Você está na página 1de 18

F UNDAMENTOS S ÓCIO-H ISTÓRICOS

DA É TICA P ROFISSIONAL S ERVIÇO


Cristiane Gonçalves de Souza
Flavio José Souza Silva
Leandro Rocha da Silva
Mariana Souza Campos
Samya Katiane Martins Pinheiro
CAPÍTULO 3 - O CARÁTER OBJETIVO DA ÉTICA
E A VIDA SOCIAL: O SUJEITO ÉTICO E O
COTIDIANO
Samya Katiane Martins Pinheiro
Objetivos do capítulo
Ao final deste capítulo, você será capaz de:
• Reconhecer a importância da reflexão sobre o cotidiano e o agir ético, visando à suspensão do cotidiano.
• Identificar o cotidiano para além dos espaços da vida, situando-o como espaço de possibilidades para
projeção de ações profissionais.
• Definir a importância da práxis no desencadeamento do agir ético.

Tópicos de estudo
• A capacidade ética do ser social
• Práxis e a reflexão ética
• A importância da reflexão ética na formação profissional do assistente social
• Consciência ética e responsabilidade
• O cotidiano e as necessidades ético-morais
• Cotidiano e ética
• A suspensão do cotidiano e o agir ético

Contextualizando o cenário
Embora os seres sociais sejam singulares e genéricos ao mesmo tempo, na vida cotidiana, as expressões humanas
são voltadas à perspectiva da individualidade, pois é no dia a dia que as necessidades humanas fisiológicas e
psicológicas adentram a consciência dos indivíduos.

No cotidiano, as necessidades que se apresentam de forma particular são necessidades sociais. Contudo, a partir
da premissa de que, no contexto da sociedade capitalista, o individualismo é um valor exaltado e disseminado, é
possível agir eticamente na perspectiva humano-genérica?

3.1 A capacidade ética do ser social


É na vida cotidiana que as pessoas incorporam os hábitos e as diversas normas comportamentais, socializam e, ao
incorporarem as mediações sociais, “[...] vinculam-se à sociedade, reproduzem o desenvolvimento humano-
genérico, mas as formas dessa incorporação caracterizam-se por uma dinâmica voltada à singularidade e não à
genericidade” (BARROCO, 2010, p. 37).

Nesse sentido, é necessário refletir sobre o cotidiano e o agir ético e trazer a análise do cotidiano para além dos
espaços da vida, em uma perspectiva de apreensão da totalidade das relações sociais.

3.1.1 Práxis e a reflexão ética

Barroco (2010, p. 37) ressalta que “[...] a vida cotidiana é insuprimível”, ou seja, não pode ser exterminada dos seres
sociais. Entendendo que se trata de um espaço propício à superficialidade, à espontaneidade e à criticidade, a
atividade cotidiana não é práxis.
PAUSA PARA REFLETIR
O que é práxis? De que forma ela se realiza?

Heller (2000, p. 32) traz elementos acerca da práxis na vida cotidiana:

[...] As ideias necessárias à cotidianidade jamais se elevam ao plano da teoria, do mesmo modo como a
atividade cotidiana não é práxis. A atividade prática do indivíduo só se eleva ao nível da práxis quando
é atividade humano genérica consciente; na unidade viva e muda de particularidade e genericidade, ou
seja, na cotidianidade, a atividade individual não é mais do que uma parte da práxis, da ação total da
humanidade que, construindo a partir do dado, produz algo novo, sem com isso transformar em novo
o já dado.

Isso não significa dizer que, na vida cotidiana, os seres humanos estão condenados a agir somente do ponto de
vista da singularidade. Pelo contrário, a dimensão do agir singular não anula o fato de a consciência coletiva se
realizar. Conforme Barroco (2010, p. 38), “[...] a consciência do ‘eu’ e a do ‘nós’ não se constituem em antíteses”.

Fonte: © Jojostudio / / Shutterstock.


Isso se explica pelo fato de o ser singular e suas necessidades não serem puramente individuais, visto que o ser
humano tem necessidades que também são sociais. Neste sentido, expressam-se de forma determinada, ainda
que, no cotidiano, essa relação entre o indivíduo e a sociedade se faça de modo acrítico e pragmático, de forma
que os seres humanos se percebem apenas como seres singulares.

Fonte: © ProStockStudio / / Shutterstock.

Nessa perspectiva, a reflexão ética é relevante, pois possibilita o acesso à consciência humano-genérica, o que não
deixa de ser uma expressão da individualidade humana, “[...] pois ela não supõe a eliminação do singular, mas a
sua relação com a genericidade através da mediação da consciência” (BARROCO, 2010, p. 40).

O cotidiano e a reflexão ética.


A reflexão ética no contexto da formação profissional do/a assistente social é fundamental para a análise da
realidade de forma crítica, por meio da apreensão dos determinantes históricos que incidem no cotidiano da vida
social.

3.1.2 A importância da reflexão ética na formação profissional do/a assistente

O objeto da reflexão ética é a moral e busca apreender, na perspectiva da totalidade sócio-histórica, as categorias
ético-morais. A esse respeito, Barroco (2010, p. 55) ressalta que “[...] a reflexão ética supõe a suspensão da
cotidianidade”.

ESCLARECIMENTO
A suspensão da cotidianidade não implica sua supressão, pois a vida cotidiana é ineliminável.
Apesar de esses termos serem parecidos, não têm o mesmo significado.

Corroborando com o pensamento de Barroco (2010), a reflexão ética não objetiva responder às necessidades
imediatas cotidianas, mas, sim, evidenciar a crítica a elas, o que demanda elevação humano-genérica, que vai além
das necessidades individuais. Tal fato amplia as possibilidades da realização do indivíduo enquanto ser livre e
consciente. Ademais, a reflexão ética é necessária porque:

Na vida cotidiana, a moral não tende a ser interiorizada de forma crítica. Na medida em que, nesse
âmbito, os valores se reproduzem pelos costumes, pela repetição, tendem a se tornar hábitos, cuja
adesão não significa, necessariamente, uma aceitação consciente. Na cotidianidade, as normas podem
ser aceitas interiormente, defendidas socialmente sem que, no entanto, possamos afirmar que essa
aceitação tenha ocorrido de maneira livre, pois esta supõe a existência de alternativas e seu
conhecimento crítico. (BARROCO, 2009, p. 200).

De acordo com esse pensamento, é possível inferir que a consciência está imbricada na subjetividade, ou seja,
relaciona-se com a dimensão individual dos seres sociais, podendo ganhar legitimidade nas normas e nos valores
ausentes de reflexão, induzindo os sujeitos a tomarem decisões precipitadas e desprovidas de responsabilidade
em seu cotidiano. Para Barroco (2009), o indivíduo não assume de forma integral as implicações de suas decisões.
Fonte: © Natasa Adzic / / Shutterstock.

Por isso, é fundamental a reflexão ética para a formação e o exercício profissional do/a assistente social. É no dia a
dia que os profissionais se deparam com múltiplas situações que requerem respostas imediatas, e aqueles que
estiverem inseridos em um campo contraditório poderão cair nas armadilhas do cotidiano, exercitando (ou não) a
capacidade de escolha consciente.

PAUSA PARA REFLETIR


Quando a reflexão ética deve ser realizada?

A reflexão ética não deve ser realizada apenas no cotidiano profissional, por meio da formação continuada ou da
inserção e da articulação com os movimentos da classe trabalhadora. Ela é necessária também na formação, tendo
em vista que a ética é uma disciplina transversal na grade curricular do Serviço Social, que tem relação direta com
as demais.
Importância da reflexão ética e o Serviço Social.

Para os assistentes sociais, a realização da reflexão ética cotidiana é um desafio, tendo em vista a sociedade
capitalista e as implicações de seu cotidiano de trabalho.

3.1.3 Consciência ética e responsabilidade

Primeiramente, é necessário evidenciar a perspectiva ética que norteia nossa análise, referente à ética
revolucionária que problematiza e prevê a crítica à moral socialmente construída no seio da sociedade capitalista e
tem como horizonte uma sociedade livre.

Reflexão ética x alienação.

Diante dessa perspectiva, a ética, quando não exerce o papel de função crítica, pode contribuir “[...] para a
reprodução de componentes alienantes”, como o favorecimento da ideologia burguesa, a não apreensão da
totalidade da vida social, a reprodução de análises preconceituosas e conservadoras, entre outros (BARROCO,
2010, p. 56). Por isso, a reflexão ética é necessária, já que é:

[...] capaz de realizar a crítica da vida cotidiana, em sua dimensão moral, ampliando as possibilidades
de realização de escolhas conscientes, voltadas ao gênero humano, às suas conquistas
emancipatórias, à desmistificação do preconceito, do individualismo e do egoísmo, propiciando a
valorização e o exercício da liberdade e do compromisso com projetos coletivos. (BARROCO, 2009, p.
203).

Assim, quando a ética exerce essa função crítica, amplia a capacidade de escolha consciente dos seres humanos,
que acontece principalmente quando há a indagação radical acerca da “[...] possibilidade de realização da
liberdade, seu principal fundamento” (BARROCO, 2010, p. 56).

CURIOSIDADE
Entre os princípios fundamentais do Código de Ética Profissional do Serviço Social, está a
liberdade enquanto valor ético-central. Assim, a defesa da liberdade é uma das principais
bandeiras de luta do Conselho Federal de Serviço Social (CFESS) e dos conselhos regionais
(CRESS).

Essa liberdade é a que fundamenta a ética em sua dimensão humano-genérica e tem relação com a emancipação
plena dos indivíduos sociais. Isso implica dizer que é uma das capacidades emancipadoras do homem.
Fonte: © RudieStrummer / / Shutterstock.

Isso se explica pelo fato de que a ética é uma atividade que permite que os sujeitos sociais imprimam uma “[...]
relação consciente entre o humano-genérico quando conseguem apreender criticamente os fundamentos dos
conflitos morais” (BARROCO, 2010, p. 56). Clique e continue conhecendo sobre a ação ética e os conflitos morais.

A ação ética
A ação ética, quando efetivada, influencia não apenas o outro, mas também a sociedade, no sentido de tornar
harmônica a relação ente o ser social e a sociedade.

Os conflitos morais
Os conflitos morais surgem pela ausência de reflexão ética, por exemplo, o julgamento com base em valores
fundamentalistas ou religiosos, a reprodução de preconceitos e a legitimação de atos discriminatórios, a
banalização da violência e a naturalização das múltiplas expressões da questão social, como a pobreza.

3.2 O cotidiano e as necessidades ético-morais


Apesar de o cotidiano ser um espaço privilegiado para a reprodução de valores morais vinculados à hegemonia
dominante – e, portanto, com tendência a ser o lugar privilegiado da alienação e das ações ausentes de reflexão
ética –, é fundamental ressaltar que, ainda que limitada, a ética se faz presente por meio de atos morais singulares.
Fonte: © stoatphoto / / Shutterstock. (Adaptado).

Os princípios morais se efetivam principalmente quando “[...] a violência, a abstração, o moralismo e o


conservadorismo, fortalecem a descrença na política, em sua forma democrática, reforçando apelos à ordem”
(BARROCO, 2009, p. 195). Contudo, corroborando com Barroco (2009), a ética profissional pode se voltar para uma
atuação consciente e realizadora de direitos, tendo em vista as necessidades dos usuários dos serviços nos
múltiplos espaços de atuação dos assistentes sociais. Nessa perspectiva, é necessário refletir sobre o cotidiano e
sua relação com a ética.

3.2.1 Cotidiano e ética

Como o cotidiano não pode ser eliminado da vida social, todos os seres sociais estão inseridos na vida diária:

A vida cotidiana é a vida de todo homem. Todos a vivem, sem nenhuma exceção, qualquer que seja o
seu posto na divisão do trabalho intelectual e físico. Ninguém consegue identificar-se com sua
atividade humano-genérica a ponto de poder desligar-se inteiramente da cotidianidade. E, ao
contrário, não há nenhum homem, por mais “insubstancial”que seja, que viva tão somente na
cotidianidade, embora essa o absorva preponderantemente (HELLER, 2000, p. 17).

Isso implica dizer que a ética se faz presente na vida cotidiana por meio de atos morais singulares. Conheça mais
sobre esse atos clicando a seguir:

Como podem ser


Na análise de Barroco (2009, p. 195), esses atos podem ser “[...] mais ou menos conscientes e livres; podem se
objetivar através de ações motivadas por valores e teleologias dirigidas à realização de direitos e conquistas
coletivas; podem ser capazes de efetuar a crítica radical da moral do seu tempo”.

Possibilidades éticas e morais


A partir da ação ética no cotidiano da vida social, os seres sociais, ao realizarem a crítica radical, podem oferecer
elementos para a apreensão das possibilidades éticas e morais do tempo futuro (BARROCO, 2009).

Atos e a práxis social


Ainda que de forma temporária, esses atos podem se estabelecer “[...] como mediação entre a singularidade de
indivíduo moral e a sua dimensão humanogenérica, objetivando-se como parte da práxis social” (BARROCO, 2009,
p. 195).

Observe, a seguir, a representação desta ideia.

Fonte: © JoeZ / / Shutterstock.

O aprofundamento das expressões da questão social, como o desemprego, a precarização do trabalho, a pobreza,
a violência, a degradação ambiental etc., na década de 1990 , repercutiu no serviço social, tendo em vista que os
assistentes sociais atendem à população usuária dos serviços nas instituições e demandam respostas profissionais.

ESCLARECIMENTO
A questão social é o conjunto das expressões da desigualdade social no seio da sociedade
capitalista.

Por isso, a necessidade de a ética exercer sua função crítica de análise da totalidade, para que os profissionais não
incorram no erro de reprodução da moral, consoante com os interesses de classe, contribuindo para o controle
social por meio da difusão de valores que visam a adequação dos indivíduos à perspectiva dominante.
Reprodução da ideologia dominante.

Logo, com o “[...] conservadorismo, comodismo e conformismo, e também pelos interesses imediatos” (BARROCO,
2009, p. 202), os indivíduos da classe trabalhadora acabam sendo alvo de ideologias disseminadas contra seus
interesses.

DICA
Para entender melhor as ideologias, leia o artigo “A filosofia como historicidade: a ideologia no
estudo filosófico dos Cadernos do cárcere” (SILVEIRA JÚNIOR, 2014).

Diante dos aspectos mencionados, com ênfase na efetivação da ação ética, fica claro o quão determinante é a
suspensão do cotidiano e o agir ético.

3.2.2 A suspensão do cotidiano e o agir ético

A reflexão ética é um pressuposto para a suspensão do cotidiano. Para ultrapassar os conformismos e


comodismos, bem como as escolhas imediatas repletas da espontaneidade da vida cotidiana, a reflexão ontológica
é fundamental.

Elementos da reflexão ética.


A reflexão ética permite a “[...] elevação aos valores humano-genéricos”, contribuindo “[...] para a ampliação dos
valores ético-morais” (BARROCO, 2010, p. 55). A esse respeito, Barroco (2010, p. 55) reitera que:

A reflexão ética supõe a suspensão da cotidianidade; não tem por objetivo responder às suas
necessidades imediatas, mas sistematizar a crítica a vida cotidiana, pressuposto para uma organização
da mesma para além das necessidades voltadas ao “eu”, ampliando as possibilidades de os indivíduos
se realizarem como individualidades livres e conscientes.

A seguir, clique e conheça mais sobre a ética e o agir ético:

A ética, ao não se efetivar de forma crítica, pode contribuir para a reprodução de


componentes voltados ao individualismo e de preconceitos, com base no que Barroco (2009,
Ética p. 201) denomina de “[...] juízos provisórios, respondendo às necessidades mais imediatas e
superficiais da singularidade individual”.

Logo, em consonância com o pensamento de Barroco (2010), o agir ético, em sua


Agir ético perspectiva de apreensão da totalidade da vida social, requer a suspensão do cotidiano para
uma ação ética fundamentada em uma práxis político-revolucionária.

Fonte: © peterschreiber.media / / Shutterstock.

A suspensão do cotidiano implica desnaturalizar verdades que estão postas na realidade social e que quase nunca
são indagadas na vida cotidiana. A pobreza, por exemplo, é naturalizada, mas, ao refletir sobre ela, constata-se de
que é um fenômeno expressado pela desigualdade social, inerente à sociedade capitalista.

Proposta de atividade
Agora é a hora de recapitular tudo o que você aprendeu neste capítulo! Escreva uma síntese, destacando as
principais ideias abordadas ao longo do capítulo. Ao produzir sua síntese, considere as leituras básicas e
complementares realizadas.
Recapitulando
Mesmo que o individualismo seja um valor exaltado e disseminado, é possível agir eticamente na perspectiva
humano-genérica. Não se trata de uma tarefa simples, pois requer o rompimento com inúmeros elementos que são
determinantes na cotidianidade. Logo, é preciso analisar a capacidade ética do ser social no contexto
contraditório, da vida cotidiana, na qual as pessoas incorporam os hábitos e as diversas normas comportamentais
que podem levar à disseminação de preconceitos.

A vida cotidiana é insuprimível, o que não significa dizer que, na vida cotidiana, os seres humanos estão
condenados a agir somente do ponto de vista da singularidade.

Por isso a importância da reflexão ética na formação profissional dos assistentes sociais, pois é no cotidiano
profissional que eles vão se deparar com situações que exigirão respostas imediatas. A suspensão do cotidiano é
fundamental para efetivação da reflexão ética. Nesse sentido, o agir ético, em sua perspectiva de apreensão da
totalidade da vida social, requer uma ética fundamentada na práxis político-revolucionária.

Referências
BARROCO, M. L. S. Fundamentos éticos do Serviço Social. In: CFESS/ABEPSS. Serviço Social: direitos e
competências profissionais. Brasília, 2009.

______. Ética e Serviço Social: fundamentos ontológicos. 8. ed. São Paulo: Cortez, 2010.

HELLER, A. O Cotidiano e a História. 6. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2000.

SILVEIRA JÚNIOR, A. A. A filosofia como historicidade: a ideologia no estudo filosófico dos Cadernos do Cárcere.
Serviço Social & Sociedade, São Paulo, n. 119, 2014.

Você também pode gostar