecturadas a partir da avaliação feita pelo au-
tor em quatro eixos que atravessam todo o estudo, a saber: racismo, negritude,
carreira e Psicologia, na intenção de dar vazão e destaque aos aspectos das entre-
vistas que dizem respeito aos objetivos dapesquisa. Para esta construção, inspirou-
-se em alguns procedimentos da “análise temática” (RIESSMAN, 2008).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 551


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
RESULTADOS E ANÁLISE
Entre os resultados, do ponto de vista das trajetórias das pessoas entrevista-
das, destaca-se que não houve planejamento de carreira, mas a vida, conforme foi
se percebendo brechas, permitiu que cada uma vivesse os sonhos e desejos pro-
fissionais. Akin, por exemplo, é enfático ao dizer: “Olha, a verdade é que eu não
planejei a minha carreira. Tudo aconteceu por desejo e acaso” (sic.). Foi assim com
Niara também. Ela não passou por um processo de Orientação Profissional, nem
de planejamento de carreira. Contudo, informa os incentivos de um professor, que
não eram direcionados especificadamente a ela, mas aos estudantes do colégio. Isso
retira a importância dessa figura no cultivo dos sonhos dos jovens.

Eu não consigo discriminar quais eram as motivações exatamen-


te, mas eu entrei no ensino médio já sabendo que eu queria fa-
zer Psicologia. Eu não sabia em qual universidade, mas eu tinha
um professor de Matemática, eu estudei em Escola Técnica, que
era uma escola muito boa, apesar de ser uma escola pública. E
esse professor era um “guru de profissões”, a gente falava para
ele assim, quero cursar tal curso, e ele falava com a gente a uni-
versidade mais indicada. Ok, eu falei Psicologia, e ele me fez
uma indicação, indicou a [identificação da instituição retirada,
IES federal]. Eu nem sabia onde era, [...] mas aí [...] eu prestei
vestibular [...], mas não passei na primeira etapa. Além de fazer
o vestibular na [identificação da instituição retirada], eu tinha
feito o ENEM. E eu tinha tentado pelo ProUni não lembro se era
para [identificação da instituição retirada] ou outra [...], mas ti-
nha que participar e ganhar pela pontuação. E aí na pontuação
de Psicologia para você ir para alguma universidade particular
considerada boa aqui em [localidade retirada], tipo a PUC, era
um custo muito alto. Eu lembro que quando eu consegui fazer a
inscrição, era de acordo com a demanda. [...] Aí eu não consegui
para PUC. Eu tinha passado na [identificação da instituição reti-
rada, IES particular], [...]. Como eu não passei na [identificação
da instituição retirada, IES federal] de primeira, fui para essa fa-
culdade. Entendeu? (NIARA).

Esse trecho da narrativa de Niara exprime uma trajetória comum dos jovens ne-
gros e dos jovens pobres brasileiros. Foram-se em escolas públicas até a conclusão
do Ensino Médio, mas ao almejarem a continuação dos estudos, têm dificuldades
de se inserir nas Instituições públicas, que enfim são tomadas pelas elites. Então
Niara não conseguiu aprovação na instituição que desejava na sua primeira expe-
riência com o processo seletivo. Pois bem, o vestibular é isso: uma seleção, a qual
sob determinados critérios elege-se aqueles que estão aptos, que possuem mais
conhecimentos e habilidades para ocupar este espaço, ou melhor, aqueles que
possuem os conhecimentos e as habilidades legitimadas e reconhecidas, esperadas
por aqueles que serão seus formadores. E o que acontece com aqueles que ficam

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
de fora? Niara, a princípio, tentou investir na oportunidade que lhe apareceu, con-
tudo...

Fiz matrícula e [...] comecei. Eu fui por três dias, e falei, eu não
vou continuar, porque o nível de discussão, por eu ter tido a
oportunidade de poder estudar em uma escola que apesar de
ser pública era muito boa em si, eu lembro [...] de uma coisa
que me foi muito marcante, as pessoas não sabiam a diferença
entre mitose e meiose. E eu tinha acabado de prestar vestibular,
e tinha pensado: gente, como é que essas pessoas não sabem
isso? Hoje em dia eu sei sobre as diferenças de oportunidade de
vida, mas naquela época, assim, eu disse não, esse lugar não é
para mim. (NIARA).

Niara foi a primeira pessoa da família a se matricular no Ensino Superior. Então


comunicar à família que ela não levaria, naquele momento, esse projeto adiante, foi
um pouco conflitante. Não obstante, uma notícia inesperada resolveria a situação
ainda naquele semestre:

[...] todo mundo falou assim: Como assim você não vai fazer? [...]
eu não vou, eu mereço mais do que isso. Aí eu cancelei a matrí-
cula, e eu comecei a dar aula de espanhol. Eu tinha feito [...] um
curso para quem tinha desempenho bom na escola. [...] Nesse
meio tempo teve outra chamada, e eu fui chamada para a [iden-
tificação da instituição retirada, IES federal]. (NIARA).

Niara conseguiu. E ela verbaliza: “Aí eu pedi a conta, eu acho que esses foram os
dias mais felizes da minha vida” (sic). Mas agora um novo desafio, uma nova jornada
começa. Não obstante, ainda na falta de planejamento, o acaso parecia estar ao
seu favor:

Aí eu vou para essa [identificação da instituição retirada, IES fe-


deral], assim sem ter muita noção, eu não tinha dinheiro para
me manter na [identificação da instituição retirada, IES federal],
mas eu tinha introjetado essa ideia, eu não tinha pensado essas
questões de antemão, eu fui pensar na hora, de pensar sobre
moradia, alimentação. Aí eu descobri que tinha bolsa moradia,
bolsa alimentação Aí eu falei, tem isso, eu vou conseguir pelo
critério financeiro... em tese, pelo menos pensando sobre o
modo como estava escrito, aí eu fui fazer matrícula, aí eu conse-
gui a bolsa moradia e a bolsa alimentação. (NIARA).

A partir da fala de Niara, mais uma vez é possível apreender a importância das
políticas de permanência, para além da reserva de vagas e das demais ações de aces-
so ao Ensino Superior. Além de possibilitar a entrada desses jovens nas universida-
des, é preciso cuidar para que vençam os desafios da graduação. É preciso cuidar
para que se formem, que estudem em condições dignas de saúde, alimentação,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 553


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
moradia, lazer, convívio social e outros aspectos relacionados ao bem-estar e quali-
dade de vida. Chegar ao Ensino Superior é uma conquista, como foi com Niara. Ela,
então, narra a sua chegada ao curso de Psicologia da sonhada instituição federal:

No meu primeiro dia de aula, lembrando que eu entrei cerca


de um mês depois, era uma aula de bases neurais, e a aula era
traduzir artigos científico sobre modelos experimentais animais
de ansiedade e depressão [...]. Eu odiava em inglês, eu sabia o
suficiente para passar no vestibular. Então, assim, eu não conse-
guiria traduzir aqueles artigos [...] E eu quase chorei nesse dia.
[...] aí eu comecei a perceber o ambiente que eu estava entran-
do, que era um ambiente que não foi feito para negras, e que os
professores também não estavam, não tinha uma mínima sensi-
bilidade para entender a realidade de outros alunos, e conseguir
ter critérios diferentes. [...] Eu já fiquei com a nota mais baixa
em disciplinas porque eu tinha que assistir um filme, e eu não
tinha computador, eu não tinha DVD [...]. E a professora falou
“paciência”, e que eu ia ficar com zero, entre outras experiências
do tipo. Então, assim, muito difícil entre os professores de Psi-
cologia eles não tinham sensibilidade com aluno [...] que entrou,
que tem uma realidade que é totalmente díspar da realidade
que eles tinham ali. (NIARA).

Bourdieu (2007), ao analisar o sistema de ensino superior tradicional francês,


coloca que esse se caracterizava, na época, pela grande harmonia entre professo-
res e estudantes, porque os dois possuíam e compartilhavam níveis equivalentes de
capital cultural e representavam os mesmos grupos sociais. É com a chegada do es-
tudante com condições socioeconômicas e capital intelectual e cultural diferentes
– fruto do processo de democratização daquele sistema de ensino – que se começa
desestabilizar esta relação.
A exigência feita mostra que a universidade espera sim receber estudantes
prontos, com bagagem cultural e saberes avançados. A universidade tem recebido
aqueles que falam a sua mesma língua. E no caso da Psicologia, mostra como seu
ensino reproduz o seu viés colonizado. Obviamente, não se trata que um problema
exclusivo da Psicologia. Não obstante, o episódio narrado permite refletir que o
conteúdo e o estilo curricular dos cursos de graduação e pós- graduação oferecem
vantagens aos que possuem o capital linguístico educacionalmente valorizado, das
palavras rebuscadas e burguesas ao idioma dos colonizadores.
Deste modo, o vestibular (para a graduação) e igualmente o barema de ava-
liação dos processos de seleção de mestrados e doutorados continuam brancos e
colonizados, continuam exigindo dessas pessoas experiências e saberes distantes
dos seus. Capital cultural e intelectual se tornam moeda acadêmica. Interessante
pontuar que as experiências com maior valor atribuído nos esquemas de avaliação
de Programas de Pós-Graduação stricto sensu (iniciação científica e publicação de
artigo), no geral dependem exatamente de domínio sobre a linguagem dominante
e/ou de disponibilidade que não condiz com a realidade dos estudantes negros e

554 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
do estudante trabalhador. A seleção da pós-graduação repete e reinicia, assim, um
processo de exclusão.

Os professores não compreendem muito a nossa situação. A tal


da dedicação exclusiva, é como se não houvesse vida fora da
universidade. Mas a minha vida era diferente dos outros que
meu orientador estava acostumado. Na verdade, eu era o único
orientando negro que ele tinha tido até o momento. (AKIN).

A trajetória de Akin descreve cenas muito semelhantes, indicando que o proble-


ma não é de um contexto específico. Oriundo e família pobre, precisou conciliar
os estudos com o trabalho. Assim o foi durante a graduação, onde desempenhou
diversos ofícios sem relação à formação, apontando, inclusive, dificuldades para
efetivar vínculos de estágio na área da Psicologia:

[A minha graduação] foi difícil, e tinha professores que falavam


olhando para mim que certo tipo de pessoa não deveria estar na
faculdade. Ao mesmo tempo, era uma faculdade muito branca,
e sendo uma faculdade muito branca era difícil ser convidado
para... Aconteceu de eu estar interessado em um estágio, e da
pessoa [...] dar a oportunidade para outra pessoa [branca, mas]
inclusive com currículo bem inferior ao meu [...]. (AKIN).

Akin também precisou trabalhar durante boa parte da pós-graduação: “eu cli-
nicava na mesma cidade em que eu fazia mestrado. Eu atendia no mesmo dia que
eu fazia as matérias do mestrado. Assim, o dinheiro dos pacientes ajudava a pagar
o transporte, essas coisas” (sic.). Mas como já apontado, os dilemas da trajetória
da pessoa negra não dizem respeito apenas ao seu processo de escolarização, se
colocam também nas experiências de trabalho:

[...] teve uma coisa “engraçada”, quando eu passei no concur-


so. [...] ninguém imaginava que esse tal do professor Akin fosse
um crioulinho de 28 anos. E aí quando eu cheguei e fui atrás do
pessoal, [...] as pessoas acharam que eu era aluno. E quando des-
cobriam que eu não era aluno, me tratavam automaticamente
como se eu fosse o auxiliar da faxina que tinha acabado de ser
contratado. Eu fiquei muito, muito, muito, muito, muito mal...
[...] Tem umas pessoas no campus que até hoje quando vão falar
comigo, me chamam de professor umas três vezes. Pessoas que
tiveram essa atitude racista e ficaram incomodadas com isso. E
eu já escutei no meu trabalho as pessoas dizendo que eu não sou
negro. E aí eu pensei, como assim eu não sou negro? Eu sou ne-
gro olha para minha cor. E aí os meus colegas “não, Akin. Você
não é negro. Você é inteligente, você é educado, você sabe das
coisas... então você não é negro. Você é confiável”. (AKIN).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 555


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Mesmo então Akin chegado a uma posição social importante, claro, consideran-
do os muitos enfrentamentos em sua trajetória, tornar-se professor universitário
não o livrou de encarar cotidianamente o racismo em suas dimensões interpesso-
ais e institucionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Devido a brevidade desta comunicação, infelizmente, não é possível aprofundar
as questões apontadas. Contudo, a íntegra da pesquisa denota, entre outros, o
sentido do caminho trilhado pelos informantes e apresenta articulações e tensões
importantes sobre o debate racial e a Psicologia, considerando ainda a entrada das
epistemologias descoloniais nesta ciência e o que tem sido feito em seu contexto
para compreender e enfrentar o racismo estrutural. Acrescenta-se a isto o olhar
para a ampliação das ações afirmativas e do número de pessoas negras que têm con-
quistado espaço nos cursos de mestrado e doutorado em Psicologia, em contraste
com a baixa entrada profissional destas, após a obtenção do grau, ponderando so-
bre a “guetificação” desses sujeitos/as em áreas da Psicologia que se propõem com
mais facilidade debater a sua elitização e as relações raciais, entendendo que, para
além de um perfil profissional e de um engajamento político, isso exige analisar as
implicações dessa inclinação construída na carreira de cada uma dessas pessoas,
pois diz das relações de poder/saber e subalternização estabelecidas neste meio.
Por ora, as histórias ouvidas denunciam as diferenças materiais e simbólicas para
atravessar a graduação e a pós-graduação: aspectos familiares e seus desafios e
agenciamentos, dificuldades financeiras (conciliar estudo e trabalho), baixa repre-
sentatividade (presença de poucas ou nenhuma figura negra de referência no con-
texto acadêmico), poucos espaços de diálogo, mas diversos exemplos de situações
em que se denota injúria e preconceito racial.
No que concerne a apresentação aqui feita, é preciso pensar que permitir a en-
trada da pessoa negra nesse cenário branco não pode ser visto como um favor ou
como uma beneficência, já que abordamos uma dívida histórica concreta. Tampou-
co deve ser visto como algo que não necessite de acompanhamento e assistência.
No entanto, a sociedade tem insistido em dizer para esses sujeitos e sujeitas que já
que ousaram ocupar esse espaço, que lidem com as consequências.
De fato, é um perigo romantizar as trajetórias heroicas daqueles que vencerem
e que conseguiram sobreviver à graduação/pós-graduação. Essas pessoas não que-
rem apenas sobreviver à universidade, e aqui vale dar destaque ao significado que
o prefixo “sobre-” dá a esta palavra. Como um verbo transitivo, sobreviver significa
resistir, permanecer vivo depois de algo. Sobreviver então é luta, e lutar pode ser
um fardo. Esses sujeitos e sujeitas querem o que já lhes devia ser por direito: viver
(sem o sobre-) a universidade, assim como o podem muitos outros.

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
REFERÊNCIAS

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COSTA, E. V. Da senzala à colônia. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas Ltda, 2. Ed,
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DIAS, M. S. L.; SOARES, D. H. P. Planejamento de Carreira: uma orientação para estudantes


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INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – IBGE. Censo demográfico 2010.


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JOVCHELOVITCH, S; BAUER, M. W. Entrevista narrativa. In: BAUER, M. W.; GASKELL, G.

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RIBEIRO, M. A. Carreiras: novo olhar socioconstrucionista para um mundo flexibilizado.


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AUTORIA
Vilmar Pereira de Oliveira
Doutorando em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Graduado e
mestre em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Profes-
sor da Faculdade de Psicologia da PUC Minas.
E-mail: psi.vilmar@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1370-6857
Lattes: http://lattes.cnpq.br/9837094064630890

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
TODOS OS OLHOS EM NÓS: OS RELATOS DE
JUÍZAS E PROMOTORAS NEGRAS
Ingrid Marques Cabral

INTRODUÇÃO
Como enfatiza Djamila Ribeiro, citando Grada Kilomba, a mulher negra é o “ou-
tro do outro”, é a minoria (mulheres) da minoria (negras) nos cargos de alto pres-
tígio social como a magistratura e o ministério público. Nesse sentido, relatar as
vivências, experiências, desafios e perspectivas dessas mulheres é dar visibilidade
àquelas que, por vezes, são excluídas da história. Tendo em mente tal necessidade,
este trabalho busca relatar a experiência cotidiana de juízas e promotoras autode-
claradas negras, seu objetivo é, além de analisar eventuais casos de discriminação
racial e de gênero, examinar o processo de ingresso na carreira das entrevistadas
a fim de identificar singularidades que possam ter as impulsionado na ocupação
desses cargos.
Quanto à metodologia, foram realizadas entrevistas do tipo narrativas de vida
por meio de videoconferência, pautadas em um questionário semi-estruturado
com: 01 promotora de justiça do Estado do Maranhão, 01 promotora de justiça
do Estado do Paraná, 01 juíza federal da Bahia e 01 juíza do Estado do Rio Grande
do Sul. Só uma das entrevistadas quis ser identificada, assim, a fim de resguardar
a identidade das demais, foram usados nomes fictícios e as informações relacio-
nadas a ano de ingresso na carreira, local da Comarca, bairro de nascimento, e
outras que poderiam identificá-las, também foram suprimidas do texto. Por fim, é
importante ressaltar que, me valendo da definição de Raíza Feitosa Gomes em sua
dissertação de mestrado, a presente pesquisa busca se colocar no “campo de re-
sistência epistemológica” e priorizar o trabalho de pesquisadoras e pesquisadores
negros/as ou latino-americanos/as, com enfoque na produção de mulheres negras.

1. PROCESSO DE INGRESSO NA CARREIRA


A primeira entrevistada foi Maria Arlinda, ela tem 40 anos de idade, se autode-
clara como preta e está há 15 anos no exercício do cargo de promotora de justiça
do Estado do Maranhão. Ela é a primeira da sua família1 a iniciar um curso superior
em uma universidade federal e a primeira geração que tem acesso ao ensino su-
perior. Seu pai era torneiro mecânico, ele completou o ensino médio no ano que
ela tomou posse como promotora, e sua mãe era auxiliar de enfermagem e não

1 O termo família aqui mencionado refere-se aos ascendentes em linha reta.

558 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
iniciou o ensino médio. Ela tem dois irmãos, e ambos concluíram o ensino superior.
Atualmente é casada com um homem branco e não tem filhos.
Sobre seu processo de ingresso na carreira, afirma que quando passou no ves-
tibular para direito em uma Universidade Federal não tinha noção do que o direito
poderia trazer de potencialidade profissional para ela, pois, por ser a primeira ge-
ração no curso de direito, não tinha a tradição familiar e o parâmetro que muitos
outros colegas da faculdade tinham. Maria informou que sua educação sempre foi
prioridade dos seus pais e, graças a esse apoio, além de poder estudar em escolas
particulares da 7º série até o 3º ano do ensino médio, também pôde se dedicar
exclusivamente aos estudos durante sua preparação para o concurso e fazer cur-
sinho pago para ingresso na carreira e, após 02 anos de preparação, foi nomeada
no concurso almejado.
Após a investidura no cargo de promotora vivenciou situações de discrimina-
ção racial. Relata que, além de ter sido confundida com empregada doméstica no
prédio que mora, já teve que mostrar sua carteira funcional no trabalho, pois uma
atendida não acreditava que ela era a promotora de justiça. Uma experiência que
taxou como cotidiana é questionarem a ela onde está a promotora, mesmo que
sua sala tenha uma placa indicando que ali fica a promotora.
Outra participante da pesquisa foi Esperança Garcia, ela tem 36 anos de idade,
se autodeclara como negra e está há três anos no exercício do cargo de promotora
de justiça do Estado do Paraná. Ela é a primeira geração da família que tem acesso
ao ensino superior, seu pai é motorista e não completou o ensino fundamental e
sua mãe é auxiliar administrativa. Atualmente é casada com um homem branco e
tem 01 filho.
Sobre seu percurso educacional, Esperança afirmou que sempre estudou em
escolas públicas e, no ensino superior, conseguiu uma bolsa parcial no curso de
direito em uma faculdade paga. Após a faculdade, durante sua preparação para
o concurso não pôde se dedicar exclusivamente aos estudos, contudo, pôde fazer
cursinho pago para ingresso na carreira, e, após 02 anos de preparação, foi nome-
ada no cargo desejado. É importante pontuar que apesar de Esperança ser a única
das entrevistadas que foi beneficiada pela política de ações afirmativas para con-
cursos públicos, foi a única negra aprovada no certame.
No exercício do cargo de promotora de justiça, nunca vivenciou discriminações
raciais, porém, quando exercia o cargo de técnica judiciária e era assessora de uma
juíza, um homem se dirigiu a ela e disse, em tom jocoso: “onde a juíza estiver você
está atrás, seja levando a cadeira de praia ou o guarda sol”, numa tentativa de
inferiorizá-la.
Ruth de Souza, foi a terceira entrevistada, ela tem 46 anos de idade, se autode-
clara como preta e está há 18 anos no exercício do cago de juíza federal na Bahia.
Seu pai também é juiz federal e sua mãe é professora, ambos terminaram o ensino
superior. Ela tem 06 irmãos por parte de pai, e todos tem nível superior completo.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 559


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Ruth menciona que estudou em escolas públicas e particulares e, sendo aconse-
lhada por seu pai, que na época era advogado, começou a fazer o direito em uma
faculdade paga. Durante a faculdade, seu pai foi nomeado no cargo de juiz federal
e ela passou a ter um contato maior com a carreira, o que a motivou a seguir aque-
la profissão. Assim, no 4º período Ruth já sabia que queria ser juíza do trabalho e,
depois de formada, começou a se dedicar para o concurso, contudo, teve que con-
ciliar estudos e trabalho e não fez cursinho pago para ingresso na carreira.
Ruth foi vítima de diversas discriminações raciais, relata que sempre é seguida
em lojas de departamento, já sentiu olhares, incômodos e uma certa hostilidade
que reputa que sejam oriundas de discriminações de gênero e racial. Já foi “infor-
mada” que o elevador de serviço ficava em outro local, quando foi na casa de uma
amiga que mora em um prédio de luxo de Salvador e se dirigiu ao elevador comum
para chegar ao andar desejado.
A última entrevistada foi Ruby Bridges, ela tem 50 anos de idade, se autodeclara
como preta e está há mais de 20 anos no exercício do cargo de juíza do Estado do
Rio Grande do Sul. Ela pertence à 3ª geração de sua família que tem acesso ao en-
sino superior, seu pai era advogado, sua mãe era farmacêutica química e seus três
irmãos também terminaram o ensino superior.
Sobre seu processo de ingresso na carreira, Ruby informou que estudou 02 anos
em uma escola pública e o restante em uma escola particular. Fez o ensino superior
em uma instituição paga, não pôde se dedicar exclusivamente aos estudos durante
sua preparação para o concurso, mas pôde fazer cursinho pago para ingresso na
carreira.
Durante o exercício do cargo, informou que foi vítima de discriminação em au-
diência, quando foi chamada de macaca por uma pessoa que não ficou contente
com o teor da decisão por ela proferida. Além disso, menciona que já foi seguida
em shoppings, que precisa usar sua identidade funcional para “se proteger” de
eventuais discriminações e que o olhar dirigido a ela é sempre diferente, como se
ela não estivesse no lugar que “tinha que estar”.
A partir da breve descrição do processo de ingresso na carreira das entrevista-
das, verifica- se que todas estudaram em escolas ou faculdades particulares por
algum período, tiveram alguma espécie de apoio (ainda que não financeiro) da
família para estudar e foram aprovadas em até 03 anos de preparação. Somente
01 entrevistada pôde se dedicar exclusivamente aos estudos depois de formada
enquanto só 01 não fez cursinho pago para ingresso na carreira. Além disso, duas
entrevistadas não pertencem à primeira geração que tem acesso ao ensino supe-
rior e, algum de seus responsáveis, atua em carreiras privativas de bacharéis em
direito.
Tais considerações demonstram que o itinerário educacional dessas mulheres é
permeado de singularidades que não são compartilhadas pela maioria das pessoas
negras, principalmente as oriundas de classes populares. O levantamento sobre o
sistema educacional brasileiro em 2019, feito pela Pesquisa Nacional por Amostra

560 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), demonstrou que existe uma diferença
nas oportunidades educacionais entre brancos e negros que influencia na taxa do
analfabetismo, no término do ciclo educacional básico, na evasão escolar, no aces-
so ao ensino superior e na obtenção de diploma de graduação.
Esses dados de 2019 só reforçam o que Lélia Gonzalez e Carlos Hasenbalg já
afirmavam em 1982: “o negro enfrenta uma estrutura de oportunidades sociais
diferente e mais desfavorável que a do branco”2. Para os autores, essa desigual-
dade não se justifica, tão somente, por um “legado do passado”, ela se perpetua
em virtude da “estrutura desigual de oportunidades sociais que brancos e negros
estão expostos”3.
Nesse sentido, apesar de Maria, Esperança, Ruth e Ruby terem ultrapassado
diversas barreiras e se dedicarem por anos para ocuparem os cargos que ocupam,
precisamos empreender esforços pra evitar que seus relatos sejam utilizados, de
forma distorcida, para justificar que só não ocupa determinado espaço quem não
se esforça o suficiente, sob o fundamento de que, nos concursos públicos, os crité-
rios seriam “objetivos” e os participantes concorreriam em pé de igualdade.
Essas justificativas mencionadas se baseiam em uma lógica meritocrática que,
para Jessé de Souza4, naturaliza a desigualdade e justifica seu processo de repro-
dução como resultante da trajetória da pessoa, como se os próprios indivíduos fos-
sem responsáveis pela sua marginalização, como se eles próprios fossem culpados
pela discriminação sistêmica a que são acometidos. Além disso, essa lógica acaba
taxando como razoável exigir um empenho e dedicação muito superior de candida-
tos/as negros/as, como se fosse aceitável impor que certas pessoas, por não terem
certos privilégios que são “transmitidos por herança”5, empreendam um esforço
demasiadamente maior que os demais candidatos brancos.
Assim, apesar de ser importante destacar que as entrevistadas empreenderam
um esforço muito significativo para serem nomeadas nos concursos almejados,
não podemos ignorar que seus relatos são marcados por singularidades que, além
de não serem compartilhadas pela maioria das pessoas negras no Brasil, não es-
tão diretamente relacionadas ao seu esforço individual, mas sim a especificidades
sociais, econômicas e familiares que podem ter as impulsionado no processo de
ascensão ao cargo. Afinal, estudar em escolas particulares, ser aconselhada/orien-
tada a investir em sua educação, fazer cursinho pago para ingresso na carreira, ter
familiares que atuam em carreiras jurídicas, ter apoio (ainda que não financeiro)

2 GONZALEZ, Lélia; HASENBALG, Carlos. Lugar de negro. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1982, p.
97.
3 Ibid, p. 98.
4 SOUZA, Jessé. Subcidadania brasileira: para entender o país além do jeitinho brasileiro. Rio
de Janeiro: LeYa, 2018, p. 30.
5 GOMES, Raíza Feitosa. Magistradas negras no Poder Judiciário brasileiro: representatividade,
política de cotas e questões de raça e gênero. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Fede-
ral da Paraíba, 2018, p. 71.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 561


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
da família para estudar, são fatores que podem ter as impulsionado na ocupação
do cargo almejado.
A partir da análise dos relatos apresentados e, tendo como base as considera-
ções de Lélia Gonzalez6, Sueli Carneiro7, Angela Figueiredo8 e Azevedo9 constata-se
que a mobilidade ascendente do negro brasileiro, além de ser marcada pelo uso
de estratégias individuais, se caracteriza por ocorrer em termos individuais. Desse
modo, parece que a ascensão dessas mulheres negras a cargos de alto prestígio em
carreiras jurídicas é um processo de mobilidade individual marcado por singulari-
dades que são compartilhadas por uma minoria negra, assim, essa mobilidade não
seria aplicável à comunidade negra em geral, visto que se referem a um processo
de mobilidade individual de alguns/as negros/as.

AS DISCRIMINAÇÕES RELATADAS
As discriminações relatadas foram tão profundas e tão numerosas que não po-
derão ser abordadas em um único artigo, portanto, busca-se descrever alguns, dos
muitos, relatos de discriminação racial vivenciadas pelas entrevistadas.
A literatura está permeada de relatos de intelectuais e profissionais negros/as
que foram vítimas dessa espécie de discriminação. Beatriz do Nascimento, pontua
que, em algumas situações precisava apresentar praticamente todo seu “curricu-
lum vitae para ser um pouquinho respeitada.”10. Daniela Kabengele, ao pesquisar
o itinerário do professor Cesarino Junior, concluiu que ele, “mesmo com a máxima
formação educacional que atingiu, foi, como todos os afrodescendentes brasilei-
ros, racialmente discriminado.”11
No mesmo sentido, Raíza Feitosa, ao examinar os itinerários de magistradas
negras, apresentou diversos casos de racismo vivenciado por elas, dentre eles: ser
chamada de “crioula safada”, ouvir que o cabelo cacheado não combina com a ma-
gistratura, ser frequentemente confundida com a estagiária e precisar de mais
de 10 anos no exercício do cargo para ser reconhecida pelas pessoas como

6 GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômi-


ca. In: RODRIGUES, Carla; BORGES, Luciana; RAMOS, Tania Regina Oliveira. (Org). Problemas de gênero.
Rio de Janeiro: Funarte, 2016, p. 409.
7 CARNEIRO, Sueli. Gênero Raça e Ascensão Social. Revista Estudos Feministas, Florianópolis,
jan. 1995, p. 548.
8 FIGUEIREDO, Angela. Classe média negra: trajetórias e perfis. Salvador: EDUFBA, 2012, p. 27-
28.
9 AZEVEDO, Thales. As elites de cor: um estudo de ascensão social. São Paulo: Comanhia Edito-
ra Nacional, 1955, p. 195.
10 RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo:
Imprensa Oficial, 2005, p. 96.
11 11 KABENGELE, Daniela. Notas sobre o itinerário do professor Cesarino Junior (1906-1992):
Investimento familiar na formação educacional e questão racial. Interfaces Científicas - Educação •
Aracaju • V.6 • N.3 • p. 171 - 182 • Junho – 2018, p. 180.

562 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
magistrada. Tal pesquisa demonstrou que mesmo após a ascensão ao cargo, as
juízas sofriam preconceitos de cunho racial.12
Porém, apesar da comunidade negra como um todo estar sujeita a essa espécie
de discriminação, as mulheres negras estão em nível mais alto de opressão, isso
porque, como nos ensina Lélia Gonzalez, “Ser mulher negra no Brasil é ser objeto
de tripla discriminação, uma vez que os estereótipos gerados pelo racismo e pelo
sexismo a colocam no mais alto nível de opressão"13. Tanto é assim, que o relato
das mulheres que foram ouvidas para esta pesquisa é permeado não só de discri-
minação racial, mas também de discriminações de gênero que estão intimamente
relacionadas entre si.
Segundo Grada Kilomba “raça e gênero são inseparáveis” e não devem ser ana-
lisados separadamente, pois as “construções racistas baseiam-se em papéis de
gênero e vice-versa (...)”14 de modo que a realidade da mulher negra seria “um fe-
nômeno híbrido”15, que só pode ser abordado adequadamente se esses conceitos
forem levados em consideração. Nesse sentido, é imprescindível pensar em como
essas discriminações se entrelaçam e se relacionam e como as mulheres negras
que exercem determinada função podem sofrer um nível mais alto de opressão
do que os homens negros ou mulheres brancas que ocupam as mesmas funções.
Como bem elucida Djamila, “Pensar como as opressões se combinam e entrecru-
zam, gerando outras formas de opressão, é fundamental para se pensar outras
possibilidades de existência.”16
Um exemplo dessas discriminações que envolvem a objetificação da mulher ne-
gra e o desrespeito no trato com mulheres negras que atuam em cargos de autori-
dade, Maria Arlinda descreve a seguinte situação:

[...] muitas vezes eu estava tentando fazer um acordo, uma ne-


gociação dentro da promotoria e houve atendidos que vieram
para mim e falaram assim: “não meu amor, oh minha flor, oh
minha princesa, oh minha nega”, no sentido de diminuir minha
autoridade ali, e eu, muitas vezes, tive que falar duramente:
“olha, eu estou te tratando aqui por senhor, gostaria de ser tra-
tada, pelo menos como senhora. Não precisa dizer doutora, mas
senhora acho que é um tratamento adequado e respeitoso.

12 GOMES, Raíza Feitosa. Magistradas negras no Poder Judiciário brasileiro: representatividade,


política de cotas e questões de raça e gênero. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Fede-
ral da Paraíba, 2018, p. 51, 52, 75, 77, 79.
13 GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômi-
ca. In: RODRIGUES, Carla; BORGES, Luciana; RAMOS, Tania Regina Oliveira. (Org). Problemas de gênero.
Rio de Janeiro: Funarte, 2016, p. 404.
14 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro:
Editora Cobogó, 2019, p. 94.
15 Ibid, p. 98.
16 RIBEIRO, Djamila. Feminismo negro para um novo marco civilizatório. Sur- Revista Internacio-
nal de Direitos Humanos - V. 13 n.24 • 99 - 104, 2016, p. 99.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 563


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Raíza Feitosa, em sua dissertação de mestrado, também apresenta o caso de
uma Juíza Federal negra que, ao chegar na Justiça Federal para trabalhar foi rece-
bida com seguinte frase: “chegou a mulata mais bonita da Justiça Federal!”, e ela,
assim como Maria Arlinda, precisou se impor e respondeu: “Eu não sou mulata, sou
negra, e eu sou a juíza e não lhe dou essa liberdade.”17, porém, foi repreendida por
seus colegas, sendo taxada como grossa e ignorante.
Essas falas não podem ser reduzidas à discriminações raciais, eis que elas tam-
bém perpassam por discriminações de gênero, sexismo e estereótipos que asso-
ciam um corpo negro feminino a um objeto sempre disponível sexualmente, para
Grada Kilomba, “historicamente essas mulheres têm tido essa função de serem
corpos sexualizados”.18
Sueli Carneiro menciona, ainda, que mulheres negras são desvalorizadas em to-
dos os níveis, inclusive esteticamente.”19 Lélia Gonzalez, no mesmo sentido, argu-
menta que existe uma “seleção racial”20 sobre a minoria das mulheres negras que
atingiram altos níveis de escolarização. Essa seleção e desvalorização da estética
negra também foram identificadas nos relatos, a exemplo de Maria Arlinda que
recebeu diversas negativas em locais de trabalho, não em razão do seu histórico
escolar, mas sim em razão “do seu perfil”. Essas negativas se tornaram tão corri-
queiras que ela decidiu começar a fazer concursos, por acreditar, que, talvez, o
processo de seleção seria mais “objetivo”.
Maria descreve, ainda, que os locais que lhe negavam a vaga de emprego sem-
pre se justificavam informando que ela “não tinha o perfil do escritório” e ela,
depois de muito ouvir essas frases, alisou seus cabelos cacheados, na tentativa de
se adequar21 ao mercado do trabalho, contudo, ela relata que: “mesmo assim, eu
ainda não tinha o perfil. Eu nunca recebi nãos em razão do meu histórico escolar,
mas era sempre o meu perfil.”.
Sobre a estética negra e, principalmente, o cabelo associado ao corpo negro,
Kilomba pontua que ele é lido como “o mais visível estigma da negritude” e, conse-
quentemente, é extremamente rejeitado, de modo que pessoas negras são pres-
sionadas a alisá-los, como forma de “controle e apagamento dos chamados ‘sinais
repulsivos’ da negritude.”22

17 GOMES, Raíza Feitosa. Magistradas negras no Poder Judiciário brasileiro: representatividade,


política de cotas e questões de raça e gênero. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Fede-
ral da Paraíba, 2018, p. 94.
18 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro:
Editora Cobogó, 2019, p. 141.
19 CARNEIRO, Sueli. Gênero Raça e Ascensão Social. Revista Estudos Feministas, Florianópolis,
jan. 1995, p. 547.
20 GONZALEZ, Lélia. A mulher negra na sociedade brasileira: uma abordagem político-econômi-
ca. In: RODRIGUES, Carla; BORGES, Luciana; RAMOS, Tania Regina Oliveira. (Org). Problemas de gênero.
Rio de Janeiro: Funarte, 2016, p. 404.
21 Falou essa palavra fazendo o sinal de aspas com as mãos.
22 KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro:
Editora Cobogó, 2019, p. 127.

564 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Além disso, Maria Arlinda relata que, mesmo após ser nomeada e começar a
exercer a função de promotora de justiça, não era reconhecida como tal. Ela relata
que na sua sala tinha uma placa com letra legível indicando que ali ficava a pro-
motora de justiça, entretanto, era comum as pessoas olharem a placa, entrarem
na sala e, mesmo vendo que ela era a única que estava na sala, perguntavam onde
estava a promotora de justiça. Situações parecidas aconteciam com Ruth, ela in-
forma que pessoas chegavam ao Fórum, olhavam para ela, e perguntavam onde
estava a juíza.
Ruby Bridges, uma juíza estadual, relatou acontecimentos similares:

A nossa sala é em forma de U, e no meio desse U tem uma ca-


deira, que fica posicionada de frente para a juíza. A funcionária
que fica na porta pede as pessoas para se sentarem na cadeira
de frente para juíza. Uma mulher entrou e ouviu da funcionária:
“olha a senhora entre e sente de frente para a juíza”, então ela
pegou, virou a cadeira e sentou de frente para a advogada que
era branca e loira... na cabeça dela a juíza não poderia ser eu.
[...] isso eu já vi acontecer algumas vezes, mas no início da minha
carreira eu não me dava conta de que era por isso. [...] outras
pessoas, apesar de não moverem a cadeira, sentavam viradas
para outras pessoas brancas da sala.

Essas espécies de vivências foram tão comuns na dissertação de mestrado de


Raíza Feitosa, que originaram um livro nomeado “Cadê a juíza?”, justamente em
decorrência dessa dificuldade em reconhecer um corpo negro como detentor de
um cargo de alto prestígio social.
Beatriz do Nascimento acrescenta também que pessoas negras são normalmen-
te confundidas com classe social economicamente rebaixada.23 Tanto é assim que
algumas entrevistadas para esta pesquisa relatam que já foram confundidas com
funções de pouco prestígio social e que pagam baixos salários. A exemplo de Maria
Arlinda, que narrou que mora em um bairro de classe média/alta e que ela e seu
marido, que é branco, foram se apresentar aos porteiros quando compraram um
apartamento nesse bairro, porém, um dos porteiros, antes dela dizer que era mo-
radora, perguntou ao seu marido se ela era a sua secretária do lar.
Ruth de Souza também vivenciou situação parecida, informou que foi na casa
de uma amiga que mora em um prédio de luxo na cidade de Salvador, quando
estava “bem simples, bem à vontade e de chinelo”, do jeito que gosta de passear,
e, ao entrar no prédio foi para o elevador, porém, foi abordada por uma mulher
negra que trabalhava na limpeza do condomínio que disse: “não, o elevador de
serviço é por ali.”. Ruth ficou paralisada, e acompanhou a mulher até o elevador,
e, no momento que ele abriu, o marido de sua amiga (que havia acabado de sair da
academia e, por isso, usou o elevador de serviço), a viu, e questionou por que ela

23 RATTS, Alex. Eu sou atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo:
Imprensa Oficial e Instituto Kuanza, 2005.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 565


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
estava usando aquele elevador. Ela menciona que, na hora, não teve reação, não
respondeu, não questionou, mas que depois, ao ler Djamila, formulou a seguinte
frase para quando essas ocasiões acontecerem: “O que te faz crer que eu tenho
que usar o elevador de serviço?”
Essas discriminações que confinam o corpo negro a cargos de baixo prestígio
social e que pagam baixos salários afetam, inclusive, as relações de consumo. Lídia
Celestino, em sua dissertação de mestrado que pesquisa negros em ascensão so-
cial, demonstra diversas situações de discriminação racial que perpassam as rela-
ções de consumo e conclui que “não se espera que um negro more de frente para
o mar ou mesmo dirija um carro novo e caro”, isso porque “predomina a idéia do
negro em uma condição inferior nas camadas sociais”.24
No que se refere à discriminação racial e as relações de consumo, Esperança
Garcia menciona que ela e sua mãe, ao irem ao shopping, sempre procuram ir um
pouco mais “arrumadas”, eis que já sentiram algumas discriminações que, para ela,
“são mais sutis”, como certos olhares e vendedores esperando mais tempo para
atendê-las. Maria Arlinda também vivencia situações parecidas, para ela, existe
uma pressão estética sobre as pessoas negras, eis que elas são obrigadas a se man-
terem “arrumadas” o tempo todo.
Maria acrescenta, ainda, que certa vez entrou em uma loja e perguntou o preço
de um sapato para vendedora que respondeu que não havia produto naquela loja
para ela. Maria, surpresa, agradeceu a resposta, perguntou a outra vendedora se
poderia atendê-la, e após comprar 10 pares de sapado, se dirigiu à primeira fun-
cionária e disse: “que pena que você não tinha produto para mim aqui, imagina
se tivesse...”. Maria, ao relembrar o ocorrido, informa que talvez, hoje, não teria
respondido a discriminação racial com o consumismo. Ruth também acrescentou
que já comprou itens em loja “só de raiva”, como forma de reagir a discriminações
que ela avalia como raciais e de gênero.
Ruth também mencionou que quando entra sozinha em uma concessionárias
e lojas fica lá “mofando” até alguém aparecer, e que quando entra em algumas
lojas, principalmente em shoppings, algumas pessoas agem como se ela não ti-
vesse capacidade financeira e econômica para consumir naquela loja. Quando ela
frequenta lojas de departamento as discriminações são ainda mais intensificadas,
ela relata que sempre é seguida, como se existisse uma desconfiança constante em
relação a sua presença.
Para evitarem tais ocasiões, Ruth narra que passou a se fidelizar em algumas
lojas, Esperança menciona que procura ir “um pouco mais arrumada” para sho-
ppings, já Ruby começou a usar sua identidade funcional como documento de
identificação, justificando que: “eu uso minha identidade funcional porque ela me
protege, assim como todo homem negro não sai de casa sem a sua carteira de

24 OLIVEIRA, Lídia Celestino Meireles de. Negros em ascensão social: poder de consumo e visi-
bilidade. Dissertação (Mestrado em Antropologia) - Universidade Federal Fluminense, 2002, p. 20.

566 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
identidade, sair com a carteira funcional me dá um certo reconforto.”, ela enfatiza
que não o faz com o intuito de “dar carteirada”, mas sim para se proteger.
Maria Arlinda, no mesmo sentido, informou que sempre quando chega, a tra-
balho, em um local novo, se apresenta como promotora de justiça antes mesmo de
falar seu nome, eis que já ouviu alguns de seus colegas negros mencionarem que,
ao se identificarem só com o nome, ouviram dos funcionários que os “acusados
ficavam em outro local”.
Para Maria, tais episódios demonstram que a barreira de cor não é ultrapassada
pelo cargo, isso porque o fato de estar no cargo não priva os profissionais negros
de falas e posicionamentos racistas de modo:

Toda vez que eu chego em uma Comarca nova (...) a primeira


coisa que eu tenho que dizer é: olá, eu sou promotora de justiça
(...) eu digo isso, não porque eu gostaria de ficar dando carteira-
da Ingrid, não é um elitismo, (...) é que antes quando eu só per-
guntava: “é aqui que vai acontecer a audiência?”, antes de me
apresentar como promotora, eles falavam: “não, não, advogado
fica lá fora (...) Até quando a gente vai continuar permitindo que
eles (negros/as) precisem dizer o cargo deles antes de entrar em
uma sala?” (grifo nosso)

Os relatos acima apresentados demonstram como o racismo e as discrimina-


ções de gênero também perpassam diversas esferas da vida de mulheres negras
que ocupam cargos de alto prestígio social e que percebem remunerações muito
superiores ao salário mínimo vigente no Brasil. Frisa-se que juízas e promotoras
negras, apesar de serem vítimas de discriminações constantes, possuem acessos
e mecanismos para lidar com essas discriminações que outras mulheres negras
e pobres não possuem, porém, tais mecanismos não são capazes de extinguir o
racismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base nos argumentos, dados e fundamentos desenvolvidos durante esta
pesquisa é possível concluir que a ascensão das entrevistadas aos cargos anali-
sados ocorreu enquanto processo de mobilidade individual marcado por singula-
ridades que não são compartilhadas pela maioria das pessoas negras, portanto,
essa mobilidade não pode ser taxada como coletiva, eis que não seria aplicável à
comunidade negra em geral.
Quanto às discriminações raciais vivenciadas, todas as entrevistadas relataram
alguma espécie de discriminação racial sofrida, ao passo que, as discriminações
mencionadas também perpassam por questões de gênero. Nesse sentido, a partir
dos relatos apresentados, é possível concluir que as mulheres negras estão sujei-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 567


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
tas a sofrer um nível mais alto de opressão do que homens negros e, até mesmo,
mulheres brancas. Por conseguinte, para se pensar no combate do racismo em ins-
tituições jurídicas é imprescindível levar em conta as questões de gênero que, para
Grada Kilomba, estão intimamente relacionadas e não podem ser compreendidas
isoladamente.

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Thales. As elites de cor: um estudo de ascensão social. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1955, p. 195.

CARNEIRO, Sueli. Gênero Raça e Ascensão Social. Revista Estudos Feministas, Florianópo-
lis, v. 3, n. 2, p. 544, jan. 1995.

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
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AUTORIA
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Mestranda em Ciências Sociais na Universidade Federal do Espírito Santo
E-mail: ingridmarquescabral@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2170604362249514

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 569


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
PRODUZINDO SUBJETIVIDADES: A IDEOLOGIA
DO BRANQUEAMENTO E O MITO DA
DEMOCRACIA RACIAL NO BRASIL

Marcela de Souza Rocha

Então, por que eu escrevo?


Escrevo, quase como uma obrigação,
Para encontrar a mim mesma.
Enquanto eu escrevo
Eu não sou o Outro
Mas a própria voz Não o objeto,
Mas o sujeito.
Grada Kilomba – Enquanto eu escrevo

INTRODUÇÃO
Os conceitos que acompanham negras e negros no Brasil, são os resultados de
relações de poder, construídas sócio historicamente. São frutos de um saber racis-
ta, branco, científico e religioso. Atualmente, o tema da discriminação racial ganha
cada vez mais espaço na sociedade e o que era silencioso, agora é exposto e acon-
tece escancaradamente, com o suporte do discurso político. A maneira pela qual a
sociedade foi estruturada, colabora para a naturalização das desigualdades sociais
e dos privilégios. Portanto, pensar em como subjetividades são produzidas, mol-
dadas e serializadas, se torna uma discussão pertinente, não só para as ciências
humanas, mas para as sociedades como um todo, pois é através de uma análise
mais profunda desses processos, que é possível compreender certos discursos,
operações, comportamentos, entre outros atos, na sociedade.
Para tecer esse estudo, foi necessário conhecer as histórias por trás das ditas
oficiais, estas que causam estranheza e incômodo para aqueles que cresceram ali-
cerçados numa historicidade produzida pelo lado dos ditos “vencedores”. Nessa
perspectiva as teorias e relatos de Cecília Coimbra em Operação Rio: o mito das
classes perigosas, Lília Ferreira Lobo no livro, Infames da História e Kabengele Mu-
nanga em Rediscutindo Mestiçagem, foram fundamentais. A coleta dos dados, foi
realizada nas bases: PePSIC, SciELO, BVS-Psi, e PSICODOC, a partir dos descritores:
produção de subjetividade, negro e identidade, ideologia de branqueamento, sub-
jetividade afro-brasileira, racismo, mito da democracia racial, representação social
e dispositivo de mestiçagem. Além de artigos científicos, a revisão bibliográfica
dos autores: Frantz Fanon, Michael Foucault, Silvio Almeida, Neusa Santos Souza,
Felix Guattari e Suely Rolnik, foi realizada. O presente trabalho é um compilado da

570 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Monografia defendida em 2019 no curso de Psicologia, da Faculdade Católica Sa-
lesiana e sustenta a ideia de uma problematização da produção de subjetividades
pautadas no ideal do branco, na prática do embranquecimento, alimentada pela
crença de uma democracia racial, fincada num dispositivo de mestiçagem.

DA ESCRAVIDÃO AO BRASIL REPÚBLICA


As atrocidades cometidas na escravidão por mais de 300 anos contra o povo
africano, deixou marcas cruéis na civilização. No que tange as relações raciais no
Brasil, é preciso destacar que a maneira como elas foram articuladas, resultou em
um racismo perverso e naturalizado. Então, cabe questionar quais são os instru-
mentos que validam essa forma de opressão. Quando Adichie (2009) realizou sua
palestra no TED, alertou para os perigos de uma única história. Contou que estas,
quando propagadas em massa, se tornam verdadeiras e constroem estereótipos
de pessoas e/ou lugares, deturpando identidades. De acordo com a autora, como
as histórias são contatas, quantas vezes e quem as conta, tem relação direta com
o poder.
Tomemos como partida, então, a Lei Áurea. O saber transmitido referente a
esse período histórico, diz de uma princesa chamada Isabel, que libertou o povo
africano escravizado. Entretanto, Carvalho (2001) explana que no século XIX re-
voltas constantes advindas dos escravos, acirravam o clima entre branco e pretos.
Para além disso, alguns intelectuais passaram a se engajar na luta pela abolição,
pois em outros países, a mão-de-obra negra, já havia sido extinta. Os argumentos
eram de que o regime escravocrata prejudicava o desenvolvimento econômico do
país. A Lei do Ventre Livre, Fundo de Emancipação e pressões internacionais pela
abolição, também colaboraram para que em 1888, a princesa Isabel assinasse a Lei
Áurea. Ou seja, a princesa branca europeia, não é uma heroína. A lei só foi assinada
mediante fortes conflitos e pressões sociais.
Na história do Brasil, não consta o nome de Jose Luís Napoleão e Francisco José
do Nascimento, jangadeiros, conhecidos pela população do Ceará no século XIX,
como Dragões do Mar. Esses dois homens foram responsáveis por liderar a revolu-
ção dos jangadeiros, em que se recusaram a transportar os escravos vendidos para
o sul do país aos navios negreiros. Tal marco de resistência popular não-branca,
culminou na abolição da escravatura no Ceará em 25 de março de 1884 (MARTINS,
2012). Quatro anos antes da oficial abolição da escravatura, entretanto, o discurso
propagado é o da salvadora princesa Isabel. Leandro Viera, figurinista e carnavales-
co da Mangueira, escreveu na página virtual da escola de samba:

[...] Sem saber quem somos, vamos a “toque de gado” espe-


rando “alguém pra fazer a história no nosso lugar”, quiçá uma
“princesa”, como a ISABEL, a redentora, que levou a “glória” de
colocar fim ao mais tardio término de escravidão das Américas.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 571


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Nunca esperaremos ser salvos pelos tipos populares que não
foram para os livros.  Se “heróis são símbolos poderosos, encar-
nações de ideias e aspirações, pontos de referências, fulcros de
identificação” a construção de uma narrativa histórica elitista e
eurocêntrica jamais concederia a líderes populares negros uma
participação definitiva na abolição oficial. Bem mais “exemplar”
a princesa conceder a liberdade do que incluir nos livros escola-
res o nome de uma “realeza” na qual ZUMBI, DANDARA, LUIZA
MAHIN, MARIA FELIPA assumissem seu real papel na his-
tória da liberdade no Brasil (VIEIRA, 2019).

Com o enredo “História para ninar gente grande”, a escola Estação Primeira da
Mangueira, denunciou na maior e mais popular festa do Brasil, as histórias que
a história não conta. O perigo da única história, é que ela instaura verdades e de
acordo com Foucault (2013) é sustentada por livros, bibliotecas e edições. Por essa
razão o autor defende, que:

A historicidade que nos domina e nos determina é belicosa e


não linguística. Relação de poder, não relação de sentido. A his-
tória não tem “sentido”, o que não quer dizer que seja absurda
ou incoerente. Ao contrário, é inteligível e deve poder ser anali-
sada em seus menores detalhes, mas segundo a inteligibilidade
das lutas, das estratégias, das táticas. (FOUCAULT, 2014, p.41)

A escravidão foi fortalecida com a benção da Igreja, que enxergava o africano


como um ser sem alma e, o saber científico, que o definia como inferior e propen-
so a criminalidades e vícios. Balera e Diniz (2013), ao abordarem as teses científi-
cas durante a escravidão, apontam Cesar Lombroso psiquiatra e cirurgião, como
aquele que elaborou teorias em que se afirmavam características genéticas como
responsáveis por determinada periculosidade. Na tese de Cesar Lombroso o cri-
minoso nato, seria aquele de grandes maxilares, cabelos crespos e escuro, nariz
achatado e lábios grossos. Resumindo: o criminoso e sua tendência a criminalidade
era, geneticamente falando, a herança do negro.
Durante todo o período escravagista, as relações entre brancos e negros, eram
marcadas por torturas, estupros, humilhações e assassinatos. Esse período de três
séculos precisa ser compreendido como aquele que instaurou modos de vida na
sociedade e as subjetividades, no que tange as relações raciais no Brasil, foram
produzidas nesse campo histórico-social, extremamente violento. André (2007)
aponta que essa produção não é da ordem do privado, pois ela se constrói e sus-
tenta nas interações sociais. Logo, as subjetividades são produzidas a todo instante
da história. Por essa razão, Coimbra (2001, p.17) defende que, pensar subjetivida-
des, significa datá-las “historicamente, não sendo, portanto, naturais, pois dizem
respeito à produção de nossos modos de viver e existir nesse mundo”. Quando
Guattari e Rolnik (1996) pensaram subjetividades, destacaram que sua fabricação é

572 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
social. Mediante isso, a escravidão precisa, urgentemente, ser encarada como um
sistema social que instituiu modos de ser, viver e pensar em sociedade.
O discurso científico do século XIX, colaborou para a exclusão do corpo negro,
nas novas relações trabalhistas. O que ficou fincado na sociedade pós-abolição, foi
de sua improdutividade. Lobo (2008, p.197) conta que o negro “figurava sempre
no último lugar da inferioridade humana, ponto de vista intelectual (menos evo-
luído, retardado), moral (pervertido, degenerado) e físico (mais sujeito a doenças)
”. Jogado a própria sorte, sem valor como ser humano, cidadão ou mão de obra
livre, restou-lhe apenas o fardo social de ser perigoso, inútil e propenso aos vícios.
A demência e o alcoolismo eram classificados como doenças próprias dos negros,
sendo a imbecilidade algo inato, pois seu cérebro não comportaria grandes expan-
sões intelectuais. Então, para elite brasileira “que futuro teria o Brasil povoado por
uma escória de negros e mestiços? ” (LOBO, 2008, p. 203).
Na esperança de resolver esse “problema”, as políticas imigrantistas foram re-
forçadas. O Decreto n° 9.081 de 03 de novembro de 1911, elaborado no governo
de Hermes Rodrigues da Fonseca, presidente do Brasil de 1910 a 1914, incenti-
varam a entrada de imigrantes europeus (BRASIL, 1911). Os estudos de Carone e
Aparecida (2016), assim como os de Azevedo (1987), denunciam que para além do
desejo de povoar o país com pessoas brancas, existia o medo pela grande quanti-
dade de ex-escravos, desproporcional ao número de brancos. Nessa lógica, o
governo custeou passagem, hospedagem e até atendimento médico aos imi-
grantes europeus, fazendo com que em 30 anos, adentrassem cerca de 3.99 mi-
lhões de europeus, quantitativo próximo a 4 milhões de africanos escravizados ao
longo de três séculos.
Essas políticas imigrantistas iam de encontro com um projeto de embranque-
cimento. Ao contrário dos Estados Unidos, que delimitaram constitucionalmente
uma linha de cor, o Brasil cultivou e desenvolveu um dispositivo de controle, capaz
de tornar as identidades homogeneizadas e os corpos dóceis Tadei (2002) nomeia
essa ferramenta de dispositivo de mestiçagem1.
Munanga (1999) ao rediscutir o processo de mestiçagem no Brasil, direciona
atenção para o mulato e a armadilha que foi a concepção de negros de pele mais
clara, serem superiores a negros de pele escura. O autor conta, por exemplo, que
enquanto nos Estados Unidos os mulatos eram vendidos como escravos, no Brasil
em 1872, 78% eram livres. A questão é que não eram de fato livres e sim, estrate-
gicamente colocados em posições de liderança perante os demais escravos, para
defender os interesses do mestre. Denominados capitães-do-mato, perseguiam,
castigavam e matavam outros escravos. Ao proteger o “patrimônio” do mestre e
caçar seus semelhantes, gozavam de certo privilégio. Segundo André (2007) esse
tratamento diferenciado que a sociedade branca concebia ao mulato, culminou na

1 Ele apaga as diferentes tradições, homogeniza identidades as colocando estrategicamente


em determinadas direções, incentiva a mistura étnica como ápice da confraternização entre as diferen-
tes raças e com isso, produz subjetividades dóceis.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 573


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ilusão de que negros de pele clara teriam uma oportunidade no mundo do branco.
Fanon (2008, p.60) falou: “Ser branco é como ser rico, como ser bonito, como ser
inteligente”. De acordo com Santos (2009) essas representações de beleza, inte-
ligência, sucesso e pureza, eram propagadas nas diversas esferas da sociedade,
perpassando inclusive o comportamento do negro (SANTOS, 2009).
Em seu livro Torna-se Negro, Souza (1983) entrevista diversas pessoas, que ape-
sar de não terem vivenciado a experiência real da escravidão, carregam as marcas
dessa política de branqueamento. O primeiro relato é de Pedro, que se assumia
como negro, mas de alguma forma, se sentia superior.

Eu me assumia como negro: ir aos lugares e saber que eu era


diferente dos outros. Eu era negro, mas diferente: sabia segurar
um garfo, não era um macaco, sabia tocar piano... muita coisa
tenho assimilado do branco: comer de garfo e faca, ser simpáti-
co... (SOUZA,1983, p. 28)

A autora traz outros depoimentos que reforçam a ideia de que era necessário
clarear a pele e esconder os fenótipos negros, para ascender socialmente ou até
mesmo para não se sentir inferior. Os depoimentos de Carmen e Luísa, fornecem
uma perspectiva da violência que foi o dispositivo de mestiçagem e a ideologia do
branqueamento.

Minha avó, ela diz que quer casar de novo: ‘Casar com um fran-
cês para clarear a família’. Quando a gente (as netas) está na-
morando, ela pergunta se é preto ou branco. Diz que tem que
clarear a família. O clareador não é só questão da pele, porque
o negro é o símbolo de miséria, de fome. De repente, clarear é
também a ascensão econômica e social (Carmen) (SOUZA, 1983,
p.28).

Minha avó não gostava de negro. Dizia que criolo, sobretudo o


negro, não prestava: ‘se você vir confusão, saiba que é o negro
que está fazendo; se vir um negro correr, é ladrão. Você tem
que casar com um branco para limpar seu útero (Luísa) (SOUZA,
1983, p. 30).

Com a possibilidade do trabalho livre, os ex-escravos começaram a enxergar


nessa relação a necessidade de fazer valer sua dignidade. Fernandes (2008) conta
que para o negro, o trabalho assalariado e livre, eram vistos como condição moral
e liberdade de decidir como, com quem e quando trabalhar. Logo repudiavam cer-
tas tarefas e modos de aplicar seu tempo e energia. Segundo o autor, essa forma
de impor sua condição de ser humano, fez com que muitos empregadores, asso-
ciassem o povo preto com a preguiça e falta de vontade de trabalhar. Fanon (2008)
articula que já existe um sentido e um significado para o negro na sociedade. A
humilhação histórica é transmitida de geração a geração. Coimbra (2001) explana
as mídias como responsáveis pela disseminação dessas representações. A autora

574 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
aponta o dispositivo “como um dos mais importantes equipamentos sociais para
a produção de esquemas dominantes de significação e interpretação do mundo”
(COIMBRA, 2001, p.29). Porém Almeida (2018) reforça que são apenas represen-
tações de um imaginário social, não a verdade em si. Por essa razão Filho (2012)
alerta para o perigo desse imaginário-ideológico, pois transforma uma parte da
realidade, como realidade universal. Quando Souza (1983) define ideologia, fala de
representações, afetivamente marcadas na consciência dos indivíduos, com a fina-
lidade de organizar percepções em várias instâncias da sociedade. É nesse sentido
que Guattari e Rolnik (1996) defendem a noção de produção de subjetividades:
fabricada e modela socialmente, em todos os níveis de consumo. Então, é possí-
vel refletir sobre essas representações, consumidas como universais e tomadas
como verdades. Foucault (2008) aponta para a necessidade de ruptura com esses
discursos acabados e naturalizados, estas verdades que não são postas em dúvi-
da. Questionar essas falas prontas é pôr em análise a única história oficial, que
oculta as lutas e resistências negras. Coimbra (2001, p.52) fala de “processos de
estruturação de memória coletiva”, que seria ação de dar destaque a determina-
dos acontecimentos históricos, colocando-os em uma temporalidade que produz
esquecimento e corpos dóceis.
Ao questionar a “história oficial”, percebe-se que o Brasil era conhecido inter-
nacionalmente por uma escravidão branda e senhores de escravos benevolentes.
Nascimento (1978) articula que essa crença era um mito, estrategicamente fa-
bricado pelos próprios portugueses por meio da falsificação dos fatos históricos.
Acontece que, com aparência pacífica, sem conflitos entre brancos e não-brancos,
o país conseguia incentivar a imigração de pessoas brancas, fator essencial paras as
elites pós-abolição. A representação de uma democracia racial foi sendo construí-
da nesses processos que fabricam percepções. Segundo Munanga (1999) denuncia
o mito da democracia racial como estratégia de controle social, pois permite que
as desigualdades sociais sejam camufladas ou justificadas por meio de outras falas.
É aqui, o discurso o mérito é aplicado. Inclusive, Almeida (2018) explana o racismo
naturalizado como fruto da meritocracia. O autor relata que percebe as posições
sociais e cargos ocupados dentro das instituições, onde em sua maioria, os negros
ocupam os cargos nos serviços gerais e brancos os da gerência. A questão é que
com a crença de um país mestiço e harmônico, essas desigualdades são traduzidas
em falta de esforço por parte dos indivíduos.
O racismo antecede o sistema capitalista e precisa ser compreendido como um
processo político e histórico que fabrica subjetividades a todo instante, visto que
essa historicidade que nos domina, continua sendo propagada. O capitalismo, en-
quanto sistema de exploração para o aumento das riquezas de uma pequena par-
cela da população, se apropria do racismo e da meritocracia para promover con-
dições deploráveis de trabalho. O racismo enquanto uma dinâmica estrutural na/
da sociedade se manifesta através do que Almeida (2018) chama de mecanismos
institucionais, que sustentam uma estrutura colonial, segregando a população pre-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 575


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ta. A sociedade alimenta a concepção de seres humanos livres, com oportunidade
para todos,
bastaria batalhar bastante! Entretanto, o legado da escravidão e os direciona-
mentos históricos, não criam as mesmas oportunidades para todos. Pelo contrário,
produz subjetividades alienadas e corpos dóceis que acreditam na democracia ra-
cial e na meritocracia.

LINHAS DE FUGA E O ATREVIMENTO DE SINGULARIZAR


Diante do que foi exposto, fica lúcido a ideologia do branqueamento e o mito da
democracia racial como projeto, desencadeando, bagunçando, organizando, crian-
do e recriando uma série de processos de subjetivação que aprisionam, adoecem,
serializam, alienam a população brasileira e extermina a preta. Entretanto, não se
pode olhar para esse caos histórico em que as subjetividades foram e são produ-
zidas, sob olhos de vitimização, ressentimento ou estagnação. Guattari e Rol-
nik (1996) direciona o caminho para as resistências e devir, onde a subjetividade
acolhida como tal, irá possuir dois extremos: o primeiro no qual o sujeito recebe a
aceita alienadamente essa subjetividade tal como existe, e o segundo, como
resistência, se apropriando dos componentes dessa mesma subjetividade e se
recriando, revolucionando através do que os autores chamam de “o atrevimento
de singularizar”. Importante ficar claro que individualizar sujeitos está no cerne de
uma produção de subjetividades capitalista, em que no contexto da alienação pro-
duzida pelo dispositivo de mestiçagem, continua fazendo que negros de pele mais
clara, não se reconheçam como coletivo pertencente aos negros de pele escura. A
singularização, termo desenvolvido por Guattari e Rolnik (1996), infere processos
ruptores dessa produção que invade o sujeito e produz angústia. Ela vai tentar
constantemente produzir modos de subjetividades originais, auto modeladores,
que crie suas próprias referências e práticas, recrie suas representações, sem estar
em posição de “dependência” em relação ao poder.

A partir do momento em que os grupos adquirem essa liberdade


de viver seus processos, eles passam a ter uma capacidade de
ler sua própria situação e aquilo que se passa em torna deles.
Essa capacidade é que vai lhes dar o mínimo de possibilidade de
criação e permitir preservar exatamente esse caráter de autono-
mia tão importante (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p.46).

É possível colocar a reapropriação histórica, como ferramenta para reconheci-


mento de si e de sua identidade. Munanga (2012) destaca que o conhecimento dos
fatores históricos envolvidos é fundamental para que um povo crie um sentimento
de pertencimento a sua própria cultura, corpo... pele! Como exemplo dessa ruptu-
ra e resgate histórico, encontramos Machado de Assis. Reconhecido como esplên-
dido escritor brasileiro, nasceu dentro de um regime escravagista, viveu no início

576 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
de um projeto de identidade nacional branco, suas obras são tesouro na literatura
brasileira, e somente dois séculos depois, o Brasil reconhece seu retrato, tal como
o escritor era: Negro (TORRES, 2018). Em sua certidão de óbito, a cor declarada do
escritor foi branca, entretanto, uma foto encontrada pelo pesquisador Felipe Rissa-
to, se tornou prova irrefutável da cor do escritor. A notícia foi motivo, para que, a
Faculdade Zumbi dos Palmares criasse uma campanha, disponibilizando fotos reais
de Machado de Assis, pedindo para que a nova imagem seja inserida nos livros
didáticos antigos (G1, 2019).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Então, o que é possível concluir de tudo que foi exposto, aqui? Primeiro e mais
importante: todo sujeito é histórico. Sua constituição é histórica, e diz respeito não
só a processos que vive no presente, mas principalmente, no passado, onde talvez
nem estivesse nascido. Os discursos contados, por quem, onde e principalmente
como são contados, irá refletir na constituição desses indivíduos. Uma análise his-
tórica só seria possível a partir das desnaturalizações, interpretando todo um con-
texto sócio-histórico-político-cultural-econômico. É dessa forma que a história do
Brasil precisa ser contada, compreendida e aprendida possibilitando novas formas
de existência, tanto para o negro quanto para o branco, que dentro desse contex-
to, necessita de uma reapropriação existencial, que irá possibilitar modos de ser
diferentes do que são, menos reprodutores dos esquemas e discursos já criados.
Os processos de subjetivação se fabricam no campo social, em linhas que atra-
vessam cada sujeito, em cada instituição o qual habitou, longa ou brevemente,
desde de seu nascimento. Eles são frutos das relações de poder e dos caóticos
atravessamentos históricos, porém alicerçados em discursos racistas, colonizado-
res, eurocentrados e eugenistas. As representações nas quais as subjetividades do
povo afro-brasileiro, foram forjadas, dizem respeito a uma construção histórica
negativa sobre ele.
A clínica do indivíduo pode, ao querer trabalhar o sujeito como único, se perder
entre classificações patológicas e não se atentar aos agenciamentos coletivos pro-
duzidos sobre esse sujeito. Tal lógica focada no indivíduo, precisa, de certa forma,
ser repensada, pois está inteiramente dentro do “esperado” em uma sociedade
capitalista de alienação. Debater, pensar e re-pensar os processos de produção de
subjetividades e dispositivos, são caminhos possíveis para uma criação de si revo-
lucionária, e é incômodo necessário, para que exista um movimento de mudança
no seio da população brasileira.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 577


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
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oct. 2018.

AUTORIA
Marcela de Souza Rocha Faculdade Católica Salesiana
E-mail: srocha.marcela@outlook.com
ORCID: 0000-0002-1740-2298
Lattes: http://lattes.cnpq.br/8896088450222307

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 579


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
PSICOLOGIA POLÍTICA DO RACISMO NO BRASIL:
FORMAÇÃO SOCIAL E RELAÇÕES RACIAIS EM
DEBATE

Mirella Rocha

INTRODUÇÃO
Em entrevista publicada no site do Conselho Federal de Psicologia (CFP), inti-
tulada “O racismo é sim promotor de sofrimento psíquico”, Valter da Mata (2015)
analisa que o racismo afeta duas dimensões da saúde mental diretamente: a iden-
tidade e a autoestima. “Não possuindo referenciais identitários valorizados na nos-
sa sociedade (heróis, pessoas bonitas, inteligentes) resta ao grupo subalterno se
identificar com a sua “inferioridade natural” ou reivindicar para si um ideal de ego
branco“. Desse modo, temos o que denomina consequências somáticas, para a
população negra, a exemplo da depressão, do alcoolismo, da ansiedade, da auto-
depreciação, e da síndrome do pânico.
Nos parece que há na perspectiva abordada a separação das partes do todo.
Como se saúde mental fosse algo autônomo, e como se identidade e autoestima
fossem peças desse quebra-cabeça, os quais, quando não correspondem a um mo-
delo ideal representativo causam sofrimento nos sujeitos. Nesse sentido, o deno-
minado “ego branco” parece ter vida própria, tornando-se uma referência que se
autonomiza.
Tendo em vista a particularidade do desenvolvimento capitalista no Brasil e o
peso das relações étnico-raciais em nossa história, entendemos que o racismo es-
trutural na formação social brasileira, e particularmente a estrutura social racista
edificada a partir de processos histórico- concretos da organização societária no
país, determinam o ser-precisamente-assim da brasilidade, com consequências em
todos os níveis da ordem socioeconômica e humana-psíquica.
Bem, se é certo que o racismo tem múltiplas consequências e a explicação ex-
pressa no trecho acima parece insuficiente para dar conta da expressão do fenô-
meno nos sujeitos histórico- concretos1, como “a nova esfera funcional de pensa-
mento, em contraste com a esfera mecanicista e mística da civilização patriarcal”
(REICH, 2003, p. 7), poderia nos ajudar a encontrar o cerne da questão?
A partir dos estudos de William Reich, compreendo que tudo que está fora tam-
bém está dentro, isto é, há um princípio de funcionamento comum na vida – e,
nesse sentido, a ordem social e a vida individual são partes de um todo, de uma na-

1 Importante: nos referimos a todos os sujeitos histórico-concretos e não apenas às pessoas


negras.

580 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
tureza concreta e seu processo integral2 real e histórico de funcionamento. Sendo
assim, parece evidente que se há racismo estrutural determinando a organização
sócio-política-econômica-cultural-psíquica no Brasil, há uma forma concreta de
funcionamento do racismo em cada sujeito.
Desse modo, uma hipótese do nosso estudo, sugere que da mesma forma que
para Reich (2001) o fascismo não é um “partido político” ou uma “ideia política”,
ou uma “característica nacional de alemães ou japoneses” assim também é o ra-
cismo, compreendido em sua forma concreta de funcionamento desde a forma
particular como a sociedade patriarcal se desenvolveu no Brasil.
Ressalto que se trata de uma pesquisa em desenvolvimento no triênio 2020-
2022, a qual conta com financiamento do MEC/FNDE, por meio do grupo PET-Co-
nexões “Povos de Terreiro e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana” (UFRJ).

DESENVOLVIMENTO
Há um debate recorrente sobre o fascismo, que o apresenta como uma ideolo-
gia que pode ser atribuída a um partido político ou a um país a partir de determi-
nada circunstâncias políticas no curso da história. Reich, ao contrário, vai assinalar
que:

O fascismo não é mais do que a expressão politicamente orga-


nizada da estrutura do caráter do homem médio, uma estrutura
que não é o apanágio de determinadas raças ou nações, ou de
determinados partidos, mas que é geral e internacional. Neste
sentido caracterial, o fascismo é a atitude emocional básica do
homem oprimido da civilização autoritária da máquina, com sua
maneira mística e mecanicista de encarar a vida (REICH, 2001, p.
XXVII – grifo nosso).

Nos parece que no próprio amadurecimento teórico do autor, ele mesmo iden-
tificou em obras posteriores que qualquer coisa pretensamente universal, acaba
por tornar estático-absoluto, ao passo que autonomiza um processo ou fenômeno
que está em funcionamento vivo e dinâmico, tornando-o mecanicista. Em seus ter-
mos:

2 Apenas para fins didáticos, importa referenciar que quando falo em processo integral, refi-
ro-me ao todo concreto e sutil que a ciência ocidental separa, notadamente a partir da tradição on-
tológico-crítica (eurocentrada) o marco temporal é 1848 com a chamada “decadência ideológica da
burguesia”. Aí temos a consolidação das revoluções burguesas, o projeto iluminista com Deus se sepa-
rando do Estado – e, portanto, da religião ou espiritualidade do que é considerado científico – e dentro
do que é considerado científico, a autonomização das áreas do conhecimento em partes distintas, a
exemplo biologia, história, cultura, sociologia, economia, etc. Aí temos uma economia sem filosofia,
uma sociologia sem história, uma antropologia sem política, e assim sucessivamente. Para aprofundar
nesse tema cf. Lukács, Georg (2012).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 581


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Quando digo “mecanicista”, refiro-me a uma composição ainda
indefinida de diversos conceitos agrupados em volta da matéria
e seu movimento. Até a descoberta da rádio, cerca de cinquenta
anos atrás, a matéria parecia estática, visível, palpável, inalte-
rável, regida pela lei da “conservação da matéria”, movida por
uma “força” absoluta, eterna, em forma de átomos e “poeira
cósmica” O absoluto e o estático eram assumidos até por aque-
las escolas de psicologia com orientação dinâmica, como a de
Freud, na forma de ideias inconscientes preestabelecidas. (...)
abrir mão do ponto de vista estático, absoluto do aparato senso-
rial e emocional é equivalente a desistir da psicologia como ciên-
cia das funções naturais últimas. A consideração lógica que se
segue invariavelmente é: os elementos emocionais não podem
ter existido desde tempos imemoriais; eles devem ter se desen-
volvido. Com essa consideração, tanto o ponto de vista material
como estático caem por terra. O desenvolvimento é um processo
dinâmico por definição. (REICH, 2003, p. 31-32 – grifo nosso)

Assim como os elementos emocionais, também os elementos sociais, políticos


e culturais não existem desde tempos imemoriais, mas se desenvolveram de for-
ma histórico-concreta. Desse modo, sugerimos que quando Reich (2001) diz que o
fascismo é geral e internacional, remetendo à “civilização autoritária da máquina”,
está se referindo ao desenvolvimento da sociedade capitalista- patriarcal, tornada
geral e internacional a partir da dinâmica de funcionamento concreto do imperia-
lismo.
Porém, importa ressaltar que a dinâmica patriarcal e imperialista do capital não
se desenvolve de forma igual-estática-absoluta em todas as partes do mundo. Ob-
viamente há tendências gerais de desenvolvimento da moderna sociedade capita-
lista, as quais estão sinalizadas na obra de Karl Marx. No entanto, consciente dos
desvios que começaram a se apresentar entre os “marxistas” – especialmente do
movimento político europeu do período – o próprio Marx inferiu que se tratavam
de Leis gerais, em um dado nível de abstração teórico-medotológico, no qual é
possível identificar as tendências de desenvolvimento geral e os elementos que ar-
ticulam, organizam e hierarquizam a vida na sociedade capitalista, os quais tornam
possível sua reprodução econômica-material e político-social-cultural (e também
emocional – poderíamos acrescentar), em condições determinadas, em dada espi-
ral de espaço-tempo.
É nesse sentido que a base filosófica do materialismo histórico se opõe ao ide-
alismo hegeliano. Em Hegel (1993) a racionalidade é o próprio tecido do real e do
pensamento. Em tal sistema filosófico o mundo é a manifestação da ideia, o real é
racional e o racional é real, de modo que a história universal nada mais é do que a
manifestação da razão. Assim, diferentemente de se pensar desde ideias arranja-
das, desde a razão pura, desde a lógica contemplativa do mundo sensível, desde os
conceitos teóricos a priori, o esforço que priorizamos aqui, na esteira das contribui-
ções de Marx e Reich, é partir de pressupostos reais, ou seja, considerar os sujeitos

582 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
reais e suas relações sociais reais em processo dinâmico de desenvolvimento. Mas
como Marx e Reich nos auxiliam com essas reflexões?
Pois bem, Marx (2011, p. 54) indica que é necessário atentar para as relações
que os homens estabelecem em seu processo histórico real de desenvolvimento,
posto que o concreto é a síntese de múltiplas determinações. Todo real-concreto é
espesso, como indica a poesia de João Cabral de Melo Netto (MELO NETO, 1979):

O que vive | incomoda de vida|o silêncio, o sono, o corpo|que


sonhou cortar- se |roupas de nuvens. |O que vive choca, |tem
dentes, arestas, é espesso. |O que vive é espesso |como um
cão, um homem, |como aquele rio. |Como todo o real |é espes-
so.|Aquele rio |é espesso e real. |Como uma maçã |é espessa.
|Como um cachorro |é mais espesso do que uma maçã. |Como
é mais espesso
| o sangue do cachorro |do que o próprio cachorro.|Como é
mais espesso |um homem |do que o sangue de um cachorro.
|Como é muito mais espesso |o sangue de um homem |do que
o sonho de um homem.

O poeta remete à concreticidade do real, que vai ganhando espessura maior


no desenrolar da poesia, quanto mais se aproxima do universo natural e objetivo
do ser humano e suas relações sociais. Diante da imponência do real da vida, o
cachorro é mais espesso que a maçã, o sangue do cachorro é mais espesso que o
cachorro e o homem mais espesso que o sangue do cachorro, sendo, finalmente, o
sangue do homem mais espesso que seus sonhos, posto que se trata da materiali-
dade concreta da existência de homens e mulheres como organismo vivo em seu
processo de desenvolvimento social real.
Nesse sentido, em 1837, Marx escreve uma carta para o pai, criticando “a forma
acientífica do dogmatismo matemático” na qual o sujeito roda em torno da coisa,
refletindo, para cá e para lá, “sem que a própria coisa assuma sua forma”, como
algo abundantemente vivo e em desenvolvimento. Na mesma carta, contrapõe a tal
fórmula com a proposição da apreensão metodológica correta dos fenômenos: “é
necessário se deter para escutar atentamente o próprio objeto em seu desenvolvi-
mento, sem se empenhar em imputar-lhe classificações arbitrárias, e sim deixando
que a própria razão da coisa siga seu curso contraditório e encontre em si mesma
a sua própria unidade”. (MARX, 2010 [1837], p. 297)
Assim, ao apontar para a necessidade de observar o movimento real do fenô-
meno sem atribuir-lhe coisas estranhas, para que ele se expresse em seu movimen-
to, Marx (2010 [1837]) já sinalizava que a tarefa fundamental é atentarmos para
“a ideia na realidade mesma”, da mesma forma quando Reich (2003) faz a crítica
as filosofias de vida mecanicista e mística, as quais atacam o elemento vivo no ser
humano.
Retornando especificamente ao nosso objeto, não partimos, portanto, do fas-
cismo como conceito teórico, transplantando uma teoria e intentando enquadrar a

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 583


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
realidade no conceito posteriormente, tal como fez a tradição do marxismo vulgar
vinculado à segunda e a terceira Internacional Comunista3.
Em Reich (2001), há uma preciosa crítica do marxismo vulgar, que autonomiza-
va os conceitos, tornando-os rígidos e metafísicos, particularmente na análise da
função e forma de operação da ideologia e sua relação com a base material. Nosso
autor vai analisar que somente um “marxismo vulgar” concebe uma antítese na
relação entre economia e ideologia, assim como entre a “estrutura” e a “superes-
trutura”, uma perspectiva precária que não leva em conta o chamado “efeito de
volta” da ideologia, isto é, as formas pelas quais a ideologia incide sobre a própria
base material que a determina. Presa a essa visão esquemática e pouco dialética,
resta a essa modalidade de marxismo vulgar apenas recorrer ao chamamento mo-
ral para que os trabalhadores correspondam em sua ação às condições objetivas
em que se inserem, clamando pela “consciência revolucionária”, às “necessidades
das massas” ou ao “impulso natural” para as greves e a luta. Reich conclui que essa
versão esquemática do marxismo:

Tentará, por exemplo, explicar uma situação histórica com base


na ‘psicose hitleriana’ ou tentará consolar as massas, persua-
dindo-as a não perder a fé no marxismo, assegurando-lhes que,
apesar de tudo, o processo avança, que a revolução não pode
ser esmagada, etc. O marxista comum acaba por descer ao pon-
to de incutir no povo uma coragem ilusória, sem, no entanto,
analisar objetivamente a situação em sem compreender sequer
o que se passou. Jamais compreenderá que uma situação difícil
nunca é desesperadora para a reação política ou que uma grave
crise econômica tanto pode conduzir à barbárie como a liberda-
de social. Em vez de deixar seus pensamentos e atos partirem
da realidade, ele transporta essa realidade para a sua fantasia
de modo que ela corresponda aos seus desejos. (REICH, 2001, p.
14-15 – grifo nosso)

Ao contrário desse movimento que transporta a realidade para a fantasia, o


intento aqui é apreender o sentido caracterial do fascismo em seu movimento di-
nâmico, histórico-concreto, o qual é expressão do movimento real do desenvolvi-
mento da civilização industrial gravemente doente em terras tupiniquins. O objeti-
vo é cotejar a hipótese do racismo como forma particular do movimento dinâmico
da caracterialidade fascista no Brasil, diante da forma específica como se desen-

3 Caio Prado Jr. em ‘A Revolução Brasileira’ (2004 [1966]) denuncia que tal expediente se tor-
nou prática corriqueira na análise da realidade promovida pelo marxismo brasileiro, colonizado pelos
manuais soviéticos da década de 1950. Caio Prado se referia sobretudo ao Partido Comunista Brasileiro
(PCB) de seu tempo, mas importa ressaltar que essa prática se difundiu bastante em toda a América
Latina. Para Aricó (1983): “Ausente una relación original con la complejidad de las categorías analíticas
del pensamiento marxista, y con su potencial cognoscitivo aplicado a formaciones nacionales concre-
tas, el marxismo fue en América Latina, salvo muy escasas excepciones, una réplica empobrecida de
esa ideología del desarrollo y de la modernización canonizada como marxista por la Segunda y la Ter-
cera Internacional.” (ARICÓ, 1983, p. 48). Tal forma não foi diferente do que ocorreu em boa parte do
movimento de esquerda na Europa, como bem sinalizado na crítica de Reich.

584 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
volveu historicamente o capitalismo em sua particular formação social, a família
patriarcal e a chamada classe média nessas latitudes. Segundo Reich:

A nossa psicologia política não poderá ser outra coisa que um


estudo do “fator subjetivo da história”, da estrutura do caráter
do homem numa determinada época e da estrutura ideológica
da sociedade que ela forma. Esta psicologia não se opõe, como a
psicologia reacionária e a economia psicologista, à sociologia de
Marx, quando lhe sugere uma ‘visão psicológica’ dos fenômenos
sociais; pelo contrário, ela reconhece o mérito dessa sociologia
que a partir da existência infere uma consciência. (REICH, 2001,
p. 15 – grifo nosso)

Nessa esteira, encontrar o ser-precisamente-assim do racismo como forma


particular do movimento dinâmico da caracterialidade fascista no Brasil, em sua
organicidade histórica e viva na sociedade brasileira, expressa em suas relações
sociais e funcionais – no que se refere à caracterialidade dos indivíduos histórico-
-concretos –, requer, portanto, observar a particularidade do desenvolvimento da
sociedade capitalista patriarcal no Brasil, dado que não podemos esquecer, “a es-
trutura do caráter é o processo sociológico congelado de uma determinada época”
(REICH, 1989, p. 7).
No prefácio à primeira edição do “Análise do Caráter”, Reich (1989, p. 6) vai di-
zer que “a estrutura socioeconômica da sociedade determina modos definidos de
vida familiar, mas estes não só pressupõem formas definidas de sexualidade como
também as produzem”. A partir dessa chave, questionamos: qual a forma particu-
lar de família patriarcal e de modo de vida da classe média baixa
– os dois pilares de sustentação de uma psicologia de massas, para Reich4 – no
Brasil tendo em vista a via da escravização para a consolidação do capitalismo em
nossa sociedade?
Diferentemente da forma de consolidação da sociedade capitalista patriarcal na
Europa – construída a partir de Revoluções Burguesas que suplantaram o modo de
produção anterior, o feudalismo, empunhando as bandeiras da Igualdade, Liber-
dade e Fraternidade e inaugurando o caráter civilizatório do moderno capitalismo
euro-ocidental – a construção do capitalismo no Brasil se baseou em mais de 350
anos de colonialismo escravista, com a violência sistemática e estrutural imperan-
do, avessa a qualquer pretensão civilizatória.

4 Reich localizará a base de uma determinada expressão de uma psicologia de massas (a do


fascismo) em dois pilares: uma certa forma de família tendo no centro a repressão à sexualidade in-
fantil; e o caráter da “classe média baixa”. Para ele, a repressão à satisfação das necessidades materiais
difere da repressão aos impulsos sexuais pelo fato que a primeira leva à revolta enquanto a segunda
impede a rebelião, uma vez que o retira do domínio consciente “fixando-o como defesa moral”, fazen-
do com que o próprio recalque do impulso seja inconsciente, seja visto pela pessoa como uma caracte-
rística de seu caráter. O resultado disso, segundo Reich, “é o conservadorismo, o medo a liberdade, em
resumo, a mentalidade reacionária”.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 585


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Ao comentar o livro de Frantz Fanon, “Os condenados da terra” no prefácio, o
filósofo francês J. P. Sartre (2005) faz uma comparação do processo de transição
do feudalismo para o capitalismo na Europa, no qual a burguesia, apesar de criti-
car os trabalhadores, dizendo que os mesmos eram grosseiros e invejosos, incluía
aqueles considerados brutos em sua espécie, pois que se não fossem homens e
livres, como poderiam eles vender a força de trabalho aos primeiros? Agora, no
colonialismo, que ocorreu paralelamente a esse processo no sul do mundo, como
a base de exploração é o trabalho forçado, o processo é essencialmente violento é
baseado em profundos processos de desumanização:

Nossos soldados, além-mar, rejeitando o universalismo metro-


politano, aplicam ao gênero humano o numerus clausus: já que
ninguém pode, legalmente, despojar o seu semelhante, escravi-
za-lo ou mata-lo, eles estabelecem o principio de que o coloni-
zado não é o semelhante do homem. Nossa força tarefa recebeu
a missão de transformar em realidade essa certeza abstrata;
deu-se a ordem de rebaixar os habitantes dos territórios anexa-
dos ao nível do macaco superior, para justificar o colono de tra-
ta-los como bestas de carga. A violência colonial não se atribui
apenas o objetivo de controlar esses homens dominados, ela
procura desumanizá-los. Nada será poupado para liquidar suas
tradições, para substituir suas línguas pelas nossas, para destruir
sua cultura sem dar-lhes a nossa, nós os transformaremos em
brutos pela fadiga. Desnutridos, doentes, se resistirem ainda, o
medo terminará o trabalho: apontam-se fuzis para o camponês;
vêm civis que que se instalam na sua terra e o obrigam com chi-
cote a cultivá-la para eles. (SARTRE, 2005, p. 31-32)

No entanto a aparente dominação étnica-cultural encobre um domínio econô-


mico-político- psicológico mais complexo. Fanon (2008), vai afirmar que a escravi-
zação relega um profundo processo de alienação colonial, que pode ser explicado
como um processo de mistificação, de negação e ocultação do ser. Essa mistifi-
cação perpetra um processo contraditório, que afeta a vida de cada indivíduo na
sociedade, moldando seu modo de ser, sua condição psicológica – e aqui estamos
falando de todos os indivíduos, não apenas dos negros. Em relação aos negros,
Fanon (2008) infere que tendo negada a sua condição humana pelo processo colo-
nial, a negação do seu ser acaba sendo a forma de buscar afirmar sua humanidade.
O autor analisa que é fundamental reconhecer que há, na experiência vivida do
negro, uma negação ontológica, oriunda do processo de colonização escravista.
Toda a experiência vivida dos sujeitos descendentes dos povos colonizados, mes-
mo após o fim do colonialismo, passa pela construção negativa do seu ser. Para
os africanos e seus descendentes, a negação passa pela construção do ser negro.
O tempo todo na sua relação com o outro, o não negro é apontado, é confirmado
como negro, como ser destituído de humanidade ou em nível abaixo dela. Isso
estrangula as possibilidades do ser para aqueles que a construção social lega a
identidade negra. Assim, conforme afirma Fanon (2008, p. 103-104):

586 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Qualquer ontologia se torna irrealizável em uma sociedade co-
lonizada e civilizada. Parece que este fato não reteve suficien-
temente a atenção daqueles que escreveram sobre a questão
colonial. Há uma weltanschauung [cosmovisão] de um povo co-
lonizado, uma impureza, uma tara que proíbe qualquer explica-
ção ontológica. (...) A ontologia, quando se admitir de uma vez
por todas que ela deixa de lado a existência, não nos permite
compreender o ser do negro. Pois o negro não tem mais de ser
negro, mas sê-lo diante do branco. Alguns meterão na cabeça
que devemos nos lembrar que a situação tem duplo sentido.
Responderemos, não é verdade. Aos olhos do branco o negro
não tem resistência ontológica. Sua metafísica ou, menos pre-
tensiosamente, seus costumes e instâncias de referências foram
abolidos porque estavam em contradição com uma civilização
que não os conhecia e que lhes foi imposta. (FANON, 2008, p.
103-104)

Nesse sentido, a condição alienada é, para Fanon (2008), produto de uma es-
trutura econômico-psicológica que o desumaniza e objetifica. Para o branco se ex-
pressa em um sentimento de superioridade e para o negro, é como um sentimento
de “menos-valia psicológica” dirá o autor. Ela se expressa de tal forma que “o pre-
to, escravo de sua inferioridade, o branco, escravo de sua superioridade, ambos
se comportam segundo uma linha de orientação neurótica” em termos de análise
psicanalítica (FANON, 2008, p. 66).

Os impactos dessa alienação na vida dos indivíduos, negros e


brancos, perpassam profundamente a construção de suas for-
mas de sociabilidade, desde o modo de ver-se e de ver o outro.
Aliás, tendo a sexualidade um papel fundamental à conforma-
ção da vida, em termos amplos, Fanon (2008) mostra como,
nesse âmbito da vida dos indivíduos, a mistificação impacta de
formas perversas, dentre as quais a objetificação e violação do
corpo negro é uma grande expressão. Para Fanon (2008), a expli-
citação da origem da neurose, sonhos e demais manifestações
psicológicas do racismo devem ser entendidas não como ques-
tões individuais, mas, sim, como manifestações de toda uma so-
ciabilidade, o que transcende a existência individual.

É preciso dizer que, em certos momentos o social é mais impor-


tante que o individual. Penso em P. Naville escrevendo: Falar dos
sonhos da sociedade como se fossem os sonhos do indivíduo,
dos desejos coletivos de potência como se fossem o instinto se-
xual pessoal é inverter ainda uma vez a ordem natural das coisas,
uma vez que, pelo contrário, são as condições econômicas e so-
ciais que explicam e determinam as condições reais nas quais se
exprime a sexualidade individual, e que o conteúdo dos sonhos
de um ser humano depende também, das condições gerais da
civilização na qual ele vive. (FANON, 2008, p. 100 – grifo nosso).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 587


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Aqui cabe um paralelo com Reich, que também faz uma crítica parecida à psica-
nálise, bem como ao analisar a dinâmica do fascismo sobre as massas trabalhado-
ras, e também as reflexões dai derivadas sobre formas de consciência e reprodu-
ção social, dado que o “emocional” ou “fator subjetivo” não pode ser lido de forma
autônoma da estrutura social.

Desde que a sociedade se dividiu entre aqueles que possuem


os meios de produção e os que dispõem da mercadoria força
de trabalho, toda a ordem social passou a ser estabelecida pe-
los primeiros, pelo menos independentemente da vontade e
da inteligência dos últimos, e, na verdade, quase sempre con-
tra a vontade deles. Entretanto, a partir do momento em que
essa ordem social começa a moldar a estrutura as estruturas
psíquicas de todos os membros da sociedade, ela se reproduz no
povo. E na medida em que isso se dá pela utilização e transfor-
mação do aparato instintual, que é governado pelas necessida-
des da libido, também se ancora afetivamente nela. O primeiro
e mais importante foco de reprodução da ordem social, desde os
primórdios da propriedade privada dos meios de produção esta
na família patriarcal, que incute em seus filhos a base caracte-
rológica necessária à ulterior influência da ordem autoritária.
Enquanto, de um lado a família representa o primeiro foco de
reprodução de estruturas de caráter, o insight do papel da edu-
cação sexual no sistema educacional como um todo ensina-nos
que, antes de mais nada, elas são energias e interesses libidinais
empregados na ancoragem da ordem social autoritária. Portan-
to, as estruturas caracterológicas do povo de uma dada época
ou de um dado sistema social não são apenas um espelho desse
sistema. Mais significativamente, representam sua ancoragem.
(REICH, 1989, p. 5 – grifo nosso)

A tradição crítica invisibilizada pela sociologia clássica na explicação do Brasil,


vai nos dizer que o racismo estrutural, e sua forma de ser vivo em nossa sociedade,
tem origem no ethos racista – nos termos de Clovis Moura (2014) – como ideologia
reitora necessária à estruturação de um sistema que visava a consolidação da acu-
mulação capitalista que se construiu no Brasil. O cerne do desenvolvimento socio-
econômico do país pela via colonial baseada na escravização, visava a garantia da
estrutura desigual que proporciona a produção do valor nos territórios que, uma
vez colonizados, só puderam se estabelecer num capitalismo dependente, subor-
dinado à dinâmica das nações imperialistas. Para Moura (2014):

A ideologia racista, por seu turno, será manipulada e entrará


como componente do pensamento elaborado pelas classes do-
minantes na sociedade que sucedeu ao escravismo. Foi a muni-
ciadora dos entraves criados através de mecanismos estratégi-
cos que impediram a ascensão de grandes camadas oprimidas
e marginalizadas. Esses mecanismos ideológicos (quer da classe
senhorial, quer daquelas que a sucederam após a Abolição) de-

588 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
terminaram, em grande parte, o ethos da nação brasileira que
emergiu do escravismo e, ao mesmo tempo, estabeleceram os
níveis de subordinação (econômica e extraeconômica) das clas-
ses e dos segmentos que se formaram na ordenação dessa so-
ciedade. (MOURA, 2014, p. 42)

Todavia, para além de uma ideologia que funciona como o espelho das rela-
ções sociais que correspondem à organização societária, Reich (1989) aborda esse
movimento dinâmico sobredeterminado pelo qual a sociedade molda a estrutura
caracterial dos sujeitos, encontrando aí uma forma de ancoragem, ou precisamen-
te em seus termos:

No escopo mais amplo da questão acerca da função sociológi-


ca da formação do caráter, temos de atentar para um fato que,
embora bem conhecido, é mal compreendido em seus porme-
nores, a saber, o de que certas estruturas humanas médias são
naturais de determinadas organizações sociais, ou em outras pa-
lavras, cada organização social produz as estruturas de caráter
de que necessita para existir. (REICH, 1989, p. 4)

Quando falamos em racismo como sistema estrutural-estruturante, remetemos


a essa análise tendo em vista o peso das relações étnico-raciais na formação social
do país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo ainda em desenvolvimento, evidencia pistas sobre os temas em tela,
à exemplo do apontamento que o “emocional” ou “fator subjetivo” não pode ser
lido de forma autônoma da estrutura social e seu particular desenvolvimento em
uma sociedade, é preciso nesse caminho aprofundar o papel que cumpre a carac-
terialidade racista brasileira, do ponto de vista emocional- funcional individual e
político-funcional coletivo, posto que ancora um sistema ídeo-político- cultural que
se expressa em um projeto de dominação baseado na subjugação, violação, supe-
rexploração e genocídio dos corpos pretos desde o início desse projeto de país.
Ademais, apreender a dinâmica do racismo em sua potência econômica-polí-
tica e cultural na formação social brasileira, bem como a ideologia racista, como
“componente do pensamento elaborado pelas classes dominantes em nossa so-
ciedade”5, conforme supracitado em Moura (2014), é fundamental para tecermos

5 Aqui Clovis Moura (2014) também é categórico ao afirmar que a sociologia que caiu no gosto
das elites explicava o Brasil a partir do ressentimento dos resíduos de uma cultura primitiva afro-indí-
gena, na qual o arcaico se mistura com o moderno e na qual somos o que somos pelo que nos resta de
preguiça e apassivamento. Ao lado da esfera da sociologia restrita à analise culturalista (uma cultura
autonomizada, descolada da estrutura econômico-social) também tiveram as análises psicanalíticas
que buscavam observar as religiões de matriz africana em busca do Édipo africano (a obra de Artur
Ramos é um exemplo de como se tratava o negro na época). Além disso houve também a interpretação

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 589


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
essas considerações iniciais acerca da caracterialidade racista e a psicologia política
daí decorrente, bem como atentarmos para o caldo ideológico-cultural da classe
média, que vai se espraiar por toda a estrutura da sociedade brasileira (inclusive
as massas negras, quando tratamos do racismo estrutural no Brasil / inclusive as
massas trabalhadoras, quando abordamos o fascismo em sua forma pura). Para
Reich (2001) “a classe média tem, em virtude da estrutura do seu caráter, uma
força social extraordinária que em muito ultrapassa a sua importância econômica.
É a classe que retém e conserva, com todas as suas contradições, nada mais nada
menos do que vários milênios de regime patriarcal.” (REICH, 2001, p. 40)
Ressaltamos: um regime patriarcal particular em uma sociedade estruturada
sobre processos violentos de escravização, e as consequências sobre a vivência da
sexualidade – que vai se traduzir nas mesmas formas patriarcais autoritárias e re-
pressivas que observamos no desenvolvimento capitalista que ocorreu nos países
centrais para as pessoas brancas; e em formas permissivas, violadoras, objetifica-
doras e profundamente violentas para com as pessoas negras. Esses são caminhos
investigativos a serem percorridos na pesquisa em andamento, razão pela qual
contamos com as sugestões dos(as/es) colegues presentes nos debates do XI CO-
PENE.

REFERÊNCIAS

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1983. CFP. Conselho Federal de Psicologia. Valter da Mata - Entrevista CFP. Disponível
em: <https://site.cfp.org.br/o-racismo-e-sim-promotor-de-sofrimento-psiquico/?wpmp_
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UFJF, 2005. FANON, Frantz. Peles negras, mascaras brancas. Salvador, Editora da UFBA,
2008

HEGEL, G. W. F. Ciencia de la lógica. 6. ed. Buenos Aires: Solar, 1993

LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social; tradução Carlos Nelson Coutinho, Ma-
rio Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2012. 2v.

MARX, Karl. Carta ao pai. In: NETTO, J. P. e YOSHIDA, M. M. C. (Ed.). Cultura, arte e litera-
tura. Textos escolhidos de Marx e Freidrich Engels. São Paulo Editora Expressão Popular,
2010 [1837].

biotipológica, o comportamento do negro durante a escravização era consequência do seu biótipo. Em


todas essas análises teóricas os mecanismos profundamente repressivos e violadores, estranguladores
da condição humana da pessoa escravizada, não eram considerados substantivamente, mas, ao con-
trário, a situação de membro de uma cultura diferente era o fator que explicaria o seu comportamento
quer de aceitação ou de rejeição a sua situação de escravizado. Para o autor é evidente que não da para
analisar integralmente a situação dos negros sem considerar o modo de produção escravista colonial,
a forma como o capitalismo se organizou no Brasil.

590 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
MARX, Karl. Grundrisse. Manuscritos econômicos de 1857-1858: Esboços da crítica da eco-
nomía política. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011

MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. O processo de produção do capital


(vol 1; tomos 1 e 2) São Paulo: Abril Cultural 1984 [1867].

MOURA, Clovis. Rebeliões de Senzala. São Paulo: Anita Garibaldi, 2014. PRADO JR., Caio. A
Revolução brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004 [1966].

REICH, Wilhelm. Eter, Deus e o Diabo e a superposição cósmica. São Paulo: Martins Fontes,
2003 REICH, Wilhelm. Psicologia de massas do fascismo. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

REICH, Wilhelm. Análise do caráter. São Paulo: Martins Fontes, 1989

AUTORIA
Mirella Rocha
Professora na Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro e
Tutora do PET Conexões Povos de Terreiro e Comunidades Tradicionais de Matriz
Africana
E-mail: mirellafr@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5767-8715
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1385420225984940

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 591


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O NEGRO E O RACISMO NA CLÍNICA
PSICANALÍTICA: PENSANDO MANEJO CLÍNICO
COM INDIVÍDUOS NEGROS VITIMADOS PELO
RACISMO

Claudina Damasceno Ozório

O corpo funciona como marca dos valores sociais e nele


a sociedade fixa seus sentidos e valores.
Socialmente o corpo é um signo.
Isildinha Baptista Nogueira, 1999

INTRODUÇÃO
Ao longo da história, o indivíduo negro teve a sua existência demarcada pela
diferença, vivendo em uma sociedade estruturada no racismo, que funcionou e
ainda funciona como um mecanismo de segregação, provocador de sofrimento
psíquico. Esse trabalho é fruto de pesquisa realizada na especialização em clínica
psicanalítica ofertado pelo Departamento de Psicologia Clínica da Puc-Rio, fazendo
também parte da pesquisa sobre trajetórias de socialização de crianças negras, ini-
ciada no programa de Doutorado da Puc-Rio. Nesse breve trabalho, apresentarei
as discussões que temos levantado sobre racismo na clínica psicanalítica, trazen-
do questionamentos advindos dos estudos sobre questões raciais, psicanálise e da
prática clínica com indivíduos negros. Pensando sobre como podemos acolher esse
sujeito que possui lugares sociais, culturais, intelectuais e de existência bem demar-
cados e, historicamente desviante, em desconformidade com os corpos considera-
dos normativos - ou seja - corpos brancos. Apresento então, uma breve discussão
sobre o corpo negro e seus códigos (in)conscientes. Utilizo os escritos da psicana-
lista Isildinha Baptista Nogueira (2017), em que o corpo negro encontra-se encerra-
do em códigos sociais que a cor negra representa, podendo denotar vários significa-
dos. Tal constatação, reforça os estudos de Frantz Fannon (2008), há mais de meio
século, quando se trata da recepção da criança negra na sociedade. De acordo
com o autor, uma criança negra normal, nascida em uma família negra normal,
tornar-se-á anormal ao primeiro contato com a sociedade, ou seja, com o mundo
branco. A complexidade do racismo brasileiro envolve a mesclagem entre brancos
e negros – a propalada miscigenação - em que negros e não negros convivem em
harmonia, o que Abdias Nascimento (2017) chama de democracia racial. O Profes-
sor Dr. Kabengele Munanga, antropólogo brasileiro-congolês, amplia o debate ao
chama-la de mito da democracia racial brasileira. Pensando essa mesclagem racial,
a psicanalista e pesquisadora Jô Gondar (2019) enfatiza que existe no Brasil um

592 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
racismo desmentido, diferentemente de outros países como o norte americano,
por exemplo, o que torna o racismo brasileiro mais complexo e mais perverso, pois
a mesclagem entre brancos e negros apresenta uma forma perversa de racismo,
com porosidade, silenciado e desmentido.
Desse modo, como podemos pensar os atravessamentos da cor no inconsciente,
com a democracia racial que ainda serve de palco para a negação do racismo na
sociedade brasileira, promovendo ações que inserem o negro em lugar de perse-
cutoriedade, de inferiorização e de despotencialização, podendo a vivência do ra-
cismo ser interpretada como fantasia e/ou mecanismo de defesa. Ainda pudemos
observar o processo de outremização do negro que insiste em ocupar o imaginário
social, como discorre Toni Morrison em A origem dos outros. E como essa outremi-
zação atravessa o setting analítico? Especialmente quando se trata do processo de
transferência e contra-transferência entre analista e analisando.

O CORPO NEGRO E SEUS CÓDIGOS (IN)CONSCIENTES


Nosso corpo é a representação do que somos enquanto sujeito da ação, pensan-
te, falante e ouvinte, ele transmite informações. Porém, há diferenças na recepção
de corpos negros e brancos nos ambientes. Para Isildinha Baptista Nogueira (2017),
“o “ser negro” corresponde a uma categoria incluída num código social que se
expressa dentro de um campo etno-semântico em que o significante “cor negra”
encerra vários significados” (p. 123). Nessa perspectiva, o corpo que traz
o signo “negro” remete a posições sociais inferiores, subalternidade, docilidade
e até mesmo agressividade (nesse caso, um rótulo dado às mulheres negras), sen-
do o oposto dado a corpos brancos. Frantz Fannon (2008) aponta para as diferenças
na recepção da criança negra e da criança branca na família e na sociedade. De acor-
do com o autor, uma criança (branca) normal, nascida em uma família normal, será
um adulto normal, pois encontrará na sociedade as mesmas regras, normas e leis
presentes na família. Já, uma criança negra normal, nascida em uma família negra
normal, tornar-se-á anormal ao primeiro contato com a sociedade, ou seja, com o
branco. E continua:

No mundo branco, o homem de cor encontra dificuldades na


elaboração de seu esquema corporal. O conhecimento do cor-
po é unicamente uma atividade de negação. É um conhecimen-
to em terceira pessoa. Em torno do corpo reina uma atmosfera
densa de incertezas (Fanon, 2008, p. 104).

Seguindo a perspectiva do autor, o corpo negro parece trazer um esquema


histórico-racial, com excesso de códigos, que vem junto a responsabilidade pelo
próprio corpo, pela sua cultura, pela sua raça, pelos seus ancestrais etc. Já o corpo
branco é só um corpo, positivado, respeitado em sua brancura. Desse modo, é pre-
ciso entender o negro como um sujeito que não possui relação especular com o su-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 593


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
jeito (branco) dito universal, ressaltando a complexidade que pode estar envolvida
o narcisismo e suas (possíveis) zonas cinzentas.
Se o sujeito é o sujeito do inconsciente e esse não tem cor, como podemos
refletir sobre o atravessamento da cor no corpo e na psique? Como podemos pen-
sar sobre as formas de ser sujeito na diferença? Para refletir sobre essas e outras
questões, propomos uma clínica que possibilite atender o indivíduo negro em sua
complexidade existencial, buscando caminhos que permitam cuidar dos traumas
provocados ao longo da sua história, sem com isso retraumatizá-lo. Propomos a
construção de uma clínica que traz a possibilidade de sentir com e de co-constru-
ção, sendo o setting analítico um lugar de via possível para a ressignificação dos
traumas ocasionados ao longo da história do indivíduo, propiciando um ambiente
que promova a transformação do indivíduo em sujeito (da ação). Ademais, como
podemos refletir sobre sintoma, fantasia e mecanismo de defesa em negros viti-
mados pelo racismo sem desmenti-lo ou retraumatizá-lo? Aqui, tomo emprestado
o conceito de racismo desmentido da psicanalista Jô Gondar. Segundo ela, existe
no Brasil um racismo desmentido, diferentemente de outros países como o norte
americano, por exemplo, o que torna o racismo brasileiro mais complexo e mais
perverso. De acordo com a autora, “aqui a população branca segregou os negros se
mesclando com eles, criando uma forma tão curiosa quanto perversa de racismo:
um racismo poroso, silenciado, desmentido” (p.48). E prossegue:

(...) quem fala sobre racismo numa perspectiva psicanalítica,


costuma associar as práticas racistas ao mecanismo psíquico
do recalque (...) É que o recalque se baseia, no final das contas
numa operação de segregação. Nós tendemos a recalcar tudo o
que poderia comprometer a imagem que gostaríamos de ter de
nós mesmos, para nós mesmos e para os outros. Ou seja, para
manter aquilo que chamamos de identidade – e aquilo que cha-
mamos de identidade é sempre uma construção ficcional – ten-
demos a segregar tudo aquilo que poderia coloca-la em xeque,
enviando para o outro lado do muro certas características nossas
que não queremos admitir. Quanto menos reconhecemos essa
alteridade em nós, mais intolerantes nos tornamos, e vice-ver-
sa. Nossa intolerância com o outro revela, na verdade, algo que
somos (p. 49).

Desse modo, para afirmar superioridade é preciso depositar em um outro to-


das as características negativas que poderiam colocar em xeque tal superioridade,
defende a autora.
Seguindo essa lógica, a complexidade do racismo brasileiro envolve a mescla-
gem entre brancos e negros (miscigenação) em que negros e não negros convivem
em harmonia, termo cunhado por Abdias Nascimento (2017) como democracia ra-
cial, em que “a constituição do país não reconhece entidades raciais; todo mundo é
simplesmente brasileiro” (p. 94). O Professor Dr. Kabengele Munanga, antropólogo
brasileiro-congolês, amplia o debate ao chama-la de mito da democracia racial bra-

594 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
sileira. Para ele, uma das características do mito da democracia racial é relacionar o
racismo a outros países e povos, como os americanos, pelo regime de segregação
nos EUA e os sul africanos brancos, pelo regime do apartheid, o que dificulta ao
brasileiro assumir-se racista. O Professor Dr. Silvio de Almeida (2019) enfatiza que
o racismo é parte da ordem social, em que a sociedade é estruturada no racismo,
sendo reproduzido nas instituições e nas relações interpessoais.
De forma complementar, podemos pensar que a ideia de superioridade do bran-
co (ideal de ego branco) projetada na sociedade e proliferada ao longo das ge-
rações, colabora para a manutenção da ideia de hierarquia das raças presente na
estrutura social. Então, podemos dizer que tudo que ameaça o ideal de ego branco
tende a ser minimizado, desqualificado ou diminuído por ele, mantendo assim a
estrutura social (real e simbólica) que mantém seu ideal de ego protegido. Assim,
o negro enquanto sujeito (da ação) ameaçaria o ideal de ego branco? Pensar o ra-
cismo desmentido é compreender a existência do negro, sendo recebida de forma
desqualificada na sociedade brasileira. Esta tem em seu bojo diversas formas de
violência, sendo estruturada na negação da existência do negro enquanto sujeito,
por parte do branco agressor. O desmentido envolve palavra, afetos e o próprio
sujeito, defende Gondar (2019). Para a pesquisadora, “o trauma diz respeito tam-
bém, e principalmente, a uma vivência afetiva e relacional que faz o sujeito perder
a confiança não apenas no outro, mas em si mesmo, em seus próprios afetos e
em suas instâncias de referência” (p. 55). Ao ser desmentido é como se o relato do
negro sobre seu sofrimento devido à cor da pele fosse algo inventado, fantasiado e
construído pelo próprio negro. Desse modo, como esses indivíduos são escutados
na clínica psicanalítica? Como se tornar sujeito, sendo negro, com seus códigos e
lugares bem demarcados no imaginário social? Quais caminhos são possíveis para a
transformação do indivíduo em sujeito?

PENSANDO SOBRE O MANEJO CLÍNICO


Aspirar essa clínica específica, com indivíduos negros, é saber que implica ques-
tões raciais, sociais, culturais e interseccionais (entrelaçamento entre gênero, raça
e classe). Destarte, leva-nos a repensar sobre a complexidade envolvida em alguns
conceitos clássicos da psicanálise, como o narcisismo, por exemplo. Nesses casos,
a compreensão do conceito de narcisismo traz certa complexidade que pode de-
sembocar em uma ‘zona cinzenta’, onde está presente o desmentido e a imagem
do negro deturpada de si. Pensar sobre o conceito de narcisismo desenvolvido na
época de Freud, pode fazer com que entremos nesse lugar ‘nublado’, quando
pensado para indivíduos negros, considerados socialmente, culturalmente e exis-
tencialmente, fora do padrão (inventado) de ‘sujeitos universais’.
De acordo com Freud,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 595


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
o desenvolvimento do Eu consiste num distanciamento do nar-
cisismo primário e gera um intenso esforço para reconquistá-lo.
Tal distanciamento ocorre através do deslocamento da libido
para um ideal do Eu imposto de fora, e a satisfação, através do
cumprimento desse ideal (p. 33).

Na clínica com indivíduos negros, talvez o maior desafio seja desconstruir o ide-
al de Eu imposto de fora, pois esse ideal de Eu, a meu ver, entra na instância do
irrealizável e quiçá do irrepresentável, pois a satisfação não lhe é possível devido
aos atravessamentos da cor, que ele precisa inclusive negar.
Desse modo, como podemos pensar os atravessamentos da cor no inconsciente,
com a democracia racial e o racismo estrutural na base da sociedade que se constrói
negando as demais dimensões do racismo como o institucional e o interpessoal, por
exemplo. Tal modo de funcionamento social traz muitas consequências materiais
e também subjetivas que podem ser interpretadas como fantasia e mecanismo de
defesa. Se o divã é atravessado pelo imaginário social, o indivíduo negro recebe o
olhar e a escuta que o outremiza. Segundo Toni Morrison, na “Outremização” há
uma demarcação racial hierárquica que denuncia o outremizado, ou seja,

descrições de diferenças culturais, raciais e físicas que denotam


“Outremização” mas permanecem imunes às categorias de va-
lor ou status são difíceis de encontrar. Muitas, se não a maioria,
das descrições textuais/ literárias de raça oscilam entre dissimu-
ladas, nuançadas e pseudocientificamente “provadas”. E todas
elas possuem justificativas e pretensões de certeza destinadas a
sustentar a dominação (Morrison, p. 23, 2019).

Assim, como essa outremização atravessa o setting analítico? Especialmente


quando se trata do processo de transferência e contra-transferência entre analista
e analisando. Nessa perspectiva, questiono sobre qual trabalho é possível com esse
sujeito que tem a especificidade da cor perpassando a constituição do seu apare-
lho psíquico; especialmente no contexto brasileiro, com a eminência do racismo
negado, dissimulado e de intimidade, atravessando inclusive a sua relação paren-
tal, relação essa em que se estabelecem os vínculos primários. Portanto, a ‘zona
cinzenta’ a qual me referi surge, quando o fator cor da pele torna-se complexa as
experiências dos indivíduos, o que envolve, inclusive, a distribuição de afetos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
À vista disso, tanto os homens negros quanto as mulheres negras parece haver a
percepção de referência narcísica do branco (sujeito)1, sendo o processo analítico
um espaço de destituição do branco inside e de desconstrução do ideal de ego

1 Partindo-se do princípio que o sujeito da Psicologia e da psicanálise não é negro. Para mim,
parece pleonasmo dizer “sujeito branco”. Por isso, o sujeito está entre parênteses.

596 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
branco. De algum modo, esse ideal de ego influencia nas escolhas objetais e no
investimento narcísico dos indivíduos negros, tendo como referência algo que não
se é, tendendo a ter a escolha objetal conforme o tipo narcísico que o indivíduo
gostaria de ser - branco. Obviamente, esse processo acontece de forma incons-
ciente, e à medida que ocorre o processo de enegrecimento e de racialização, esses
sujeitos vão se apropriando de quem de fato são, tornando-se mais autônomos em
relação à construção da própria história, colocando seus desejos e vontades em
egosintonia.
Pretendi aqui, levantar questionamentos e ampliar as possibilidades de debate
e discussão sobre o negro na clínica e racismo, em que alguns conceitos da psica-
nálise me serviram de parâmetro para embasar o trabalho. Entrelaçado a conceitos
mais amplos, pensados para o lugar do negro na sociedade, como a democracia ra-
cial (conceito cunhado por Abdias Nascimento) que serve de palco para o racismo
desmentido, bem como o racismo estrutural, pensado pelo filósofo Dr. Silvio de
Almeida. Dessa forma, como se constituir enquanto sujeito quando se tem a priori
um lugar social e simbólico (inconscientemente) estabelecido? O presente trabalho
apresentou mais perguntas do que respostas, pois é o que essa clínica tem me des-
pertado: perguntas.
Porém, com essa pesquisa percebi que a maioria dessas perguntas se encontra
ainda sem respostas, sendo necessário mais estudos sobre o tema. No entanto, o
trabalho psicanalítico é feito através da fala e da escuta e, como podemos fazer
uma escuta atenta ao desejo de indivíduos interditados e retaliados a todo tempo
nas relações sociais e interpessoais estabelecidas, sem com isso retraumatizá-lo?
Como pensar o narcisismo na clínica com indivíduos atravessados pelo racismo? A
meu ver, a análise deve trazer o processo de tornar-se negro como possibilidade de
morte simbólica do branco internalizado e como um lugar emancipatório do negro,
o que envolve refletir sobre as ‘zonas cinzentas’ do narcisismo proposto por Freud.
A questão aqui então é: como podemos construir essa clínica, não referenciada no
sujeito, dito universal?

REFERÊNCIAS

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FANON, Frantz (2008). Pele negra, máscaras brancas. Tradução Renato da Silveira. Salva-
dor: EDUFBA.

FREUD, S. (1914-1916). Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros tex-


tos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das letras, 2010.

GONDAR, Jô (2019). Um racismo desmentido. Em: Racismo, capitalismo e subjetividade:


leituras psicanalíticas e filosóficas. Orgs.: Marília Etienne Arreguy, Marcelo Bafica Coelho e
Sandra Cabral (org.) – Niterói: Ed. Eduff, 2018

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 597


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MORRISON, Toni (2020). Racismo e fascismo & O corpo escravizado e o corpo negro .
Companhia das Letras. Edição do Kindle.

NASCIMENTO, Abdias (2017). O genocídio do negro brasileiro: Processo de um racismo


mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva. FREUD, S. (1914-1916). Introdução ao narci-
sismo, ensaios de metapsicologia e outros textos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo:
Cia das letras, 2010.

NOGUEIRA, Isildinha Baptista (2017). O racismo e o negro no Brasil: questões para a Psica-
nálise. Orgs.: Noemi Moritz Kon, Cristiane Curi Abud Maria Lucia da Silva.

AUTORIA
Claudina Damascena Ozório
Puc-Rio
E-mail: cdozorio@gmail.com
Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4487570P6

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
COMUNIDADES TRADICIONAIS:
A MATRICENTRALIDADE NEGRA
NO CUIDADO DE AFLIÇÕES COMUNITÁRIAS

Jefferson Olivatto da Silva

INTRODUÇÃO
A região do Centro-Oeste e Sul do Paraná pode ser compreendidas por uma
perspectiva interdisciplinar, tendo como parâmetro comportamentos sociais diante
da violência desdobrado do colonialismo. Para compreender do racismo brasileiro
é mister relembrar que tais processos em África decorreram, incialmente, pela ex-
pansão do comércio árabe-muçulmano com a Europa e a Ásia desde o século VIII e
otimizado pelos portugueses, espanhóis, ingleses, italianos, franceses e holandês,
após os primeiros fazerem usos dos conhecimentos adquiridos pelos árabes de
sua tecnologia marítima (cartas marítimas, rotas de navegação e barcos). Ademais,
vale ressaltar que a escravidão e a depreciação aos povos africanos já faziam parte
do imaginário euroasiático manifestado pelos contos árabes, como Mil e uma noi-
tes, finalizados desde o século XIII (M’BOKOLO, 2009).
Nesse sentido partiremos de uma proposição de investigação de comporta-
mentos sociais tendo como instrumento interpretativo a concepção de complexo
de desprezo e atitudes elusivas, enquanto o entendimento de processos de longa
duração estruturantes de uma intencionalidade racista promotora de contingen-
ciamento psíquico (DA SILVA, 2015; 2017; DA SILVA; DOS SANTOS; DIAS, 2020; DA
SILVA; DOS SANTOS, 2020). Por outro lado, essas atitudes elusivas poderão ser ob-
servadas como respostas sociais diante desse contingenciamento, na reestrutura-
ção psicossocial dos adeptos da Umbanda no sul paranaense. Tal reconfiguração
para nós terá o efeito comunitário da reestruturação psíquica diante do que Wade
Nobles (2013) caracterizou como desencarrilhamento. Em termos de análise a res-
peito das comunidades africanas, acompanhamos a reflexão feminista africana do
trabalho de Diop (2014).
Nesse sentido, Obioma Nnaemeka (2005) aponta que diante das aflições ge-
radas pela sociedade ou pela violência de sistemas patriarcais, a mulher e mãe
são posições de afirmação da subjetividade do cuidado comunitário. Já Ifi Amadiu-
me (1997) repensa a perspectiva global de Diop para uma endógena, de acordo
com as comunidades do oeste africano. Segundo ela, a afirmação da matricen-
tricidade dessas comunidades pressuporiam sistemas políticas anti-estatais des-
centralizadas. A noção de mkpuke corresponderia a menor unidade de reinado e
de produção. Tal produção é autossubsistente na forma de unidade familiar e com
maior implicabilidade política na África. Como aponta Amadiume (1997), estariam

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
disponíveis aos membros da comunidade dois sistemas: umunne, o espírito comum
da maternidade representa o sistema de valores como compaixão, amor e paz e,
concomitante, a ideologia de umunna, que se refere à paternidade por competiti-
vidade, masculinidade, valentia, força e violência.
No entanto, é necessário asseverar que esses posicionamentos são de afirmação
da posição social ocupada pela mulher e mãe, de acordo com as pesquisas de Nna-
emeka (2005) e Amadiume (1997), acolhendo e organizando as comunidades em
termos de matricentricidade. Assim ao afirmar positivamente sua centralidade, re-
ligam a gênese comunitária com as futuras gerações por conduzi-las por práticas de
cuidado, atenção e organização tanto no bem-estar comunitário, como na acolhida
de alteridades, ou seja, esses esquemas de cuidado denotaram a porosidade das
fronteiras identitárias e conexão a novos vínculos. Em resumo, a capacidade agre-
gante e afirmativa da posição de mulher, mãe e cuidadora comunitária precisa ser
compreendida na forma de esquemas psicossociais ao se desdobrarem pela África
negra, organizando e reorganizando forças ancestrais e espirituais, políticas e eco-
nômicas, além de ser perpetuados e reatualizados pela diáspora africana no Brasil.
Logo, podemos compreender que esses esquemas se implicaram em novas re-
alidades subjetivas com novos povos e territórios, desde práticas comunitárias fa-
miliares, como as de benzedeiras até as institucionais nos denominados centros de
matriz africana. A força agregante dessas formas femininas devem ser acompanha-
das para além e, silenciosamente, sob o domínio do patriarcado, tanto nas comuni-
dades indígenas quanto na de colonos europeus e brasileiros.

ANTECEDENTES PSISSOCIAIS
Quando nos deparamos com as relações familiares e comunitárias da África
Central, encontramos na literatura o chamado cinturão matrilinear. Essa região
foi bem explorada por Audrey Richards (1956), no que tange às dinâmicas familia-
res, como casamento, iniciação feminina (por ex. Chisungu) e prevalência sobre os
cultos dos antepassados (inquices). Não significou uma estaticidade dessas comu-
nidades, ao contrário foi a dissipação de esquemas de vínculos, que tiveram como
impulsionador a ocupação territorial desde a bacia do Nilo em tempos remotos
(DIOP, 2014), como posteriormente na expansão banta reorganizaram-se em no-
vos esquemas. Neste caso, segundo Bostoen (2007) e De Philippo et al. (2012),
houve duas ondas migratórias bantas: a primeira por volta de 4000 a.C. e outro
2000 a.C. Essas ondas migratórias foram acompanhadas de outras dinâmicas em
menor escala, porém simultânea e em direções diferentes. Em tempos mais recen-
tes, observarmos com as pesquisas de Jan Vansina (1993; 1995) sobre os povos
da savana pelo uso da memória coletiva e história oral outras ondas migratórias
vindas da África do Sul como do sul do Congo, após o século XVI. Enquanto esta re-
sultou de dinâmicas internas para a expansão do reino Luba para manter postos tri-
butários que estabeleciam o comércio com o índico e resolver questões de domínio

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
territorial no século XVII, a primeira reverberou a invasão colonial sobre os shona
pelos boêres para ocupar novas regiões até o cinturão matrilinear, já em meados
do século XVIII (M’BOKOLO, 2009).
A partir desse parâmetro podemos, assim, acompanhar a importância da posi-
ção feminina quanto as relações comunitárias, tanto familiares quanto no cuidado
aos ancestrais. O culto aos inquices também são observados na região central de-
nominada por Audrey Richards (1956) de cinturão matrilinear e nos auxilia a com-
preender que esse tipo de esquema, mesmo quando há a tentativa de suplantá-lo
por novos cultos masculinos, como de chefes migrantes no século XVI Chokwe,
Luchazi e Mbunda, entre a região noroeste da atual Zâmbia e fronteira com a Re-
pública Democrática do Congo e Angola (ELLERT, 2005), entre os séculos XVI e XVII,
como também aconteceu com a chegada dos Bemba, Maravi e Undi (ROBERTS,
1973), entre os séculos XVII e XVIII, na região norte e nordeste da Zâmbia e norte do
Malauí), e o culto dos missionários cristãos em meados de 1880.
Ao lidar com esquemas masculinos, como competição, domínio, foça e virilida-
de, conforme a descrição de Richards (1956), Binsbergen (1981), Hugo Hinfelaar
(1994) no cinturão matrilinear sob a imposição dos cultos masculinos dos chefes e
dos missionários e Amadiume (1997) sobre a ideologia da paternidade – umunna
– no oeste africano, podemos observar uma supressão historiográfica sobre a hos-
pitalidade, cuidado, auxílio e nutrição como componentes necessários ao exercício
da chefaria quanto na expressão das ações de antepassados, entidades e divinda-
des, já atestadas por Hinfelaar (1994). Uma vez que, tal repulsa aos esquemas femi-
ninos no fazer político e missionário com a colonização asseguraram a assimetria
sobre os saberes locais e se estruturaram no cotidiano por desprezo e aversão a
esses comportamentos, sendo que, para efeito de resistência e estabelecimento
de vínculos eficientes, o cuidado feminino disseminou-se por atitudes familiares e
religiosas.

MOBILIDADE HUMANA NO PARANÁ


Em termos sintéticos precisamos considerar que a ocupação migratória do Pa-
raná teve efeitos distintos em comparação à ocupação da região norte com a do
sul. Enquanto território de populações indígenas, é muito provável que havia a
comunicação entre as comunidades e por grandes extensões, em vista do prová-
vel Caminho de Peabiru. Este conectava Cuzco, Peru, à Bolívia, Paraguai e Brasil,
através do interior do Paraná e, por ramificações em Castro, conectava- se com a
costa atlântica em São Vicente/SP e São Francisco do Sul/SC (PROUS, 2007). A pro-
babilidade desse caminho atestado por André Prous (2007) decorre de incursões
jesuíticas, de exploradores, comerciantes, além dos bandeirantes, Raposo Tavares
e Miguel Preto, em 1625, em busca de indígenas para aprisionar e vender. Essa vio-
lência foi progressiva contra as comunidades, afugentando-as e degradando suas
relações subjetivas foi avassaladora a ponto de no século XX e XXI, muitos parana-

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
enses não reconhecerem sua existência anterior, enquanto as populações Xetá fo-
ram quase absolutamente exterminadas como foram os Xokleng, mas conseguiram
resistir em Santa Catarina (MOTA, 2013).
Da mesma maneira, ocorreu o efeito opressivo também ao sul do Paraná, mar-
cado pela presença de fazendeiros desde 1825 com plantéis de escravizados ne-
gros brasileiros e africanos. Como vimos acima sobre os julgamentos depreciati-
vos relativos ao racismo, reproduzidos pelo desdém às populações negras, há um
ocultamento na memória coletiva da presença negra e do sistema de escravidão
ao qual estavam submetidos, assim como das populações indígenas residentes (cf.
CRUZ, 2013). Para termos uma noção mais próxima dessa concretude, Fernando
Franco Netto (2007) observou nos inventários post-mortem, de Guarapuava entre
1828 até 1872. De uma forma pontual, podemos corroborar o autor que, em 1872,
havia em Guarapuava um total de 549 negros escravizados (290 homens e 259 mu-
lheres) de origem brasileira e 27 (18 homens e 9 mulheres) africanos; já em Palmas
o número provável era de 227 (93 homens e 134 mulheres) de origem brasileira e
46 (25 homens e 21 mulheres) africanos.
Com efeito, isso nos leva a reconhecer que os esquemas africanos foram des-
dobrados nessas regiões pela aprendizagem do uso das ervas locais tanto com os
indígenas quanto do aprendizado adquirido por seus antepassados no Brasil; am-
bos grupos responderam pelo cuidado à saúde nas colônias e de sua transmissão
pela rota dos tropeiros, ainda mais por serem os únicos refúgios. Conforme o le-
vantamento de dados, podemos observar pela cartografia do Instituto de Terras,
Cartografias e Geociências (ITCG, 2010), que as comunidades quilombolas se ins-
talaram ao longo dessa rota e estabeleceram relações parentais entre esses terri-
tórios (CRUZ, 2013).
As diferentes populações que desde 1620 estiveram ocupando o Paraná, orga-
nizaram-se em comunidades, que ao longo de processos sócio-históricos e identi-
tários deram origem, no caso do Paraná, de Rede Puxirão de Povos e Comunidades
Tradicionais (ou Rede Puxirão) formada por povos: Kaingang, Guarani, Xeta, benze-
deiras, raizeiros, curandeiros, ribeirinhos, quilombolas, povo de santo, pescadores
artesanais, caiçaras, cipozeiras e faxinalenses.
Com efeito, se a práxis psicológica considerar a interrelação de Manuela C.
Cunha (2010) e Maritza Montero (2004) sobre a criação de mecanismos institucio-
nais por meio da horizontalidade e do protagonismo das comunidades tradicionais,
poderemos romper com posturas científicas de fragmentação e assimetria (basea-
do no desprezo social gerador da obsessão de pureza europeia e persecutoriedade
da violência sistemática e de longa duração) para uma integradora e acolhedora
(baseada no cuidado mútuo). Longe de ser uma utopia ou psicologismo romântico,
esse é o caminho exequível para constatar, analisar, interpretar e agir coletiva-
mente para a transformação social. Porquanto essa transformação vincule-se ao
protagonismo sócio-histórico das comunidades, de posturas integradoras entre
saberes dos anciãos, experiências compartilhadas de longa duração e disposição

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
de continuidade da identidade comunitária que tem sido pela luta e da resistência
paranaense.
Desta feita, a relevância dos conhecimentos tradicionais e a vivência sócio-his-
tórica dessas comunidades nos têm demonstrado os efeitos psicossociais diante
desse racismo. Podemos observar que muito embora o anseio em criar a condi-
ção de destaque nacional, as práticas tradicionais nos revelam a centralidade de
sua estruturação cotidiana. Como Solange Struwka (2017) traz em sua pesquisa
sobre os faxinalenses, a composição desses campesinos, provavelmente, segundo
os dados históricos disponíveis, demonstra existir uma estreita relação com o de-
senvolvimento do próprio estado, qual seja, vínculos em sua organização por meio
da chegada dos espanhóis (exploradores, autoridades e missionários) no início do
século XVII, bem como o refúgio para o sul por conta das bandeiras; ademais, são
atestados as relações diretas com as populações indígenas, caboclos, negros for-
ros e libertos, pequenos lavradores, além da mobilidade de pessoas por conta do
tropeirismo. Alguns autores tentaram vincular os faxinalenses a chegada dos imi-
grantes poloneses e ucranianos, algo contestado como estratégia de pureza dessas
populações, reforçando a sintomatologia do contingenciamento em torno do des-
prezo social. Porém, precisamos lembrar que mesmo diante do pseudo-esqueci-
mento de faxinalenses e outras comunidades da Rede Puxirão, houve a presença
e interrelações com os degradados (condenados) enviados ao sul do Estado já nas
primeiras décadas de 1800 (Pontarolo, 2007), ou mesmo, outros traços de degre-
dados por conta da saúde (hanseníase) e mendicância em Curitiba para a região
sul e central do estado, enviados por ordem de limpeza social usando a expansão
da linha férrea até Guarapuava em 1954. Essas violências pela mácula dos indese-
jáveis aos projetos políticos na história paranaense mantiveram-se conectadas às
categorias cognitivas e afetivas do ideário paranaense para serem repelidas, infe-
riorizadas e causar indiferença.
Diferentemente de uma lógica patriarcal de fragmentação ou domínio, o que a
Rede Puxirão nos apontam é o metabolismo de sua resistência integrando-a às atitu-
des elusivas, desprezadas pelas instituições, mas perpetuando-se pelo acolhimento
de diferentes subjetividades e estados de saúde negligenciados pelo estado. Re-
-interpretando a noção de solidariedade que aparece como estruturante nas pes-
quisas dos faxinalenses (STRUWKA, 2017), caminhamos para entender essa ação
agregante pelo acolhimento e cuidado coletivo, respondendo por matrizes matri-
centrais de intimidade consciente, ou seja, abundância psicossocial.
Os saberes, esquemas culturais e práticas sociais entre essas populações e seus
descendentes tiveram (e ainda tem) a sua frente o esforço desde 1890 de criar um
estado branco e europeu, em um conjunto de ações conhecidas como Movimento
Paranista. Se de início Alfredo Romário Martins (1995) publicou seu livro História
do Paraná com a figura idílica do indígena, não os massacrados no território, já Wil-
son Martins em Um Brasil diferente (1989) faria questão de subtrair por absoluto a
presença de indígenas, negros escravizados e até de portugueses. Esse pseudo- es-

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
quecimento concorreu com a realidade do estado, pois há um silenciamento inten-
cional sobre essa realidade bruta para se adequar à criação dessa tradição outra.

REENCARRILHAMENTO
O complexo de desprezo teve como dispositivo psicossocial a violência com o
objetivo de conquistar riquezas ou benefícios por intermédio do domínio de popu-
lações, sua produção e seu ambiente. Como expusemos por Diop (2014), em sua
perspectiva histórica africana, essa violência caracterizou o patriarcado em regiões
de escassez e modelou a violência como instrumento de sobrevivência na forma
de competição, virilidade, domínio, atestado por Amadiume (1997) no sistema da
paternidade (umunne), que conviveria com o da maternidade (umunna) enquanto
compaixão, amor e paz.
Já o patriarcado desenvolvido longamente nas regiões inóspitas do hemisfério
norte modelaria comportamentos sociais de violência e reafirmado por diferentes
expressões ideológicas, desde o sacrifício do herói aos mitos de conquistas. No que
tange a era cristão, com maior enfoque a partir do século XV, intensificou-se o avil-
tamento em escala global de reinos, impérios e comunidades para a sedimentação
de suas políticas exploratórias. Em consequência, essas comunidades por vínculos
de longa duração reproduziram atitudes elusivas por esquemas agregantes de sen-
timentos, ideias, pensamentos e espiritualidade para remodelar identidades co-
munitárias para além da compreensão dos conquistadores.
Da mesma forma, foram essas atitudes elusivas que possibilitaram ao povo-
-de-santo das regiões do sul do Paraná a enfrentar comentários sórdidos, descaso,
frieza, omissão, manifestações de ódio, asco e indiferença nas cidades onde se ins-
taram, como apontamos sobre os julgamentos depreciativos em relação à sua fé,
ancestralidade espiritual e rituais religiosos.
Não obstante, os centros de umbanda responderam às aflições comunitárias ne-
gligenciadas pelas instituições sociais tanto pela distância de serviços disponíveis
em centros como Curitiba quanto no atendimento de aflições incognoscíveis, ines-
crutáveis, incompreensíveis e segregadas nesses serviços – inclusive pelas igrejas
cristãs, mesquitas e centros espíritas locais.
Com efeito, é mister considerar que a Rede Puxirão pode orquestrar interna-
mente a seus coletivos dinâmicas sociais diante dessas aflições para moldar senti-
dos legitimadas e reconhecidos nesses ambientes. Isso não significou a ausência de
conflitos nos centros, nem falta de rupturas. Porém, mesmo com desdobramentos
de novos centros ou filiações a outros centros, tais ações coadunaram-se com a
dinamicidade da produção de sentidos comunitários.
Por isso, diante dos sucessivos e prolongados massacres africanos e afro-ameri-
canos, Wade Nobles (2009) traduziu-os na metáfora do descarrilhamento psíquico,
considerando um ambiente social omisso e restritivo, que contingenciou a experi-
ência humana de manifestações psíquicas, emocionais e cognitivas, de sua ascen-

604 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
dência africana. Dessa forma, nesses coletivos, por ex. em centros de Umbanda, o
membro pode ser acolhido por esse outro plano de experiência em que forças e
energias atribuem sentidos compartilhados por ancestralidades de esquemas fe-
mininos na qualidade de entidades, guias, anjos e orixás, suas aflições e angústias,
seu modo de ser, sentir e perceber o mundo são reorganizados. Ademais, esses
sentidos têm como meio a continuidade cultural efetivada pelo discurso metafóri-
co ao qual o consulente se conecta à ancestralidade pela performance do médium.
Conforme apontou Wade Nobles (2008), esse discurso metafórico manifestado
como performance e memória (predicá-la-íamos de comunitária) afirma a pesso-
alidade, elucida as circunstancias e estabelece controle situacional em direção à
consciência. E, de uma maneira distinta, é preciso ter em mente que essa cons-
ciência e este estado de consciência nos centros revelam-se como crença, atitu-
des, ritmos e transes. Conquanto, a produção psicossocial metafórica da Umbanda
é celebrativa, em decorrência de sua capacidade performática e evocativa do ser,
pertencer e se tornar em uma lógica de ancestralidade africana (NOBLES, 2013).
Outrossim, tal acolhimento comunitário da condição humana proscrita oferece-
-lhe a reestruturação espaciotemporal de sua alteridade, ou melhor, de sua pessoa-
lidade relacional ao qual denominamos de reencarrilhamento: há um alinhamento
de sua experiência em um campo de significação comunitário nutrindo-a pelo re-
conhecimento de sua autenticidade e pertencimento humano e supra-humano ao
tangenciar a violência insistente do ideário do Movimento Paranista.
Por meio desse alinhamento psíquico, podemos acompanhar que a performance
e evocação do ser negro e indígena na Umbanda engendra a capacidade humana de
cura comunitária, segundo a qual a generosidade do cuidado, da nutrição e do aco-
lhimento reestrutura subjetividades excetuadas para além da justificativa social da
violência exploratória desdobrada nas cidades sul- paranaenses.

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AUTORIA
Jefferson Olivatto da Silva
Universidade Estadual de Londrina
E-mail: jeffolivattosilva@uel.br
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6542-1461
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0088578024264046

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 59
Saúde da
População
Negra e Ações
Intersetoriais
Visando à
Integralidade
O USO DE ERVAS NA RESISTÊNCIA FEMININA
NEGRA: CONSTELAÇÕES DE APRENDIZAGENS
ENTRE BENZEDEIRAS

Jefferson Olivatto da Silva


Marcia Denise de Lima Dias

INTRODUÇÃO
O tema exposto circunda as práticas educacionais relativas ao benzimento pra-
ticado por mulheres na cidade de Foz do Jordão, Paraná. Esse trabalho faz parte
do diálogo interdisciplinar do Núcleo de Estudos Ameríndios e Africanos – NEAA/
UNICENTRO, que tem realizado pesquisas em Educação sobre práticas culturais em
comunidades da região, como quilombolas, povos de santo, capoeiras e benzedei-
ras, por meio de mestrados, iniciação científica e extensão universitária.
O recorte que aqui apresentaremos investiga os processos psicoeducativos es-
truturantes do ser benzedeira e tendo como forma de aproximação e coleta de
dados a participação em reuniões do grupo católico “Associação São Miguel Ar-
canjo”. As benzedeiras da cidade se reúnem periodicamente nesse grupo onde
partilhavam experiências familiares e propunham atividades, como festas e bailes,
constituindo-se como um instrumento social de solidariedade e compadrio.
Partimos do pressuposto que a etnografia da educação pode evidenciar a atu-
ação dessas mulheres no atendimento às aflições comunitárias. Com efeito, a in-
terpretação desses processos psicoeducativos do benzimento foi realizada a partir
da concepção de constelações de aprendizagem (DA SILVA, 2019; DIAS, DA SILVA,
2018), que temos desenvolvido nesse grupo de estudo. Nesses termos, com o intui-
to de contribuir com propostas interpretativas para dialogar com a especificidade
da educação e as contribuições da etnografia, as constelações são tecidas a partir
da interação entre processos sócio-históricos, cognitivos e vínculos comunitários
que coordenam pensamentos e atitudes das comunidades enquanto comporta-
mento social.
Podemos assim levantar como pressuposto desse processos de aprendizagem
de longa duração das benzedeiras como resultado de seu contexto sócio-histórico
específico, um tipo de resposta comunitária aos cuidados de saúde, práticas que
acontecem no desenvolvimento familiar enquanto fluxo do dom e a experiência do
benzimento como erfahrung de ancestralidade feminina.

PROCESSOS EDUCATIVOS COMUNITÁRIOS


O município de Foz do Jordão, desmembrado de Candoi em 01/01/1997, tem
cerca de 5.420 habitantes, representado pela seguinte população autodeclarada:

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3.012 brancos, 2.175 pardos, 204 pretos, 21 amarelos e 8 indígenas (IBGE, 2010).
Segundo dados do IPARDES (2016) a população conta com 6 estabelecimentos de
saúde da esfera pública. Vale mencionar que, segundo dados preliminares de 2016
do IPARDES, as causas de óbitos constam: 17 neoplasias (tumores), 14 do aparelho
circulatório, 10 causas externas de morbidade e mortalidade e 8 do aparelho respi-
ratório. Entretanto a comunidade manteve a estreita relação criada com líderes de
instituições religiosas e as benzedeiras para o cuidado de suas aflições.
Em busca da compreensão dos processos educativos relativos ao benzimento,
as práticas sociais femininas podem nos auxiliar a entender sua produção sócio-
-histórica. (Devemos mencionar que na cidade somente as que são católicas são
nomeadas de benzedeiras, enquanto as evangélicas recebem o termo rezadeiras).
Para tanto, precisamos levar em consideração que esse tipo de aprendizagem,
majoritariamente feminino, se caracteriza como uma educação silenciosa. Edward
Alpers registrou, por exemplo, que muito embora as mulheres muçulmanas no
leste africano, do século XIII, ocupassem uma posição desprestigiada no cerne do
islamismo, elas geraram uma maior amplitude de ensinamento do Islão que os
homens; visto que, elas cuidavam da família extensa, criados e quaisquer outros
dependentes, dentro da casa e na varanda, estabelecendo a seu redor vínculos co-
munitários extensos e a negociação entre Islão e práticas religiosas locais. O pouco
prestígio depositado sobre as mulheres não foi suficiente para criar fissuras nessa
atenção dilatada.
Nesses termos, podemos comparar dois aspectos matricentrais. Primeiro um
cuidado amplificado aos que estavam dialogando e mediando situações comer-
ciais, culturais e religiosas e segundo uma posição assimétrica perante os homens
da comunidade. Contudo, a aprendizagem feminina, quer no caso das mulheres
muçulmanas ou mesmo das benzedeiras foi efetivada por esse convívio com as
próprias mulheres e mães. Essas dinâmicas desvelam a afirmação de aprendizagens
como cuidado coletivo, maternidade e vínculo aos antepassados como elo de con-
tinuidade existencial da própria comunidade.
Devemos levar em consideração o uso de esquemas culturais, que se conec-
tam ao passado negro e indígena dessas mulheres, perpetuando o modus operandi
de vínculos comunitários, ancestralidade do dom e aflição. Sem uma pretensão
primordialista, isto é, buscar a origem ou pureza de uma prática cultural, o que
buscamos é traçar em um passado remoto e distante o que poderia referendar
experiências coletivas constituintes e que se adaptaram até a atualidade na forma
de benzimento. Enquanto cenário intersubjetivo, a referência histórica brasileira
nos coloca diante de práticas culturais difundidas em todo o território nacional e por
várias gerações (HOFFMANN- HOROCHOVSKI, 2015, p. 110).
Notadamente, isso é um indicativo da influência dessa relação intersubjetiva,
aflição- benzimento, como comportamentos coletivos de longa duração. Pode-
mos relembrar que esses comportamentos, de um lado, desdobram-se diante dos
efeitos prolongados de ruptura psicossocial causados pelo colonialismo e racismo

610 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
(NOBLES, 2008; 2013). Por outro lado, pela memória e biótipo das benzedeiras há
uma relação familiar estreita com populações negras e indígenas do sul do Paraná.
Todavia, com o intuito de mencionar possíveis imbricações psicoeducacionais, no
caso da pajelância, pesquisas realizadas na região norte do Brasil diferenciam a pa-
jelância de nascimento e a de simpatia. Aquela ocorre pela interlocução direta
com as entidades e o mestre – termo atribuído a homens e mulheres -, enquanto
a de simpatia passa por um processo iniciático a partir de um outro mestre (CA-
VALCANTE, 2008).
Levamos em conta, assim, que há esquemas de perpetuação africana do status
de mulher, mãe e cuidadora (DA SILVA, 2019; DA SILVA; DOS SANTOS, DIAS, 2020),
como uma afirmação positiva dessa posição transmitida pelas anciãs da comuni-
dade e adaptáveis ao desenvolvimento de sociedades patriarcais e capitalistas en-
quanto uma transmissão silenciosa.

POLIVALÊNCIA: MULHER, MÃE E BENZEDEIRA


Assim, o entendimento desses esquemas e sistemas em torno das práticas cul-
turais femininas direciona-nos a uma visão sobre processos educacionais comuni-
tários, restauradores das dinâmicas sociais e perpetuado silenciosamente. Com
efeito, as benzedeiras refletem a experiência de ser mulher, mãe e cuidadora, exer-
cendo esquemas da ancestralidade comunitária imersa em seu cotidiano, arraigada
em seus afazeres diários e mesclada com o reconhecimento comunitário de seu ofi-
cio. Por isso, ser benzedeira é afirmação em si do que poderemos explanar sobre o
mulherismo e a transmissão da dádiva.
Vamos iniciar com o ser mulher. Embora haja uma convergência desses três
esquemas, podemos considerá-los como uma aprendizagem pela identificação do
ser mulher por meio de suas anciãs: “aprendi com minha mãe’, minha avó ensinou”,
“minha mãe sempre dizia”, “eu, como meu papel de mãe também ensino as meni-
nas o oficio”. São as mulheres que carregam e transmitem os conhecimentos de
cura, das ervas e de vida. Aprendem que devem ser fortes e assim ensinam suas
filhas e outras mulheres a também serem. Dona Chica é viúva, nos relatou que en-
quanto seu marido estava vivo, era respeitado como o dono da casa, mas que todas
as funções da casa dependiam dela. Foi ensinada por sua mãe que “o homem é o
corpo da casa, mas a mulher é a cabeça, que dela e de suas decisões depende o
futuro da casa”.

Digo para as meninas que devem casar, ter filhos, mas que de-
vem procurar ser felizes. A vida de casado é muito triste para a
mulher, pois a gente aprende a ser livre, o casamento tira isso
da gente, no casamento você tem que fazer muitas coisas, cui-
dar da casa, dos filhos, do marido e hoje em dia ainda trabalhar
fora. Os filhos querem algo, pedem pra mãe, o marido quer algo,
pede pra mulher, quem faz comida? Quem limpa a casa? Quem

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 611


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
lava a roupa? O homem está lá como um enfeite dentro de casa,
para as pessoas olharem e dizer que tem um homem lá. Se a
mulher é sozinha é desrespeitada, não tem valor. Se deixou o
marido, ela tá errada, se o marido traiu, ela tá errada. A gente
aprende a viver e ensina as filhas, para resistir num mundo onde
as mulheres fazem tudo, e os homens que se dão bem. Mas se
não é a gente, os filhos não sabem uma reza, não vão a igreja,
não vão pra escola, não aprendem certo e errado, não aprendem
nada. Digo para as meninas, a gente mulher é que manda, mas
tem que fazer de conta que só obedece. (Dona Bina).

A afirmação desse local social como ser mulher e mãe deve ser considerado na
escolha de sua produção comunitária e não relativa a um domínio ou instituição
patriarcal. Há assim uma construção na escolha de si pelo estabelecimento do flu-
xo que essas posições oferecem, como vivenciado por suas mães e tias e estas de
suas ancestrais. Diferentemente do menino que tende a se afastar da identificação
da mãe, para ocupar a posição do homem hetero, a menina reafirma uma posição a
partir da experiência compartilhada do ser mulher.
Como se pode observar pelo cotidiano dessas mulheres, ser mãe não é uma ex-
periência no vácuo espaciotemporal, ou seja, é ocupar um local já existente pela
experiência das anciãs e designado pela comunidade: prescrições, determinações,
símbolos e representações sobre o ser mulher. Há um caminho prescrito para
ocupar, porém devemos compreender que há uma afirmação desse espaço social
como posicionamento de si na comunidade. Logicamente, não deve ser pensada
como uma posição idílica para não desviarmos as escolhas das mulheres em se
tornarem benzedeiras na aceitação do compromisso comunitário, além disso, ter
em mente que essa é uma posição polivalente. Portanto, a experiência geracional
e comunitária tece apontamentos contraditórios e outros consensuais em ser mu-
lher, mãe e benzedeira.

ANCESTRALIDADE AFROINDÍGENA
No município de Foz do Jordão já se encontra a terceira geração dessas mulhe-
res, inclusive exercendo o oficio de benzer há mais de cinquenta anos. Dona Chica
nasceu em Guarapuava, veio para o município de Foz do Jordão juntamente com
seus pais ainda criança, ali teve sua infância, casando posteriormente e formou sua
família. Sua filha, Dona Maura, nasceu e cresceu no munícipio, e posteriormente
constituiu sua família. Dona Bina veio com seus pais do município de Mangueirinha,
ali se desenvolveu e formou sua família. Mudou-se para Foz do Jordão e já tem
netas.
Para as benzedeiras a ancestralidade é o fator primordial para a continuidade do
ofício, associar a fala de um fato recente com o passado é um esquema recorrente e
associado a princípios de legitimidade de sua autoridade. A própria palavra deriva-
da do latim antecedeere “anteceder, preceder, estar antes” traz em si essa ideia de

612 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
descendência, presente nas narrativas das benzedeiras, do aprendizado presente
em suas gerações, do compartilhamento das experiências, dos ensinamentos com-
partilhados com as mais novas, no ouvir, falar, ver-fazer da prática do benzimento.
Vale lembrar que essas práticas de assistência comunitária feminina demons-
tra a perpetuação de esquemas intersubjetivos ligando o passado ao presente. As
histórias de vida estão guardadas na memória dos velhos, e são reflexos diretos da
memória coletiva de uma comunidade. Bosi (1994, p.55) afirma que: “Se lembra-
mos, é porque os outros, a situação presente, nos fazem lembrar: o maior número
de nossas lembranças nos vem quando nossos pais, nossos amigos, ou outros ho-
mens, no-las provocam”.
Para as benzedeiras memória é aprendizado e aprendizado é também educa-
ção. Para elas, a principal responsável pela educação das crianças são as mães, avós,
tias, estas seriam responsáveis por auxiliar na formação da criança enquanto ser hu-
mano. O pai, para elas, é uma figura importante, entretanto sem a figura feminina a
criança não aprende sobre o autocuidado e o cuidado com o outro.
A escola cumpre com um papel importante na vida da criança, claro que é impor-
tante saber ler e escrever, mas se perdeu no caminho a educação e relação entre
as crianças com seus pais e seus avós. Na nossa época a gente aprendia vendo os
pais fazerem, principalmente a mãe, sempre estávamos na barra da saia dela, ou-
vindo, prestando atenção e aprendendo (como minha mãe dizia: aprendendo a ser
gente). Porque a generosidade e o respeito pelo outro não estão só na fala, de você
corrigir a criança, mas de mostrar na prática, no dia a dia. Acredito que por isso que
mesmo tendo escola, médico, a ciência né, as mães ainda nos procuram, porque o
que ensinamos não está no papel.
Como transmissoras de conhecimentos referentes a saúde, em sua prática atra-
vés de rezas, conselhos e orações, as benzedeiras desenvolvem diversas relações
envoltas no ofício. Logo, as relações de aprendizagens dentro do ofício do benzi-
mento estão permeadas pela generosidade e pela reciprocidade. As aprendizagens
matricentrais se desenvolveram e perpetuaram na comunidade (através do tem-
po) pela relação de generosidade presentes na formação das benzedeiras e nas
relações de reciprocidade entre elas e a comunidade, nos possibilitando evidenciar
e analisar as constelações de aprendizagens.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Alguns pontos são extremamente importantes para compreender a estrutura e
as dinâmicas de aprendizagens presentes nos processos educacionais do ofício do
benzer.
Um dos aspectos fundamentais é a compreensão do espaço da casa, do lar das
benzedeiras, pois a casa das benzedeiras é também o ambiente de propagação/
transmissão do ofício e de atendimento comunitário, sendo que estes ocorrem em
conformidade com as outras práticas cotidianas. Há um espaço reservado na casa

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 613


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
de cada uma delas para a prática do benzimento, ao qual dão a denominação de
altar, cada uma compõe seu altar conforme suas crenças e valores.
As aprendizagens acerca do ofício ocorrem com outra mulher (mãe, avó, tia,
etc.) estas pertencentes ao mesmo núcleo familiar, provenientes de vínculos fa-
miliar ou afetivo (compadrio). O aprendizado da benzedeira é um processo longo,
apreendido no decorrer da sua vida e desde a infância, é algo que faz parte do
cotidiano, desta forma a transmissão do dom para alguém que não faça parte da
vivência e do cotidiano não é possível, pois não conseguirá compreender todo o
processo pelo qual se constitui uma benzedeira. Vai além de orações e ervas é um
universo de aprendizagens e relações diferentes do padrão eurocêntrico estabe-
lecido na nossa sociedade. Com relação aos benzedores homens, estes também
aprenderam o ofício com uma mulher, entretanto não se tem relato (neste grupo)
de transmitirem o conhecimento, de modo que formem outros benzedores na fa-
mília, o que é prática comum entre as mulheres.
Se tratando dos aspectos da biodiversidade elas atuam como defensoras e trans-
missoras de saberes sobre ervas, plantas, mananciais e animais. Todas possuem
conhecimentos de ervas, chás e simpatias, entretanto as garrafadas são conhe-
cimentos específicos de aprendizagem ancestral e depende do grupo familiar ao
qual a benzedeira faz parte.
Há uma ligação direta das relações das benzedeiras com o olho d’água local de
São João Maria, local onde realizam batizados, buscam água para os benzimentos,
para as simpatias e rituais de limpeza de casa e de corpo. Há também uma ligação
espiritual com a santa negra católica Nossa Senhora Aparecida.
As simpatias compõem uma visão de mundo compartilhado, é um dos meios
pelos quais se propagam as aprendizagens. Instituindo assim normas, regras espe-
cificas, demonstrando as hierarquias nas relações rompendo com as fronteiras do
tempo e religiosas no que tange a transmissão do conhecimento no meio familiar
e preestabelecendo fronteiras de saber entre benzedeiras e consulentes e estão
intrinsicamente ligadas aos saberes afroindígenas brasileiros.
O domínio sobre ervas e chás pode ser ensinado, entretanto o ofício de benzer
é um ato relacionado ao dom, a dádiva, logo a fronteira entre os saberes fica pre-
estabelecida dentro da relação entre a benzedeira e suas consulentes. As benze-
deiras atendem todos os tipos de enfermidades, entretanto são procuradas, com
maior frequência, para enfermidades relativas a infância ou período gestacional.
A uma hierarquia nas relações entre as benzedeiras, respeitando- se a idade e co-
nhecimento especifico para determinados males, logo quando uma benzedeira
percebe que a aflição apontada pode ser melhor tratada e acompanhada por outra
benzedeira, indicam-na para consulente.

Existe entre elas o que denominamos de “rede de cuidados”, ou seja, existem


relações de compadrio e cuidados umas com as outras, entretanto existem benze-
deiras que não fazem parte dessa rede, o que não interfere na legitimidade indi-
vidual e coletiva enquanto benzedeira. Dessa maneira, mesmo não fazendo parte

614 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
da rede de compadrio, não conhecendo as benzedeiras que fazem parte dela, não
participando de troca de ervas ou consulentes, não existe a possibilidade da in-
terferência na autoridade repassada a outra mulher/homem em ser benzedeira/
benzedor. Ao contrário todas as benzedeiras possuem legitimidade para criar ou-
tros grupos, a partir de si e de seus conhecimentos, seja no meio familiar ou com
consulentes.
Em conclusão, podemos compreender o benzimento como uma pedagogia de
resistência de longa duração dessas relações intersubjetivas, diante de um contex-
to sócio-histórico regional: a) institucionalmente: além de um histórico de saúde
negligente durante várias gestões, o tratamento medicamentoso pela viés doen-
ça-saúde reduz o acolhimento das aflições; b) há a perpetuação de simpatias com
focos similares caracterizando um histórico de aflições prevalentes na região, rela-
tivas a sua composição histórica étnico-racial e migratória, em termos de vulnerabi-
lidade infantil e proteção familiar (casamento, gravidez e emprego); c) a comunida-
de reconhece a dádiva das benzedeiras considerando o acolhimento e tratamento
de suas aflições familiares mais amplo e pleno; d) a erfahrung da afirmação da
ancestralidade feminina do dom (mulher, mãe e benzedeira) relembrada por Dona
Chica, mãe de Dona Maura, e Dona Bina por intermédio do fluxo da aprendizagem
geracional em processos silenciosos.

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AUTORIA
Dr. Jefferson Olivatto da Silva
Universidade Estadual de Londrina
E-mail: jeffolivattosilva@uel.br
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6542-1461
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0088578024264046

MEd. Marcia Denise de Lima Dias


Prefeitura Municipal de Educação de Mangueirinha/PR
E-mail: mardias2020@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7645-0137
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2758891576233183

616 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
EDUCAÇÃO EM SAÚDE SOBRE HIPERTENSÃO
ARTERIAL SISTÊMICA: O COMPARTILHAMENTO
DO CONHECIMENTO DE UMA DISCENTE
QUILOMBOLA COM A SUA COMUNIDADE
Elisiane Souza Rodrigues
Camila Sousa da Silva

RESUMO
O presente trabalho descreve a experiência vivenciada por uma acadêmica do
curso de enfermagem, oriunda do Processo Seletivo Especial (PSE) para quilombo-
las, em uma ação educativa de educação em saúde sobre Hipertensão Arterial Sis-
têmica, popularmente conhecida como pressão alta desenvolvida em Comunidade
denominada como Quilombola no município de Castanhal, da qual sou oriunda. De
cunho de teor qualitativo, desenvolvida e ministrada para os moradores da Comuni-
dade. A ação educativa foi realizada com o propósito de proporcionar e disseminar
conhecimento para esses, assegurando e respeitando suas particularidades e ne-
cessidades. Sendo que foi possível identificar o conhecimento prévio dos do públi-
co alvo com relação temática abordada. E nesse viés foi reforçado e enfatizado a
importância da prevenção precoce da patologia e controle da mesma. Portanto, a
ação de educação em saúde possibilitou uma troca de conhecimento dos mesmos
com a discente, destacando que a abordagem da Hipertensão arterial sistêmica é
de suma importância, pois os mesmos sendo descendentes de afrodescendentes
têm determinantes que vulnerabilizam a desenvolver a HAS.

Palavras-chaves: Quilombolas; Ação; Saúde

INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por objetivo alertar residentes de uma Comunidade
Remanescentes de Quilombolas São Pedro quanto à prevenção, controle e diag-
nóstico precoce da pressão arterial sistêmica, sendo que é notório destacar que
os habitantes da referida comunidade São desassistidos de ações educativas quan-
to à prevenção de doenças, como: Hipertensão Arterial Sistêmica (HAS), Diabetes
Mellitus, Câncer do colo do útero, Câncer de mama etc. Rodrigues & Rodrigues
(2015), ressaltam que na própria história do povo africano e, principalmente, dos
negros que foram escravizados e que deram origem ao quilombo São Pedro, na
construção de suas casas, na produção familiar no coletivo de frutas como casta-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 617


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
nha- do-pará, colheita do açaí, entre outros, para o sustento da Comunidade, na
produção agrícola da mandioca assim como aprenderam no passado, sendo que o
açaí é tanto uma fonte de renda como de alimento dessa população. Em contrapar-
tida segundo Silva, Budó, et al (2013), refere que precisamos considerar a dimen-
são cultural do processo saúde -doença-cuidado é fundamental para que se tenha
abrangência suficiente para a sua total compreensão. Isso por que existe uma intri-
gada relação entre as crenças, valores e costumes que são desenvolvidos no cotidia-
no pelas pessoas e a forma como elas se expressam nas situações de saúde e doen-
ça. É de extrema importância relatarmos que na PNS de 2013, a prevalência de HA
auto referida foi estatisticamente diferente entre sexos e etnias; segundo estudos
do corações do Brasil destacou a seguinte distribuição: 11,1% na população indíge-
na;10% na amarela; 26,3% na */mulata; 29,4% na branca e 34,8% na negra, e desse
modo justificamos a importância do nosso trabalho, para alta prevalência e o quan-
to essas comunidades Quilombolas estão suscetíveis a essa, reforçado ainda mais
a necessidade de prevenção para novos casos (PLAVINIK; MACHADO; MALTRA, et
al, 2016). É importante enfatizar que esse texto foi resultado de uma experiência
vivenciada no projeto de extensão “Rio acima, Rio abaixo; a enfermagem cuidando
da Hipertensão arterial dos ribeirinhos da Amazônia, em que se tem por objetivo a
prevenção, o controle e o diagnóstico precoce, por intermédio da assistência que
a esses é prestada. Esse projeto é desenvolvido pela Universidade Federal do Pará
e a Sociedade Bíblica Brasileira (SBB) que é o projeto Luz na Amazônia. De acordo
com a 7° Diretrizes Brasileira Hipertensão Arterial publicada em 2016, definir a HAS
como uma condição clínica multifatorial que é caracterizada pela elevação susten-
tada dos níveis pressóricos >140 e/ou 90 mmHg.
Frequentemente associado com distúrbios metabólicas, alterações funcionais
e/ou estruturais de órgãos-alvo, sendo agravadas por outros fatores de riscos, dis-
lipidemia, obesidade abdominal, intolerância à glicose e Diabetes mellitus.

OBJETIVOS
Relatar a experiência de uma acadêmica do curso de enfermagem da Universi-
dade Federal do Pará, a qual foi vivenciada durante a realização de uma educação
em saúde visando prevenção de HAS em conjunto com os radicados e ocupante de
terras de mocambo.

METODOLOGIA
Trata-se de um relato de experiência de teor qualitativo, cujo os dados coleta-
dos precedem de uma ação educativa em saúde realizada no dia 19 de maio 2019,
no XIV aniversário da Associação dos Remanescentes de Quilombolas na Comuni-
dade Quilombola São Pedro-Bacuri, Zona Rural do município de Castanhal no Esta-
do do Pará. O evento foi organizado pela Escola Municipal de Ensino fundamental

618 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Fernando Nunes Rodrigues, liderado pelo professor Fernando Feitosa Rodrigues.
Cabe ressaltar que o mesmo foi desenvolvido nas dependências do Sítio Sibemo,
em uma das áreas que fazem parte do território da Comunidade. Na construção
da mesma foram utilizados vários recursos como; cartolina, pincel, papel Cartão,
aparelho para aferir PA e isopor. Os materiais foram adaptados para facilitar na
exposição da atividade e ao final foi feito aferição de pressão arterial (PA) dos mo-
radores, com objetivo de fazer o controle da mesma. À ação educativa abordou a
seguinte temática; Hipertensão, popularmente conhecida como pressão alta, com
o objetivo de disseminar conhecimento com relação a prevenção e controle desta.

DESCRIÇÃO DE EXPERIÊNCIA
A ação realizada foi dividida em dois momentos, o primeiro momento deu-se
com a exploração do conhecimento dos indivíduos com relação a definição e/ou
conceito da pressão arterial sistêmica, aos sistemas, fatores de riscos e o tratamen-
to e prevenção dessa patologia. No segundo momento, foi desenvolvido a aferição
da pressão de cada um dos moradores, com o auxílio do aparelho de aferir a pres-
são.
A educação em saúde foi desenvolvida em meio a programação do 14°aniver-
sário da Associação da Comunidade dos Remanescentes de Quilombos São Pedro,
na qual foram realizadas várias apresentações, sendo essas, relacionadas a história
comunidade.
Com a realização da ação foi possível identificar que através dos questionamen-
tos sobre a temática, os moradores dessa comunidade com suas particularidades
e senso comuns próprios de suas vivências e culturas referiram a definição da
Hipertensão, como Pressão alta. Foram compartilhadas informações com esses,
para fortalecimento esclarecimento para o autocuidado desses com a saúde, to-
mando como referência Remor et al, 1986, a Teoria do Autocuidado de Dorothea
Orem publicada em 1971 e1980 que reforça para que aja um trabalho em conjunto
do profissional de enfermagem e a pessoa cuidada, enfatizando e facilitando na
identificação dos déficits de competência em relação à demanda de autocuidado,
fazendo assim pelo indivíduo aquilo que ele não pode fazer, ensina, orienta e o
promove o desenvolvimento das capacidades desse para que ele possa se tornar
independente da assistência de enfermagem assumido seu autocuidado. Segundo
Cardoso; Melo & Freitas, 2018 as ações de promoção, prevenção e educação na
saúde, são os pilares fundamentais para melhorias das condições de saúde. A saú-
de dos quilombolas encontra alguns fatores que dificultam seu desenvolvimento,
o baixo nível socioeconômico associado ao isolamento geográfico, em conjunto
com as baixas condições de vida e moradia estão intimamente ligados ao atraso
na melhoria da qualidade de vida desse grupo populacional (BEZERRA, MEDEIROS;
GOMES, et al, 2014).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 619


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Assim, a educação em saúde constitui uma das estratégias para propiciar conhe-
cimento aos portadores de hipertensão arterial, contribuindo de forma significati-
va para a melhoria nas condições de saúde. Dessa forma, torna-se imprescindível
que o enfermeiro conheça atitudes, crenças, percepções, pensamentos e práticas
desenvolvidas no cotidiano pelo portador de HAS para que possa incentive-lo a
uma participação ativa em seu tratamento (FLAVA; FIGUEIREDO; FRANCELI, NO-
GUEIRA &CAVALAN, 2010). Portanto, segundo o Boletim do Instituto de saúde,
2004 é necessário compreendemos que as ações de educação em saúde é um pro-
cesso de transformação social que desenvolve a consciência crítica das pessoas a
respeito de seus problemas de saúde e estimula a busca de soluções coletivas para
resolvê-los.

CONCLUSÃO
Portanto, conclui-se o quão esse processo de ação educativa em saúde surtiu
os resultados esperados e projetando quanto a conscientização para prevenção, por
meio da adoção de uma vida de hábitos alimentares, ou seja, uma vida mais saudá-
vel. Também o controle dessa como o uso regular dos medicamentos, destaca-se a
importância de realizar a aferição da PA pelo menos uma vez ao ano para o possível
diagnóstico precoce. Gostaria de ressaltar o quão essa experiência representou
para essa troca de saberes e conhecimentos entre nós.

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620 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


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AUTORIA
Elisiane Souza Rodrigues
Acadêmica de enfermagem da Universidade Federal do Pará (UFPA)
E-mail: elisianesouza1717@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/5844914301704899

Camila Sousa da Silva2


Acadêmica de enfermagem da Universidade Federal do Pará (UFPA)
E-mail: kamilaenfertec33@yahoo.com.br
Lattes: http:/lattes.cnpq.br/6648012077364288

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 621


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
JUVENTUDE NEGRA NO INTERIOR DA BAHIA:
REEXISTÊNCIAS AO SUICÍDIO
Rosilda Maria de Queiroz da Cruz Nunes

INTRODUÇÃO
Este artigo apoia-se na pesquisa Juventude negra; estratégia reexistência ao
suicídio no Colégio Estadual Polivalente de São Sebastião do Passé no interior da
Bahia. A base teórica está atrelada nos conceitos de racismo, suicídio e reexistên-
cia, esses conceitos estão sustentados no campo das Ciências Humanas e da Crítica
Cultural com o recorte para o campo das relações étnico-raciais. Nesse sentindo,
trazemos algumas indagações importantes para ampliar as reflexões sobre o tema,
tais como: será que as elevadas taxas de suicídio dos jovens negros no Brasil po-
dem estar embrincadas nas consequências da violência racista? Quais os percalços
enfrentados pelos jovens negros? O que os levou à mudança de postura? E quais
passos à direção do se fazer viver em um contexto social marcado pela necropolí-
tica?
O suicídio “é um fenômeno social presente ao longo da história da humanidade
associado a uma série de fatores psicológicos, culturais, morais, socioambientais,
econômicos, entre outros fatores” (MS, 2018, p. 6). A taxa de suicídio da juventude
negra aumentou, consideravelmente, no Brasil nos últimos anos, segundo dados do
MS (2018). Diante dessa realidade, verifica-se a urgência de repensar essa proble-
mática frente as ramificações e implicações do racismo diante do aumento da taxa
de suicídio da juventude negra.
A violência racista reverbera para a geração de problemas na estrutura psíqui-
ca, comportamental, psicossocial e na saúde mental e emocional do indivíduo, ou
seja, essa violência torna-se um motor ativo de adoecimentos estruturais ao longo
do processo de vida da pessoa marginalizada. Diante dessa problemática, este es-
tudo se debruça sobre a investigação da temática racismo e suicídio por caminhos
cercados de desafios relacionados a história perversa de exploração, dominação e
escravização da população negra efetivadas pelo poder eurocêntrico ao longo da
história.
Segundo Moore (2007) a violência racista promove consequências catastrófica
em todas as fases de vida dos sujeitos que vivem à margem da sociedade. Discu-
tir criticamente acerca dessas consequências é depara-se com as desigualdades
socioeconômicas, políticas e culturais produtoras de relações sociais precárias e
vulneráveis. As experiências traumáticas que os jovens negros
vivenciam em suas relações de vida sociais corroboram para o aumento de pro-
blema como a depressão, estresse, solidão, medo, insegurança, sentimento de in-
ferioridade e essas provocam cicatrizes da tristeza. Nesse sentido, esses sintomas

622 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
desencadeiam elementos de segregação e rarefação profunda na área educacio-
nal, profissional, amorosa, afetiva e relacional, que fomenta nos jovens um mundo
interior repleto de conflitos, anseios degenerativos no comportamento, no olhar,
na forma de sonhar, pensar, na linguagem e desejos.
Para Almeida (2018, p. 22) “o racismo é uma forma sistemática de discrimi-
nação que tem a raça como fundamento, que se manifesta por meio de práticas
conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para
indivíduos, a depender do grupo racial ao qual pertençam”. Delinear as consequ-
ências dos resultados das práticas conscientes e inconscientes da violência do ra-
cismo configura discutir sobre as dificuldades que essa violência aciona na esfera
da desigualdade racial, no que tange o campo socioeconômico, político, cultural,
na saúde mental e emocional do indivíduo.
Nesse sentido, esse artigo tem por objetivo refletir sobre as estratégias de ree-
xistências ao suicídio por parte de alguns estudantes negros de uma escola pública
em São Sebastião do Passé no interior da Bahia. Para dar sustentação a esta pes-
quisa nos enveredamos na metodologia qualitativa com análise do discurso através
da escuta de dois jovens negros, além da observação das relações sociais e afetivas
desses jovens no espaço escolar. Ouvir e observar as experiências, narrativas e vi-
vências desse grupo do Colégio Estadual Polivalente com a finalidade de melhor se
aproximar e refletir da questão do racismo, suicídio, mas também suas implicações.
Para tanto, este estudo segue os seguintes objetivos específicos: (I) refletir sobre o
cotidiano de vida dos Jovens negros diante da problemática da violência de morte
relacionada ao campo do racismo e suicídio, (II) Apontar as práticas de reexistên-
cias dos jovens negros na escola citada.

JOVENS NEGROS:
A LUTA COTIDIANA CONTRA A VIOLÊNCIA DE MORTE
A vida cotidiana da juventude negra no Brasil é cercada de constate enfreta-
mento contra todo o tipo de violência de morte física e simbólica, que o cerca em
seu mundo individual e coletivo. Segundo dados do IPEA (2016), a maior taxa de
homicídio e de suicídio no Brasil se encontra na população dos jovens negros. Se-
gundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS, 2016), no Brasil há um sui-
cídio a cada 45 minutos, em 2016 foram registrados 11,433 casos. De acordo com
o Ministério da Saúde, o número de suicídio de jovens negros aumentou em 12%
entre o período de 2012 e 2016. Refletir sobre essa taxa de violência é perpassar
pelo problema do racismo e seus efeitos perversos, produtores de desigualdade
racial1 no processo de construção de vida desses indivíduos, uma vez que os jovens
negros são mortos e assassinados friamente pela própria estrutura opressora do
Estado colonizador.

1 Para Almeida (2018, p. 23) A discriminação racial, por sua vez, é a atribuição de tratamento
diferenciado a membros de grupos racialmente identificados.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 623


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
De acordo com os estudos de Mbembe (2016, p. 123) “exercitar a soberania é
exercer controle sobre a mortalidade e definir a vida como a implantação e mani-
festação de poder”. A discussão de Achille Mbembe perpassa por discutir de for-
ma crítica sobre o modelo político de dominação estruturado em uma soberania
que dita quem pode morrer e quem deve viver: necropolítica do biopoder2. Desse
modo, o autor apresenta “as formas contemporâneas que subjugam a vida ao po-
der da morte (necropolítica) reconfiguram profundamente as relações entre resis-
tência, sacrifício e terror”. (MBEMBE, 2016, P. 146).
É nesse contexto de violência e de morte em que a “guerra sangrenta” aconte-
ce de forma silenciosa, sutil e perversa. E assim os grupos marginalizados sofrem
as consequências desse modelo de biopolítica catastrófica, a morte como “trans-
gressão”, (MBEMBE, 2016). O autor ressalta que a sua “preocupação é com aque-
las formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas “a
instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de
corpos humanos e populações”. (Mbembe (2016, p. 123).
A cartinha de “Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros no Brasil-
(MS)”, assinala que jovens negros entre 10 e 19 anos são as principais vítimas de
suicídio no país MS (2018). Segundo o Ministério da Saúde (p. 6, 2018) O “suicídio
é um fenômeno social presente ao longo da história da humanidade associado a
uma série de fatores psicológicos, culturais, morais, socioambientais, econômicos,
entre outros fatores”. Para Botega (2015, p. 431) “suicídio é tão abrangente[...] e
possibilita conceber o comportamento suicida ao longo de um continuum: com
base em pensamentos de autodestruição, passando por ameaças gestos, tentati-
vas de suicídio e finalmente o suicídio”. De acordo ainda com Botega (2014 p. 232),
“os transtornos mentais mais comumente associados ao suicídio são: depressão,
transtorno do humor bipolar e dependência de álcool e de outras drogas psicoati-
vas”.
Essas informações supracitadas assinalam a urgência de diálogos e debates aca-
dêmicos científicos, nos meios de comunicação e nas escolas, a respeito dos efeitos
do racismo. De acordo com Almeida (2018, p. 25) “racismo é uma forma sistemá-
tica de discriminação que tem a raça3 como fundamento, e que se manifesta por
meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou
privilégios, a depender ao grupo racial ao qual pertençam”.
Desse modo, a pessoa racista se inseri no perfil de grupo em que o seu olhar,
ideias, imagens e pensamentos definem a existência de determinados grupos hu-
manos em raças inferiores e superiores (FANON 1980, MOORE 2007, SOUZA 1986).
Para Moore (2007), o desdobramento da violência racista se apresenta no cenário

2 Michel Foucault (2015) entende por biopoder: aquele domínio da vida sobre o qual o poder
tomou o controle.
3 O autor assinala que raça “é uma relação social, significa dizer que a raça se manifesta em
atos concretos ocorridos no interior de uma estrutural social marcada por conflitos antagônicos” (Al-
meida. 2018, p. 40).

624 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
histórico e cultural de maneira camuflada e latente, através do comportamento e
da linguagem das pessoas. Nessa perspectiva, o racismo é um comportamento que
se configura no imaginário social através do ódio, frente ao indivíduo que apresen-
ta características fenótipos como cor da pele, cabelo e outros sinais, Moore (2007).
Os sofrimentos cotidianos que os subalternos, em especial os jovens negros,
sofrem são silenciados, negligenciados e sufocados pelo descaso do Estado, isso
porque esse não promove com precisão ações de prevenção contra a violência
de morte que gera o genocídio dos jovens negros. Essa violência reverbera como
uma máquina de “Guerra” no que tange o aumento das desigualdades socioeco-
nômicas, políticas, culturais e na área de saúde. É sabido que o racismo estrutural,
institucional e pessoal são geradores de vários tipos de desigualdades na sociedade
(ALMEIDA 2019). A desigualdade sócio racial é uma delas, essa atravessa os grupos
subordinados e promove fissuras e vulnerabilidade em seus pilares biopsicossocial.
Os efeitos e desdobramentos dessas desigualdades atingem diretamente a saú-
de mental, emocional, psíquica e psicológica do sujeito. Essas consequências são
geradoras de adoecimentos que fomentam à tentativa ou ao ato suicida. Logo, há
urgência do ambiente escolar desenvolver

diálogos, debates, trabalhos artísticos e produções de projetos multidisciplinar


a respeito da temática do racismo e suicídio, para assim identificar as principais es-
tratégias de reexistência desses jovens na arte do se fazer viver.

AS PRÁTICAS DE REEXISTÊNCIAS
DOS JOVENS NEGROS NA ESCOLA

Falar em estratégias de reexistência do fenômeno suicídio dos jovens negros no


ambiente escolar realmente é algo complexo e desafiador. Ter contanto tão próxi-
mo e profundo com a dor, sofrimento e angústia do outro é experenciar de perto
as implicações desse mundo de dor, sofrimento psíquico e emocional vividos por
essas pessoas, que lutam para não serem vencidas cotidianamente pelo processo
de morte silenciosa da depressão, dos traumas psicológicos, das perdas afetivas e
outros problemas socioeconômicos, culturais. As “almas” gritam pedido socorro
no cenário da escola, o silêncio quer ser ouvido por aqueles que estão próximos.
Olhem para mim!!!! Estou no canto da sala, não gosto de falar, não sou visto(a) e
notado(a), meu silêncio e comportamento retrucado quer falar para você que estou
precisando de ajuda.
É dessa forma que nesta pesquisa busco dialogar sobre a conexão entre suicí-
dio e racismo, na construção do processo de violência de morte alimentada pela
política de poder. Refletir sobre as estratégias de reexistência dos jovens negros
no espaço escolar configura trazer para discussão neste estudo a dimensão dos
letramentos de reexistência no âmbito da visão de Ana Lúcia ao dizer que “os estu-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 625


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
dos de Letramentos são apresentados como sendo múltiplos, críticos pois engloba
usos tão variados quantas são as finalidades dessas práticas”, (Souza, 2011, p. 35).
Dessa forma, Letramentos de reexistência é entendido na lógica do “ganhar forças
ao apreender, entender as práticas cotidianas de uso da linguagem que provocam
releituras de identidade éticas” (Souza, 2018, p. 2).
Nessa conjuntura, trazemos a proposta de investigar e dialogar com as temáticas
do racismo e do suicídio numa perspectiva de conhecer as estratégias de reexistên-
cia vividas no cotidiano desses jovens do colégio Estadual Polivalente. Ana Lúcia
aponta que os Letramentos de reexistência:

“mostram-se singulares pois, ao capturar a complexidade so-


cial e histórica que envolve as práticas cotidianas de uso da lin-
guagem, contribuem para a desestabilização do que pode ser
considerado como discurso já cristalizados em que as práticas
validadas sociais de uso da língua são apenas as ensinadas e
aprendidas na escola formal”, (SOUZA, 2009. p. 32).

A escola é definida como lugar gerador, socializador e reprodutor de conheci-


mentos, espaço significativo na formação social do ser humano. Essa possui um
papel imprescindível no desenvolvimento de representações positivas sobre o ne-
gro e demais grupos subordinados, que vivem uma história de racismo seguido de
exclusão e humilhação. Neste estudo, o campo de observação e análise da relação
social dos jovens do Colégio Estadual Polivalente é observado no contexto amplo,
ou seja, a sala de aula e a sua dinâmica relacional com toda a comunidade escolar.
Observar o cotidiano dos jovens negros desse colégio é olhar o processo de fomen-
tação e valorização da cultura popular, através das ações atitudes de enfretamento
desses jovens. A partir dessa realidade, as ações dos discentes negros nesse espaço
tornam-se favorável à construção de estratégias de reexistência e reparação, dian-
te das expressões de racismo que se deslocam na linguagem e comportamento da
pessoa, e promovem manifestações de desigualdade, preconceito e discriminação
racial produzida pela cultura hegemônica, essas afetam e desencadeiam formas de
adoecimentos.
A criatividade e as ações de superação construídas de saberes reformulados e
demarcados em forma de luta e enfrentamento, frente as estruturas impostas pe-
los colonizadores são caminhos construídos com reexistência. O combate contra o
racismo adentra a escola como um organismo vivo, como forma de reparar a segre-
gação e separação das diferenças. Os jovens negros do colégio Estadual Polivalente
se protagonizam através do modo de produção cultural local. Logo, vê-se a impor-
tância de desenvolver trabalhos na escola que culminem com a lei 10.639/03, rela-
cionados às ações afirmativas que vêm sendo aplicadas no cenário escolar, já que
estas são mecanismos que possibilitam as discussões e diálogos positivos para gerar
ações de enfrentamento frente ao racismo, à discriminação racial e ao preconcei-
to presente nas relações no contexto escolar. A referida lei pode ser considerada

626 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
como uma medida de ação afirmativa, que pode ser realizada por meio de cotas,
projetos, leis e planos de ação (GOMES, 2001).
A aplicabilidade da lei 10.639/03 na prática pedagógica corrobora para promo-
ção, discussões, estudos, reflexões e propagação de atividades teóricas e práticas
dentro de um eixo no processo de descolonização de pensamentos, comportamen-
tos e linguagens. Se utilizar da exposição de trabalhos, projetos, debates, palestras,
feiras culturais dentre outras inúmeras atividades que permitem tratar sobre as
temáticas do racismo e suicídio de forma que contribuam para o reconhecimento
positivo a respeito da história do individual e coletiva da pessoa numa perspectiva
de reexistência. Já que a escola, na contemporaneidade, tem o papel de contribuir
com mecanismos metodológicos, pedagógicas, artísticos e orais que possibilitem
diálogos sobre as estratégias de reexistência entre toda a comunidade escolar.

DISCUTINDO ALGUNS RESULTADOS


Esta pesquisa ainda se encontra em andamento, sendo apoiada ao meu projeto
de Mestrado em Crítica Cultural. As análises dos acervos teóricos utilizados nes-
sa pesquisa apontaram que a temática suicídio da juventude negra no Brasil, em
especial na Bahia, ainda é pouco explorado no campo científico e nos meios de
comunicação. Por outro lado, os casos e as tentativas de suicídio entre alunos e
alunas negras estudantes de escola pública no interior da Bahia vem aumentando
(IBGE, 2016). Portanto, as estratégias de reexistência desses jovens reverberam em
suas narrativas de vida como arma de luta e combate diante dos efeitos violentos
do racismo e do suicídio.
Reexistir para se deslocar e sair desse lugar menor, em que o sistema de poder
capitalista busca esconder as potencialidades e criatividade desses jovens. A escola
torna-se um lugar de encontros de diferenças e assim, meio pelo qual os alunos e
alunas negras buscam re/criar condições para discutir e se empoderar dessas di-
ferenças de maneira positiva no cenário social, político e cultural. Os movimentos
sociais, manifestações culturais, debates sobre diversidade cultural, o desenvol-
vimento de projetos multidisciplinares na área cultural construídos junto com a
comunidade escolar são alguns caminhos de reexitência no espaço escolar contra
a violência de morte.
Os percalços enfrentados pelos jovens negros diante da violência racistas no
Brasil são percebidos nos cenários onde se concentram os grupos vulneráveis
como, por exemplo, a grande concentração de pessoas negras morando nas ruas,
população negra nas prisões do país, a taxa de analfabetismo, de desemprega-
dos, de adolescentes grávidas, entre outros. Todos esses fatores alimentam adoe-
cimentos mentais, psíquicos e emocionais nos jovens negros. Mas no contexto atual
os jovens marginalizados vêm utilizando a própria margem da sociedade para res-
significar e fortalecer as suas lutas e combates de reexistências no espaço escolar,

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 627


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
nos movimentos de política por direitos, na ampliação de políticas públicas e luta
antirracista como meio de enfrentamento a violência de morte.
Nessa perspectiva, o Colégio Polivalente apresenta uma dinâmica ativa em pro-
jetos culturais. Esse tipo de trabalho ajuda no desenvolvimento da autoestima dos
alunos, como também em suas estruturas psicossocial e emocional. O projeto de-
senvolvido dos cabelos crespos que culmina com a passeata dos cabelos crespos,
pelas ruas do município de São Sebastião do Passé-Bahia, é um exemplo de luta e
combate frente ao racismo. As alunas fazem visitas a todos os colégios e escolas
da cidade, com a finalidade de convidar os alunos a participarem do movimen-
to político e cultural. Assim, essa passeata é seguida por desfiles, construções de
cartazes críticos, debates nas ruas da cidade realizadas no mês de novembro. Hall
(2003, p.263) relata que “a cultura popular é um dos locais onde a luta a favor ou
contra a cultura dos poderosos é engajada; é também o prêmio a ser conquistado
ou perdido nessa luta”.
Em seu cotidiano escolar esses meninos e meninas negras são atravessados por
tantos problemas e desafios, de ordem diversas, que os mesmos buscam repensar
mecanismo de luta através de novas formações discursivas. Nesse contexto Hall
expõe que “Naturalmente, a luta cultural assume diversas formas: incorporação,
distorção, resistência, negociação, recuperação”. (HALL, 2003. p. 259). O projeto
interdisciplinar desenvolvido na escola, possibilita ao grupo, através das narrati-
vas, expor suas vivencias culturais, suas histórias de vida, as marcas da violência
simbólica, e, assim a literatura menor torna o lugar de expressão de manifestos.
Os discentes escrevem narrativas sobre temas diversos através de literaturas de
cordéis, peças teatrais e outras formas de trabalhos que culminam como alimento
na saúde mental desse grupo.
Assim, essas atividades envolvem a atmosfera desses jovens de maneira criativa
e positiva, a ponto de promover maior visibilidade e construção da autoestima e
autoconhecimento de si. Reexistir para se deslocar e sair desse lugar menor, em
que o sistema capitalista busca esconder as potencialidades dessas garotas. A es-
cola torna-se um lugar de encontros de diferenças, e assim os alunos e alunas bus-
cam re/criar condições para discutir e se empoderar dessas diferenças de maneira
positiva no cenário social, político e cultural.

CONCLUSÕES
Os embates, enfrentamentos e desafios, ampliam o campo científico sobre a te-
mática do racismo e suicídio, possibilitando que outros jovens negros e nós, educa-
dores/as, familiares e aliados/s à causa da saúde pública, em especial, re/criemos
dispositivos plausíveis à luta pela vida, (reexistir ao suicídio), sobretudo de quem
sofre o impacto do racismo institucional, estrutural e pessoal, a reverberar nas re-
lações sociais, políticas e culturais no cenário escolar e na sociedade.

628 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Assim, nessa configuração o ambiente escolar vem sendo um lugar estratégico
para fomentar nesses meninos e meninas negras a buscarem desconstruir a ima-
gem fabricada, remodelada e implantada no meio social pelos grupos hegemônicos.
Essa imagem atinge a estrutura biopsicossocial e contribui para o aumento da taxa
de suicídio desse grupo marginalizado. A violência de morte sustentada pelo Esta-
do opressor é um verdadeiro genocídio presente ao longo da história de vida da
população negra. Ademais, a relevância da dinâmica dos trabalhos desenvolvidos
no espaço escolar promove competências e potencialidades à formação discursiva
e crítica dos jovens negros.

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AUTORIA
Rosilda Maria de Queiroz da Cruz Nunes
Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural (UNEB/Pós-Crítica)
E-mail: rosegeo29@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2420161874856606

630 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
POVOS E COMUNIDADES TRADICIONAIS E A
COVID-19: REFLEXÕES SOBRE RACISMO E SAÚDE
PÚBLICA
Rosana da Silva Pereira
Luciene Vieira Pereira
José R. de J. Santos

INTRODUÇÃO
O racismo estrutural no Brasil consolida as relações nos diversos setores da vida
social, como uma prática sistemática de discriminação que se manifesta em práti-
cas conscientes e inconscientes, as quais permeiam as relações políticas, econômi-
cas, jurídicas e até familiares (ALMEIDA, 2019).
A Organização Mundial de Saúde (OMS) concebe o racismo como um elemento
determinante para os processos de adoecimento e morte populacional. Por isso o
Grupo de Trabalho (GT) Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coleti-
va (ABRASCO) possui como um dos objetivos a inserção de debates que incluam o
racismo e seu enfretamento na saúde (SANTOS et al, 2020, p. 225-226).
Historicamente os movimentos negros reivindicam melhores condições de
acesso ao sistema de saúda pela população negra, participando de expressões po-
pulares que geraram a reforma sanitária e a criação do Sistema único de Saúde
(WERNECK, 2016, p. 536). Como bem destaca Werneck (2016) o racismo tem uma
funcionalidade determinante nas condições da vida e da saúde, a qual é importan-
te o reconhecimento do seu impacto nos distintos grupos sociais (p. 543).
Diante de artigos e reportagens sobre a relação entre a COVID-19 e a população
negra, povos e comunidades tradicionais, o racismo se intensifica no avanço da
doença no país. O contexto das desigualdades sociais e raciais no Brasil, durante
a Pandemia impactam ainda mais na existência destes grupos na estrutura social.
Neste sentido, apresentamos o Estado do Conhecimento sobre os impactos da Co-
vid-19 nos Povos e Comunidades Tradicionais.

APORTE TEÓRICO
A pandemia do Covid-19, causada pelo vírus SARS-CoV-2, vem impactando em
escala global nos aspectos sociais, políticos, culturais , históricos e econômicos. Sa-
bemos que as enfermidades são fenômenos sociais presentes na história da huma-
nidade não democráticos, e enquanto um fato biológico e social, tornou-se campo
de pesquisa desafiador nas áreas das ciências biológicas e humanidades, sobretu-
do na sua incidência vinculam-se com classe, gênero, raça e geração.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 631


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Segundo o Boletim Epidemiológico realizado pelo Ministério da Saúde, até o
dia 4 de outubro de 2020, mesmo que a raça branca seja mais atingida pelos casos
de SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) com 268.906; casos, seguindo de
253.234 de pardos, 37.120 de preto, 7.753 amarelos e 2.285 indígenas. Havendo
59.712 de casos que não possuem a informação sobre raça/ cor registrada. Entre-
tanto os casos de SRAG por COVID-19 é mais incidente entre os brancos, corres-
pondendo à 138.409, em seguida de 136.066 pardos, 19.434 pretos, 4.343 ama-
relos e 1.418 indígenas. Sendo importante acentuar que mediante a análise dos
boletins epidemiológicos não há indicação dos casos de covid-19 em territórios
tradicionais.

TABELA 1: SÍNDROME RESPIRATÓRIA AGUDA GRAVE (SRAG) HOSPITALIZADOS


SEGUNDO CLASSIFICAÇÃO FINAL E RAÇA. BRASIL, 2020

Fonte: Boletim Epidemiológico realizado pelo Ministério da Saúde até 28 de setembro de 2020

GRÁFICO 1: SÍNDROME RESPIRATÓRIA AGUDA GRAVE (SRAG) HOSPITALIZADOS


SEGUNDO CLASSIFICAÇÃO FINAL E RAÇA. BRASIL, 2020

Fonte: Boletim Epidemiológico realizado pelo Ministério da Saúde até 28 de setembro de 2020
GRÁFICO 2: ÓBITOS POR SÍNDROME RESPIRATÓRIA AGUDA GRAVE (SRAG) POR
COVID-19 SEGUNDO CLASSIFICAÇÃO FINAL E RAÇA. BRASIL, 2020

Fonte: Boletim Epidemiológico realizado pelo Ministério da Saúde até 28 de setembro de 2020

Somados pardos e pretos possuem são a maioria dos casos da Síndrome Res-
piratória Aguda Grave (SRAG) correspondendo à 155.500. A raça/cor que possui a
maior frequência de óbitos é a parda (71.341; 36%), branca (67.368; 34,0%), preta
(10.884; 5,5%), amarela (2.289; 1,1%) e indígena (683; 0,3%). É preciso destacar
que de acordo com o Boletim Epidemiológico realizado pelo Ministério da Saúde,
8,5% dos óbitos registrados (16.912) não possuem o registro da raça/cor. Como
demonstra no Gráfico 2, os pardos continuam sendo os mais acometidos pelo óbi-
to de SRAG por Covid-19, correspondendo à 51.042; 36,8%, seguidos dos brancos
45.233; 32,6%),
pretos (7.617; 5,5%), amarelos (1.597; 1,1%) e indígenas (563; 0,4%).
É importante salientar, como destaca Santos et al (2020) os estudos e levanta-
mentos sobre a Covid-19 apresentam a falta de dados por raça/cor, além dos pri-
meiros boletins epidemiológicos sobre a Covid-19 não incluírem esses dados. Esse
“não dado” pode ser encarado como uma estratégia vinculada à necropolítica1 ao
inviabilizarem a discussão dos primeiros casos que afetaram a população negra e a
comparação com a crescente incidência de casos. A construção do conhecimento
sobre esta temática portanto, torna-se mais desafiante, elucidando o racismo es-
trutural do país.

1 Como discute Santos et al (2020, p. 4212) o termo necropolítica diz respeito as estratégias
que regulamentam as divisões sociais, impactando no controle da vida de determinados grupos sociais.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 633


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
PROBLEMA DE PESQUISA
A partir da perspectiva hipotética que a população negra de povos e comunida-
des tradicionais estão sendo impactos com o racismo estrutural também na Pande-
mia. Lançamos mão da seguinte pergunta: Qual o estado do conhecimento sobre
os impactos da Covid-19 nos povos e comunidades tradicionais?
O objetivo geral da pesquisa é a análise de dados sobre os impactos da CO-
VID-19 nos povos e comunidades tradicionais. Objetivos Específicos: Verificar as
possíveis estratégias de enfrentamento; Investigar as ações especificas do Estado
para a proteção dos PCTS.

METODOLOGIA
Como um estado do conhecimento, o presente trabalho realizou o recorte tem-
poral de julho à outubro de 2020. A metodologia atribuída corresponde à identifi-
cação nas Plataformas SCIELO e CAPES, sites e páginas da internet de reportagens,
artigos e trabalhos sobre a temática. Os descritores utilizados foram: Povos e co-
munidades tradicionais e Covid-19; Comunidades Quilombolas e enfrentamento
da Pandemia; Povos e Comunidades de Terreiro e Pandemia; Comunidades Tradi-
cionais de Matriz Africana e o enfrentamento da Covid-19. Os dados foram cata-
logados a partir dos descritores utilizados num planilha denominada “Estado do
Conhecimento sobre impactos da COVID-19 nos PCTS”.

RESULTADOS E ANÁLISE
Dentro dos descritores utilizados catalogamos a temática central das produ-
ções, o Gráfico a seguir corresponde ao quantitativo da coleta:

GRÁFICO 3: TEMÁTICAS CENTRAIS DA COLETA

Fonte: Os autores, 2020


Analisamos que 80% dos trabalhos se tratam de reportagens e matérias de
revistas e sites na internet, nas quais 90% trata-se de informações vinculadas à
comunidades quilombolas. Sendo assim, em Pernambuco, como apresenta “Qui-
lombolas temem impacto do coronavírus e sofrem com descaso2”, os 195 territó-
rios reconhecidos pela Fundação Palmares, afirmam que naquele período não há
auxilio do Estado para o enfrentamento da doença, salienta que as comunidades
quilombolas, grande parte em territórios rurais, já tinham dificuldades no acesso
de políticas de saúde e demais políticas públicas, com a pandemia este cenário se
intensificou. Como forma de enfrentamento, as lideranças pernambucanas, reali-
zam um trabalho de articulação coletiva de repasse informacional sobre a doença
e higienização, acesso á internet e cestas básicas.
De acordo com o Governo do Estado da Bahia em “Campanha orienta povos e
comunidades tradicionais para combate ao coronavírus3”, a Secretária de Promo-
ção da Igualdade Racial (Sepromi) integrando o conjunto de medidas de combate
à pandemia, lançou uma campanha de orientações de enfrentamento da Covid-19
para os povos e comunidades tradicionais. Segundo as informações, a campanha
possui orientações técnicas e diretrizes da Organização Mundial da Saúde (OMS).
De acordo com os dados do monitoramento desenvolvido pela Coordenação
Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) até
24 de setembro, 4.590 casos confirmados, 1.219 casos monitorados, 166 óbi-
tos e 03 óbitos sem confirmação de diagnóstico nos estados da Bahia, Minas
Gerais e Pará. Como uma ação para o enfrentamento o CONAQ juntamen-
te com o Instituto Ibirapitanga lançou o projeto “Quilombolas: resistindo e
existindo em tempos de COVID-194”, que tem como objetivo o incentivo de
produções artísticas como o tema central “ Como você vê o seu quilombo
durante a pandemia”?
No caso dos terreiros de candomblé, destacamos “Campanha da Abebé Cosmé-
ticos busca distribuir 5 mil sabonetes e formar rede de terreiros para combate à
Covid-195” que com o objetivo de combate da Covid-19 nas comunidades tradicio-
nais de terreiro, a marca de cosméticos Abebé promoveu a campanha “Terreiros
contra a Covid” na plataforma Benfeitoria, como objetivo a arrecadação de verba
para a produção de sabonetes e a capacitação de mulheres de terreiro. A ideia
central é de além de ajudar na higienização, auxiliar na renda das comunidades.
Os dados preliminares da pesquisa demonstram que mesmo que o conhecimen-
to cientifico sobre a Covid-19 ainda está sendo construído, visto as estratégias de

2 Disponível: https://marcozero.org/quilombolas-temem-impacto-do-coronavirus-e-sofrem-
-com-descaso/ . Acesso em: 01/10/20.
3 Disponível: http://www.saeb.ba.gov.br/2020/05/10086/Campanha-orienta-povos-e-comu-
nidades-tradicionais- para-combate-ao-coronavirus.html. Acesso em: 01/10/20.
4 Disponível:http://conaq.org.br/noticias/conaq-lanca-em-primeira-mao-o-projeto-quilombo-
las-resistindo-e-existindo-em-tempos-de-covid-19/. Acesso em: 01/10/20.
5 Disponível: https://coronavirus.atarde.com.br/campanha-da-abebe-cosmeticos-busca-dis-
tribuir-5-mil-sabonetes-e- formar-rede-de-terreiros-para-combate-a-covid-19/. Acesso em 01/10/20.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 635


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
conhecimento e combate da doença no mundo, os principais desafios do Brasil re-
laciona-se com as desigualdades sociais (WERNECK; CARVALHO, 2020). Os povos e
comunidades tradicionais neste sentido, constroem estratégias de enfrentamento
independentes das ações de prevenção e proteção do Estado, e por isso a emer-
gência de reconhecimento da existência e resistência desses povos e comunidades
em suas lutas ancestrais pelo direito à vida.

TECENDO CONSIDERAÇÕES FINAIS


O racismo na saúde pública e a Pandemia do Coronavírus tornou-se um desafio
mundial, sobretudo para os países em desenvolvimento e com intensas expressões
de desigualdades sociais, no caso brasileiro, como um país estruturado no racismo,
a população negra enquanto expressão do mercado informal estão mais vulnerá-
veis ao vírus (GOES; RAMOS; FERREIRA, 2020).
Como parte da história, a luta cotidiana destes povos e comunidades agregam
ao que representa os povos e comunidades tradicionais no brasil: A resistência ao
defender os direitos, os saberes e fazeres étnico-culturais. Compreendendo portan-
to, durante o processo de catalogação dos dados, elencamos as seguintes palavras
recorrentes nas produção: enfrentamento, resistência, existência e invisibilização.
Neste sentido, o aquilombar-se torna-se a principal medida de enfrentamento da
Covid-19, compreendendo as desigualdades sociais e raciais, intensificadas pela
negligência do Estado Brasileiro, e a não efetividade das medidas de combate nes-
tes territórios, o aquilombamento como demonstrado na coleta de dados torna-se
o caminho e a razão histórica de resistência.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Editora Letramento,
2019.

BRASIL. Ministério da Saúde (MS). Indicadores de vigilância em saúde descritos segundo a


variável raça/cor, Brasil. Boletim Epidemiológico 2020, Disponível em: http://portalarqui-
vos2.saude.gov.br/images/pdf/2020/October/01/Boletim-epidemiologico-COVID-33-fi-
nal.pdf. Acesso em: 24. set.2020.

GOES, Emanuelle F.; RAMOS, Dandara O.; FERREIRA, Andrea J. F. Desigualdades raciais
em saúde e a pandemia da Covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, Rio de Janeiro, v. 18,
n. 3, 2020.

SANTOS, Hebert Luan Pereira Campos dos et al. Necropolítica e reflexões acerca da popula-
ção negra no contexto da pandemia da COVID-19 no Brasil: uma revisão bibliográfica. Ciênc.
saúde coletiva, Rio de Janeiro, v. 25, n. 2, p. 4211-4224, out. 2020. Disponível em: ht-

636 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
tps://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S141381232020006804211&ln-
g=en& nrm=iso&tlng=pt. Acesso em 08.10.20.

SANTOS, MÁRCIA PEREIRA ALVES DOS et al . População negra e Covid-19: reflexões sobre
racismo e saúde. Estudos avaliativos., São Paulo , v. 34, n. 99, p. 225-244, ago. 2020. Dispo-
nível em:http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103401420200002
00225&lng=en&nrm=isso. Acesso em: 08.10.20.

WERNECK; Guilherme Loureiro; CARVALHO, Marília Sá. A pandemia de COVID-19 no Bra-


sil: crônica de uma crise sanitária anunciada. Cadernos Saúde Pública, Rio de Janeiro,
v.36, n. 36, p. 2-4, mai. 2020. Disponível em: http://cadernos.ensp.fiocruz.br/static/arqui-
vo/1678-4464-csp-36- 05-e00068820.pdf . Acesso em 08.10.20.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 637


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A SAÚDE DA MULHER NEGRA: PRÁTICAS DE
EDUCAÇÃO EM SAÚDE E RACISMO SAÚDE DA
POPULAÇÃO NEGRA E AÇÕES INTERSETORIAIS
VISANDO À INTEGRALIDADE
Maiana Eloí Ribeiro dos Santos
Eliete Cristina de Souza
Ana Lúcia Nunes de Sousa

INTRODUÇÃO
O conceito de saúde da Organização Mundial de Saúde (OMS), divulgado na
carta de princípios de 1948, define saúde não apenas como ausência de doença,
mas como a conjunção de perfeito bem-estar físico, mental e social. Para Werneck
(2006), a definição de saúde inclui a busca de harmonia com a vida e seus elemen-
tos, seres vivos e mortos, humanos, animais, plantas, minerais. Observamos, na
definição da OMS, que o conceito de saúde compreende também aspectos econô-
micos e culturais da sociedade, pois ‘o estado de completo bem-estar’ só é plausível
quando o indivíduo vive em condições dignas e quando o seu estado de saúde não
é afetado por problemas externos ao seu corpo como o racismo (SOUZA e GOMES,
2015).
No tangente à população negra, o acesso à saúde adquire outros obstáculos :o
racismo e sexismo a. Consequentemente, a mulher negra é particularmente afeta-
da (DAVIS 2016). O racismo e o sexismo se reproduzem de maneiras diferentes na
sociedade, ocasionando restrições singulares dos direitos das populações acome-
tidas, e, no caso das mulheres negras, resultam num duplo preconceito (SANTOS,
2009). Segundo estudos do IPEA (2013), as mulheres negras sofrem maior discrimi-
nação no mercado de trabalho, recebem o menor salário e estão no topo da linha
de desemprego no Brasil. Entre as trabalhadoras da área da saúde esta situação se
repete. As mulheres negras são a maioria das trabalhadoras com menor qualifica-
ção e, portanto, menores salários. Tais fatores levam Davis (2011) a afirmar que
a mulher negra é invisível em nossa sociedade, mesmo sendo considerada, por
muitos, a mãe da cultura brasileira.
Neste sentido, a construção da Política Nacional de Saúde Integral da População
Negra (PNSIPN) é um marco importante na construção de uma política realmente
igualitária, visando a saúde do povo negro e, consequentemente, da mulher negra.
A PNSIPN preconiza que o racismo, as desigualdades étnico-raciais e o racismo insti-
tucional são determinantes sociais das condições de saúde. A PNSIPN também tem
como diretriz geral a inclusão dos temas Racismo e Saúde da População Negra nos
processos de formação e educação permanente dos trabalhadores da saúde e no
exercício do controle social na saúde.

638 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Assim, a compreensão dos processos de educação em saúde vinculados às
questões étnico-raciais reveste-se de fundamental importância. Propomo-nos, en-
tão, a analisar práticas educativas abordadas nos estudos relacionados à saúde da
mulher negra, no âmbito da educação em saúde, voltadas ao enfrentamento do
racismo. As indagações que orientam este trabalho são: quais práticas educativas
voltadas ao enfrentamento do racismo se apresentam nos estudos relacionados à
saúde da mulher negra? De que forma a temática se localiza na produção científica
do campo de educação em saúde? Existem estudos relacionados ao adoecimento
da mulher negra relacionado ao racismo?

METODOLOGIA
Neste trabalho, optou-se por utilizar a revisão integrativa de literatura, que con-
siste em uma vasta abordagem metodológica relativa a revisões, possibilitando a
inclusão de estudos experimentais e não experimentais para a compreensão inte-
gral do fenômeno analisado (SOUZA et al, 2010).

A revisão integrativa de literatura é um método que tem como


finalidade sintetizar resultados obtidos em pesquisas sobre um
tema ou questão, de maneira sistemática, ordenada e abran-
gente. É denominada integrativa porque fornece informações
mais amplas sobre um assunto/problema, constituindo, assim,
um corpo de conhecimento. Deste modo, o revisor/pesquisador
pode elaborar uma revisão integrativa com diferentes finalida-
des, podendo ser direcionada para a definição de conceitos, re-
visão de teorias ou análise metodológica dos estudos incluídos
de um tópico particular (ERCOLE et al, 2014. p. 9).

Após a definição do problema de pesquisa, foi realizada uma busca explorató-


ria na base de dados Google Scholar, visando à experimentação das equações de
pesquisa. A busca foi realizada nos meses de junho e julho de 2020, a partir dos
seguintes descritores, “educação em ciências”, “mulher negra” e “racismo” em
qualquer parte do texto, de forma isolada, articulada e combinada. No total, foram
encontrados 187 artigos, publicados entre janeiro de 2010 a junho de 2020. Da
busca inicial, foram retirados os artigos que: a) não se tratavam da modalidade ar-
tigo científico; b) não apresentavam resumo disponível; c) não apresentavam texto
completo disponível;
d) relacionavam-se à população negra apenas como perfil de grupo populacio-
nal, sem apresentar reflexões sobre os objetivos da revisão. Assim, a amostra final
resultou em 13 artigos, que foram lidos na íntegra. Em seguida, realizou-se a avalia-
ção crítica dos trabalhos com relação ao problema de pesquisa do estudo, resultan-
do em 11 estudos que cumpriram todos os critérios de inclusão na amostra final.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 639


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Para a coleta dos dados foi utilizado um instrumento construído para este fim
pelos pesquisadores desta revisão, o qual passou por avaliação de juízes em outro
estudo com esta mesma metodologia, seguindo as recomendações metodológicas
deste tipo de pesquisa. O instrumento utilizado contempla os seguintes itens: iden-
tificação do artigo original, características metodológicas do estudo, avaliação do
rigor metodológico e avaliação dos resultados encontrados.

RESULTADOS E ANÁLISE
O corpus da revisão contemplou 11 artigos, publicados de maneira heterogê-
nea, entre os anos de 2010 e 2020. Quanto ao perfil geral das produções, obser-
vamos uma dispersão nas áreas da saúde e ciências sociais, com destaque para
enfermagem e serviço social.
No que tange ao recorte temporal das publicações, pode-se considerar que es-
tas são recentes, pois 81,8% foram publicadas nos últimos cinco anos, como é pos-
sível visualizar na figura
1. Dos 11 artigos selecionados, um é de 2010 (9,1%); um (9,1%) foi publicado
em 2011; um (9,1%) foi publicado em 2014; dois (27,3%) são do ano de 2016; três
(27,3%) são do ano de 2018; dois (18,2%) são do ano de 2019 e um (9,1%) é do ano
de 2020.

Fonte: autoria própria (2020)


Com relação ao tipo de metodologia aplicada nos trabalhos analisados, perce-
be-se que há predominância da revisão de literatura, encontrada em oito (8) dos
onze (11) artigos analisados. Os demais trabalhos se dividem entre uma análise
documental, um relato de experiência e um ensaio. Na tabela apresentada a seguir,
pode-se verificar o corpus da pesquisa, apresentando os títulos dos artigos, auto-
res, gênero, formação e ano de publicação.

TABELA 01 - CORPUS DA PESQUISA

TÍTULO NOME GÊNERO FORMAÇÃO ANO

Por que falar de saúde


da mulher negra no
A1 Santos C.C; Sanitarista e
município do Rio de Feminino 2020
Vieira G.O Biologia
Janeiro?

A Interculturalidade
na formação dos
A2 Fontana, R.T Feminino Enfermagem 2019
profissionais de
enfermagem

Concepções e práticas
de educação e saúde
Nutrição e
A3 da população negra: Rizzo, T.P. et al. Feminino 2019
Ciências Sociais
uma revisão integrativa
da literatura brasileira

Interseccionalidade,
racismo institucional
A4 e direitos humanos: Assis, J.F Feminino Serviço Social 2018
compreensões à
violência obstétrica

Reflexões sobre o
cuidado integral no Alves, P.H.M.
A5 Feminino Enfermagem 2018
contexto étnico-racial: et al.
uma revisão integrativa

Estratégias de saúde
realizadas por/para
Prestes, C.R.S.
A6 mulheres negras nas Feminino Psicologia 2018
et al.
Américas: revisão de
escopo

Racismo institucional
A7 e saúde da população Werneck, J. Feminino Medicina 2016
negra
Educação em saúde
para comunidades Jesus, C.A.S. Pedagogia e
A8 Feminino 2016
remanescentes de et al. Fisioterapia
quilombos

Saúde da mulher Negra


e os determinantes:
Lima, A.S.G.;
A9 Racismo, Questão Feminino Serviço Social 2014
Volpato, L.M.B
de Gênero e Classe
Econômica

A mulher
Afrodescendente: sua Motta, A.S.; Direito e
A10 Feminino 2011
história, luta e vitória Both, L.G.B Antropologia
(?)

Projeto: Ylê ayiê yaya


ilera (Saúde plena na
casa desta existência):
equidade
A11 Gomes, M.C.P.A Feminino Enfermagem 2010
e integralidade
em saúde para a
comunidade religiosa
afro-brasileira

Fonte: autoria própria (2020)

Após a análise, os artigos foram agrupados nas seguintes categorias: a) estudos


que propõem ações educativas para o enfrentamento do racismo para indivíduos
no geral (18%); b) estudos que propõem ações de educação continuada e perma-
nente para o enfrentamento do racismo aos profissionais de saúde, professores e
na formação profissional (63,6%); c) estudos que propõem ações educativas para
mulheres negras em relação ao enfrentamento e superação do racismo (9,1%).
Estes resultados podem ser melhor observados na tabela 02.

642 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
TABELA 2. PERFIL DA PRODUÇÃO CIENTÍFICA DO CORPUS DA REVISÃO

CATEGORIAS MODALIDADE
ID AUTORES PERIÓDICO QUALIS ANO
ANALÍTICAS DE ESTUDO

Revista
Estudos que Eletrônica de
Revisão de
propõem ações Rizzo T.P. Comunicação,
A3 B1 2019 literatura
educativas para et al. Informação e
integrativa
o enfrentamento Inovação em
do racismo para Saúde
indivíduos no Lima ASG ETIC - Encontro Revisão de
geral Não
A9 Volpato de Iniciação 2014 literatura
possui
LMB Científica narrativa

Santos CC Não Análise


A1 Saúde em Foco 2020
Vieira GO possui documental

Revisão de
Fontana Contexto e
A2 B5 2019 literatura do
RT Educação
tipo narrativa

Revisão de
Serviço Social e
A4 Assis JF A1 2016 literatura
Sociedade
Estudos que narrativa
propõem ações
de educação Alves Revisão de
Ciência e Saúde
continuada e A5 PHM et B1 2020 literatura
Coletiva
permanente al. integrativa
para o
enfrentamento Werneck Saúde e
A7 B1 2016 Ensaio
do racismo aos J sociedade
profissionais
Revista Revisão de
de saúde, Jesus CAS
A8 Conexões e B2 2016 literatura
professores e et al.
Saberes sistemática
na formação
profissional Cadernos
da Escola Revisão de
Motta AS
A10 de Direito B5 2011 literatura
Both LG
e Relações narrativa
Internacionais

Interface -
Gomes Comunicação, Relato de
A11 B1 2010
MCPA Saúde e experiência
Educação

Estudos que
propõem ações
educativas para
Revisão de
mulheres negras Interfaces
A6 Prestes B2 2018 literatura
em relação ao Brasil/Canadá
CRS et al sistemática
enfrentamento
e superação do
racismo
Revista
Estudos que Eletrônica de
Revisão de
propõem ações Rizzo T.P. Comunicação,
A3 B1 2019 literatura
educativas para et al. Informação e
integrativa
o enfrentamento Inovação em
do racismo para Saúde
indivíduos no Lima ASG ETIC - Encontro Revisão de
geral Não
A9 Volpato de Iniciação 2014 literatura
possui
LMB Científica narrativa

Santos CC Não Análise


A1 Saúde em Foco 2020
Vieira GO possui documental

Revisão de
Fontana Contexto e
A2 B5 2019 literatura do
RT Educação
tipo narrativa

Revisão de
Serviço Social e
A4 Assis JF A1 2016 literatura
Sociedade
Estudos que narrativa
propõem ações
de educação Alves Revisão de
Ciência e Saúde
continuada e A5 PHM et B1 2020 literatura
Coletiva
permanente al. integrativa
para o
enfrentamento Werneck Saúde e
A7 B1 2016 Ensaio
do racismo aos J sociedade
profissionais
Revista Revisão de
de saúde, Jesus CAS
A8 Conexões e B2 2016 literatura
professores e et al.
Saberes sistemática
na formação
profissional Cadernos
da Escola Revisão de
Motta AS
A10 de Direito B5 2011 literatura
Both LG
e Relações narrativa
Internacionais

Interface -
Gomes Comunicação, Relato de
A11 B1 2010
MCPA Saúde e experiência
Educação

Estudos que
propõem ações
educativas para
Revisão de
mulheres negras Interfaces
A6 Prestes B2 2018 literatura
em relação ao Brasil/Canadá
CRS et al sistemática
enfrentamento
e superação do
racismo
Fonte: autoria própria (2020)
ANÁLISE CONJUNTA DOS ARTIGOS
As autoras dos estudos (A3) e (A9) consideram relevante a implementação de
práticas socioeducativas para o enfrentamento do racismo. Rizzo et al (2019) con-
sideram imprescindível a adoção de um movimento dialógico, no qual a população
negra possa ter vez, voz e história, principalmente no ato educativo, rompendo
com educação verticalizada e procedimental, frequentes na trajetória do campo de
educação em saúde. Para Lima e Volpato (2014), é basilar a implantação de meca-
nismos de desconstrução dos fatores que comprometem a saúde da mulher negra.
Preconizam a criação de programas voltados à atenção da população negra como
intervenção para um cuidado adequado da saúde desta população.
Nos estudos (A1), (A4) e (A10), as autoras coadunam ao considerar a educação
continuada como uma das principais ações voltadas aos profissionais da saúde
para o enfrentamento ao racismo. Segundo Santos e Vieira (2020), é necessário
questionar e reconhecer o racismo como uma das causas centrais na produção das
injustiças em saúde sofridas por mulheres e homens negros. Assis (2018) conclui
que investir em educação continuada, além de reorganizar a formação profissional,
com a finalidade de aumentar conhecimento e visibilidade das condições de vida e
saúde da população negra, são urgentes para a modificação do quadro preocupante
em que se insere a saúde pública brasileira. Já Motta e Both (2011) inferem que
se faz necessário a implementação de programas de capacitação voltados para os
profissionais da saúde, ofertando aulas de história, cidadania, urbanidade, alteri-
dade, dignidade humana, igualdade e informações sobre doenças específicas da
população negra, além da formulação de políticas públicas voltadas para esta gru-
po específico.
O estudo realizado por Fontana (2011) (A2) insere a interculturalidade como
proposta para o enfrentamento de inúmeras iniquidades, entre elas, o racismo,
através da implantação de uma educação transcultural para os profissionais da
enfermagem. Esta proposta visa não somente os profissionais da enfermagem com
outros profissionais da área da saúde.
Para Alves et al. (A5), Werneck (A7) e Jesus et al. (A8) é basilar a formulação e
implementação de políticas públicas como a PNSIPN para execução de ações afirma-
tivas em saúde da população negra. Conforme Alves et al afirma, ações afirmati-
vas são atos de reparação ou prevenção de ações discriminatórios infringidas a um
grupo socialmente discriminado, diminuindo as iniquidades sociais e aniquilando o
racismo institucional. Werneck (2016) argumenta que para eliminar as disparida-
des raciais na saúde da mulher negra é necessário a criação de ações em diferentes
contextos, promovendo medidas específicas, que fundamentem o desenho de po-
líticas de acordo com a necessidade de cada grupo populacional. Jesus et al (2016)
reitera que buscar caminhos para vencer as desigualdades enfrentadas pelas mu-
lheres negras é dever ético de todos os envolvidos em saúde e educação, visando
contribuir para o desenvolvimento de ações de promoção da igualdade de gênero,
de condições sociais e direitos e a plena saúde das mulheres negras.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 645


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O estudo de Gomes (A11) elucida não somente propostas, mas ações concretas
realizadas para as mulheres e suas famílias. Para ela, é indispensável que as dis-
cussões sobre preconceitos, intolerância religiosa e racismo, além da invisibilidade
da mulher negra, sejam ampliadas. Ela conclui o artigo, afirmando que construir
vínculos responsáveis entre os serviços de saúde e a população são indispensáveis
para garantir a equidade e integralidade da assistência.
Por fim, a pesquisa de Prestes et al (A6) é o único que propõe ações educati-
vas para o enfrentamento ao racismo voltadas prioritariamente para as mulheres
negras. As autoras afirmam que fortalecer as estratégias de promoção de saúde
desenvolvidas por mulheres negras, incluindo as experiências não acadêmicas, tra-
zendo o feminismo negro como estratégia para o enfrentamento das colonialida-
des de poder é fundamental para o enfrentamento ao racismo. Sugerem que a
formação das equipes e fontes teóricas sejam diversificadas. Para isso, também é
menester ampliar as vozes das mulheres negras, fomentando publicações sobre o
assunto, incluindo as produções do movimento negro e mulheres negras e, conse-
quentemente, valorizando suas produções intelectuais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, concluímos que são escassas as práticas educativas voltadas
ao enfrentamento do racismo relacionado à saúde da mulher negra, por conse-
guinte, escassos os estudos que abarcam essa temática. Consideramos imprescin-
dível o fomento de estudos sobre esta temática.
Assinalamos a importância da execução de um conjunto de ações integradas,
que envolvam diferentes setores como saúde, educação, cultura, entre outros.
Tal articulação intersetorial possibilitaria o diálogo e o envolvimento de diferentes
áreas na elaboração e realização de ações educativas que promovam a superação
de práticas em saúde carregadas de estereótipos e preconceitos reforçados ao lon-
go da história.
Destacamos que é fundamental a qualificação permanente dos profissionais
para uma abordagem em saúde que coloque em prática os princípios da PNSPN,
promovendo assim a construção de uma cultura institucional aberta à pluralidade
étnica e sociocultural, e consequentemente, uma experiência em saúde mais justa
para todas.
Por fim, ressaltamos que nesta escrita não se buscou esgotar todas as análises
possíveis a partir dos dados coletados. É necessária a realização de novas pesquisas
visando expandir o conhecimento acerca do tema, assim como fornecer bases para
o desenvolvimento de novas estratégias para o manejo de práticas antirracistas.
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AUTORIA
Maiana Eloí Ribeiro dos Santos
Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro
E-mail: maianaeloi@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-6829-5349
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1386618858557030

Eliete Cristina de Souza


Universidade Federal do Rio de Janeiro
E-mail: eliete-cristina@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6926-693X
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0197634371314807

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 647


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Ana Lúcia Nunes de Sousa
Universidade Federal do Rio de Janeiro
E-mail: analucia@nutes.ufrj.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1924-5297
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6689983214433853

648 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 11
Branquitude,
branquidade
e brancura:
racialização(ões)
branca(s) na
América Latina
NEGRO-TEMA: UM DISCURSO CIENTÍFICO EM
PROL DA BRANQUITUDE
Daniara Thomaz

Sou negro, identifico como meu o corpo em que o meu


eu está inserido, atribuo a sua cor a suscetibilidade de
ser valorizada esteticamente e
considero a minha condição étnica como um dos
suportes do meu orgulho pessoal.
Eis aí toda uma propedêutica sociológica, todo um ponto
de partida para a elaboração de uma hermenêutica da
situação do negro no Brasil.
(RAMOS, Guerreiro)

INTRODUÇÃO
Em seus escritos sobre a patologia social do branco brasileiro, Guerreiro Ramos
(1957) trouxe à tona para a discussão racial dois termos de certa relevância para
compreendermos os estudos raciais denominados como “o problema do negro”.
Negro-tema e negro-vida são apresentados por Ramos no intuito de desvincular
a imagem limitada do negro como objeto de estudo científico da experiência do
negro em vida que muito se difere de seus estereótipos negativos e essencializa-
dos produzidos, sobretudo, pela classe branca acadêmica. A despeito da notável
contribuição do autor e de tais termos para as análises do atual cenário racial bra-
sileiro, nos parece que os escritos de Ramos sobre o negro-vida e o negro-tema não
receberam a devida atenção que mereciam, sendo esquecidos e deixados de lado
junto ao grande número de produções intelectuais negras desconsideradas pelo
circuito da elite intelectual acadêmica.
Guerreiro Ramos estreou o campo de estudos sobre a identidade racial bran-
ca no Brasil ao inserir o branco dentro do panorama das relações étnico-raciais
enquanto objeto de estudo científico. Ramos não somente deu o pontapé para o
desenvolvimento do campo de estudos sobre branquitude cujas análises vislum-
bravam o branco como constructo social, mas também permitira o início do movi-
mento de ruptura com as perspectivas que consideravam o racismo no Brasil como
um problema do negro. O problema do negro no Brasil fora abordado por diversos
autores dentro da literatura sociológica, histórica e antropológica nacional. Dentre
eles podemos citar Oliveira Vianna, Gilberto Freyre, Nina Rodrigues, entre outros.
Apesar das discordâncias teóricas, todos eles, de algum modo, vincularam às ques-
tões de desigualdade racial e racismo no Brasil à imagem do negro, desconsideran-
do o papel e atuação do branco. Como se o racismo não agisse por meio de uma

650 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
hierarquia racial que necessita de duas ou mais raças para seu funcionamento, o
problema racial no Brasil tornou-se o problema do negro, isto é, um problema de
encargo único e exclusivo da população negra. Nessa dinâmica de apagamento
do branco das relações raciais, até mesmo outras raças e etnias prejudicadas pela
hierarquia racial brasileira foram excluídas do panorama racial, como é o caso das
populações indígenas e ciganas.
A estratégia de atribuir ao negro os problemas de desigualdade racial e racis-
mo têm como pano de fundo o mito da democracia racial e o apagamento his-
tórico dos processos violentos de colonização e escravização que ocorreram em
terras brasileiras. Ao afirmar com respaldo científico que o racismo brasileiro é um
problema do negro, esses autores não apenas retiraram de cena o branco e sua
atuação enquanto algoz dentro das relações raciais, mas também menosprezaram
os efeitos e impactos dos quase quatrocentos anos de exploração da população
negra, de modo a limitar a real e total compreensão do que fora a colonização e es-
cravidão em nosso país. A saber, não trataremos aqui das intenções desses autores
em abordar o racismo brasileiro como problema do negro e assim intitulá-lo. Antes
disso, prezamos por uma análise que considere os impactos desse movimento in-
telectual na concepção de racismo no imaginário social brasileiro e, principalmen-
te, na concepção propagada acerca da população negra. Para isso, nos fazemos a
seguinte questão: se o racismo brasileiro é um problema do negro, quem é este
negro que tem em sua conta e costas os problemas raciais de seu país?

NEGRO-TEMA, RELAÇÕES DE PODER E


O DISCURSO CIENTÍFICO
Segundo Carlos Hasenbalg (1982), os estudos raciais no Brasil podem ser divi-
didos em três linhas distintas que abordam as articulações entre os marcadores
sociais de raça, classe e desigualdades. A primeira linha é caracterizada pelas pro-
duções acadêmicas da década de 1930, cujas conclusões sobre as condições raciais
em nosso país corroboraram para a noção de ausência de preconceito e discrimi-
nação racial no Brasil. Esta linha de análise representa uma questão de duas vias,
pois, ao mesmo tempo em que viabiliza a problematização das questões raciais e
do racismo no Brasil, também impede a atribuição de responsabilidades reais e
materiais àqueles que detêm as vantagens e benefícios oriundos desse sistema de
hierarquia racial. A segunda onda de estudos raciais, influenciada por esta primeira
linha de pesquisas, admite a existência de desigualdade no Brasil, contudo a asso-
cia muito mais às questões de classe do que de raça. Conduzidos pelas distinções
entre os sistemas raciais estadunidense e brasileiro, tais autores chegaram a con-
clusões ilusórias, deturpando o real significado e impacto da questão racial em nos-
so país. Por fim, temos a última linha de estudos raciais sinalizada por Hasenbalg,
esta linha diz respeito à onda de estudos sociais que surgiram entre as décadas de
1950 e 1960, tais pesquisas buscaram compreender o racismo brasileiro a partir do

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 651


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
viés econômico, mais particularmente a partir da derrocada do sistema escravista
e da implementação da sociedade de classes no Brasil. As conclusões obtidas por
estes estudos são de suma importância para compreendermos como procedera a
marginalização social da população negra no período pós- abolição. Passamos a
refletir, então, como as três linhas de estudos raciais se articularam formando a
concepção de raça e racismo que permeia até os dias de hoje o imaginário social
brasileiro.
Apesar das limitações práticas e a ausência de consonância com a realidade
racial vivenciada no país, os estudos raciais da década de 1930 inovaram dentro
da área das ciências sociais, pois, romperam com as perspectivas deterministas
e biológicas do racismo científico propagadas por autores como Nina Rodrigues
e Oliveira Viana que defendiam o atavismo, isto é, a hereditariedade biológica de
características intelectuais, comportamentais, etc. Dentre esses estudos inovado-
res, é importante mencionarmos a obra Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre,
publicada originalmente em 1933 e que configura um grande marco na história dos
estudos raciais brasileiros. Neste livro, Freyre (2006) rejeita as premissas negati-
vas atribuídas à miscigenação que, para os intelectuais antecessores, significaria a
degeneração da raça branca superior e passa a defender a miscigenação como o
grande elemento da identidade nacional (Munanga, 1999; Guimarães, 1999).
Seguindo a onda de produções intelectuais no país à época, Freyre mostrava-se
vivamente interessado em traçar um plano de identidade nacional que incorpo-
rasse à imagem do Estado-nação todas as manifestações culturais atribuídas à po-
pulação negra e indígena e que, simultaneamente, descartasse o conceito de raça
enquanto uma categoria social útil para a compreensão da dinâmica das relações
raciais brasileiras. Para ele, o conceito de raça no Brasil não adquirira significado
ou utilidade o suficiente, uma vez que o processo de miscigenação por aqui teria
ocorrido de modo muito mais pacífico do que violento, se levado em comparação
o cenário racial estadunidense, por exemplo. Esta lógica de pacificação das desi-
gualdades e discriminações raciais produzira uma imagem de democracia racial no
Brasil, imagem que seria logo desmistificada pelas pesquisas da terceira onda de
estudos raciais, caracterizada, sobretudo, por autores como Florestan Fernandes
(2008) e Roger Bastide (1972) que viriam a desenvolver o conceito de mito da de-
mocracia racial.
O mito da democracia racial se tornou um alicerce na manutenção das desigual-
dades raciais e racismo brasileiro, afinal, não é possível combater aquilo que não
existe. Com esta imagem de nação racialmente democratizada, o Brasil manteve
sua sujeira racial debaixo do tapete durante algum tempo. E talvez a mantives-
se ainda mais, se não fosse pelos reais números que expressavam a desigualdade
racial brasileira e pelas reivindicações do Movimento Negro Unificado a partir do
final da década de 1970 frente às violências e desigualdades sociais que acometiam
a população negra brasileira. Esse discurso de democracia racial forneceu respaldo
para uma perspectiva anti-racialista dentro dos estudos dos primeiros expoentes

652 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
da formação do Estado nacional nas ciências sociais brasileiras (Guimarães, 1999),
cuja literatura socioantropológica excluiu de suas competências as análises acerca
do conceito de raça, priorizando as questões relacionadas às desigualdades econô-
micas, atribuindo à categoria chave de classe todas as mazelas sociais que afeta-
vam a população brasileira.
Frente este contexto de minimização dos reais impactos dos processos de co-
lonização e escravização brasileiros, a discussão sobre racismo surge como tema
secundário e sob um eufemismo intelectual que tomara o debate racial a partir de
questões econômicas e de nacionalidade. Neste prisma, como afirmou Guimarães,
as identidades étnicas e raciais foram suprimidas pela identidade nacional, tor-
nando o conceito de raça muito mais amplo do que a “simples” designação racial,
envolvendo questões outras como a classe social, localização geográfica, nível de
estudo, etc. Por tais motivos, as categorias raciais no Brasil transformaram-se, tam-
bém, em categorias socioeconômicas e a discussão sobre o conceito de raça tomou
outras formas. Com isso, o debate racial brasileiro ocorreu durante algum tempo
de maneira implícita, isto é, falava-se em raça sem que esta fosse pronunciada. E,
de modo extremamente irônico, as categorias dicotômicas de povo/elite substituí-
ram as categorias negro/branco, produzindo uma discussão racial latente.
É importante dizer que este discurso anti-racialista impactou a maneira com
a qual a população brasileira concebe o conceito de raça e racismo. Ainda hoje
verificamos a atuação dessa noção de inutilidade acerca dos termos raciais para a
compreensão das relações sociais em nosso país. A questão a ser sinalizada aqui é
a de que, apesar da resistência em absorver o conceito de raça como um elemento
necessário para a formação do Estado-nação brasileiro, o discurso anti-racialista
constituiu-se como um discurso racial e fora incorporado pelo imaginário social
brasileiro como o modo de lidar com as questões de desigualdade e discriminações
raciais. O efeito desse modelo racial esquizofrênico de interpretação da realidade
social está no racismo a la brasileira, um tipo de discriminação estrutural e sistêmi-
ca que atinge à população brasileira em todos os níveis, mas que não ganha espaço
nos discursos e interpretações dos indivíduos acerca das mazelas sociais que asso-
lam o país. É exatamente este modelo racial que permite estatísticas assombrosas
de violência, assassinato, desemprego, analfabetismo, etc. entre a população ne-
gra sem que isso seja interpretado como questão de racismo e/ou discriminação
racial. Em outras palavras, o discurso adotado para conceber, ou melhor, não con-
ceber a raça e o racismo brasileiro é um dos mecanismos que mantém a desigual-
dade racial em funcionamento.
De modo geral, para que o racismo brasileiro viesse a se tornar um discurso
racial latente alguns fenômenos foram imprescindíveis. Entre eles, o mito da de-
mocracia racial que já fora citado, o apagamento do branco como constructo so-
ciorracial e ator das relações raciais e, finalmente, a produção de uma imagem do
negro que sustentasse as noções científicas sobre raça. E é sobre este negro produ-
zido cientificamente que devemos direcionar nossa atenção e análise. Para tanto, é

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 653


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
necessário retornarmos aos escritos de Guerreiro Ramos sobre o negro-tema para
entendermos como a essencialização da população negra como objeto de estudo
científico resultou no apagamento epistemológico das produções negras e, princi-
palmente, no suprimento da subjetividade negra.
Os primeiros estudos raciais produzidos em nosso país abordaram a população
negra de modo extremamente reducionista. Preocupados com a consolidação das
ciências sociais brasileiras, os autores da época buscaram no tema da modernidade
o elemento de elucidação acerca das condições de formação do Estado-nação. De
modo geral, esta modernidade dizia respeito aos moldes organizacionais e civili-
zatórios europeus que foram transportados para a realidade social brasileira. A
noção europeia de organização social e política permeou as entranhas não apenas
das estruturas econômicas e políticas de nosso país, mas também das formas cul-
turais e sociais, gerando uma socialidade nacional totalmente vincula à ideia eu-
rocêntrica de civilidade e progresso (Fernandes, 1975). Essa noção de civilização e
progresso pode facilmente ser traduzida como um discurso racialista, na qual o ho-
mem branco europeu ocuparia a posição de maior prestígio e destaque, enquan-
to que o homem negro, o selvagem africano, simbolizaria o primeiro estágio da
humanidade, a barbárie. Criou-se, assim, uma classificação da humanidade tendo
como base a raça e o discurso determinista social (Schwarcz, 1993). Como já dito,
essa concepção evolucionista da humanidade, apoiada principalmente nos discur-
sos produzidos nos primórdios da antropologia, teve seu impacto nos pensadores
sociais brasileiros e, apesar do avanço das linhas de estudos raciais posteriores que
romperam com o determinismo biológico, essa noção de hierarquia racial a partir
do viés biológico do conceito de raça ainda é alimentada pelo imaginário social
brasileiro.

BRANQUITUDE: CRIADOR E CRIATURA


O ponto que gostaríamos de trazer à tona agora é exatamente a necessidade
de produção de um negro que sustentasse esse discurso de hierarquia racial disfar-
çado de modernidade e civilização e que fornecesse sentido à lógica racialista de
classificação biológica das raças. Para que o homem branco, ser racional e huma-
no por excelência, pudesse existir era preciso existir também o seu contraponto,
aquele que representasse o atraso, a estagnação cultural, a irracionalidade, isto
é, o homem negro. O antropólogo sul-africano Adam Kuper (1988) aponta que as
sociedades tradicionais foram concebidas a partir de um espelho distorcido pelos
estudos antropológicos dos anos 1860, com isso, as características das sociedades
primitivas representavam, na realidade, a ausência das características das socieda-
des modernas. Neste contexto, as sociedades pré-estatais passaram a ser reconhe-
cidas não por seus modos de organização social, manifestação cultural, etc.; mas
sim pela falta dos elementos sociais que compunham as sociedades modernas,
como, por exemplo, a escrita, o Estado, a propriedade privada, entre outros (Clas-

654 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
tres, 2003). Na medida em que essa ideia ilusória acerca das sociedades tradicio-
nais fora ganhando espaço dentro das ciências sociais, sobretudo da antropologia,
os elementos que compunham o discurso dicotômico de sociedade moderna e so-
ciedade “primitiva” foram se tornando mais maleáveis, ganhando novas roupagens
e sendo vinculados a outras formas de representação. É o que sinaliza Kuper ao
argumentar que os princípios dicotômicos de sangue e solo que constituíam a
sociedade primitiva e a sociedade moderna poderiam equivaler
facilmente à raça e cidadania, respectivamente. Não seria um equívoco concluir
que esta correspondência entre sangue-solo e raça-cidadania levou ao que conhe-
cemos como racismo científico, teoria racialista embebedada na teoria antropoló-
gica do evolucionismo e determinismo social.
Se o homem branco teria sido formado à imagem e semelhança de Deus, o ho-
mem negro, por sua vez, fora concebido pela ausência e dessemelhança frente ao
homem branco. Ou seja, tudo aquilo referente ao homem negro, sua cultura, orga-
nização familiar e social, religião e crença, política e economia, diz respeito à sua
desigualdade perante o homem branco. Se ao branco é atribuída a racionalidade,
a habilidade artística, a erudição, ao negro é vinculada a emoção, a funcionalidade
artesã, a capacidade corpórea. Ao branco, a religião desenvolvida, a escrita; para
o negro, o animismo, culto aos seres irracionais, a oralidade. Toda a complexidade
utilizada para descrever e elucidar o homem branco encontraria, portanto, suas
raízes na bestialidade, na simplicidade esdrúxula do homem negro. O negro seria,
então, nada mais que o Outro absoluto do homem branco, não sujeito e nem mes-
mo ator de sua história, apenas a sombra deturpada da imagem do homem branco,
humano por excelência (Hall, 2016).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O modo pelo qual os estudos raciais brasileiros abordaram o negro conduz, de
acordo com Guerreiro Ramos, a concepções ilusórias e enganosas que tendem
mais a confundir do que elucidar as questões das relações raciais em nosso país.
Em verdade, o negro-tema, ou o problema do negro, seria um constructo cientí-
fico unilateral, pois produz um silenciamento, apagamento do branco dentro das
relações raciais, colocando em questionamento até o mesmo o sentido do termo
“relação” para designar o debate racial brasileiro, como apontou Lourenço Cardo-
so (2014). Contudo, a invisibilidade do branco neste contexto não é á toa e com-
põe aquilo que Maria Aparecida Silva Bento (2002) nomeou como pacto narcísico
da branquitude, isto é, um acordo tácito entre a população branca para não se
mencionar o racismo e as desigualdades raciais e as vantagens sociais oriundas
destes. Por tácito compreendemos que este pacto ou acordo é implícito, ou seja,
não caracteriza uma ação manifesta voluntariamente entre os indivíduos, mas sim
um resultante sociohistórico dos modos de interpretação e concepção das relações
raciais brasileiras que é passada de geração em geração, assim como os benefícios

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 655


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
e privilégios simbólicos e materiais que são lançados hereditariamente entre as
famílias brancas (Schucman, 2014).
O silenciamento acerca do branco enquanto ator das relações raciais promoveu
uma cegueira por parte da branquitude que dificilmente é capaz de se enxergar em
termos raciais. Vestindo-se com os trajes da universalidade, o branco, paradoxal-
mente, se oculta (Cardoso, 2014), pois aquilo que está em evidência não precisa
ser visto e muito menos estudado. Desta forma, o discurso científico sobre o ne-
gro-tema cria um mecanismo de sustentação do pacto narcísico e da invisibilidade
do branco como ator racial, ao mesmo tempo em que mantém o branco em sua
posição de sempre: a de superioridade, a posição daquele que questiona e nunca é
questionado, aquele que estuda o Outro, porém nunca é estudado. A produção do
negro-tema enquanto campo de estudo sociológico e antropológico pode ser com-
preendido como uma armadilha racial, pois coloca o branco como o sujeito cientí-
fico preocupado em elucidar as problemáticas do Outro racializado, preservando,
simultaneamente, o lugar seguro da invisibilidade de seus privilégios e atuação na
dinâmica das desigualdades raciais e, ainda, sua posição enquanto produtor de
conhecimento.
Por certo, podemos afirmar que o negro-tema representa o anseio da branqui-
tude em reafirmar sua posição de superioridade a partir de um modelo de negro
criado a sua própria vontade e necessidade. O negro-tema é em si mesmo uma
ferramenta discursiva de perpetuação das relações assimétricas de poder que en-
volvem o conceito de raça. Ao ser alocada nesse lugar de objetificação científica,
a população negra tornou-se uma massa homogênea sem subjetividade, singular,
fixa e essencializada. Ancorada no regime de representação racializado produzi-
do pela branquitude, sobretudo pela classe científica, a população negra – ampla,
multiforme e plural – é transformada no negro – uniforme, singular e reduzido. O
negro-tema seria, portanto, resultado desta imagem distorcida da população ne-
gra, produzida para que o discurso de superioridade branca atingisse o patamar da
materialidade no campo da cientificidade e para além dele.

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AUTORIA
Daniara Thomaz
Mestranda em Antropologia pelo PPGAA/UFPR, bolsista Capes.
E-mail: daniaratfm@gmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3364198313831933

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A FORMA BRANCA DE VIDA: TERCEIRIZAÇÕES
IDENTITÁRIAS E PROJETO-DE-VIDA
Gabriel Chaves Amorim
Maira Damasceno

INTRODUÇÃO
O trabalho se estrutura em duas partes, uma primeira aborda a revisão teórica
filosófica sobre a forma-de-vida, a segunda aborda a documentação histórica ana-
lisando o discurso da colonialidade persistente. Para ler e analisar a documentação
histórica, na segunda parte, se utilizara o viés teórico (de)colonial, Anibal Quijano,
Catherine Walsh, Edgardo Lander, Henrique Dussel, Beth Ruth Lozano Lerma.
Fruto das leituras e balanços teóricos metodológicos advindos do projeto de
pesquisa “Projetos-de-vida da juventude indígena” sediado no Programa de pós
graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Também
é fruto da experiência de uma concretude do vivido, como diz Vera Rodrigues: Não
adianta se dizer decolonial, sem formar redes de afeto e comunidades, por isso lan-
ço essas ideias, justificadas pela tentativa de fazer emergir no tempo presente mais
projetos-de-vida referenciados na emancipação
Com o termo forma-de-vida, o filósofo italiano, Giorgio Agamben (2015) propõe
que não deveria existir uma separação da vida de sua forma. O modo de viver de-
termina, portanto, o que está em jogo na vida.

“1. Os gregos não tinham um termo único para exprimir o que


entendemos pela palavra vida. Serviam-se de dois termos se-
mântica e morfologicamente distintos: zoé, que manifestava
o simples fato de viver, comum a todos os viventes (animais,
homens ou deuses), e bios, que significava a forma ou maneira
de viver própria de um indivíduo ou de um grupo. Nas línguas
modernas, em que essa oposição desaparece gradualmente do
léxico (onde é conservada, como em biologia e zoologia, ela não
indica mais nenhuma diferença substancial), um único termo –
cuja opacidade cresce proporcionalmente à sacralização de seu
referente – designa o nu pressuposto comum que é sempre
possível isolar em cada uma das inumeráveis formas de vida.
(Agamben, 2015 p. 10)

Ao fazer uma genealogia do léxico de bios e zoé, a análise mostra como os termos
se tornam um único termo que pressupõe uma universalidade isolável, vida sepa-
rada de sua forma. Para as populações da América brasileira podemos dizer que a
separação da vida de sua forma operou em primeiro plano histórico pela coloni-
zação europeia em suas distintas fases e faces, empresariais, estatais e religiosas.

658 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A desterritorialização da vida de sua forma destrói a forma-de-vida. Os quilombos
eram formas-de-vida que foram caçadas e exterminadas, até legalmente, da possi-
bilidade de existir. Por isso, hoje os projetos-de-vida-quilombola são produzidos
como ausentes, relegados ao passados, como incivilizados. Qual a diferença entre
ser preto, negro e ser quilombola? É tempo de se aquilombar, por isso, uma filoso-
fia dos projetos-de-vida se faz necessária e urgente.
A vida nua isolada é passível de ser gerenciada pela soberania, que imprime o
modo de vida que convém ao soberano, pois, detém o poder sobre forma de vida
das populações. Se a modernidade propõe uma desterritorialização da vida, dos
projetos subjetivos, para incutir no sujeito auspícios advindos de uma governa-
mentalidade que diz como deve ser a gestão da vida, logo, fechar os ouvidos aos
presságios do capital é um ato de resistência. Traduzindo a metáfora, a forma-de-
-vida não está em consonância com os instrumentos de controle, de disciplina, de
regulação da vida. É vida rebelde que não se despe. É vida não se separa de sua
forma. E é neste sentido que a população preta, indígena e periférica deve buscar
construir projetos-de-vida significados pelas suas próprias experiências.
Um projeto-de-vida, em que os planos que o sujeito tem para si e para os seus,
é determinante sobre o que ele é. O projeto é a potência de vida e de sua forma,
adequado para fornecer para a pessoa meios de alcançar a felicidade. Contudo,
o projeto-de-vida das populações tradicionais, indígenas, pretas e periféricas são
interseccionadas pela agressão colonial do grande projeto de vida único. – Notem
que a grafia desta vez não utilizou o hífen, sinalizando que o projeto não está ligado
à vida da pessoa – Esse projeto de vida único é a face identitária e cultural da mo-
dernidade colonial. Se os projetos-de-vida, são os planos que a pessoa tem para si e
para os seus, o uso do recurso discursivo do hífen não é por acaso, demonstra que
o projeto que se separa da vida já não pertence mais à pessoa. Já os projetos de
vida é uma manifestação dos estereótipos coloniais, isto é colonização atuante, em
processo, acontecendo. Aí se insere a ideia de uma identidade terceirizada.
Portanto, como objetivo, se pretende analisar como o sujeito branco exerce
sobre a sociedade um padrão na construção de projetos de vida, que separam os
planos da vida do sujeito. Isso significa que não há liberdade para ser o que se quer,
mas o que se pode, dentro deste plano existem inúmeras impossibilidades de ser.
Ser negro, ser indígena, ser homossexual, ser diferente e ser o outro são manifesta-
ções produzidas como ausentes (SANTOS, 2002). Ausentes pois não figuram como
atores políticos e sociais, tampouco tem suas próprias formas-de-vida respeitadas.
Como metodologia segue o debate epistemológico e teórico fundamentado por am-
pla bibliografia, antropológica, sociológica, filosófica, linguística e historiográfica.

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
DIFERENÇA ENTRE PROJETO DE VIDA E PROJETO-DE-VIDA
Como hipóteses principais o estudo aponta que ao adotar um projeto de vida
(separado da própria vida) voltado para a forma branca europeia de vida, o coloni-
zado, segundo Frantz Fanon, recalca o próprio ser. O ser engloba “a vida psíquica
inconsciente tal qual podemos parcialmente conhecer, em particular sob a forma
do recalcado e do recalcante, na medida em que estes elementos participam ati-
vamente da organização própria de cada individualidade psíquica” (FANON, 2008,
p.81).
Isso significa que quando a criança de cor preta é mandada para a escola é en-
sinada a ser negra perante o branco, isto é, passa a desejar ser branco. As novas
referências, seja em livros didáticos, leis de inclusão como lei 11.645/2008, não são
suficientes para mudar este quadro. A criança negra e indígena sofre o mesmo de-
safio, de mudar e permanecer, se construir com base em referências comunitárias
próprias ou ceder às objetificação da Sociedade:

[...] identifica-se com o explorador, com o civilizador, com o bran-


co que traz a verdade aos selvagens, uma verdade toda branca.
Há identificação, isto é, o jovem negro adota subjetivamente
uma atitude de branco. Ele recarrega o herói, que é branco, com
toda a sua agressividade [...] Pouco a pouco se forma e se crista-
liza no jovem [...] uma atitude, um hábito de pensar e perceber,
que são essencialmente brancos (FANON, 2008, p.132)

Quanto mais o preto e o indígena buscar uma inserção na Sociedade, pode ser
que ele esteja se distanciando de suas comunidades, culturais, religiosas e de afeto.
Sobre comunidade e sociedade podemos falar da separação ou junção com a vida,
como já discutido sobre formas e projetos-de- vida. A comunidade é “compreen-
dida como uma vida real e orgânica – é então a essência da comunidade”. Essa
distinção linguística entre sociedade e comunidade se funda na separação ou jun-
ção dos aspectos de vontade humana. Como atesta o Sociólogo Ferdinand Tonnies
, em sua concepção de comunidade, como vida comum, verdadeira e durável. Em
contrapartida, a sociedade apresenta uma ilusão de vida, “um agregado mecânico
e artificial” (1973, p.98) A sociedade, por sua vez, é “como uma representação vir-
tual e mecânica” (TONNIES, 1973, p.96). De forma radical seria dizer que o negro e
o índio se inserem numa Sociedade branca, quando saem de suas comunidades.
“Tudo que é confiante, íntimo, que vive exclusivamente junto, é compreendido
como a vida em comunidade [...] A sociedade é o que é público, é o mundo. Ao con-
trário, o homem se encontra em comunidade com o seus desde o nascimento [...]
Entra na sociedade como em terra estrangeira” (TONNIES, 1973, p.97). A comu-
nidade remete à vida entre os que possuem projeto em comum. A sociedade é a
coexistência conflituosa entre tais projetos, onde a sociedade branca subalterniza
as minorias historicamente oprimidas. “Em um sentido geral poder-se-á falar de
uma comunidade que engloba toda humanidade [...], mas a sociedade humana é

660 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
compreendida como uma pura justaposição de indivíduos independentes uns dos
outros” (TONNIES, 1973, p.97).
Beatriz Nascimento (2019), no texto A mulher negra no mercado de trabalho, es-
creve sobre como o ideal de família branca afeta o lugar da mulher negra. Para en-
tender a situação da mulher negra no mercado de trabalho recorre à história. Atra-
vés de um plano teórico que revela a hierarquia racial brasileira colonial designa os
locais de poder da mulher negra. Inicialmente fala da polaridade de poder colonial
onde o Homem branco dono de terras e escravos estava de um lado como figura de
potência e a mulher negra no outro pólo, como impotente. A mulher branca, espo-
sa, ociosa em relação ao trabalho. A mulher negra é unidade produtiva de trabalho
e de novos escravos. Na modernização, 1930, a população preta ficou de fora do
desenvolvimento econômico, segundo a autora, por critérios de seleção racial: A
mulher negra, [...] se cristaliza [...] como negra e como mulher, se vê, deste modo,
ocupando os espaços e os papéis que lhe foram atribuídos desde a escravidão.
(NASCIMENTO, 2019, p.104) A “herança escravocrata” deixou para suas herdei-
ras “Seu papel como trabalhadora”. Portanto pode se concluir que os projetos de
vida da mulher negra, designados pela Sociedade, são perpassados pelo trabalho
doméstico e pela subalternização. Desde os mais longínquos exemplos empíricos
que possamos resgatar na história a mulher negra como empregada doméstica
representa uma materialização do homoeconomicus, empresária de si mesma.
Se pensarmos dentro do paradigma emancipador da educação proporcionada
pela Sociedade observamos que a população, sobretudo as mulheres periféricas
indígenas e negras fica em desvantagem na questão do acesso e permanência em
cursos superiores. Ao mesmo tempo a economia do período sofre com os rearran-
jos mundiais do capitalismo, êxodo rural e industrialização, colocando toda popu-
lação de classe baixa dentro do arranjo do trabalho. Esse movimento econômi-
co trouxe as populações do campo para trabalharem como servo dos brancos nas
grandes cidades. As mulheres negras são excluídas do processo de inclusão educa-
cional e profissional, marcado pelo patrimonialismo machista, possui um critério
racial quanto a seleção para vagas de emprego. A inserção no mercado de trabalho
se dá tanto pela qualificação educacional quanto pelas relações sociais. Nesse caso
as relações sociais que se desenharam na história do Brasil contemporâneo legou
para as populações negras e indígenas um local de subalternização no arranjo so-
cial do trabalho.
Lélia Gonzales nos apresenta uma análise teórica da formação histórico-cultural
do Brasil, considerando o passado colonial e todo arcabouço cultural e imaginários
herdados com o período. Lélia traz novos conceitos caros à identificação negra com
o imaginário de formação do Brasil. Améfrica Ladina, mistura África, América e
o conceito de Ladino, que historicamente está ligado aos escravos espertos que
promoviam sua própria emancipação do sistema escravista. “Pretos e pardos são
os ladinosamefricanos” (GONZALES, 1988, p.69). Se fizermos emergir a imagem do
Ladino nos projetos-de-vida, ressaltaremos as marcas pretas e indígenas na cons-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 661


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
trução das identidade. Ressaltar a marca africana nas línguas coloniais, similar em
toda América, no caso do Brasil deriva uma nova variação linguística o “pretoguês”.
As manifestações da identidade preta nacional são reduzidas ao estado de “recal-
cado por classificações eurocêntricas do tipo “cultura popular”, “folclore nacional”
e “apologia ao crime como é o rap”, que minimizam a importância da contribui-
ção negra. Outra hipótese deste ensaio filosófico sociológico é a possibilidade de
um projeto-de-vida que coloque como objetivo principal a manutenção do próprio
projeto, que é a emancipação do mercado capitalista e cultural branco.
A revisão teórica apontou que a economia opera como um instrumento de cap-
tura da vida, conforme Michel Foucault e pode agir como dispositivo de segurança.
Isto é mantém as populações subalternizadas ocupadas com seus projetos de so-
brevivência, obtendo alta margem de governo. Foucault (2008a) estabelece uma
diferenciação instrumentos de disciplina e dispositivo de segurança. A disciplina é
centrípeta, ou seja, atrai os indivíduos para o centro, como a educação e a doutri-
nação através do projeto de vida único. Os dispositivos de segurança afastam os
indivíduos do núcleo da sociedade por isso são forças centrífugas, como a econo-
mia da dívida. A disciplina busca exercer o controle sobre os detalhes enquanto
os dispositivos de segurança tem uma margem de tolerância ao controle. A dívida
nesse sentido tem uma margem de tolerância, como se evidência na autonomia
em relação ao fornecimento de água, energia e esgoto nas comunidades periféri-
cas, chamados de gatos.
A dívida instrumento privilegiado de controle do tempo e da força de trabalho
em que a pessoa é empresária de si mesma, conforme Maurizio Lazzarato. Essa
economia, conforme a ciência histórica foi implantada por um sistema colonial de
produção. A governamentalidade constitui um conjunto de técnicas de governo
que busca dar sentido e coerência à tríade Estado, economia e sociedade. Os três
passam a atuar em conformidade com o capital. Nas análises podemos perceber a
passagem de uma lógica liberal que deixa a máxima de “governar menos possível”
para “[...] visar a construção do “Estado social” - um Estado econômico a serviço da
socialização da valorização” (LAZZARATO, 2017, p.96). O projeto de vida terceiri-
zado ocorre, portanto, quando a pessoa renuncia a suas aspirações para se manter
mediante às políticas de fome,
dívida e morte, mas também para servir ao arranjo social do trabalho. Isso im-
plica pensar que mesmo que essas populações intentem a inserção, são tidas como
invariáveis. Em conclusão o projeto de vida maior, destinados às populações peri-
féricas, quilombolas, pretas e indígenas utiliza do aparato colonial social, estereó-
tipos econômicos como forma de inserção na divisão social do trabalhoIsso implica
na construção de projetos de vida voltados a uma forma de vida nua, como sugere
Giorgio Agamben. Neste sentido a pessoa negra tem sido empresária de si mesma,
compelido a assumir o projeto terceirizado de vida.

662 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
RAÍZES HISTÓRICAS DO PROBLEMA
Com o objetivo as raízes históricas do local privilegiado do sujeito branco e sua
assinatura histórica, que exerce um padrão de construção de identidades sobre a
sociedade. O padrão na construção de projetos de vida, que separam os planos da
vida do sujeito. Facilmente podemos ir até à escravidão e ao aldeamento dos pre-
tos, quilombolas e indígenas. Se enxergamos os documentos históricos como pon-
tos de partida da colonialidade e estabelecermos o contemporâneo como ponto de
chegada, veremos a uma continuidade histórica, genealogia do racismo.
A sociedade brasileira desde o tempo colonial e até mesmo em sua primeira
Constituição político, “pós-colonial”, versou sobre o local privilegiado do Bran-
co em relação ao preto e ao índio. Quando no artigo 8. “Suspende-os o exercício
dos Direitos Políticos [...] I. Por incapacidade physica, ou moral. II. Por Sentença
condemnatoria a prisão, ou degredo, emquanto durarem os seus efeitos” (BRA-
SIL, 1824). Podemos verificar a continuidade de uma colonização dos costumes, o
efeito de retirar direitos políticos poderia ser usado com índios e pretos, pois eram
enquadrados no primeiro ponto do artigo. Eram reprimidos os modos de ser, viver,
rezar, comer, sentir e saber das populações incapazes. Como incapazes deveriam se
desenvolver. Mesmo que com estratégias distintas as populações negras e indíge-
nas foram constantemente empurradas para a inserção no processo de divisão so-
cial do trabalho. Foram os “[...] categorizados como os explorados, os dominados,
os descriminados, são exatamente os membros das raças, das etnias, ou das nações
que foram categorizadas (QUIJANO, 1992, p.12)1. Portanto, mais do que histórias,
o período colonial nos legou uma relação de mundo única:

que pensa e organiza a totalidade do tempo e do espaçoo para


toda a humanidade do ponto de vista de sua própria experiência,
colocando sua especificidade histórico-cultural como padrão de
referência superior e universal. Mas é ainda mais que isso. Este
metarrelato da modernidade é um dispositivo de conhecimento
colonial e imperial em que se articula essa totalidade de povos,
tempo e espaço como parte da organização colonial/imperial
do mundo. Uma forma de organização e de ser da sociedade
transforma-se mediante este dispositivo colonizador do conhe-
cimento na forma “normal” do ser humano e da sociedade. As
outras formas de ser, as outras formas de organização da so-
ciedade, as outras formas de conhecimento, são transformadas
não só em diferentes, mas em carentes, arcaicas, primitivas, tra-
dicionais, pré-modernas. (LANDER, 2005, p.13)

Portanto assim como os indígenas, as populações quilombolas sofrem com a


produção de sua forma-de-vida como “arcaicas, primitivas, tradicionais, pré-moder-
nas” (LANDER, 2005, p.13).

1 [...]“los explotados”, de los dominados, de los discriminados, son exactamente los miembros
de las "razas", de las "etnias", o de las "naciones" en que fueron categorizadas” (QUIJANO, 1992, p.12).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 663


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Porquanto, numa leitura subjetivista econômica, se percebe que são manifesta-
ções de um viver comunitário e não voltado à sociedade.
Durante os governos Republicanos, nas primeiras décadas pós abolição da es-
cravidão, não houve nenhuma política pública de reparação em relação às novas
gerações que se viam livres num território racista. As manifestações não brancas,
isto é religiosidades, musicalidades, gastronomia, ciência e conhecimentos negros
e indígenas eram reprimidos. No decreto nº 847, de 11 de Outubro de 1890, espe-
cificadamente no Capítulo XIII que versa sobre os Vadios e Capoeiras, se observa
perseguição cultural às manifestações pretas. Eram punidos com até seis meses
de prisão quem “[...] fizesse nas ruas e praças públicas exercícios de agilidade e
destreza corporal conhecidos pela denominação capoeiragem; andar em correrias,
[...] provocando tumultos ou desordens, [...] Aos chefes, ou cabeças, se imporá a
pena em dobro (BRASIL, 1890). Caso houvesse reincidência o capoeira era preso
“por um a tres annos, a colonias penaes que se fundarem em ilhas maritimas, ou
nas fronteiras do territorio nacional, podendo para esse fim ser aproveitados os
presidios militares existentes” (BRASIL, 1890, art.400). Essas colônias exploravam
o trabalho e a mão de obra dos internos.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) é uma pesquisa feita pelo
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em uma amostra de domicílios
brasileiros. À seguir apresente os dados disponíveis tendo como amostragem as
coletas do 2º trimestre de cada ano. O gráfico suprime o número total de entre-
vistados, que teve o máximo de 200.869 pessoas entrevistadas. Vemos através da
amostragem uma ascensão continua do número de auto declarados negros.

FIGURA 1: PESSOAS ENTREVISTADAS ENTRE 2012 – 2020 SOBRE RAÇA

Fonte: IBGE – Gráfico elaborado pelo autor.


No segundo gráfico é perceptível à variação em relação à auto afirmação como
preto nas pesquisas oficiais do IBGE, provavelmente acréscimo que se deve por
conta das políticas públicas elaboradas pela Sociedade. A auto afirmação passou
a ser um quesito para acesso em políticas educacionais e de seleção para o fun-
cionalismo público. Nota-se que desde o segundo trimestre de 2012 o número de
pessoas que se autodeclaravam pretas num universo de 197.502 entrevistados
era de 13.828 pessoas. Certamente as políticas públicas contribuíram para este
aumento, contudo, é possível ver um déficit em relação ao intervalo 2018-2019. Do
total de entrevistados, 210.869, no segundo trimestre de 2020, foram 18.235 que
responderam, provocando uma diminuição de 0,05% num intervalo de doze meses.

CONCLUSÕES
A diminuição de 0,05% é expressiva se levarmos em consideração o atual con-
texto político e social, no ano de 2020. As políticas públicas étnico raciais e de
afirmação identitária estão atualmente fora dos programas de governo devido as
inclinações ideológicas dos dirigentes. Essa diminuição pode representar também
uma variação típica, contudo é expressivo, como se interrompeu uma série de au-
mentos no número de pessoas que se auto declaravam negras nas pesquisas de
amostra por domicílio (PNAD) do (IBGE).
Mesmo que haja um aumento de pessoas que auto se declarem pretas, as co-
munidade negras devem se indagar, que referencias essas pessoas têm carregado
consigo? São referências que conduzem à um projeto-de-vida preto? Ou a consci-
ência de cor está chegando mediante a estética que vem sendo amplamente difun-
dida nos meios de consumo e na mídia, videoclipes, novelas e empregos políticos.
A urgência quilombola não é para se tornar político, mas para ser atendido por polí-
ticas. Não é por ostentar riquezas, mas pela conquista da emancipação econômica.
Não deve ser por se tornar princesa ou rainha, mas quebrar os estereótipos ter-
ceiro-mundistas através do respeito e da construção de autenticas comunidades
pretas. A sociedade tem tomado das populações pretas suas próprias vidas, isso é,
suas subjetividades. O Racismo da Sociedade coloniza os projetos, sonhos e mentes
das pessoas incutindo nelas objetivos, meios, justificativas, referências de vida que
não correspondem à sua própria realidade socio histórica como negro, quilombola,
índio, homossexual ou outra manifestação identitária interseccionada pelo colo-
nialismo.
O projeto-de-vida-preta, voltado às comunidades, faz retornar do passado ao
presente as referências históricas africanas e nativo americanas, manifestações
outras, quanto ao gênero, a religiosidade, a orientação sexual e principalmente
em relação à economia; Gera consciência dos problemas-de-vida que atingem sua
comunidade; Fortalece às redes de cuidado entre comunitários; Possui um meio-
-de-vida que escapa à regulação (artesanato, arte, conhecimento acadêmico, es-
portes, culinárias, agricultura) e proporciona emancipação; Possui uma forte jus-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 665


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
tificação-de-vida que é fazer valer a restituição histórica das violências perpetradas
no passado e possui um Objetivo- de-vida que é manter operante a forma-de-vida-
-preta. O mercado de trabalho tem sido produtor de subjetividades escravistas e
escravizadas no contemporâneo, isto é, nos projetos de vida não cabem os sonhos
e sentimentos da pessoa. A pessoa que planeja sua própria jornada de vida encon-
tra satisfação ao ver em processo seus projetos-de-vida, sobretudo quando em
consonância com projetos-de-comunidade.
O objetivo central do projeto-de-vida-preta deve ser a manutenção da própria
forma-de- vida, para tanto é necessário a emancipação econômica do “mundo
formal”, é necessário se aquilombar. Não há possibilidade de formar um Estado
jurídico constitucional preto, nem se deve procurar a postulação ou a destruição
do mundo do branco, mas que ele permaneça destituído de poder, inoperante,
anulado de sua potência capturadora e regradora da vida preta e nativa. Uma ver-
são radical e militante do “Outsider Within” de Patricia Hill Collins, que explora
a potência do estar sem ser. Estar no mundo branco, como se não. O que é mais
importante? Uma forte relação com a natureza ou com a sociedade? Qual o futuro
que queremos? As populações negras vão se entregar a sociedade branca? Ou
vão se aquilombar, formando novas comunidades de moradia, afeto, educação e
economia? Oque restará depois dos empoderamentos estéticos? O presente que
vivemos é o futuro que teremos.

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Paulo: Editora 34, 2017

AUTORIA
Gabriel Chaves Amorim2
CAPES/PROSUC, PPGCS Unisinos, Coletivo Indígena
E-mail: gcamorim@edu.unisinos.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7454-7867
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2316175296685346

Maira Damasceno
CAPES/PROSUC, PPGH Unisinos, Coletivo Indígena
E-mail: maira_dms@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2383-9883
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4704076171769241

2 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento


de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

668 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
PENSAMENTO SOCIAL BRASILEIRO:
BRASILIDADE MESTIÇA EM COSTA E MUNANGA
SIMPÓSIO TEMÁTICO
Niara O. S. Aureliano1
Nara M.C. Santana2

RESUMO
A proposta deste trabalho é fazer uma análise do conceito de brasilidade mesti-
ça nas produções do antropólogo Kabengele Munanga e do sociólogo Sérgio Costa.
A partir de uma análise qualitativa, busca-se relacionar os pontos levantados pe-
los autores acerca da ideologia da mestiçagem, utilizada como base fundadora de
um Estado Nacional, dominante principalmente entre os anos 1930 e 1970, e que
continua viva no imaginário nacional a partir da afirmação da mestiçagem como ca-
racterística fundamental da identidade nacional brasileira. Procuramos apresentar
desde as propostas destes célebres autores, ideias do pensamento social brasileiro
que reúnem conhecimentos multidisciplinares acerca da formação da sociedade
brasileira e a questão racial. A mitologia da brasilidade mestiça, canonizada mais
enfaticamente por Gilberto Freyre, é privilegiada aqui como fundamental para
compreensão das relações raciais no Brasil, dado que o movimento de Freyre, com
todas as críticas que temos ao autor, organiza uma mudança do conceito bioló-
gico de raça para o conceito cultural de raça, dentro da lógica do culturalismo.
Analisamos a partir de Munanga a sociedade caracterizada unirracial e unicultural
brasileira, construída segundo o modelo cultural e racial branco, que, com a ideia
de uma etnia nacional mestiça, firmou-se com a supressão continuada e violenta
de identidades étnicas neste território. Para entender a delineação da ideologia
nacional, passamos por breve consideração do estudo das teorias racialistas, que
perduraram no Brasil até a década de 1930 até o aprofundamento de seu caráter
anacrônico. Nosso ponto principal é a propagação da ideologia da mestiçagem,
com a obra “Casa Grande & Senzala” (1932) de Freyre, e a transformação desta em
ideologia estatal por Getúlio Vargas, fortalecida também pelos governos militares,
a partir da ótica dos autores supracitados. A intenção é ampliar estes conhecimen-
tos, que são determinantes para a compreensão da realidade racial no Brasil, dado

1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação stricto sensu, mestrado em Relações Étnico-


-Raciais (PPRER) no Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca (CEFET-RJ) sob
orientação da Professora Drª Nara Maria Carlos de Santana. Jornalista de formação, pela Universidade
Federal de Alagoas (UFAL).
2 Professora EBTT da graduação em Turismo do Centro Federal de Educação Tecnológica Celso
Suckow da Fonseca – CEFET RJ – Campus Petrópolis e dos mestrados em Relações Étnico-raciais e de
Ensino de Filosofia desta instituição.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 669


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
que o debate de raça no sentido de avanço para o fortalecimento das identidades
da população não-branca foi amputado do cenário nacional. Além de resgatar o
debate sobre o mito da democracia racial, aspira-se a contribuir com a discussão
sobre mestiçagem de forma a engrandecer o arcabouço teórico e prático de uma
construção militante para o povo negro em diáspora. A partir de Costa, entende-
mos que para o autor a brasilidade mestiça constitui uma identidade mestiça não
étnica, que foi capaz de fortalecer a compreensão de harmoniosa convivência en-
tre as raças em um país sem racismo e impedir, do mesmo modo, o debate sobre
racismo nas camadas da sociedade brasileira. Encerrando que o brasileiro visa o
branqueamento, ou seja, que a ideologia do branqueamento permanece forte no
imaginário da população do país, apontamos que os negros e os descendentes dos
povos originários permanecem sendo os outros da cultura nacional, e que não há,
como aponta Munanga, a tomada de consciência de uma etnia brasileira mestiça,
dado que majoritária parte do povo brasileiro intenta o branqueamento.

Palavras chave: mestiçagem; brasilidade mestiça; raça; identidade.

INTRODUÇÃO
No presente trabalho será privilegiado o estudo da área chamada pensamen-
to social brasileiro que reúne conhecimentos multidisciplinares acerca das tradi-
ções intelectuais, culturais, políticas e sociais brasileiras, e compreende além da
antropologia, ciência política e a sociologia, as três disciplinas básicas das ciências
sociais, também a teoria literária, história, filosofia política e outras disciplinas.
Considerada uma ampliação recente, que torna a área mais flexível, o pensamento
social brasileiro tem se orientado de forma a compreender a formação da socieda-
de brasileira em várias dimensões do processo, buscando entender como se deu
a construção do Estado-Nação, a sua modernização, a cultura política e a cidada-
nia no país, além das produções e produtores intelectuais e artísticos, e como se
deu a construção da própria cultura como sistema de valores no Brasil (BOTELHO;
SCHWARCZ. 2011).
Dito isto, é de conhecimento em de todas as esferas sociais, inclusive no senso
comum, que na discussão sobre o pensamento social brasileiro a mitologia da bra-
silidade mestiça foi canonizada mais enfaticamente pelo pernambucano Gilberto
Freyre, autor de Casa Grande & Senzala. Tratava- se de um processo de redefinição
da identidade nacional brasileira nos anos 1930. Dado que a construção da nação
foi pensada desde fins do século XIX por intelectuais a partir do determinismo bio-
lógico, as teorias racialistas, o movimento realizado por Freyre organizava as bases
de uma outra ideologia nacional, a ideologia da mestiçagem; a brasilidade mestiça.
Esta brasilidade mestiça seria vista como uma unidade da diversidade, pré-re-
quisito da constituição de uma comunidade política nacional, sendo em sua trans-

670 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
posição para a política capaz de imaginar um futuro próspero para os membros
da nação como objetivo universal (Costa, 2002, p. 42). Este cânone tinha como
premissa a homogeneidade do povo brasileiro e com ela a ausência de conflitos,
inclusive raciais.
Com o passar dos anos, as análises sobre o tema se tornaram cada vez mais
dissonantes. O autor de Casa Grande & Senzala é criticado pelo teor desta que é
tida como grande legado de sua obra, mas principalmente pelo propagado mito
das três raças, que é assim chamado pelo sociólogo Florestan Fernandes, em que
no imaginário popular o país é entendido como um lugar livre de racismo devido ao
alto grau de mestiçagem. O tema, que não é novo, é largamente discutido no cam-
po das ciências sociais e principalmente no campo dos estudos raciais no Brasil.
Por isso, longe de fazer uma releitura do trabalho de Freyre, das posições polí-
tico- intelectuais do autor, o presente trabalho procura fazer uma análise de como
é visto o conceito de
brasilidade mestiça em duas obras de pensadores sociais brasileiros: o antropó-
logo congolês- brasileiro Kabengele Munanga e o sociólogo Sérgio Costa; a cons-
trução da ideologia da mestiçagem e os pontos de vista dos autores sobre a pro-
blemática. Busca-se fazer uma análise qualitativa de trabalhos como Rediscutindo
a Mestiçagem no Brasil, de Munanga (1999) e A Construção Sociológica da Raça no
Brasil, de Costa (2002), com auxílio de outros textos, revisitando seus conteúdos
acerca da ideologia da mestiçagem que, mesmo não exercendo mais o caráter po-
lítico de ideologia dominante como em meados do século passado, não está, nem
de longe, apagada ou eliminada do contexto nacional.

RAÇA E CULTURA
O que interessa a Costa (2002) no debate sobre a construção sociológica da
raça no país seriam dois pontos de partida para sua própria análise: distinguir os
trabalhos que focam no diagnóstico das desigualdades raciais dos trabalhos que fa-
zem da ideia de raça uma categoria geral de análise da sociedade brasileira (2002,
p. 39). Costa foca neste segundo ponto em sua análise, utilizando uma análise do
trabalho de Antonio Sergio Guimarães.
Para compreender este ponto de vista são necessários alguns apontamentos
sobre o momento teórico, por assim dizer, que se vivia no país quando daquela
redefinição feita por Freyre a partir dos anos 1930. Para Guimarães, a disputa en-
tre o modelo de constituição nacional entre França e Alemanha é determinante
no modelo de constituição da identidade nacional por aqui. Houve um esforço, de
valorização do modelo francês de constituição nacional, de se construir uma identi-
dade nacional integrada não pelas origens, mas pelo contrato, diferente do nacio-
nalismo alemão que prezava pelas origens, de se criar uma identidade nacional de
corte étnico-racial. Costa (2002, p. 41) aponta que

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 671


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Contudo, para Guimarães a idéia de nação que acaba prevale-
cendo, historicamente, na França, é ambígua, preservando-se
a referência implícita a uma “raça histórica” construída a partir
“de memórias coletivas, de experiências históricas e do culto aos
ancestrais”.

O movimento de Freyre organiza uma mudança do conceito biológico de raça


para o conceito cultural de raça, dentro da lógica do culturalismo. É importante
salientar que, como diz Costa (2002), há um rompimento do autor com o biologi-
cismo, não com a ideia de raça, já que o pernambucano continua a defender o em-
branquecimento da sociedade brasileira, posto que, em verdade, seria ou deveria
ser esta raça nacional uma extensão da civilização europeia. Voltando ao século
XIX, a partir de 1890, Franz Boas, antropólogo alemão, começa a desenvolver seu
trabalho, que terá profunda influência na obra de Freyre, marcando esta alteração
de lugar entre raça e cultura.
Para Costa (2002, p. 43), é evidente que esta reconfiguração da nação brasileira
a partir de 1930 com os estudos de Freyre indicam a construção de uma identidade
voltada ao futuro, característica própria do iluminismo francês.
Neste ponto, é preciso resgatar o que nos aponta Munanga (1999) em sua dis-
cussão sobre mestiçagem. O autor levanta a discussão sobre etnia nacional, que
teria tomado toda América Latina dado que de tão alto o nível de mestiçagem nos
países dessa região era impossível determinar exatamente o status racial da maio-
ria da população. Munanga (1999, p. 90) salienta que

A mestiçagem, como articulada no pensamento social brasileiro


entre o fim do século XIX e meados deste século, seja na sua
forma biológica (miscigenação), seja na sua forma cultural (sin-
cretismo cultural) desembocaria em uma sociedade unirracial e
unicultural. Uma tal sociedade seria construída segundo o mo-
delo racial e cultural branco ao qual deveriam ser assimiladas
todas as outras raças e suas respectivas produções culturais.

Assim sendo, essa ideia de uma nova etnia nacional era, para o autor, a tra-
dução de uma unidade política resultado de um processo continuado e violento
por meio de supressão de identidades étnicas (Munanga, 1999, p. 100). Para ele,
ainda, o surgimento desta etnia brasileira passava pela indiferenciação entre várias
formas de mestiçagem.
O reconhecimento do caráter assimilacionista da ideologia nacional é comun-
gado por Costa e Munanga em seus trabalhos. Trata-se de um modelo sincrético,
não democrático, a partir de pressão política dos dirigentes, a quem o chamado
mito da democracia racial servia, aponta Munanga (1999). Pensada a partir de uma
visão eurocêntrica, apesar da resistência cultural dos povos que aqui viviam, esta
ideologia nacional visava o branqueamento, não de fato a constituição de uma
raça mestiça autenticamente brasileira, ou seja, a miscigenação tinha o propósito

672 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
de branquear, e o mestiço era visto como uma ponte transcendente para o cauca-
siano.
É dessa forma que Costa enfatiza que a ideologia nacional no Brasil não se trata
de uma ideologia racial, mas de uma ideologia nacional não-racial. Costa diz que
(2002, p. 43-44)

Não se trata, por isso, da construção de uma ideologia racial


como afirma Guimarães, mas de uma ideologia nacional não
racial, no sentido preciso de que “evita” a raça (Davis, 1999), en-
quanto critério legítimo de adscrição social – a meta-raça a que
se refere Freyre ou a professada “unidade da raça” do discurso
varguista (Carneiro, 1990:35) viram uma metáfora da naciona-
lidade, não são, portanto, conceitos raciais, mas não-raciais, a
despeito de se valerem da semântica da raça. Isto é, raça só faz
sentido no corpo de uma ideologia que diferencia e segmenta
os grupos humanos conforme adscrições naturais, um discurso
que rompe com tais distinções é um discurso não racial, o que
não significa, obviamente, que se trate de uma ideologia anti-ra-
cista ou não racista, ou mesmo que ela seja neutra com relação
à permanência das desigualdades raciais. Enfatize- se, contudo,
que não se trata de uma ideologia racial, mas de uma ideologia
nacional, com múltiplas dimensões.

A CONSTRUÇÃO DA IDEOLOGIA NACIONAL DA MESTIÇAGEM


Entendido esse posicionamento de Costa (2002), é válido nos aprofundarmos
em como se deu a construção da mestiçagem enquanto ideologia nacional. Para
Costa (2001, p.144), dos anos 1930 a 1970 a ideologia da mestiçagem foi dominan-
te no cenário de construção da ideologia nacional, sendo Freyre seu mais famoso
propagador intelectual; foi transformada em ideologia estatal por Vargas e conti-
nuou sendo utilizada politicamente pelos governos militares brasileiros.
Até os anos 1930 as teorias racialistas estiveram em vigor, mas se tornando
obsoletas, foram usadas por Freyre como núcleo da sua defesa da mestiçagem,
defendida até então por intelectuais do século XIX, como Silvio Romero (1851-
1914)3, como modo de branquear a população de forma a permitir a constituição
de uma nação. Para Freyre, segundo Costa (2001, p. 146), a nação brasileira teria
sido construída a partir de três grupos, negros, índios e brancos, no qual cada grupo
teria dado sua “contribuição” para a constituição dessa nação, constituindo a tal
“brasileiridade”, a brasilidade que aqui falamos. Ele aponta que para o intelectual
pernambucano, a “contribuição” do português, por exemplo, seria ter transmitido

3 3 Silvio Romero (1851 – 1914) nasceu em Sergipe, estudou na Faculdade de Direito de Re-
cife (PE) e se estabeleceu no Rio de Janeiro. Foi crítico literário e um homem de sciencia da geração
de 1870, que discutia raça e nacionalidade a partir do discurso racialista. Romero foi propagador do
racismo científico no Brasil, na defesa da mestiçagem para alcançar o branqueamento da população,
fator que possibilitaria a construção da nação brasileira. Afiliado à Escola de Le Play. Sua maior obra foi
“História da Literatura Brasileira” (1888).

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 673


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
para o brasileiro a miscibilidade, mobilidade e adaptabilidade climática. A carac-
terística própria do português de se fundir biológica, social e culturalmente teria
papel central no que é a brasilidade (Costa, 2001, p. 147). “Conforme Freyre, os
portugueses cultivavam uma predileção arquetípica pela mulher moura de pele
morena, transferida automaticamente para a mulher indígena brasileira.”; identifi-
cando ainda no colonizador um empenho em fazer da colônia brasileira uma nação
sem fronteiras étnicas intransponíveis.

Do elemento indígena, Freyre destaca sobretudo a contribuição


das índias, as quais teriam, ao lado de muitas especialidades
culinárias, legado à cultura brasileira seu sentido de limpeza,
sua disposição para o trabalho e sua estabilidade emocional. Do
indígena do sexo masculino haveria, ao contrário, de se destacar
antes de tudo as contribuições negativas, quais sejam, a indisci-
plina, a compulsividade e o desrespeito pela propriedade priva-
da. Dos negros, Freyre ressalta a alegria vital, a flexibilidade e o
“jogo de cintura”, segundo ele, marcas inconfundíveis do caráter
brasileiro. (COSTA, 2001, p. 147).

É a obra Casa Grande & Senzala considerada o “(...) momento fundamental do


movimento de “construção narrativa” da nação brasileira” (Costa, 2001, p. 146). A
brasilidade mestiça, orgânica e unitária, politicamente encontra seu momento na
campanha de nacionalização varguista, na utilização de virulentos discursos nacio-
nalistas visando à superação dos chamados quistos étnicos, indignando-se com os
imigrantes que descaracterizavam o direito de nacionalidade brasileira ao não se
desfazer de vínculos com a pátria de seus antepassados (Costa, 2001, p. 147- 148).
Munanga (1999, p. 101) completa que embora houvesse resistência cultural
tanto de descendentes de nativos, quanto de descendentes de escravizados e ou-
tros que vieram para estas terras, as suas identidades teriam sido inibidas de serem
exibidas em oposição à cultura nacional, integrando estas diferenças como símbolo
da identidade nacional... Verdadeiros exemplos de nossa pluralidade.
A ideologia da mestiçagem para Costa (2001, p.149) preservaria até 1970 carac-
terísticas inalteradas como:

a. A intervenção estatal no campo da cultura baseia-se


num conceito essencialista de brasilidade, através do qual algu-
mas formas culturais são promovidas, enquanto outras manifes-
tações, igualmente existentes, são sistematicamente desconsi-
deradas.
b. Brasilidade se apresenta como uma identidade mestiça
não étnica, capaz de assimilar todas as outras representações
étnicas.
c. A idéia de raça é desqualificada enquanto instrumento
dos discursos políticos públicos, ainda que continue orientando
a ação e as hierarquizações estabelecidas pelos agentes sociais,

674 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
cotidianamente. Assim, se constitui o mito da democracia racial,
componente indispensável da ideologia da mestiçagem.

Tem-se então o mito da democracia racial: da mistura biológica e cultural cons-


titutiva do país, todo brasileiro é mestiço; no Brasil há harmoniosa convivência en-
tre todas as camadas sociais e grupos étnicos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
A pergunta: há de fato uma brasilidade mestiça, uma cultura brasileira mesti-
ça? A resposta: o brasileiro é branco, ou visa o branqueamento. O negro e o índio
seriam os outros na cultura nacional. O estupro de multidões de mulheres nativas
e africanas sequestradas e aqui escravizadas por alguns homens brancos, como
apontou Abdias do Nascimento, resgatado em Munanga (1999),
dá origem ao tipo de sangue misto. No entanto, a miscigenação é uma ponte
que pretende fazer com que o brasileiro clareie, numa tentativa de se aproximar
cada vez mais da cultura e da constituição nacional eurocêntrica.
A questão da brasilidade mestiça, na verdade, é estar colocada, como apontou
Costa (2001), como uma identidade mestiça não étnica, assimilando as represen-
tações que são de fato étnicas. Entendendo também como um movimento de viés
eurocêntrico, no que diz respeito ao momento vivido nos anos 1930, Munanga
(1999, p. 80) nos diz que o sociólogo pernambucano “ao valorizar a dissolução das
diferenças, em síntese, Freyre postulava novas expressões e formas cuja principal
resultante iria melhor caracterizar o pertencimento ao mundo ocidental.”.
O que faz, na verdade, a brasilidade mestiça é de comum acordo entre os dois
cientistas sociais: retirar o debate da raça do debate público. Costa (2002, p. 45)
aponta, por exemplo, que essa circunstância teve resultados ambíguos, como des-
legitimar o discurso racista biologicista e manter intacto o racismo nas estruturas
e relações raciais. A partir de 1970, contudo, Munanga (1999, p. 90) conta que
“surgem vozes discordantes, oriundas principalmente do mundo afro- brasileiro,
propondo a construção de uma democracia verdadeiramente plurirracial e pluri-
étnica.”. Costa (2002, p. 45) exemplifica: a reconstrução de etnias (como a quilom-
bola), a recuperação de uma etnicidade híbrida pelos descendentes de imigrantes,
constrangidos durante a Era Vargas a não fazerem oposição à identidade unitária
de nação e a autoafirmação da identidade negra são fundamentais para superar o
racismo brasileiro de caráter assimilacionista.
Frente à tal identidade mestiça, na realidade atual, o branco brasileiro orgu-
lhosamente ressaltaria suas raízes europeias; o negro, ancestralmente apagado,
procuraria em África enquanto continente suas raízes enquanto o índio negaria o
Brasil de certa forma, procurando o fortalecimento de suas tribos tradicionais (Mu-
nanga, 1999). Munanga é categórico (1999, p. 101): “Nenhuma voz dos mestiços

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 675


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
brasileiros constitutivos da nova etnia brasileira contou algo sobre o caminho por
eles percorrido até a tomada de sua consciência enquanto autênticos brasileiros”.
Encerra Munanga (1999, p. 108) sobre a identidade, a brasilidade mestiça:

Por isso, vejo difícil a tomada de consciência ao nível grupal dos


diversos mestiços (mamelucos, mulatos e outros) para se auto
proclamarem como povo brasileiro, com identidade própria,
mestiça. Esse processo teria sido prejudicado pela ideologia e
pelo ideal do branqueamento. Se todos (salvo as minorias ét-
nicas indígenas), negros, mestiços, pardos - aspiram à brancura
para fugir das barreiras raciais que impedem sua ascensão so-
cioeconômica e política, como entender que possam construir
uma identidade mestiça quando o ideal de todos é branquear
cada vez mais para passar à categoria branca?

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676 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 41
O branco, a
branquitude, a
branquidade,
a branquitude
acrítica, a
branquitude na
educação e os
outros conflitos
étnico-raciais e
suas intersecções
vividas no
Atlântico Sul
BRANQUITUDE ACRÍTICA E DISCURSOS DE
ÓDIO PARA MANUTENÇÃO DOS PRIVILÉGIOS
BRANCOS NO BRASIL

Maira Damasceno
Gabriel Chaves Amorim

INTRODUÇÃO
Este trabalho discute a produção e disseminação dos discursos de ódio a par-
tir da branquitude acrítica em assuntos que envolvem a ampliação de direitos a
grupos historicamente subalternizados e prejudicados pela colonialidade. Assim,
o trabalho se estrutura em suas partes. Em um primeiro momento se discute o
conceito de branquitude acrítica como definidora do imaginário social racista do
Brasil. O segundo momento analisa exemplos empíricos de comentários racistas,
advindos de plataformas de notícias.
A partir de aportes teóricos dos estudos críticos sobre a identidade branca no
Brasil e do pensamento decolonial, serão analisados os imaginários e as narrativas
da branquitude acrítica quando se vê ameaçada no que acredita ser seu por mere-
cimento e direito. A diferenciação entre as branquitudes, é realizada com base nos
referenciais de Lourenço Cardoso (2008), que estabelece a seguinte diferenciação:
“[...] branquitude crítica” àquela pertencente ao indivíduo ou ao grupo de brancos
que desaprova publicamente o racismo. Assim como (CARDOSO, 2008) optamos
por nomear de “branquitude acrítica” a identidade branca individual ou coletiva
que argumenta a favor da superioridade racial (p.176).
Para isso, será realizada análise histórica das principais referências utilizadas
para os argumentos da branquitude acrítica contemporânea, sendo eles: miscige-
nação brasileira, a suposta igualdade e a relativização da violência nas trajetórias
históricas. As fontes são comentários de usuários de um site de notícias sobre
matérias jurídicas. A matéria amostrada versa sobre o julgamento de um su-
posto caso de racismo reverso em uma decisão judicial. Utilizando a análise de
conteúdo, que aqui se entendeu como a sistematização e a extração das ideologias
neles contidas A decisão judicial se deu em 2019, através de uma denúncia que
foi recebida pela 11º vara de Goiânia, a peça acusatória, movida pelo Ministério
Público (MP) versava sobre suposta prática de incitação à discriminação de raça
ou cor. A abertura do processo foi fundamentado com base no art. 20 da Lei nº
7.716/1989 (define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor). Con-
forme a denúncia do (MP):

Narra que o acusado, no dia 19/07/2018, praticou e incitou a


discriminação de raça ou cor, por intermédio do meio de comu-

678 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
nicação social (Facebook), tendo feito reiteradas declarações
pregando, com incitação ao ódio, a separação de raças, inclusive
citando mulheres negras que se relacionam com homens bran-
cos (caucasianos). (GOIANIA, 2019, p.1)

A defesa requisitou absolvição do réu sob fundamento de atipicidade, isto é,


não existe racismo com o branco. A defesa articulou uma narrativa de que a con-
duta do acusado não havia nela o elemento ontológico formador do tipo racismo,
pois, em seu entendimento “Na sociedade brasileira, a pessoa branca nunca foi
discriminada em razão da cor de sua pele [...] jamais existiu, como fato histórico,
a situação de uma pessoa branca ter sido impedida de ingressar em restaurantes,
clubes, igrejas, ônibus, elevadores, etc” (GOIANIA, 2019, p.8). Sobre essa decisão,
foi realizada matéria no site “Consultor Jurídico”1 e ao fazer a análise dos 16 co-
mentários, consegue-se perceber essas noções críticas e acríticas em relação ao
assunto. Desses, apenas 5 foram críticos e 11 foram acríticos. A tendência dessa
maioria foi realizar a reflexão a partir de si próprios, não reconhecendo a diferença
colonial, segundo Walter Mignolo, 2003, que os fez privilegiados.
Ainda em uma discussão sociológica, conforme Ferdinand Tönnies, as comu-
nidades de afeto fornecem dignidade para a pessoa, como são as comunidades
negras, terreiras e associações. Em contrapartida a Sociedade está povoada com
a branquitude acrítica que exerce violentamente suas crenças de superioridade. A
convivência comum entre as raças deveria se dar numa aceitação voluntária da co-
erção de manifestações de vida, em funções de regras e normas. Isto significa que
o branco crítico reconhece o passado colonial e busca reparação junto às popula-
ções oprimidas. Não obstante, a formação de valores coletivo comuns mediante a
convivência, a Sociedade é a mãe dos egoístas: “[...] quanto menos os homens fica-
rem em contato uns com os outros, associados à essa comunidade, mais eles com-
portarão uns com relação aos outros como sujeitos livres independentes de sua
vontade e de seu poder próprios” (TÖNNIES, 1973, p.101). A pessoa em sociedade
é uma ilha de vontades soberanas. Desse modo, para (TÖNNIES, 1973) a Sociedade
é um grande agrupamento de projetos soberanos uns dos outros, conectados pela
divisão social do trabalho sem nenhum vínculo de solidariedade e aceitação.

ANÁLISE DO IMAGINÁRIO SOCIAL DA BRANQUITUDE


ACRÍTICA EM RELAÇÃO À MISCIGENAÇÃO
O imaginário da existência de uma igualdade é fundamentado pela crença
na mistura das raças, portanto nesta primeira seção de análise estabeleceremos
alguns pontos sobre este mito. A questão mestiçagem e miscigenação deve ser

1 SANTOS, Rafa. DISCRIMINAÇÃO INEXISTENTE. Racismo reverso é equívoco interpretativo, de-


fine juiz ao absolver homem negro. Consultor Jurídico. 29 de janeiro de 2020. Disponível em: https://
www.conjur.com.br/2020-jan-29/racismo-reverso-equivoco-interpretativo-define-juiz-goias/c/1 Aces-
so em outubro de 2020.

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
problematizada, pois é esvaziada e utilizada contemporaneamente em pesquisas
diversas como uma reprodução das nomenclaturas do passado sem a devida re-
flexão. Um dos argumentos mais utilizados pela Branquitude acrítica de que no
Brasil, todos somos misturados é, igualmente, uma reprodução de racialismos, pois
tratam-se de sustentações diretamente ligadas à biologia, que só vê a cor e pouco
atenta-se às relações de poder e diferenças coloniais baseadas historicamente em
cor, gênero e natureza. É sabido e lógico que, durante a história do Brasil houve in-
tensos processos, violentos e desiguais, da chamada mestiçagem, porém, isso não
nos torna iguais e tampouco deveria ser o foco dos estudos, pois somente serve
para as relativizações
O imaginário da miscigenação brasileira tem origem no mito da igualdade racial,
onde, supostamente, no Brasil, as pessoas são originadas das misturas entre indíge-
nas, pretos e brancos, formando, assim, o povo brasileiro. Essa teoria surgiu a partir
das pesquisas do sociólogo Gilberto Freyre, em 1933, que estudou nos Estados Uni-
dos e fez sua obra de forma comparativa ao sistema escravocrata estadunidense,
chegando a conclusão que, no Brasil, tínhamos uma “democracia racial”, pois aqui,
as raças teriam se integrado tão bem que os senhores tratavam os escravizados
como partes das famílias. Esse argumento, ao longo do tempo, foi reproduzido
em diversos espaços educacionais brasileiros, cristalizando a noção das três raças
formadoras da identidade brasileira e, assim, opacizando as discussões acerca da
existência estrutural do racismo contra índios e negros, bem como, colocando uma
pedra em 300 anos de histórias de opressões e violências contra essas populações.
O culturalismo, corrente defendida por Freyre (1933) manteve a mesma hierarquia
do racismo, mas agora não eram mais as raças que eram degeneradas, mas sim, a
falta de cultura das gentes.
Passada uma centena de anos de análises distorcidas e parciais da história e das
ações sociais dos pretos no Brasil, a suposta igualdade perante o direito, conferida
pela Constituição Federal em 1988, tem originado, na branquitude acrítica, inter-
pretações adversas às propostas originais de proteção aos vulnerabilizados histo-
ricamente, como as ações de racismo reverso pretendidas em diversos pontos do
Brasil e, que acabam utilizando o argumento da igualdade para não reconhecer a
horizontalidade dos direitos. Quem utiliza esse argumento, diz que agora somos
todos iguais nas Leis, não importando a cor do cidadão, retirando, assim, a histori-
cidade da desigualdade. Portanto, a igualdade, posta dessa maneira descontextu-
alizada e descolada das desigualdades existentes, leva a entendimentos opacos,
como a existência de um suposto racismo reverso, e isso ocorre, pois, a relativiza-
ção e equiparação de trajetórias que descontextualiza as referências, pensa sempre
a partir de sua própria perspectiva.
Se por um lado, a branquitude crítica não se preocupa em se pensar como um
grupo racial, por outro lado, a branquitude acrítica propaga direta e indiretamente
a superioridade e pureza racial branca (CARDOSO, 2008, p.180). Neste sentido a
branquitude acrítica possui um self, uma representação identitária de si mesmo,

680 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
como formula o teórico social George Herbert Mead. Esse self faz com que a pes-
soa se veja como pessoa e objeto, essa auto-organização cada vez mais atua sobre
o sujeito que se converte em objeto para si desde à experiência de mundo única,
racista e egoísta. O Branco acrítico por vezes se aproxima à categoria criança, na
perspectiva do egoísmo, pois em seu mundo não há interculturalidade, sua iden-
tidade basta (MEAD, 1982). Piaget também investe na ideia de que a criança não
entende a conservação dos objetos fora dela como de vida própria, mas, num ma-
niqueísmo, tudo gira em todo dessa criança. Freud também elabora uma compre-
ensão dessa fase da criança, chama de perversidade polimórfica, toda a vida fora
dela é pervertida em benefício do seu egocentrismo. Se a criança ultrapassa esses
dilemas, psicologicamente falando, deixa de ser egoísta.
Os limites objetivos, as visões de mundo compartilhada, são extremamente
importantes para significarem a experiência coletiva, algo que não termina nela
mesma, a pessoa pode entender que ela não é o próprio fim do mundo. O cenário
político se torna conflituoso para a aprovação de políticas de reparação quando
diversos setores da sociedade têm pontos de vista diferentes sobre o mesmo fato.
Portanto, enquanto a branquitude crítica não for maioria será tortuoso o caminho
para implantação de um cenário de equidade jurídica entre os povos. Como con-
cluiu o psiquiatra martinicano Frantz Fanon “O branco está fechado na sua bran-
cura” (2008, p.27).

RACISMO NÃO É QUESTÃO DE OPINIÃO


A ampliação do acesso à internet e o acirramento de bipolaridades políticas,
têm deixado as pessoas à vontade para expor suas opiniões sobre diversos as-
suntos, além de possibilitar o encontro de grupos que compartilham das mesmas
ideias, porém, algumas dessas ultrapassam à liberdade de expressão a partir do
momento que, sua narrativa, necessita agredir, incitar e inferiorizar determinados
grupos historicamente perseguidos, pois, desse modo, acreditam estar garantindo
a manutenção de seus direitos.
Pensando na análise do que é dito na internet, mesmo que de forma anônima,
os discursos remetem à imaginários e referências da sociedade. A língua e o idioma
socializada de forma geracional, na família, na escola e entre comuns, é também,
a chave para a compreensão e aceitação entre iguais. Dessa maneira, os comen-
tários racistas representam uma comunicação entre iguais, uma antecipação de
aceitação entre ideologias “harmonia entre conteúdo e forma” (TONNIES, 1973,
p.103). A linguagem não se funda na diferença dos significados, mas, sobretudo na
uniformidade, na confiança “A língua materna deve nascer e se desenvolver-se
da maneira mais fácil e viva” (TONNIES, 1973, p.104). Por isso acreditamos que
as palavras e comentários ditos na internet são ações sociais. Lendo os comentá-
rios, através das teorias de Max Weber podemos dizer que assim como as ações
sociais os comentários racistas da internet são: 1-Ações orientadas pelas ações

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 681


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
dos outros, no presente, no passado e no futuro; 2-As condutas íntimas são con-
sideradas sociais quando em relação aos outros, como comentários anônimos e
3-Nem todas as ações são sociais, muitos comentários são reproduções mecânicas
e imitações sem fundamento. Podemos afirmar, felizmente, que haviam comentá-
rios que criticavam a postura acrítica dos racistas opinando na matéria jornalística
sobre a decisão judicial. A análise dos comentários começa, portanto, através dos
comentários favoráveis à decisão do juiz de declarar que não há racismo reverso.
O comentário número quatro, cartorário, constata que o juiz analisou com pers-
pectiva ampla, histórica e sociológica, “o que é raro”, dando parabéns ao magistra-
do. O quinto, advogado autônomo civil, faz uma avaliação técnica com referência
à tipificação criminal, que a sentença está bem fundamentada quando diz que não
há no momento do fato caracterizadores para o crime de racismo. O número sete,
advogado autônomo civil acha a sentença “brilhante” e “aula de sociologia jurídica
e humanística” completando que, se já é difícil ser negro politicamente assumido
na classe média, imagina então, ser negro e índio na periferia. O nono comenta-
rista, advogado autônomo - administrativa, acha “excelente” a sentença por
considerar ser um fato o racismo inverso não existir, preconceito sim, mas não
racismo. Fala ainda que, ao contrário do que já tinham comentado, a situação dos
descendentes de alemães na segunda guerra não é análogo ao caso descrito na
sentença por ter sido um momento de exceção e termina dizendo que racismo
inverso é como dizer que os afrodescendentes “são racistas em relação aos supre-
macistas brancos”.
Dentre os comentários, classificamos alguns como ações sociais de imitação. O
número onze, funcionário público, diz que o juiz foi defensor do “criminoso” e não
percebeu que esse tipo penal foi criado por pessoas que não “não admitem que a
verdade dos fatos deve servir a todos independente (sic) do nível de melanina na
pele”. Continua seu comentário falando dos males do socialismo que não aceita
o exercício livre do direito, para isso, utilizam, “dois pesos e duas medidas”. Fala
ainda da “esquerdopatia” da administração pública e justiça com “representantes
de mente limitadas”. Termina dizendo que “é preciso urgentemente endireitar o
Brasil”. O décimo terceiro comentário, advogado associado a escritório - criminal,
diz que a decisão está “contaminada” de ideologia esquerdista e que lamenta esta
interpretação do direito.

A SUPOSTA IGUALDADE
O terceiro a tecer considerações sobre o assunto, advogado autônomo civil, con-
corda com o nº1 e igualmente ignora a historicidade. Também conta uma passa-
gem de sua mãe, descendente germânica que teria sofrido por sua origem.
O segundo a comentar, foi um advogado autônomo que diz ser a decisão “pe-
quena, vergonhosa”, pois, segundo seu entendimento, o juiz não deveria escolher
qual a raça ou religião deveria ser protegida e sim, aplicar a lei, que é igual para

682 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
todos. Aqui percebe-se a total desconsideração histórica, não importando o fato
dessa igualdade ser tão recente, e por isso, tão desigual. Convenientemente, pas-
sou-se a borracha num passado escrito à tinta.
O comentário número dez, advogado autônomo - civil, diz que sabe-se que mui-
tos utilizam a raça para discriminar, porém, segundo ele, a tipificação penal do
racismo não contém subjetividades para sua caracterização e indaga se o magis-
trado está legislando. Continua discorrendo sobre “estado terminal” da juridicida-
de e o abalo da confiança popular e faz a seguinte colocação: “Com efeito, quem
em sã consciência pode acreditar que as pessoas de cor branca atualmente tem
que pagar pelo que houve no passado da escravidão, cujas origens e prática não
são européias!!!” colocando-se à parte, como não participante e fazendo entender
ainda, que quem deve “pagar” são nações não europeias, verdadeiras originárias
dessas práticas, isentando assim, os europeus e descendentes. Diz ainda que a Lei
7.716/89 deveria trazer a pacificação, porém “a perversidade sócio jurídica ou ca-
ráter deformado” trouxe discriminação “contra quem não teve nada a ver com
fatos ocorridos a 150 anos”.
O número doze, advogado sócio de escritório - empresarial, é irônico em suas
considerações ao dizer que, assim como brancos, o réu tem direito de pregar a
separação de raças, pois trata-se de liberdade de expressão e finaliza lamentando
que o STF não tenha considerado o artigo 20 da Lei 7.716/89 inconstitucional. Uma
total descontextualização com objetivo de garantir- lhe o direito de ser racista.

RELATIVIZAÇÃO DA VIOLÊNCIA NAS TRAJETÓRIAS


HISTÓRICAS
O primeiro comentário foi de um juiz estadual de 1ª. Instância, que refuta a sen-
tença nessa parte: “nenhuma religião de matriz europeia sofreu discriminação no
Brasil, a ponto de seus praticantes serem perseguidos e presos pela Polícia ou te-
rem seus locais de culto depredados e destruídos por pessoas de crenças compar-
tilhadas pela maioria da população"(2020, p.09) compartilhando histórias de sua
comunidade cristã que foi perseguida na época da segunda guerra mundial por ter
origem alemã. Finaliza dizendo que ninguém sabe disso, pois é raro o estudo desse
“triste tempo” em que brasileiros foram perseguidos por ser de origem alemã. Ou
seja, o comentarista pouco, ou nada pensou sobre o caso específico, ou sobre a his-
tória dos africanos e afrodescendentes escravizados durante 388 anos no Brasil,
preferindo encontrar um exemplo próprio, que na cabeça dele, iguala a situação,
porém, esse caso que ele cita foi uma exceção, enquanto o racialismo foi regra e
perdura contemporaneamente na forma do racismo.
O sexto, engenheiro, continua a divagação acerca a situação dos descendentes
de alemães durante a segunda Guerra e dá o exemplo de Ernesto Geisel que não foi
enviado para lutar na Itália devido sua origem.

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 683


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
O oitavo comentarista, professor Universitário - administrativa, como outros
que reagiram ao assunto, pensa a partir de suas próprias experiências, desconsi-
derando a discussão histórica da sentença ao narrar um episódio em que foi su-
postamente impedido de sair em uma foto com lideranças negras por ser branco
“e dizem que não há racismo”, com um detalhe: lideranças negras em um 20 de
novembro, data cara aos movimentos de lutas por direitos dos afrodescenden-
tes. O comentário continua com outro exemplo que cita um clube “originalmente
de negros” e desafia os brancos irem lá para ver como funciona. Fala, ainda que
brancos pobres, poloneses, alemães, italianos sofrem discriminação no interior do
Rio Grande do Sul e finaliza dizendo que o juiz “discrimina quem pode cometer
crimes”. Lourenço Cardoso cita trabalho de Maria Aparecida Bento que esclarece
parcialmente a mentalidade envolvida nesses tipos de atitudes e suas implicações:

No Brasil, Maria Aparecida Bento chama a atenção que o branco


independente da classe social tende a ser solidário, quando se
sente discriminado (Bento, 2002ª, p. 141), por medidas como as
políticas de ação afirmativa voltadas para negros. Nesse exem-
plo, os brancos de classe alta e média procuram denunciar essa
injustiça praticada contra o branco pobre. Porém, essa união e
solidariedade da branquitude independentemente de suas dife-
renças teria um objetivo comum: a manutenção do status quo,
isto é, a conservação dos privilégios que o grupo branco obtém.
(CARDOSO, 2007, p.614)

O comentário de número 14 é uma resposta do 1 para o 9 na questão dos des-


cendentes de alemães perseguidos na segunda guerra. A questão colocada foi: “o
que os cidadãos brasileiros cujos antepassados tinham vindo, várias décadas antes,
da Alemanha ou da Itália tinham a ver com isso?” demonstrando que o autor não
ponderou a situação de exceção que a guerra impôs e as diferenças históricas desse
episódio com a perseguição e subalternização sofrida por africanos e afrodescen-
dentes.
O décimo quinto, serventuário, diz que o juiz faz uma “ode” ao racismo em vez
de coibi- lo e o último, administrador, não pode ser visualizado, pois, foi removido
por ser ofensivo e violar as políticas do site.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Através desses comentários ficam expostas algumas representações e sentimen-
tos presentes em muitos brasileiros perante essa reflexão tão importante. Infeliz-
mente, o branco acrítico tem a tendência de não enxergar os outros, só a ele mes-
mo. Desse modo, não sabe quando recolher-se em seu privilégio, pelo contrário,
acredita que mereça estar lá e quer sempre ser o protagonista das situações. Como
percebemos nesses comentários, junta-se à outros que possam fortalecer seu dis-
curso e deslegitimar quem o contradiga

684 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Maria Aparecida Bento em sua tese de doutorado a idéia prin-
cipal a ser desenvolvida é o conceito “pacto narcísico”. Por ou-
tras palavras, os brancos procuram unir-se para defender seus
privilégios raciais. A autora analisará como as expressões da
branquitude podem colaborar para manter as hierarquias raciais,
ou mais concretamente, o lugar do branco que seria o lugar de
privilégio racial (CARDOSO, 2007, p.619)

Outra situação verificada foi a confusão entre as noções de ideologia (socialismo/


esquerda/direita), reparação e equidade racial. Os discursos que vão em direção
à essas desordens teóricas ignoram completamente estudos que dão conta que a
“esquerda” pode ser tão racista quanto a “direita”, pois não importa de que “lado”
alguém diz que fica. Se não conseguir ultrapassar paradigmas normativos e uni-
versalistas que garantam o direito dos povos de ter outras racionalidades, estamos
falando do mesmo lado, somente com concepções diversas de gestão de pessoas.
Desse modo, foi possível demonstrar o vínculo existente entre argumentos acrí-
ticos contemporâneos e a finalidade racista, muitas vezes racialista, que objetiva
a subalternização ou mesmo aniquilação do outro a partir de manutenção do pró-
prio privilégio. Além de que, esses comportamentos nos mostram o quanto a bran-
quitude acrítica é presente na sociedade brasileira, revelando, assim, a necessidade
de expor e repensar sobre a lógica colonial inserida nessas narrativas que ignoram as
diferenças e servem ao preconceito. Portando, refletir sobre a história do racismo
brasileiro é olhar numa perspectiva de sua historicidade, não descontextualizando
ou relativizando a experiência do outro a partir de referências particular e bairris-
ta, geradora de equívocos. Tais equívocos geram uma inversão das situações que
envolvem a colonialidade do poder, esvaziando assim, a noção de racismo e man-
tendo paradigmas ultrapassados.

REFERÊNCIAS

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nas pesquisas sobre as relações raciais no Brasil (Período: 1957- 2007). (Dissertação de
mestrado), Faculdade de Economia e Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coim-
bra, 2008

CARDOSO, Lourenço. Branquitude acrítica e crítica: A supremacia racial e o branco anti-


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607-630, Jan. 2010

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XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 685


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TÖNNIES, Ferdinand. Comunidade e sociedade como entidades típico-ideais Determinação


Geral dos conceitos principais. IN: FERNANDES, Florestan (org). Comunidade e sociedade:
leituras sobre problemas conceituais, metodologia e de aplicação. São Paulo, Editora Na-
cional e Editora da USP, 1973

AUTORIA
Maira Damasceno
CAPES/Universidade do Vale do Rio dos Sinos (PPGH e PPGCS)
E-mail: maira_dms@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2383-9883
Lattes: http://lattes.cnpq.br/4704076171769241

Gabriel Chaves Amorim


CAPES/Universidade do Vale do Rio dos Sinos (PPGH e PPGCS)
E-mail: gcamorim@edu.unisinos.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7454-7867
Lattes: http://lattes.cnpq.br/2316175296685346

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A BUSCA PELO SELO PALMARES:
PROBLEMATIZANDO O LUGAR DA BRANQUITUDE
NA LUTA ANTIRRACISTA
Mariana de Montreuil Trotta

INTRODUÇÃO
A discussão sobre a branquitude e os aspectos que englobam essa temática ain-
da é um campo pouco estudado na academia. Isso se deve ao fato de que os bran-
cos durante muitos anos eram os intelectuais, os provedores do saber, enquanto
os outros grupos étnicos eram seus objetos de estudos sendo vistos como seres
exóticos e primitivos. Tais atitudes, designaram ao branco o poder de nomear o
outro: os indígenas, os negros, latinos, etc, ou seja, eles criavam um conceito de
classificação naqueles lidos como diferentes, a medida que o branco era entendido
como sujeito, desfrutando de um lugar de conforto, onde se olha o outro com uma
lente que não se olha a si mesmo, e essa lente é a raça.
O conceito de raça já foi desmistificado pelos intelectuais na área da ciência,
onde existem estudos que apontam que não há racialização para denominarmos
os humanos. Entretanto, durante muitos anos, sociólogos, antropólogos entre ou-
tros pesquisadores brancos, para reafirmar a eugenia branca implementaram essa
ideia. Por conta disso, em alguns países como por exemplo nos Estados Unidos, é
ofensivo chamarmos uma pessoa de cor preta como Nigger, que significa negro
em português, pois sua origem foi usada de forma pejorativa. Em relação ao Brasil,
devido a construção da ideia em torno do mito da “democracia racial” que foi que
defendida através da mestiçagem, fizeram com que as pessoas não brancas não
problematizassem o termo ‘negro’, e com o passar do tempo, resinificassem essa
palavra a ponto de criar uma identidade negra como forma de resistência e luta na
sociedade racista em que vivemos. Pois ainda sobre a importância da construção da
identidade Novaes aponta:

É importante perceber que o conceito de identidade deve ser


investigado e analisado não porque os antropólogos decretaram
sua importância (diferentemente do conceito de classe social,
por exemplo), mas porque ele é um conceito vital para os grupos
sociais contemporâneos que o reivindicam (NOVAES,1993: 24).

Deste modo, os negros passaram a ser os protagonistas das suas próprias his-
tórias, lutas e conquistas. Os estudos sobre o racismo e suas diferentes formas,
tomaram grandes discussões e provocaram grandes produções científicas sobre a
temática. Entretanto, vale ressaltarmos que a narrativa ainda encontrada faz com

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 687


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
que o problema racial seja sempre por parte dos negros: a exclusão desses povos,
a dificuldade na construção de sua identidade, o negro que não se vê como negro, a
falta de representatividade, etc. e o branco sempre esteve ausente desta conversa.
E quando o branco decide participar desta conversa, o que acontece? Hoje em
dia com a globalização e a facilidade de acesso à informação, permitiu com que as
pessoas conhecessem determinados assuntos que antes eram mais difíceis. Além
disso, com a criação das redes sociais, muitos se sentem encorajados em expor
suas opiniões seja ela com a finalidade de conseguir engajamento social ou por
achar que não serão punidos nesses espaços. Tendo isso em vista, assuntos que
envolvam a temática racial são sempre pautas para essas discussões e consequen-
temente as pessoas brancas se sentem no direito de se manifestar. Um caso recen-
te, ocorrido em maio deste ano, que envolve o racismo, as mídias sociais e a bran-
quitude, foi o caso do estadunidense George Floyd que foi brutalmente asfixiado
até a morte ao ser enquadrado por um policial branco. A morte de Floyd ocasionou
uma onda de protesto em diversas cidades norte americanas a ponto de influenciar
outros países como o caso do Brasil em prol da mensagem de Black Lives Matter,
ou Vidas Negras Importam em português. A proporção do caso também ocupou as
redes sociais e com isso diversos internautas fizeram manifestações virtuais e mui-
tas pessoas brancas levantaram a bandeira de serem antirracistas em suas publica-
ções. Entretanto, até que ponto essas pessoas estão engajadas nesta luta?

PROBLEMATIZANDO O LUGAR DA BRANQUITUDE NA LUTA


ANTIRRACISTA
O caso citado do George Floyd, é um dos exemplos que podemos levantar sobre
casos de racismo que tomaram proporções midiáticas, mas assim como esse e ou-
tros, após um tempo acabam caindo no esquecimento e deixam margem de ques-
tionarmos aos brancos: qual a sua contribuição na luta antirracista no seu cotidia-
no? Isto é, quando não há o sensacionalismo jornalístico em cima da dor do povo
negro, eles também estão preocupados em combater o racismo? Afinal, como diz
a autora Angela Davis “em uma sociedade racista, não basta não ser racista, é ne-
cessário ser antirracista”, e isso implica em um rompimento de toda uma estrutura
que privilegiou um determinado grupo étnico e provocar mudanças em si próprio e
no seu ciclo social, conforme Piza destaca:

É primeiramente o esforço de compreender os processos de


constituição da branquidade para estabelecer uma ação cons-
ciente para fora do comportamento hegemônico e para o inte-
rior de uma postura política anti-racista e, a partir daí, uma ação
que se expressa em discursos sobre as desigualdades e sobre os
privilégios de ser branco, em espaços brancos e para brancos; e
em ações de apoio à plena igualdade (PIZA,2005, 07-08).

688 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Ou seja, é preciso antes reconhecer o privilégio social histórico, reconhecer que
há uma vantagem estrutural, para então aliar-se a luta, pois o privilégio branco é
ocupar os lugares mais qualificados. Mas que são entendidos por muito deles como
mérito.
Para Silvio Almeida (2020) em uma entrevista ao canal Futura, o autor ressalta
que “não existe possibilidade de uma pessoa que se diz antirracista e não atentar
para as questões de natureza econômica e como ela produz desigualdade”. Adotar
a ideologia de ser antirracista está para além de mobilização virtual e sim uma
prática cotidiana.
Uma das justificativas bastante comum das pessoas brancas para abster dessas
discussões raciais é utilizar a frase de ‘não ser seu lugar de fala’, mas conforme ci-
tado anteriormente, o racismo não é uma problemática somente dos negros, tendo
em vista que não foi algo criado pelos mesmos. Portanto, os brancos não só podem,
como devem participar, mas entender o seu espaço na luta, pois ainda de acordo
com a entrevista de Almeida, “o compromisso antirracista dos brancos se mede
pelo seu compromisso político de entrar em conflito com aquilo que permite que
eles vivam uma vida que vale mais que a dos negros”.
Tais provocações apontadas, foram fundamentais para levantarmos discussões
se de fato as pessoas brancas estão dispostas a lutar contra esse sistema ou se es-
tão apenas buscando o aceite dos negros das suas atitudes e/ ou falas. Um exemplo
disso, é o selo idealizado pelo então presidente da Fundação Cultural Palmares,
Sergio Camargo, intitulado como: “Palmares garante, não é racista”. Em suas redes
sociais, Camargo explicitou que o objetivo do selo seria: “restaurar a reputação de
pessoas que injusta e criminosamente foram tachadas de RACISTAS em campanhas
de difamação e de execração pública promovidas especialmente pela esquerda. Ou
seja, limpar a imagem pública das pessoas atingidas”. Por mais que tenha causado
indignação por muitas pessoas, deve-se levar em consideração que enquanto a
branquitude não questionar seu lugar de privilegio na sociedade, continuar na inér-
cia de não se posicionar diante dos fatos com a justificativa de não ser seu lugar de
fala e não adotar medidas em seu cotidiano que de fato seja antirracista, indireta-
mente estarão em busca do Selo Palmares por pessoas negras para tentar legitimar
suas ações. Todavia, podemos reconhecer que não se trata de uma regra aplicada a
todas aos brancos, ou seja, há de fato um grupo que se preocupa com as discussões,
mas não sabem como contribuir na luta, com isso, o objetivo deste ensaio é dialo-
garmos com as pessoas brancas ações para repensar seu lugar na branquidade e os
reflexos que implicam no racismo estrutural.

COMO A BRANQUITUDE PODE AJUDAR NA LUTA


ANTIRRACISTA
Conforme já citado ao longo do texto, antes de assumir o compromisso na pauta,
é preciso reconhecer o lugar de privilégio em que ocupa. “Os negros precisam ser

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
representados para os brancos pararem de se sentir centro do mundo” Lia Vainer
Shucman (2020), e a partir dessa conscientização podemos construir um debate
em conjunto.
Outro ponto importante para destacarmos é observar os espaços frequentados.
Por exemplo, as pessoas brancas que possuem filhos e/ ou filhas em escolas, ques-
tionem o plano de promoção da diversidade dessas instituições. Caso seja da rede
privada, observem e questionem quantos professores e professoras negras há na
escola. Quantos estudantes negros há por sala, pois não basta somente ter docentes
negros para uma sala majoritariamente branca, senão essas crianças irão reproduzir
o pensamento de que aqueles profissionais estão ali lhe prestando serviços. Além
disso, é fundamental que crianças brancas convivam com crianças negras para resi-
nificarem seus ciclos sociais e reeducar seus olhares sobre esses sujeitos. Portanto,
se perceberem a ausência das situações mencionadas, mobilizem-se junto a outros
responsáveis brancos para questionar a
direção e a coordenação escolar para implementar políticas de cotas ou bolsas de
estudo e empregar esses profissionais negros. Observar os materiais didáticos, as
literaturas oferecidas, seja na rede privada quanto na rede pública e atentar sobre
como a história é contada, isto é, se a narrativa construída é a romantização da
“descoberta” dos portugueses e não a construção crítica dos fatos sobre o genocí-
dio dos povos indígenas e negros e também questionar a coordenação pedagógica
sobre como implementam a Lei 10.639/03 para além do dia 20 de novembro.
Em relação ao âmbito do trabalho, promova ações conjuntas para a contratação
de pessoas negras, mas que também tenham a possibilidade de ocupar cargos de
lideranças. Podemos trazer de exemplo, em setembro deste ano quando a rede
varejista Magazine Luiza que gerou polêmica ao direcionar seu programa de traine-
es apenas a candidatos negros. A iniciativa, porém, inspirou outras empresas que
tentam reparar a reduzida presença de executivos pretos e pardos em seu corpo
de funcionários.
Outro ponto importante, é consumir conteúdos produzidos por pessoas pre-
tas. Entender e respeitar a cultura do outro e atentar para não apropriar de suas
produções sem dar os devidos créditos, pois em relação ao branco com a cultura
afro-brasileira, RACHLEFF, 2004, p. 100, aponta:

A branquidade de que falam e escrevem [...] não teve conteúdo


cultural próprio nem existência independente de uma relação
com a “negritude”. Essa branquidade foi criada – e recriada - a
partir de uma relação não com a cultura historicamente negra
ou africana, ou afro-americana, mas com uma “cultura negra”
inventada a partir dos recalques, projeções, desejos e fantasias
dos não- negros.

Desde modo, é imprescindível não tratar as diferentes culturas como algo exó-
tico e não reproduzir a eugenia branca, onde a beleza branca é mais respeitada.

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A luta antirracista é algo que envolve muitas temáticas e engloba a sociedade
como um todo em suas diferentes estruturas. Por conta disso, ainda encontramos
um forte grupo de pessoas conservadoras que reproduzem o racismo, mas escon-
dem seus preconceitos alegando ser opinião ou trazendo exemplo de pessoas ne-
gras que também reproduzem falas para legitimar suas ações. Ainda em relação
ao presidente da Fundação Palmares, o mesmo causou polêmica em uma reunião
a qual desconhecia ser gravada, onde deu depoimento atacando ao Movimento
Negro, o dia da consciência negra e ofendendo inclusive ao Zumbi dos Palmares,
que vem a ser a figura histórica representada pela instituição a qual é presidente.
Quando esse tipo de fala ou atitude parte de pessoas negras, permite que as pes-
soas brancas a reproduzam e enfatizam o discurso de que todos somos iguais e que
por isso para eles é inaceitável ter políticas que priorizam um determinado grupo
étnico e que só existe a raça humana. Entretanto, é importante enfatizarmos que:

O Movimento Negro e alguns sociólogos, quando usam o termo


raça, não o fazem alicerçados na ideia de raças superiores e in-
feriores, como originalmente era usada no século XIX. Pelo con-
trário, usam-no com uma nova interpretação, que se baseia na
dimensão social e política do referido termo. E, ainda, usam-no
porque a discriminação racial e o racismo existentes na socieda-
de brasileira se dão não apenas devido aos aspectos culturais
dos representantes de diversos grupos étnico-raciais, mas tam-
bém devido à relação que se faz na nossa sociedade entre esses
e os aspectos físicos observáveis na estética corporal dos perten-
centes às mesmas. (GOMES, Nilma Lino, p.45)

Ou seja, a adoção do termo raça em relação ao Brasil foi passou a ser incorporada
como uma forma de manifestar as diferenças étnicas encontradas desde a constru-
ção histórica deste país, mesmo que o racismo ainda esteja presente nos dias de
hoje. Ainda de acordo com Gomes

O racismo no Brasil é alicerçado em uma constante contradição.


A sociedade brasileira sempre negou insistentemente a existên-
cia do racismo e do preconceito racial mas no entanto, as pes-
quisas atestam que, no cotidiano, nas relações de gênero, no
mercado de trabalho, na educação básica e na universidade os
negros ainda são discriminados e vivem uma situação de pro-
funda desigualdade racial quando comparados com outros seg-
mentos étnico-raciais do país. (GOMES, Nilma Lino, p.46)

Desta maneira, é importante ressaltarmos que para pensarmos em construir


uma sociedade igualitária, precisamos primeiro admitir que todos nós somos racis-
tas ou reproduzimos algo racista. Para então pensarmos em mecanismos de com-

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
bate, defesa e reparação histórica de um grupo de foi marginalmente prejudicado
e explorado durante anos.
Enquanto indivíduos brancos que reconhecem que a supremacia branca não
tem razão de existir, mas ainda sim permanecem omissos no processo, o privilé-
gio destes e das pessoas que acreditam na brancura como condição ideal de ser
humano é mantido, o que faz com que os indivíduos negros sem qualquer conhe-
cimento prévio sobre seus valores culturais e sociais encontrem no processo de
branqueamento a única forma de integração social, sendo assim acabam de certa
forma impedidos de formar uma identidade negra positiva, baseada no resgate de
seus valores individuais e também coletivos em nome de uma nova percepção de si
e do mundo social, reproduzindo valores difamados e estereotipados que perpetua
ao longo dos anos.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio. Vantagens estruturais dos brancos. Entrevista a branquitude. 2020. Dis-
ponível em https://canaisglobo.globo.com/assistir/futura/entrevista/v/8861883/. Acesso
em out. 2020

DAVIS, Angela. Mulheres, raça e classe. Candiani, Heci Regina. São Paulo: Boitempo, 2016.
244pp.

GOMES, Nilma Lino. Alguns termos e conceitos presentes no debate sobre relações raciais
no Brasil: uma breve discussão. In: BRASIL. Educação Anti-racista: caminhos abertos
pela Lei federal nº 10.639/03. Brasília, MEC, Secretaria de educação continuada e alfabe-
tização e diversidade, 2005. P. 39 - 62.

NOVAES, Silvia Caiuby. Jogo de espelhos. São Paulo: EDUSP,1993.

PIZA, Edith. Adolescência e racismo: uma breve reflexão. An. 1 Simp. Internacional do
Adolescente May. 2005. Disponível em: http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?pi-
d=MSC0000000082005000100022&script=sci_a rttext

RACHLEFF, Peter. “Branquidade”: seu lugar na historiografia da raça e da classe nos Es-
tados Unidos. In: WARE, Vron. Branquidade: identidade branca e multiculturalismo. Rio de
Janeiro: Garamond, (org.) 2004, p. 97 – 114.

SHUCMAN, Lia Vainer. O que é Branquitude?. Entrevista a branquitude. 2020. Disponível


em https://canaisglobo.globo.com/assistir/futura/entrevista/v/8858540. Acesso em out.
2020

AUTORIA
Mariana de Montreuil Trotta
Mestranda em Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (UFRRJ)
E-mail: marianamtrotta@yahoo.com.br
Lattes: http://lattes.cnpq.br/3597119703373334

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
OPERADORES DA BRANQUITUDE NO ENSINO
SUPERIOR BRASILEIRO
Elismênnia Aparecida Oliveira
Francy Eide Nunes Leal

A CONSTRUÇÃO DAS CIÊNCIAS E DAS UNIVERSIDADES A


PARTIR DA COLONIZAÇÃO
Neste trabalho de cunho teórico argumentamos sobre os operadores da bran-
quitude no ensino superior a partir da colonialidade nas instituições de saber-po-
der (CARNEIRO, 2005; ZULMA, 2010; LABORNE, 2017; MIGNOLO; WALSH, 2018),
a ignorância branca (MILLS, 2018) e a ignorância enquanto agnotologia, estudo
sobre a produção estratégica e intencional da ignorância (PROCTOR, 2020). O con-
ceito de operadores da branquitude é aqui pensando na relação entre pessoas
brancas e a construção e intervenção de sua coletividade na realidade social, diz
respeito tanto à branquitude, que faz funcionar o racismo estrutural, quanto às
concepções de governabilidade das instituições. Para tanto, partimos da base teó-
rica que considera a colonização como responsável pela transformação radical das
relações sociais locais e internacionais. Transformação que, por sua vez, é pautada
na comparação e hierarquização inferiorizante presentes nas noções de indivíduo,
sociedade e direitos humanos, bem como em estruturas burocráticas como o esta-
do-nação, os sistemas políticos de representação, de ensino, e concepções macro
como a de modernidade, globalização e capitalismo.
A influência, continuidade e resistência à colonização estão mapeadas em diver-
sas vertentes acadêmicas, e por intelectuais, com obras nacionais ou amplamente
traduzidas, vinculadas principalmente aos estudos panafricanistas, subalternos,
pós-coloniais, étnico-raciais, feministas e decoloniais dentre outras. Parte desses
estudos são responsáveis por questionar relações de poder no campo da produ-
ção de conhecimento e da vida pública e privada confrontando estruturas como o
sexismo, o racismo, a xenofobia e o fundamentalismo. No Brasil, produções sobre
racismo estrutural como a tese de Sueli Carneiro (2005), a dissertação de Maria
Aparecida Bento (2002), o trabalho de Silvio Almeida (2019), a dissertação e tese
de Lourenço Cardoso de Oliveira (2008; 2014); e a tese de Ana Amélia de Paula La-
borne (2014) pesquisam e fundamentam a existência da branquitude como basilar
na manutenção de estruturas de poder pautadas no privilégio, na hierarquização
inferiorizante e na exploração de população negras e indígenas nas instituições, no
imaginário coletivo, e nas práticas de poder-saber do conhecimento. Essas autoras,
por sua vez, fazem referência a pesquisas de intelectuais anteriores, em sua maio-
ria internacionais, mas também brasileiras como Guerreiro Ramos, Lélia Gonzalez
e Izildinha Baptista Nogueira.

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Nesse campo sólido de pesquisas, várias conceituações distintas foram desen-
volvidas ao longo das últimas décadas mapeando uma problemática até então
recente no Brasil, a branquitude e seus desdobramentos, seus instrumentos de
proteção e operação, tal como informa Maria Aparecida Bento (2002), com os
conceitos de pacto do narcísio, silêncio consciente, ou o racismo enquanto dispo-
sitivo de poder da sociedade brasileira e do epistemicídio, conceitos de Sueli Car-
neiro (2005), e os conceitos de branquitude crítica e acrítica de Lourenço Cardoso
(2017), ou ainda o conceito de delírio da branquitude de Achille Mbembe (2014), e
o conceito de ignorância branca de Charles W. Mills (2018).
Esses conceitos compartilham a assertiva de que a colonização, tal como teo-
riza Quijano (2005) e Mbembe (2014), transforma o mundo com a racialização de
todas as relações e estrutura a formação de identidades coletivas estipulando, não
apenas as europeias, mas a branca contraposta a negra, asiática, indígena, e fun-
damentada na brancura fenotípica, originando o que Bento (2002) descreve como
um pacto silencioso de grupo, que prega sua suposta superioridade como direito e
justificativa de cometer violência, destruição, exploração e assassinato para ganho
próprio. Além disso, ao criar uma gama de privilégios e poder graças à exploração e
concentração de bens e serviços, autoproclama essa condição como natural, digna,
irrefutável e imperceptível. Tendo isto em vista, nos estudos subalternos e decolo-
niais o mundo pós-colonização não é um mundo global sem impérios, mas o mundo
do sistema-mundo-moderno-colonial de gênero e raça, evidenciando um ideal de
cidadania branca, masculina, hétero e cristã.
De forma histórica a perpetuação da colonialidade em sua construção de con-
sensos brancos insólitos marcados pela racialização e sexismo estão presentes em
todas as instituições que compõem nossa sociedade, incluindo a produção cientí-
fica, porque estão em, e partem de, grupos sociais e da concepção de pessoa e de
indivíduo de nossa sociedade global. Consideramos portanto, que todo conheci-
mento é produzido em um território, guiado por experiências coletivas, e é delimi-
tado, assim como delimita, éticas, instruções legais, administrativas e simbólicas,
conceitualizadas por intelectuais inseridos e afetados novamente por esse terri-
tório (ZULMA, 2010). Seja o território o espaço criado e apropriado pelo corpo, o
espaço simbólico, e geográfico (NASCIMENTO, 2007; MBEMBE, 2014), esse concei-
to também remete ao de geopolítica do conhecimento (MIGNOLO, WALSH, 2018;
ZULMA, 2010), à localização do saber em relações de poder, entre corpos, territó-
rios, e desdobramentos. O conhecimento acadêmico, científico, comumente hoje
incentivado a ser globalizado, tem uma forte influência da colonização de países
Europeus nos países dos continentes África, Américas, Oceania e Ásia, de maneira
em que as instituições do saber, escolas, universidades, laboratórios, e centros de
pesquisa têm um vínculo contínuo com a colonização; a devastação ambiental e
social, a objetificação e monetização da natureza, das mulheres, das populações
negras e indígenas ao mesmo tempo em que se criou o humano de direitos, o hu-
mano atrelado à masculinidade, ao ocidente, e à brancura.

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A manutenção do epistemicídio, a morte, perseguição, desqualificação e ig-
norância de epistemologias e conhecimentos, frequentemente descrita nas co-
munidades e produções acadêmicas por argumentos como o de ‘ausência e de
desconhecimento’ serão aqui considerados como um desenrolar da ignorância
branca (MILLS, 2018) e da agnotologia (PROCTOR, 2020), em específico o estudo
da ignorância produzida de forma intencional. Para tanto serão considerados os
seguintes aspectos: a autopromoção de si na criação do universal; a objetificação e
outrificação do que se quer explorar; a construção e exclusão de espaços de poder.
Considerando esses três aspectos desenvolvemos a seguir o construto das univer-
sidades enquanto instituições modernas coloniais, e de autoridade, pautadas na
branquitude enquanto identidade pertencente a ela para, em seguida, mapear sua
influência em relação à produção de textos, pesquisas e ações, e ao acesso e per-
manência no ensino superior.

UNIVERSIDADES COLONIAIS, BRANCURA,


BUROCRACIA E ACESSO
Estudos da área da educação, assim como os censos da educação superior pu-
blicados no INEP1, mostram mudanças ao longo do tempo em relação ao acesso do
corpo docente e discente, expansão de vagas e instituições, e na funcionalidade
econômica e moral das instituições de ensino e na autonomia universitária frente
a pressões sociais e políticas. De forma geral abordam a existência de uma forte
influência entre produção de conhecimento, economia e governabilidade que evi-
denciam os apontamentos de Mignolo e Walsh (2018) sobre os estudos de episte-
mologias não serem separados dos estudos dos modelos econômicos atuais, nem
do passado.
Sendo a colonização um processo que resultou na destruição, imposição e re-
criação de modos de saber (BENTO, 2002; CARNEIRO, 2005; QUIJANO; 2005; MIG-
NOLO; WALSH 2018) as universidades representam instituições decorrentes desse
processo. São instituições formatadas como modernas e vinculadas ao estado-na-
ção. Antônio M. Magalhães (2006) afirma que as instituições de ensino superior,
tal como conhecemos hoje, foram moldadas e reformuladas a partir do século XIX
de tal maneira em que apresentam uma matriz moderna, articulando os discursos
de modernidade e produzindo recursos humanos para a consolidação do estado-
-nação. As universidades teriam assim contribuído com a burocracia estatal agre-
gando símbolos da supremacia da lei e da igualdade de todos perante ela em um
importante papel na construção da cidadania (MAGALHAES, 2006), mas ao mesmo
tempo essas instituições foram assim, sendo construídas, para estar sob a tutela

1 O INEP (Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) é uma autarquia federal
vinculada ao Ministério da Educação responsável por realizar e publicar censos do ensino superior
brasileiro. Desde 1995 é possível acessar informações do ensino superior no site do próprio INEP na
repartição Sinopses Estatísticas <http://portal.inep.gov.br/web/guest/sinopses-estatisticas>.

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da administração pública, mesmo as instituições privadas, estavam sob o domínio
estatal, tornando implícita a prestação de serviço à comunidade nacional (MAGA-
LHÃES, 2006). Desta forma, a questão a ser enfrentada ainda hoje, está em uma
burocracia que privilegia pessoas brancas, sua entrada e permanência nessas insti-
tuições, assim como sua permanência em espaços de maior maior prestígio à elas
e a seus temas de estudo.
Assim, a relação entre o ensino superior, modernidade e estado, não gera ape-
nas problemas em relação a autonomia e independência acadêmicas, mas indica a
formação dos estados-nação e do aparato de instituições no cerne da construção
da cidadania e ontologia do ser (CARNEIRO, 2005; LABORNE, 2017; MIGNO-
LO; WALSH, 2018; SILVIO, 2019), às configurando ao delírio da branquitude de
racializar todas as populações mas não a si mesma por se construir o eu superior
que nomeia e que projeta nas populações dizimadas todo horror, violência e des-
prezo que ela mesma cometeu (BENTO, 2002; CARNEIRO, 2005; MBEMBE, 2014).
Ou seja, as instituições modernas são formatadas pelo racismo e pelo sexismo
na conformação das desigualdades sociais (CARNEIRO, 2005; MIGNOLO, WALSH,
2018) e apresentam um corpo docente, discente, técnico, de autoridade e re-
presentação, historicamente delimitados pela racialização, perpetuando por um
lado a escravização das populações e por outro o trabalho incentivado, protegido
e remunerado da branquitude. As dificuldades de entrada e acesso aos sistemas
de ensino que populações populações negras e indígenas, mulheres e populações
brancas empobrecidas tiveram ao ensino superior, e ainda tem, são uma consequ-
ência desse espaço enquanto reprodutor e produtor do mundo-moderno-colonial
de gênero e raça.
Nesse sentido, no Brasil os amplos debates sobre a universalização do ensino
superior e das ações afirmativas são espelhos da consciência coletiva da branqui-
tude em sua autopromoção. Com um corpo docente composto, em sua maioria,
por homens brancos (RIOS, MELLO; 2019), as populações brancas empobrecidas,
principalmente homens brancos, vivenciam uma tendência de favorecimento ao
participar do ambiente universitário, enquanto mulheres brancas, e graças a bran-
quitude as mulheres negras ainda mais, enfrentam um problema crônico de acesso
a profissões com maior remuneração e ao corpo docente e administrativo das ins-
tituições (RIOS, MELLO; 2019). Esse alastramento do pacto do narciso que Bento
(2002) mapeou, ainda está protegido pela negativa e silêncio desse favorecimento
entre pessoas brancas, seja pela negativa em mostrar a raça-cor nas universidades.
Nesse sentido, estudar essa ignorância branca, de não se ver como um proble-
ma, ou alegar uma suposta inocência sobre esses acasos, é importante tanto para
construir análises sociais mais amplas sobre a sociedade e as instituições de ensino
quanto para elaborar políticas públicas realmente eficazes no desmascaramento
da democracia racial e na construção da democracia.

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Movimentos negros, pensamento, história e resistências
IGNORÂNCIA E INOCÊNCIA BRANCA
Os estudos sobre a ignorância, no formato de estudos da agnotologia, surgem
nos anos 90 se contrapondo ao estudo da ignorância como ausência de informa-
ção, ou conhecimento inalcançado pela perda, para o estudo da ignorância como
a produção de estratégias intencionais, ou criações deliberadas e conscientes de
desinformação, ocultamento, desprestígio ou desprezo para autobenefício (PROC-
TOR, 2020). Nesse sentido, Robert Proctor (2020) elenca três formas de ignorância:
a primeira diz respeito a ignorância como um recurso ativo, que desaparece com o
conhecimento e que abre outros desconhecidos para investigação; a segunda diz
respeito a eleição seletiva, que estuda as políticas de destruição do saber, como
ocorreu com conhecimentos e povos nas colônias, ou atualmente acontece com
ausência de financiamento, minimização de importância, e depreciação de um sa-
ber, ou de uma vertente, o tornando inacessível e esquecido; e a terceira, a igno-
rância enquanto artifício estratégico ideado de forma deliberada para um ganho,
que apresenta dentre as mais conhecidas e estudadas, os segredos comerciais, os
segredos militares, a criação ou manutenção da ignorância como resistência moral.
Ao estudar o terceiro tipo de ignorância, Proctor (2020) pontua as principais
estratégias, mapeadas pelas pesquisas da área ao longo dos anos, e dos casos es-
tudados, dentre as quais citamos aqui: 1) o falseamento de pesquisas realizadas
sobre um determinado tema; 2) a exigência de conceitos e pesquisas que compro-
vem uma verdade sólida inalcançável; 3) o prolongamento de incertezas graças ao
discurso de complexificação para anular os resultados já obtidos; 4) a controvérsia;
5) o tratamento das consequências e dos riscos como meros desacordos entre as
partes; 6) a criação de suas próprias fontes de pesquisa; 7) a produção da polêmica
como forma discursiva para falta de sentido e falseamento de forma que a ciência
e as pesquisas passam a ser consideradas como ‘uma informação de opinião’ e
não mais ‘uma pesquisa sobre ação com consequências claras vinculadas ao que
foi pesquisado’ e; 8) o não financiamento de pesquisas em uma determinada área.
De forma geral, a descrição de Proctor (2020) sobre a agnotologia pode ser
vista ao longo dos séculos como ações orquestradas para deslegitimar a ciência
por interesses políticos, sociais e morais, ou para manter o status de um grupo
como mais científico, ou mais válido e legítimo. E nesse sentido toda a trajetória da
ciência e das universidades, enquanto instituições coloniais modernas de gênero
e raça, está consolidada em divisões que fomentam ignorância colocando como
opostos inferiores às ciências humanas quando comparadas as exatas e biológicas
ou recriando conflitos dentro de cada grande área acadêmica, ou ainda estimu-
lando perseguição, desprestígio, e até difamação à alguns conhecimentos, áreas e
intelectuais. Essa atitude está na base da ciência, e faz referência às vertentes de
conhecimento e paradigmas que são contrários aos valores de objetificação de po-
pulações e da natureza, e que atuam no desmonte de táticas sexistas e da branqui-
tude. Nesse contexto, a questão que os estudos da ignorância colocam é que, assim
como o conhecimento têm uma geopolítica, a ignorância também têm. Existem

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 697


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
muitas razões para ‘não sabermos o que não sabemos’, ‘existe um quem não sabe,
porque e onde não sabe’. E ao orientarmos o olhar informados pela realidade das
racialização, conforme propõe Mills (2018), existe a ignorância branca, que projeta
várias perspectivas de um não saber intencionado, ou de ações e consequências
completamente não vistas, como se inocentemente fosse possível ver a coloniza-
ção, a miséria da maioria da população mundial, a destruição ambiental, o racismo
e o sexismo como meros desvios de uma sociedade que, em sua branquitude pro-
jetada a todos, esteja gentilmente sendo justa.
Dentro do campo de pesquisa sobre ignorância, Mills (2018) propõe então um
estudo sobre a epistemologia, em específico a epistemologia social, com o questio-
namento em considerar dentro da produção do saber as implicações análiticas e
teóricas do sujeito, de seu pertencimento ao grupo e da construção de memórias
coletivas. Ele faz esse apontamento para estudar uma característica difusa de igno-
rância, mais especificamente a ignorância branca, conectada a supremacia branca.
Próximo ao conceito de inocência branca de Glória Wekker (2016), que estudou a
postura política e pública de negação da existência da colonização holandesa e do
racismo entranhado pelos holandeses, na teoria de Mills (2018) é possível afirmar
que existiria também essa presunção de inocência branca, até mesmo sobre não
saber ser parte das relações étnico-raciais. E nesse sentido a inocência branca e a
ignorância branca são estratégias fundamentais para a análise dos operadores da
branquitude nas instituições, dentre elas as do ensino superior.
A ignorância para ambos autores diz respeito à estratégias estruturais conscien-
tes e inconscientes de enganar mas Mills (2018), assim como o trabalho de Bento
(2002), aprofunda a questão sobre a perspectiva ontológica ao afirmar que a igno-
rância branca não é pautada apenas para o ganho privado de uma indústria, de um
partido, ou de um grupo restrito, mas de uma hegemonia em relação a noção de
humanidade que, pautada na disseminação da desinformação, na distribuição do
erro massivo, e em práticas sociais intencionais que encorajam ações perniciosas,
tem sido sistematicamente utilizada como instrumento da branquitude, inclusive
para presumir e defender sua inocência de grupo diante do continuidade da colo-
nialidade. Nesse sentido, tal como descreve Mills (2018) a ignorância branca é so-
cioestrutural e tem a raça como responsável pelo desconhecimento e justificativa
do dano.
Como afirma Mills (2018) sobre a produção de conhecimento, e esse paralelo é
também encontrado na obra de Mbembe (2014), Bento (2002) e Carneiro (2005),
essa perspectiva da ignorância branca, ou do epistemicídio, ou do pacto do narciso,
é a de produzir má fé, evasão, má representação, e uma perspectiva intencionada.
Assim, um dos princípios básicos da ignorância branca na ciência é fazer uma epis-
temologia pautada na branquitude, mas dita inocente em não se ver racializada.
É estudar e objetificar a pobreza, as populações indígenas e quilombolas, o ‘pro-
blema do negro’ e a feminização sem considerara riqueza, os grupos de prestígio,
a branquitude, as masculinidades tóxicas, a extrema direita e toda a implicação

698 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


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que esses últimas tem em relação as primeiras. Nas instituições de ensino, essa
perspectiva desenvolve, instrumentos, operadores e estruturas que interferem e
consolidam o cotidiano das instituições.

INTENCIONADOS, AUTOPROTEGIDOS E RECORRENTES:


O CICLO DOS OPERADORES DA BRANQUITUDE
Entendendo então, os operadores da branquitude como ações, leis, interven-
ções, práticas jurídicas e discursos que mantêm privilégios à brancura, nós nos
baseamos no conceito de dispositivo do racismo de Sueli Carneiro (2005) e apon-
tamos que eles não tem uma ação individual e pontual, mas são coexistentes,
coextensivos, e atuam conjuntamente. A produção de conhecimento científico e
suas aplicações no ensino superior, e escolar, apresenta vários operadores da bran-
quitude. Um dos operadores mais profundos, e amplamente estudado, interliga
a autopromoção da branquitude com a concepção científica de criação e manu-
tenção do que é ‘objeto de estudo e da neutralidade desse estudo’. A extensão da
constituição do objeto à pessoas, conjunta a pressuposição de neutralidade, criou
a possibilidade de objetificação e outrificação para exploração. Como estudam há
muitas décadas as vertentes feministas, e recentemente os estudos subalternos e
descoloniais, a própria nomeação e conceitualização é um problema. Mills (2018)
descreve que conceitos como selvagem, civilização, primitiva, ancestral, espelha-
vam mais a relação dos impérios coloniais que do conhecimento. Já, em um dos
trabalhos mais recentes, que questionam conceitos sobre sua herança histórica
patriarcal e colonial, Grada Kilomba (2019) coloca sob rasura os conceitos sujeito,
objeto, outra, negro, negra, mestiça, subalterno, dentre outras.
Inicialmente tanto a objetificação quanto a outrificação são justificadas nas en-
tranhas das instituições por um tipo de superioridade da branquitude predatória,
imperialista e hedionda, mas projetada como neutra, universal, aliada a verdade,
justa e imperceptível. Esses conceitos agem ainda como operadores que marcam
temas de pesquisa como inferiores, e desprestigiam pesquisas sobre a constituição
de raça e gênero do corpo docente das instituições de ensino, por exemplo sendo
contrários a agregar, como obrigatória, a autodeclaração racial ou a aplicação de
cotas afirmativas ao corpo docente e técnico porque esse espaço historicamente
da elite branca, as universidades brasileiras, não foi estruturada para ser multirra-
cial. Esse espaço foi projetado objetificando e prestando serviços ao estado-nação
com os estudos da raça, pobreza, sexo, e do multirracial para sustentar teorias de
democracia racial, no caso do Brasil, ou da ausência do multirracial, como argu-
menta Wekker (2016) sobre o estado holandes.
Ainda sobre esse operador, agora tratando sua perspectiva de junção com a
universalização, ele também comumente está pautado na neutralidade supondo
o ‘melhor ou mais natural’, e acaba resultando na brancura como superior, e na-
turalizada em sua predominância nos espaços, ou sua utilização silenciosa para a

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 699


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
promoção de ‘ausências’. Até meados do século XXI populações indígenas e qui-
lombolas não tinham acesso ao ensino superior, nem eram consideradas juridi-
camente aptas a ter escolas comunitárias, ou a gerenciar as escolas com planos
políticos pedagógicos autônomos. Além disso, o corpo administrativo das escolas
estão pautadas no favorecimento da branquitude a ponto de resultarem em uma
baixa representatividade, contratação, e até mesmo participação e possibilidade
de intervenção de docentes quilombolas e indígenas nas instituições em suas co-
munidades. Outro desdobramento comum desses operadores é a amnésia seletiva,
ou utilizando o estudo de Mills (2018), o apagamento ou a ausência da memória
da colonização e a continuidade de privilégios da branquitude ao ignorar as in-
fluências na produção de conhecimento dos grupos e seus interesses nos estudos
epistemológicos, o que tem resultado nos seguintes aspectos: ora temos uma sub-
-representação da escravização e da colonização, enquanto produção de conteúdo
acadêmico, midiático e jurídico favorável a brancura; ora as produções intelectuais
canônicas e catedráticas, podem ser interpretadas a partir dos conceitos de inocên-
cia branca (WEKKER, 2016) e ignorância branca (MILLS, 2018), por sua suposta e
autoproclamada benevolência em relação ao papel da branquitude; ora produzem
sobre temas etnico-raciais sem considerar a branquitude, ou ainda mais comum,
produzem sobre étnico-racial sem considerar as causas, consequências ou respon-
sabilidades sociais, econômicas e políticas da promoção da branquitude (CARNEI-
RO, 2005; MILLS, 2018; LABORNE; 2017; CARDOSO, 2017).
Em exemplos empíricos podemos ver os operadores acima na disseminação e
canonização disciplinar de teorias que pregam a inocência branca na democracia
racial, na miscigenação de antemão positivada, uma vez que ambas veem no co-
lonizador, e projetam sua branquitude, como positiva em relação a escravização e
a colonização. Também estão presentes nos ciclos de citação majoritariamente de
autorias brancas, e na recorrente contratação de pessoas brancas, conforme apon-
tam Bento (2002) e Sueli (2005). É possível mapeá-la também no desgaste público
acadêmico sobre as cotas afirmativas, largamente confrontadas pela suposta inca-
pacidade cognitiva dos estudantes que a utilizariam, ou na suposta solução de im-
plementar apenas cotas de renda alegando que a classe social seja mais relevante
para lidar com a desigualdade do que critérios que adotassem a perspectiva racial.
Essas situações basilares do ensino superior brasileiro, seja sobre o conteúdo da
produção canônica e disciplinar, seja sobre o acesso ao ensino superior, estão pro-
fundamente imbricadas pela ausência de memória, ou a amnésia coletiva e falta de
responsabilidade da branquitude (MILLS, 2018). Além disso, partindo de Cardoso
(2017), na maior parte dos casos os exemplos acima são ministrados pela branqui-
tude crítica, demonstrando a atuação da estrutura racista mesmo em quem tem
práticas ditas publicamente antirracistas.
Por fim, os operadores da exclusão apontam portanto para elitização da bran-
cura das corporalidades que trabalham nas instituições, influenciam na entrada
de pessoas brancas, na orientação seletiva de temas, na repetição e promoção de

700 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
teorias brancas com persistência de autoria, e no desprestígio e difamação tanto
de docentes quanto das teorias, pesquisas e pessoas. As altas taxas de sofrimento
psíquico bem como síndromes de impostor, e até o aumento de taxas de sucí-
dio de jovens da pós-graduação, fazem parte da perpetuação da brancura nessas
instituições frente a corporalidades e territórios que não a ocupavam enquanto
saber e poder. Esse agir do epistemicídio, conforme mapeou Sueli Carneiro (2005)
não será revertido sem o que Mills (2018) elenca como formas de combate a igno-
rância branca: fazer justiça racial pela memória, ou seja reconhecendo os contex-
tos informados pela realidade da raça; reconhecer também os problemas morais,
epistemológicos, econômicos e políticos de uma sociedade que tem como base
a colonização exploradora branca; demonstrar os interesses do grupo branco e
sua autopromoção como sustentadora da ignorância branca; revisitar as memó-
rias hediondas para desfazer a auto-enganação e pretensa generosidade do grupo
branco; se situar nos grupos de referência e parar de citar apenas autorias brancas
em círculos fechado de autoridade epistêmica que reproduz a ignorância branca.

REFERÊNCIAS

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XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 701


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
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WEKKER, Glória. White innocence: paradoxes of colonialism and race. Durham/Londres,


Duke University Press, 2016.

AUTORIA
Elismênnia Aparecida Oliveira
Programa de Pós-graduação em Sociologia
E-mails: mennalis@gmail.com
ORCID: 0000-0001-7160-9997
Lattes: http://lattes.cnpq.br/0534917663301011|

Francy Eide Nunes Leal


Programa de Pós-graduação em Antropologia- FCS|UFG
E-mail: francyeide@gmail.com
Link: http://lattes.cnpq.br/4407350387008210

702 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ST 51
Produção de
Pesquisadore(as)
Negros(as) Nas
Ciências Naturais
e Tecnológicas:
quem somos e o
que fazemos?
COMPUTAÇÃO, ENGENHARIA DE SOFTWARE E
DIVERSIDADE ÉTNICO RACIAL:
UM MAPEAMENTO SISTEMÁTICO

Michelle Borges Miranda

INTRODUÇÃO
Estudos sobre diversidade tem se tornado frequentes nas Ciências Exatas e Tec-
nológicas, e particularmente na Engenharia de Software, que é uma área ampla-
mente difundida dentro da comunidade de computação1. Por ser, a Engenharia de
Software, uma área constituída por um conjunto de elementos com fatores sociais,
permeada por complexidades de caráter técnicos e de comportamento humano,
ela tornou-se uma importante área dentro da comunidade da computação para re-
alizar e disseminar pesquisas e estudos empíricos, a fim de compartilhar realidades
e promover discussões sócio-técnicas (Rezende, 2006).
Entre essas discussões sócio-técnicas o tema da diversidade vem ganhando
mais espaços, principalmente estudos que versam sobre a participação de deter-
minados grupos dentro dos ambientes da computação, sejam acadêmicos ou em-
presariais. A título de exemplo, pesquisas sobre gênero, e participação feminina na
Computação e Engenharia de Software têm alcançado destaque e interesse de tal
forma que tem-se criado dentro dos principais eventos da área, trilhas específicas
para produções científicas sobre esse tema.
Embora o número de estudos científicos que abordem o tema da diversida-
de étnico-racial na computação sejam quantitativamente menores, em relação à
outros estudos de grupos de diversidade na computação, percebe-se que há um
interesse ou curiosidade em torno da discussão da diversidade étinico-racial e suas
implicações nas áreas da computação. Assuntos como inteligência artificial, algo-
ritmos racistas, práticas anti-racistas em ambientes de trabalho em empresas de
computação, processos seletivos intencionais para pessoas negras, chamam aten-
ção nos ambientes acadêmicos e empresariais.
Entretanto, no âmbito das organizações empresariais ou governamentais o de-
bate sobre diversidade étnico-racial não é recente. Discussões sobre ações afirma-
tivas, cotas, gestão da diversidade são tópicos vêm sendo discutido ao longo dos
anos. No Brasil, especialmente no ano de 2020, observou-se uma grande discussão
em torno da legalidade de ações afirmativas dentro de empresas em virtude de

1 Por computação, compreende-se pelo conceito da ciência da computação englobando todas


as disciplinas desta área. De acordo com Silva et. al. (2017) no Brasil, as áreas de informática, compu-
tação e tecnologia são frequentemente utilizadas como sinônimos. Embora existam diferenças entre
esses termos, neste trabalho, esses termos são utilizados como sinônimos.

704 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
ações pontuais de empresas2 que optaram criar programas de desenvolvimento
técnico ou processos seletivos específicos para a pessoas negras(pretas e pardas),
sendo algumas dessas empresas dos setores da tecnologia3.
Diante do exposto, este artigo tem como objetivo mapear e identificar os traba-
lhos sobre diversidade étnico-racial publicados nos principais canais de veiculação
dos trabalhos científicos da computação. Além disso, buscou-se também identifi-
car quais os temas em relação a diversidade étnico-racial são debatidos, os locais
de discussão, frequência, bem como outros elementos que possam contribuir para
um entendimento geral sobre a discussão étnico-racial na área da computação e
engenharia de software.
Para alcançar esse objetivo optou-se por uma metodologia de pesquisa que
possibilitasse a investigação sistemática e criação de um mapa sistêmico permitin-
do identificar e analisar pesquisas correlacionadas. A metodologia utilizada para
realização deste trabalho foi o Mapeamento Sistemático, guiado a partir do seguin-
te questionamento: Como o debate sobre a diversidade étnico-racial vem sendo
retratado na literatura da computação e engenharia de software?.
A fim de auxiliar no entendimento deste trabalho, o presente artigo segue es-
truturado da seguinte forma: a próxima seção destaca os principais conceitos que
compõem o aporte teórico deste trabalho; em seguida é a apresentada a metodo-
logia que foi utilizada para realizar os objetivos deste trabalho; na próxima seção
são apresentados os resultados obtidos e discutidos e analisados os resultados en-
contrados; por fim a última seção apresenta a conclusão deste trabalho apresen-
tando os próximos passos deste trabalho.

APORTE TEÓRICO
Esta seção tem por finalidade apresentar conceitos e informações sobre os prin-
cipais temas relacionados a este trabalho, a fim de contribuir para o entendi-
mento das análises dos resultados apresentados posteriormente.

COMPUTAÇÃO E ENGENHARIA DE SOFTWARE


Segundo Peter J. Denning (2005) a ciência da computação (antigamente sim-
plificada apenas por computação) é o agrupamento de diversas disciplinas como a
computação, engenharia, matemática, arte e todas as outras combinações rela-
cionadas a tecnologia. De forma geral e formal, a ciência da computação é defini-

2 Link de programas e processos seletivos intencionais para pessoas negras que ganharam des-
taque em 2020. https://liderancanegra.ciadetalentos.com.br/, https://carreiras.magazineluiza.com.br/
times/Jovens%20Talentos/Trainee, https://oportunidades.eureca.me/oportunidade/jovemaprendiz-
-bancobv2021
3 Link para o programa Enegrecer a Tecnologia, de uma empresa de tecnologia. https://www.
thoughtworks.com/enegrecer

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 705


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
da também como o estudo de processos algorítmicos e computacionais, podendo
envolver estudos teóricos de elementos técnicos da computação (software ou har-
dware), questões práticas desses elementos e atualmente, questões sócio-técnicos
(Dijkstra, 1986; Denning, 2000; Floridi, 2010).
Peter J. Denning (2005) afirma que a depender do local onde a discussão esteja
sendo realizada, outros sinônimos podem ser utilizados para se referir a ciência
da computação, a exemplo de alguns países na Europa que utilizam o termo infor-
mática. Silva et. al. (2017) afirma que no Brasil observa-se que outros termos são
utilizados para referir-se ao mesmo entendimento embora haja diferenças entre os
conceitos de tais termos como: tecnologia, informatica, computação.
Entre as disciplinas que compõem a ciência da computação a engenharia de
software faz-se presente, sendo esta mesma composta por outras 15 disciplinas
que envolvem desde questões técnicas como análise de requisitos, construção e
testes de software, até questões de ética do engenheiro de software. Desta forma,
a Engenharia de Software é uma área amplamente difundida dentro da Ciência da
Computação, possuindo uma extensa literatura que define seus conceitos e suas
características abrangendo tanto os aspectos tecnológicos como aspectos huma-
nos que interagem entre si ( Rezende, 2006; Sommerville, 2011).
Sendo assim, a engenharia de software torna-se um campo propício para apoiar
pesquisas dentro da área da ciência da computação que visem identificar e ana-
lisar os fatores humanos que incidem em pessoas e equipes que podem ser de-
terminante para compreensão do desempenho na engenharia de software e da
ciência da computação de forma geral. Isso porque desenvolver software é uma
tarefa intelectual, essencialmente desenvolvida por pessoas, organizadas ou não
em equipes.

DIVERSIDADE ÉTNICO-RACIAL
De acordo com Freitas ( 2015) " Diversidade é uma característica intrínseca a
humanidade, que, devido a sua transversalidade e complexidade, tem gerado um
intenso debate em diversas esferas das sociedades contemporâneas nas últimas
décadas".
Louafia and Ouahmiche (2017) tratam da diversidade e diferença de forma am-
pla, entendendo que sua definição assume significados variados. Para as autoras,
apesar das múltiplas possibilidades que a diversidade assume, de forma geral ela
está relacionada à noção de variedade, diferença e oposição. De acordo com (Page,
2019), a diversidade pode ser dividida e examinada em dois grupos principais: cog-
nitivo e identidade. Sendo a diversidade de identidade compostas por subgrupos
como gênero, etnia, cultura, território, religião, orientação sexual e outros marca-
dores sociais.
Entretanto, debater apenas sobre diversidade pode resultar em um distancia-
mento ou mesmo apagamento dos diversos grupos que auxiliam a compor essa

706 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
diversidade. Desta forma, identificar sobre quais grupos de diversidade estamos
nos referindo e discutir sobre os aspectos que os caracterizam é fundamental para
obter-se uma compreensão mais apurada sobre os dados que se levantam em re-
lação ao grupo de diversidade em questão.
Desta forma, dentro dos grupos de diversidade de identidade podemos inferir
a diversidade étnico-racial. A diversidade étnico-racial segundo (Gomes, 2005) é
a forma como lguns intelectuais referem-se ao segmento negro. De acordo com a
autora o termo étnico-racial compreende a "multiplicidade de dimensões e ques-
tões que envolvem a história, a cultura e a vida dos negros no Brasil" além das
características fisícas e a classificação racial (Gomes, 2005).
Para (Gomes, 2005) a expressão étnico-racial vem sendo adotada dentro dos
contextos teórico e político tentando acabar com o impasse e dicotomia entre os
conceitos de raça e etnia para referir-se ao segmento negro. A autora acrescenta
ainda que, para uma compreensão em profundidade das relações étnico-raciais de-
ve-se considerar os processos identitários vividos pelos sujeitos, ou seja, o "modo
como esses se veem, identificam-se e falam de si mesmos e do seu pertencimento
étnico-racial" (Gomes, 2010).

METODOLOGIA
Para atingir os objetivos deste trabalho foi escolhido como metodologia o ma-
peamento sistemático. De acordo com (Petersen, 2008), o objetivo do mapeamen-
to sistemático é fornecer um mapa de categorias encontradas através da realiza-
ção de um protocolo bem definido de estágios, que permite análises e revisão de
estudos de uma determinada área de forma aprofundada, possibilitando conclu-
sões mais gerais.
O processo de mapeamento consiste em: planejamento ; ação; descrição e diag-
nóstico do mapeamento. Na fase de planejamento é confeccionado um protocolo
de pesquisa e definição da condução da mesma, tais como: definição das questões
de pesquisa, da String de busca, seleção da base de dados onde serão realizadas as
pesquisas, definição dos critérios de inclusão e exclusão de estudos, extração dos
dados e ameaças à validade (Petersen, 2008).

QUESTÃO DE PESQUISA
A questão de pesquisa definida para este estudo foi: Como o debate sobre a
diversidade étnico-racial vem sendo retratado na literatura da computação e en-
genharia de software?

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 707


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
SELEÇÃO DAS PALAVRAS-CHAVES E DEFINIÇÃO DA STRING
DE BUSCA
A seleção das palavras-chave foi baseada em mapeamentos anteriores relacio-
nados à diversidade e engenharia de software. Foram realizadas simulações de
busca por artigos com palavras relacionadas à diversidade e engenharia de softwa-
re, a fim de verificar o retorno de trabalhos nas bases de dados. As palavras-chaves
selecionadas e que formaram a string de busca foram: ("Software Engineer" OR
"Software Developer" OR "Software Development" ) AND ( diversity OR ethnicity
OR racial OR ethnic )

BASE DE DADOS
Para a seleção de banco de dados, optou-se pela utilização de bancos de da-
dos eletrônicos que atendiam os seguintes critérios de seleção: Bancos de dados
com um mecanismo de pesquisa avançado; Bancos de dados indexem um número
significativo de conferências, revistas relacionadas a área da computação; Bancos
de dados que fornecem acesso a artigos completos e abertos escritos em inglês e
português. Com base nesses critérios foram selecionados os seguintes bancos de
dados: Biblioteca Digital ACM, IEEExplore e Scopus.

CRITÉRIOS DE EXCLUSÃO E INCLUSÃO DE ESTUDOS


Os critérios de exclusão definidos para este estudo foram: Artigos que não estão
concentrados na engenharia de software ou áreas relacionadas relacionados com
diversidade étnico-racial; Artigos de cursos, resumos e painéis; O formato do es-
tudo não está em pdf; O formato do estudo não está aberto para consulta pública.
Os critério de inclusão definidos foram: Os termos definidos para a pesquisa ou
por semelhança com o assunto; Artigos de periódicos acadêmicos, conferências e
workshops; Trabalhos escritos em inglês e potuguês.

EXTRAÇÃO E CLASSIFICAÇÃO DE DADOS


A extração de dados desse mapeamento deu-se através de três triagens. Na
primeira triagem foram utilizados os critérios de inclusão e exclusão, verificando
os títulos e palavras-chaves dos documentos encontrados. Na segunda triagem a
extração dos dados deu-se a partir da leitura dos resumos dos artigos. Por fim, a
terceira triagem consistiu na leitura completa dos estudos onde pode-se extrair as
observações apresentadas na seção de resultados.

708 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
AMEAÇAS À VALIDADE
Em relação às ameaças à construção da validade, percebe-se que a terminologia
relacionada à diversidade e gestão da diversidade é extensa e complexa, portan-
to, as variações das palavras-chaves podem resultar em resultados diversos. As
triagens realizadas com base nos critérios de inclusão e exclusão também podem
apresentar ameaças à validade da pesquisa por permitir que artigos relevantes não
apareçam no conjunto final dos documentos selecionados. Para evitar essas ame-
aças, todos os artigos que apresentaram ambiguidades foram incluídos na etapa
seguinte da triagem com o propósito de aprofundar a investigação e evitar equí-
vocos.

RESULTADOS E ANÁLISE
De acordo com o mapeamento sistemático realizado até o mês de junho de
2020 foi possível observar alguns estudos na literatura da Engenharia de Software
que abordam sobre alguns aspectos da diversidade étnico-racial. Neste mapea-
mento foram encontrados 54 documentos através das bases de dados (ACM, IEEE
e SCOPUS). Após a aplicação dos critérios de inclusão e exclusão através das pala-
vras-chaves e os títulos encontrados, selecionamos um total de 3 artigos.
Em relação a QP1 "Como o debate sobre a diversidade étnico-racial vem sendo
retratado na literatura da computação e engenharia de software?", identificou-se
três trabalhos que abordam diretamente sobre alguns aspectos do seguimento ne-
gro. Estes artigos identificados discutem a diversidade de étnico-racial em termos
de educação, modelos e métodos do ensino da engenharia de software [A2] [A3] e
desempenho de equipe de desenvolvimento de software [A1].

TABELA 1: RELAÇÃO DE ARTIGOS ENCONTRADOS SOBRE DIVERSIDADE


ÉTNICO-RACIAL E ENGENHARIA DE SOFTWARE

Nº ARTIGOS NOME DO TRABALHO AUTORES

Enhancing collaboration in ethnically Congalton J., Logan K.,


A1
diverse software development teams Crump B.
S. E. Leonard; B. M.
Minority student informed retention
A2 Pearcy;
strategies
R. L. Shehab; S. E. Walden
Towards contextualised software
Fendler J., Winschiers-
A3 engineering education: An African
Theophilus H.
perspective
Fonte: tabela feita pela autora, Outubro, 2020.
O artigo [A1] apresenta e propõe uma método de ensino e aplicação da Enge-
nharia de Software contextualizada, pensando no público-alvo localizado na Namí-
bia, sugerindo currículo, métodos de ensino e critérios de avaliação, mesclando o
conhecimento internacional, conhecimento e o contexto étnico local. De acordo
com os autores, os livros didáticos mais utilizados em Engenharia de Software apre-
sentam conceitos e métodos que não se aplicam em todos os contextos étnicos.
Para os autores do [A1] é necessário que a Engenharia de Software revise e
adapte continuamente padrões e processos já estabelecidos, pois, embora esteja
ocorrendo nos últimos estudos uma maior compreensão da relação entre desen-
volvimento de software e contexto sobre diferenças étnicas, ainda se "desconside-
ra valores intrínsecos do contexto cultural de origem e se manifestam nos concei-
tos subjacentes da Engenharia de software".
O artigo [A2] aborda estratégias de inclusão e retenção para grupos de étnicos
em cursos relacionados a computação devida a baixa taxa de conclusão de curso
desses estudantes. Os autores do artigo encontrado [A2] identificou que o princi-
pal fator que afeta a persistência de estudantes de grupos étnicos tende a ser o
acesso limitado a apoio e recursos necessários.
Os autores do artigo encontrado [A2] exploraram os fatores que contribuem
para o sucesso dos estudantes de etnias minoritárias no ambiente da computação
e como resultado, sugerem algumas recomendações sobre como melhorar a par-
ticipação de grupos étnicos: programas de apoio nos quais tais estudantes possam
adquirir experiências e oportunidades; colaboração, atividades em pares e criação
de estudo com diversidade racial/étnica; incentivo a construção de relacionamen-
tos com os alunos e professores de cultura semelhante. Observa-se, nas ações su-
geridas, a influência de práticas culturais da engenharia de software tais como a
colaboração e o compartilhamento de conhecimento.
Observa-se que, apesar de já estar sendo fomentado a discussão sobre a ne-
cessidade de se refletir a diversidade étnico-racial nos campos das engenharia de
software, percebeu-se que uma ausência de conhecimento de quais elementos
norteiam o debate sobre diversidade étnico-racial que vão tangenciar o campo da
engenharia de software ou mesmo a prática no dia a dia das empresas de TI. Este
fato é comum, dado que a discussão ainda é nova na área das ciências exatas em
relação com outras disciplinas das ciências humanas, saúde e da antropologia que
já debatem a mais tempo os impactos das especificidade de culturas grupos de
diversidade étnico-racial em diversos outros contextos.
Uma rápida leitura sobre outros estudos achados sobre diversidade na com-
putação percebe-se que, mesmo os estudos de gênero na computação (que têm
sido frequentes nos últimos anos) ainda são limitados quanto a norma estabelecida
sobre o que seria a maioria das pessoas mulheres dentro das áreas Ciências, Ma-
temática, Engenharia e Tecnologia: Mulheres cisgêneras e brancas. Ou seja, tais
artigos deixam de lado diversos indicadores importantes que incidem diretamente

710 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
na qualidade de vida e nos fatores de êxitos das mulheres negras que poderiam ser
analisados e contribuir para o desenvolvimento de outras pesquisas.
O número de trabalho sobre diversidade étnico-racial identificados é baixo
frente ao tempo que a discussão da importância da diversidade ocorre dentro da
área da computação (ainda que está também seja nova na área, datada a partir do
ano de 2002), os artigos sobre diversidade étnico-racial identificados nesse ma-
peamento surgem em meados do ano de 2010 e voltam a aparecer nos principais
eventos da área no ano de 2013. Comparado aos trabalhos de sobre diversidade de
gênero que desde o ano de 2003 só crescem, é válida a reflexão sobre quanto tem-
po será necessário para que a diversidade étnico-racial ganhe notoriedade dentro
da área da computação.
Diversos trabalhos que debatem sobre a importância da diversidade nas ciên-
cias exatas e na computação citam apenas a diversidade étnico-racial como uma
das diversidades possíveis dentro do espectro da diversidade. Entretanto, não se
aprofundam em analisar o que significa a diversidade étnico-racial, dados sobre
esta população ou contribuição dentro da área, reflexões sobre oportunidades e
desafios, toda essas questões são na maioria dos trabalhos que abordam diversi-
dade de modo geral de certa maneira inexistentes até o presente momento dentro
dos resultados encontrados neste mapeamento.
Não foram observados trabalhos que propusesse um debate mais teórico den-
tro da área da computação apoiado ou não nas demais ciências (sociais, psicologia,
antropologia), que discuta o segmento negro na área da computação, tal como
observa-se o debate de gênero. Também não foram identificados outros mapea-
mentos ou revisão da literatura sobre o tema. Apesar disso, compreende-se como
necessário e urgente a reflexão sobre a diversidade étnico-racial na computação
e engenharia de software, bem como nas ciências exatas e tecnológicas como um
todo.

CONCLUSÕES
Um mapeamento sistemático tem como objetivo investigar em profundidade
determinado objeto de pesquisa e apresentar uma panorama geral sobre o mes-
mo. A partir da questão de pesquisa " Como o debate sobre a diversidade étnico-
-racial vem sendo retratado na literatura da computação e engenharia de softwa-
re?" observou-se que ainda temos um grande caminho a ser percorrido no que
refere-se a produção de trabalhos e reflexões sobre a importância e as questões
que norteiam a diversidade étnico-racial dentro da área da computação e enge-
nharia de software.
Observa-se que a maioria dos estudos produzidos até o presente momento re-
ferem-se às questões sobre ensino da engenharia de software em outro grupos
étnicos, as dificuldades de estudantes do segmento negro em se manter na área
da computação e desempenho de equipes no trabalho de desenvolvimento de sof-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 711


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
tware. Este mapeamento identificou três trabalhos que analisaram diretamente
questões relacionadas diretamente ao segmento negro, entretanto, esse número
está longe de ser o ideal, porém, ele já nos permite perceber o lugar que este de-
bate está colocado dentro da área da computação, as nossas oportunidades e os
nossos desafios.
Este trabalho é uma pesquisa inicial que compõem um tese de doutorado. No-
vos estudos e pesquisas de campo fazem-se necessários e serão realizadas em tra-
balhos futuros devido a necessidade de se refletir a engenharia de software atra-
vés da lente da diversidade étnico-racial.

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nal Journal of Language and Linguistics 5.1 (2017): 15.

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712 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
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AUTORIA
Michelle Borges Miranda
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
E-mail: michelle.miranda@edu.pucrs.br
ORCID: 0000-0001-9397-2471
Lattes: http://lattes.cnpq.br/1240633612421357

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 713


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
RAÇA: DO COLONIALISMO À GENÔMICA
Florença Freitas Silvério
Douglas Verrangia

INTRODUÇÃO
Nesse texto propomos uma discussão que promove intercruzamentos entre So-
ciologia e Biologia e que pode contribuir para uma educação em Ciências e Biolo-
gia comprometida com a educação das relações étnico-raciais. Apresentamos uma
articulação de algumas contribuições de Quijano (2005), Grosfoguel (2016), Wade
(2017) e Gilroy (2007). Esse esforço é importante para o ensino de Biologia, uma
vez que estamos constatando em nossa pesquisa em andamento, que há uma au-
sência de diálogo com outras áreas do conhecimento nas abordagens do ensino de
Biologia que envolvem raça e racismo. Em nossa pesquisa com livros didáticos de
Biologia percebemos que, quando se discute tais temas, isso é feito de forma res-
trita ao que os livros consideram “conceito biológico de raça”, não abrindo espaço
para discussões mais historicizadas. Há uma abordagem profundamente a-histó-
rica, onde as influências políticas e econômicas, situadas nas relações sociais de
poder, são completamente ignoradas quando se trata da racialização da huma-
nidade. Assim, percebemos a necessidade de propor um debate para o ensino de
Biologia, que ancore a construção da raça e, consequentemente, do racismo, nos
debates históricos e sociológicos, sem ignorar a dimensão biológica, sobretudo da
biologia molecular e da genômica. É nesse sentido que apresentamos esse texto,
na tentativa de articular uma discussão sobre raça que abranja seu fundamento
histórico, ou seja, o colonialismo, e o conflito de suas dimensões contemporâneas,
sobretudo aquelas ligadas à genômica. Dessa forma, defendemos uma abordagem
transdisciplinar para a construção de uma educação das relações étnico-raciais no
ensino de Biologia.
Essa abordagem que propomos esta informada da existência do eurocentris-
mo enquanto racionalidade específica e hegemônica da Modernidade (QUIJANO,
2005), compreendendo que a racialização da humanidade, a partir do colonialis-
mo, não criou apenas uma hierarquia de fenótipos, mas também uma hierar-
quia de conhecimentos, onde os europeus construíram sua primazia falaciosa,
ao ponto de parecer natural, criando uma colonização das perspectivas cognitivas
(QUIJANO, 2005).

A RAÇA COMO FUNDAMENTO DO COLONIALISMO


A hegemonia do conhecimento europeu, o eurocentrimo, só se realiza através
do genocídio, necessariamente vinculado ao epistemicídio, dos sujeitos coloniais

714 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
(GROSFOGUEL, 2019). Isto que dizer que, além do assassinato em massa progra-
mado dos colonizados (genocídio), houve uma destruição sistemática dos conhe-
cimentos já produzidos por esses, bem como um processo de descreditamento
da racionalidade desses sujeitos, impedindo que fossem vistos como sujeitos cog-
noscentes. Dessa forma, ao longo da história, os homens ocidentais construíram o
privilégio epistêmico de definir o que é a verdade (GROSFOGUEL, 2016). Esses pro-
cessos têm gerado estruturas e instituições que produzem o que Grosfoguel (2016)
chama de racismo epistêmico. É importante apontar que, para o autor, o genocídio
e o epistemicídio atingem não somente os sujeitos coloniais, mas também as mu-
lheres (da colônia, mas também as europeias), de modo que o racismo epistêmico
também é acompanhado de um sexismo epistêmico. Essa conformação epistêmica
desqualifica quaisquer outros conhecimentos e outras vozes críticas frente ao em-
preendimento colonial e patriarcal.
O racismo epistêmico é central no novo padrão de poder estabelecido pela Mo-
dernidade. Um dos eixos fundamentais desse novo poder é o constructo da raça
(QUIJANO, 2005). Segundo Quijano (2005), raça é “[...] uma construção mental que
expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia
as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade es-
pecífica, o eurocentrismo.” (p. 107). A ideia moderna de raça tem origem colonial,
mas provou ser mais duradoura e estável que o colonialismo (QUIJANO, 2005). É
uma falsa construção mental porque não tem qualquer base biológica ou antro-
pológica, ela atende a uma necessidade de justificação da dominação colonial. No
entanto, fazem parte da história do estabelecimento da raça enquanto categoria
de hierarquização humana, justificações biológicas e antropológicas.
Os significados sobre uma hierarquização de seres humanos passam por uma
perspectiva religiosa (seres com alma x seres sem alma), que é secularizada pela
filosofia moderna, sobretudo pela filosofia cartesiana, que estabelece uma divisão
radical entre mente e corpo, até chegar a uma noção de inferioridade biológica do
colonizado. Nesse sentido, há um papel fundamental das Ciências Naturais em for-
necer o aporte científico para a construção moderna da raça. A raça, segundo Qui-
jano (2005), “[...] foi construída como referência a supostas estruturas biológicas
diferenciais entre esses grupos.” (p. 107). A biologização da diferença, escreve uma
história sobre as raças que se faz em um discurso sobre morfologia física (GILROY,
2007), muito ligada a uma epidermização do racismo. Assim, a diferença física,
concebida pela biologia, é a marca da inferioridade congênita e crônica daqueles
determinados como não brancos.
A naturalização das diferenças através de um discurso biológico foi fundamen-
tal na legitimação da dominação europeia. Para Quijano (2005) a ideia de raça, na
América, foi uma maneira de outorgar legitimidade às relações de dominação im-
postas pelo colonizador. A posterior constituição da Europa enquanto identidade e
a expansão do colonialismo conduziram à elaboração da perspectiva eurocêntrica
de conhecimento e, com isso, a elaboração teórica da ideia de raça como natura-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 715


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
lização das relações coloniais de dominação (QUIJANO, 2005). Desse modo, raça
tornou-se uma forma de classificação primária da população mundial (QUIJANO,
2005). Raça se tornou o primeiro critério elementar para a distribuição da popula-
ção do mundo em níveis, lugares e papéis na estrutura de poder da nova sociedade
(QUIJANO, 2005).
A dominação colonial se fez por meio da escravização, do trabalho forçado e
da conquista dos territórios, articulados com a colonização das perspectivas cog-
nitivas. Essa articulação coloca em marcha um processo de representação colonial,
racista, eurocêntrico. Para Gilroy (2007), “A ideia moderna de ‘raça’ favoreceu uma
escala específica de representação [...]. Abstrata e metafísica, a ‘raça’ definiu e
consolidou suas tipologias acidentais.” (p. 58). A raça, biologicamente concebida,
relacionava características físicas a posições sociais, desconsiderando por comple-
to as relações de poder. O discurso do racismo científico, construído pelas Ciências
Naturais, era um reflexo direto dos interesses políticos e econômicos coloniais.
Dessa forma, como alerta Gould (1991), é claro que não era acidental que uma
sociedade que ainda praticava a escravização tenha favorecido o surgimento de
ideias que sustentavam que negros e indígenas eram espécies inferiores. Para Gil-
roy (2007), “[...] a ideia de ‘raça’ desfrutou de seu poder máximo em relacionar a
metafísica com a tecnologia científica.” (p. 58). Ainda segundo o autor, a raciologia
científica inspira os antropólogos coloniais. Dessa forma, as Ciências Naturais re-
troalimentam as construções coloniais da Sociologia e da Antropologia.
Quijano (2005) aponta que, de fato, há o estabelecimento de uma hegemonia
europeia, onde todas as experiências, histórias, recursos e produtos culturais são
articulados em uma só ordem cultural global. Ou seja, a Europa concentrou o con-
trole de todas as formas de subjetividades, cultura e, sobretudo, da produção do
conhecimento (QUIJANO, 2005). Nesse processo os colonizadores lançaram mão
de uma série de artifícios de dominação. Segundo Quijano (2005), os colonizadores
expropriaram as populações colonizadas e seus descobrimentos culturais daquilo
que era mais vantajoso para o desenvolvimento europeu. Por outro lado, reprimi-
ram tanto quanto puderam as produções de conhecimento e as visões de mundo
dos colonizados (QUIJANO, 2005). E, buscando essa hegemonia subjetiva, os colo-
nizadores forçaram os colonizados a aprender parcialmente a cultura dos domina-
dores. Para Quijano (2005):

Todo esse acidentado processo implicou no longo prazo uma


colonização das perspectivas cognitivas, dos modos de produzir
ou outorgar sentido aos resultados da experiência material ou
intersubjetiva, do imaginário, do universo de relações intersub-
jetivas do mundo; em suma, da cultura. (p. 111).

Nessa perspectiva, há, não só uma destruição do conhecimento produzido pelo


outro, mas uma anulação de tudo aquilo que o Outro pode vir a produzir, a sedi-
mentação do Outro enquanto sujeito não cognoscente, o sujeito que não pensa,

716 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
por isso, não existe do ponto de vista ontológico. Nesse contexto, para Grosfoguel
(2016), a filosofia moderna, na figura do cartesianismo, tem papel fundamental. O
legado cartesiano exprimido no “penso, logo existo”, tornou-se o novo fundamen-
to do conhecimento. Segundo essa perspectiva, o “Eu” produz um conhecimento
verdadeiro, universal o objetivo (GROSFOGUEL, 2016). A formulação desse “Eu”
está fundada em dois argumentos principais, segundo Grosfoguel (2016). Primeiro,
é essencial a noção de dualismo ontológico, ou seja, a mente é concebida como
separada do corpo. Segundo Quijano (2005), a diferenciação entre corpo e não-
-corpo está presente em toda história humana. Entretanto, existe uma permanen-
te co-presença dos dois elementos como duas dimensões não separáveis do ser
humano. Mas na racionalidade eurocêntrica há uma separação radical entre alma
(mente) e corpo. Segundo Quijano (2005) essa separação foi inaugurada pelo cris-
tianismo, com uma primazia da alma sobre o corpo. No entanto, Quijano (2005)
corrobora
Grosfoguel (2016), no entendimento de que foi Descartes que elaborou teori-
camente e sistematizou esse pensamento, no sentido da separação radical entre
razão/sujeito e corpo. Para Quijano (2005) a teorização científica da raça só foi
possível através dessa objetivação do corpo como natureza e de sua expulsão do
âmbito do espírito, promovida por Descartes.
Para Grosfoguel (2016), o segundo argumento fundamental está na noção de
que o “Eu” deve alcançar a certeza na produção do conhecimento científico atra-
vés do método do solipsismo, que se configura em um diálogo interior do sujeito
com ele próprio, fora das relações sociais (GROSFOGUEL, 2007). Dessa forma, ain-
da segundo Grosfoguel (2016), a produção de conhecimento estaria isolada das
relações sociais. O “Eu” produziria conhecimento a partir de um não-lugar. No en-
tanto, quando Descartes proclama “penso, logo existo”, seu “Eu” não pode ser um
africano, um indígena, um muçulmano, um judeu ou uma mulher (GROSFOGUEL,
2016). O não-lugar de onde se pode produzir conhecimento é ocupado unicamen-
te pelo homem branco europeu. E, para Grosfoguel (2016), o legado cartesiano
ainda é o critério para validar a produção da ciência e do conhecimento. Qualquer
outra perspectiva de conhecimento que se oponha a esta visão, que parta de um
lugar que é considerado político, por exemplo, é vista como tendenciosa, parcial e
inferior. A produção de conhecimento, desse ponto de vista cartesiano, é replicada
nas Ciências Naturais, pois, como aponta Gould (1991), a hegemonia das Ciências
Naturais pinta ela mesma como neutra e objetiva, e qualquer um que se oponha é
tachado de passional e ideólogo.
Além disso, o desenvolvimento da ideia de progresso, no século XVIII, ligada ao
dualismo cartesiano, ajudou a produzir uma narrativa sobre o estado de natureza
na trajetória humana (QUIJANO, 2005). Dessa forma, todos os não-europeus foram
classificados como pré- europeus e dispostos em uma sequência histórica e contí-
nua do primitivo ao civilizado, do irracional ao racional, do tradicional ao moderno,
do mítico ao científico (QUIJANO, 2005). Reside aí, segundo Quijano (2005), uma

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 717


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
operação mental de fundamental importância, “os europeus geraram uma nova
perspectiva temporal da história e re-situaram os povos colonizados, bem como
a suas respectivas histórias e culturas, no passado de uma trajetória histórica cuja
culminação era a Europa” (p. 111). Segundo essa lógica, as relações intersubjetivas
entre a Europa e o resto do mundo foram se dando em uma lógica binária: pri-
mitivo-civilizado, racional- irracional (QUIJANO, 2005). Nessas relações, como já
apontamos, a raça é uma categoria fundamental. Dessa forma, segundo Quijano
(2005), o eurocentrismo trabalha com dois mitos fundacionais, “[...] a idéia-ima-
gem da história da civilização humana como uma trajetória que parte de um estado
de natureza e culmina na Europa.” (p. 111) e outorgando “[...] sentido às diferenças
entre Europa e não-Europa como diferenças de natureza (racial) e não de história
do poder” (p. 111).
Para Grosfoguel (2016) há, no século XVI, uma mudança na classificação social,
que é marcada pela passagem de um sistema de poder baseado em diferença re-
ligiosa para outro baseado em diferenças raciais. Para o autor o racismo religioso
teria sido a primeira expressão racista da Modernidade. O racismo religioso, de
forma geral, concebia um povo sem religião como um povo sem alma, ou seja,
sem humanidade. Para Grosfoguel (2016), o discurso biológico racista do século
XIX seria uma secularização do discurso teológico racista. Assim, o discurso da infe-
rioridade dos povos não brancos adotado pela Ciência, não tinha base objetiva, ou
seja, não era baseado em evidências, e sim em crenças socialmente compartilha-
das (GOULD, 1991), como por exemplo, a crença religiosa.
Como aponta Quijano (2005), a noção de raça se mostrou ser o mais eficaz e
duradouro instrumento de dominação social universal. Essa noção é construída e
reconstruída pelo discurso religioso, secularizado pela filosofia moderna e natura-
lizado pelas Ciências Naturais. O que faz com que, atualmente, a questão da raça
seja tensionada de diferentes maneiras, em diferentes formações discursivas, que
produzem novos significados em um diálogo constante com o discurso racialista
produzido nos séculos XVIII e XIX.

O FIM DA RAÇAS: DA GENÔMICA A UM NOVO PARADIGMA


HUMANISTA
Nessa perspectiva, se no colonialismo a raça foi fixada nas estruturas biológicas,
é a própria Biologia que decreta o fim da raça, através da biologia molecular. No
entanto, “o fim das raças” vem sendo acompanhado da permanência de um discur-
so racialista. Wade (2017), por exemplo, alerta para o fato de que tem aparecido
na literatura um ideário de que raça está se extinguindo, ao mesmo tempo em que
surge o “racismo cultural” ou o “racismo sem raças”. Esses discursos e práticas não
utilizam explicitamente a linguagem da raça. No entanto, segundo Wade (2017),
reproduzem discriminação contra os mesmos grupos que sofriam formas mais ex-
plícitas de racismo. Gilroy (2007) também apontou a emergência, a certo tempo,

718 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
de um novo tipo de racismo, que seria definido por suas inclinações fortemente
culturalistas e nacionalistas. Segundo o autor, essa versão mais culturalista parece
mais branda, mas não é. Para Gilroy (2007), a ênfase na cultura, mais confunde do
que resolve os problemas surgidos da associação da raça com variações corporali-
zadas ou somáticas. Gilroy (2007) aponta que, as transformações na ideia de raça,
conduzem mudanças nos mecanismos que governam como as diferenças raciais
são vistas. É nesse sentido que Gilroy (2007) alerta para as transformações pro-
fundas nas maneiras com que o corpo é entendido, experimentado e observado
depois da emergência da biologia molecular. O corpo é visto e entendido de novas
maneiras, principalmente como código e informação. Nesse sentido, Gilroy (2007)
aponta que o tempo da raça parece estar se aproximando do final no momento
mesmo em que os racismos parecem proliferar.
Nesse contexto de emergência da biologia molecular e da genômica, Wade
(2017) aponta que há uma permanência de um discurso racializante, mas que nega
a raça enquanto categoria biológica válida para seres humanos, nas palavras do
autor há uma “ausente presença da raça” (p. 82). Há um rebaixamento de raça en-
quanto conceito público, mas sua permanência como ideia que influencia práticas
subjacentes no mundo social. É uma ambiguidade produzida pelo mundo social,
que também está presente na própria genômica (WADE, 2017). Por um lado, a
genômica é saudada por banir o conceito, tornando insustentável a ideia de uma
espécie humana dividida em raças. Segundo Wade (2017), em geral, os geneticistas
têm evitado referências à raça ou a mencionam para negar sua validade biológica.
Por outo lado, o sequenciamento do genoma humano renovou o interesse nas
diferenças biológicas entre os grupos (WADE, 2017). Nesse sentido, o autor apon-
ta que referências constantes a populações biogeográficas são consoantes com
a noção de quatro ou cinco raças do pensamento ocidental desde o século XVIII.
O autor alerta como esse tipo de interesse da genômica nas diferenças entre os
grupos pode confundir o senso-comum. Wade (2017) também aponta que o termo
raça pode ser mencionado de forma mais informal quando se discute diversidade
nos laboratórios, reforçando essa presença ambígua da noção de raça na própria
genômica.
Wade (2017) defende que o discurso usado por muitos geneticistas tem o efeito
de reproduzir conceitos que podem ser equiparados a ideias familiares e cotidianas
de raça, em uma mescla de critérios naturais e culturais. Para o autor “Tais concei-
tos poderiam ser compreendidos por observadores como tendo alguma dimensão
genética.” (p. 85). O autor aponta que uma das questões que mais se destacam
na apresentação de dados genéticos analisados por ele, foi a constante reiteração
das três principais categorias de populações: europeia, ameríndia e africana. Essa
informação, quando compartilhada com o público em geral, reforça uma ideia de
raças historicamente construída. Wade (2017) alerta que os marcadores genéticos
usados nesse caso são muito específicos e escolhidos para maximizar a diferença
entre cada população. É comum que se escolham indivíduos específicos e exclu-

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 719


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
am-se outros para evitar erros. Esses marcadores podem nem se relacionar com o
fenótipo dos indivíduos (WADE, 2017). Portanto, é uma noção muito diferente da
raça dos séculos XVIII e XIX. No entanto, podem dar a impressão de uma distância
genética que justifica a diferença (WADE, 2017).
A questão do mapeamento matrilinear e patrilinear, também é discutida por
Wade (2017). Nas pesquisas analisadas por ele, o autor destaca um apagamento
das contribuições dos homens negros, uma apresentação das mulheres africanas
e indígenas como passivas e a colocação da mestiçagem em lugar de destaque. Há
um claro viés ideológico na forma como as pesquisas analisadas por Wade (2017)
discutem os processos históricos por meio do componente biológico.
As mudanças na concepção de ‘raças humanas’ provocadas pela biologia mole-
cular e pela genômica e, ao mesmo tempo, o discurso confuso produzido por elas
a respeito da divisão da espécie humana, colocam-nos o desafio de uma compre-
ensão contemporânea não só da raça, mas das divisões da humanidade. Pensar
como espécie, raça e corpo são concebidos biologicamente e sociologicamente,
produzindo uma humanidade limitada e excludente, leva-nos a refletir qual tipo de
humanidade os povos colonizados, subalternos, os condenados na terra, almejam
construir. Nesse sentido, Gilroy (2007) propõe o humanismo planetário. Para o au-
tor, a entrada da genômica nas discussões em torno da noção de raça, contribui
para aquilo que ele chama de crise da raciologia. Segundo Gilroy (2007), a mudança
de interpretação que a genômica trouxe, indica que o próprio significado da dife-
rença racial tem mudado. Para Gilroy (2007), a questão do gene promove mudança
fundamental na percepção e compreensão do corpo humano e seu impacto sob
as velhas tipologias raciais tem sido negligenciado. Gilroy (2007) indica que essa
revolução biotecnológica, exige uma mudança em nosso entendimento de raça,
espécie, corporificação e especificidade humana.
Gilroy (2007) defende que a crise da raça e da representação, da política e da
ética deve ser aproveitada para que nos libertemos dos laços da raciologia em um
novo projeto abolicionista. Segundo o autor a busca da liberação da raça é ur-
gente para aqueles que foram designados para ocupar uma posição inferior nas
hierarquias criadas pela raciologia. No entanto, para Gilroy (2007), há motivos para
outras pessoas abraçarem esse projeto também. Para o autor “Negros e brancos
estão presos conjuntamente pelos mecanismos de ‘raça’ que alienam uns aos ou-
tros e amputam sua humanidade comum.” (p. 33). Essa ruptura seria abrangente
e implicaria também uma abolição da divisão sexual (GILROY, 2007). A abolição da
raça e do sexo, para o autor, é necessária para nos levar a um humanismo plane-
tário e pragmático, em resposta aos sofrimentos forjados pela raciologia. Nesse
novo humanismo seria necessário haver uma renúncia deliberada e consciente da
raça (GILROY, 2007). Seria radicalmente não racial, pois mostra uma preocupação
básica com as formas de dignidade humana extirpadas pelo pensamento racial
(GILROY, 2007).

720 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Podemos ver como discussões sobre raça e racismo, orbitam um espaço de re-
troalimentação entre Sociologia/Antropologia e Biologia. A raça, fundamental ao
colonialismo, fundou epistemologias que só puderam se hegemonizar a partir do
epistemicídio. O decreto do fim da raça pela genômica e sua confusa reafirmação
por esse mesmo discurso, leva-nos ao inevitável debate de seu banimento defini-
tivo ou da persistência em sua ausente presença. É uma discussão fundamental,
que precisa ser encarada pelo ensino de Biologia se esse pretende educar relações
étnico-raciais mais justas. Mesmo com a emergência da genômica enquanto um
novo e relevante elemento para o debate racial, ainda há uma grande omissão da
temática como um todo no ensino de Biologia, como sugere nossa pesquisa em
andamento.
Assim, propomos que professores precisam compreender e abordar essas di-
mensões que construíram a noção de raça. Apreender como se articula essa transi-
ção da raça engendrada pela antropologia física para a raça concebida pela biologia
molecular é importante para que não haja uma negligência histórica sobre a estru-
turação do racismo no Ocidente.
Outro ponto que consideramos importante para o ensino de Biologia, é que as
abordagens de combate ao racismo devem se amparar, e ao mesmo tempo ten-
sionar essa ambiguidade da raça sem raça, onde há uma negação, paradoxalmente
acompanhada de um reforço constante da diferença como desigualdade. De forma
que, ao trazer à tona o fato da inexistência de raças na espécie humana, não seja
negada a existência inquestionável do racismo.
Mostra-se importante que o estudo contemporâneo de Genética deve incluir
conhecimentos transdisciplinares e comprometidos com uma reflexão aprofunda-
da da noção de raças humanas, transpondo didaticamente esse debate para as
salas de aula. Essa transposição não pode resultar em reduções simplistas que co-
laboram para um imaginário distorcido sobre a história do racismo. Essa transpo-
sição precisa ser guiada pelo compromisso de educar relações étnico-raciais mais
positivas a partir de um debate justo.
Dessa forma, o que se mostra é uma necessidade eminente de historicizar o
debate sobre raça e racismo no ensino de Biologia, inclusive dando espaço às vozes
dissonantes ao empreendimento colonial racista. A questão da raça no século XIX
não foi marcada por uma aceitação pacífica das teorias racistas. Os pressupostos
racistas de autores como Athur de Gobineu foram questionados e confrontados.
Antenor Firmin, por exemplo, escreveu, em 1885, De l'égalité des races humaines,
em resposta ao ensaio de Gobineu, Essai sur l'inégalité des races humaines. Firmin,
antropólogo haitiano, não só rejeitava a ideia de inferioridade e superioridade en-
tre raças humanas, como questionou a validade desse tipo de “conhecimento” que
afirmava essa desigualdade:

XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as 721


Movimentos negros, pensamento, história e resistências
A toda essa falange arrogante que proclama que o homem ne-
gro está destinado a servir de estribo ao poder do homem bran-
co, a essa antropologia mentirosa, eu terei o direito de dizer:
Não, não és uma ciência! [...] O egoísmo e a imoralidade da raça
branca será ainda para ela, em sua posteridade, motivo de ver-
gonha e arrependimento. (FIRMIN, 1885, p. 59 apud MARQUES;
KOSBY, 2020).

Histocizando o debate, podemos conseguir trazer para o ensino de Biologia a


constituição histórico-social da questão racial, ampliando a compreensão do racis-
mo, contribuindo para a desconstrução de mistificações que prejudicam a todos
na sociedade. Assim, o ensino de Biologia pode contribuir para uma educação das
relações étnico-raciais comprometida com relações sociais mais justas e democrá-
ticas, como preconizado pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e
Africana (BRASIL, 2004).
Agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
(FAPESP) pelo apoio financeiro na forma de bolsa de mestrado.

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AUTORIA
Florença Freitas Silvério
Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). Pro-
cesso FAPESP nº 2019/04962-8. CECH-UFSCar
E-mail: florencafs@hotmail.com
Lattes: http://lattes.cnpq.br/6511001137434594

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726 XI COPENE - Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as
Movimentos negros, pensamento, história e resistências
Congresso Brasileiro de Pesquisadores/as Negros/as

ISBN 978-65-86233-79-7

9 786586 233797 >

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