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António Fidalgo e Paulo Serra (Org.) - Estética e Tecnologias Da Imagem-LabCom (2005)
António Fidalgo e Paulo Serra (Org.) - Estética e Tecnologias Da Imagem-LabCom (2005)
Volume I
•
Tiragem: 200 exemplares
•
Covilhã, 2005
•
Depósito Legal Nº 233236/05
•
ISBN – 972-8790-36-8
Apoio:
ÍNDICE
Capítulo I
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS
Capítulo II
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA
Capítulo III
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS
Capítulo IV
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN
Capítulo V
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL
APRESENTAÇÃO
António Fidalgo e Paulo Serra
Comunicação, Estética, Arte e Design, Pu- (Capítulo III), Estética, Arte e Design
blicidade e Relações Públicas, Jornalismo, (Capítulo IV) e Comunicação Audiovisual
Estudos Culturais e de Género, Comunica- (Capítulo V); o Volume II, intitulado Te-
ção e Educação, Comunicação Audiovisual, orias e Estratégias Discursivas, compreen-
Opinião Pública e Audiências, Comunicação de as comunicações referentes a Teorias da
e Organização. Comunicação (Capítulo I), Semiótica e Texto
A publicação do enorme volume de (Capítulo II), Retórica e Argumentação
páginas resultante de tal número de comu- (Capítulo III) e Publicidade e Relações
nicações – um volume que, e a aplicar o Públicas (Capítulo IV); o Volume III,
formato estabelecido para a redacção das intitulado Visões Disciplinares, compreende
comunicações, excederia as duas mil e as comunicações referentes a Economia e
quinhentas páginas –, colocava vários dile- Políticas da Comunicação (Capítulo I),
mas, nomeadamente: i) Publicar as Actas do Direito e Ética da Comunicação (Capítulo
VI LUSOCOM e do II IBÉRICO em sepa- II), História da Comunicação (Capítulo III)
rado, ou publicá-las em conjunto; ii) Publi- e Estudos Culturais e de Género (Capítulo
car as Actas pela ordem cronológica das IV); finalmente, o Volume IV, intitulado
Sessões Temáticas ou agrupar estas em grupos Campos da Comunicação, compreende as
temáticos mais amplos; iii) Dada a impos- comunicações referentes a Jornalismo (Ca-
sibilidade de reunir as Actas, mesmo que de pítulo I), Comunicação e Educação (Capí-
um só Congresso, em um só volume, quantos tulo II), Opinião Pública e Audiências
volumes publicar. (Capítulo III) e Comunicação e Organiza-
A solução escolhida veio a ser a de ção (Capítulo IV).
publicar as Actas de ambos os Congressos A realização dos Congressos de Ciências
em conjunto, agrupando Sessões Temáticas da Comunicação na Covilhã e a publicação
com maior afinidade em quatro volumes destas Actas só foi possível graças ao apoio,
distintos: o Volume I, intitulado Estética e ao trabalho e à colaboração de muitas pes-
Tecnologias da Imagem, compreende os soas e entidades, de que nos cumpre destacar
discursos/comunicações referentes à Aber- a Universidade da Beira Interior, o Instituto
tura e Sessões Plenárias (Capítulo I), Fo- de Comunicação Social, a Fundação para a
tografia, Vídeo e Cinema (Capítulo II), Ciência e Tecnologia e a Fundação Calouste
Novas Tecnologias e Novas Linguagens Gulbenkian.
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 13
Capítulo I
rem ainda online, de a Biblioteca Online de da Covilhã, aos Presidentes das Associações
Ciências da Comunicação ser hoje o maior Lusófonas de Ciências da Comunicação, e
repositório de textos científicos da área, de o aos muitos membros da Comissão Organiza-
número dos seus autores e dos seus visitantes dora que verdadeiramente viabilizaram
aumentar de mês para mês, tornou possível que logisticamente os congressos.
investigadores da Catalunha ao Rio Grande do
Sul se juntassem aqui esta semana.
_______________________________
Termino com os agradecimentos ao Sr. 1
A Sessão de Abertura teve lugar em 21 de
Ministro da Presidência, que honrou com a Abril de 2004.
2
sua presença a abertura dos congressos, ao A acta dessa reunião pode ser consultada
Sr. Reitor da UBI, ao Sr Presidente da Câmara online na página web da SOPCOM.
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 21
com a comunidade local. Se a televisão aberta a partir daquela data, a prioridade estava nas
tomou para si o papel que a Rádio Nacional questões nacionais em detrimento das regi-
desempenhava, se a globalização e a onais. E, no caso da proibição do idioma
tecnologia trazem cada vez mais as informa- alemão, além do motivo político, a partir da
ções mundiais, coube justamente ao rádio, definição do Brasil de apoiar os aliados,
devido às suas características inerentes, estava a questão da unificação da língua
promover as informações locais. Isto sem portuguesa.
falar nas rádios comunitárias que se proli- Em relação à cultura nacional, Hall
feram em grande número pelo país (estima- (1999:59) lembra que a mesma nunca foi um
tivas extra-oficiais constatam existir, na simples ponto de lealdade, união e identi-
atualidade, mais de dez mil emissoras deste ficação simbólica. “Ela é também uma es-
tipo no Brasil). trutura de poder cultural”. Para o autor, é
Por sua vez, o novo panorama desenhado preciso levar-se em consideração que a
pelas possibilidades tecnológicas, como a maioria das nações consiste de culturas
internet, começa a alterar a ecologia dos separadas que só foram unificadas por um
meios de comunicação, não significando, até longo processo de conquista violenta. Tam-
o momento, o fim do rádio atual. O que está bém salienta que as nações são sempre
mudando, principalmente, é a convivência compostas de diferentes classes sociais e
entre os antigos e os novos meios. Neste diferentes grupos étnicos e de gênero. E,
sentido, Castells (2001:224) considera que o lembra ainda, que as nações ocidentais
rádio está vivendo um renascimento e ex- modernas foram também os centros de
perimentando um grande auge, tanto as impérios ou de esferas neoimperiais de in-
emissoras que emitem através das ondas fluência, exercendo uma hegemonia cultural
quanto as que o fazem apenas pela rede. Para sobre a cultura dos colonizados. Desta for-
o autor, um dos fatores determinantes desta ma, diz o autor, “em vez de pensar as culturas
transformação está na dificuldade de satis- nacionais como unificadas, deveríamos pensá-
fazer o interesse por assuntos locais a uma las como constituindo um dispositivo
escala global, fora do alcance das redes locais discursivo que representa a diferença como
de informação. unidade ou identidade (...) as nações moder-
nas são todas híbridos culturais” (idem:60).
A identidade brasileira A questão da mídia brasileira, neste
sentido, tem que ser recolocada. Na
O rádio, em relação à construção da atualidade, com 3668 emissoras de rádio, 416
identidade nacional brasileira teve, assim, um canais de televisão e 9543 retransmissoras,
importante papel. Esta construção, por sua acesso a inúmeros canais de TV a cabo e
vez, não só no Brasil mas na maioria dos satélite, com mais de 10% da população
países do mundo, mostrou a sua face dura. conectada à internet4, além de grande núme-
Para atingir seus objetivos, precisou negar ro de jornais e revistas disponíveis no Brasil,
e impedir a manifestação de outros tipos de o panorama é outro. Se na primeira metade
identidade: étnicas, regionais, etc. Durante o do século XX o rádio pôde cumprir, num
Estado Novo (1937-1945), por exemplo, certo sentido, um papel unificador (seguido
foram famosos os casos da “queima das pela TV na outra metade), com a fragmen-
bandeiras” e da proibição da utilização do tação da oferta de comunicação e da infor-
idioma alemão pelos imigrantes durante a mação e a inserção do país num mundo
Segunda Guerra Mundial, além da extinção globalizado isto não é mais possível.
dos partidos políticos e do banimento dos Sobre a questão, Ortiz (2000:87) salienta
hinos, escudos, e outros símbolos regionais. que a globalização não deve ser entendida
A “queima das bandeiras” foi um gesto como um processo exterior, alheio à vida
simbólico promovido pelo presidente Getú- nacional, pois “as contradições inauguradas
lio Vargas, em que as bandeiras de cada estado pela sociedade industrial e que atravessam
brasileiro foram incineradas, na então capital os espaços nacionais ganham agora uma nova
do país, Rio de Janeiro, para demonstrar que, dimensão”. Para o autor, “elas extravasam
30 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
para o plano mundial. Neste contexto, a o Rio Grande, têm sua identidade forjada
identidade nacional perde a sua posição pelas questões políticas. “Os gaúchos foram
privilegiada de fonte produtora de sentido republicanos antes do restante do país. E isto
pois emergem outros referentes, questionan- quer dizer igualdade perante a lei, ter uma
do a sua legitimidade”. constituição que vale para todos”, entre outras
No entanto, Ortiz considera que não é questões. Para o antropólogo, “estes elemen-
possível falar-se em “cultura global” pois tos acabam determinando uma imagem de
seria “insensato” buscar-se uma identidade uma pessoa que luta pelos seus direitos, é
global. Para ele, o processo de mundialização assertiva”8.
da cultura 5 engendra novos referentes Outro autor que se dedica a estudar o
identitários havendo, na atualidade, à dispo- assunto, Oliven (1992:128) considera que
sição das coletividades um conjunto variado para os gaúchos, “só se chega ao nacional
de referentes. Alguns são antigos, como a através do regional, ou seja, para eles só é
etnicidade, o local e o regional, por exemplo, possível ser brasileiro sendo gaúcho antes”.
e outros mais recentes, resultantes da Segundo o pesquisador, quando se pretende
mundialização da cultura (a juventude, o comparar o Rio Grande do Sul ao resto do
consumo, etc.). Desta forma, cada grupo país, apontando diferenças e construindo uma
social, na elaboração da sua identidade identidade social, “é quase inegável que este
coletiva, deles se apropriarão de maneira di- processo lance mão do passado rural e da
ferenciada. Mas, para o autor, as identidades figura do gaúcho, por serem estes os elemen-
são diferentes e desiguais porque as instân- tos emblemáticos que permitem ser utiliza-
cias que as constróem desfrutam distintas dos como sinais distintivos”. Mas, conforme
posições de poder e de legitimidade. “Con- Jacks (1999:86), “difícil é definir em que
cretamente, elas se exprimem num campo de medida, com que relações se constitui esta
lutas e de conflitos, nele prevalecendo as identidade, especialmente porque estão em
linhas de força desenhadas pela lógica da jogo diversos agentes desta construção, como
máquina da sociedade”(idem:93). o Estado, os meios de comunicação, a es-
Neste sentido, Hall (1999:65) salienta que, cola, os Centros de Tradição Gaúcha9, e as
quando se discute se as identidades nacio- práticas culturais como um todo”.
nais estão sendo deslocadas, deve-se ter em Na atualidade, o tema é retomado, ana-
mente “a forma pela qual as culturas naci- lisando-se o alargamento das fronteiras. Com
onais contribuem para ´costurar` as diferen- as questões da globalização da economia e
ças numa única identidade”. Um caso inte- a mundialização da cultura, o gaúcho, no-
ressante para exemplificar a questão é o da vamente, é chamado a explicar a sua iden-
identidade gaúcha. tidade. E, de novo, busca as suas raízes (reais
ou imaginadas) para sobreviver no mundo
A identidade gaúcha mais amplo. Dependendo do desafio, o nativo
do Rio Grande do Sul vai apresentar-se/sentir-
O tema da identidade gaúcha tem servido se como “gaúcho” ou como “brasileiro” (ou,
de base a muitas discussões, teses, reporta- quem sabe, cidadão do Mercosul, se este vier
gens na imprensa, não só no Rio Grande do a vingar...) e também, como “latino-ameri-
Sul mas em outros estados brasileiros. O tema cano”, revelando as suas múltiplas identida-
é recorrente e tem intrigado pela força desta des. O que há de novo, portanto, é a per-
identidade que se apóia na figura de um cepção mais expandida da própria identidade
gaúcho mítico, oriundo do pampa, região e, também, das diferenças. O que, em termos
fronteiriça entre Brasil, Argentina e o Uru- gerais, não necessariamente tem significado
guai6. Uma figura masculina e rural e que maior compreensão com as demais identida-
representa apenas parcialmente os componen- des (em alguns casos tem ocorrido justamen-
tes da sociedade riograndense. De onde, te o contrário, com casos de xenofobia).
então, vem esta força? Sobre o recrudescimento das identidades
Para DaMatta (2003:9)7, a figura mascu- locais perante a globalização, DaMatta lem-
lina é preponderante nos locais que, como bra que um dos fatores a considerar é o de
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 31
que uma identidade forte não é liquidada Como registra DaMatta, se há a disposição
facilmente em pouco tempo. “No fundo, as de se morrer por uma bandeira, o outro lado
identidades estão ligadas a experiências da moeda significa que, também, se está
elementares, e não apenas a experiências in- disposto a matar. E aí reside o risco da
telectuais. A identidade gaúcha, por exem- intransigência.
plo, tem uma base muito sólida nos costu- Neste sentido, Bauman (2003:21) vai dizer
mes, na realidade, no cheiro, na comida, até que “uma vida dedicada à procura da iden-
no ar que se respira no Sul”. O antropólogo tidade é cheia de som e de fúria. Identidade
conclui: “Por que os países vão à guerra? significa aparecer; ser diferente e, por essa
Por que se morre, se mata por uma bandeira? diferença, singular - e assim a procura da
Por uma língua, por um estilo de vida? Porque identidade não pode deixar de dividir e de
as pessoas defendem a sua identidade. Se separar”. Para ele, desta forma, não é de
fosse tão fácil mudar a imagem de um povo surpreender que num mundo globalizado as
de uma hora para outra, o mundo seria muito fronteiras não desapareçam e que, pelo con-
mais manipulável”. trário, se fortaleçam. Num certo sentido, o
Mas, mesmo em situações de identidade grande desafio, conforme Wolton (2003:24),
local forte, é conveniente lembrar, conforme é o da “coabitação cultural”, Para o autor, se
García-Canclíni (2002:91), que hoje, no a revolução da tecnologia permitiu a liberação
mundo todo, muitos setores populares mi- das distâncias físicas foi para provar, em
gram, comunicam-se na diáspora, subsistem seguida, a dificuldade das distâncias culturais.
graças a remessas de dinheiro, informação Ou seja, “a obrigação da coabitação cultural
e recursos materiais procedentes de diversas facilita uma espécie de retorno da experiên-
regiões. Assim, o local-popular10 se produz cia, do tempo, das raízes, da tradição e da
e reproduz em vizinhanças virtuais já pouco geografia como condição de encontro. Como
ligadas a um determinado território e outras se a obrigação da coabitação cultural fosse
características definidoras do político. Segun- revalorizar o que as performances da moder-
do o autor, “vive-se o popular-local confor- nidade consideraram como ultrapassado”.
me se padece a globalização ou se participa
nela”. E, mais, “em um mundo midiático, ser Considerações finais
um sujeito popular incluído requer controlar,
em certa medida, o habitat físico imediato Retomando-se a questão do papel do rádio
e, também, tornar-se capaz de disputar os e da identidade brasileira, ao acompanhar-
circuitos translocais dos quais depende a sua mos a trajetória do veículo ao longo de 80
auto-reprodução”. Neste sentido, muitos anos do século XX e início do século XXI,
autores preferem falar mais em identificação percebemos que, se por um lado auxiliou na
do que em identidade, aludindo a um sentido construção de uma identidade nacional, por
contextual e flutuante. outro também contribuiu para o fortalecimen-
Na época atual, de interações to de identidades regionais, devido as suas
transnacionais, de comunicação agilizada, características intrínsecas de proximidade
uma mesma pessoa pode identificar-se com com o local. Na atualidade, com as possi-
várias línguas e estilos de vida. O que não bilidades tecnológicas, o que está se confi-
necessariamente significa o abandono da gurando é o que Castells considera a liber-
identidade nacional mas o acréscimo, ou a dade de buscar uma identidade local própria
aceitação (e também o rechaço), de outras via “uma rede global de comunicação local”
identidades. Num certo sentido, tomando-se (entre as demais identidades). Evidentemen-
o exemplo da identidade gaúcha, regional/ te, uma liberdade que vai depender da
local, brasileira e latinoamericana, esta pas- condição econômica dos países de dotarem
sa, também a perceber-se de uma maneira as comunidades da infra-estrutura necessá-
mais ampla, como parte de um mundo maior. ria, além das disponibilidades individuais. E
Se por um lado há o receio de perder a sua aí já é outra história. A possibilidade
força, por outro pode ganhar ao tornar-se tecnológica é real, existe. Mas, a sua con-
menos rígida e acessível aos novos desafios. secução, até o momento, não tem sido para
32 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
todos. É a face excludente da questão, que Outro dado interessante refere-se aos sites
já vem sendo estudada, em profundidade, por de centros de tradição gaúchas existentes na
diversos autores. internet12 através dos quais, gaúchos e sim-
No caso específico do rádio e da iden- patizantes desta cultura, em todo o mundo,
tidade gaúcha, pode-se dizer que o veículo, têm se encontrado13. Neste sentido, García-
mesmo com grande número de emissoras Canclíni (1997:80) considera que repensar a
operando em rede11, tem auxiliado na ma- identidade em tempos de globalização é
nutenção da identidade cultural. Atualmente, repensá-la como uma “identidade
cerca de 96% das residências gaúchas pos- multicultural” que se nutre de vários “reper-
suem aparelhos de rádio (no Brasil o índice tórios”. Para o autor, esta identidade pode
é de 90%), havendo 366 emissoras de rádio ser multilíngue, nômade, pode transitar,
no Rio Grande do Sul. Destas, 180 são em deslocar-se, reproduzir-se como identidade em
Ondas Médias, 176 em Frequência Modu- lugares distantes do território onde nasceu.
lada e 10 em Ondas Curtas e grande parte O fenômeno demonstra que a tecnologia -
da programação dedica-se a assuntos de para quem dela dispõe - tem auxiliado no
interesse local. Várias emissoras também já encontro e na manutenção de comunidades
disponibilizam a sua programação na internet. à distância, reforçando, também, a tese da
Lembrando Moreira (2002:218), “mesmo com possibilidade de múltiplas identidades. A
as facilidades de informação disponíveis em discussão, portanto, está longe de se esgotar
sistemas de comunicação globalizados como e os caminhos estão abertos. O caso da
a internet ou nas transmissões de rádio digital, identidade cultural gaúcha é apenas um dentre
o perfil dos ouvintes tende a continuar local, tantos que ocorrem no mundo neste momen-
ainda que com uma inserção global”. to.
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 33
humano ímpar, o gaúcho da campanha, cujas específica dinâmica cultural de suas transforma-
noções de insolência e possíveis problemas com ções e, ao mesmo tempo, buscamos entendê-las
a lei foram amortecidos com o tempo”. correlacionadas com a lógica econômica seletiva
7
A entrevista de Roberto DaMatta foi con- e com as novas disputas políticas” (2002:90).
11
cedida a Daniel Feix e Fernanda Albuquerque e Sobre redes ver Doris F. Haussen e Adriana
publicada em Aplauso. Cultura em Revista, ano R. Duval Redes radiofônicas e produção local:
6, nº 52, Porto Alegre, Plural Comunicação, 2003, um estudo de caso. In Sonia V. Moreira e Nélia
p.7-9. Del Bianco, N. Desafios do Rádio no século XXI.
8
O autor aprofunda este tema em Roberto Rio de Janeiro, UERJ/Intercom, 2001, p.193-207.
12
DaMatta Nação e Região: em torno do signifi- Os principais endereços de busca são
cado cultural de uma permanente dualidade www.mtg.org.br ; www.paginadogaucho.com.br e
brasileira In Fernando Luís Schuler e Maria da www.galpaovirtual.com.br Este último, o site
Glória Bordini (orgs.) Cultura e Identidade Galpão Virtual divulga arte e tradição gaúchas
Regional, Coleção Memória das Letras, Porto e é do provedor Internet Via RS, petencente à
Alegre, Edipucrs, 2004, p.19-30. Companhia de Processamento de Dados do Rio
9
Os Centros de Tradição Gaúcha (CTG) têm Grande do Sul. Na seção do site denominada Tchê-
como ideário, segundo um de seus fundadores, mail a comunidade de internautas virtual deixa
zelar pelas tradições do Rio Grande do Sul as suas impressões sobre o mesmo e assuntos
(história, lendas, canções, costumes, etc.); lutar correlatos.
13
por uma sempre e maior elevação cultural e moral Em seu estudo sobre a cultura regional
do Estado e fomentar a criação de núcleos gaúcha, Jacks (1999:257) já observava que a
regionalistas dando-lhes todo o apoio possível presença de Centros de Tradição Gaúcha (reais
(Lessa, 1985, in Jacks, 1998:38). e, não, virtuais) em vários estados brasileiros e
10
García-Canclíni diz “Ao resistirmos a li- no exterior significava uma reterritorialização,
mitar o popular ao local-tradicional, podemos uma vez que “o CTG, no imaginário tradiciona-
começar a compreender sua persistência nas etapas lista é a recriação do pago ( lugar onde se nasceu,
mais recentes do capitalismo. Reconhecemos a o lar) em um ambiente distante dele”.
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 35
emotividade e produz, por outro lado, o efeito Oedipe (1972): o desejo é maquínico e a
cada vez mais alargado de uma estetização máquina é desejante, de maneira que há tantos
da existência. A técnica produz, pois, o efeito seres vivos na máquina como máquinas nos
de um espaço que se gasta em emoções, quero seres vivos. Neste quarto do castelo, um
dizer, um espaço agitado, excitado, sobre- quarto de horrores, de homens-máquinas,
aquecido, que se esgota em emoção. E então corpo, máquina e desejo fazem uma liga que
é ver-nos a replicar-nos neste mundo, clónica não apenas nos fascina, mas que igualmente
e protesicamente: com regimes alimentares, nos inquieta.
com normalização em ginásio, com plásti-
cas, com próteses de silicone, com implantes 3. A melancolia das narrativas tecnológicas
de cabelo, com implantes electrónicos no
cérebro para realizar up grades de inteligên- Gostaria de dar mais um passo portas
cia, com implantes de embriões clonados para adentro deste quarto do castelo, evocando as
apurar a raça humana. figuras da ruína e da utopia do corpo nas
Autores há que falam, a este propósito, imagens tecnológicas. A ruína e a utopia do
da existência em nós de uma pele tecnológica, corpo são figuradas, por exemplo, nos cor-
de uma pele para a afecção e a emoção. É pos virtuais, corpos que são imagem pura,
o caso de Derrick de Kerckhove. Na obra absoluta criação tecnológica, corpos aliás
The Skin of Culture, defende este autor a tese volatilizados pela técnica, corpos pervasivos,
de que os media electrónicos são extensões de total irrealidade, todos eles luz.
não apenas do nosso sistema nervoso e do Entre esses corpos virtuais, encontra-se
nosso corpo, mas também extensões da Kyoko, uma “pop star” japonesa, que existe
psicologia humana. entre o real e o virtual. Um dos sites que
Steven Shaviro radicaliza esta tese ao falar
esta estrela tem na Internet faz a seguinte
da “erotic life of machines”. Trabalhando
descrição de Kyoko: “Além de cantora,
sobre o videoclip que Chris Cunningham
trabalha num restaurante fast-food de Tóquio,
realizou para a canção de Björk “All is full
cidade onde os pais também têm um restau-
of love”, Shaviro analisa o modo como Björk
rante. Tem fãs no Japão e no mundo inteiro.
se transforma num cyborg e como esse
Medidas: Tem 40 000 polígonos (pixels) e
fantasma, esse duplo de Björk, se replica
uma equipa de criadores que a inventam e
noutro cyborg, ou seja noutro duplo, acaban-
reinventam a todo o instante (site:
do os duplos de Björk apaixonados um pelo
www.citi.pt/estudos)5.
outro.
Ora aqui está um corpo prolongado por
Ora, nesse videoclip, o ser vivo que é
próteses miniaturizadas, pelos pixels do
Björk vai deslizando até se fundir com a
máquina, ou seja, com a imagem maquínica computador, pela imagem que está sempre
de Björk. Essa fusão, uma liga de bios e de em mutação, criação e reinvenção. Kyoko é
technê, faz irromper o pós-orgânico. A voz a figuração de uma verdadeira “máquina
de Björk figura esta pós-organicidade, dei- autopoiética”. Este corpo sem defeito dá-nos
xando de ser a voz de um ser humano para a possibilidade de uma identificção que rompe
se identificar com o som de um sintetizador. com as deficiências e as insuficiências de um
O inorgânico, todos o sabemos, é estéril corpo real. Uma star virtual não está nunca
por natureza. Mas o pós-orgânico (essa liga sujeita a doenças, acidentes e problemas
de bios e de technê), fantasia um acto de sentimentais. A sua imagem é segura e a nossa
criação, através de um amor estritamente identificação faz-se com uma perenidade e
endogâmico 4 . O videoclip de Chris uma infinitude, vividas em imagem.
Cunningham apresenta-nos assim um enlace Num tempo sem Génesis nem Apocalipse,
entre dois cyborgs, entre dois duplos, entre um tempo em “sofrimento de finalidade”,
dois fantasmas de Björk, encenando o pre- como diria Lyotard (1993: 93), um tempo
lúdio de um acto sexual. sem qualquer promessa de redenção que o
Convoco, de novo, neste ponto, a tese finalize, a tecnologia, neste caso Kyoko, é
proposta por Deleuze e Guattari no Anti- a escatologia que nos resta.
38 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
circunstâncias familiares de ir ter com Sónia contextos e lugares sociais – estas são as
a Angola, e que também não compreende o perspectivas de protagonistas eles próprios
“folclore revolucionário” (Faria, 1980: 141). pessoal e grupalmente perturbados, desloca-
Terceiro tempo, “idos de Março”, de dos, desvinculados, dilacerados. Mas dessa
Março de 1975. Na perspectiva de JC, a opção básica do ciclo romanesco o que resulta
revolução virou opereta. “Agora – escreve– é uma representação do país e do seu pre-
– volta a vir ao de cima o nosso secular sente, da oportunidade perdida do seu pre-
cepticismo, indiferença, fatalismo, transfor- sente, perdida por causa da repetição da
mando em gesto nacional o encolher-de- pequenez, da tacanhez ancestral. André, o
ombros de outrora conhecido” (Faria, 1980: irmão mais velho, o que vai morrer, escreve
158). Marta em Veneza, não apenas Marta, numa das suas cartas de São Paulo, Brasil:
Veneza como lugar-outro e contraponto ao
“carnaval na quaresma” (Faria, 1980: 169) “Durante as minhas insónias
em que virou o processo revolucionário. E crepitantes, penso que não me perten-
o romance conclui-se nesta amargura: a ço, sou não eu mas um povo inteiro
ruptura querida tornou-se numa ruptura perdido de si, confusamente à procu-
vencida, a amada diz que não volta, JC que ra de não sabe que saída. Já em Lisboa
vá ter com ela se quiser. pensava isto ao olhar as ruas degra-
A publicação, em 1983, de Cavaleiro dadas a que os murais revolucioná-
Andante fechará o círculo ficcional sobre esse rios ainda davam tons de revolta ou
país-Portugal perdido na história secular de de ironia contra a história que nos tem
injustiças, atavismos e bloqueios, mas tam- andado a enganar. Ou fomos nós que
bém perdido numa revolução que lhe terá nos enganámos preferindo culpar os
mudado apenas a epiderme. As cartas são
outros, por ser mais fácil?” (Faria,
trocadas entre Junho e Novembro de 1975,
1983: 131).
e entre Lisboa, onde está JC, ou os sítios
por onde transita no seu novo emprego de
Assim se opera uma espécie de
comissário de bordo, Veneza, onde continua
desocultação, através dos sonhos, dos pen-
Marta, o Brasil onde André, o mais velho,
samentos, das cartas dos personagens –
vai tentar encontrar trabalho, para logo
primeiro, nos dois romances iniciais, alargada
desistir, e Luanda, onde está Sónia, a namo-
a perspectiva ao olhar dos subalternos, as
rada de André, e aonde este acabará por se
criadas de casa, o velho empregado, os
dirigir, aí morrendo, junto a ela, de doença
trabalhadores rurais, depois, nos dois últimos,
fulminante.
circunscrita aos diálogos de jovens separa-
Assim se combinam duas escalas, porém
dos entre si e de si mesmos (e à sua relação
o elemento de articulação é o mesmo: para
os jovens filhos de lavradores alentejanos, com a mãe que não compreende o que se
apanhados na voragem revolucionária ao passa e com as crianças que experimentam
mesmo tempo que inquietos dos seus vín- a adolescência). Essa desocultação mostra um
culos de família, clã ou meio e imersos na país pequenino, onde terratenentes e revo-
tensão dos relacionamentos afectivos e lucionários, onde colonos e descolonizadores,
amorosos, a ressaca do Portugal-império, tão onde conservadores e progressistas estão
mal descolonizado quanto havia sido mal presos de análogas incapacidades, encontram-
administrado, é homóloga da ressaca do se nos mesmos impasses, que são os impasses
Portugal-paróquia, provinciano e pacóvio, que da história e das elites sociais nacionais.
vive uma revolução sem grandeza e pathos, Como explicará JC a Marta, à Marta que
“à maneira — nas cáusticas palavras de Marta prefere Veneza a Lisboa porque prefere a arte
— dos festivais da canção Eurovisão” (Faria, ao provincianismo e prefere o prazer ao
1983: 233). engajamento e prefere-se a si própria a
Claro que – aí estão as identidades si- qualquer ente gregário transcendente, a raiz
tuadas de que começámos por falar, do impasse está na aversão ao
construídas ou desestruturadas de dentro de cosmopolitismo:
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 45
Almeida Faria coloca a sua pátria, de imediato, é por causa da incrível força
Montemínimo/país-mínimo, num divã de que emana da complexidade de África. “Esse
esteta; e sacode-lhe o arcaico provincianismo era o suspiro do colono. Em África, tudo é
com os ventos fortes e instantes da cultura outra coisa” (Couto, 2004: 92). Como agarrá-
moderna e cosmopolita. Se fosse, porém, ao -la, pois, como dominá-la, como prendê-la?
contrário? Se a raiz que prende a identidade O foco principal da obra ficcional de Mia
colectiva à terra e ao passado constituísse Couto não é, porém, o tempo colonial, mas
o que resta de melhor, para enfrentar a sim a alvorada do novo Estado, a quase
desventura e manter um grão de esperança imediata convulsão da guerra civil e a cus-
mesmo quando parece que tudo se desmo- tosa e incerta saída dela para a possibilidade
rona? Se o moderno estivesse longe de ser da paz e do desenvolvimento.
o horizonte exaltante face ao qual haveria No primeiro romance, Terra Sonâmbula,
de lamentar-se a âncora que nos prende ao de 1992, é a desolação que impera. Um velho
chão das tradições, e fosse ao invés neste e um moço, deslocados e sozinhos, tomam
chão que residissem as forças de resistência por provisório abrigo um autocarro incendi-
e de futuro? ado em estrada intransitável; e nele desco-
Poderíamos talvez reler, desse ângulo, a brem os cadernos manuscritos de outro jovem,
obra até agora publicada pelo romancista e Kindzu, que o moço lerá em voz alta para
contista moçambicano Mia Couto, nascido em o velho e para si próprio. Kindzu, que partira
1955. O que é a África? Quando o autor, da aldeia em busca dos míticos naparamas,
ele próprio branco, alude ao Moçambique guerreiros da justiça, encontra uma mulher
colonial, logo sobressai a incapacidade do e, a pedido desta, tenta recuperar-lhe o filho.
colono para entender África. Em Vinte e No sonho com que acaba o romance, Kindzu
Zinco, novela publicada em 1999 como
acaba por chegar ao autocarro, o moço seria
evocação do 25.º aniversário do 25 de Abril,
afinal o filho da mulher, lendo os cadernos
o ódio dos colonos pelos negros vem carre-
escritos por quem o procura. A guerra matou
gado, ao mesmo tempo, de medo e fascínio
o país (“agora, já não há país”, Couto, 1992:
pela Mãe África, a sua exuberância natural
165), as aldeias, as estradas, as bases da
e cultural, os poderes “ilógicos” e “ocultos”,
existência e da comunicação. As gentes estão
a ancestralidade. O pide Lourenço de Castro,
à mercê dos “bandidos armados”, da nomen-
abusador e torcionário, não deixa de ser um
clatura dirigente, da raiva e do ódio que
menino da mamã, que dorme com um pano
destroem; as gentes foram arrancadas às suas
de fralda por travesseiro e o cavalinho de
comunidades, deslocadas para campos de
pau ao lado da cama, e arde de desejo pela
refugiados, estão famintas, desesperadas. O
sua tia “traidora”, mulher branca
que é, então, a esperança? É esta “terra
frequentadora de negras e negros, amante de
África e comprometida com a Frelimo. A sonâmbula”, a sua história e imaginário, a
personagem cega, cega e negra, comenta: sua capacidade de sonhar, o amor entre os
velhos e os jovens e das mães aos filhos,
“os brancos falam da ideia como é que uns se atrevam a figurar possibilidades
coisa solar que ilumina as mentes. que vão além do preconceito, do tribalismo,
Mas a ideia, todos sabemos, pertence do racismo, da corrupção e do rancor. Como
ao mundo do escuro, dessas aquele comerciante indiano, Surendra, “mais
profundezas de onde nossas vísceras sua nação sonhada: o oceano sem nenhum
nos conduzem” (Couto, 1999: 84) fim” (Couto, 1992: 214): os continentes
separam e o mar une e seria, portanto,
– e esta diferença condensa a contradição das preferível conceber moçambicanos, de um dos
maneiras de ver e avaliar a relação entre lados do Índico, e indianos, do outro, como
mente e corpo, seres e coisas. Quando, no nacionais de uma mesma nação. Ou, então,
conto “O novo padre” de O Fio das como os homens de que Surendra gosta, os
Missangas, o colono se apercebe de que o “homens que não têm raça” (Couto, 1992:
novo padre é negro e não consegue reagir 29). Ou como aquele velho, Nhamataca, que
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 47
quer cavar um rio, para reparar a ofensa feita morto”. “O verdadeiro crime que está a ser
à terra e repor a paz, porque o rio “costura cometido aqui é que estão matando o anti-
os destinos dos viventes” (Couto, 1992: 96). gamente”, “as últimas raízes”. “Estes velhos
Não é muito diferente o tom do volume estão morrendo dentro de nós”, isto é, na
de contos publicado em 1994, Estórias nossa indiferença, na nossa incapacidade de
Abensonhadas. Moçambique na incerta paz articular o presente à terra, à história, à sua
que sucede ao fim da guerra civil. O conflito herança. Marta previne:”“Há que guardar este
entre Renamo e Frelimo não é poupado, por passado. Senão o país fica sem chão” (Couto,
exemplo no conto-parábola significativamente 1996: 59, 60, 103).
intitulado “A guerra dos palhaços”, assim Um país a que roubam o chão, eis a nação
como não deixa de ser castigado o sem- moçambicana engolida pelo abismo, à espera
sentido de vários rituais e decisões do Estado- da possibilidade de uma redenção – que é
Frelimo (“Jorojão vai embalando lembran- como a ficciona o fim do romance de 2000,
ças”). Mas, entre a amargura, sinais de O Último Voo do Flamingo. Quem lho rouba
esperança, “estórias abensonhadas” de gente não é só a guerra civil, os “bandidos” de
comum, capaz de inventar, no labirinto das um e outro campo; não é só a nomenclatura
desgraças, pequenos caminhos de felicidade.
dirigente do Estado, merecido alvo de
Dessa gente se poderia dizer o que intui o
impiedosos sarcasmos; é também o olhar
narrador de certa moça: “desenvenenava o
“ocidental” e “moderno”, o novo discurso da
tempo, sempre ávido de desgraça?” (Couto,
ordem democrática tutelada pelos organismos
1994: 24).
internacionais, em que se recicla a nomen-
Alguém pergunta a um “descamponês” –
clatura, e os peritos dessa ordem que teimam
que as terras lhe haviam sido retiradas, só
lhe sobrando o descampado – “Como vos em não entender a cultura oral, popular e
sobreviveu a esperança?”. E ele responde: tradicional, protagonizada sobretudo por
“Mastigámo-la. Foi da fome” (Couto, 1997: velhos e mulheres, e a ela pretendem qui-
115). Cito os Contos do Nascer da Terra, mericamente contrapor a sua lógica político-
contos que falam sobre os sonhos das pes- administrativa “exterior”, urbana e
soas, rurais ou suburbanas, as suas relações transnacional. E, como a cultura ancestral é
com a terra e os bichos, com as tradições, indomável, e tem do seu lado o mistério —
com os mortos e os velhos a que se deve quer dizer, o que o racionalismo plano do
obediência, com o misterioso, o insólito, o discurso moderno não consegue apreender na
inesperado, que são todos outros modos de sua complexidade multifacetada, porque o
ver e imaginar as coisas. (Des)encontros entre olha de um só ângulo — é que se dão esses
a vida e a morte, o homem e a mulher, o estranhos e não deslindados casos, como certa
menino e o adulto, o normal e o insólito, explosão de capacetes azuis da ONU nos
a tradição e o que a transgride, o saber comum confins do território moçambicano (Couto,
e o saber técnico ou burocrático, a vizinhan- 2000).
ça e o Estado, a natureza e o homem pre- E, como a terra é indomável, é ela a última
dador… barreira aos ventos de corrupção que casti-
Ora, é a pujança ancestral, física e sim- gam o país devastado: querem enterrar um
bólica, da terra moçambicana que os discur- Avô, que ninguém sabe se morreu se con-
sos e os actos de dominação não entendem tinua vivo, ou seja, que está, à semelhança
e, por não entenderem, violentam — e afinal do país, como que em suspenso entre direc-
se perdem, tolhidos na sua própria ções contrárias; e a terra fecha-se, impedindo
incompreensão. N’A Varanda do Frangipani, que se cave a sepultura. Fecha-se porque
a enfermeira Marta usa termos muito duros havia sido conspurcada com o pó branco das
para a denúncia da morte dos “velhos” (os drogas que os traficantes tentavam introduzir
intérpretes das raízes de uma nação devas- na ilha, a terra fecha-se porque o desenlace
tada pela guerra, a corrupção e a indiferen- da relação dos homens com o “rio chamado
ça). Eles são “guardiães de um mundo”, diz tempo” e a “casa chamada terra” está por
Marta. “É todo esse mundo que está sendo decidir.
48 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
da paz e da democracia feitas mercadorias romances de Almeida Faria. Para estes, por
de exportação. Mas é também enorme o vigor não prezar o que vem de fora e é moderno
dos laços e raízes, e da duração que os é que Portugal se perdeu e perdido continua,
protege, a força que permite sobreviver, a mesmo quando se sobressalta: falha
resistência, a capacidade de enfraquecer e incontornável da ausência de cosmopolitismo.
desnortear o dominador, a esperança. Aqui, Para os protagonistas da ficção de Mia Couto,
no Moçambique de Mia Couto, quem está por não ser prezado o longo e paciente
do lado sombrio e no pólo negativo é a trabalho das gerações é que tantas ameaças
modernidade unidimensional, inábil na co- pairam, colocando em perigo a identidade
municação com o que lhe escapa, incapaz moçambicana e o seu devir: erro fatal da
de acolher o que é da ordem do onírico, do modernidade sem chão. É, pois, a dialéctica
misterioso, do sagrado, a modernidade da entre estes dois pólos que define, do ponto
racionalidade fria e instrumental e da domi- de vista criativo, a dinâmica das identidades?
nação tecnocrática. Positiva e prometedora O muito que gosto em Agualusa e o pouco
é a cultura, em toda a sua latitude antropo- que posso dizer acerca da sua obra levam-
lógica, a cultura material e simbólica tão me a sugerir que não. Que a relação se pode
próxima da terra, tão alicerçada na espessura ainda adensar um pouco mais.
geo-histórica, luminosas são as tradições, as José Eduardo Agualusa nasceu em 1960
linguagens, usos, gestos, o fio das gerações no Huambo, em Angola. Estudou agronomia
e dos territórios. Não haverá futuro, pelo em Portugal e aí se fez jornalista. Com o
menos humano, pacífico e são, para uma mo- romance A Conjura, ganhou o Prémio Re-
dernidade sem raiz, para um país feito de velação Sonangol de 1989. A partir daí
fora, em combate com o seu próprio povo, escreveu, até ao ano de 2004, cinco roman-
a sua própria paisagem e o seu próprio ces, além de contos, novelas, crónicas e
passado. “O sagrado tem seus métodos, as literatura para crianças. Viveu também no
lendas se sabem defender” (Couto, 1994: 91) Brasil e na Alemanha. Neste aspecto, é dos
– e nós só conseguiremos resolver positiva- escritores de origem africana e língua por-
mente a questão da identidade se soubermos tuguesa mais cosmopolitas. A sua ficção fala-
respeitar o muito que é complexo e escapa nos sobretudo de Angola, da Angola de dois
a uma apreensão chã, que por ser complexo momentos históricos fundamentais: de um
só se nos oferece se soubermos estimá-lo, lado, a segunda metade do século XIX e o
honrá-lo, preservá-lo, usando de todos os início do século XX – a sociedade “ango-
recursos da razão e do sonho para lense” dos tempos coloniais e a sua relação
compreendê-lo plenamente. com as questões da autonomia, da indepen-
Num dos mais belos contos “do nascer dência, da escravatura – e, do outro lado,
da terra”, um velho português, agora asilado, a actualidade, a luta pela independência e a
faz a pergunta: sua consagração em 1975, a interminável
guerra civil que se lhe seguiu e os equívocos
“Foi então que eu vi as árvores, da – “normalização” operada depois da li-
enormes sentinelas da terra. Nesse mo- quidação de Jonas Savimbi. Mas não fala só
mento aprendi a espreitar as árvores. de Angola, fala de Angola-em-relação: Angola
São os únicos monumentos em Áfri- face a Portugal, Angola face ao Brasil; e,
ca, os testemunhos da antiguidade. Me mais recentemente, também de Portugal face
diga uma coisa: lá fora ainda exis- ao Brasil e reciprocamente (além de Goa).
tem? Pergunto sobre as árvores” Neste plano, Agualusa é um dos escritores
(Couto, 1997: 111). de língua portuguesa que melhor se movi-
menta em todo o espaço geográfico, histó-
Perguntar pelas árvores: perguntar pelas rico e cultural da lusofonia.
raízes, pelo que liga ar e chão, identidade Creio que posso exprimir a interpretação
e memória. cultural que proponho se sugerir que estão
O olhar de Mia Couto não é o olhar presentes, na ficção de Agualusa, duas linhas
cosmopolita do João Carlos e da Marta dos de aproximação à identidade angolana.
50 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
loucos com o corpo coberto de alca- O que restaria, neste curso das coisas,
trão. Os mutilados de olhar perdido. seriam a desilusão, a amargura e o sarcasmo.
Os soldados em pânico no meio dos Na incursão por Goa, no quadro de uma bolsa
escombros. E mais além as aldeias de criação literária oferecida pela Fundação
desertas, as lavras calcinadas, as tur- Oriente, Agualusa exila na antiga Índia
vas multidões de foragidos. E ainda portuguesa um velho combatente da guerri-
mais além a natureza transtornada, o lha do MPLA, Plácido Domingo, depois da
fogo devorando os horizontes. independência acusado de traição e persegui-
Disse: do, como suposto agente da PIDE infiltrado
- Este país morreu!” (Agualusa, no movimento: com esta experiência, onde
2003a: 279). fica o mal, senão sempre connosco, irreme-
diavelmente perto de nós, inseparável com-
Morreu depois de ter lutado contra o panheiro do que julgamos ser o bem, e o
colonialismo português e de o ter vencido, que é doravante Angola se não uma
morreu depois de ganhar a sua própria in- inexistência, uma não-origem, um nada – que,
dependência, morreu por causa da guerra civil contudo, cada um procura recriar noutras
e dos ódios cruzados contra a paz e a li- paisagens, noutros lugares, os lugares de
berdade. O narrador é um jovem jornalista, exílio, procurando os rios que pareçam o
que, por ter como contexto de formação e Quanza ou os cheiros que lembrem a floresta
pertença política um pequeno grupo esquer- (Agualusa, 2000: 26, 50)?
dista, a Organização Comunista de Angola, Depois, no romance O Ano em que Zumbi
assume um radical distanciamento face a Tomou o Rio, que ficciona uma guerra civil
qualquer um dos principais contendores, o urbana desencadeada pela revolta dos
MPLA, a FNLA e a UNITA, e vive a favelados do Rio de Janeiro, comandados por
experiência da prisão arbitrária às ordens do um estranho traficante de droga animado de
poder de Agostinho Neto. Ele interessa-se consciência política, participa Francisco
pela vida de uma mulher, Lídia do Carmo Palmares, negro, ex-coronel do exército de
Ferreira, poetisa e professora, fundadora do Angola, herói desiludido com a revolução e
MPLA e depois ligada à Revolução Activa o regime do seu país. Palmares coloca-se do
de Mário Pinto de Andrade, que desaparece lado dos revoltosos, acabando assim por
(perdida, morta?) nos sangrentos confrontos abraçar uma nova causa, dada à partida como
de 1992. E são os seus dois pontos de vista perdida, por isso talvez ganhadora, abrindo
que nos descrevem a tragédia angolana, no caminho para uma morte, “bela aventura” que
intervalo temporal que vai da resistência confira ao menos um derradeiro sentido ao
anticolonial, ao longo da segunda metade do que se foi (Agualusa, 2002: 248, 282); e é
século XX, até aos massacres de Luanda, os outro angolano, Euclides Matoso da Câmara,
tais que liquidam a ilusão de que as eleições negro e anão, jornalista, que acompanha e
de Setembro de 1992 poderiam ter contri- observa mais de perto este percurso terminal.
buído para a resolução pacífica da luta pelo No romance mais recente, saído em 2004,
poder. Avaliada do seu lugar de observação, O Vendedor de Passados, a acção regressa
Angola morre às mãos do tribalismo, das a Luanda. Remexendo em feridas por sarar,
várias formas de racismo, do mercenarismo designadamente as lutas entre facções do
e da corrupção, do exercício brutal do poder MPLA, o esmagamento do golpe de Nito
e da força, e também morre às mãos da Alves em 1997 e a perseguição implacável
demissão, da indiferença, do refúgio num da direcção do partido aos nitistas. O pro-
modo de sobrevivência feito do desenrascanço tagonista Félix Ventura vive de inventar
e dos pequenos prazeres. A guerra existe e passados e os seus clientes são habitualmen-
destrói porque os beligerantes, tão contrários te figuras da nomenclatura do regime, que
na retórica ideológica, reclamando-se uns da querem retocar as genealogias pessoais e
África profunda e tribal, outro do ambiente familiares, para rasurar pontos negativos ou
urbano, estão afinal irmanados na mesma compor ilustrações nobilitantes. Vale por
sanha sanguinária e no mesmo ódio às pessoas todas a figura do Ministro, assim chamado,
e à sua liberdade. cuja origem Ventura fará ficticiamente remon-
52 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
tar até ao próprio Salvador Correia de Sá, imaginaram a nova nação? Parece destruído
herói da reconquista de Luanda aos holan- inapelavelmente pela guerra, o ódio, a opres-
deses, no já longínquo século XVII. Mas são, o desvario, a crueldade feita poder.
como, perturba-se o Ministro, esse não é um Parece desapossado de futuro ou sequer
colonialista, por isso mesmo apeado do esperança, seja na demência da guerra civil,
patronato do liceu da capital? Que não, seja no inferno totalitário, seja na hipócrita
sossega-o o inventor, Correia de Sá vinha do pacificação de agora. As identidades pare-
Brasil, não de Portugal, e até se ligou, é certo cem, pois, ou perdidas, vergadas ao peso da
que por via de adultério e concubinato, às falsidade e do simulacro, ou fechadas no
negras de Angola. Qual quê, brada então o círculo dos tribalismos mutuamente exclusi-
Ministro, é preciso repor a honra perdida de vos que as torna, como diz Maalouf (1999),
Correia de Sá, afinal combatente “assassinas”.
internacionalista (por ser brasileiro) e Esta não é, todavia, a única linha de
anticolonialista (por ter expulsado os holan- aproximação à questão das identidades que
deses), além de, doravante, “afro-ascenden- entrevejo na ficção de Agualusa. Há uma
te”, visto que ficará sendo a origem da ilustre segunda linha: a que parte da inquietação que
árvore cujo actual fruto é ele próprio, o não se conforma com destinos de injustiça
Ministro (Agualusa, 2004: 143). Neste sar- e imagina outras possibilidades. A que pensa
casmo está condensada a denúncia da clique “Angola, nossa mãe dolorosa e ofendida”
a que desgraçadamente Angola se encontra (Agualusa, 1992: 42), marcada secularmen-
sujeita. Não chegam, porém, ao Ministro, uns te, desde os fins de Quatrocentos, pela
tais louros do passado: quer publicar a condição da escravatura, a pensa também
autobiografia, Memórias de um Combatente, como matriz, também como fundura, como
e dela se encarrega Ventura, que é preciso força subterrânea, como amplidão de terri-
transformar a ínvia ascensão de uma perso- tórios, paisagens, imaginários. À intrusão
nagem obscura, cobarde, oportunista e ligada colonial, à enorme ferida que os europeus
a negócios mal-afamados, na gloriosa “vida abrem e rasgam no espaço e na história
de um combatente” (Agualusa, 2004: 163- africana, os angolenses de A Conjura con-
167). trapõem a força ancestral do seu continente,
É este o ofício de Ventura; mas por causa o que há nele de fecundo, pletórico,
do ofício será demandado por um “estran- perturbador e indomável. É dessa força que,
geiro”, nascido em Portugal, que também mulatos que são, feitos de cruzamento, novos
quer um passado: um passado novo, que protagonistas nem inteiramente negros nem
Ventura lhe procura e tece, e que ele in- brancos, é dessa força que querem ser, por
corpora com tal força que o inventor aca- assim dizer, representantes, intermediando o
bará confrontado com a “realidade” da sua incontornável relacionamento dela com a
invenção. Ora, quem assim tão desespe- civilização económica e técnica da moder-
radamente procura reescrever a sua raiz é nidade europeia.
na verdade um tal Pedro Gouveia, envol-
vido no golpe de 1977, preso às ordens da “Eu penso [diz Severino, um dos
facção de Agostinho Neto e sujeito a cas- heróis da conspiração] que a força e
tigos tão bárbaros quanto a tortura da filha a originalidade de um genuíno roman-
recém-nascida e o assassinato da mulher. O ce angolense só se poderá conseguir
torcionário é um chamado Reis, então agente através da sábia mistura entre o
da segurança do Estado e, agora, com a imaginário e a realidade. Porque é
suposta normalização democrática do regi- assim que nós somos” (Agualusa,
me, deitado fora, tornado de agente em “ex- 1998: 128-129).
gente”, mendigo e sem abrigo refugiado
numa sarjeta (Agualusa, 2004: 183-190). Protagonistas do que está no meio,
Onde está, portanto, o país sonhado pelos irredutível a oposições polares, e pode mediar,
conspiradores angolenses do fim do século articulando os contrários e fazendo comuni-
XIX, pelos resistentes da guerra contra o car os diferentes, hão-de ser também, em
colonialismo, pelos poetas e artistas que Nação Crioula: a Correspondência Secreta
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 53
não se trata de ir por tal caminho: não se E, se acompanharmos José Eduardo Agualusa
trata de fazer sociologia sobre a literatura, no seu próprio percurso cultural através do
mas de fazer sociologia com a literatura. Isto espaço lusófono, por terras e tempos de
é, usar esta obra ou este conjunto de obras Angola, de Portugal e do Brasil (ou do que
como uma interpretação com que se pode e resta em Goa), cosmopolitismo quer dizer
deve confrontar – e alimentar, e enriquecer uma coisa radicalmente diferente, quer dizer
— a interpretação sociológica. Não é, pois, abertura, travessia transfronteiriça,
um objecto, é um texto que podemos con- deambulação, comunicação recíproca,
siderar na tessitura do nosso próprio texto interculturalidade, e as identidades portado-
sociológico, um e outro texto construídos ras de futuro são as que se compõem de
sobre esses textos que são, por serem vívidos múltiplas origens, pertenças e projectos, e por
de sentido, e pelo menos nas suas dimensões isso não são enclausuráveis em círculos
simbólicas, os processos sociais. fechados ou descrições monocromáticas, são,
Mas se é assim, se pode ser assim, então a bem dizer, inclassificáveis, são identidades
não se evitará outra consequência: é que os do meio, da mistura, e por aí, ao menos
textos produzem realidade, não exprimem só, potencialmente, da mediação.
produzem realidade, criam factos, determi- E, contudo, todas três são obras de
nam ideias e emoções, orientam a acção. amargura e desencanto, e também de denún-
Neste sentido, o diálogo entre os textos cia e violento sarcasmo contra a injustiça,
sociológicos ou antropológicos e os textos o horror ou a estupidez. O que é típico do
literários também produz realidade: e, no caso labor literário, quer dizer, criativo, é ao
vertente, produz realidade acerca e a propó- mesmo tempo imaginar possibilidades, cami-
sito das identidades culturais. nhos-outros. Ora, não é isto, propor possi-
Sumariando temerariamente o que ficou bilidades, que define a criação cultural? Não
visto ser complexo, dir-se-á que o olhar que é isto também o que define a relação entre
Almeida Faria projecta sobre a revolução a criação cultural e a intervenção pública,
portuguesa sobre-evidencia a desvalia estru- de que quer dar conta, desde o fim do século
tural do país e da sua gente, que continuam XIX, a ideia do intelectual? Não será isto
“mínimos”, porque avessos à modernidade que poderá ser, apesar ou para além da
e ao cosmopolitismo, encerrados na triste solenidade ritual ou do interesse táctico, a
história da pequenez mal disfarçada. O lusofonia – como espaço multicultural de
verdadeiro “Cavaleiro Andante” não será, comunicação intercultural, estruturado por
contudo, o JC distanciado e crítico, mas o aquilo que, como escreveu Eduardo Louren-
seu irmão mais velho, o tal que tentou refazer, ço (1999: 164), os portugueses “que perde-
agora em sentido positivo, o trajecto histó- ram tudo (perdendo-se no tudo com que se
rico de Portugal para o Brasil e África, no encontraram)” não perderam, a língua? E, se
reverso do que fazia a grande torrente dos for isso, não será enfim baseada numa forma
ex-colonos “retornados”, e em África aca- mais densa, mais abrangente de
baria por encontrar, apenas, a morte. Se o cosmopolitismo, como abertura, como traves-
olhar for o de Mia Couto e projectar-se sobre sia, como comunicação além-fronteiras e
o tumultuoso parto da nação moçambicana, ligação entre territórios? E, se for isso, não
então o que fica em destaque é o valor do se encontrará assim um novo sentido para
que a história chã das pessoas comuns, dos a história comum e tomada, criticamente, por
seus lugares, territórios, paisagens, costumes, inteiro – um sentido que nos projecte para
tradições, numa palavra, a sua cultura, foi lá das imagens simétricas e simetricamente
consolidando e é o principal meio de resis- distorcidas da culpa irredimível da predação
tência contra os vários males que afligem colonial e da variante doce de um
Moçambique (miopia ocidental incluída), bem colonialismo rasurado em encontro e singu-
como quase único factor de esperança. Aí, laridade “luso-tropical” (cf. Almeida, 2000:
é a raiz que segura e acalenta, de cada um 161-184)? E não se resgatará enfim o sonho
fazendo um ser de parte inteira (“cada homem do indiano Surendra, de Terra Sonâmbula,
é uma raça”, Couto, 1990) e de cada povo pertencer não aos continentes separados mas
uma comunidade de percurso e imaginação. ao oceano que os une (Couto, 1992: 26)?
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 57
desafios. Neste paper, não trataremos de todo safio epistemológico imposto às Ciências da
o sistema de cultura lusófono, mas de uma Comunicação pela chamada globalização das
aspecto específico: a configuração do campo tecnologias de informação é que proporci-
acadêmico da Comunicação e do sistema de onou uma ruptura com tais modelos
mídia. globalizantes. Significa dizer, portanto, que
a lógica do global é que gerou a necessidade
O campo da comunicação na comunidade de estudos particularizantes. O global impul-
lusófona sionou o local. Um exemplo são as pesquisas
de campo, os estudos de casos e as análises
A expansão das tecnologias de informa- mais específicas e contextualizadas, ao con-
ção e suas influências nas práticas midiáticas trário das análises teóricas no estilo
gestou um novo desafio epistemológico para frankfurtiano, ou seja, demaisadamente
as Ciências da Comunicação, a partir do abrangentes, sem base empírica.
estudo da mídia globalizada. Até então, os
estudos midiáticos tinham como referência Sociedade global e a comunicação lusófona
básica as sociedades nacionais e seu sistema
de indústria cultural. Tal fenômeno constitui A globalização é vista sob diversos pris-
herança direta do campo das Ciências So- mas. Para alguns a solução mágica para os
ciais, o qual talvez tenha exercido a maior problemas de comunicação do mundo, inclu-
influência na lógica, no arcabouço teórico e sive dos países da CPLP. Para outros, ao
na metodologia nas pesquisas comunica- mesmo tempo que a sociedade globalizada
cionais. traz benefícios para os indivíduos e as ins-
Em muitos casos, os próprios cientistas tituições sociais, também impõe problemas
sociais foram protagonistas das pesquisas. Tal de difícil solução. Um desses problemas é
influência, apesar de suas contribuições, a globalização de alguns idiomas e sua
também acarretou muitos equívocos. Em consequente supervalorização, em detrimen-
primeiro lugar, pode-se destacar a transferên- to de outros, a exemplo do que ocorre com
cia direta de conceitos e a transposição quase o inglês e o português.
literal das práticas de pesquisa daquele Essa questão não é recente. Como diz
campo. Neste sentido, houve uma avalanche Antonio de Nebrija (1983, p.120), “a língua
de estudos que podem ser caracterizados sempre foi a companheira do império”. A
como leituras sobre a Comunicação e não história nos fornece vários exemplos, passan-
estudos de Comunicação propriamente ditos. do por Napoleão III, que controlou
Em segundo lugar, o sistema nacional de rigorosomente o telégrafo e a imprensa
indústria cultural é estudado nos limites nacional, Salazar, em Portugal, Mussolini na
conceituais e metodológicos do próprio Itália, Hitler, na Alemanha e Getúlio Vargas
campo das Ciências Sociais, o que acarretou, no Brasil. A propósito, os países da CPLP,
na maioria das vezes, pesquisas sobre os ainda hoje, constituem exemplos
efeitos e impactos da mídia em comunidades emblemáticos de tal controle, como Angola,
localizadas. Finalmente, cabe destacar a Moçambique, Nova Guiné e Timor Leste.
generalização resultante das duas tendências Ademais, a experiência democrática parece
anteriores. O termo “indústria cultural” ou ser comum apenas entre Portugal e Brasil,
“mídia” tornou-se uma denominação aplicá- embora, de ambos os lados, seja recente.
vel a qualquer forma de comunicação me- Hoje, a mídia é a instituição que perso-
diada, ignorando as epecificidades de cada nifica o poder de controlar o idioma e colocá-
modalidade de comunicação, com suas lin- lo a serviço do poder. Como analisa Octávio
guagens específicas e características peculi- Ianni (1997), sobretudo a mídia eletrônica
ares. assume multifacetados papéis. Dependendo
Contraditoriamente, o quadro de referên- do ponto de vista, ela pode ser identificada
cia de análise que tinha por base as soci- como um “singular e insólito intelectual
edades nacionais, o que pode sugerir parti- orgânico”, ao articular “as organizações e
cularização, gerou modelos de análise empresas transnacionais predominantes nas
globalizantes. A mudança causada pelo de- relações, nos processos e nas estruturas de
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 61
Essa tese, conforme Marques de Melo, gem a Lisboa para visitar as instituições que
no mesmo texto citado, foi exposta publi- então se dedicavam à pesquisa, documenta-
camente em Lisboa, em 1898, durante o V ção e ao ensino da comunicação social,
Congresso Internacional da Imprensa. Entre- demonstrando o interesse brasileiro na co-
tanto, o Brasil só viria a institucionalizar tal operação lusófona. Os laços se estreitariam
iniciativa quase meio século depois, mais na década de 1980, quando a diretoria da
precisamente em 1947, com a criação do INTERCOM convida o Prof. Adriano Duarte
curso de jornalismo da Universidade Cásper Rodrigues, fundador do Departamento de
Líbero, em convênio com a PUC-SP. Em Comunicação da Universidade Nova de
Portugal, a primeira Licenciatura em Comu- Lisboa para participar do V Congresso
nicação Social seria criada trinta e dois anos Brasileiro de Ciências da Comunicação,
depois, em 1979, na Universidade Nova de realizado em Bertioga, no estado de São
Lisboa e em 1985 a Escola Superior de Paulo.
Jornalismo do Porto. Portanto, enfatiza Em 1986, os professores portugueses
Marques de Melo, a cooperação Brasil-Por- Sebastião José Dinis e Salvato Trigo parti-
tugal, no campo das Ciências da Comuni- cipam de um colóquio em São Paulo, o qual
cação, é muito recente. Segundo ele, a visava ao estabelecimento de bases para a
cooperação “deslancha tão somente quando construção de um Thesaurus da Comunica-
Portugal inicia os primeiros programas de ção para uso nos países de língua portugue-
ensino e pesquisa na área, tanto em Lisboa sa. Entretanto, como registra Marques de
quanto na cidade do Porto” (idem). Antes Melo, do lado português, não houve o mesmo
disso, porém, “houve intercâmbio isolado de interesse no intercâmbio acadêmico. Apenas
experiências entre pesquisadores e profissi- a Escola Superior de Jornalismo, da cidade
onais. A literatura brasileira sobre comuni- do Porto, convidou alguns professores bra-
cação social circulou fartamente em Portu- sileiros - entre eles Mário Erbolato, Erasmo
gal, durante os anos 70”. Entre os autores, Nuzzi e Antonio Costela - para ministrar
destaca-se o próprio Marques de Melo, cujos cursos naquela cidade.
textos foram publicados em espanhol na
revista Informação, Comunicação, Turismo. Congressos e colóquios acadêmicos
Conforme descreve o autor, no texto
supracitado, após a Revolução dos Cravos, No âmbito dos congressos e colóquios
quando o governo português começou a acadêmicos, cabe destacar a realização dos
analisar a possibilidade de criar programas dois Encontros Afro-Luso-Brasileiro de Jor-
universitários para formar jornalistas, convi- nalismo e Literatura realizados em São Paulo
dou o Prof. Fernando Perrone, brasileiro (1983) e na cidade do Porto (1986). Anos
exilado na Europa, que havia sido parceiro depois, em 1992, seria realizado um semi-
de Mário Soares num empreendimento edi- nário sobre História e Jornalismo, por ini-
torial. Os contactos diretos entre os dois ciativa de Celia Freire, com a presença de
países foram conduzidos por iniciativa do um grupo de pesquisadores portugueses. No
próprio José Marques de Melo, a partir da mesmo ano, foi realizado, no Porto, o I
fundação da INTERCOM (Sociedade Brasi- Congresso da Imprensa de Expressão Por-
leira de Estudos Interdisciplinares da Comu- tuguesa, coordenado por Fernando de Sousa.
nicação), em 1977 e mais ainda com a criação O evento contou com a presença de uma
do PORTCOM - Centro de Documentação delegação expressiva de brasileiros: José
da Comunicação nos Países de Língua Marques de Melo, Fernando Perrone, Ana
Portuguesa -, quando a INTERCOM, por Arruda Callado, Celia Freire, João Alves das
meio de seu presidente, José Marques de Neves e Ciro Marcondes Filho.
Melo, procura articular-se com o Centro de Em 1994, foi realizado no Rio de Janei-
Documentação sobre Meios de Comunicação ro, o II Congresso Internacional de Jorna-
mantido pela Presidência da Republica Por- lismo de Língua Portuguesa, sob a coorde-
tuguesa, no Palácio da Foz, em Lisboa. nação acadêmica de José Marques de Melo.
Amanaria Fadul, durante sua gestão na Nessa ocasião, a Revista da INTERCOM
presidência da INTERCOM, faz uma via- dedicou uma edição especial à cooperação
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 63
que vai crescendo desde graus mais modera- um modelo de participação política do ci-
dos de reivindicações até formas mais ra- dadão através de um debate público relevan-
dicais de defesa da participação popular. Para te, constante e influente, onde se formam a
ficarmos numa tríade didaticamente confor- vontade e a opinião públicas, mas onde
tável, um tipo de participação moderado é também seriam constituídos os insumos
aquele representado pelo fortalecimento da fundamentais para a produção (pela esfera
presença da esfera civil na cena política, política) de uma decisão legítima sobre os
mediante variadas formas, que vão desde a negócios públicos.
formação de um consistente e expandido Para o modelo seguinte, a questão central
debate público sobre temas de relevância da democracia é a decisão política e o seu
política, passando pelas manifestações da problema principal consiste em como
vontade popular em todas as dimensões da incrementar os níveis de participação civil
esfera de visibilidade pública, até as formas na decisão concernente aos negócios públi-
de organização popular não-governamental cos. Este tipo de compreensão é mais co-
voltadas à reivindicação, à mobilização e mum nas discussões sobre internet e parti-
formação da opinião e da vontade públicas cipação popular em parte da literatura sobre
e à pressão sobre governos em particular democracia deliberativa. A questão aqui não
e a esfera política em geral. Uma partici- é apenas do debate público, mas de como
pação popular um pouco mais radical que tornar o sistema e a cultura política liberais
esta é representada pela intervenção da mais porosos à esfera civil, ao ponto de
opinião e da vontade civil na decisão política possibilitar a sua interferência na produção
relevante no interior do Estado. Neste caso, da decisão política.
a fronteira, preservada integralmente na Por fim, a idéia de participação da ci-
forma anterior, entre sociedade civil e so-
dadania entendida como ocupação civil da
ciedade política, entre mandantes e
esfera política encontra na internet as pos-
tomadores de decisão, torna-se mais difusa,
sibilidades técnicas e ideológicas da realiza-
e às funções “opinião”, “demanda de ex-
ção de um ideal de condução popular e direta
plicação” (o ato dos mandantes a que cor-
dos negócios públicos. Esta perspectiva é
responde a “prestação de contas” dos
sustentada basicamente pelas teorias
mandatários em regimes republicanos) e
libertárias da democracia e pela sua versão
“manifestação” acrescenta-se “interferência
anárquico-liberal da internet.
na decisão política”. Nos dois modelos,
contudo, a participação civil é compatível
A democracia digital
com a alternativa de democracia represen-
tativa, apenas com a reivindicação de au-
tenticação civil da esfera política não ape- Em todos os modelos a experiência da
nas eleitoral mas no respeito pela disposi- internet é vista ao mesmo tempo como
ção e opinião públicas. Cabe, portanto, um inspiração para formas de participação po-
modelo mais radical de participação popu- lítica protagonizada pela esfera civil e como
lar, em que a esfera política é dispensada demonstração de que há efetivamente formas
e as funções de decisão seriam assumidas e meios para a participação popular na vida
pela esfera civil, como ocorre no ideário da pública. A “democracia digital” (e outros
democracia direta. verbetes concorrentes) é, neste sentido, um
Em conformidade com tais modelos, a expediente semântico empregado para a
discussão sobre internet e democracia referência à experiência da internet e de
participativa ganha diversos contornos e dispositivos semelhantes voltados para o
começa a formar diferentes tradições. Aos incremento das potencialidades de participa-
graus mais moderados4 de participação de- ção civil na condução dos negócios públicos.
mocrática, corresponde, por exemplo, a maior Podemos buscar sintetizar a discussão
parte das discussões sobre internet e parti- genérica sobre democracia digital, ainda que
cipação popular a partir do conceito tardio de forma apressada, em um conjunto básico
de esfera pública. No seu centro se desenha de asserções.
68 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
O grau mais elementar é aquele repre- tica, obtém o feed-back da esfera civil e
sentado pelo acesso do cidadão aos serviços retorna como informação para os agentes da
públicos através da rede (a cidadania- esfera política. São as formas típicas sinte-
delivery). No mesmo nível está a prestação tizadas na fórmula G2C, ou from government
de informação por parte do Estado, os to citizen, que vem se popularizando nos
partidos ou os representantes que integram últimos anos. O vetor vai, naturalmente, do
os colegiados políticos formais. A rigor, a governo para o cidadão. Os graus superiores,
democracia digital de primeiro grau implan- entretanto, supõem um fluxo de comunica-
ta-se de forma acelerada em toda a parte e ção cuja iniciativa está na esfera civil ou que
neste momento está mais ou menos estabe- produz efeito direto na esfera política, en-
lecida, em suas dimensões essenciais, na tendida como esfera da efetivação da decisão
maior parte dos Estados liberais contempo- política.
râneos. Servem até mesmo como plataformas O terceiro grau de democracia digital é
de autopromoção dos governos, que facilmen- representado por um Estado com tal volume
te designam estruturas tecnológicas destina- e intensidade na sua prestação de informação
das ao provimento de serviços e informações e prestação de contas que, de algum modo,
públicas on-line de democracia eletrônica, adquira um alto nível de transparência para
cidade-digital, desfrutando ao mesmo tempo o cidadão comum. Um Estado cuja esfera
da aura de modernidade e de democracia. Não política se oriente por um princípio de
faltam, naturalmente, iniciativas sérias que publicidade política esclarecida. Neste caso,
tendem a facilitar a vida do cidadão no que porém, o estado presta serviços, informações
respeita àquelas iniciativas em que ele era, e contas à cidadania, mas não conta com ela
a princípio de maneira penosa, forçado a lidar para a produção da decisão política. Neste
com a burocracia do Estado. Eficiência da modelo há um encaixe mais ou menos
gestão, diminuição de custos da administra- adequado entre os fluxos de demanda de
ção pública, substituição da terrível burocra- explicações cuja origem é, evidentemente, a
cia estatal pela nova burocracia digital, torna esfera civil e a prestação de contas de um
a democracia digital de primeiro grau van- Estado, em todos os seus poderes, que se
tajosa para os governos e confortável para explica aos seus cidadãos.
o cidadão, na verdade, um cliente ou usu- O quinto grau, evidentemente, é repre-
ário. sentado pelos modelos de democracia direta,
O segundo grau é constituído por um onde a esfera política profissional se extin-
Estado que consulta os cidadãos pela rede guiria porque o público mesmo controlaria
para averiguar a sua opinião a respeito de a decisão política válida e legítima no in-
temas da agenda pública e até, eventualmen- terior do Estado. Trata-se do modelo de
te, para a formação da agenda pública. Numa democracy plug´n play, do voto eletrônico,
democracia digital de segundo grau, a esfera preferencialmente on-line, da conversão do
política possui algum nível de porosidade à cidadão não apenas em controlador da esfera
opinião pública e considera o contato direto política mas em produtor de decisão política
com o público uma alternativa às sondagens sobre os negócios públicos. O resultado da
de opinião. Estados ou administradores implementação de uma democracia digital de
públicos mais sensíveis à opinião e à von- quinto grau seria uma Estado governado por
tade populares organizam ferramentas plebiscito em que à esfera política não restaria
eletrônicas para a discussão pública de que as funções de administração pública.
projetos importantes, freqüentemente prove- Uma democracia digital de quarto grau
nientes do Executivo, e a extensão, inclusão corresponderia a determinados modelos de
e consistência do exame e debate pública vai democracia deliberativa. À diferença da
depender da sinceridade deliberacionista do democracia de quinto grau, a democracia
agente público, materializada no formato do deliberativa combina o modelo de democra-
dispositivo tecnológico empregado. cia participativa com o modelo de democra-
Nestes dois graus mais elementares, o cia representativa. A esfera política se man-
fluxo de comunicação parte da esfera polí- tém, mas o Estado se torna mais poroso à
70 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
participação popular, permitindo que o pú- da. É mais fácil identificar deliberação na
blico não apenas se mantenha informado comunicação mediada por computadores,
sobre a condução dos negócios públicos, mais entendendo-a como debate ou entendendo-
ainda, permite que possa intervir -a como produção de decisão argumentada
deliberativamente na produção da decisão e discutida, do que indicar como tal delibe-
política. A esfera civil, neste caso, não cessa ração precisamente produza algum efeito na
as suas funções na formação eleitoral da produção da decisão política que conta no
esfera política (única função que lhe atribu- interior do Estado. A rigor, em parte con-
em as constituições liberais contemporâne- siderável dos casos trata-se de uma esfera
as), mas de algum modo teria intervenção pública não-deliberativa ou simplesmente
na esfera da decisão política, fazendo valer daquilo que podemos chamar de conversa-
nela o resultado da deliberação pública. Uma ção civil, quando a reivindicação da demo-
deliberação pública que, dentre outras coi- cracia forte seria uma esfera pública
sas, serve-se dos meios eletrônicos de deliberativa civil.
interação argumentativa. A democracia digi- Outros autores se ocupam basicamente da
tal deliberativa teria que ser uma democracia deliberação, mas não se preocupam em
participativa apoiada em dispositivos mostrar com a deliberação popular na internet
eletrônicos que conectam entre si os cida- poderia gerar efeitos sobre a esfera dos
dãos e que lhes faculta a possibilidade de decisores políticos. Chegam mesmo a mos-
intervir na decisão dos negócios públicos. trar, com muita capacidade, as características
Como não se conhece nenhum Estado de uma deliberação adequada, mas não se
com níveis eficientes de implementação dos preocupam em mostrar se tais características
graus quatro, cinco e seis, tampouco parece se realizariam, por exemplo, nas deliberações
plausível se detalhar os aspectos e dimen- off-line. Dá mesmo a impressão que alguns
sões envolvidos na produção da decisão trabalham com o modelo de uma espécie de
política por parte do público. Sabe-se que sociedade civil organizada e hiper-engajada
as possibilidades plebiscitárias da internet já em deliberações, quando talvez esta demo-
se provaram eficazes, assim como as ferra- cracia confortável da internet seja mais
mentas fundamentais para os fóruns públicos apropriada para uma esfera civil desengajada
de toda a natureza. Não se sabe, todavia, que e desorganizada.
efeitos uma taxa muito intensa de transfe-
rência da decisão política para a esfera civil Das possibilidades e limites da democracia
por meios eletrônicos produziria sobre a digital
sociedade política no seu formato atual. Nem
como conciliar a decisão civil com uma O que dizer disto tudo? Bem, os graus
gestão do Estado formada por representantes mais elementares de democracia digital não
eleitos. Trata-se, na verdade, de modelos causam problemas teóricos, pois mantêm as
absolutamente teóricos, mas com grande estruturas atuais e adicionam algumas van-
efeito prático, sustentando a imaginação de tagens da internet às práticas políticas de-
formas de participação popular na política mocráticas contemporâneas. Tampouco o grau
contemporânea e a implementação de projetos mais extremo causa um autêntico problema,
destinados a reformar a qualidade democrá- haja vista que o modelo de democracia direta
tica das nossas sociedades. é dificilmente sustentável em sede teórica,
exceto para os mais radicais libertários e para
4. A forma mais democrática de assegurar os gurus da internet. Resta examinar os graus
participação na decisão política se dá atra- intermediários inspirados nas idéias de es-
vés de debate e deliberação. fera pública e democracia deliberativa, na
tentativa de evidenciar suas virtudes e seus
O princípio de soberania popular parece limites.
requerer que o povo participe de processos Antes de tudo as virtudes, a começar pelo
abertos e justos de debate e deliberação sobre fato real de que para quem tem acesso a um
os negócios públicos. O que quer dizer, na computador e capital cultural para empregá-
verdade, deliberação, é matéria mais delica- lo no interior do jogo democrático a internet
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 71
a expressão da política mais do que como ver uma cultura e um sistema políticos dis-
um reformador radical do pensamento e das postos (ou forçados) a acolhê-los. Contudo,
estruturas políticas. as circunstâncias históricas em que se encon-
Além disso, nem toda informação polí- tram as democracias liberais contemporâneas,
tica na internet é democrática, liberal ou umas menos outras mais, parecem menos
promove democracia. A mesma possibilida- disponíveis à participação dos cidadãos nas
de de anonimato que protege a liberdade suas instâncias de produção da decisão po-
política contra o controle de governos tirâ- lítica do que as nossas convicções republica-
nicos e o controle das corporações, é reforço nas recomendariam. Por outro lado, as pró-
considerável para conteúdos e práticas tirâ- prias características da cultura política com-
nicas, racistas, discriminatórias e anti-demo- partilhada pelos nossos contemporâneas, pa-
cráticas na internet. Por fim, a informação recem indicar tudo menos hiper-engajamentos
on-line é em princípio disponível para todos dos indivíduos em programas e posições
aparelhados para tanto, mas não é fácil ter políticas, disposição a integrar de modo durável
acesso e gerenciar vastos volumes de infor- formas organizadas da assim chamada soci-
mação. Organizar, identificar e encontrar edade civil, interesse em grandes e constantes
informação é uma tarefa que requer habi- participação em debates sisudos sobre temas
lidades e tempo, que muitos não possuem. severos. Nesse sentido, talvez nem toda a
Em suma, acesso à informação política não debilidade de participação política contempo-
nos torna automaticamente cidadãos mais rânea se explique em termos de dificuldade
informados e mais ativos. de acesso, raridade de meios e escassez de
Em outros termos, quem pode ter acesso oportunidades. A abundância de meios e
a informação on-line, pode gerenciá-la e, chances não formará, per se, uma cultura da
eventualmente, pode produzi-la está equipado participação política. Isso não quer dizer, por
outro lado, que não se deva explorar ao
com ferramentas adicionais para ser um cida-
extremo todas as possibilidades democráticas
dão mais ativo e um participante da esfera
que a internet comporta.
pública. Por outro lado, tecnologias tornam a
participação na esfera política mais confortável
e acessível, mas não a garantem. Seja porque
_______________________________
a discussão política on-line está limitada para 1
Conferência proferida na Abertura do II
aqueles com acesso a computadores e à internet, Ibérico, em 23 de Abril de 2004, subordinada
seja porque aqueles com acesso à internet não ao tema “Comunicação e Cidadania”.
necessariamente buscam discussões políticas, 2
Faculdade de Comunicação, Universidade
seja, enfim, porque discussões políticas são Federal da Bahia.
3
freqüentemente dominadas por poucos. Na verdade, três modelos de democracia
Na verdade, isso só surpreende quem disputam neste momento as alternativas de de-
partilha da crença de que o meio é a men- mocracia representativa: o modelo liberal-indivi-
dualista, que é importante para a ideologia-internet
sagem e de que um conjunto de dispositivos
na forma do ciber-libertarianismo; o modelo
e oportunidades, per se, transformam men-
comunitarista, que disputava com o modelo libe-
talidades e práticas. Os meios, recursos, ral clássico o predomínio no ambiente anglossaxão;
ferramentas que constituem a internet são o modelo deliberacionista, de origem
apenas mais um dos dispositivos sociais da habermasiana, que se tornou predominante na
prática política, ainda novo, ainda pouco década de 90 em ambientes de língua inglesa.
4
experimentado, ainda em teste. Situa-se num Tome-se com cautela o termo “moderado”.
conjunto já estruturado ao redor de outros A rigor, trata-se do grau menos radical de uma
dispositivos instituídos e consolidados. O seu escala superior. A escala anterior, que aqui se
lugar se constituirá na tensão com tais dis- pretende superar, é representado pelos padrões
adotados pela democracia representativa liberal,
positivos, mas também com as formas já
que faz com que a sociedade política detenha o
estabelecidas no conjunto deles, isto é, com monopólio da decisão dos negócios públicos, e
o sistema e a cultura política. Assim, por mais restringe o papel eficaz da sociedade civil à sua
que a internet ofereça inéditas oportunidades dimensão eleitoral. O grau mais moderado nesta
de participação na esfera política, tais opor- segunda escala, portanto, é mais radical que o mais
tunidades serão aproveitadas apenas se hou- radical dos padrões da escala anterior.
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 73
não pode reflectir sem horror. Devem sua e duplicação, só se funda politicamente, como
existência não somente ao esforço dos gran- interpretação histórica de todo o sofrimento
des génios que os criaram, como à servidão e das possibilidades de acabar com ele.
anónima dos seus contemporâneos. Nunca Todas as imagens, memórias de luta,
houve um monumento da cultura que não sonhos e ilusões de perfeição, são, não
fosse também um monumento da barbárie». políticos, mas efeitos da arte, onde exclu-
Parecerá inutilmente dramática esta visão da sivamente podem ser apresentados. Daí a
história, como se tudo se resumisse à vio- necessidade sentida por muitos de fazer a
lência e à derrota. De facto, também em cada crítica da estética, pois se apresenta o espaço
coisa temos a memória da luta, o lutar antes outro dos humanos, o faz sempre na parci-
de ter perdido e apesar de se saber que ia alidade de uma imagem que tende a realizar-
ser perdido, mas também a promessa de se. A cidadania é marca característica daque-
felicidade que animava essa luta. A moder- les que actualizam essa divisão, criando esse
nidade política instaura-se positivamente na duplo espaço universal, cuja podemos retraçar
ideia de que é possível começar tudo de zero, desde os tempos míticos, e que está consig-
que os actos passados são isso mesmo, nada na origem da metafísica, com a divisão
passados, e que os actos futuros serão de- platónica entre fenómenos e ideias eternas,
terminados a partir dos interesses de agora. ou na maneira como o cristianismo medieval
Daí a sensação de frieza e de indiferença de divide o espaço mundano do «além». Como
todos os actos políticos, rigidamente inscri- com toda a imagem, sonha-se com a cidade
tos num quadro político que garante esse de Deus na terra e começa-se a construí-la.
permanente recomeço e a neutralidade da Maravilha e horror ao mesmo tempo pois
existência perante as funestas paixões pas- nada separa radicalmente as catedrais góticas
sadas ou futuras. A ideia de que cada da inquisição. Seria banal sustentar que a
«monumento» é um sinal de barbárie con- modernidade, com o seu imanentismo, que-
traria a positividade das coisas, a sua dis- ria expurgar a existência das suas
ponibilidade para a acção, e isso é essencial. duplicidades, tudo reduzindo à pura presen-
Aliás, já a encontrávamos em Helvetius: «On ça. No livro sobre a comuna de Paris Marx
conviendra qu’il n’arrive point de barrique afirmara que os “operários se tinham lança-
de sucre en Europe qui ne soit teinte de sang do à conquista dos céus”, fundindo-o com
humain. Or quel homme à la vue des a terra. Mas a terra desolada, entregue à sua
malheurs qu’occasionnent la culture et massiva evidência, fica às mãos dos gestores,
l’exportation de cette denrée refuserait de dos normalizadores, dos capitalistas, o seu
s’en priver, et ne renoncerait pas à un plaisir sonho passa a ser o pesadelo da eficiência,
acheté par les larmes et la mort de tant de a administração do pouco mais e do pouco
malheureux ? Détournons nos regards d’un menos. Ser cidadão deste mundo imanente
spectacle si funeste et qui fait tant de honte é perder-se em torno dos zeros e das vírgulas
et d’horreur à l’humanité». Cada coisa, por do aumento de ordenado. É aceitar conviver
inerte que pareça está, para quem saiba ver, com o pior, ficar sozinho com gente ao lado.
pejada de violência e de sofrimento. Mas Ao ficar-se acachapado sobre o real a cida-
levado ao extremo este argumento, seríamos dania confunde-se com o desprezo pelo que
obrigados a recusar a totalidade da existên- existe ou pela cinismo com que é aceite e
cia. Em última instância esta posição só se «melhorado».
sustenta através da recusa da modernidade
política. Na verdade, seria necessário redividir
esta duplicidade sangrenta, para dar lugar à _______________________________
divisão pura e absoluta que desassossega a 1
Conferência proferida na Sessão Plenária
própria modernidade política, e que obriga inaugural do II Ibérico, em 23 de Abril de 2004,
à alternância democrática, à tripartição dos subordinada ao tema “Cultura e Cidadania”.
2
poderes, etc. Podemos dizer, assim, que a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
divisão do espaço existente, a sua duplicidade da Universidade Nova de Lisboa.
76 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 77
Capítulo II
Apresentação
Paulo Filipe Monteiro1
Metamorfoses da imagem, que, desde a outro lado, por ser fundamental que a fo-
invenção da fotografia, nunca mais foi a tografia, o cinema e o vídeo não vivam
mesma: primeiro imobilizando um símile do exclusivamente entregues aos respectivos
real, depois registando o movimento; de início fazedores, mas que possam ser pensados no
orgulhosa de uma ontologia, de um “ter lá contexto maior da cultura e da comunicação,
estado”, que a actual digitalização descara- que lhes dá sentido e ao qual, como agentes
damente subverte quando quer. activíssimos, eficazes e respeitados por elites
Fotografia, cinema e vídeo são áreas que e massas, dão novos sentidos.
as ciências da comunicação devem estudar,
com duplo ganho. Por um lado, porque
afectam o nosso quotidiano de um modo, _______________________________
talvez mais do que central, omnipresente e 1
Universidade Nova de Lisboa. Coordenador
do qual sabemos menos do que muitas vezes da Sessão Temática de Fotografia, Vídeo e Ci-
julgamos que sabemos. Mas também, por nema do VI Lusocom.
80 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 81
Apresentação
Eduardo Jorge Esperança1
O pretexto para esta minha reflexão são exponenciam é o jogo entre ilusão e reali-
certos filmes actuais que, como refiro na dade no seio da ilusão de realidade que o
síntese enviada para o Congresso, constitu- cinema é e provoca: seja, no caso do pri-
em uma espécie de limbo entre “ficções meiro, fazendo-nos crer objectivas e, nesse
realistas” e “documentários ficcionados” e, sentido, documentais, imagens que foram
nesse sentido, nos forçam a colocar deter- manipuladas com a presença de figurantes
minadas questões sobre eles, esses filmes, e ou encenadas pelo operador, seja, no caso
sobre o cinema, enquanto tal. A primeira das do segundo, fazendo coincidir o máximo de
quais será, para mim, se esse limbo de hoje verosimilhança com o máximo de maravilho-
será novo e, se não o for, se será diferente so num único plano, concedendo assim re-
do de outras épocas. alidade exterior a algo que só foi real através
Historicamente o cinema foi considerado do artifcio cinematográfico.
como não se inscrevendo numa única matriz, O que julgo bastante evidente é que
mas em duas, aquelas que Georges Sadoul ambos – supostamente padrinhos de dois
enunciou na sua monumental Histoire de l’art caminhos tão diferentes que quase se diriam
du cinéma2, a do realismo documentarista dos paralelos – compreenderam e colocaram em
irmãos Lumière e a da ficção fantasista e prática o único realismo possível em cinema:
mágica de Georges Méliès. Entre “cinema- o realismo de cinema, isto é, o realismo ci-
captação” (da realidade externa) e “cinema- nematográfico. Nem de outra maneira seria
intervenção” (sobre a realidade “interna”, isto, possível ele ser. Qualquer realismo não é
é fílmica), o cinema teria vivido desde o início adequação plena à realidade; é outrossim, ou
uma dualidade, profícua pelas hesitações e meramente do ponto de vista tecnológico ou
indefinições que provocava, mas que obri- do especialmente artístico, produção de
gava a trilhar dois diferentes caminhos. Ora, realidade. Assim, o “facto fílmico” (apelan-
o que é útil realçar é que nessa suposta do à célebre expressão de Metz), mais do
dualidade – nesses mesmos Lumière e Méliès que cada filme enquanto obra/texto de sig-
como exemplos – as questões foram, pelo nos/cdigos documentais ou ficcionais feita,
contrário, colocadas por eles nos seus rigo- é a indefinição mesma, a transgressão das
rosos termos: seja na Chegada do Comboio fronteiras, a diluição das diferenças presen-
la Ciotat ou na Viagem à Lua3, documentário tes no filme. Objectar-me-ão que, por estra-
e ficção foram (e são) extremos em tensão tégia comercial mas igualmente algumas
e contaminação perpétuas, pois não há re- vezes por limitação propriamente artística, o
gisto que elida a representação dos “actores” cinema desde cedo criou – ou prolongou –
presentes na imagem e a criação de reali- tipos e géneros, a um tempo para ir ao
dade, por parte do realizador/autor, através encontro de públicos especficos e para ir
da selecção do ponto de vista e, posterior- contra veleidades criativas ou experimentais
mente aos Lumire, da montagem, nem há que, baralhando e tornando a dar, dificulta-
fantasia que possa operar sem o objectificável vam a tarefa da catalogação, tão cara a mentes
inerente à realidade na qual se intervém, pelo preguiçosas ou indulgentes, e que nesse
que ambos são captação e intervenção. sentido há efectivamente obras vincadamente
Assim, cabe perguntar que realidade é ficcionais ou documentais. Mas se não me
permissvel no real cinematográfico, bem cabe aqui questionar se e quando ou quanto
como se impõe questionar que realismo é um filme é só pertença a um certo tipo ou
admissível na realidade cinematográfica. Pois género, devo salientar que há uma primor-
bem, o que tanto Lumière como Méliès dial análise ontológica na qual todo e qual-
84 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
quer filme se integra, por mais ou menos A oposição fundada no que a realidade faz
arredio que seja a classificações: “realidade” com o cinema ou no que o cinema faz com
e “cinema”, quando postos em relação, são a realidade não encontra, verdadeiramente,
necessariamente comutáveis. Ambos são ilu- grandes possibilidades nem de justificação
são e ambos são reais. Ambos são constru- nem de legitimação no cinema nem na
ção e ambos são factuais. Ambos são etéreos História dele, exceptuando quando a discus-
e ambos são concretos. A dualidade são teórica se centra nas opções políticas ou
ontológica entre “realidade” e “cinema” na nos panoramas ideológicos de filmes concre-
qual se quis inscrever a tal matriz dicotómica tos, isto é, quando a discussão deixa de ser
“cinema-captação” / “cinema-intervenção”, fílmica para passar a ser cinematográfica. E
“documentário” / “ficção”, uma dizendo aí torna-se claro que o que as correntes
respeito ao que a realidade faz com o cinema teóricas realistas combatem é uma prática
e a outra ao que o cinema faz com a re- alienatória dos filmes-fábrica-de-sonhos para
alidade, pode ser afinal uma relação lhes opôr um cinema-verdade que todavia,
ontológica, reposta agora em mais precisos como sabemos, pode ser – é necessariamen-
termos: a realidade do cinema enquanto te?... - igualmente tão manipulador e, nesse
representação é real (o objecto representado sentido, fonte de quimeras, quanto o outro.
real porque era real no momento em que foi Todas as maneiras que possamos usar para
captado) e enquanto reprodução é ilusória caracterizar o filme realista são igualmente
(aquilo que se projecta resulta de uma ilusão válidas para caracterizar o filme, digamos,
óptica e configura em si a ilusão presente fantasista: em todos os filmes encontramos
na imaterialidade da imagem); a realidade no o real, ou certos aspectos dele, ou nos nesses
cinema enquanto representada é ilusória (pe- aspectos do real (como vimos há pouco), em
las razões inversas, isto é, a realidade está todos os filmes podemos encontrar o projec-
to do realizador em recolher o máximo
na imagem que a representa mas não é a
possível de realidade (qual a diferença a esse
imagem que a representa) e enquanto
nível entre– The Blair Witch Project de
reproduzida é real (pelas razões inversas
Miryck e Sanchez e Stromboli, de Rosselini?),
também, isto é, torna-se real ao ser projec-
para todos os filmes devemos argumentar com
tada, no duplo sentido de pertencer duplamen-
o realismo ontológico da fotografia cujas
te realidade do cinema e à realidade no
consequências a actual imagem digital ainda
cinema). Por outras palavras, esta
não destronou (qualquer filme de Keaton é
reformulação, ao conferir estatuto ontológico
a esse título tão real quanto os Drifters de
tanto à reprodução e representação da reali-
John Grierson)5. O realismo – e convém
dade como à reprodução e representação da sublinhar que em História do Cinema não
ilusão, o que é dizer, tanto à realidade quanto há o realismo, há sim realismos – parece ser,
à ilusão enquanto tais, sublinha o facto de que antes de mais, algo que nega, mais do que
em cinema elas não podem ser entendidas algo que afirma e que se afirma nessa afir-
enquanto entidades independentes mas, pelo mação. Nesta definição negativa e neste
contrário, enquanto entidades inter-dependen- impulso negativo que é a sua causa (diria
tes. Realidade do e no cinema são bi-unívocas Yuri Lotman, nesta–“poética da rejeição”6)
e não mera e dualisticamente unívocas4. - o filme realista contesta e subverte os filmes
É curioso notar que uma leitura, mesmo que se assumem como ficcionados, distantes,
que apressada, da historiografia das teorias enredos fabulatórios, dispositivos inverosí-
do cinema faz ressaltar que muitas delas meis, modelos de vida ideal que, por isso
sustentaram e vincaram um dualismo que, mesmo, se compreende terem mera utilidade
assim sendo, na verdade nunca existiu. Como de divertimento e evasão, ainda hoje tão
se o ser de cada um – realidade e cinema premente e dominante. Então a questão, sendo
- se espelhasse no seu pensar, mas esse do foro psicológico, sociológico e político,
reflexo não fosse mais do que a perpetuação radica numa outra dimensão que o filme
até ao infinito de uma falácia inicial, a que realista a um tempo pressupõe e persegue:
procura defender para o cinema o que se a de que o cinema seja a oportunidade de
pensa previamente a ele sobre práticas dele. dar a ver e não só de ver. E porventura reside
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 85
aí a sua singularidade: nesta oferta, tantas particular, do realismo enquanto tal conso-
vezes crua, de realidade que se oferece e sobre ante as fases históricas consideradas e, ainda
a qual nada ou muito se manipula (as di- mais em particular, do realismo enquanto tal
ferenças cinematográficas, estéticas e fílmicas consoante as fases históricas consideradas
entre realismos obrigam-nos a contemplar quando estas foram ultrapassadas); toda-
ambas as hipteses porque ambas foram efec- via, tal não inibe o carácter transformador
tivamente praticadas, vide Rosselini face a que o motiva, transformação não tanto sobre
Bresson ou Bresson face a Loach, isto para a realidade representada, mas sim sobre o
não recuar a Stroheim de Greed ou mesmo espectador que a acolhe. Quando acolhe.
a Griffith de The Broken Blossom, que me Donde, resta-me perguntar o que acolhe,
perdoem os puristas por incluir estes últimos), ou não, o espectador de hoje, nos filmes
radica o compromisso ético que é a base realistas que um pouco por todo o mundo
de todo o filme realista. Compromisso do re- se vão fazendo em tempo de globalização,
alizador com a realidade que dá a ver, desta convulsão maior porque diferente, com novos
com o filme e deste com o público. À dados e imensos desafios. Isto é: se até aqui
reprodução e representação que acima estive a pensar na História que já foi, é agora
foram apresentadas como harmonia bi- o momento de me debruçar um pouco sobre
unívoca entre real e ilusório, o filme realista a história que está a ser.
acrescenta um gesto que está para além dela, Se me for permitido generalizar, creio que
o que é dizer, acrescenta fazer ao ser. há uma diferença, que me parece interessan-
Isso foi constante em toda a História do te, entre o realismo de hoje e o de ontem:
Século XX como parece estar a ser na deste a que existe entre o colectivo e o individual,
início de Século XXI: sempre que há con- entre o público e o privado. Tal diferença
vulsão “lá fora”, apetece realismo no cine- encontra-se tanto no realizador que expõe
ma, e eis-los que surgem, nas vanguardas de como no filme exposto como, por último, no
início de sec. XX (e não só pela mão de espectador que fica exposto. A períodos
Eisenstein ou, especialmente, Vertov, históricos em que as motivações e os pro-
manipuladores máximos de realidades – pósitos eram públicos e colectivos (às vezes,
ideológicas, em primeira instância – míni- até, colectivistas), parece suceder-se uma
mas, mas, num mais revolucionrio sentido, época que, na ausência (que pessoalmente
pelos objectivos surrealistas de abraçar re- creio temporária) de ideologias unificadoras,
alidades – ideológicas, em última instância está centrada no indivíduo.
– máximas), ou mesmo nos filmes de Não que os anteriores momentos colec-
gansgters ou nas obras liberais dos anos 30/ tivos não tivessem sido somas de indivíduos
40 em Hollywood (os maus-da-fita e os bons- particulares, não que a noção de compromis-
da-fita, todos a apelar ao empenhamento so ético não implique sempre a existência
cívico de um espectador brutalizado por de 1 + 1, não que os filmes de hoje, como
James Cagney morrendo a gritar “Made it, os de ontem, não se dirijam antes de mais
Ma! Top of the world!” ou por James Stewart à consciência individual do espectador sin-
desmaiando de exaustão no Senado7), para gular; mas ao nível da recepção - dada a
não referir os mais óbvios exemplos do multiplicação dos suportes ou meios alter-
realismo italiano do pós-guerra ou, mais tarde, nativos de visionar filmes, seja em vídeo ou
do free-cinema e do cinéma-vérité e do seu dvd ou através da internet – como ao nível
equivalente além-atlântico americano nos da criação - muitas (não todas) das “novas
anos 60 (pelo menos algumas obras de imagens” que por aí circulam transmitem e
Cassavetes permitem essa associação, na do são transmitidas por uma espécie de clausura
Norte, e todas as de Glauber Rocha, na do viciosa, ou porque se comprazem meramente
Sul), para rematar com alguns autores que em exercitar tecnologias (e nunca a tecnologia
ainda hoje insistem em engager as suas obras. foi de per si alavanca para avanços artísti-
Sim, ao “dar a ver” o filme realista faz cos, o inverso é que é verdadeiro) ou porque
para que outros façam. Pode não o conseguir se julgam inovadoras quando afinal só o
(e talvez a resida a razão do maior ou menor suporte em que se exercitam é novo, não os
sucesso de filmes e/ou autores realistas e, em esquemas estéticos, culturais e políticos dos
86 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
seus (solitários, pelo menos ao nível dos seus à diluição do indivíduo no mundo global
efeitos) exercícios -, dizia, ao nível da re- correspondesse, em gesto político a um tempo
cepção como do da criação, o que falta hoje subversivo e utópico, a afirmação do indi-
é a noção de partilha ou pertença a um víduo como mundo globalizável.
movimento maior. O Muro caiu e cada um Tenho que confessar que estas minhas
ficou com o seu tijolo. últimas reflexões têm por pano de fundo casos
Por outro lado, acompanhando e agravan- actuais de realismo – José Luis Guérin em
do este fenómeno, a globalização operada Espanha, Abbas Kiarostami no Irão e Pedro
pelos antigos e novos meios de comunicação Costa em Portugal – que não obviam, na-
ao invés de aumentar a liberdade de pensa- turalmente, a existência de outras práticas ou
mento, de escolha e de acção do indivíduo, outras propostas actuais igualmente “realis-
estreitou-a. Penso no caudal ininterrupto de tas” dados os seus objectivos éticos, mas que
informação – filtrada, note-se bem – que é pessoalmente me interessam menos em ter-
humanamente impossível assimilar no seu mos estéticos. É a atitude destes realizado-
conjunto, mas penso igualmente nos meca- res, concretizada em pelo menos alguns dos
nismos de poder e controlo sobre essa in- seus filmes, tanto nos retratos executados
formação e sobre os produtos culturais, latu como nas opções cinematográficas feitas, que
sensu, que equivalem, no caso do cinema, me interessa agora realçar brevemente.
a que a apetência esteja criada mais para Têm algo de comum: seja Guérin e a sua
assistir à estreia de uma obra norte-ameri- invenção da narrativa numa realidade forjada
cana cuja identidade, pelo menos cinemato- como acontece em Tren de Sombras ou a sua
gráfica, pouco poder ter a ver com a nossa, exposição de narrativas em realidades em
do que para dispender algum tempo a de- convulsão como é o caso de En Construcción,
dicar a nossa atenção e estima às obras que seja Kiarostami e o falso documentário em
no nosso e em outros países se produzam. Dez ou a falsa ficção em Através das Oli-
Matrix em estreia mundial. O Muro caiu e veiras, seja Costa e a sua imersão em corpos
cada um ficou sem o seu tijolo. de um bairro em Ossos ou a sua implosão
É num panorama destes em que o em grandes planos de rostos em No Quarto
indivíduo está paradoxalmente isolado num da Vanda, há uma convicção partilhada de
mundo em que tudo pode ser vivido em que “todos os planos devem ter gente lá
simultâneo, em que o indivíduo perde co- dentro”8, no duplo sentido de serem habita-
ordenadas com o excesso delas, em que o dos por gente (e não só por personagens) e
indivíduo se encontra entregue a uma sorte de serem habitados por eles, realizadores, que
destinada por um poder a maior parte das impõem um ponto de vista sem artifícios. Sem
vezes invisível ou, pelo menos, tão gigan- artifícios, repito: de raiz, pela colocação da
tesco que surge como imbatível, em que, em câmara, para observar e assim poder ser
suma, o indivíduo observa no tijolo as suas observado; de forma, pela duração dos pla-
potencialidades de construção ou de destrui- nos, para deixar viver e assim ser vivido; de
ção sem ainda ter a certeza quais delas prefira, resultado, pela montagem que privilegia o
num panorama destes que o realismo em corte, fazendo da elipse não uma mera figura
cinema, hoje, me parece privilegiar os re- de estilo mas um estilo de vida, carregando
tratos às descrições. Como se nessa parti- de significado o que não se vê por forma a
cularização da realidade que se dá a ver se que o visto ganhe mais sentido. Isto: não há
unissem três vértices – o retratado, quem artifício no ponto de vista porque ele despo-
retratou e quem vê o retrato – promovendo jado, aberto, dado e tão carente quanto o
uma construção triangular, mais ou menos da realidade que se filma, e por isso respeita
equilátera mas ao menos comum, que, ao o ritmo e a pulsação da matéria humana de
manter a individualidade de todos estabelece quem filma e de quem é filmado.
- por isso mesmo e mesmo assim - pontes Realidade do e no cinema. Bi-unívocas.
de contacto. Como se, ainda, a única ma- Descobrimos agora uma maneira de um certo
neira de estabelecer tal contacto fosse atra- realismo actual operar nesta bi-univocidade:
vés do indivíduo e da carga universalizante mais do que assumindo-a (o que já é de
que ele tem ou pode ter. Como se, afinal, monta, muitos nem dela se apercebem por
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 87
mais que inevitavelmente a pratiquem), di- nesse seu fazer, em que, portanto, o ritmo
zia, mais do que assumindo-a, vivendo-a. da vida nos é oferecido na sua duração
Sendo vida através da utilização da matéria específica, na sua duração lenta, na sua
humana – do retratado como do retratista – duração sofrida, na sua duração enigmática.
como matéria fílmica. E nós com ela. O além definitivamente aqui.
Outro tipo de objecção pressinto em vós Não é por acaso que o tipo de plano pri-
agora: que em qualquer filme a vida está vilegiado por estes autores (pelo menos em
presente, pelo menos nessa presença ausente En Construcción, Dez e No Quarto da Vanda)
ou ausência presente a que Christian Metz seja o plano fixo, como se nessa imobilidade
já havia feito referência há tanto tempo, isto da câmara a vida discorresse melhor, e o
é, que tudo num filme respira e pulsa vida, realizador com ela, naquilo que a sua atitude
seja ele qual for e seja ela qual for. é receptiva ao pulsar que vem de lá; e muito
Contudo, o que torna especial este novo menos é por acaso que o tempo dos planos
realismo é quanto faz repousar no retrato a seja habitualmente longo ou mesmo em
sua função, a sua estratégia e a sua força. sequência, retomando o gesto rosselliano de
Função, estratégia e força que, paradoxalmen- deixar a vida acontecer na sua duração
te, não são só individuais mas tambm uni- contínua. Uma luta contra a descontinuidade
versais. Como se estes retratos fossem o sinal espacial e temporal, que, afinal, são apanágio
destes tempos de isolamento do eu; como se do específico cinematográfico? Não, mais do
só a partir da aceitação desse isolamento o que isso: uma luta pelo contínuo espacial e
seu estilhaçamento fosse desejável; como se temporal que podem ser apanágio de certos
só com esse isolamento nos percebêssemos factos fílmicos contra outros menos submer-
como membros, não de um movimento gidos por preocupações de construir a favor
colectivo maior, mas de um colectivo que das pessoas. Isto é: a “poética da rejeição”
pode ser posto em movimento. Não há pontes,
continua, sobrevivência como sempre foi
há túneis. Cabe às vidas individuais escavá-
face a modelos gastos ou nem por isso tão
los por entre os subterrâneos do que teima-
novos assim, mas agora sulcada nos rostos
mos em ter em comum. Ir ao encontro das
individuais. Este cinema, dos poros e das
pessoas, cada uma delas portadora de uma
rugas, é o dos poros e das rugas de pessoas
unidade que é transmissível, cada uma delas
que são ou não são como nós, e nesse ser
personificação de uma identidade que impor-
ou não ser como nós nos sentimos a nós,
ta conhecer, cada uma delas em diálogo
enquanto seres verdadeiramente humanos,
consigo, com o realizador e connosco atra-
acometidos por angústias políticas e assom-
vés de um filme e para além dele. Por mais
que esses retratos possam ser, por brados por alternativas cívicas, mas final-
inevitabilidade mesma ou por opção (do mente tranquilos por saber que a nossa
retratado ou do retratista) tão ficcionados solidão, que toda a solidão, é partilhável.
quanto reais, tão captados na sua sinceridade Que a identidade resiste ao anonimato da
como interventivos na sua complexidade, os globalização. Que a comunicação é possível
filmes em causa são construídos respeitando entre línguas que não se dominam. Que
um compromisso com o objecto do olhar e aquele retrato me ajudou a completar o meu.
o sujeito do olhar (autor ou espectador) que Que o meu retrato pode ajudar a completar
passa pela oferta de uma manipulação mí- o de todos. Que, no fundo, são esses os
nima para que assim possa ser intervenção tijolos que nos restam. Que, afinal, são eles
máxima: cinema que se faz para nos pro- que nos facultam a realidade: aí, quando
vocar um fazer, que se faz para nos fazer menos se espera.
88 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
3
Bibliografia Para além de tudo o resto, porque ambos
foram protagonizados por actores ou quem a sua
Cabrita, António, “O trabalho da soli- vez quis fazer.
4
O mesmo raciocínio é aplicável ao interior
dão”, in “Cartaz”, Jornal Expresso, 08.11.97.
do próprio filme quando pensamos no recurso às
Liandrat-Guigues, Suzanne (antol.). trucagens e aos efeitos especiais, que, no caso,
Barthélemy Amengual – du Réalisme au são unicamente outros campos onde esta bi-
Cinéma, Paris, Nathan, Col. Réf, s/nº, 1997. univocidade entre real e ilusório se joga.
Lotman, Yuri, Estética e Semiótica do 5
V. a propósito Suzanne Liandrat-Guigues (antol.).
Cinema, Lisboa, Editorial Estampa, Col. Barthlemy Amengual – du Réalisme au Cinéma, Paris,
Imprensa Universitária, s/nº, 1978. Nathan, Col. Réf, s/nº, 1997, pp 24-26.
6
Sadoul, Georges. Histoire de l’Art du Yuri Lotman, Estética e Semiótica do Ci-
Cinéma - des origines à nos jours, Paris, nema, Lisboa, Editorial Estampa, Col. Imprensa
Universitária, s/nº, 1978, p. 41.
Flammarion, 4ª edição revista e aumentada, 7
Respectivamente, em White Heat de Raoul
1955 [1949]. Walsh (1949) e Mr Smith goes to Washington,
de Frank Capra (1939).
8
Ideia reformulada a partir da seguinte citação
_______________________________ de Pedro Costa a propósito do seu filme Ossos: “Para
1
Universidade do Algarve. mim é uma questão de princípio, neste filme não
2
Georges Sadou, Histoire de l’Art du Cinéma há um “plano vazio”, isto é, um plano sem a presença
- des origines à nos jours, Paris, Flammarion, 4ª humana.”, in António Cabrita, “O trabalho da
edição revista e aumentada, 1955 [1949], pp 19- solidão”, “Cartaz”, Jornal Expresso, 08.11.97, p. 9.
31.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 89
La identidad de género:
aproximación desde el consumo cinematográfico
entre los estudiantes de la Universidad del Pais Vasco1
Casilda de Miguel, Elena Olabarri, Leire Ituarte2
Tabla 1
Epoca de ir más al cine
Gráfico 1
Criterios de elección de las películas
son mujeres, pero también podríamos encon- situándose en la cima de la popularidad actores
trar otras razones tales como el tradicional que ya han cumplido los sesenta.
monopolio del protagonismo masculino en la
historia cinematográfica. Tabla 4
La compañía como factor influyente es, Los actores favoritos
lógicamente, más importante en aquellos
Chicos
sectores que menos asisten al cine.
De Niro Robert 41,2
En lo que a la variante género se refiere
– tabla 3 – las diferencias más significativas, Pacino Al 14,9
Se puede señalar, en primer lugar, el alto vo, belleza, capacidad, humor, sinceridad,
grado de coincidencia en la elección aunque versatilidad. El orden de preferencias de las
el orden porcentual varíe. Como caracterís- chicas muestra una combinación entre el
ticas de los actores destacan su modelo idílico de una feminidad como la de
profesionalidad, la versatilidad, el estilo, el Julia Roberts o Sandra Bullock y el carisma
carácter, el atractivo físico y la credibilidad. y la fuerza de una Susan Sarandon o una
Si el modelo de referencia para los chicos Jodie Foster. Parece que Julia Roberts para
es el prototipo de hombre varonil, duro, las chicas y Robert de Niro para los chicos
activo, con poder, en el caso de las chicas, se erigen como los modelos actuales de
se suma a este prototipo, el del hombre más identificación de la feminidad y la
sensible ( Richard Gere), vulnerable (Harrison masculinidad respectivamente.
Ford) y el añadido del atractivo físico. La percepción del grado de erotización
en la construcción del cuerpo responde a
Tabla 5 la idea de que en el cine actual sigue siendo
Actrices Favoritas general una mayor erotización del cuerpo
femenino. No se aprecia el cambio que se
Chicos va produciendo en la publicidad, las teleseries
Roberts Julia 26,2 o los filmes para adolescentes donde se puede
Cruz Penélope 12,6 observar una erotización cada vez mayor del
Sarandon Susan 10,7 cuerpo masculino. Quienes consideran que
Pfeiffer Michelle 10,7
existe una mayor erotización del cuerpo
femenino comparten la idea del mayor
Bullock Sandra 9,7
protagonismo del hombre sobre la mujer. Lo
Foster Jodie 7,8 que nos permite observar que se mantiene
Raider Winnona 6,8 el estereotipo clásico: hombre, protagonista,
Sánchez Gijón Aitana 6,8 activo frente a la mujer, secundaria, pasiva,
Maura Carmen 5,8 objeto de deseo. Y quienes consideran que
Binoche Juliet 5,8
la erotización del cuerpo es la misma, también
consideran que tanto unos como otras gozan
Bacall Lauren 4,9
del mismo protagonismo.
Gráfico 2
Definición de “cine de mujeres”
Gráfico 3
Definición de “cine de hombres”
Por medio del gráfico 3, vemos que la lino y la denominación de “cine de hombres”
definición de cine de hombres no está di- parece tener menos adeptos. En general que
rectamente relacionada con la frecuencia de el protagonista sea un hombre parece lo
asistencia al cine. Las dos respuestas natural y no resulta reseñable. Una vez más
mayoritarias a esta cuestión son, en primer la norma social determina los indicadores de
lugar, definir el cine de hombres como un género.
cine de acción. Llama la atención el alto El apartado otros, recoge respuestas
porcentaje de alumnos que responden con un marginales y variadas. Fórmulas combina-
No saben / No contestan. Conviene señalar das de algunas de las propuestas lanzadas
también como dato de interés que el por nosotros, tales como “un cine hecho por
porcentaje de quienes consideran el cine de mujeres que cuenta historias de mujeres
mujeres como aquel dirigido por una mujer protagonizadas por una mujer”, hasta otras
supera al de quienes consideran que el cine que recogen la opinión tanto de que no hay
de hombres es el dirigido por un hombre. diferencias reseñables como de que se trataría
El motivo de este contraste puede residir bien de un cine que interesa a las mujeres.
en que socialmente sigue considerándose que Si la realidad es producto de las
el hombre es la norma a partir de la cual interpretaciones que hacemos del
se construyen los roles de genero y no se conocimiento diario, podríamos pensar, con
cuestiona, bien en que la dirección femenina respecto al tema de la identidad, que o bien
es, todavía hoy, excepcional. se desconoce o bien no interesa. La
Lo mismo sucede con el protagonismo. concepción que las personas encuestadas
El cine de mujeres se identifica más como tienen del cine de género es muy tipificada
el protagonizado por una mujer mientras que y sin duda indicativa de una escasa conciencia
la asociación entre el protagonismo mascu- de los debates actuales de género.
94 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
“Eu percebia maneiras de ver cuja diver- te bem finalizados, reforçam os estereótipos
sidade me interessava muito mais que os da violência, pobreza e subdesenvolvimento,
próprios objetos.” (Paul Valéry) que já fazem parte do imaginário estrangei-
ro, que assim identifica nosso cinema. Os
Este ensaio pretende, em primeiro lugar, filmes em amarelo trazem novas leituras, mas
contextualizar a produção cinematográfica ainda não fazem parte de linhas de fuga no
contemporânea brasileira dentro da estrutura rizoma. Estão de alguma maneira linkados
do “rizoma”, assim definida por Gilles às tendências atuais. “Amarelo Manga” por
Deleuze e Félix Guattari como não arbórea exemplo, retrata e maximiza o submundo,
com raiz unívoca, mas sim múltipla, com criando uma estética do kitsch, que remete
linhas não só de segmentaridade como tam- aos filmes de Lina Wertmuller, mas é tam-
bém de desterritorialização e fuga. Para maior bém bastante violento. “Lisbela e o Prisio-
clareza, preparei uma imagem-mapa neiro” segue a linha da “Rosa Púrpura do
cartográfico do contexto atual. As cores Cairo”, mas por vezes se torna um pouco
servem para melhor visualização. Em verme- melodramático e romantizado. “O Homem
lho citei alguns filmes que seguem a tendên- que Copiava” é bem feito e traz novo enfoque,
cia do momento, ou seja, uma leitura da mas apresenta soluções simplistas, embora as
problemática social. Em verde estão as li- mesmas possam ser lidas obliquamente, de
nhas de fuga que, neste momento, apesar de maneira irônica.
não tão valorizadas, representam uma ten- Não obstante o cinema brasileiro atual
tativa de produzir textos mais poéticos ou tenha seguido rumos mais definidos dentro
mesmo mais reflexivos. Em amarelo estão de uma estética de exportação, outros segmen-
alguns filmes que não podem ser conside- tos, mesmo obscuros e aparentemente sem
rados em nenhuma das duas tendências grande importância, subsistem e se alimen-
anteriores, mas têm algumas características tam de poucas fontes. São os filmes-arte,
de uma ou outra. oferecendo seus textos reflexivos à contem-
plação e seguindo teimosamente “linhas de
fuga” como se quisessem pertencer
despertencendo. Dentre estes, selecionei dois
longa-metragens, “Durval Discos” (Anna
Muylaert, 2002) e “Janela da Alma” (João
Jardim e Walter Carvalho, 2001), que, em
seus caminhos diferenciados, oferecem
momentos de sensibilidade, destinados a um
público mais reflexivo e menos comercial.
Sem pretender condenar o cinema mais
comercial brasileiro, que é importante e
A escolha do rizoma surgiu do próprio trouxe o público de volta ao produto naci-
conceito do termo, enquanto representativo onal, nesse ensaio minha intenção é enfatizar
do ecletismo da cinematografia brasileira e, o outro lado, que é também parte dos tantos
ao mesmo tempo, da estrutura sólida de brasis que coexistem no imenso cenário do
linearidades entremeadas por estruturas mais país.
frágeis, dóceis, mas persistentes. Filmes em Quando Mikhail Bakhtin descreve um
vermelho, tais como “Cidade de Deus”, “O dialogismo, uma polifonia de vozes dentro
Invasor” e “Carandiru”, mesmo tecnicamen- do texto dostoyevskiano, a idéia que sempre
98 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Filmografia Bibliografia
Ficha Técnica do filme “Janela da Alma”: Araujo, Denize C. Janela da Alma”: por
documentário, 73 minutos, Brasil, 2001. uma poética do desfocamento. Congresso da
Direção: João Jardim e Walter Carvalho Compós, UMESP, junho de 2004.
Roteiro: João Jardim Bakhtin, Mikhail. Problemas da poética
Direção de fotografia: Walter Carvalho de Dostoyevski. Rio de Janeiro, Forense
Montagem: Karen Harley e João Jardim Universitária, 1981.
Distribuição: Copacabana Filmes Deleuze, Gilles e Félix Guattari. Mil
Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São
Ficha Técnica do filme “Durval Discos”: Paulo, Editora 34, 2000.
ficção, 96 minutos, 2002 Faraco, Carlos Alberto. “O dialogismo
Roteiro: Anna Muylaert como chave de uma antropologia filosófica”.
Direção de fotografia: Jacob Solitrenick In Diálogos com Bakhtin, org. Castro, Faraco
Direção de arte: Ana Maria Abreu e Tezza. Curitiba, Editora UFPR, 1996, 113-
Trilha sonora original: André Abujamra 126.
Freitas, Maria Teresa de Assunção.
Montagem: Vânia Debs
“Bakhtin e a psicologia”. In Diálogos com
Bakhtin, org. Castro, Faraco e Tezza. Curitiba,
Elenco:
Editora UFPR.
Ary França
Stam, Robert. Bakhtin: da teoria literá-
Etty Fraser
ria à cultura de massa. São Paulo, Ática,
Marisa Orth
1992.
Isabela Guasco
Letícia Sabatella _______________________________
Rita Lee (participação especial) 1
Universidade Tuiuti do Paraná, Brasil.
102 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 103
Introdução: o movimento indicial na mídia binam em distinto grau os três tipos de signo
contemporânea para gerar o significado. Porém, postulo que
o índice é o signo predominante nesses
O texto procura caracterizar um gênero formatos, o que determina seu efeito de
que abrange diversos formatos muito popu- sentido específico, de gênero, no público.
lares no mundo, quais sejam: o reality show Mas, como ter certeza de que o gênero
televisivo, o documentário cinematográfico indicial representa o real e, portanto, esta-
e a fotografia jornalística. Todos se dedicam belece uma diferença com a ficção e com
à representação do real, o que faz pensar os outros gêneros? Para responder à questão
num verdadeiro movimento indicial na mídia. recorro ao dispositivo pragmático de análise
Penafria (2003a) propõe o termo do sentido criado por Peirce em 1878.
“documentarismo” para analisar todo e qual- A máxima pragmática de Peirce (CP
quer filme a partir dos componentes do gênero 5.403)3 define o significado de um conceito
documentário clássico (ex. a filmografia de (p. ex. “documentário fílmico”) como o
Grierson). Proponho descrever estes forma- conjunto de suas “conseqüências práticas”.
tos como casos concretos do gênero indicial: Por sua vez, elas são as “consequências
o resultado da hegemonia ou do predomínio experienciáveis” dos conceitos (Ibri 2000:33),
neles da classe de signo que possui um laço que apresentarei aqui como todo aquilo que
existencial, factual com seu objeto dinâmico decorre fenomênicamente dos conceitos, isto
– o real considerado fora da relação de é, aquilo que pode ser observado na expe-
representação. O motivo para introduzir o riência (do público, do crítico, etc). O acir-
termo “indicial” não é uma simples mudança rado debate sobre a autenticidade do
de uma palavra por outra, mas é uma de- registrado no reality show e no documentário,
corrência do uso da semiótica triádica e assim como uma forte resistência social a
pragmática de C. S. Peirce (1839-1914) para olhar um documento fotográfico que fornece
a análise da representação do real na mídia. uma evidência insuportável da fragilidade
Graças às contribuições recentes de pesqui- coletiva, logo após de um ataque terrorista,
sadores do universo lusófono à análise do são alguns exemplos de tais experiências. A
registro documentário no cinema e na tele- pragmática concebe o significado como “o
visão, é possível avançar na discussão sobre lado exterior que gera o próprio conceito”
uma oposição ontológica fundamental na (Ibri 2000:34). Tal análise permite explicar
reflexão sobre a mídia hoje: a problemática o vínculo dos formatos da mídia com o real.
fronteira entre o real e a ficção.2 Embora existam manipulações, mentiras e
Na semiótica triádica, o termo “indicial”, interferências de toda classe (montagem,
que caracteriza as três formas de realismo efeitos especiais, etc), isso não altera o
documentário no texto, deve ser compreen- estatuto indicial do gênero dos formatos
dido como uma das três classes sígnicas que midiáticos considerados. No limite, tais al-
resultam da relação entre o signo e o real terações determinam a existência de alguma
a ser representado ou objeto dinâmico. Assim, falta ética ou estética no gênero.
índice, ícone e símbolo se alicerçam nas
relações de contigüidade existencial, de Alguns antecedentes analíticos recentes
semelhança e de interpretabilidade geral, res- sobre o gênero documentário
pectivamente. No texto, vou me concentrar
no segundo tipo, o índice, com a ressalva Os trabalhos de Godoy (1999), Penafria
de que nos formatos considerados se com- (2003, 2004) e Rial (2003) analisam do ponto
104 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
de vista tecnológico e semiótico o e falível do real. Sob este prisma, cada signo
documentário, e sua conflituosa relação com é uma promessa não totalmente cumprida,
seu assunto distintivo, o real extra-midiático. ou uma que não pode não fazer novas
Para me posicionar no que diz respeito às promessas. Só no longo prazo, postula-se uma
propostas teóricas destes autores, apresento convergência tendencial entre o objeto dinâ-
abaixo um resumo de seus argumentos. mico (o real fora de toda representação) e
Conforme os pesquisadores citados, o a interpretação chamada final. Nem o filme-
documentário Zapruder, que é o exemplo considerado pela
a. não consegue transpor o real (Rial 2003); autora, nem os inúmeros livros escritos nos
b. não é uma representação conclusiva do últimos quarenta anos sobre o célebre assas-
real (Penafria 2003); sinato de Dallas exaurem a interpretação
c. tem uma diferença de grau e não de desse acontecido. Mas os signos procuram
natureza com respeito à ficção (Penafria 2003) e, de fato, conseguem revelar aspectos su-
d. serve para caracterizar todo filme, e mais cessivos do real a uma criatura falível como
ainda no caso dos filmes de autor (p. ex. uma o ser humano, e assim a aproximam à
obra típica de Almodóvar) (Penafria 2004); verdade. Postular uma tendência aproxima-
e. não cria a realidade mas a descobre tiva em direção à verdade não é o mesmo
e exibe seus aspectos existenciais, menos do que negar absolutamente tal possibilidade.
que sua generalidade (Godoy 1999). O terceiro ponto refere-se ao postulado
Coincido com o primeiro ponto, que Rial de Penafria (2003a) sobre a diferença de grau
(2003) postula com respeito à transmissão entre o documentário e a ficção. Há aqui uma
televisiva do futebol. O dicionário Aurélio afinidade com o ponto de vista semiótico.
define o verbo TRANSPOR como o ato de “pôr No mundo real não há ícones, índices ou
(algo) em lugar diverso daquele em que estava símbolos puros. Para se manifestar, o índice
ou devia estar”. Embora seja verdade que não deve incorporar alguma qualidade, i.e., um
há tal transposição no gênero indicial, isso ícone, e no seu funcionamento, o símbolo
também é válido para todos os outros gê- necessita incorporar os outros dois tipos de
neros. Não é possível colocar o mundo tal signo. No clássico romance de Daniel Defoe,
qual é num filme, num vídeo, nem no papel a pegada de Sexta-feira na areia apresenta
Kodak. Todo formato da mídia é uma re- ao náufrago a indicação palpável da existên-
presentação ou signo do real e não uma cia de outra pessoa, junto com a forma de
transposição. Peirce (CP 5.283) postula que seu pé.4 Claro que poderia ter sido uma falsa
a percepção é direta e mediada a um mesmo pista, uma forma natural feita pelo vento na
tempo. Como o arco íris, que é a manifes- ilha. Porém, o decisivo neste contexto, con-
tação do sol e da água, toda representação forme o propósito de Robinson, é o valor
consiste na convergência de um sistema indicial da representação, isso é o dominante.
representacional e do real. Portanto, o que Em 1935, Jakobson propôs o conceito
seria, segundo Rial (2003), uma carência do formalista de “dominante”, que definiu como
documentário constitui, a priori, a condição “um dispositivo na hierarquia interna do signo
essencial de toda ação sígnica ou semiose. global constituído pela obra literária, (e que)
O signo é a manifestação interpretativa de sempre é levado ao primeiro plano
alguém e também de algo independente dos (foregrounded)”.5 Tal como o elemento focado
intérpretes, e dos próprios signos. da obra de arte “assegura sua gestalt ou ordem
Vamos agora ao segundo argumento. As total”,6 no que diz respeito ao propósito
três relações do signo com o representado sistêmico que regula seu uso, cada signo
acima mencionadas são os três modos bá- manifesta a primazia de uma relação sígnica,
sicos de conhecer o mundo. Penafria (2003) conforme Peirce. É seu aspecto indicial o que
admite a natureza representacional do gera a expectativa do público do
documentário, mas ela objeta que tal repre- documentário Edifício Máster (Brasil, 2002,
sentação “é inconclusiva”, porque sua reve- EM de aqui por diante), que, naturalmente,
lação é parcial. Concordo com tal postulado, inclui na sua complexa gestalt símbolos,
mas trata-se de uma condição de todo signo, índices e ícones. Se apagássemos a relação
que pela sua natureza é uma revelação parcial de contiguidade existencial entre as imagens
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 105
e sons do filme e isso que de fato existe, do índice, do ícone ou do símbolo num
além da filmagem, naquele prédio verdadei- contexto determinado. O documentário EM
ro e não cinematográfico de Copacabana no tem como seu objeto semiótico o fato sin-
Rio de Janeiro, onde a ação acontece, essa gular de um encontro concreto com as pessoas
obra cinematográfica mudaria completamen- e lugares registrados, segundo as palavras do
te. EM seria mais uma ficção encenada na realizador Coutinho.13 O filme é a crônica
bela cidade carioca.7 É verdade que tanto na do aqui e agora, a evidência audiovisual de
ficção quanto no documentário há “um olhar, uma resistência diádica entre quem filma e
uma visão sobre determinado assunto”, se- quem é filmado. Isso constitui o aspecto
gundo Penafria.8 Mas é o dominante indicial documental do documentário, seu sentido
o que determina logicamente o efeito de oficial e público, o chamado “indexing” do
sentido primordial do formato considerado, filme.14
sem ignorar a influência dos outros elemen- Embora seja verdadeiro, o resultado
tos presentes no filme. apontado pela proposta que faz Penafria
É preciso introduzir, porém, uma cautela (2004) da existência de um documentarismo
analítica na proposta gradualista desta pes- generalizado não parece ser produtivo. Em
quisadora na sua versão extrema, qual seja: princípio, não haveria coisa nenhuma no
“todo filme é documental”.9 Em princípio, mundo que não possa incluir-se nesta ca-
não há coisa nenhuma que não possua as três tegoria fílmica, o qual esvaziaria este con-
propriedades categoriais que analisam a ceito de seu valor heurístico. Se tudo fosse
experiência da realidade no modelo semiótico documental, nada poderia ser definido assim
triádico – Primeiridade, Segundidade e informativamente. Uma ilustração da utilida-
Terceiridade (CP 1.525). Baseadas nestas de da distinção documental/ficção encontra-
categorias, as coisas representadas desenvol- se num clássico da cinematografia mundial:
vem relações icônicas, indiciais e simbóli- o backstage do filme Fanny e Alexander
cas.10 Um típico filme de Almodóvar pode (Suécia, 1982), de Ingmar Bergman. Não é
sim documentar, como afirma Penafria, problemático afirmar que aquele filme, do
enquanto ele é um índice do realizador, de qual o documentário ulterior exibe os bas-
seu estilo. Mas isso não funciona, ipso facto, tidores, é uma típica obra do mestre sueco.
como critério para classificá-lo no gênero Mas isso não converte o filme ficcional num
documental (ou indicial). Conforme Lefevbre, documentário do estilo de Bergman. Se fosse
“seria impossível fazer o inventário de todos assim, como definir-se-ia o making up de
os objetos que uma coisa, uma vez Bergman, o qual foi exibido quatro anos após
semiotizada, pode chegar a representar”.11 Fanny e Alexander, com o título Diário de
Nesse texto dedicado a analisar uma célebre uma filmagem (Suécia, 1986)?
pintura de Magritte, Lefebvre propõe uma O último dos cinco argumentos é extra-
longa lista de possíveis referências dessa obra ído da crítica semiótica das posições anti-
pictórica. Dentre elas só mencionarei duas: realistas, “deconstrutivistas e nominalistas”
a Bélgica e o lugar específico onde um que desenvolve Godoy. Estas concebem “a
visitante encontra-se, num momento dado, no realidade de um universal apenas como um
museu. Mas estes não são índices signo mental”.15 Do ponto de vista criticado,
constitutivos daquela obra de arte de Magritte o signo fílmico é uma ilusão manipuladora,
como obra de arte, porque tais índices não “um instrumento de dominação burguesa”.16
revelam seu significado estético. A falácia da Concordo com a afirmação de Godoy de que
proposta de considerar documental todo fil- há uma “potencialidade epistemológica do
me, e alguns deles ainda ‘mais documentais documentário” de revelar o real.17 Claro que
(porque) nos mostram que estamos perante isso não garante que o gênero todo repre-
um filme de um e não de outro autor”,12 sente de modo fidedigno os fatos do mundo
decorre de não fazer a distinção entre o e que seja uma ajuda eficaz para compreendê-
suporte material através do qual se manifesta los. Mas tal cautela é válida para qualquer
uma representação e seu objeto semiótico. signo, em qualquer meio de expressão. Só
Somente o objeto representado é teoricamen- tenho uma pequena divergência com respeito
te relevante para decidir se há uma primazia às conclusões de Godoy. Além da presença
106 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
objeto significado”, tal como acontece no caso uma experiência reflexiva, conceitual, tal
de “um golpe na porta, um alarme, um silvo, como acontece em outros gêneros. A passa-
um tiro de canhão” (CP 5.554). gem do efeito hipnótico e compulsivo do
Minha hipótese é que nos três exemplos índice para o efeito convencional daquilo que
escolhidos – BBB, EM e a foto do Homem exige ser interpretado, seria o intuito de um
que Cai – os índices geram um tipo de gênero televisivo popular como Big Brother.
conhecimento carnal no espectador como A morte ou limite natural do reality show
sua conseqüência prática, experienciável. O seria sua completa convencionalização. Nis-
consumo estético desses três formatos do so consiste a suspeita de que haja uma atuação
gênero indicial envolve um efeito de resis- amadora mas que esta seja guiada por um
tência que nos faz cientes de nosso próprio roteiro segredo. Como uma sombra, tal
self. O específico dessas representações do suspeita do público acompanha o formato da
real é que a experiência baseia-se no efeito Endemol desde sua origem.
quase táctil gerado pela transpiração No caso do documentário, a desconfian-
semiótica, pelos inúmeros rastos dos corpos ça é mais o resultado de um ceticismo
filmados e exibidos, ao vivo, em vídeo, em intelectual e profissional que uma reação dos
um documentário, ou captados numa foto espectadores. Trata-se de uma herança lon-
digital. Nisso precisamente consiste o cha- gínqua do modo nominalista de pensar, o qual
mamento indicial. Mesmo que pareça con- não aceita a manifestação do real através de
tra-intuitivo reunir numa comparação elemen- signos de tipo universal, seja na natureza ou
tos tão diferentes, há uma vantagem teórica na vida social. Porém, sem a tendência que
em fazê-lo. É possível contribuir desse modo têm todas as coisas a serem representadas
à compreensão de uma tendência cultural de algum modo (icônico, indicial ou simbó-
manifestada através do consumo de diversos lico), a vida na terra não seria possível. Para
formatos da mídia com um único intuito, qual concluir, vou apresentar um interpretante ou
seja: a procura do contato com o autêntico, efeito de sentido público de cada um dos três
com o real associado à atualidade máxima. formatos mencionados.
No chamamento indicial, o real encarna-se
em corpos anônimos que agem sem roteiro A rarefação de uma imagem fotográfica:
frente a câmaras e microfones, ou que passam a insuportável visão do Homem que Cai
impensadamente perante a lente de objetiva
de um jornalista bem situado. Essa presença A câmera digital de Richard Drew cap-
se encontra ali para fornecer uma evidência turou às 9hs 42’ 15’’ a.m., horário da costa
existencial, mais do que para falar ou refletir leste dos EUA, um indício que seria pronta
sobre ela. Proponho considerar que essa classe e inexoravelmente banido da mídia de seu
de revelação indicial tem se transformado no país. A foto do Homem que Cai virou um
Grial da cultura midiática do século XXI. testemunho intolerável pela sua capacidade
O mais característico do movimento de revelar indicialmente a máxima fraqueza
indicial é a saliência de signos que são fatos da nação mais poderosa da terra. Logo após
e que fornecem um testemunho do mundo, de ter aparecido na capa de vários jornais,
quer corriqueiro, quer sublime. Na perspec- no dia 12 de setembro de 2001, a figura
tiva evolucionista de Peirce, a ação dos signos improvável pela impactante graça e levian-
envolve seu contínuo crescimento, a integra- dade do anônimo homem-pássaro do World
ção do ícone e do índice no símbolo, cons- Trade Center sofreu um processo de rarefação
tituindo-se então uma forma mais complexa indicial semelhante às imagens invisíveis das
potencialmente submetida à interpretação. O vítimas norte-americanas da invasão de Iraque
símbolo é uma lei ou conceito geral através em 2003. Estes corpos retornaram sem glo-
do qual compreendemos e ordenamos nosso ria, nos ataúdes cobertos pela bandeira e pela
entorno, para nos adaptar melhor a ele, e censura oficial.
poder transmitir esse saber convencional. Ao A silhueta estranha desse homem sem
longo do tempo, os encontros corporais que nome, um dos muitos que pularam ao vazio
constituem o cerne do gênero indicial ten- do alto da Torre norte do World Trade Center,
dem a evoluir do conhecimento carnal para na manhã do 11 de setembro de 2001, virou
108 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
pobreza no Brasil. Na referida entrevista, uma da Rede Globo, que deu uma entrevista após
espécie de backstage verbal do filme, do fim da primeira edição deste reality show:
Coutinho se sente na obrigação de afastar-
se daquela ideologia tão oposta à sua. Sem Playboy: Você pretende detonar al-
se propor fazê-lo, claro, o realizador do EM guém na edição, como no caso do
vai explicar como o poder mesmerizador do videoclipe da Stella enfiando várias
índice define este gênero fílmico: “é preciso vezes o dedo no nariz...
se colocar no lugar do outro e, mais que isso, Boninho: Mas a Stella tinha mesmo
é preciso mostrar o lugar de onde o outro a mania do nariz e era impossível não
está falando” (225). Eis o paradoxo do gênero brincar com aquilo. ... Se a pessoa
indicial: a subjetividade do criador só pode tiver uma mania semelhante e
servir para preservar e não interferir com a entrar na casa do BBB, vou deto-
objetividade da presença do outro, de sua nar, sim. O cara sabe que, se está
subjetividade. O documentário é uma rede lá dentro, é para isso mesmo.
que traz de regresso de sua passagem pelas (Fernando Valeika de Barros, “Entre-
águas turbulentas do mundo o bom, o ruim, vista a José Bonifácio de Oliveira,
o admirável e o duvidoso, tudo o que acon- Boninho”, Playboy, 2003, p. 75, grifo
teceu no momento do encontro fílmico, e que meu, F.A.)
vai servir para se reconhecer a si próprio no
confronto com o outro. Não poderíamos achar uma mais perfeita
Se, como afirma Coutinho, “frente a esse antítese ética e estética do laconismo indicial
real, todo documentário, no fundo, é precá- do documentário de Coutinho, que esta
rio, incompleto, imperfeito” (215), pergunto descrição brutalmente sincera do efeito de
qual seria então a necessidade de se preser- sentido básico do reality show mais conhe-
var do eventual contágio com uma concep- cido do mundo. À circunspeção do EM se
ção do mundo antagônica, com a fala de quem contrapõe o excesso do indicial do BBB. Cada
encarna uma irreconciliável diferença? Po- uma das quatro edições produzidas no Brasil
rém este é o sentido das palavras do rea- a partir de 2002 e até 2004, é pródiga na
lizador, quando ele comenta sobre essa ide- multiplicação de rastos da transpiração
ologia tão oposta à sua: semiótica dos participantes deste programa
televisivo. Se o cuidado do outro leva o
Não estou ali para dar razão a nin- realizador de documentários Eduardo
guém. Nesse caso, é claro que não Coutinho a administrar com extrema prudên-
estou dizendo que a Maria aí esteja, cia o espaço e o tempo de quem é filmado,
mas não me cabe julgá-la. O que me no caso do BBB trata-se de dilapidar seu
cabe é, nessa conversa, tentar eviden- corpo, sua presença, através da fragmentação
ciar o lugar de onde nasce essa pos- e da multiplicação infinita de imagens e sons,
tura, essa posição do discurso do até configurar com os índices assim coletados
outro. (226) uma colagem grotesca, no estilo do pintor
manierista italiano Arcimboldo (1527-1593).
Mais do que um índice do estilo do autor, A seleção sígnica e sua montagem procuram
fica evidente que o essencial no atingir a audiência através de uma acumu-
documentário, seu objeto semiótico, são os lação de fatos representados, para que estes
índices do real, disso que o filme conseguiu produzam uma experiência carnal mais do
representar de modo limitado, como qualquer que uma reflexão moral, embora isso tam-
outro tipo de signo. bém possa acontecer, e de fato aconteça no
público fiel de BBB (Andacht 2002).
A sobreabundância indicial do Big Brother Uma dúvida inevitável surge neste ponto
Brasil: a arcimboldiana reiteração do real da argumentação: será admissível incluir no
gênero indicial um formato cujo nome ofi-
Para analisar o indicial no polêmico cial contém a idéia do espetáculo (‘show’),
formato televisivo do BBB, vamos a deixar numa desconfortável e promiscua proximi-
falar a seu produtor no Brasil, o Boninho dade da noção de ‘real(ity)’ que fornece a
110 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
12 18
Manuela, Penafria, “O documentarismo do Pereira da Silva, Humberto, “O Edifício
cinema”. Retirado de http://bocc.ubi.pt/_listas/ Master”. Revista de Cinema. No. 31 (versão
tematica. php3? codt=42 em 02/01/2004. online) www.uol. com.br/revistadecinema/
13
Alexandre, Figuerõa et al.,“O documentário ediçao31/em_cartaz/critica.shtml, Retirado no 19/
como encontro. Entrevista com o cineasta Eduardo 09/2003.
19
Coutinho”, Galáxia. Revista transdisciplinar de Tom, Junod, “The falling man”. Esquire,
Comunicação, Semiótica, Cultura. No. 6, 2003, p.217. Vol. 140, Issue 3, September, 2003, p 277.
14 20
Noel, Carroll, “From reel to real” Alexandre, Figueroa et al., “O documentário
In:”Theorizing the moving image. Cambridge: como encontro. Entrevista com o cineasta Eduar-
Cambridge University Press, 1996, p. 238. do Coutinho”, Galáxia. Revista transdisciplinar
15
Hélio, Godoy, “Paradigma para Fundamen- de Comunicação, Semiótica, Cultura. No. 6, 2003,
tação de uma Teoria Realista do Documentário”. p.215. Todas as citações seguintes de E. Coutinho
Em Anais do 8º Encontro Anual da Associação provêm desta entrevista sobre o EM, e por isso
Nacional de Programas de Pós-Graduação em só será indicada a página.
21
Comunicação, UFMG, Belo Horizonte, 1999. Quero expresar meu agradecimento à dis-
16
Ibid. tribuidora Riofilme e ao diretor E. Coutinho por
17
Ibid. ter me facilitado uma cópia do EM.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 113
“Todo buen relato es, por supuesto, Tras este párrafo inicial denotativo de la
a la vez un cuadro y una idea; y importancia de las imágenes en nuestra
mientras más se funden ambas cosas, cultura, nuestro planteamiento pretende
mejor se resuelve el problema”. abordar una de las funciones que a lo largo
(Henry James, Guy de Maupassant) del pasado siglo, y en el presente, desempeña
el cine, a saber, complementar la función
Las imágenes que el mundo nos ofrece informativa a través del rescate y recuperación
estaban guardadas ya en nuestra memoria de las imágenes y palabras que no tienen
desde el día de nuestro nacimiento, era la cabida en el resto de los medios
premisa que mantenían los antiguos. “Así comunicativos contemporáneos. Cierto es, el
como Platón tenía la idea de que todo posmodernismo actual, caracterizado por un
conocimiento era sólo recuerdo, Salomón proceso de proliferación de imágenes y
emitió su concepto de que toda novedad es símbolos en el seno de todo tipo de medios
sólo olvido”.2 De ser esto cierto, entonces electrónicos, cuyo consumo adopta una
podríamos todos reflejarnos de modo alguno variedad de formas, determina cuanto menos
en las multiplicidad de imágenes que nos reflexionar a propósito de la relación que se
produce entre el cine, la realidad y la ficción.
rodean, puesto que forman ya parte de quienes
Nos encontramos en una nueva etapa,
somos: las imágenes que creamos y las que
propiciada por la transformación profunda en
componemos materialmente, e imágenes de
la textura de los medios, como reconoce J.
esas imágenes, esculpidas, en acción,
M. Catalá, “La creciente presencia, por un
fotografiadas, impresas, filmadas. Bien por
lado del vídeo y de la imagen digital, sin
que descubramos en esas imágenes
olvidar la televisión, en el ámbito
circundantes los recuerdos, los momentos de cinematográfico (…) hace que nos
algún acontecimiento que alguna vez fue enfrentemos a una auténtica revolución
nuestro, o bien por que nos exijan una mediática que afecta de forma muy directa
reflexión novedosa a través de las tanto a la producción como a la estética del
posibilidades que el lenguaje ofrece, somos documental”4. Hoy en día el cine ya no puede
en lo esencial, por tanto, seres hechos de descubrirnos el mundo, con el desarrollo de
imágenes, de representaciones. De ahí que la televisión ha perdido el poder de las
las imágenes, como los relatos, nos brindan imágenes y la primacía de la información.
información. La existencia transcurre en un Estamos bien o mal informados antes que
continuo despliegue de imágenes captadas por él, y lo que nos muestra lo hemos visito ya.
la vista y que los otros sentidos realzan o Por otro lado, hemos de considerar que la
atenúan, imágenes cuyo significado, o televisión desafía al cine, invitándole a
presunto significado, varía continuamente, replantearse su relación con el mundo y sus
con lo que se construye un lenguaje hecho espectadores. De ahí que el lugar del cine,
de imágenes traducidas a palabras y de al contemplar la realidad signifique hoy
palabras traducidas a imágenes, a través del encontrar el ángulo exacto que le permite fijar
cual tratamos de captar y comprender nuestra una mirada necesaria, no una mirada más,
propia existencia. Las imágenes que sino una mirada diferente. Es exactamente
componen nuestro mundo son símbolos, en este planteamiento donde surgen los filmes
signos, mensajes, alegorías. Las imágenes, objetos de esta reflexión.
como las palabras, son la materia de las que Por tanto, la propuesta de esta
estamos hechos3. comunicación pretende ser una reflexión
114 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
sobre la pertinencia en los filmes objeto de discriminación del contenido y los personajes,
estudio, abordados a través de la función de la selección de imágenes, la elección de la
registro en ellos inscritos, es decir, en la bando sonora y, sobre todo, la predisposición
función del realismo en el cine, de la del realizador adulteran la objetividad. Aún
representación fílmica del cine documental intentando aproximarse a la verdad el director
y del realismo cinematográfico5 a través de no puede atribuirse una mirada imparcial. El
una triple vertiente. En primer lugar, como caso más reciente lo tenemos en La Pelota
una actitud de realizador frente a lo que filma, Vasca (España, 2003). El realizador relega,
de ahí que el realismo cinematográfico sea intencionadamente, las posibilidades estéticas
contemplado más por la temática que plantea del film para potenciar, deliberadamente, todo
– de carácter social – que por el estilo con el protagonismo a la palabra y, por tanto, a
que los aborda. En segundo lugar, el cine la temática abordada.8 Meden cede, está claro,
como un medio de conocimiento, como haciendo uso de la libertad temática y
instrumento de reflexión, en tanto en cuanto, artística, todo su afán de mostrarse a la
se dedica a diseccionar la realidad en lugar palabra, sin que nadie distraiga al espectador
de copiar lo real, a analizarlo para desentrañar de lo que se está diciendo en la pantalla. Esta
sus secretos y mostrar lo que hasta entonces es la razón, desde el punto de vista
era invisible. Y, en último lugar, considera estrictamente cinematográfico, determinante
el espacio-lugar asignado al espectador. Éste de la extremada humildad estética del
es, pues, el tercer elemento cuya presencia documental, chocante y extraño, en la obra
indispensable es requerida para que las de un realizador cuya característica está en
películas encuentren y adquieran su sentido: la búsqueda de la belleza plástica. Pero en
restaurar el silencio. Es una situación este documental, la filmación es quizás como
incómoda, esa coacción que experimenta la de un videoaficionado, plano medio del
como espectador le obliga a preguntarse por entrevistado, cámara prácticamente fija y
la actitud que adoptaría en la vida real frente algunos paisajes al fondo. Quizás, en algunas
a situaciones cómo ésas. Las películas localizaciones, parajes naturales del País
constituyen en sí mismas espacios cerrados, Vasco, escenarios donde el realizador sitúa
inquietantes, que provocan en éste una a las personas, está el extraño privilegio con
situación comunicativa de “alter- ego”. el que el propio realizador pretendía atraerlas,
Tras esas premisas generales del realismo, una a una, hacía él. Tal vez, en la
añade Monterde, “se apunta una actitud que intencionalidad de las localizaciones, esté la
va mucho más allá de la mera restitución premisa de no querer registrar los problemas
visual de la realidad contextualizada, para en los escenarios reales donde se producen,
introducir aspectos éticos e ideológicos a los con su marca de sufrimiento y espanto, sino
que tampoco será ajeno el realismo desplazando al entrevistado a los entornos
cinematográfico. Y con relación a este último naturales buscando el efecto contrario: que
reflexionaremos sobre el papel que puede toda la tensión humana quede fuera de lugar,
ocupar las propuestas documentales o, en “La suma aleatoria de fondos – en bosques,
sentido más amplio, el cine que podemos campos, montes y acantilados – que ayudan
denominar no-ficcional”6. El propio autor a retratar la geografía vasca más primigenia,
mantiene que el documental aparece como calada de sentimientos tan antiguos como
la muestra más acabada del cine noficcional inamovibles, me vino bien para mantener el
por una doble razón: por su capacidad de ojo de pájaro y así persuadirme de que puedo
desarrollar con mayor libertad el tema, como ver el odio sin odiarlo”.9
por las posibilidades estéticas que alcanza y La actitud del realizador frente a lo que
explicitan su dimensión discursiva. filma, constata otra de las vertientes en las
Evidentemente estas películas quedan que se inscribe el realismo de este
subscritas en dichas premisas, más en la documental, es decir, a través de la temática
primera que en la segunda.7 que plantea, de carácter eminentemente social
El condicionamiento que implica la y, el lugar en el que se sitúa el mismo.10 El
presencia de una cámara, la colocación – predominio del carácter informativo, tal vez
estratégica o no – de ésta, el lenguaje, la sería más apropiado decir didáctico,
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 115
eco del manifiesto contra la gestión del conozcamos a una persona nunca llegaremos
Gobierno. Distintas asociaciones, a saberlo todo sobre ella. Por eso prefería
universidades y cines españoles han querido que fueran los espectadores quienes sacaran
proyectarlo. Sin embargo, hay motivo para sus propias conclusiones”.19 Su dirección es
creer que tiene cierta base documental. precisa y aunque nos introduce en las fauces
Predomina la opinión sobre la descripción de mismas del horror nunca pierde el respeto
hechos y una porcentaje de ellos – un 25% por nadie: victimas, policías y sobre todo la
– de ellos son, simplemente cortos de ficción propia familia tiene su tribuna para explicar
con un fondo de mofa o crítica. Pero también su punto de vista. Es un film cargado de
hay algo de reflejo sesgado o reverberación emociones muy fuertes. La pederastia es
de la historia reciente del país en Hay material muy sensible y es muy difícil no
motivo.16 De hecho, la finalidad de la película caer en el tremendismo barato. Sin duda muy
es llegar al mayor público posible, por ello, pocas veces hemos podido asistir tan de cerca
además de las televisiones, los responsables al ocaso de unos seres humanos a los que
de este proyecto se centrarán también en nadie jamás quiso darles el beneficio de la
canales alternativos. En el planteamiento a duda.
propósito de la reflexión sobre la pertinencia Sin embargo, en las distintas
o no de estas películas, debemos hacer documentales objetos de este estudio, los
obligada referencia a la pretensión de espacios que construyen sus realizadores al
participación – o, no – del público sobre las espectador son espacios cerrados que
temáticas que en ellos se abordan y que están contrastan, intencionadamente, frente a los
inscritas tanto en el tratamiento de la acción espacios abiertos en el que se registran a los
enunciativa de la propuesta cinematográfica entrevistados, son espacios cerrados por la
de los documentales,17 cuyas pretensiones son confrontación perceptiva entre unos y otros
promover una proximidad del espectador con y, a su vez, por la propia percepción
las películas, bases de sus dimensiones ideológica del espectador, espacios
discursivas; junto a las propuestas de registros inquietantes que provocan en éste situaciones
visuales mediante la introducción, en las comunicativas de “alter-ego” permanente. Es
cintas, de las imágenes reales de los una situación incómoda, esa coacción que
acontecimientos a propósito de los cuales se experimenta el público le obliga a preguntarse
abordan las temáticas. Por tanto, una vez por la actitud que adoptaría en su vida real
registrada o construida la representación de frente a situaciones como las testimoniadas
la realidad – evidentemente subjetivas a través en los filmes. El espectador, en su toma de
de las opiniones de los entrevistados y de conciencia, actúa como sujeto integrador de
los específicos montajes de los realizadores conocimiento, donde se une a él o, se
–, facilitándonos creer haber accedido a un distancia. Por tanto, su exterioridad es
cierto conocimiento de las “verdades imposible. Como reclama Monterde, “Esa
expuestas”, éstas sólo adquieren sentido toma de conciencia ya sugiere entender la
cuando el espectador está en situación de pre- práctica realista desde una perspectiva ética,
conocimiento de la temática en ellas social o política y conduce a un compromiso
abordada. Por tanto, en la función de dar con esa realidad (…), abocado desde ahí hacia
sentido a la realidad se configura el “espacio- un eventual deseo de transformación de la
lugar” que los realizadores atribuyen al realidad, resuelta eso sí en el imaginario, y
público. Y, a su vez, es el elemento necesario, sólo operativa desde ahí”.20
cuya presencia indispensable es requerida Quizás los distintos filmes no tienen la
para que las películas encuentren equilibrio voluntad de convertirse en el retrato de la
y adquieran su sentido. sociedad a la que se dirigen con sus
Este es el planteamiento que maneja dispositivos cinematográficos, sino a través
Andrew Jarecki, director de Capturing the de las palabras que se hacen oír en ellos.
friedman´s (USA, 2003),18 para quien la La diversidad de las razones y afectos
verdad siempre permanece oculta: “Siempre registrados, de las situaciones colectivas y,
vi como uno de los temas fundamentales de personales, de alguno de ellos, de la
este film el hecho de que por mucho que representatividad de los acontecimientos
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 117
históricos a los que se hace expresa referencia la pantalla, no están en un estado inmutable. Lo
y, de las imágenes simbólicas insertadas en que vemos en pantalla, son imágenes traducidas
ellos, nos permite aproximarnos a las en nuestra propia experiencia. Desgraciadamente,
películas como si se tratara de una o por suerte, sólo podemos ver aquello para lo
cual contamos ya con imágenes identificables.
composición cinematográfica de lo que sólo
Misteriosamente, o bien por ello, ahí resida uno
los espectadores podemos, y quizás debamos, de los elementos prioritarios en la imagen
extraer finalmente su significado. cinematográfica como registro, como documento.
Tal vez estos filmes se presenten bajo el 4
Véase J. M. Catalá y Otros, Imagen, memoria
slogan de hay que recuperar todo lo que nos y fascinación. Notas sobre el documental en
es útil. En si mismas son una cuestión de España. Madrid, Ocho y Medio, 2001, p. 8.
5
ética. Los realizadores con sus cámara, a Tomamos las consideraciones elaboradas por
través de ellas se convierten en recolectores Monterde al manifestar, “Clarificando el hecho de
en busca de personajes, en busca de los que la representación fílmica deriva de ciertas
huecos y los surcos, de lo útil de la vida; estrategias semióticas y pragmáticas, (…) que se
centran en tres grandes líneas de acción: efectos
buscan entre la vida cosas que aún tengan
de acción, los efectos de contigüidad, de
vida más allá de la vida. Películas acerca implicación y de rechazo”. Véase E. Monterde,
de encontrar valor allí donde otros no ven Realidad, realismo y documental en el cine
nada. Ahí está la vida, parecen decir estos español, en José Mª Catalá y Otros, Imagen,
documentales. Recuerdan todos ellos la memoria y fascinación. Notas sobre el documental
urgencia cotidiana por mirar lo que sucede, en España. Madrid, Ocho y Medios, 2001, p. 17.
6
por dar sentido a lo que pasa, por tratar de Idem, cit. ant., p.17.
7
conectar los hechos entre sí buscando darles Nótese que el documental no puede
sentido; buscando ese otro lado del mundo disociarse de la manipulación. La distorsión de
que ya no es sino el lado invisible de la la realidad es evidente, por ejemplo, en las
películas de la directora nazi Leni Riefenstahl,
memoria. Al hacer sus películas, ellos espigan
precursora de la manipulación política en el género
aquellas imágenes que otros cineastas nunca
documental, pura propaganda. Diferente e incluso
recogieron con sus cámaras. Sin embargo, válida es la manipulación de Flaherty en “Nanuk,
quien la mira sabe que tan sólo son reflejo el esquimal” 1920-1922; la primera película del
de un misterio que siempre se escapa de los llamado género documental narra la vida diaria
bordes de la imagen para esconderse en algún de una familia de esquimales. Para rodarla, el
refugio fuera de los encuadres. Entonces director tuvo que construir un iglú más grande
sabemos que su mirada está determinada para de lo normal y pedir a los esquimales que
que podamos reconocer que en realidad cambiaran su horario para adaptarse a las
filman para atrapar el tiempo del juego, que condiciones del cinematógrafo. En esencia no se
transformó la realidad, sin embargo, es permisible
no es otro que el tiempo de la vida.
plantearse sí grabó la cámara al verdadero Nanuk.
Una duda similar despierta la película “En
Construcción” al cuestionarnos la actitud de los
_______________________________ obreros que aparecen en la película. De hecho,
1
Universidad Europea de Madrid. Guerin, el realizador, reconoce haber acudido a
2
Bacon, Francis, The Essays, ed. John Pitcher, los trucos de la creación cinematográfica para
Harmondsworth, Penguim Books, 1986, p. 25. grabar esas escenas del barrio chino barcelonés,
3
Nótese, sin embargo, que los relatos existen que se disfrutan en la pantalla. El director entiende
en el tiempo y las imágenes en el espacio. A el documental como un género cinematográfico
diferencia de las imágenes, las palabras, los textos a medio camino entre la ficción y la realidad.
escritos fluyen continuamente más allá del 8
La propuesta cinematográfica que este
encuadre de la página, los libros no delimitan las documental atribuye a las diversas opiniones que
fronteras del texto, el cual nunca llegan a registra, describe un tratamiento de la acción
constituirse por completo como un todo material, enunciativa verdaderamente sorprendente. La
sino sólo en compendios; la existencia de éstos proximidad y la distancia ideológicas de quienes
reside en su continua corriente de palabras que son citados frente a la cámara y ante el micrófono,
les da su unidad y que fluye de principio a fin, junto al rechazo deliberado de una proximidad tal
durante el tiempo que dedicamos a su lectura. Las del público con ellas, facilitando el conocimiento
imágenes, contrariamente, se nos presentan de – o intentándolo al menos – de la razón de unos
manera instantánea, contenidas en su encuadre. y otros, permite advertir pequeños aspectos del
Lo que vemos cuando seguimos las imágenes en tejido político, social y humano en las voces de
118 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
16
quienes quieren explicar su visión de lo que están Realizando una selección subjetiva de los
viviendo, y afrontan lo que sienten, más que el cortometrajes que mayor consistencia o
análisis de lo que está sucediendo. credibilidad documental ofrecen obtendríamos que
9
Declaraciones del realizador recogidas en el el del realizador Manuel Gómez Pereira y su
Press Book de la película, San Sebastián, 2003. minireportaje sobre el Yak 42; de Fernando
10
El lugar que ocupa Meden, Colomo y la tragicomedia real de un trabajador
intencionadamente en el documental, camuflado que pierde un valioso día de sueldo por la
en el “bosque de las razones de unos y otros” inauguración anticipada de un nuevo aeropuerto;
y, el espectador, para registrar, visual y V. García León y su trabajo de la drogadicción,
enunciativamente, la rivalidad entre ellos. un problema social que compete a los gobernantes.
11
La función perceptiva del film está inscrita En cualquier caso, hay de todo, hasta el juego
en la metáfora construida a lo largo de éste, y inteligente de José Luis Cuerda, que nos devuelve
en su título: La pelota vasca. La piel contra la al personaje de Aznar, presidente actual en
piedra. Ese golpe de pelota – razones – sin funciones, cuando estaba en la oposición y de las
razones- contra el frontón – la rabia, la ira, el promesas que no ha cumplido.
17
odio, la incomprensión, la incomunicación-, y a Específicamente en La Pelota Vasca. La piel
su vez, el juego que representa la tradición contra la piedra, de Julio Meden o, en el ganador
ancestral vasca; frente a lo que sienten, a las del oscar al mejor documental norteamericana
formas de afrontar lo que sienten, más que a lo Bowling for Columbine, de Michael Moore. El
que se vive: “ la piel contra la piedra”… y, realizador plantea una reflexión sobre la cultura
traspasarlo, superarlo a través de la toma de estadounidense de las armas de fuego y sus efectos.
conciencia, de la evolución de las creencias… del Una apasionante radiografía de ambiente social,
diálogo y la educación de las nuevas generaciones. motivos políticos e intereses empresariales. Su
12
Nótese que sobre alguno de ellos, el punto de partida: la famosa tragedia de instituto
transcurso del tiempo ideológico acerca del Columbine, donde le 20 de abril de 1999, 12
conflicto vasco presenta una evolución a tenor de alumnos fueron asesinados a sangre fría por dos
sus declaraciones y, en función de lo que han de sus compañeros. La técnica utilizada, la
vivido en primera persona y afrontan lo que siente. encuesta sobre el terreno a través de la
13
Un colectivo de 32 personajes de la vida confrontación directa de testigos y víctimas; su
pública española, directores de cine en su mayoría- fuerza, un método de entrevistas infalibles, con
han participado en la reciente campaña electoral aires de inocencia ero sutilmente inquisidor.
18
con una película que ataca frontalmente al Partido Nominada al Oscar en el 2004, ganadora
Pupular; y lo han hecho en un tiempo récord, con del Premio del Gran Jurado de Sundance y
sólo tres semanas de preparación, lo justo para aclamada por la crítica internacional, Capturing
llegar a la semana clave a las elecciones e inclinar the friedman´s, es una odisea que está conectada
el voto de los indecisos hacia el lado opuesto de con la tradición de la épica americana. Aunque
la candidatura de dicho partido político, que es describe básicamente hechos que ocurrieron
la diana de buena parte de los dardos lanzados durante el último cuarto de siglo pasado, su éxito
por los realizadores del film. y posterior declive deja al descubierto las
14
Declaraciones ralizadas por Pedro excelencias y miserias de nuestro propio sistema,
Almodovar, El País, sábado 6 de marzo de 2004. que permitió ambas cosas, al destripar las
15
Se puede encontrar la película en las redes manipulaciones y mentiras de un sonado caso de
de información compartida (P2P) o, de forma más pederastia en Estados Unidos.
19
sencilla en las páginas web de los periódicos El Declaraciones del director en la rueda de
Mundo y El País. También está colgada en la red prensa presentación de la película.
20
en la dirección www.haymotivo.com. Monterde, J.E., obra cit., p. 21.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 119
Em janeiro passado, o trabalho final para 2. Cinema arte coletiva x comics arte
a disciplina Limites da Representação da individual e o peso da indústria cultural em
Imagem deveria ser apresentado na forma de cada uma das linguagens.
um seminário, aberto ao público. A cada dia 3. Filme - vira comic - vira filme. Faz
dois alunos abordariam seus temas de pes- diferença?
quisa, sob a luz da argumentação proposta 4. Afinal, quem representa melhor a
pelo filósofo francês Michel Foucault em seu realidade: os comics ou o cinema?
livro As palavras e as Coisas,2 segundo a
qual a relação entre as representações e o 1. Como se formam as imagens numa folha
que se representa, transforma-se conforme a ou numa tela?
configuração do saber em determinada épo-
ca. O segundo dia seria reservado ao cinema Como dissemos anteriormente, o ponto
e aos comics (nessa ordem). Nos dias an- de partida para uma discussão que envolva
teriores à apresentação vários colegas vieram comics e cinema é a maneira como cada uma
saber mais detalhes e confirmar presença. dessas linguagens se utiliza deste denomi-
Porém, o que no princípio havia sido motivo nador comum, a imagem. Enquanto o cine-
de grande satisfação para mim não passava, ma aprisiona uma imagem em movimento,
na verdade, de um mal entendido. As pes- congelando-a, para depois, via reprodução
soas queriam sim, assistir ao segundo dia de (projeção de um determinado número de
seminários, mas queriam fazê-lo por pensa- fotogramas por minuto) restituir-lhe a dinâ-
rem se tratar de um dia dedicado ao cinema. mica, os comics criam imagens que buscam,
Exclusivamente ao cinema. Este pequeno via recursos gráficos, dar a impressão de
episódio confirmou uma suspeita surgida logo movimento. Sobre esta possibilidade de
no início da pesquisa: falar de comics é lidar imprimir movimento a imagens estáticas, sem
com uma espécie de “patinho-feio”, uma a interferência de nenhum recurso externo,
linguagem que apesar de não ser descartada discorre Umberto Eco, a partir da pesquisa
e nem de ter sua existência ignorada, per- da socióloga francesa Evelin Sullerot com
manece sempre numa posição menos favo- fotonovelas (dispostas graficamente segundo
rável, um pouco “de lado”, um tanto quanto o mesmo esquema dos comics, a saber, a
negligenciada por outras linguagens com partir de quadros justapostos que observados
características bastante próximas às suas. seguindo-se uma direção pré-determinada
Dentre elas, o cinema. A primeira aproxima- contam uma história):
ção que se faz entre cinema e comics é a
de que ambas as linguagens trabalham com (...) numa pesquisa de opinião feita
imagens, o que implica numa primeira re- sobre a capacidade de memorização
flexão: trabalham da mesma forma? Esta de uma fotonovela, tornou-se patente
pergunta, embora aparentemente possa ser que as leitoras submetidas ao teste re-
respondida de maneira óbvia (as formas são cordavam cenas que de fato não
diferentes uma vez que o cinema lida com existiam na página, mas resultavam
imagens em movimento e os comics com subentendidas pela justaposição de
imagens estáticas), será o ponto de partida duas fotografias. Sullerot examina
para nossa discussão, dividida para os fins uma seqüência composta de dois
desta apresentação, em quatro pontos: quadros (pelotão de execução dispa-
1. Como se formam as imagens numa rando, condenado caído no chão),
folha ou numa tela? referindo-se aos quais, os sujeitos
120 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ro momento, aos comics, uma vez que o vendidos e, conseqüentemente mais patroci-
roteiro, antes de ser filmado, será nadores e mais lucros. Na esteira do King
esquematizado, representado graficamente por Feature surgiram, majoritariamente nos
um story board, no qual cada cena é dese- Estados Unidos da América, muitas outras
nhada quadro a quadro, da maneira que destas agências distribuidoras de comics para
deverá aparecer na tela, com os jornais e revistas. A partir de uma fórmula
enquadramentos e movimentos de câmeras simples - a de vender barato para lucrar no
desejados, ou seja, já com a sugestão de como atacado, possível devido à grande quantida-
a leitura dessas imagens deverá ser feita. Após de da oferta, os syndicates foram, em grande
este estágio embrionário, durante o qual o parte, os responsáveis pela ruína de vários
futuro filme já existe, mas apenas enquanto mercados locais. Incapazes de venderem seus
comic, as cenas do story board, uma vez trabalhos para os jornais (uma vez que estes
filmadas organizam-se em um plano- podiam adquirir comics norte-americanos por
seqüência, a unidade “mínima significante da preços consideravelmente mais baixos),
linguagem cinematográfica”· muitos desenhistas abandonaram o ofício ou
E se o bloco significacional apontava optaram por linhas menos convencionais, que
quase sempre numa direção linear, o plano- levariam aos chamados comics alternativos,
seqüência, por outro lado, pode ser longo, nos quais é possível encontrar temas como
curto, cheio de cortes, avançar no tempo sexo, drogas e violência, tratados com apuro
cronológico ou nele retroceder, enfim, uma gráfico-visual. Ironicamente, seriam estes
infinidade de recursos que desvendam, por mesmos autores até então alternativos que
sua vez, uma série de possibilidades narra- salvariam os syndicates da grande crise na
tivas. qual estes se encontravam devido ao desgas-
te do modelo tradicional dos comics. Pode-
2. Cinema arte coletiva x comics arte mos afirmar, portanto, que desde sua afir-
individual mação enquanto linguagem os comics esti-
veram ligados à idéia de uma diversão
Também neste ponto poderemos traçar popular, de massas. Outra foi a origem do
alguns paralelos entre os comics e o cinema. cinema, como bem podemos perceber no
O processo de construção de um filme, episódio ocorrido em 1896 - equivale a dizer
da concepção à distribuição, envolve quase apenas um ano após a primeira apresentação
que necessariamente6 a participação de vá- pública do cinematógrafo no Grand Café de
rias pessoas. Os comics, por sua vez, neces- Paris -, quando um funcionário da Lumière,
sitam, basicamente, de um desenhista e lápis ao presenciar um acidente em São
e umas tantas folhas de papel. Desse caráter Petersburgo, durante a coroação de Nicolau
coletivo do cinema decorre uma II, registra o ocorrido em sua câmera, inau-
vulnerabilidade muito maior do cinema às leis gurando uma nova forma de jornalismo.7 A
da indústria cultural. Que história será con- febre de aventureiros dispostos a registrar
tada e como e onde, tudo depende muito mais tudo o que pudessem captar em suas câmeras,
de recursos e aprovações de terceiros do que carregadas em trens, balões, em viagens pela
no caso dos comics, mas estes, apesar de Europa e pela América, aponta igualmente
gozarem de uma maior liberdade, especial- na direção de uma busca de outras funções
mente no que diz respeito à fase de confec- para o cinema, que não apenas o entreteni-
ção estão igualmente sujeitos a duras regras mento. Vale repetir que estamos tratando aqui
de mercado quando se trata da distribuição. dos comics enquanto linguagem estabelecida
Durante a década de 1910 o crescente su- e daí ser possível tratar este paralelo com
cesso dos comics junto ao público levou à o cinema, visto que ambos, a partir desta
criação, por parte de um executivo do ramo perspectiva, seriam inventos do final do
jornalístico - William Hearst, proprietário do século XIX. Partindo sempre desta
New York Journal - do King Feature contemporaneidade, podemos ainda afirmar
Syndicate, que passou a centralizar e con- que o suporte de cada uma dessas lingua-
trolar a distribuição das histórias. Publicar gens, ao mesmo tempo em que lhes apro-
tiras significava um número maior de jornais xima, uma vez que ambas utilizam-se de
122 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
produtos diferentes que, em comum, possu- senta limites que dizem respeito a sua
em apenas o fato de vislumbrarem o poten- própria historicidade ou, parafraseando
cial comunicativo de ambas as linguagens. Foucault, à episteme dentro da qual esta
representação se insere. Assim sendo, os
4. Afinal, quem representa melhor a re- “espelhos” do real perdem sua aura de
alidade: os comics ou o cinema? infabilidade, diafanamente pairando acima
de qualquer suspeita quando se trata de re-
Convivemos aparentemente de maneira tratar o real, e ganham um caráter concreto,
muito confortável com a idéia de que as de algo que pode ser construído, negociado,
diferentes linguagens visuais são como que historicizado.
espelhos do real, anteparos nos quais as coisas A relação entre os comics e o cinema
do mundo podem projetar-se fidedignamen- não é, portanto, uma relação entre iguais,
te, oferecendo-se à contemplação. Justamen- do ponto de vista semiótico, no que diz
te por esse atestado de veracidade conferido respeito às características específicas de cada
pelo senso-comum às linguagens visuais, linguagem, porém, se pensarmos em ambas
torna-se este um campo fértil e instigante para as linguagens como maneiras de se repre-
aplicarmos a teoria desenvolvida por Michel sentar o real, encontraremos um ponto de
Foucault em As Palavras e as Coisas.11 Como encontro, uma esfera dentro da qual ocorre
foi dito, nesta obra o filósofo francês afirma uma relação entre iguais. Ao criarem um
que a relação entre as representações e o que espaço próprio, externo ao real, que são
é representado, transforma-se conforme a justamente as representações do real, nem
configuração do saber em determinada época os comics, nem o cinema nos brindarão com
(configuração esta denominada pelo autor a totalidade deste. As partes do todo, isto
episteme). Sendo, pois, uma relação histó- é, as representações do real que as lingua-
rica, passível de sofrer alterações com a gens desvendam, mesmo se somadas, não
passagem do tempo, não poderá, por defi- representam o todo. Sempre haverá algo que
nição, constituir uma verdade absoluta. Somos lhes escapa, um lado de fora, algo que está
levamos a concluir que qualquer represen- além dos limites da representação. Ainda
tação, em qualquer linguagem, seja ela vi- assim, são maneiras de nos aproximarmos
sual, verbal, sonora ou híbrida, como é o caso desta realidade, lidarmos com ela, tratá-la,
tanto do cinema quanto dos comics, apre- reinventá-la.
126 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Bibliografia _______________________________
1
Mestranda em Comunicação Social pela
Aumont, Jacques. A Imagem. Campi- Universidade Federal de Pernambuco.
2
Michel Foucault. As Palavras e as Coisas.
nas: Papirus, 1993.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Benjamin, Walter et alli. O Narrador, 3
Umberto Eco. Apocalípticos e Integrados.
in Os Pensadores. São Paulo: Abril Cul- São Paulo: Perspectiva, 2000, p.147.
tural, 1980. 4
Idem.
Cirne, Moacy. A Explosão Criativa dos 5
Moacy Cirne. Para Ler os Quadrinhos: Da
Quadrinhos. Petrópolis: Editora Vozes, Narrativa Cinematográfica à Narrativa Quadrinizada.
1970. Petrópolis: Editora Vozes, 1975, pp. 61-62.
6
_____________. Para Ler os Quadri- Aqui compreendida a grande maioria das
nhos: Da Narrativa Cinematográfica à produções de cinema, salvo exceções sobretudo
na área de vídeo, que, eventualmente podem ser
Narrativa Quadrinizada. Petrópolis: Editora
criadas e executadas por um único artista.
Vozes, 1975. 7
Fato registrado no livro O Cinema, de
_____________. História e Crítica dos Emmanuelle Toulet (Rio de Janeiro: Objetiva,
Quadrinhos Brasileiros. Rio de Janeiro: 2000). Extrato disponível no sítio eletrônico: http:/
Editora Europa/FUNARTE, 1990. /objetiva.com/releases/218-3.htm.
8
_____________. Quadrinhos, Sedução Umberto Eco. Op. cit., p. 250, grifo no original.
9
e Paixão. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. Walter Benjamin. O Narrador, in Os Pen-
Eco, Umberto. Apocalípticos e Integra- sadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 59.
10
A ingênua Cabiria, personagem interpretada
dos. São Paulo: Perspectiva, 2000.
por Giulietta Masina, surge em 1952 no filme Lo
Foucault, Michel. As Palavras e as Sceicco Bianco numa única cena para retornar
Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. como protagonista em 1957, em Le Notti di
Sontag, Susan. Diante da Dor dos Ou- Cabiria, ambos dirigidos por Frederico Fellini.
tros. São Paulo: Cia das Letras, 2003. 11
Michel Foucault. Op. cit.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 127
Koyaanisqatsi de Godfrey Reggio e Drácula de facto. Evidence retrata em poucos minutos o efeito
Tod Browning. provocado pela alta tecnologia, e a aceitação
12
Anima Mundi resulta numa combinatória de passiva, por parte do ser humano, de uma situ-
som e imagem elaborada a partir de várias fo- ação que o enfraquece e domina de forma lenta
tografias do mundo animal e de imagens origi- mas eficaz.
nais. A parte musical, concebida por Philip Glass, 13
Existem elementos visuais e sonoros que
baseia-se em ritmos e música étnicos pouco se manifestam nas três obras embora adquiram
explorados e difundidos. Imagem e som preten- rostos, configurações e relevos diferentes nos três
dem refletir a harmonia e diversidade do mundo
casos. O princípio de auto-semelhança prevalece
animal na sua variedade de espécies, elementos
associado ao elemento variação, metamorfose.
e sistemas constituintes. Evidence mostra a ali-
Estes factos são notórios, tanto a nível visual, como
enação do ser humano, face ao mundo, provocada
sonoro.
pela visualização constante, e exaustiva, da te- 14
levisão e os aspectos psicológicos deste tipo de O mundo globalizante e globalizado em que
acção. O autor focando a sua atenção no olhar vivemos, o mundo da alta tecnologia, impõe
de uma criança que visualiza o filme Dumbo da cânones de conduta bastante rígidos e estritos que
Walt Disney, revela um estado de paralisia mental são seguidos pela maior parte de nós sendo que
tornando-se aos poucos semelhante a um paciente o que é considerado como original muitas das
de um hospital psiquiátrico, a um deficiente mental vezes não é mais do que a proliferação do
ou mesmo a um drogado. Reggio pretende mostrar standartizado. Criam-se ambientes uniformizados
de que forma a televisão e os meios audiovisuais e artificiais que se encontram em conflito com
manipulam e controlam o ser humano e as con- o ambiente com o qual devíamos viver em perfeita
sequências físicas, psicológicas e sociais de tal harmonia.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 133
técnicas são muito mais propícias para uma produz imagens coloridas na freqüência de
nova disseminação da estereoscopia. aproximadamente 30 quadros (frames) por
segundo (fps), com uma resolução aproxi-
Cinematografia estereoscópica mada de 480 linhas horizontais. Em reali-
dade a frequência é de 29,97 fps e além disso
Uma análise das condições da os quadros não são gravados inteiros sobre
estereoscopia nos dias de hoje deve iniciar- a fita magnética, todavia para fins didáticos
se pelo conhecimento prévio das tecnologias utilizaremos a frequência de 30fps como
utilizadas para a produção de estereoscopia sendo o parâmetro de uma imagem NTSC
cinematográfica. Um dos métodos, o mais (apenas para facilitar a compreensão). Os
antigo deles, é o método anaglífico. Esta quadros são divididos em dois campos
técnica caracteriza-se por colorizar com uma (fields) de 240 linhas com uma duração de
cor física primária ou complementar, diferen- metade da duração do quadro, aproximada-
te, cada uma das imagens foto-cinematográ- mente 1/60s. No processo de exibição da
ficas referentes a cada olho (azul e vermelho, imagem, o monitor de vídeo apresenta ini-
ou verde e vermelho, ou ainda as complemen- cialmente as 240 linhas ímpares (campo 1)
tares tais como vermelho e ciano, ou amarelo e posteriormente as 240 linhas pares (campo
e azul). Dependendo do método, o espectador, 2). Este processo de formação de imagem
ao utilizar óculos com as lentes coloridas res- videográfica é conhecido como vídeo entre-
pectivamente pelas cores usadas no processo, laçado (interlaced vídeo). É interessante
pode separar cada uma das imagens que se salientar que as novas tecnologias digitais
encontram misturadas na imagem projetada na utilizam outros métodos de produção de
tela. O método mais moderno é o da imagens, baseadas no que se convencionou
estereoscopia por filtragem de luz polari- chamar de vídeo de varredura progressiva
zada, também conhecido como método de (progressive scan video). Neste caso os
estereoscopia passiva, que é descrito a se- quadros são apresentados inteiros sem a
guir: duas câmeras cinematográficas sincro- formação de artefatos de imagem resultantes
nizadas montadas o mais proximamente pos- do entrelaçamento. Esta é a forma como
sível2, produzem dois filmes referentes respec- podem ser exibidos filmes na tela do com-
tivamente, à visão do olho esquerdo e do olho putador, projetores de imagens compu-
direito. Em uma tela metalizada é feita projeção tacionais, ou ainda, monitores de televisão
sincronizada das duas películas, usando-se digital.
filtros polarizadores à saída das objetivas dos No que se refere ao vídeo estereoscópico
dois projetores. O espectador assiste ao filme (Evans, Robinson, Godber & Petty, 1995:
de óculos, com filtros polarizadores iguais aos 505), um dos métodos é constituido pelo que
daqueles instalados nos projetores. Dessa for- se segue: as imagens são produzidas por duas
ma as imagens referentes a cada um dos olhos câmeras de vídeo, os dois sinais de vídeo
são filtradas de modo que cada olho perceba são gravados em fitas magnéticas diferentes.
somente a imagem referente à sua lateralidade Os sinais de vídeo são reproduzidos em
específica. Em sistemas mais aprimorados, um gravadores independentes, ou aparelhos de
único projetor, através de uma objetiva espe- DVD (digital video disk), sincronizados, cujas
cial anamórfica, projeta uma única película com imagens são exibidas em dois monitores
duas imagens lado-a-lado; gerando duas ima- posicionados obedecendo um ângulo de 90o,
gens polarizadas sobre tela metalizada (Lipton, equipados com filtros polarizadores. Um
1982: 47). Da mesma forma, óculos polariza- espelho especial, localizado no caminho da
dores são necessários para a separação de cada luz emitida pelos monitores, funde as duas
imagem. A metalização da tela garante a imagens e o espectador assiste ao vídeo com
manutenção do padrão de polarização. óculos semelhantes aos do cinema
estereoscópico. Os monitores podem ser
Videografia estereoscópica substituídos por dois projetores de vídeo
também equipados com filtros polarizadores,
O sistema de imagem eletrônica NTSC e exibidos em uma tela metalizada. Trata-
(National Television Standard Committee) se apenas da aplicação da esteroscopia
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 135
passiva para o caso do vídeo. É possível ainda de óculos obturadores de cristal líquido
encontrar uma outra variação desse sistema (LCD shutter glasses) que são capazes de
a partir de um único projetor ou monitor. permitir a passagem da luz somente das
Neste caso as duas imagens são colocadas imagens referentes a cada olho, numa fre-
juntas em um mesmo quadro, seja na po- quência de 60Hz. Desse modo, o sistema
sição acima-abaixo com achatamento das duas eletrônico que comanda a obturação da
imagens para que possam ocupar a mesma passagem de luz de cada um dos lados dos
proporção do quadro de vídeo, ou ainda as óculos abre-se e fecha-se a cada 1/60s,
imagens são dispostas lado-a-lado sincronizando-se com o vídeo que está sendo
rotacionadas em 90 graus para que possam exibido, de tal forma que, à abertura do lado
também ocupar a proporção do quadro de esquerdo dos óculos corresponda a projeção
vídeo. A projeção é feita através de jogos do campo referente ao olho esquerdo, e vice-
de espelhos ou semi-espelhos, com filtros versa. Este sistema só funciona em monitores
polarizadores que redirecionam as imagens e projetores do tipo CRT.
sobrepondo-as uma sobre a outra sobre uma A tecnologia dos óculos obturadores já
tela metalizada ou através de retroprojeção. é utilizada largamente, existindo no mercado
Nestes casos, projetores DLP (digital lighting audiovisual/computacional inúmeras empre-
processing) ou CRT (cathode ray tube) são sas que os comercializam, tanto conectados
preferíveis aos LCD (liquid cristal display) através de cabos às placas gráficas de vídeo
em função da própria construção dos LCDs, dos computadores, como avulsos, sincroni-
que, em si mesmos, já contêm filtros zados apenas através de pulsos de luz
polarizadores. infravermelha, produzida por emissores
No método denominado esteroscopia conectados entre a placa gráfica de vídeo e
ativa, a imagem é obtida por sequenciali- o monitor de computadores. Também é
zação dos campos do sinal de vídeo gerado possível encontrar-se sistemas semelhantes
por duas câmeras, assim, o projetor ou que são conectados a aparelhos de DVD.
monitor de vídeo mostra um único sinal de Além disso, determinadas salas de exibição
vídeo que apresenta, a cada 1/60s (no sis- cinematográfica do formato I-Max, utilizam-
tema NTSC), um campo com a imagem se desses tipos de óculos obturadores sin-
referente à visão de cada olho. Como se sabe, cronizados ao projetor cinematográfico.
o olho humano não tem capacidade de É possível considerar-se também o mé-
discernir dois eventos luminosos consecuti- todo anaglífico como uma possibilidade de
vos, ocorridos a intervalos menores que 1/ produção de imagens videográficas
10 de segundo. É por este motivo, que no estereoscópicas. Para isso, procede-se da
cinema, imagens projetadas com duração de mesma forma descrita acima até a criação
1/24s (menores que 1/10s), são entendidas de um Video Estereoscópico Campo-
como contínuas; ou ainda na televisão, Sequencial. A única diferença é que são
quadros com a duração de aproximadamente aplicados filtros digitais de cores para cada
1/30s são interpretadas como contínuos. lado. Na imagem do lado esquerdo descar-
Todavia cada um desses quadros é composto tam-se os canais Verde e Vermelho da com-
por dois subquadros denominados campos, posição do arquivo digital RGB (Vermelho,
com a duração de 1/60s. Desta forma, é Azul e Verde), de modo que reste apenas o
possível simular-se a visão estereoscópica canal vermelho. Da imagem do lado direito
através da exibição para cada olho, de é excluído apenas o canal vermelho de modo
subquadros/campos com a duração de 1/60s. que a cor ciano (verde e azul) permaneça.
Ou seja, a cada 1/30s projetam-se duas O monitor exibirá assim um sinal de vídeo
imagens com a duração de 1/60s, uma para campo-sequencial cujo campo referente ao
cada olho, referentes à sua lateralidade es- lado esquerdo tenha somente vermelho en-
pecífica. Este método de sequencialização quanto que o campo referente ao lado direito
produz um tipo de vídeo estereoscópico que tenha somente a cor ciano. A visualização
é conhecido por Vídeo Estereoscópico do é feita utilizando-se um óculos anaglífico com
tipo Campo-Sequencial. Para sua visualiza- as respectivas cores em cada olho. Este
ção é necessária a utilização pelo espectador método pode ser denominado como Vídeo
136 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
6
De acordo com Christian Metz, um “efeito tante função de construção do conhecimento na
estereocinético, cuja importância para o cinema sociedade humana, que anteriormente seria desem-
foi salientada por Cesare L. Musatti no seu artigo penhada apenas pela linguagem verbal, de acordo
intitulado “Os fenômenos estereocinéticos e os com Leakey: “Talvez o mais penetrante elemento
efeitos estereoscópicos do cinema normal”, artigo da linguagem seja que, através da comunicação
da Revue International de Filmologie, n29 de com os outros, não só a respeito de questões
janeiro/março de 1957. (Metz, 1972: 20). práticas, mas também de sentimentos, desejos e
7
Os sistemas audiovisuais, em particular o receios, é criada uma “consciência compartilha-
documentário, vêm desempenhando uma impor- da”. (Leakey, 1982: 141).
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 141
A atmosfera é um conceito muitas vezes fílmica. Entende-se por “figura fílmica” uma
utilizado no cinema para definir uma impres- forma particular de expressão, neste caso
são específica que foi expressa durante um originada pela própria representação e criada
plano ou uma sequência fílmica. O objectivo por determinados princípios específicos ao
aqui é defini-la para que funcione como um cinema (por exemplo, uma figura fílmica
conceito operatório para a análise fílmica. básica é o grande plano). A atmosfera seria
Depois de determinar o conceito de um elemento fílmico de corpo inteiro,
“atmosfera” de uma maneira geral, é neces- identificável e possível de analisar.
sário estudar como é que ela funciona no O que é a atmosfera? É um sistema de
espaço cinematográfico, isto é, qual é a sua forças que permite aos elementos do mundo
dinâmica dentro da própria imagem (muda de se conhecer e de reconhecer a natureza
e sonora), e como se elabora entre o espec- do seu estado. A atmosfera manifesta-se como
tador e o filme. A proposta é considerar a um fenómeno sensível ou afectivo e rege as
noção de “atmosfera” como sendo uma relações do homem com o seu meio. Não
possível figura fílmica. Entende-se por “fi- é por acaso que os expressionistas alemães
gura fílmica” uma forma particular de ex- associavam-na à noção de Stimmung, que é
pressão, neste caso originada não só pela um tipo de disposição de espírito e de alma
própria representação mas sobretudo por emanante das “coisas” do mundo. Daí tam-
determinados princípios específicos ao cine- bém ser muitas vezes assemelhada às noções
ma (um deles é, por exemplo, a complexa de clima, ou de ambiente. Existem diferen-
temporalidade da imagem fílmica). Neste ças, por vezes bastantes subtis, que permi-
sentido, olhar para a atmosfera como sendo tem diferenciá-las: o clima é mais geral que
um elemento fílmico parece legítimo na a atmosfera, ou que o ambiente, e também
medida em que a sua presença pode enri- mais estável. Fala-se de um clima de terror,
quecer a análise cinematográfica. Propõe-se, por exemplo, para caracterizar um espaço-
por último, depois de identificar e perceber tempo determinado. Além disso, o clima está
o papel da atmosfera, aplicar os seus prin- em primeiro plano, quer dizer que a sua
cípios a vários filmes da história do cinema. presença é sempre explícita e fundamental.
Quando se vai ao cinema, fala-se frequen- O ambiente, também é geral mas é secun-
temente da”“atmosfera” do filme, sem se dário; é como um elemento de cenário porque
saber precisamente o que é, uma componen- não é indispensável para o espaço dramático.
te da imagem fílmica ou unicamente uma Por exemplo, o som ambiente serve para
sensação percebida pelo espectador. Isso preencher o espaço da imagem fílmica,
deve-se à indeterminação da própria noção oferecendo informações sobre o espaço
de “atmosfera” que quer dizer ao mesmo sonoro geral da acção, sendo perfeitamente
tempo tudo e nada e que, no fundo, não dispensáveis, se fosse necessário. A atmos-
esclarece nada sobre a natureza do filme. No fera está sempre no primeiro plano, mesmo
entanto, uma coisa é certa: o cinema cria um quando está pontualmente localizada no
certo de tipo de atmosfera. A questão é de espaço. Por exemplo, quando uma pessoa com
saber o que é este espaço atmosférico e quais imenso charme se exprime no meio de uma
são os meios que permitem a sua expressão sala cheia de gente sisuda, a atmosfera li-
num filme. berta será logo tão forte como o clima geral.
O objectivo é considerar a noção de A atmosfera assemelha-se a um sistema
“atmosfera” como sendo um possível elemen- de forças, sensíveis ou afectivas, resultando
to fílmico, e mais precisamente, uma figura de um campo energético, que circula num
142 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
câmara mostra algo que o olho não vê. É as imagens em movimento prolongam as
neste sentido que a noção de fotogenia se imagens fixas. A mesma atmosfera atravessa
entrecruza com a de atmosfera. Por isso, a os vários espaços e tempos como se fossem
sua posição parece particularmente pertinen- falsos-raccords. Aqui, o cinema exprime uma
te porque está actualizada, mesmo no que atmosfera similar aos rastos diurnos de um
diz respeito à nova imagem digital ou vir- terrível pesadelo. É por isso que Serge Daney
tual. Hoje, continua a ser o movimento da disse, utilizando um conceito de Jean-Louis
imagem o primeiro factor de criação de Schaeffer, que Noite e Nevoeiro é um filme
atmosfera fílmica. Depois, esta propriedade que olha o espectador3, olha porque a atmos-
terá características e intensidades diversas, fera liberta das imagens toca-o na sua mais
segundo o próprio filme. Por exemplo, as at- profunda intimidade (neste caso, o assunto é
mosferas de Matrix são artificiais, geralmen- universal, não se trata de uma “pequena
te concretas porque resultam de efeitos história pessoal” como diria Deleuze).
especiais fáceis e espectaculares. Quase que É também o que acontece em A Sombra
se podia falar de atmosfera sensacional, do Caçador realizado por Charles Laughton
atmosfera rapidamente percebida, consumida em 1955. Se a atmosfera do filme tem um
e desvanecida porque não procura exprimir lugar tão importante na história do cinema é
este algo que a fotogenia traz ao cinema e por causa do seu carácter enigmático que
que pode tocar profundamente o espectador, acompanha a narrativa alegórica da
porque mostra algo que ultrapassa o seu intemporalidade do espaço interior4. De facto,
espaço empírico e racional. a atmosfera plástica do filme é tão forte que
Portanto, o que se entende por atmosfera a sua presença tem a mesma importância do
como figura fílmica é a atmosfera que se que a diegese. O trabalho de fotografia a preto
exprime através de uma imagem fílmica. É e branco cuja luz alterna entre um claro-escuro
óvio que quando se trata de atmosfera abs- apurado e uma luminosidade bucólica, a
tracta, é muito difícil e complexo identificá- montagem atípica de um tempo-sequência5
la, para defini-la minuciosamente. Por exem- entre duas sequência narrativas clássicas, o
plo, a atmosfera que se liberta de Noite e formalismo estetizante que impede o natura-
Nevoeiro que Alain Resnais realizou em 1955, lismo de desabrochar sempre que este parece
é notável. Este exemplo afasta-nos da teoria instalar-se, são factores importantes que con-
de Jean Epstein que rejeita uma representa- tribuem para criar uma atmosfera que “pene-
ção realista do mundo, sendo a seu ver tra” no espectador, deixando vestígios de uma
limitativa. No entanto não existem dúvidas impressão que ultrapassa o exprimível.
que o animismo do cinema está presente e Dizer que o movimento é a natureza da
activo em Noite e Nevoeiro. A criação da sua imagem fílmica implica necessariamente
atmosfera é originada pelo “realismo pensar a sua temporalidade. O sentido ex-
ontológico” da representação fílmica, impli- presso por um plano, uma sequência ou
cando uma continuidade espacio-temporal es- mesmo pela integralidade de um filme pode
tabelecida pela própria realidade. É preciso criar uma atmosfera específica. Por exemplo,
não esquecer que Noite e Nevoeiro é um filme a reflexão de Deleuze sobre a imagem-tempo
sobre o campo de concentração de Auschwitz, podia servir de base, porque é óbvio que a
que alterna as imagens a cores contempo- duração mais ou menos longa de um plano
râneas da filmagem com as imagens de permite ao espectador ficar impregnado, ou
arquivo a preto e branco. O que faz deste não, pela sua atmosfera. No entanto, existe
filme um filme justo como disse Serge Daney, uma atmosfera própria ao tempo, indepen-
em parte, é a sua atmosfera insuportável do dentemente do tempo diegético. Trata-se
horror inumano que permanece no mesmo então de descobrir de que maneira a cons-
espaço em vários tempos e circunstâncias. trução do tempo fílmico consegue produzir
Com longos travellings, Alain Resnais arras- um certo tipo de atmosfera. Sabendo que a
ta a atmosfera de terror, que perdurou e técnica cinematográfica permite uma fácil
impregnou o campo de concentração, de um manipulação temporal (através da montagem,
plano para outro. O preto-e-branco prolonga- do acelerado ou da câmara lenta, por exem-
se na cor e a cor prolonga-se no preto e branco; plo), é fácil identificar os lugares de expres-
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 145
são de atmosfera temporal. Mais difícil é ela está implicitamente presente. O cineasta
analisar a natureza desta mesma atmosfera refere uma série de propriedades que podem
porque, segundo Didi-Huberman, a imagem definir uma figura fílmica, e duas delas apli-
é um objecto complexo de tempo impuro: cam-se perfeitamente à atmosfera. Primeiro, a
uma extraordinária montagem de tempos atmosfera permite uma relação com o infinito.
hetereógeneos formando anacronismos6. De facto, a sua manifestação contenta-se em
E porque se trata de uma imagem fílmica, ser uma “impressão”: não tem contornos nem
estes anacronismos temporais inerentes à configuração. É por isso mesmo que ela pro-
imagem tornam-se ainda mais complexos. voca uma sensação de infinito no espaço interior
Antes de tudo, a imagem fílmica, na sua do espectador, por sair dos limites do plano
imaterialidade, funciona como um presente e por ser intemporal. A segunda propriedade
em constante devir, para utilizar o conceito é a indivisibilidade da atmosfera. Ela funciona
deleuziano, como se a imagem fosse uma como um todo, um sistema de forças sensíveis
imagem-potencial — e não auto-suficiente, ou afectivas que é percebido como um con-
porque sempre associada às anteriores e/ou junto de corpo inteiro; a atmosfera também não
às seguintes para poder exprimir a sua ver- é um processo mental.
dadeira essência (o movimento). A atmosfera Por último, um exemplo de atmosfera
temporal da imagem fílmica torna-se ainda concreta, e outro de atmosfera passiva. No
mais complexa quando o som é um elemento filme O Labirinto dos Sonhos que Sogo Ishii
criador de atmosfera. Por exemplo, em realizou em 1997, a noite e a chuva expri-
Eraserhead de David Lynch, o barulho es- mem um espaço inseguro. No entanto, ape-
tridente que a personagem ouve no espaço sar de ter uma origem figurativa (a chuva
da sua cabeça não tem nenhuma fonte es- desenha sombras líquidas nos rostos das
pecífica, a não ser o seu próprio cérebro; por personagens), a própria atmosfera parece
isso mesmo, estamos em presença de uma intangível. Em Elephant de Gus Van Sant,
atmosfera abstrata que ultrapassa as referên- a atmosfera é abstrata; ela circula de plano
cias espacio-temporais convencionais. A para plano, tal como os estudantes deambulam
atmosfera desta cena torna-se intemporal pelos corredores do liceu. A sua origem não
porque não só exprime aleatoriamente um tem uma forma específica porque ela é
lugar do espaço interior da personagem, como constituída por todos os elementos da ima-
a duração da sua manifestação cria uma gem fílmica. Nos dois casos, a atmosfera está
espécie de suspensão temporal da narrativa. claramente presente e a sua presença é activa,
A atmosfera temporal de um plano, de quer dizer que o seu sentido tem um valor
uma cena ou de um filme está ligada ao ritmo fundamental na narrativa.
de cada um e da sua própria montagem. Os Para sintetizar este primeiro esboço na
ritmos das formas, dos movimentos e dos sons definição de atmosfera fílmica, é importante
relacionam-se entre si e criam sentidos. Neste referir que tentar reduzir a atmosfera a um
sentido, o ritmo assemelha-se ao “conflito” sistema estável e fechado seria desnaturar a
eisensteiniano que reconhecia um sentido a sua própria essência fugidia. Aplicar a noção
partir dos conflitos representativos. de “figura fílmica” é como se, ao serem
Em que sentido é possível caracterizar a sublimadas, as figuras adquirissem um novo
atmosfera como sendo uma figura fílmica se valor expressivo, afastado do seu, original.
ela é por natureza abstracta (mesmo quando Por isso, a noção fica por apurar porque, por
a sua origem é material) e recusa qualquer exemplo, ela tem uma manifestação tempo-
tentativa de figuração? Como foi menciona- ral muito complexa e muito rica, como já
do mais acima, uma figura fílmica é uma se viu. Também é preciso ter cuidado em não
forma particular de expressão, específica ao confundir “atmosfera” com “efeitos”, o que
cinema. A atmosfera fílmica é uma figura às vezes não é tão óbvio. No expressionismo
fílmica porque ela é criada a partir de outros alemão, por exemplo, os dois justapõem-se.
elementos fílmicos e porque tem um sentido O que é importante, é reconhecer a atmos-
específico. No seu artigo “De la figure fera como sendo um elemento fílmico de corpo
cinématographique”, Andréï Tarkovski nunca inteiro, e ao torná-la inteligível, dar-lhe um
menciona a palavra “atmosfera”, e no entanto, espaço analítico na teoria cinematográfica.
146 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Bibliografia _______________________________
1
Universidade Lusófona de Humanidades e
Binswanger, Ludwig, “Das Raumproblem Tecnologias.
2
in der Psychopathologie”, Ausgewählte Cf. George Didi-Huberman, Devant l’image,
Paris Editions de Minuit, 1990.
Werke, Heidelberg, Band III, 1994. 3
Cf, Serge Daney, “O travelling de Kapo”,
Daney, Serge, “O travelling de Kapo”, in in Revista de Comunicação e Linguagens, nº23,
Revista de Comunicação e Linguagens, nº23, Lisboa, Edições Cosmos, 1996, pp. 205-221.
Lisboa, Edições Cosmos, 1996, pp. 205-221. 4
Cf. Inês Gil, A Sombra do Caçador. Do
Daney, Serge, Devant la recrudescence Stroryboard à Direcção de Actores, Lisboa,
des vols de sacs à main, Lyon, Aléas, 1997. Edições Universitárias Lusófonas, 2002.
5
Didi-Huberman, Georges, Devant O tempo-sequência baseia-se no conceito de
l’image, Paris Editions de Minuit, 1990. “imagem-tempo” deleuziano e define uma sequência
Didi-Huberman, Georges, Devant le narrativa cuja situação óptica e sonora substitui as
situações sensori-motores enfraquecidas. Num tem-
temps, Paris, Editions de Minuit, 2000.
po-sequência, a narrativa tem um lugar muito redu-
Epstein, Jean, L’Intelligence d’une zido em relação à própria temporalidade da imagem
machine, Paris, Editions Jacques Melot, 1946. fílmica que vale por si só e que permite, segundo
Tarkovski, Andréï, “De la figure Deleuze, uma situação óptica pura (e/ou uma situação
cinematographique”, Positif, nº 249, 1981. sonora pura). Cf. Gilles Deleuze, L’Image-Temps,
Tellenbach, Hubertus, Geschmack und Paris, Editions de Minuit, 1985, p. 10.
6
Atmosphäre, Salzburg, Otto Müller Verlag, Cf. George Didi-Huberman, Devant le temps,
1968. Paris, Editions de Minuit, 2000, p. 16.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 147
La base de datos ofrece una información • En primer lugar, se ofrecen los datos
detallada de una selección de imágenes contextuales sobre la imagen fotográfica
fotográficas (alrededor de 30, en una primera como “autor”, “título”, “nacionalidad del
fase), de las cuales se proporciona las autor”, “fecha de realización de la fotografía”,
siguientes informaciones, que van desde lo “género”, e incluso otros datos sobre la
particular o concreto a niveles más trayectoria del autor, el momento histórico,
conceptuales y abstractos: el lugar, el movimiento artístico o fotográfi-
152 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
dirigida, etc.). En la base de esta tenido lugar los días 13, 14 y 15 de octubre
aproximación se sitúa la consideración de la de este mismo año 2004 en la Facultad de
fotografía como lenguaje, desde un punto de Ciencias Humanas y Sociales de la
vista más operativo que ontológico, claro está Universidad Jaume I de Castellón19. Desde
(Eco; Zunzunegui). No podemos olvidar, sin entonces ya está operativo el sitio web con
embargo, que la actividad analítica es la base de datos en soporte hipermedia
también, en ocasiones, una oportunidad para (www.analisisfotografia.uji.es) que, espera-
desplegar la creatividad de un análisis, para mos, sea examinada (y criticada) con
aprender a sentir y comprender dónde radica atención por los especialistas en la materia.
la fuerza y la capacidad de comunicación (de Hasta este momento han hecho uso de la
fruición con el espectador) de la fotografía. página (entre el 18 de octubre y el 22 de
En suma, el análisis de una imagen fotográ- noviembre de 2004, unos 50.000
fica puede ser asimismo una fuente de placer. internautas). El sitio web ofrece además 900
Como investigadores de la comunicación fotografías con su ficha técnica cada una,
con un afán por aplicar el máximo rigor y que sirven de ejemplos, además de 30
honestidad posible a nuestra investigación fotografías analizadas siguiendo los 61 items
(rigor científico, no “rigor mortis”), será que propone la metodología de análisis.
necesario explicitar los presupuestos Queremos finalizar nuestra exposición
epistemológicos de partida en nuestra haciendo una constatación que, a estas al-
propuesta analítica. Es por ello que la base turas, puede parecer una obviedad. El intento
de datos, en formato de sitio web, debe de justificación de la propuesta de trabajo
incluir un glosario completo en el que se ha exigido por nuestra parte una revisión de
expliquen cada uno de los conceptos que las diferentes perspectivas de trabajo en la
aparecen en los diferentes niveles propuestos aproximación al estudio de la naturaleza de
para el análisis. Este particular diccionario la imagen fotográfica. De alguna manera, la
(o “idiolecto”) que estamos construyendo es, herramienta digital – el soporte hipermedia-
a su vez, un nuevo metalenguaje que dará ha quedado con nuestras palabras bastante
cuenta de las principales fuentes ensombrecido por la complejidad que encierra
documentales y estudios científicos el propio examen del problema conceptual
empleados para el establecimiento de los que supone tratar de dilucidar esta cuestión,
diferentes sentidos de los términos utiliza- así como el de la naturaleza de la actividad
dos. Un glosario que, estamos seguros, no analítica. Y es que tras una época en la que
estará exento de elementos polémicos. En las herramientas de trabajo para el estudio
este sentido, para propiciar el debate y la de la comunicación han sido más protago-
discusión científica, se ha organizado la nistas incluso que los propios discursos
celebración de un congreso monográfico que comunicativos, es momento de comenzar a
lleva por título “Congreso de Teoría y utilizar esas nuevas herramientas y no perder
Técnica de los Medios Audiovisuales”, en de vista adónde debe dirigirse nuestra
cuya primera edición el tema elegido es “El atención: qué, cómo y porqué comunica la
análisis de la imagen fotográfica”, que ha imagen fotográfica.
154 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Las investigaciones sobre cine suelen estar mas, que debe poder reconocer el
dirigidos principalmente al análisis del emisor receptor puesto que, de otro modo, el
y del receptor cinematográfico, intercambio comunicativo no se
investigaciones que analizan la obra del realizaría. Así, el sentido es el resul-
director por un lado y por otro las reacciones tado de una cointencionalidad”.
del público, produciéndose un salto para ir
de un extremo al otro de este proceso de Evidentemente el lugar de configuración
comunicación. del discurso cinematográfico es el estudio o
Sin embargo, la pantalla cinematográfica el escenario natural elegido para el rodaje
es el interfaz cinematográfico, el punto de de la escena. Charaudeau también hace una
encuentro a través del cual se comunican los referencia a las formas reconocibles,
extremos antes mencionados, es decir, el condición imprescindible para la
director de la película y su público. La comunicación, en este caso, cinematográfica.
pantalla cinematográfica está plena de luces Y, precisamente, el director de fotografía es
variadas y cambiantes cuya importancia el que va a dar forma a las ideas contenidas
cultural y artística destaca Arneheim (1979: en el guión a través de la cámara cinema-
335): tográfica y de la modelación de la luz,
elemento principal de la configuración de la
“En condiciones culturales especiales imagen.
la luz entra en la escena del arte como Aplicando el análisis de Charaudeau sobre
agente activo, y sólo de nuestra época el lugar de construcción del discurso también
se puede decir que haya engendrado se puede afirmar que el lugar de lectura del
experimentos artísticos dedicados ex- discurso, en este caso cinematográfico, es la
clusivamente al juego de la luz sala cinematográfica a través del espectador,
incorporeizada”. cuyo papel lo define Aumont (1992: 95 : 102),
cuando dice:
Quien llena de contenido la pantalla
cinematográfica es el director de fotografía “El papel del espectador es un papel
que resuelve tanto los problemas técnicos extremadamente activo: construcción
como la interpretación visual, siguiendo las visual del reconocimiento, activación
pautas marcadas por el director cinematográ- de los esquemas de la rememoración
fico. En la pantalla de cine se materializa y ensamblaje de uno y otra con vistas
la transmisión de la luz, que es la materia a la construcción de una visión
prima de la visualización de la película y coherente del conjunto de la imagen:
que requiere de un control de la misma para es él quien hace la imagen. La ilusión
poder cumplir con el proyecto del director, sólo se producirá si produce un efecto
a través del discurso cinematográfico, que de verosimilitud: dicho de otro modo,
como dice Charaudeau (2003: 25) todo si ofrece una interpretación plausible
discurso sirve para el intercambio comuni- (más plausible que otras) de la escena
cativo: vista.”
como perteneciente a la física, pero la luz natural que llega al mundo en estado salvaje,
también tiene unas implicaciones culturales que se refleja dando imagen al mundo pero
importantes, sobre todo en el arte. Pero lo de manera ininteligible y cargada de misterio.
que más nos interesa de la luz es, precisa- La segunda, la luz connotada es la luz
mente, el hecho de que puede ser interpretable intervenida y en cierto grado domesticada,
a pesar de que el sol brille por igual. Si la es la luz producida tanto desde el punto de
luz fuera solamente una cuestión física vista tecnológico como cultural y, por lo tanto,
podríamos afirmar que todas las películas es la luz libre que está a disposición de
tienen la misma luz, afirmación falsa porque cualquiera, pero principalmente del artista.
la experiencia nos demuestra que a lo largo En el caso que nos ocupa, la luz connotada
de la historia del cine ha habido una evolución es la luz que puede estar bajo el control del
en el tratamiento de la luz y en el uso que director de fotografía.
se ha hecho de ella para adaptarla a las Llegados a este punto hay que diferen-
exigencias del guión y de los gustos del ciar dos conceptos tal y como lo he mani-
director. festado en otras ocasiones (Susperregui: 2001)
El director austriaco Josef Von Sternberg : la luz y la iluminación. El concepto de la
(1956: 7) que se distinguió por la atmósfera luz se refiere fundamentalmente a la energía
de sus películas como consecuencia de una necesaria para que pueda producirse la
iluminación cuidada, entendió perfectamente imagen cinematográfica, y el concepto de la
la naturaleza de la luz: iluminación está ligado a todas aquellas
intervenciones que se realizan para que la
“Toda luz parte de un punto en el cual luz se ajuste a las necesidades de la película.
está su mayor brillo y se pierde en Esta diferenciación entre luz e iluminación
una dirección hasta que pierde toda puede que no sea necesaria cuando el direc-
su fuerza. El trayecto de los rayos de tor de fotografía hace uso directamente de
este foco central hacia las tinieblas la luz natural. En esta circunstancia el di-
es la dramática aventura de la luz. La rector de fotografía sólo tiene la opción de
oscuridad es misterio y la luz claridad. espera para que en un momento concreto la
La oscuridad tapa, la luz revela (sa- luz natural coincida con la luz deseada para
ber que revelar, que tapar, y en alguna la película.
medida, todo el trabajo del artista Los conceptos de luz denotada y
tiende hacia esta fórmula). Toda luz connotada así como los de luz e iluminación
aporta su sombra, y cuando nosotros explican por qué existen diferencias en los
vemos una sombra, nosotros sabemos resultados visuales obtenidos entre los dis-
que debe haber una luz”. tintos directores de fotografía, diferencias que
pertenecen mayormente a la luz connotada
La luz en cuanto a su capacidad comu- por ser más versátil, más manipulable y, por
nicativa ha sido valorada por varios autores lo tanto, que se presta más a la interpretación.
entre los que cabe destacar Christian Metz
(1973). Este autor diferencia entre la Discurso de la luz
denotación y la connotación de la luz,
atribuyendo el significante de la denotación La imagen visual de toda producción
al tipo de película y a los efectos de la cinematográfica depende fundamentalmente
iluminación, es decir, la mera reproducción de dos elementos: la cámara y la luz. En
mecánica de la realidad que está frente a la cuanto a la importancia de un elemento en
cámara, mientras que el significado de la relación al otro, se puede considerar que la
denotación es la escena representada; en cámara es un elemento que mantiene unas
cuanto a la connotación determina que el constantes que son importantes como, por
estilo del rodaje es su significante. ejemplo, la cadencia de imágenes o velocidad
La valoración que hace Revault (2003) y la entrada de luz en su interior, dependiendo
es la clasificación de la naturaleza de luz: de la mayor o menor intensidad luminosa de
luz denotada y luz connotada. La primera, la escena, y poco más. La luz, sin embargo,
la luz denotada es la luz sin codificar, la luz da más juego y ha conocido más cambios
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 159
durante la historia del cine por lo que el concretos sobre la relación entre el teatro y
desarrollo de la fotografía cinematográfica el cine, las influencias del primero sobre el
está más ligado a las aportaciones segundo son más amplias porque se extienden
tecnológicas de los focos de luz que a la a otros elementos importantes presentes en
cámara cinematográfica en sí. En esta cualquier película, como son la interpretación,
comparación no se ha incluido a las la decoración y la iluminación, por ejemplo.
emulsiones fotográficas que merecen un Para cuando se inventó el cine el teatro
tratamiento aparte. como arte milenario ya tenía bastante
La importancia de la luz es total, hasta experiencia con la luz artificial, es decir, con
el punto de que podemos afirmar que la luz la iluminación. En un principio fueron las
es el comienzo de todo, no solamente cuando velas, las lámparas de aceite y, más tarde,
nos referimos al cine. No en vano el prin- las lámparas de gas las fuentes de luz que
cipio de la creación se explica en la Biblia se utilizaron para los escenarios de los te-
con la creación de la luz el primer día de atros. La luz eléctrica supuso una aportación
los siete que Dios tardó en crear el mundo importante para las escenografías teatrales,
entero. creando otro tipo de relación entre los ac-
Para explicar el cine no podemos tores y los objetos presentes en la decoración,
olvidarnos de otras experiencias anteriores y poniendo en entredicho una serie de
como, por ejemplo, el teatro. Las primeras convenciones. Pero curiosamente algunas de
películas consistían en colocar una cámara las convenciones del teatro fueron adoptadas
delante de un escenario y filmar en un plano por el cine y hoy en día algunas de ellas
fijo y general, cubriendo el marco del se mantienen. En el teatro victoriano, tanto
escenario en su integridad, como describe si la iluminación era de gas o de electricidad,
Gubern ( 1971 : 54) en relación a las primeras las comedias eran brillantes, más luminosas
películas del gran Méliès: que los dramas. El día se escenificaba con
luces cálidas y la noche en azul, siguiendo
“Sus películas suelen estar divididas los parámetros del teatro naturalista, y el
en “cuadros” o “escenas” que, con- romanticismo se recreaba a media luz, como
cebidas de acuerdo con los cánones en el crepúsculo.
del arte teatral, hacen progresar la Estas convenciones teatrales referidas a
narración. De este modo la cámara la diferenciación entre comedia y drama
tomavistas se limita a ser un aparato siguen vigentes en las actuales producciones
inmóvil que reproduce fotográfica- cinematográficas, igualmente la
mente lo que ocurre sobre el representación de la luz en un espacio
escenario”. envuelto por una luz azul se puede seguir
observando en el cine moderno. El director
Como ejemplo de esta relación entre el de fotografía luso Eduardo Serra (Ettedgui:
teatro y el cine valga la producción del propio 1999: 177) así lo manifiesta:
Mèliés sobre el cantante Paulus para la
promoción de un café-concierto parisino. “En el mundo de la cinematografía
Cuando se iba a iniciar el rodaje el cantante hay muchas reglas y conocimientos
se negó a actuar al aire libre y puso como heredados. Por ejemplo, a mí me
condición el escenario de un teatro para rodar enseñaron que si se rueda de noche
su actuación. La elección de Mèliés de un en exteriores, hay que utilizar una luz
espacio abierto para tomar las imágenes del azul desde atrás”.
cantante Paulus estaba condicionada por la
luz, mejor dicho, a la cantidad de luz tan También lo hace el director de fotografía
necesaria para impresionar aquellas primeras italiano Vittorio Storaro (Shaefer: 1990 : 195):
emulsiones tan poco sensibles. Mèliés tuvo
que colocar treinta lámparas de arco en el “Todas las secuencias nocturnas de El
teatro Robert Houdin, convirtiéndose también conformista son azules. Por aquel
en un pionero de la iluminación cinemato- entonces yo no sabía muy bien por
gráfica. Pero además de estos ejemplos qué escogía precisamente el azul;
160 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
sombra directamente en la narración visual. una escena nocturna y en tono cálido cuando
El icono de la fotografía del cine expresionista se trata de un interior. También recurre con
alemán es la sombra de Nosferatu cuando frecuencia al viñeteado de la imagen cuando
sube las escaleras antes de entrar en la casa la cámara toma la perspectiva de alguno de
de Ellen. Esta sombra junto a la de la los actores, es decir, el viñeteado es una
barandilla es claramente una metonimia de alusión directa a la mirada de los actores.
la luz, porque tanto Nosferatu como la Este recurso potencia los centros de interés
barandilla de la escalera se representan con de la imagen en la pantalla.
la proyección de sus sombras sobre la pared Si el concepto de expresionismo se uti-
diáfana de la escalera. liza para denominar aquellas obras artísticas
Este icono simboliza a la fotografía en las que predomina el sentimiento sobre
expresionista pero de manera exagerada, el pensamiento, con el fin de expresar las
porque las sombras tan presentes en estas emociones, Nosferatu entra dentro de los
películas no están tan acentuadas como en cánones del expresionismo. La noche es el
esta escena de Nosferatu, guardando una ambiente natural del vampiro, es la vida, y
relación más directa con el contraste de la la luz, por el contrario, es la muerte para
imagen. Nosferatu.
La primera película alemana que se La última película considerada como
incluye en el movimiento expresionista es El expresionista es Metrópolis del director Fritz
gabinete del Doctor Caligari de Robert Wiene Lang y fotografiada por Karl Freund y
y Willy Hameister como director de Günther Rittau, producida en 1926. Se trata
fotografía, producida en 1919. En esta pe- de la adaptación de la novela de Thea Von
lícula ya se manifiestan algunos rasgos Harbou, esposa del director. Algunos
estéticos del expresionismo, donde la consideran esta película como la primera obra
subjetividad está presente también a través cinematográfica futurista, en tanto que sitúa
de la imagen en su afán de descubrir la parte la acción en el año 2000. Sus exteriores están
oculta a través de la realidad distorsionada inspirados en Nueva York, más concretamente
por medio de efectos ópticos y también en la arquitectura de Manhattan con sus altos
lumínicos. Arquitecturas irregulares, decora- rascacielos. La virtuosidad de la fotografía
dos pintados, rostros caracterizados con un de esta película se debe en muchos casos a
fuerte maquillaje e iluminados sobre fondos los trucos empleados para construir espacios
oscuros. En esta película la estética depende inexistentes. Los exteriores urbanos, es decir,
más de las influencias del teatro, a través metropolitanos, realmente son dibujos con un
de los decorados pintados, que de los efectos gradiente de tonos desde el negro hasta un
producidos por la luz y su sombra. gris medio, adquiriendo una densidad sufi-
Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens, ciente para ocultar su textura original. La luz
conocida de forma abreviada como Nosferatu, de los proyectores que iluminan con dina-
película dirigida en 1922 por Firedrich W. mismo las fachadas de los rascacielos, en
Murnau y fotografiada por Fritz Arno Wagner realidad, son efectos de animación realiza-
y Günter Krampf, está basada en la novela dos con las técnicas aprendidas en el viaje
Drácula de Bram Stoker. En esta película que Lang hizo a Hollywood. Una técnica
la luz es un elemento fundamental en la laboriosa pero con unos resultados excelen-
propia historia que narra, por la fotofobia del tes.
vampiro Nosferatu que le impide tener Las sobreimpresiones fotográficas que el
contacto con la luz natural. En el rótulo final, propio Lang hizo sobre unos anuncios de neón
en alusión a la luz, se puede leer lo siguiente: en Manhattan también fueron una referencia
Los rayos victoriosos del sol llenos de vida importante para la estética de esta película.
disiparon las sombras del pájaro de mal Algunas escenas están fotografiadas con esta
agüero. técnica de exposición múltiple, es decir, el
En esta película un color primario, unas mismo trozo de película se exponía varias
veces azul y otras veces en un tono cálido, veces en diferentes tomas, en vez de
trata de situar la escena en relación a la luz, superponer varios negativos en el laboratorio
manifestándose en azul cuando se trata de durante el positivado.
162 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
do universo íntimo do herói, que nos é dado timento de grupo e para planear e praticar
a conhecer na ausência daquele. assaltos, sem outra motivação que não a de
Da análise do filme, verificamos que a dar corpo a uma necessidade de “acção” que
segunda personagem mais presente ao lado depois de acabada a guerra colonial deixara
do “herói” é sua mulher, Maria das Mercês, de ter razões para existir. Eles representam
que ele trata com desprezo e violência os traumas de uma época e uma geração,
psicológica. E é o olhar dela que acaba por historicamente situada ainda na época a que
se impor como ponto de vista dominante, mas se refere O Delfim, mas arrastada como uma
silencioso quase - porque poucas são as maldição e uma culpa, até duas décadas mais
palavras por ela proferidas que o denunciam tarde. E, embora o tema da guerra apenas
(a confissão ao padre, uma conversa telefó- fosse aflorado em O Delfim, não será errado
nica) - e evidente nas suas acções ‘comple- encontrar neste paradigma de violência uma
mentares’ (quando o marido está ausente) que genealogia directa entre os dois filmes,
um supra-narrador omnisciente nos faz se- confirmada pela prepotência que, em Os
guir, até à intimidade do seu desejo sexual Imortais, é dirigida às figuras femininas,
solitário. É ainda, por contraponto com o nomeadamente: a esposa e as prostitutas.
ponto de vista da mulher rejeitada (até no Apenas não estamos já situados na mesma
anseio de maternidade que a atormenta), que época, mas o retrato destas personagens é
equacionamos as opções do marido, quando semelhante e até mais violento na sua ex-
o acompanhamos em viagens nocturnas a pressão: pela coisificação das mulheres, pela
bares de prostituição, ou mesmo quando ele violência repetidamente exercida sobre elas
descobre morto na sua cama o criado que e associada a uma dominação sexual, e pela
dormira com sua mulher. morte ou assassinato. (Embora a época seja
Em síntese, poderemos dizer que o ponto outra, o que se nota na presença de outras
de vista dominante, inicialmente pertencente tipologias de mulher: as lésbicas e a mulher-
ao herói, sofre uma translação para o da coadjuvante, arquétipo protector do herói
mulher solitária e mal-amada, cuja infideli- Inspector.)
dade o nosso olhar observa e compreende Neste panorama, precisamos indagar qual
com a distância de outra época. a perspectiva do herói sobre o mundo que
o cerca, já que, envolvido involuntariamente
2.2. Os Imortais, de António Pedro Vas- neste caso, é ele que seguimos na sua in-
concelos4 vestigação. Constatando aqui a sua assimi-
lação do arquimodelo (que tantos livros e
O herói deste filme é um inspector de filmes policiais têm alimentado) do detective
polícia que, a poucos dias da reforma, se vê cool habituado à violência e apanhado por
envolvido num caso policial, que ele vai tentar acaso na rede de um crime, apercebemo-nos
solucionar, motivado por uma competição também de que este herói procura para si
silenciosa com o seu detestado sucessor, ou uma vida sossegada (com a sua companhei-
talvez pelo desejo de resolver um último caso, ra) e alheia à violência policial – mas tão
ou ainda compelido pela casualidade de haver absurdamente alheio, que, no fim de contas,
pessoas suas conhecidas envolvidas; mas não fosse ele ter interferido na rede dos
desresponsabilizado das consequências legais criminosos, não se teriam dado
da sua investigação. Este quadro motivacional presumivelmente os crimes que depois su-
oferece-nos uma personagem suficientemen- cedem. Para anti-herói basta, mas é curioso
te complexa para se constituir como herói, que esta personagem nunca formule ou sugira
mas também uma personagem cheia de con- o arrependimento que, no mínimo, uma
tradições, algumas das quais só relevadas após interferência dessas deveria suscitar - que ele
uma análise da estrutura da intriga. saia com ligeireza de uma sequência de
Os Imortais - que dão o nome ao filme crimes que, embora sem intenção, ele desen-
e que, por meio da indagação do Comissário, cadeou... De qualquer modo, é claro que ele
se tornam seu tema principal - são um grupo representa o contraponto (em conjunto com
de antigos combatentes de guerra que peri- três personagens femininas: a namorada, a
odicamente se juntam para reactivar o sen- filha e a sua amante, também esposa do vilão
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 167
da história) a esse universo de violência que acaba por sofrer uma espécie de metamor-
aqui tomamos como paradigmático da nossa fose de carácter que o leva a cometer brutais
análise. assassinatos. Que o ponto de vista dominante
Assim, se, como atrás disse, indagarmos coincide com o desta personagem é evidente,
o ponto de vista do herói e a sua presença no facto de acompanharmos sempre as suas
na história, acabamos por constatar que, não acções e deslocações. (Ainda que em dois
apenas ele chega (obviamente) geralmente ou três momentos, a focalização incida sobre
tarde ao local do crime, como que não é outras personagens, estas paralepses são
através dele que nos é dado desvendar ou excepção.) Sendo assim, será importante, para
perceber os actos cometidos. Ou seja, o nosso percebermos a evolução da personagem-herói,
ponto de vista sobre os acontecimentos analisarmos os seus motivos, expressos ou
narrados acompanha só em parte o conhe- sugeridos.
cimento que ele tem dos factos, e focaliza- Inicialmente, Lino Ferreira é apresentado
se nas acções do grupo dos Imortais, nome- como um empresário em stress e com pro-
adamente através da personagem Vítor Pra- blemas conjugais, que afoga as suas mágoas
tas - que inicia e conclui o relato em narração no uísque, sob o olhar complacente do filho
off, aqui mero dispositivo formal – mas e da mulher. Ao revisitar a quinta que herda
sobretudo na de Roberto Alua, que acom- de seu avô, onde já não ia há muito tempo,
panhamos detalhadamente e que se salienta descobre fotografias e memórias de uma
pela atenção que a narrativa lhe confere. Esta bisavó aí assassinada pelo marido ciumento,
observação leva-nos a identificar nele um que na época da guerra civil de Espanha (cuja
segundo herói desta história – o herói vilão fronteira atravessa a propriedade) mandara
– cujo olhar se torna dominante; e ainda uma executar – melhor, degolara – dezenas de
terceira heroína-mártir, Madeleine Durand, operários republicanos. Este crime em larga
que é assassinada pelos Imortais. escala acaba por intrigá-lo obsessivamente e
A demonstração frequente de actos de leva-o a beber solitariamente, para desanu-
violência reforça a presença do ponto de vista viar do pânico, também estimulado por
deste herói masculino, em relação ao qual intrusos malévolos que fazem passar-se por
não é fácil uma distanciação (fosse ela fantasmas, no intuito de o obrigarem a vender
reflexiva, espacial, temporal ou outra), pois, a quinta. E assim o herói caminha suave-
como testemunhas, somos obrigados a par- mente para a loucura (mesmo quando já conta
ticipar desses actos. com o apoio familiar de filho e mulher, antes
Em síntese, verificamos que a persona- indiferentes.)
gem cujo ponto de vista está mais presente– É então que se desencadeiam uma série
– e que assume, na última parte, uma voz de crimes, cujo móbil nunca chega a ser
de segundo narrador dos factos ocorridos esclarecido. Primeiro, é assassinada, durante
(através da cassete audio que envia ao ins- o sono, a prostituta com quem o herói dormia
pector, explicando o caso que este não soube (e cuja fisionomia é igual à da avó assas-
desvendar) - é a do herói-vilão, agressivo e sinada). Ao acordar e vendo-a degolada, Lino
machista; que, apesar de tudo, tem a opor- perde a cabeça e decide encobrir o crime
tunidade de (nos) explicar que os seus actos que não cometera (atirando o cadáver ao
são consequência do condicionamento que poço). Quem o cometeu, não saberemos, mas
sofreu, como militar, para não sentir com- na lógica do que antecede, parece ser uma
paixão, revelando-se assim como a única manobra de intimidação para o fazer aban-
personagem com o privilégio da expressão donar a quinta. Depois, procurado por um
de pensamentos íntimos. Após o que se amigo da prostituta que está intrigado com
suicida, redimindo-se. o seu desaparecimento, Lino (assumindo
talvez a culpa de ter encoberto o crime) acaba
2.3. O Fascínio, de José Fonseca e Costa5 por assassinar brutalmente o homem – de-
golando-o e atirando de novo ao poço, com
O herói deste filme é um ‘pacato cida- a conivência incondicional de seu filho, que
dão’ que, ao herdar uma quinta e fascinado lemos como uma atitude de solidariedade
pela evocação dos seus fantasmas de família, familiar. Na ausência de qualquer inquirição
168 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
policial (pelo contrário, há a presença vaga- impunidade destes crimes, que espera de nós
mente ameaçadora de um inspector de po- uma aceitação visual e moral do crime,
lícia corrupto, possível cúmplice do primeiro encarado com banalidade e plena auto-jus-
assassinato), o herói safa-se para a Argentina tificação. (O contrário do que acontece nos
(na companhia de uma rapariga da quinta) filmes anteriores, onde os crimes são suge-
depois de ter presumivelmente assassinado ridos, mas não vistos em ferida aberta).
a sua esposa, em circunstâncias a que não
assistimos nem compreendemos. Da Argen- 3. O herói solitário
tina, já não louco, mas apaixonado, escreve
a seu filho (sucessor da empresa paterna), Um segundo grupo de filmes convoca
que também não denuncia qualquer incómo- heróis solitários que, defendendo-se de um
do em relação à morte da mãe – outro mistério mundo exterior inóspito, optam pelo silên-
por resolver. Em suma, vários crimes são cio. Este paradigma de herói passivo é o
cometidos, e não saberemos por que acon- oposto do outro tipo de herói activo, que reage
teceram, quem os executou ou que conse- agressiva e violentamente contra um mundo
quências tiveram, uma vez que o herói e seu de aparência pacífica. Diante desta polarida-
coadjuvante sucessório retomam a vida pacata de, será interessante perceber os motivos
do dia-a-dia como se nada tivesse aconte- conducentes a atitude tão diferente.
cido.
Segundo declarações do autor do filme, 3.1. Xavier, de Manuel Mozos6
está nele contida uma crítica à impunidade
geral dos crimes em Portugal. Mas não é esse Xavier cresceu num orfanato e não voltou
o ponto de vista que ressalta da análise a ver a mãe por impedimento do padrinho,
detalhada da obra, por onde nenhuma forma que mais tarde se mostra arrependido de o
de condenação dos actos criminosos ou da ter feito. Não sabemos bem o que sente
inépcia judicial perpassa. Não se trata de Xavier, pois ele não o verbaliza, mas vemos
exigir ou esperar que seja enunciado algum que se preocupa com a mãe doente e a visita
juízo moral (eventualmente redundante, vis- em hospícios e lares, encontros em que o
to que o crime, por definição, é crime, e por mutismo de ambos parece sinal de grande
isso não precisa de ser moralizado). O que dor calada. A somar ao sustento da mãe, pesa
importa aqui é analisar o discurso fílmico sobre ele uma pena judicial a pagar por um
em termos do ponto de vista da sua assalto (mal sucedido) do qual não parece
enunciação. ter culpa, o que obriga Xavier a procurar
Como vimos, a narração segue de perto, trabalhos diversos. Rodeado de pequeninos
em focalização externa semi-subjectiva, a trapaceiros – o patrão, o melhor amigo, etc.
personagem-herói, e faz-nos participar da sua - o nosso herói sobrevive à corrosão do meio,
vivência (só até ao ponto em que ele desa- mantendo-se sempre honesto, trabalhador e
parece e ficamos sem saber quando ou por gentil. Protectores não lhe faltam – o padri-
que terá matado a esposa). Participamos nho, a sorridente madre-superiora do conven-
também integralmente dos crimes, já que to (onde crescera), os amigos e duas amigas
somos obrigados a ver algumas vezes as que, apesar de terem namorados, lhe dirigem
gargantas das vítimas a serem degoladas, o um afecto especial. Mas a sua grande pre-
sangue a jorrar, os gritos e as pancadas – ocupação é a mãe, cuja indiferença ele
tudo com um hiperrealismo que chega a ser aguenta - até que ela se suicida, despoletando
sádico. Esta violência não é sequer mode- nele uma reacção analogamente desesperada
rada por qualquer atitude de repugnância, (a corrida de automóvel alucinada). Decide
censura, arrependimento ou outra, seja da então desaparecer, mudar de terra, e - como
parte das personagens ou do ponto de vista não consegue alistar-se numa legião estran-
do enunciador. Tudo acontece com a maior geira - arranja trabalho numa bomba de
das simplicidades, como se fosse comum – gasolina, onde, anos mais tarde, é encontra-
e torna-se comum no filme. do pela ex-madre-superiora, entretanto tor-
É assim que podemos afirmar que há uma nada laica, e que, já sem o optimismo de
enunciação conivente com a crueldade e a antigamente, o aconselha a voltar para Lis-
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 169
boa – onde ele vai reencontrar os amigos, namorado possessivo mas infiel, e dirige a
excepto Hipólito, seu melhor amigo, entre- Xavier um afecto constante; a madre-supe-
tanto preso. riora do convento, figura maternal e protec-
A narração da história acompanha, em tora, que, no final, abandona o hábito reli-
todos as cenas do filme, a personagem gioso para começar uma vida conjugal noutra
principal e o seu quotidiano, mas sem que terra. Em suma, personagens em trânsito, sem
esta opção narrativa se cole demasiado in- raízes, sem vínculos e sem futuro definido,
timamente ao herói, já que não existem cenas espelhos do próprio Xavier.
em que o protagonista se encontre sozinho; O filme acaba quase como começara, com
ele está sempre em relação com os outros. Xavier à janela do comboio apanhando vento
Esta estratégia de focalização externa, em- na cara, como um viajante perdido e, no
bora centrada exclusivamente nesta persona- entanto, esperançoso. A apatia, que nos guiou
gem, cria um efeito de identificação com o na viagem deste filme, explicou-se e nada
ponto de vista de Xavier, mas não nos oferece mais haverá a contar, senão que a vida
um olhar subjectivado sobre a personagem prossegue igual, triste mas resignadamente,
nem o acesso à sua psicologia íntima, sendo sem remédio e sem culpa.
poucas as palavras proferidas em que ele diz
o que pensa ou sente – o seu melhor amigo, 3.2. Quaresma, de José Álvaro Morais7
aliás, acusa-o disso; pelo contrário, apenas
conhecemos as suas reacções às circunstân- O herói de Quaresma é tão silencioso
cias exteriores e os diálogos breves que como Xavier, mas não amargurado. O filme
mantém com amigos e conhecidos; ou seja, começa com o funeral do avô de David, que
uma atitude e uma determinada visão do por esta razão retorna à casa de família na
mundo. província, onde vai reencontrar muitos pa-
Desta perspectiva, conhecemos um grupo rentes, de entre os quais surge, como factor
de jovens ocupando o dia-a-dia em activi- de perturbação, a figura da prima Ana, cuja
dades comuns – trabalho, café, festas, pas- personalidade inquieta e sedutora acaba por
seios, aulas, transportes – que se sucedem atrair o herói - e se afirma como condutora
com relativa indiferenciação, como um da narrativa, ocupando um papel de verda-
quotidiano arrastado e povoado de pequenas deira protagonista da história, ao lado da qual
resistências às dificuldades e tristezas da vida David apenas é um apaixonado passivo,
- entre as quais a de Xavier e sua mãe se através de cujos olhos nos interessamos por
destaca como central. A cumplicidade criada esta figura feminina excêntrica e pulsional.
com o herói permite-nos compreender que O olhar silencioso de David – que a
o seu silêncio é uma forma de calar o câmara acompanha preferencialmente – pouco
sofrimento e a injustiça de que foi vítima nos explica da sua relação com o mundo dos
desde criança e que não conseguiu remediar outros – o de Ana, marido, pai e amigos -
pelo reatar da relação com seu padrinho e, cujo clima emocional contrasta com a apa-
depois, com sua mãe, em insucesso total. rente calma e estabilidade da vida familiar
As restantes personagens deambulando na e profissional de David (uma mulher e uma
trama desta história, os amigos de Xavier, filha a quem se mostra dedicado, um curso
são também mais ou menos órfãos: Hipólito, que o leva à Dinamarca). Esse silêncio é uma
amigo desde o orfanato, mas cujas circuns- forma de receptividade e a expressão de uma
tâncias de vida ignoramos, protege genero- paixão subterrânea por Ana, que ele apoia
samente, como quem perfilha, um rapaz incondicionalmente, recebendo-a até, na sua
adolescente fugido de casa; contra o seu casa na Dinamarca, para ajudar a que ela cure
desejo, Rosa, a namorada, opta por fazer um a depressão.
aborto, sem grandes remorsos, mas projec- Mas o silêncio que rodeia David é ainda
tando ao longo do filme uma outra forma o silêncio de Ana e de todas as demais
de abandono, que acaba por a aproximar personagens, que quase nada exprimem do
amorosamente de Xavier; a filha do padri- que sentem, nem mesmo quando se dá um
nho (pai severo), órfã de mãe a custo acei- homicídio (acidental ou não, não o sabere-
tando a madrasta, também é abandonada pelo mos, pois que não será verbalizado por
170 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
nenhuma personagem - senão pelo choro ou lado no largo da aldeia. A população, atónita,
pelo silêncio pesado); silêncio que é preen- tece conjecturas sobre a personagem do herói,
chido pela sugestão da ventania e o som da cuja alma (ainda presa ao corpo) comenta
música. em voz off a situação e nos faz reviver (em
Quando Ana se acolhe em casa de David, flashback) a sua história pessoal. Como a
sua mulher e filha, na Dinamarca, procuran- GNR não aparece para retirar o corpo, a
do saída para a sua angústia crescente, não situação torna-se cada vez mais chocante e
sabemos se isso tem relação directa com o revelam-se os vários conflitos entre os al-
crime referido, ou se é apenas consequência deãos – a discriminação dos ciganos, ou a
de um alheamento do mundo social que a iminência de serem cercados pelas águas da
personagem já trazia, e que a levara a ser barragem em construção, por exemplo –
“internada”, como referem os familiares em dramas colectivos que o herói incorporara
conversa. De tal modo o silêncio e a solidão profundamente como uma desadaptação à
cercam as personagens desta história – como realidade e um alheamento ostensivo dos
uma penitência que justificará o título de demais (usando permanentemente ausculta-
Quaresma – que podemos dizer ser esse o dores, principalmente nas horas de trabalho
seu tema: a expiação resignada dos pecados no café).
(para sermos fiéis à semântica religiosa). Ao revivermos cenas do passado de
Apesar do tom muito emocional que toda a Adriano, ficamos a conhecer o conflito que
acção desenvolve, David mantém-se sereno tinha com o pai, homem autoritário e vio-
e seguro, apenas cedendo na atenção cari- lento, exigindo do filho que o seguisse como
nhosa que dirige a Ana e que sua mulher agricultor, e recusando a evidência de que
ressente, mas ele não confirma. a era da agricultura acabara e que as águas
Na verdade, a única personagem que cobririam a maior parte das terras de cultivo.
consegue quebrar esse silêncio (fúnebre, É o fim de todo este mundo que Adriano
diríamos, já que se arrasta desde o funeral não consegue suportar, refugiando-se junto
da primeira cena) é Ana, com as suas ati- do rio na companhia da namorada cúmplice,
tudes exaltadas que irrompem como um a quem ele diz que “não se pode viver com
desequilíbrio tresloucado no meio das outras um homem que traz o suicídio na lapela”.
personagens, caladas, reprimidas (penitentes) É que já sua mãe se suicidara, e depois o
mas em relação a Ana condescendentes. Mas, pai morrera de colapso, numa encenação de
na segunda parte da história (após a morte teimosia a que assistimos, e culpabilizando
do primo) Ana como que se assume agente Adriano por isso.
de uma expiação que agora é a sua – e não A desgraça familiar, a falta de perspec-
voltará a comunicar com os outros no seu tivas de futuro, o cerco das águas, a difi-
modo exuberante, refugiando-se isolada jun- culdade de fugir dali, o impasse do quoti-
to ao mar, cujas ondas lembram o ruído do diano – todas estas razões o levam ao sui-
vento e adensam a solidão deste filme. cídio. É através das palavras e recordações
Em suma, encontramos uma oposição do herói ou do seu amigo-protector, o dono
entre o universo que David representa (e que do café, ou ainda pelas conversas do povo
é o de toda a família), aparentemente sereno e da família, que vamos conhecendo as
mas reprimido nas suas expressões, e a respostas para este facto – que metaforica-
reacção desmesurada de Ana que surge como mente representa todo o desespero daquela
uma fuga angustiada a esse mundo, e dirigida população, actualizado através da persona-
ao refúgio nas forças da natureza – as gem mais sensível e vulnerável.
paisagens, o vento, o silêncio cósmico. A predominância da narração na primeira
pessoa do herói introduz uma focalização
3.3. O Rapaz do Trapézio Voador, de interior que nos permite descobrir as moti-
Fernando Matos Silva8 vações do seu suicídio. Mas a coexistência
de outros pontos de vista (em focalização
Também aqui a morte é o dispositivo múltipla) – os pensamentos em voz off de
narrativo que enceta o filme: Adriano, 33 Zé Lopes, o amigo, o conhecimento da
anos, enforca-se no trapézio do circo insta- intimidade de Lisete, a namorada, e de
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 171
Conceição, a tia, a verbalização dos proble- ciência de Francisco, que quer encontrar-se
mas colectivos pela população – transformam com ela à noite ou beijá-la ou saber os seus
aquela história individual num drama colec- sentimentos por ele. Combinam uma saída
tivo, que é resposta a uma realidade em nocturna, na qual Ângela, insegura, se faz
mutação, num espaço e tempo actuais acompanhar por Maria, a amiga extrovertida
(Alentejo, início do século XXI), e diagnós- e calorosa, que rapidamente conquista a
tico de uma ruptura com o passado e de uma atenção de Francisco; enquanto estes dançam
ausência de perspectivas para o futuro. divertidos, Ângela, sentindo-se excluída ou
Acaba por ser Lisete, forasteira na aldeia, ultrapassada pela amiga, acaba por ir para
quem tem a coragem de subir ao trapézio a cama com um desconhecido. No dia se-
para tirar Adriano da forca e - num acto de guinte não responde aos telefonemas de
heroísmo - libertar a “alma do morto” e Francisco, nem esclarece a zanga muda com
revelar uma força de espírito e uma vontade a amiga.
de vida que vêm substituir o malogro do Depois do acto impensado daquela noite,
herói. Ângela decide “atrever-se” mais e procura
Maria na tal discoteca onde esta também faz
3.4. Nós, de Cláudia Tomaz9 strip-tease “catártico”. Aí é seduzida a en-
tregar-se ao “prazer dos infernos” e, numa
Nós, como sugere o título, apresenta-nos mutação radical de personalidade, entra
um herói colectivo: um homem e uma mulher, mascarada na “arena” para participar numa
que se encontram para tentar vencer a so- dança sexual violenta, onde Francisco,
lidão enorme que sentem. Francisco, acaba- frequentador habitual, a reconhece, chocado.
do de sair da prisão, arranja trabalho nas obras Ele espera-a à porta e fá-la ceder a ir para
e põe um anúncio na internet, pedindo uma a cama com ele, num encontro forçado em
mulher apenas para conversar. Mas, numa que têm sexo com desprazer. Ângela sairá
contradição aparente, rejeita conversar com triste, depois de dizer que talvez devessem
a rapariga da pensão onde se alojou e que conversar, numa expectativa daquilo que
se mostra muito solícita. nunca conseguiram concretizar e que, se
Ângela tem um quotidiano solitário e presume, não farão nem esclarecerão.
raramente se encontra com o marido que Com poucos diálogos, este filme é um
trabalha de noite e chega a casa pouco antes caso de narrativa construída com base no que
dela se levantar. A única companhia que lhe é visualmente mostrado mais do que pelo que
conhecemos é uma colega de trabalho fala- é dito; o que ainda é reforçado pelo facto
dora e alegre que contrasta com a sua timi- de as verbalizações das personagens não
dez. É esta inibição que ela quer ultrapassar concordarem com os seus próprios actos,
quando decide responder ao anúncio de evidenciando as suas contradições internas.
Francisco, numa longa carta em que verbaliza Essa constatação, que é a nossa de espec-
os seus motivos e personalidade (que já com- tadores, é-nos facilitada por um ponto de vista
preendêramos visualmente). centrado, alternadamente, numa e noutra
Encontram-se então, mas quase nada têm personagem.
para dizer um ao outro. Os seus passeios Neste filme, o silêncio revela-se como
arrastam-se num encanto mudo e expectante, uma espécie de prisão, de onde as persona-
mas cujas motivações não serão as declara- gens não conseguem fugir, porque não sa-
das. É que, do nosso ponto de vista privi- bem ou não conseguem comunicar com os
legiado de espectadores, conhecemos também outros. E a forma que encontram para o fazer
as ânsias da solidão física que ambos sentem é através de um sucedâneo de discoteca
e resolvem de modo diferente: Francisco com urbana, onde se vazam os fantasmas dessa
uma prostituta e frequentando uma discoteca solidão, e onde se acentua e reafirma a mesma
de strip-tease invulgar, e Ângela masturban- solidão. O significado plural de Nós pode
do-se ao lado do marido adormecido. ainda ser ampliado a uma condição social
No entanto, Ângela, presa da sua fide- contemporânea, que a escolha dos cenários
lidade conjugal, surpreende-se com a impa- urbanos põe em evidência.
172 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
do dominado. Assim, este filme consegue Uma tal análise ideológica, embora pre-
fazer a síntese das duas tendências tenda também relevar (sintomaticamente)
verificadas, e não apenas a nível do conflito aspectos de ideologia subentendidos ou
de personagens e da focalização, mas igual- subconscientes, centra-se na intenção do
mente em termos estéticos. autor, tendo como premissa que o realizador
Em Nós, temos dois heróis, um mascu- se assume como enunciador – o narrador
lino, outro feminino, bastante equivalentes em putativo – e tem uma voz intencional e a
importância e presença, simétricos na sua responsabilidade final sobre os pontos de vista
solidão, que superam, sob forma de outra veiculados no filme, presunção que é típica
síntese, a dicotomia de género e poder que do “cinema de autor”, regime que em Por-
atravessa este conjunto de filmes16. Também tugal (ainda) vigora.
formalmente, este filme anuncia um salto para Assim, afasta-se relativamente dos estu-
outra concepção estética. dos de recepção que fazem uma leitura
Esta correlação, aqui apenas entrevista, ideológica mais ampla, sistemática e alargada
entre personagens e referentes sociais, de um a modelos sociais e processos de identifica-
lado, e aspectos de elaboração estético-formal, ção do público com as personagens. Aqui,
do outro, que se associam entre si ideologi- pelo contrário, interessa-me mais encarar a
camente, abre perspectivas para um campo de personagem como uma imagem de identifi-
análise que me interessa vir a desenvolver. cação do realizador, uma projecção sua.
174 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
pessoas, de clima, de texturas, da com uma cor indutora, a sua cor comple-
luminosidade, entre outros componentes. A mentar influencia a percepção de todas as
semântica da cena será associada outras cores para onde se dirige o olhar e
sistemicamente a um certo critério de coe- assim sucessivamente. No caso de uma
rência, determinado a partir da noção das imagem com cores sem a presença de matizes,
diferenças entre os contrastes. mas somente de valores, as cores indutoras
Apenas com os recursos cromáticos do provocam outras cores que também apresen-
branco, do preto e dos cinzas e através dos tam somente variação de valor e não de matiz.
contrastes entre eles, torna-se evidente a A definição do fenômeno da mutação
estrutura da forma, gerando significado ra- cromática passa pela relação entre as cores
pidamente. Podemos, inclusive, perceber e o efeito provocado na percepção visual
diferentes texturas metálicas, onde percebe- humana, principalmente através dos contras-
se o mesmo material (metal) com diferen- tes entre elas. No caso da imagem fotográ-
ciações (mais escuro, mais claro, velho, novo, fica em p/b podemos perceber este fenôme-
desgastado, relevos, opacidade, brilho, etc.) no, principalmente devido aos fortes contras-
detectadas também apenas pelos contrastes tes entre essas cores, provocando o apare-
entre o branco, o preto e os cinzas dessas cimento de uma vasta gama de cinzas.
imagens, ou ainda a transparência, resultan-
do na percepção de objetos transparentes 1.3 Terceiro evento de cor: cor inexistente
como o vidro.
A percepção da textura do objeto de uma O terceiro evento de cor é fundamentado
imagem fotográfica é construída através da na teoria da cor inexistente, a qual trata das
influência mútua entre valores, que temos cores que aparecem fisicamente, baseadas na
denominado aqui de contrastes. Consegue- relatividade de absorção e reflexão, pela
se, então, perceber outras características matéria, dos raios luminosos (Lozano, 1978).
físicas de um objeto, tais como, a fragili- As áreas brancas, pretas e cinzas da
dade, a transparência ou o brilho. imagem fotográfica em p/b servem como
anteparo para a explosão de cores resultantes
1.2 Segundo evento de cor: mutações da reflexão e/ou absorção de parte da luz
cromáticas em preto-e-branco incidente. Isso acontece porque nenhum corpo
absorve ou reflete totalmente os raios lumi-
O segundo evento de cor fundamenta-se nosos. Para percebermos brancos e pretos
no conceito das mutações cromáticas, que perfeitos, os raios da fonte luminosa inciden-
ocorrem na relação entre as cores branco, preto te deveriam ser totalmente refletidos (no caso
e cinzas das imagens fotográficas em p/b. do branco) ou totalmente absorvidos (no caso
Os fenômenos das mutações cromáticas do preto). Porém, no processo de absorção
são manifestações das cores fisiológicas, que ou reflexão, há sempre a perda de raios,
acontecem devido aos contrastes simultâne- alterando o resultado perceptivo do branco,
os, sucessivos ou mistos, isto é, fenômenos do preto e dos cinzas.
onde fisiologicamente há alterações das cores Começamos a entender amplamente o
na presença de outras (Pedrosa, 1982). No fenômeno da cor inexistente com a teoria da
caso do segundo evento de cor, será eviden- visão cromática de Thomas Young, que
ciada a diversidade de cinzas que aparecem descobriu três receptores fisiológicos para o
devido aos contrastes entre o preto, o branco azul, o vermelho e o verde, que quando são
e os outros cinzas fixados na imagem. estimulados ao mesmo tempo provocam a
No segundo evento de cor chamamos as sensação do branco e quando não são esti-
cores preto, branco e cinzas - fixadas fisico- mulados, provocam a sensação do preto
quimicamente na imagem - cores indutoras, (Pedrosa, 1982). Sabemos hoje que estes
e a diversidade dos cinzas que aparecem receptores são chamados cones e que nunca
devido aos contrastes entre as cores indutoras, podem ser estimulados totalmente e ao mesmo
cores induzidas (Bouma, 1971). tempo e nem ser totalmente não estimulados
Segundo a definição de mutação cromá- ao mesmo tempo, pois não há no mundo físico
tica (Pedrosa, 1982), saturando-se a retina brancos e pretos que consigam tal estimulação
178 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
perfeita. Por isso, sempre há resíduos de cor objetos e significados cromáticos, assimila-
neste processo e é extremamente difícil, senão dos como particularidades ou como subje-
impossível, percebermos brancos, pretos ou tividades.
cinzas “perfeitos” no mundo físico real. A cor não pode ser percebida isoladamen-
As imagens fotográficas em p/b são te, de forma desvinculada dos outros parâ-
anteparos perfeitos da cor inexistente e metros perceptivos dos objetos alocados na
conseqüentemente deste terceiro evento de memória (cheiro, tamanho, textura, som,
cor. Plenas de áreas brancas, pretas e cinzas, gosto, etc.). Ela é um elemento apreendido
apresentam uma explosão de cores a partir durante toda a vida de um indivíduo e não
dos resíduos de raios luminosos incidentes, há o caminho de volta. A teoria perceptiva
os quais, por sua vez, provocam reações em de Gibson (1974) explica a percepção como
cadeia, criando ainda mais cores induzidas um composto apreendido, impossibilitando a
por contrastes. percepção das características isoladas dos
objetos. Segundo ele, apreendemos na me-
2. Quando o branco, o preto e os cinzas mória, através da percepção visual, a inter-
são mais do que cores pretação dos objetos que nos rodeiam, sem-
pre num composto de informações integra-
Trataremos aqui de outro momento na das, que são parte do repertório ao mesmo
percepção cromática, onde o branco, o preto tempo individual e coletivo, por ser também
e os cinzas que compõem as cenas, além de dependentes, além disso, de fatores culturais.
serem vistos como cores eles mesmos, tam- Pela teoria perceptiva de Gibson (1974),
bém podem ser vistos como traduções de aprendemos a “ver” os objetos com sua
outras cores. Na imagem fotográfica em p/ respectiva característica cromática, entre
b, as traduções cromáticas são percebidas outras, e por isso fica impossível separá-lo
através do reconhecimento do objeto e da de sua cor. A simples ação física da luz dentro
comparação (em nível inconsciente) da pri- dos olhos pode apenas proporcionar cores,
meira percepção visual com a interpretação mas não os objetos coloridos, que são com-
anterior deste objeto a partir da memória postos de sensações e produtos da capaci-
pessoal. Quando, através da comparação, dade visual e mental chamada percepção.
percebe-se a “falta” da cor, acontece o que A complementação cromática depende da
chamaremos aqui complementação cromática. interação entre a cor e as outras caracterís-
Delimitamos o conceito de complemen- ticas formadoras dos objetos em nossa
tação cromática como o ato perceptivo vi- memória, os chamados significados agrega-
sual individual, subjetivo, parte consciente e dos. Os integrantes do mundo visual, assim
parte inconsciente, de complementar croma- como as cores, as texturas, as formas e bordas
ticamente objetos reconhecidos em quaisquer têm significados que não se separam de suas
imagens fotográficas em p/b. Ele acontece qualidades espaciais concretas, isto é, os
porque no processo de percepção cromática objetos estão agregados a seus atributos.
há a comparação entre os objetos reconhe- No nível da percepção, ao reconhecermos
cidos nos vários tipos de imagens em p/b um objeto, por exemplo, numa imagem
e objetos guardados na memória, a partir do fotográfica em p/b, a falta da característica
vasto conjunto imagético adquirido no ato “cor” é percebida. Embora a cor não esteja
interpretativo de “ver”. Os objetos estão presente fisicamente, a percepção agrega às
alocados na memória juntamente com todos outras características do mesmo objeto seus
os seus parâmetros perceptíveis. Quando a atributos cromáticos. Sendo assim, quando
falta de um deles é detectada (no caso, a cor), reconhecemos um objeto numa imagem
acontece a sua complementação. fotográfica em p/b, este será complementado
O que nos interessa neste trabalho é o cromaticamente, segundo a determinação de
ato da complementação cromática dos objetos um intervalo cromático, a partir da compa-
reconhecidos na imagem em p/b e não a cor ração inconsciente entre objetos.
escolhida (mesmo que inconscientemente) O reconhecimento do objeto e a delimi-
para esta. Sabemos que todos os indivíduos tação de um intervalo de cor correspondente
são diferentes em respeito a correlacionar a ele são elementos obtidos através de “suges-
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 179
tões” que se encontram na própria imagem. chamar objetos fixos certos tipos específicos
Podemos mapear essas sugestões utilizando- de roupas e acessórios, ou ainda os objetos
nos dos parâmetros de análise da cor de construídos cromaticamente pela propagan-
Munsell. De acordo com Munsell (Caivano, da, como as cores agregadas aos produtos
1995), uma cor é constituída por três vari- de grandes marcas. São ainda objetos fixos,
áveis de análise: matiz, valor e croma. Dadas partes do corpo humano, como pele, cabelo,
estas três variáveis de análise, define-se um olhos, sangue, etc. Quando este tipo de objeto
intervalo de cor. Retomando suas definições: é reconhecido numa imagem fotográfica em
Matiz é a característica que diferencia uma p/b, a falta da cor é percebida e o compa-
cor da outra: o azul do amarelo, o azul do ramos inconscientemente à interpretação
vermelho, etc.; Valor é o grau de claridade anterior deste objeto, a partir da memória
ou de obscuridade contido numa cor; Croma pessoal. O matiz sugerido na comparação será
é a qualidade de saturação de cada cor que único e a complementação cromática a partir
indica seu grau de pureza. dele terá variações apenas nos eixos da
As três variáveis de análise de Munsell luminosidade (valor) ou saturação (croma),
estão presentes na própria imagem fotográ- de acordo com o que é sugerido na própria
fica em p/b e, a partir da sua junção, temos imagem.
a indicação de um intervalo cromático de- A paleta para a complementação cromá-
terminado (paleta) para a ocorrência da tica do objeto fixo se dá na junção das
complementação cromática. informações contidas nas variáveis de aná-
A variável matiz é dada pela forma do lise cromática sugeridas na imagem. Para
objeto, sugerida pelos contrastes entre o a definição de cada paleta, são apontados
branco, o preto e os cinzas da imagem. A primeiramente os objetos fixos da imagem
forma determina um tipo específico de objeto, e, posteriormente, as correspondentes vari-
que remete à interpretação a partir da me- áveis de análise cromática de Munsell que
mória e consequentemente ao seu significa- eles sugerem. Identificando estes parâmetros,
do cromático agregado. O matiz está ligado formaliza-se uma paleta para a complemen-
aos objetos na memória de cada indivíduo tação cromática dos objetos fixos.
de forma pessoal e diferenciada.
A qualidade da cor (valor e croma) é dada 2.2 Quinto evento de cor: paleta cénica
pela luminosidade dos cinzas alocados em
cada objeto da imagem, que remetem ao grau O quinto evento de cor fundamenta-se na
de claridade, obscuridade e saturação. complementação cromática de objetos reco-
nhecidos na imagem fotográfica em p/b, com
2.1 Quarto evento de cor: paleta fixa um intervalo cromático finito (paleta), defi-
nido através das variáveis de análise cromá-
Diferenciamos um evento de cor através tica de Munsell, sugeridas pela própria
do tipo de estímulo, do tipo de resposta e imagem. O matiz é dado pelo objeto reco-
a complementação cromática que se forma nhecido na imagem, que no caso da paleta
a partir da junção dos dois anteriores. Es- cênica, chamaremos objeto cênico. Tais
pecificando as variáveis de análise cromática objetos são, por exemplo, céu, mar, folha-
no quarto evento de cor, elas se originam gens, montanhas, nuvens, lagos, rios, cacho-
do reconhecimento de objetos, na imagem, eiras, prédios, monumentos, areia da praia,
que sugerem um matiz único. A paredes, assoalhos, etc.
complementação cromática no âmbito deste Quando o objeto cênico reconhecido na
evento acontecerá dentro do intervalo cro- imagem é uma “folhagem” por exemplo, cujo
mático restrito a um único matiz, variando aspecto formal e a comparação com a in-
porém, apenas na luminosidade (valor) e na terpretação anterior deste objeto, a partir da
saturação (croma). memória pessoal, determinam matizes em
Os objetos fixos são, por exemplo, objetos diferentes tonalidades de verde vizinhas no
institucionais, tais como placas de trânsito, círculo cromático, há a composição de um
semáforos, com os quais temos contato intervalo finito para a sua complementação
exaustivo no cotidiano. Também podemos cromática. Os verdes para uma folhagem
180 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
variam muito em vários aspectos. Os verdes consigo uma paleta de matizes específicas,
da Amazônia são muito diferentes dos ver- guardada na memória juntamente com outras
des da Patagônia, de modo que a percepção características. As variáveis: matiz, valor e
do objeto cênico “folhagem” devolve mati- croma sugeridas na imagem fotográfica em
zes diversos para as diversas culturas. p/b se identificam com as várias tonalidades
Através da localização das três variáveis das paletas representativas de cada época.
de análise cromática no sólido de Munsell,
vemos a formação da paleta para a 2.4. Sétimo evento de cor: paleta move-
complementação cromática do objeto cênico diça
“folhagem”, identificado o valor e o croma
com muita variação, interferindo diretamente A paleta movediça diz respeito ao ato da
na construção da paleta cênica para este percepção cromática a partir do reconheci-
objeto. mento de objetos chamados movediços. Estes
objetos não possuem formas familiares,
2.3 Sexto evento de cor: paleta temporal convencionais e não remetem a algum sig-
nificado cromático guardado na memória. Ao
O objeto que é reconhecido na imagem contrário dos outros eventos, onde o
fotográfica em p/b no sexto evento de cor “disparador” do processo (estímulo) de per-
traz componentes cromáticos temporais agre- cepção cromática é o reconhecimento de um
gados, isto é, a paleta de cores para sua determinado objeto e a comparação com a
complementação cromática é formada a partir imagem guardada anteriormente na memó-
de matizes relacionados à época em que ria, no sétimo evento de cor há o reconhe-
localizamos tal objeto. cimento de um objeto que não possui sig-
Objetos com características cromáticas nificado cromático específico agregado ou
temporais são guardados na memória, jun- ainda não se reconhece um contexto para ele.
tamente com a paleta relacionada à sua época. Haverá então a comparação entre a
Esta paleta é formada perceptivelmente, luminosidade (valor) dada pela imagem e a
através de imagens resgatadas ou forjadas do luminosidade de cada cor alocadas na me-
passado, em filmes, televisão, fotografias, mória.
artes plásticas, cor da moda, maquiagem, etc A paleta movediça é uma espécie de
(Walch & Hope, 1995). “coringa” dos eventos de cor. Todas as vezes
Chamamos o estímulo vindo da imagem que não se consegue encaixar o reconheci-
em p/b no sexto evento de cor de objeto mento de um objeto nas categorias determi-
temporal. Eles apontam para um intervalo nadas para os outros eventos, recorre-se ao
cromático relacionado à paleta de determi- procedimento de complementação cromática
nada época, o que faz o matiz dependente através da comparação entre luminosidades.
da ligação específica a uma característica No sétimo evento de cor, a construção
temporal. São exemplos deste tipo de objeto: da paleta para a complementação cromática
roupas, sapatos, acessórios e maquiagem da do objeto movediço se dará então na asso-
moda, carros, vestimentas de crianças, ciação dos cinzas da imagem, que são, na
eletrodomésticos, talheres, pratos, cafeteiras. verdade, sugestões de luminosidades, com o
O valor, o croma e o matiz estão rela- coeficiente de claridade de cada cor-pigmen-
cionados à paleta da mesma época determi- to. A maior ou menor luminosidade das cores
nada. Sendo assim, a complementação cro- é perceptível pela retina e o coeficiente de
mática no âmbito do sexto evento de cor claridade passa a ser um significado agre-
acontecerá dentro de um intervalo cromático gado. Por isso também estão alocados na
restrito a uma determinada paleta represen- memória juntamente com as cores.
tativa da época pela qual o objeto temporal Numa imagem fotográfica em p/b pode-
esteja ligado. se fazer uma associação de luminosidades
A cor é uma característica marcante de entre a variável de análise cromática “valor”
cada época e, por isso, está guardada na (dada pela imagem) e a luminosidade de cada
memória juntamente com o objeto temporal. cor-pigmento alocada na memória. Essa
O reconhecimento do objeto temporal traz luminosidade corresponde à variável de
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 181
análise cromática de Munsell “valor”. A partir varmos cores diferentes por recíproca influ-
daí, haverá a comparação entre a ência. Mais especificamente, cores comple-
luminosidade dada pelo “valor” sugerido pelo mentares aparecem no entorno da forma que
objeto movediço e a luminosidade das cores guarda a cor pela qual a retina é saturada.
na memória. Desta comparação temos a Este fenômeno acontece também a partir de
segunda e a terceira variáveis de análise cro- estímulo subjetivo. A memória, ao ser
mática, “matiz” e “croma”, possibilitando acionada na construção de paletas para a
assim a formação da paleta para a complementação cromática, estimula a retina
complementação deste objeto movediço. e provoca o fenômeno dos contrastes simul-
tâneos. O oitavo evento de cor é a ocorrência
2.5. Oitavo evento de cor: contraste simul- do fenômeno do contraste simultâneo das
tâneo cores por estímulo subjetivo, a partir dos
objetos reconhecidos e complementados
O oitavo e nono eventos de cor são os cromaticamente nas imagens fotográficas em
efeitos do estímulo fisiológico subjetivo, a p/b.
partir da complementação cromática das
imagens fotográficas em p/b. Este tipo de 3.6. Nono evento de cor: contraste suces-
estímulo é gerado a partir de uma excitação sivo e misto
subjetiva, ou seja, a cor aparece a partir de
processos ocorridos na própria retina ou no O nono evento de cor são os contrastes
cérebro. sucessivos e mistos que ocorrem a partir de
A própria complementação cromática, por uma imagem fotográfica em p/b, onde ocor-
sua vez, pode também ser considerada como reu a formação da paleta para o processo de
uma excitação subjetiva à percepção cromá- complementação cromática do objeto.
tica. O processo de complementar uma Michel-Eugène Chevreul definiu o con-
imagem fotográfica em p/b através do reco- traste sucessivo e misto das cores como sendo
nhecimento de objetos e comparação com as os fenômenos percebidos a partir da satura-
suas respectivas interpretações anteriores é ção dos olhos pela cor de um objeto durante
um tipo de excitação subjetiva à percepção algum tempo e, deslocando-se em seguida
cromática, formando a paleta de cada ima- para um anteparo, no qual aparece então a
gem. Esta paleta é, por sua vez, um tipo de imagem do objeto na sua cor complementar
estímulo fisiológico subjetivo para a ocor- (Pedrosa, 1982).
rência dos contrastes simultâneos, onde Os fenômenos do contraste sucessivo e
fundamentam-se o oitavo e o nono eventos misto acontecem também a partir de estímu-
de cor. O oitavo evento de cor são os lo subjetivo. Como vimos no oitavo evento
contrastes simultâneos que ocorrem numa de cor, a memória, ao ser acionada na
imagem fotográfica em p/b a partir da paleta construção de paletas para a complementação
formada para o processo de complementação cromática, estimula a retina e provoca o
cromática do objeto. fenômeno dos contrastes simultâneos. A partir
Porém, os contrastes simultâneos que daí, onde há o deslocamento do olhar, ocorre
ocorrem neste evento não se dão por estí- o fenômeno do contraste sucessivo. O con-
mulo objetivo, quer dizer, não há a resposta traste misto acontece quando este desvio do
fisiológica da retina em relação a uma sa- olhar se dirige para um anteparo previamen-
turação. No caso do oitavo e nono eventos te colorido.
de cor, os efeitos da saturação da retina O nono evento de cor é a ocorrência dos
também são objetos guardados na memória fenômenos dos contrastes sucessivo e misto
anteriormente, num composto com a cor das cores por estímulo subjetivo, a partir dos
indutora, e aparecem juntamente com a objetos reconhecidos e complementados
complementação cromática do objeto reco- cromaticamente nas imagens fotográficas em
nhecido na imagem. p/b. Este evento depende anteriormente da
Michel-Eugène Chevreul (Pedrosa, 1982) ocorrência do oitavo evento de cor, que por
definiu o contraste simultâneo das cores como sua vez, depende primeiramente da ocorrên-
sendo o fenômeno que se registra ao obser- cia da complementação cromática.
182 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
reveals a far greater mastery of ci- certainly lay in sociological rather than
nema technique than Mr. Flaherty’s aesthetic aims.” (Grierson, 1937:207).
previous photoplay, Nanook of the
North. In the first place, it follows Em entrevista a Ian Aitken, Basil Wright
a better natural outline – that of (1907-1987) – um dos realizadores da Es-
Moana’s daily pursuits, which cola de Grierson - deixa clara a ideia de que
culminate in the tattooing episode, estética e educação são partes interligadas nos
and, in the second, its camera angle, filmes que faziam:
its composition, the design of almost
every scene, are superb. The new “... I don’t quite understand the
panchromatic film used gives tonal distinction you are making between
values, lights and shadings that have aesthetics and didactic films. A film
never been equaled.” (ibid.:26) must be made well in order to tell
a story or express a message, and I
Em 1922, data do filme Nanook, o es- think that the aesthetic and educational
quimó, Flaherty tinha já ido muito para além parts of the documentaries are
da mera descrição de modos de vida ou integrated. Some of the documentary
apresentação de hábitos estranhos, que eram films were more aesthetic than others,
as marcas dos “filmes de viagem”. Ao but I don’t accept the distinction you
contrário destes, Flaherty coloca a ênfase em are trying to make.” (Ian
quem é filmado mostrando que o “Eu” não Aitken,1998:246)
é assim tão diferente do “Outro”, ainda que
esse “Outro” viva num local distante e quase Para Grierson, ao contrário de Flaherty,
inacessível. O “Outro” é apresentado na sua o documentário deve abordar os problemas
condição condição humana, condição que é sociais e económicos e a solução para esses
a mesma do “Eu”. mesmos problemas. Embora admirador de
Ainda a propósito de Moana escreve Flaherty, Grierson questiona os seus filmes
Grierson: por não apresentarem soluções para os pro-
blemas dos povos que filma. Grierson en-
“And if we regard the tatooing as a controu no documentário princípios que lhe
cruel procedure to which the permitiram explorá-lo como instrumento de
Polynesians subject their young men utilidade pública.
– before they may take their place No texto “First principles of documentary”,
beside manhood – let us reflect that a partir de onde se tornou famosa a definição
perhaps it summons a bravery that is de documentário como o “tratamento criativo
healthful for the race.” (ibid.:26) da realidade”4 pode ler-se:
quase no final do filme é tocante a artística (“a man with artistic conscience”)
sobreposição das ondas do mar com as e intenso sentimento poético (“and an intense
pessoas que circulam no Porto de Yarmouth poetic feeling”) são, de algum modo, as
para comprar peixe. Apesar da força das características que Grierson refere como
ondas, o mercado de venda de peixe faz a necessárias para o documentarista, num dos
sua função enviando a mercadoria para o resto seus textos mais citados: “First principles of
do mundo. Uma montagem a vários ritmos documentary” (Grierson, 1932) O documen-
(planos mais longos no início e planos de tarista não deve limitar-se ao registo da vida
menor duração no momento da tempestade; das pessoas, ele é responsável pela diferença
muito em consonância com o ritmo da entre os “filmes de actualidade” (e outras
montagem soviética dos anos 20) e inter- formas que utilizam o registo in loco), e o
títulos5 que informam sobre a pesca em curso filme documentário, este será um filme
salientando os principais momentos desse superior. Os outros filmes são apenas um
trabalho ou pormenores relacionados com a relato de acontecimentos; ao documentário
pesca (por exemplo, após o inter-título 12 (e documentarista) compete ser mais que isso,
- nota de rodapé 4 - surge um plano em que compete-lhe fazer um “tratamento criativo da
a linha da rede balança à superfície da água realidade”, o que em Grierson é o mesmo
serpenteando o seu caminho em direcção ao que construir um filme apresentando deter-
horizonte), não poderão deixar o espectador minado problema e a solução governamental
indiferente. O espectador é guiado pelas para esse mesmo problema. Se necessário,
imagens e, em especial, pelos inter-títulos, esse “tratamento criativo” inclui a re-cons-
desde uma pequena vila até ao resto do trução7 de determinado acontecimento, uma
mundo. O trabalho de uma pequena vila, a vez que estava em causa um ideal maior de
pesca de arenque, é colocada numa posição educação nacional.
de superioridade ficando implícitos os bene- Em Grierson a preocupação estética ia a
fícios de ser produtora e o resto do mundo par da função social e pedagógica dos fil-
necessitar dessa sua produção. mes. A ênfase colocada na instrumentalidade
A partir desse seu filme, Grierson defendeu dos filmes cujas temáticas são os problemas
duplamente o documentário: enquanto produ- sócio-económicos da Grã-Bretanha dos anos
tor e impulsionador do chamado “movimento 30, assenta numa estética em que predomina
documentarista britânico” e através de textos a voz off e, de um ponto de vista narrativo,
em que proclamava as potencialidades do a estrutura do “problem-moment” (cada um
documentário. Com estas duas frentes, Grierson dos problemas socio-económicos é apresen-
criou um conjunto de pressupostos estáveis. tado como apenas um momento de dificul-
Ainda assim, este movimento teve o mérito de dade que será superado pela intervenção
não ter promovido um certo desleixo estético governamental permitindo que a Grã-
para daí reclamar uma maior proximidade com Bretanha regresse ao seu glorioso caminho
a realidade. em direcção ao pleno desenvolvimento).
O conjunto de normas estéticas (no caso, O movimento documentarista britânico é
nos filmes deste movimento o uso da voz um movimento coerente e consistente nas
off ou voice over é um dos recursos suas propostas onde a ideia de documentário
marcantes) tem uma ligação directa com o é inseparável da de género. A teoria de
modo como cada autor entende a função das géneros inclui nas suas definições aspectos
suas obras6. O movimento documentarista temáticos, narrativos e estéticos. O projecto
britânico pretendia registar o presente e não de Grierson não descurou nenhuma dessas
o passado e dirigir-se directamente ao espec- virtudes. A obrigatoriedade em repetir-se é
tador. A Escola de Grierson sentia que a o garante da sobrevivência de um género.
história estava a acontecer “aqui e agora” e E foi neste ponto que Grierson mais incidiu
os seus filmes faziam parte da situação social, o seu trabalho, promovendo a produção de
económica, cultural e política da época. documentários. E essa produção não podia
Por outro lado, as características que ser feita sem a definição do género que coloca
Grierson exaltou em Flaherty, no seu texto cineastas e espectadores num território di-
“Flaherty’s Poetic’Moana”: a consciência ferente do restante cinema.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 189
do documentário, tendo em conta que este kinok, para usar o termo de Vertov) devia
é tão cinema como a ficção e tendo, também, ter presente a estrutura de todo o filme sempre
em conta que o espectador reserva-se o direito que registava um plano; por outro lado, a
de lhe exigir um compromisso com a rea- relação entre os planos a diversos níveis é
lidade, então poderemos pensar na possibi- absolutamente necessária para que a realida-
lidade de, a partir do filme documentário, de seja revelada. Em O homem da câmara
ser possível uma teoria realista para o ci- de filmar, inspirado no Construtivismo que
nema que seja capaz de dar conta do uni- não separa forma de conteúdo (a forma é
verso fílmico. A primeira ou uma das pri- também conteúdo), a autenticidade ontológica
meiras tarefas para verificar essa hipótese será de cada plano não é comprometida. Como
discutir aprofundadamente e com rigor as consequência, os filmes causam impacto no
ligações entre as teorias realistas do cinema espectador, afectando a percepção convenci-
de Kracauer e Bazin e o documentário. Assim, onal que têm do mundo.16
o tema em questão é a relação mundo-ci- O cinema permite-nos aceder a aspectos
nema. da realidade aos quais não teríamos acesso
O filme que imediatamente chama a sem a câmara de filmar. Um dos últimos
atenção a respeito desta questão e que en- planos de O homem da câmara de filmar
quanto espectadores nos interroga sobre as mostra uma multidão e acima dessa multidão
relações complexas entre o cinema e o nosso encontram-se duas câmaras de filmar, uma
mundo é O homem da câmara de filmar delas com o operador de câmara. Este plano
(1929) de Dziga Vertov: é exemplar por tornar clara a ideia de que
a câmara de filmar faz parte do nosso mundo,
“Man with the movie camera is the mas ao mesmo tempo tem a capacidade de
only documentary film I know that o transcender. Permite-nos ver mais e me-
is an explanation of a theory.” (Jay lhor.
Ruby, 2000:xi) Há uma realidade fílmica e uma reali-
dade mais real, se assim a podemos chamar.
Para Vertov não só o conteúdo, mas a O cinema não tem a capacidade de nos dar
organização e o ritmo das imagens projectadas a ver o nosso mundo “tal qual”, mas de um
no ecrã podem constituir uma genuína visão modo que só o cinema, com a sua capaci-
cinematográfica da realidade15; ou seja, o dade de enquadrar, compor, interligar, o pode
mundo mostrado no ecrã será mais que um fazer.
mero documento fotográfico. Petric diz que Duas alternativas: 1) todo o filme é um
este filme representa uma brilhante transpo- documentário – todo e qualquer filme do-
sição cinematográfica dos “factos da vida” cumenta algo; 2) todo o filme é uma ficção
(“life facts”) por dar prioridade à por ser uma representação e não a própria
expressividade estética sobre o registo foto- realidade, por representar ideias e por todos
gráfico da realidade; ainda que tenha carac- os filmes partilharem dos mesmos recursos
terísticas formais evidentes, cada plano per cinematográficos.
se é visto como “a vida tal qual” (“life-as- Uma posição mais equilibrada e (talvez)
it-is”). Para Vertov, o objectivo mais impor- mais ajustada seria considerar que todo o
tante do filme documentário seria unir o filme é, ao mesmo tempo, ficção e
autêntico com o abstracto. (Cf. Petric, documentário. Mas, isso implicaria ter bem
1996:271/2). Ainda para Vertov, o cineasta claras as definições de ficção e de
tem como função revelar a verdadeira rea- documentário, o que não é possível.
lidade. Essa realidade encontra-se nos planos Definimos assim a nossa posição: ficção
e só através de um uso criativo da linguagem e documentário são formas de documen-
cinematográfica, mesmo no momento de tarismo, um filme não é um documentário,
registar, é possível revelar a verdadeira mas possui um carácter documental. Em
realidade. Por um lado, Vertov não pretendia alguns filmes esse grau de “carácter docu-
interferir na realidade a registar (de prefe- mental” é menos problemáticos que noutros.
rência as pessoas não deviam aperceber-se Deixamos o termo documentário para os
que estavam a ser filmadas) e o cineasta (o movimentos fílmicos que assumem que este
192 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
mesmo termo é o ideal para designá-los, há a partir do filme documentário, dando conta
que compreender o porquê e de que modos da sua natureza cinematográfica e das va-
o utilizam. O carácter documental que en- riações que os espectadores experimentam ao
tendemos que todos os filmes possuem re- visionar filmes como En construcción (2000),
sulta da nossa certeza de que todo o filme do espanhol José Luís Guerín ou, no caso
é uma construção de pessoas cultural, social português, filmes paradigmáticos como Jai-
e politicamente situadas. Por isso, o me (1974) de António Reis e Trás-os-Montes
documentário não ocupa um lugar específico (1976) de António Reis e Margarida Cordei-
dentro do cinema. Está presente, em diferen- ro, ou ainda o filme Histórias selvagens
tes graus, em todo o cinema. (1978) de António Campos.
Um termo que já utilizámos, o de Há filmes que não são problemáticos
“documentarismo”, realça as variações de quanto a designarem-se de documentários,
maior ou menor proximidade, entre o que mas outros, impelem-nos a pensá-los como
vemos no cinema e no mundo. Enquanto mais que um género, são um projecto de
teoria, o documentarismo só poderá afirmar- cinema. O projecto de cinema dos filmes será
se se for capaz de compreender o cinema documentar algo, são modos de ser no mundo.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 193
achieve the ordinary virtues of an art. Here we quando, por qualquer motivo, a câmara de filmar
pass from the plain (or fancy) descriptions of não o captou no momento em que ocorreu.
8
natural material, to arrangements, rearrangements, Estudos sobre géneros: E. Buscombe, “The
and creative shapings of it.”(Grierson, 1932:146). ideia of genre in the american cinema” in Screen,
5 vol. 11, nº2, 1970; C. MacArthur, Underworld
Por não serem demasiado longos, a seguir
transcrevemos todos os inter-títulos do filme USA, London, Secker and Warburg, 1972; Robert
Drifters. Apenas uma nota, entre os dois primei- Altman, Film/Genre, London, BFI, 1999; Barry
ros inter-títulos não existem imagens a separá-los. K. Grant (Ed.), Film genre, Theory and Criticism,
1) “The herring fishing has changed. Its story was Metuchen, Scarecrow Press, 1977; Barry K. Grant
once an idyll of brown sails and village harbours (Ed.), Film genre reader, Austin, Texas, University
– its story is now an epic of steam and steel.”; of Texas University Press, 1896; idem, Film genre
2) “Fishermen still have their houses in the old reader II, 1995; T. Grodal, Moving pictures: a
villages – But they go for each season to the labour new theory of genres, feelings and cognition,
of a modern industry.”; 3) “Out past the head land Oxford, Clarendon Press, 1997; T. Schatz,
– to open water and the North sea”; 4) “The log- Hollywood genres, NY, Random House, 1981;
line tells the miles”; 5) “Far to seaward swim Pam Cook, “Genre” in The cinema book, London,
the herring shoals.”; 6) “The skipper keeps a look- BFI, 1985, Steve Neale, Genre, London, BFI,
out for“‘appearances’.”; 7) “While down below” 1980; idem, “Questions of genre” in Screen vol.31,
(nota: planos de preparação de comida na cave nº1, 1990.
9
do barco); 8) “Forty miles by the log and dark O termo “género” adequa-se, mais facilmen-
patches of water mark the shoals below”; 9) “There te, ao cinema clássico. A indústria cinematográ-
are two miles of nets to cast – and work goes’on fica para ser rentável, necessita de dividir clara-
into evening.”;10) “Then an extra float for the mente as suas fases e especificar tarefas de
end of the line”;11) “And the mizzen is set for produção, distribuição e exibição. Cada uma delas
the night”; 12) “With the ship made fast to the permite a rentabilidade de um conjunto de filmes,
end of the line the nets go drifting through the desde que os mesmos obedeçam a um conjunto
darkness.”; 13) “Dog fish and conger – the de “leis” temáticas e formais. Economizar meios
destroyers of the deep – gather for the killing.”; e tornar a comunicação eficaz pelo recurso aos
14) “One man keeps the watch.”; 15) “In and out clichés são as ideias subjacentes a este modo de
work the dog fish.”; 16) “Dawn breaks with heavy fazer cinema. A repetição dessas “leis” permite
swell over land and sea.” 17) “Out in the waste estabelecer entre a produção e a recepção laços
of waters the men are called to the labour of seguros.
10
hauling.”; 18) “The storm gathers the labour “Documentary is a clumsy description, but
becomes heavier still.”; 19) “Despite the winch’s let it stand. (…) From shimmmying exoticism it
help every foot has to be fought for.”; 20) “More has gone on to include dramatic films like Moana,
steam for the straining winch.”21) “A hundred and Earth and Turksib. And in time it will include
fifty crans – a thousand herring to the cran. After other kinds as different in form and intention from
eight hours’ labour the hauling is done.”; 22) “The Moana, as Moana was from Voyage au
rolling ship turns her head for harbour.” 23) “The Congo.”(Grierson, 1932-34, p.145)
11
full speed through a head-sea for the earliest Em geral, o contributo de Grierson é visto
possible market.”; 24) “One sea in the hold and como uma página negra na história do filme
documentário. (ver, por exemplo, o livro de Brian
a catch is ruined”; 25) “On the quayside the
Winston, 1995) Se Grierson deixou uma pesada
auctioneers’s bell calls the buyers together.”; 26)
herança ao documentário por imediatamente o
“In quick succession the ships ride through”.; 27)
remeter para a confusão entre documentário e
“The heaviest laden come last of all.”;28) “And
reportagem, lançando o documentário para a
the sound of the sea and the people of the sea
televisão e não para as salas de cinema, propostas
are lost in the chatter and chaffer of a market
posteriores, como os movimentos de cinema
for the world.”; 29) “So to the ends of the earth directo, também o colocam numa posição pouco
goes the harvest of the sea.” confortável. O cinema directo prometeu o que é
6
“Não é possível construir um sistema es- impossível cumprir: “apresentar a realidade tal
tético num vazio. No mínimo, um conjunto de qual”. Entendemos que esta abordagem remete
normas estéticas tem uma relação qualquer com para o voyeurismo. O espectador é estimulado a
a forma como o seu autor concebe o seu mundo, olhar o Outro (apresentado no ecrã) como um
a sua vida social e o papel desempenhado pelo agente de acções estranhas que dificilmente
cinema neste contexto mais alargado.” (Andrew compreende. Sem envolvimento não há compre-
Tudor, 1973:66). ensão. A observação que tem como base: “façam
7
Re-construção é um termo utilizado para de conta que não estamos aqui a filmar” é
designar o registo de um acontecimento em estúdio meramente voyeurista.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 195
12
Registo em vídeo de Rodney King a ser Lenine (1934), que representa mais a esperança
violentamente espancado pela polícia de Los do povo por uma vida melhor que Lenine en-
Angeles, Março de 1991. quanto homem ou político. Este filme poético
13
Embora não de modo tão explicíto esta ia contra o Realismo Socialista que defendia a
questão já foi por nós abordada no texto: “O subordinação da forma ao conteúdo. (Cf. Petric,
documentarismo do cinema”. O livro de Hélio 1996).
16
Godoy ajudou-nos a clarificá-la. Da nossa parte “...Vertov strove to observe both the
interessa-nos trabalhar as teorias especificamente ‘Film-Truth’ (the ontological authenticity of
cinematográficas. the shot) and the ‘Film-Eye’ (the montage
14
A questão da definição do filme structure of the associated shots). By
documentário e sua identidade já foi por nós accomplishing this, he made The man with the
trabalhada em O filme documentário. História, movie camera able to function on both levels,
Identidade, Tecnologia, Edições Cosmos, 1999. presenting reality ‘as it is’, and generating,
15
Percebe-se o porquê da constestação aos through the kinesthesia, a new vision of the
filmes de Vertov, em especial Três canções para world.” (Petric, 1996:293).
196 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 197
A história do cinema conta que o primei- prima para esses “shows de exotismo”, a tal
ro “filme” antropológico foi realizado antes ponto que nos últimos anos do século XIX
mesmo de o cinematógrafo dos irmãos a profusão de “atualidades” Lumière retra-
Lumière fazer sua primeira projeção pública. tando a vida e os costumes dos povos das
Com efeito, tal “filmagem” ocorreu quando, antigas colônias francesas era tamanha que
na primavera de 1895, Félix-Louis Regnault deu origem a um gênero chamado de exotica.
se serviu de uma câmera cronofotográfica de Tais produções estão na raiz de um outro
E. J. Marey e registrou uma mulher wolof gênero que mais tarde seria denominado de
fabricando objetos em argila na Exposition “documentário”.
Ethnographique de l’Afrique Occidentale em No caso de Edison estava aberta, com as
Paris. Mas, assim como a História reserva duas fitas citadas4, uma vertente bastante
a qualquer evento do passado versões dife- prolífica do filme de não-ficção e que viria
rentes segundo o ponto de vista daquele que a ser aprimorada em algumas de suas rea-
o reconstitui, alguns atribuem a T.A. Edison lizações seguintes: a exploração dos aspectos
o privilégio de ter registrado as primeiras exóticos e pouco familiares de culturas não
imagens em movimento de cunho antropo- ocidentais e das imagens mais mórbidas e
lógico. Trata-se de Indian war council e Sioux mais salazes de qualquer cultura, mesmo a
ghost dance, fitas kinetoscópicas realizadas ocidental. Foi nesse espírito que, em 1901
em 1894, logo, um ano antes da experiência ele realizou Execution of Czolgosz with
de Regnault. Na verdade, tais imagens, que Panorama of Auburn Prison (1901) onde
constituem os primeiros vestígios animados cenas representadas foram misturadas com
dos índios Sioux, foram gravadas em estú- cenas reais, e, em 1903 An execution by
dio, mais precisamente na Black Maria.2 hanging e Electrocuting an elephant, mos-
Trata-se, portanto, de uma reconstituição em trando cenas reais de situações em que a
que os sujeitos observados representam seu morte era a vedete.
próprio papel. Para tanto foi construído um Esses filmes atraíam enormemente o
cenário reproduzindo, de maneira bastante público que não costumava questionar a
tosca, o habitat natural dos Sioux. veracidade daquilo que lhe era mostrado.
Temos então, nas duas experiências ra- Segundo Erick Barnow5,
pidamente aqui expostas, a de Marey e a de
Edison, os dois elementos ou, melhor, os dois “Num período em que as atualidades
procedimentos que vão caracterizar a cons- da semana foram durante muito tem-
trução de um filme documentário: o registro po ilustradas com gravuras em ma-
do real “ao vivo”, e a reconstituição desse deira anunciando ‘a partir de imagens
real de maneira assumida ou dissimulada. No registradas in situ’, não era muito pro-
primeiro caso temos que, imediatamente após vável que houvesse preocupação com
o registro de Marey e a quase simultânea relação ao que realmente significava
apresentação do cinematógrafo ao grande ‘reconstituição’. O público estava
público, os cinegrafistas Lumière esquadri- acostumado que as imagens de notí-
nharam os quatro cantos do mundo com suas cias tivessem uma incerta e remota
câmeras de tal maneira que, na virada do ligação com os acontecimentos e não
século, a maioria dos povos, sobretudo pensava muito a respeito de quão
aqueles sob dominação das potências euro- verdadeira era essa ligação”.
péias, havia sido filmada.3 A África foi, desde Reconstituições e fraudes faziam um
sempre, a grande fornecedora de matéria incrível sucesso. Memoráveis sequên-
198 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Não é difícil perceber que, para Leroi- país não identificado. Mondo Cane 2 vai mais
Gourhan, o caráter etnológico de um filme longe que seu predecessor e acrescenta à
está mais na utilização que dele vai ser feita mostração incessante de animais sendo
que nos propósitos que animaram seu rea- mortos, a imolação de um monge budista que
lizador. Excetuando-se o filme de pesquisa se deixar queimar em sinal de protesto.
que tem como objetivo intrínseco o registro Segundo Vivian Sobchack8 trata-se, na ver-
científico, podemos, a rigor, considerar qual- dade, de uma bem versosímil reconstrução
quer filme como potencialmente etnológico, da real morte do mártir Quang Duc, ocorrida
pois praticamente todos, de alguma maneira, em 1963. Ainda que encenada, a sequência
podem enquadrar-se naquela categoria que ele é considerada a primeira morte de um in-
define como filme de ambiente. divíduo nos documentários de exploração,
Mas, o que nos interessa aqui é a tendo sido difundida na época como um
explicitação, a partir de uma das primeiras genuíno espetáculo de morte. O que em nada
classificações dos filmes sobre o homem, feita invalida, no sentido de que, em sua repre-
por um antropólogo, das relações ambíguas sentação documentária, essa morte é
do filme de viagem, do “filme de exotismo” vivenciada aparentemente como uma visua-
com o filme antropológico. E, como vimos, lização do real.
tais relações fincam suas raízes na origem Em 1966 Jacopetti e Prosperi avançam
mesma do cinema. mais um pouco na exibição de violência e
da crueldade com Africa Addio. Desta vez
Do “exploitation” ao antropológico a África é a única estrela a brilhar diante
das objetivas da dupla de “documentaristas”.
Conforme expusemos no início desta O filme se queria um testemunho das trans-
apresentação, o flerte do cinema com o formações por que passava o continente
bizarro e o exótico já está indiscutivelmente africano no início dos anos sessenta. Dentre
presente nos filmes de Edison e dos Irmãos essas, o processo de libertação do Quênia das
Lumière. Essas experiências são os ances- amarras do colonialismo britânico e os es-
trais de toda uma gama de documentários que tágios finais do terrorismo Mau-Mau, a
ficou conhecida pelo epíteto de “exploitation” sangrenta guerra civil no Congo, o genocídio
ou – termo ainda mais sugestivo –– dos Watusi em Ruanda e a revolta contra os
“shockumentaries”. Dentre esses, a linhagem portugueses em Angola. Apesar de afirmar
de maior sucesso e o verdadeiro ícone do que correu risco de vida e que sua entrada
gênero é, sem sombra de dúvida a série no continente africano tinha como único
Mondo Cane, cuja primeira semente germina objetivo uma expedição fílmica, a dupla
em 1962. Seu sucesso foi tamanho que criou chegou a ser processada, acusada de ter
um epíteto com o qual foram identificadas encorajado morte e fuzilamentos – visto com
todas as suas emulações: “Filmes Mondo”. toda sua crueza no filme – por mercenários.
Dirigido por Gualtiero Jacopeti e Franco Isso nos leva a duvidar da veracidade dos
Prosperi, Mondo Cane é construído na forma fatos apresentados e as circunstâncias em que
de um longo relato de viagem em que os foram filmados. Além do fuzilamento, são
costumes mais bizarros, mais distantes dos incontáveis as sequências de morte de ani-
padrões ocidentais são mostrados sem mais. Desta vez elefantes, hipopótamos,
qualquer tipo de pudor. No primeiro filme antílopes são sacrificados aparentemente
da série a África é, ainda e ainda, o cenário apenas para o prazer de seus algozes.
das maiores atrocidades cometidas contra ani- A estrutura narrativa desses filmes se
mais. Porcos são mortos a pauladas sem aproxima daquela do documentário clássico.
qualquer razão aparente, hipopótamos rece- A sucessão de imagens vai sendo “costura-
bem dezenas e dezenas de lanças atiradas de da” por uma voz fora de campo que interliga
uma pequena distância; mas a Ásia também episódios muitas vezes sem qualquer cone-
tem a oferecer seu quinhão de barbárie. É xão entre si. Essa voz over vai expondo e
chocante a sequência em que, ao sinal de questionando, dentro de uma perspectiva
uma salva de tiros, vacas são decapitadas com ideológica nitidamente reacionária e
um só golpe por um soldado zeloso de um etnocêntrica, uma variedade de eventos
200 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
exóticos e/ou chocantes filmados ao redor do Tomemos como exemplo The Hunters,
mundo. Cria-se uma espécie de relato de realizado em 1958 por John Marshall. O filme
viagem sensacionalista no qual o motivo se propõe mostrar as aventuras de um grupo
principal é enfatizar um comportamento de caçadores bushmen do deserto Kalahari
cultural não familiar ao espectador, eviden- em uma caçada. Segundo John Collier Jr.11,
ciando as diferenças, buscando sempre ul-
trapassar os limites que levam do exótico ao “É de domínio público a querela entre
visualmente insuportável. Podemos, assim, Marshall e Robert Gardner, montador
considerar os filmes mondos como um braço do filme, a respeito do formato que
dos documentários e um cruzamento destes este último imprimiu à montagem
com o show de variedades, por apelarem ao final concedendo demasiada importân-
fascínio pelo incomum inerente ao ser hu- cia a episódios que pudessem chocar
mano.9 a sensibilidade ocidental para efeitos
Assim como os primeiros filmes de dramáticos. Cita, como exemplo, a
Edison e dos irmãos Lumière guardavam cena em que o caçador chefe encon-
similitudes, tanto na sua fatura quanto nos tra um arbusto com ninhos cheios de
seus objetivos, com os documentários antro- filhotes e começa a destruir os ninhos
pológicos, o mesmo se pode dizer da relação e a matar os filhotes. A voz over
destes últimos com documentários realizados explica que ele vai levar os filhotes
para o grande público. Quem afirma isso é para casa e fazer uma sopa para seus
Jean Rouch em seu artigo La caméra et les filhos. Trata-se visualmente de uma
hommes.10 Para esse pioneiro do estudo do longa cena sem qualquer valor
homem através das imagens animadas etnográfico claro, mas ela cria um
choque cultural que pode obscurecer
“a maioria dos filmes antropológicos os olhos ocidentais para outras sen-
realizados nos últimos anos, se apre- sibilidades e refinamentos desse abo-
senta sempre sob a forma de um pro- rígenes caçadores.
duto de difusão normal: créditos, música
de acompanhamento, montagem sofis- O abate da girafa no final do filme não
ticada, comentário tipo grande público, deixa de lembrar algumas cenas de Mondo
duração, etc. Na maior parte das vezes Cane ou de Africa Addio. Sob o efeito do
consegue-se com isso um produto hí- veneno que lhe fora inoculado através de uma
brido que não satisfaz nem ao rigor ci- flechada no dia anterior, o enorme animal,
entífico nem à arte cinematográfica. (...) já enfraquecido, deixa que os caçadores se
O resultado é um aumento considerável aproximem e comecem a desferir mais
do custo de produção desses filmes que flechadas sobre seu imenso corpo. Seus
torna ainda mais amarga a ausência movimentos ao receber cada golpe deixam
quase total de sua veiculação, sobretu- clara sua incapacidade de reagir aos objetos
do quando o mercado cinematográfico que lhe traspassam a pele. Por fim, já sem
permanece bastante aberto a um certo forças, ela cai. Começa então a retirada da
tipo de documentário “sensacionalista” pele, o lento esquartejamento... Isolada do
do estilo Mondo cane. resto do filme essa seqüência poderia fazer
parte de um filme mondo.
Existiriam portanto, segundo Rouch, três The Hunters é um bom exemplo daquilo
tipos de documentários voltados para a que J. Rouch chama de “produto híbrido”.
observação dos homens e de suas peripécias: Fica evidenciada na montagem de R. Gardner
a) o documentário grande público, b) o sua sucumbência à tentação de ressaltar o
documentário sensacionalista ou de “explo- valor estético do filme em detrimento de seu
ração” e, c) o documentário de cunho cien- valor científico.
tífico. O que queremos demonstrar aqui é que, O mesmo Robert Gardner realizou, em
em boa parte dos grandes clássicos do filme 1963, um outro clássico do filme antropo-
antropológico encontramos uma conjunção lógico, Dead Birds. Filmado na Nova Guiné,
desse três estilos. esse filme retrata o dia-a-dia da vida dos Dani
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 201
“Eles (os filmes antropológicos) são exóticos, mas deve ser reiterado que
orientados para a pesquisa autêntica, estas epopéias culturais têm
esta deve ser sua mais importante freqüentemente pouco valor na sala
característica. Podemos definir filme de aula”.
etnográfico a partir dessa descrição,
porque ela separa claramente registros Será que The Hunters ou Dead Birds
culturais de narrativas dramáticas ou preenchem esses requisitos? Não estamos
artísticas. Filmes etnográficos popu- tão seguros! E, pelo que podemos deduzir
lares realizados com todos os refina- de tudo que precede, a fronteira que os separa
mentos da indústria tendem ao entre- dos seus congêneres menos credenciados aca-
tenimento da audiência sobre povos demicamente está bastante desfocada.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 203
qu’il est arrivé depuis peu en cette do discurso realista e dende autores do
ville un animal nommé Rhinocéros. período fundacional, tal e como avantamos
Il fut pris en Afrique dans la province ao inicio do texto.
de la Bénoué en 1741 par un capitaine Porque o documental fotográfico e cine-
marinier, lequel capitaine le fut matográfico, máis aló de ser catalogado -
transporter de Douala par mer en dende a visión dominante – como esa imaxe
Hollande. (...) Ce monstre este de do pobre e para pobres na que aletexa a fin
couleur musc. Il a une corne placée da Modernidade e do Humanismo laico que
sur le nez, laquelle corne lui sert à se desenvolvera dende o Renacemento, tira
se défendre. Il court avec une légèreté do principio reprodutivo un lugar de seu na
étonnante. Il sait nager...2 práctica das Luces a propósito do
coñecemento de nós mesmos, e porque
Poida que calquera de nós, habitante formou parte da posta en imaxe de todo un
dunha das cidades europeas de referencia século, o vinte, abrindo a nosa intelixencia
meiado o setecentos e a partires da descrición para a alteridade e a igualdade, adoito é
exhaustiva dos pasquíns que nos convocan considerado un activo político. E abofé que
para o xamais visto, pasaramos recoñecer o foi aló cando o sorriso a cámara aínda era
unha forma novedosa no noso entorno á que un material pro-fílmico.
se lle apón o nome de Rinoceronte. E deste Na súa Histoire(s) du Cinéma o Jean-Luc
modo entre outros modos, entrementres a Godard vai repeter unha vez tras doutra
mostra pública se vai instalando na cultura ¿herdanza da fotografía ?, si ; ¿herdanza da
cotiá, ímonos preparando para mudar a crenza fotografía ?, si ; ¿herdanza da fotografía ?, si ;
pola proba visíbel e palpábel. Até que a proba unha sobreafirmación que nos advirte dunha
chega a ser reproducíbel e cédenos o paso creba, na práctica e na cultura, entre cine
para que fixemos, harmonicemos, e foto, entre imaxes que se foron isolando
organicemos o real polo medio de unha da outra como signo, como arte, como
procedementos tecnográficos, con obra, como expresión e como comunicación.
procedementos que soerguen o valor da súa Porque ao igual que os pares imaxinario-
aparencia deica situala na categoría de “ver- realidade ou beleza e verdade, cine e
dade” e ate facernos confundir o Rinoceron- fotografía formaron parte do mesmo territorio
te coa foto en calidade de duplo do Rino- de fronteira, o da imaxe analóxica que iden-
ceronte e coa foto en movemento como a tificamos a traverso da cámara; foto e ci-
máis perfecta representación da súa lizgaira nema configuraron unha pasaxe certa que
carreira. entrelaza a técnica co real e mais co autoral;
E se dende o anuncio oral da chegada cine e foto puxeron en relación un obxecto
do xamais visto fómonos achegando á visi- novo, a súa intervención en non poucas
bilidade, e se coa ilusión de movemento, co mudanzas culturais e un suxeito encol do que
enxenio ao servizo de agachar os trucos para se incorpora o tempo e o paso do tempo;
conseguir un efecto coma de verdade nos foto e cine fabricaron o duplo e a súa
fomos situando – en canto a terra pasaba percepción como construción; cine e foto
varias veces – na época do audiovisual, a foron un resultado e un operador da Moder-
comén dos noventa, por razóns tecnolóxicas nidade e do seu canto á transparencia, a ollar.
tanto coma ideolóxicas entramos – poñamos Existen, tamén, dúas figuras que
que coa Primeira Guerra do Golfo –, no manteñen na súa man en vango a memoria
audiovirtual. Ao igual ca o Rinoceronte, a da terra que pasa: a persoa que olla, a
foto e o filme deveñen arqueoloxía e canda espectadora da foto ou do cine do real e a
foto e filme devén arqueoloxía o real. Un que se mantén no fóra de campo para escoller
real que ía ficando á marxe das imaxes que o que vai entrar en campo. Dende aquela
ateigaban as vías de circulación, cando non exhibición de apenas 52 segundos que apre-
esvaíndo tras as convencións do estilo do- senta a empresa familiar Lumière para o
cumental por mor de colaborar na construción público que acude ao Grande Café sabemos
de falsos. Por iso o noso interese en visitar dun “cinema á maneira fotográfica”, tal e
a foto e o cinema documental como parte como o adxetivou Henri Langlois, que entra
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 207
no século coa angueira de definir regras de was the fashion in the film as in the
seu a partires da súa diferencia constitutiva: other arts.
a máquina. Asi, as relacións foto-cinema, que
se manifestan nas primeiras décadas do vinte A mostra na que imos pescudar a
en propostas como a candid camera e en materialización da época que vimos de
autores tan de culto coma Paul Strand ou Jean caracterizar e a súa actualización na posguerra
Vigo, en fendas como a fotomontaxe e en énos próxima por cultura e por pertenza. A
creadores como Rodchenko ou Dziga Vertov, maior abondamento, os estudosos non só
en experiencias como a Nova Obxectividade consideran a Carlos Velo o ‘pai do
e en dinamizadores como Franz Roh ou, documentalismo español’ (Romá Gubern) se
finalmente, na especificidade do non quen fixo o primeiro documental
documentario social como ámeto das polí- galeguista, Galicia-Finis Terrae, no 1936.
ticas públicas progresistas, na Europa da Ollar para o exterior sabéndose, ao tem-
Fronte Popular ou na norteamerica reformis- po, parte dese exterior constitúe a cerna do
ta, á par da actitude autoral a prol da iden- cinematógrafo como arte de masas e como
tidade co seu tempo coma o tempo da cultura activo na construción da cidadanía. O
industrial, da teima en aprofundar na capa- cinematógrafo como cultura republicana e
cidade expresiva do medium, da cinefilia como inclusión na tradición patrimonial das
como misión que conduz a animar cineclubes, sociedades devén unha angueira para aquela
editar, discutir e axitar, a época dá paso ás época na que un galego de Cartelle, no agro
teorías e canda elas ás posicións que parten do sul ourensán, devalando cara a raia, devén
do “carácter e ascensión dunha nova arte”, o grande animador do documental no Estado
o filme, para elaborar un modo de pensar español. O primeiro encárrego, dende o
o cinema en canto produto para as masas, Ministerio de Agricultura, La ciudad y el
para un público en presente, un público que campo, no 1934.
se identifica co cine e que deberá ser edu- Producto da segunda república española,4
cado para ver cine. É a posición de Bela estudante de biolóxicas, activista no cine-
Balázs.3 clube da Federación Universitaria Escolar,
Teoría en desenvolvemento entrementres FUE, o seu perfil vai parello ao de outros
observa e avalía o seu obxecto, Balázs tenta autores que deciden que o cinema expresa
localizar aquelas constantes do que el pró- un modo de creación diferente e
prio alcumara de nova arte arredando o que contemporáneo no que coinciden o disposi-
chama “teatro filmado” ou o simples rexistro tivo, o motivo, o ponto de vista e a posta
de eventos das posibilidades técnicas de en relación da obra final, da “pantalla”, co
fotografar esceas dende diferentes ángulos e público. Da imaxe cun espectador xeral.
escalas, incorporando o traballo expresivo do O real observábel, tanto na ciencia como
cineasta en que se fai visíbel no intre no que nas artes, é o seu territorio de escolla, o
se proxecta para o espectador e mete dentro primeiro chanzo do acto de intervención que
do filme o espectador. Nun dos seus epígrafes dende a súa formación sistémica aplicará a
Bela Balázs fala da realidade no canto da esculcar – fotograma a fotograma – o filme
verdade en el reférese a algo tan que o conduz para a realización: Acorazado
inequívocamente cinematográfico coma o Potemkin. No seu cuarto de estudante Carlos
Close up, apóndolle non só a súa incidencia Velo repasa unha e outra vez a película-
no modo de actuar, simplificándoo, se non insígnia dunha nova cinematografía para
no gusto do público que comeza a preferir descubrir o misterio do seu ritmo, do modo
o obxectivo, as faces e as voces sobrias, a no que os materiais adequiren sentido, a
xente da rúa entroques de actores estratexia Eisenstein amplando as
profesionais: posibilidades de linguaxe do medium mentres
a súa orixe cultural e social o conducen a
After the first world war and the Flaherty ou a Dovjenko coma os seus au-
hysterical emotional fantasies of tores-modelo. Fábula, cámara, montaxe, re-
expressionism, a “documentary”, dry, alismo, é a bagaxe que leva canda sí cara
anti-romantic and anti-emotional style a escolla do social coma o nó organizador
208 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
dos seus filmes na República española (1931- a voz é unha sorte de refrexo condicioado e
1936) e será no marco da mostra realizada automático que non se diferencia da pulsión
en París en solidariedade coa República, que a imaxe vai trasladando tal unha cadea de
cando o público que contempla o Gernika montaxe, e na banda sonora música culta de
acceda á exhibición única dun filme, Galicia- autor local – Sainz de La Maza – e estilo
Finis Terrae, do que anos despois apenas se atemporal: Shumann. No paso que segue dá
recuperarán os poucos minutos que funcionan o chouto para o cine puro, para a abstracción
a xeito de compendio da andaina fundacional sen terra na que fincar, para Infinitos, 1935,
de Carlos Velo. – película da que non se ten topado rasto
Cineasta de vocación didáctica, os seus material – no que a pegada vertoviana non está
filmes acompañan nas sás a proxección de no tema se nón no modo de utilización do
historias populares como Morena Clara, de dispositivo para facer un percurso cara o máis
Florián Rey, mentres a súa cabeza ignoto, as cosmogonías, multiplicando na
construtivista e o seu corazón neorrealista música de Halfter, o seu compositor de cabe-
valeránlle para utilizar os medios a bordo en ceira – na República e tamén no seu período
cada seu entorno e dende o interior de cada mexicano máis fecundo –, o encontro entre
seu entorno, que se pecha con Yebala- imaxe e son como universo dunha nova arte.
Romancero Marroquí, en Marrocos, 1937, E na fin: Galicia, premiada en 1937 na
camuflado como axudante de dirección na Exposición Internacional de París. A cámara
equipa alemana que realiza este filme de como constitutiva e como constatación da súa
propaganda franquista, e que reabre no capacidade para ver máis aló, para traernos
México, cun actor non profesional e cunha a solpresa dende o próximo, dende o xa
historia de vida e de morte, con Luis Procuna, coñecido, como elemento que se transforma
en Torero, 1956. Porque o máis singular de en espectáculo, que devén nese algo que atrae
Carlos Velo tal vez sexa esta capacidade de a nosa atitude contemplativa porque incor-
adaptación biográfica con cada fase históri- pora a incerteza nas nosas espectativas. A súa
ca: cine institucional e didáctico durante a confianza na cámara, en descubrir a ollada
República; preparador de cineastas para o que a cámara, iso que tanto desexaba Vertov; o
será o ICAIC en Cuba co seu cine-camión; seu sentido da posta en escea e da dirección
militante nacionalista no exilio que non arreda das personaxes, personaxes que se representan
pé da súa idea de regresar a Galiza, xa coa a sí próprias para a cámara – as mazadoras
Autonomía, anos oitenta, para aplicar as ideas do liño e as segadoras de Cartelle, por
centrais que defendera en Buenos Aires no exemplo; a gestalt, a forma no espazo como
cincuenta e seis e en calidade de delegado sinécdoque e como harmonizadora do ritmo
do Padroado de Cultura Galega de México e da relación entre planos; o contrapicado
no I Congreso da Emigración. que enfatiza o retrato; o movemento
Pola súa práctica fílmica, Carlos Velo é panorámico do ollo da cámara viaxando pola
o documentalista deses suxeitos colectivos descripción da paisaxe habitada en
nos que o proceso sustitúe ao evento, nos sobreimpresións que fan coexistir a xeografía
que o Close up alén dunha figura fotográfica humana coa voz do narrador; o que se pode
e na procura de sobriedade na interpretación, facer cun suxeito invisíbel, o campesiñado
leva canda sí ao espectador para dentro do galego dos anos trinta, fica nos escasos
cadro. A súa presentación como cineasta é minutos conservados de Galicia, un filme que
o devandito encárrego do Ministerio de ben podería entrar nunha antoloxía desa
Agricultura, La ciudad y el campo, unha relación primixenia do real co cineasta, do
película exemplar a propósito da idea de real metaforizándose nunha imaxe que é,
cidadanía en tanto aprendizaxe dun modo tamén, unha produción, é dicir, un resultado
novo de entender a produción e o reparto diferente dos elementos que participan da súa
de bens, que se continúa no filme composición:
Almadrabas, realizado con financiamento
comercial, e cuxo tema, a pesca e a conserva Cando esa campesiña olla para Velo
do atún, conclúe o ciclo de cinema instru- e sorrí está escrebendo a historia do
tivo. A linguaxe cinematográfica é de Griffith; cinema. Cando Velo é quen de acoller
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 209
expresiva, como programa de cine concreto nado e pola que anceia, algún día, ter todo o
e como decraración de amor entre o binomio que ten o cidadán dos países máis desenro-
cámara-realidade, pobo e autor, ten os ecos lados. Pero o escritor e cineasta cubano foi
daquelas mesmas angueiras que construíu a absolutamente craro: a meirande parte da
xeración do cinema que se define a partires humanidade non imos chegar endexamais a ese
da foto e co realismo como categoría his- nivel de consumo, porén – veleiquí onde radica
tórica: o tempo en presente, o secularismo a súa aportación cualitativa – a cultura dános
como filosofía, a inclusión como cidadanía. novos modos de sentir e de disfrutar, modos
Os efectos máis ca as convencións do re- diferentes dos modos do consumo irracional.
alismo, como pensamento nodal. Bertolt É esta a base do “cine imperfecto”. Non se
Brecht ao fondo. someter aos estándares, nen técnicos sequer,
O termo que unifica o esceario novo da do dito cinema comercial.
representación será, precisamente, o de anti- Zavattini traducido e recibido en Cuba,
imperialismo. O mapa de relacións e as Carlos Velo colaborando co ICAIC, os ci-
experiencias varían de situación a situación, neastas militantes de SLON – a elite da
segundo a árbore xenealógica de candasúa Nouvelle Vague e non só – sostendo proxectos
cinematografía e, sobremaneira, do vai e vén en Cuba, Ivens en Cuba, os americanos
cronolóxico da represión en cada país. A opoñentes en Cuba, os latinoamericanos
ideología pasa a se nutrir, aquén e alén, dos resistentes exilados, como Fernando Birri, en
teóricos da diferencia, de Franz Fanon, de Cuba,
Memmi, amén das decraracións dos co- La Batalla de Chile, editada en Cuba.
mités de cineastas. En calqueira caso, e pola Cuba e a normalización do documentario
primeira vez existen películas de como longametraxe. Cuba e a co-produción:
Latinoamérica que amosan como son os História do Brasil. Cuba, e a produción dun
países latinoamericanos portas adentro, pa- filme no 1948 sobre os dirixentes comunis-
íses nos que por forza se tén que viver, tas galegos Seoane e Gaioso que regresaran
reflexiona Chanan, na presentación do pro- clandestinamente para organizar a guerrilla
grama do oitenta e tres no National Film e que son asasinados en Coruña.12
Theatre londinense, e ao facelo así – continúa Ao longo do século vinte,
– e vir dende o seu próprio país ate nós, sobranceiramente a partires da súa segunda
apréndennos a pensar outravolta sobre os mitade a imaxe é xusto iso do que fico
países de acó, os territorios do capitalismo excluída, reséntese Barthes a traverso das súas
corporativo trasnacional que, por suposto, innúmeras citas de cabeceira, nos beizos e
inclúen as major cinematográficas.11 “Clan- nas verbas de Phèdre (Racine): Víno,
destinos y alternativos”, como proclamará nos púxenme corada, empalidecín ao miralo...
anos de chumbo, 1977, o Comité de Cine- Unha sorte de pretérito perfecto, pola súa vez
astas Latinoamericanos, o referente nacional reconstrución e actualidade, que abstrae e trae
como origo, para autores e espectadores, crea o tempo, que abstrae e trae para sempre a
un ámeto de entendemento que en moi cativas lembranza – por iso a súa comparanza coa
ocasións conseguirá se exteriorizar coma fotografía – e non a representación dun
nest4e momento. acontecemento. Quizais é tamén por iso que
Un esgo unificador é a política, e ben a foto e máis o pretérito perfecto estean tan
ao lonxe é onde a vegadas se albiscan as perto da seducción13. Cecais porque o espec-
custiónss estéticas, ou a pesquisa e o debate tador, o lector, o observante, saiba que o seu
encol definicións, segundo a súa función e papel é o de atopar ese lugar, ese azar, esa
o seu modo de produción, que arredan a arte situación esvaída, ese “determinado xeito de
de masas da arte popular. Outro esgo común sere ese minuto que fai tempo xa que pasou
é o choque frontal cos modelos do cinema [e no que] hoxe se acobilla o futuro”. Con
comercial. Neste senso é xa antolóxica a esta idea seminal do inacabábel Walter
posición de García Espinosa sobre un cine Benjamin rindo homaxe á labrega que lle
“imperfecto” consonte cunha nova orde eco- sorríu ao Carlos Velo cineasta, seductor e
nómica e cultural, ao por en custión aquela militante nos confíns da Terra. Oito minutos
angueira que merodea pola cachola do domi- nos que hoxe se acobilla o futuro.
212 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
delimitações mais simbólicas do que propri- pois, com crise desses paradigmas
amente físicas ou naturais. Há um processo naturalistas, com a emergência de um
dinâmico de embates que reuniu, para o novo olhar em relação ao espaço (...)
Nordeste, uma história comum e o transfor- vai ser possível a invenção do Nor-
mou num objeto, uma unidade organizada em deste como reelaboração das imagens
um contexto sócio-histórico em que figura, e enunciados que construíram o an-
no Brasil, os debates da identidade nacional. tigo Norte.”4
É a partir dos anos 20, e mais precisamente
dos anos 30, que se inicia essa organização É a produção de um novo olhar
do imaginário regional, e conseqüente pro- regionalista no início dos anos 20 que or-
cesso de identificação regional, pois era ganiza o Nordeste como unidade, diferenci-
preciso estabelecer as diferenças para melhor ando-o levemente, enquanto espaço simbó-
amparar, ou para se lutar contra, o projeto lico, do Norte/Sertão, produzido antes a partir
nacional modernizador. de pressupostos naturalistas. O tema do
As lutas políticas no contexto da urba- sofrimento, do sertão símbolo e da questão
nização e industrialização, da oligarquia de uma certa inferioridade em relação ao sul
cafeeira e da decadente oligarquia do açúcar, (que também será, nesse novo contexto,
e de uma incipiente burguesia industrial dividido em regiões, e é onde aparece o
colocaram em cena intelectuais, cronistas, sudeste) permanecem compondo o imaginá-
literatos, políticos e artistas num movimento rio tradicionalista sobre o Nordeste, inclu-
de pensar o Brasil. Todos articulados para sive recuperando as práticas discursivas de
demarcar as forças e os papéis políticos de descrições dos flagelos. É fundamental co-
um país que iniciava a tentativa de deixar locar essa separação em regiões dentro de
para trás a estrutura rural. É nesse contexto uma perspectiva de mudança maior no
que os embates vão se dar em torno de paradigma do pensamento sobre o país.
dicotomias muito importantes na época, tais O antigo regionalismo considerava as
como rural X urbano e arcaico X moderno. diferenças entre os espaços do país como um
Vindos de variadas maneiras (visual, reflexo imediato da natureza, do meio e da
literária, musical, científica, jornalística), tais raça. O “novo” regionalismo verá nas dife-
discursos instituirão certo imaginário que vai renças entre as regiões o somatório do que
sendo (re)trabalhado desde então, mas que compõe a nação. Nesse sentido, será impor-
acabou por fixar para o Nordeste um dado tante realizar todo um inventário (descritivo
sentido de pobreza e sofrimento, porém e explicativo) dos elementos e manifestações
recheado de uma festividade pueril. A forma característicos de cada região o que será
como esse imaginário ganha corpo varia realizado no âmbito das crônicas e da im-
ideologicamente, passando da denúncia po- prensa, dos discursos literários e das artes
lítica das causas da miséria ou chegando ao visuais.
casuísmo personalista, indicando ora Entre os anos 20 e 40, abundantes são
mobilização e questionamento social, ora as notas de viagens desbravadoras ao Nor-
posicionamentos conservadores. deste que alimentam jornais como Estado de
Era disseminada uma prática de descri- São Paulo. Em meio ao furor modernista,
ção das misérias, dos horrores, especialmen- antropofágico e nacional-popular, vai-se
te vinculados à seca. Descrições que dão a organizando uma nação que se constrói a
tônica na composição de um imaginário partir da oposição entre o regionalismo
sofredor para o espaço do sertão e do norte. paulista5 (do cosmopolitismo, da modernida-
Essa mesma tônica – de sofrimento e de de urbana) e um regionalismo nordestino (da
pedinte – vai atravessar, e perdurar, para o valorização do medieval, do rural, do tradi-
imaginário do Nordeste. cional), cada um proclamando sua superio-
ridade em relação ao outro.
“A descrição das ‘misérias e horrores Esta tensão gera uma curiosidade pelo
do flagelo’ tenta compor a imagem pitoresco e o Nordeste configurava-se
de uma região abandonada, margina- exatamente como esse pitoresco. É possível
lizada pelos poderes públicos. (...) Só, atestar tal afirmação com o tremendo suces-
216 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
escorre e quando ela desaparece no nosso onais. Essa condução pelo exagero é uma das
campo de visão é o momento para o corte. marcas do melodrama fílmico, bem como a
Plano médio que enquadra a personagem alternância especificamente arquitetada, de
sentada para então fazer um novo corte para planos médios e planos de detalhe.
um plano de detalhe de carta, onde se vê, É um diálogo direto que se estabelece,
dessa vez, o lado do destinatário. Fusão para nessa e em outras sequências que irrompem–
o plano geral da penitenciária em São Paulo, Passageiros sem serem retomadas (que
enquanto ouvimos a personagem ler: “Ma- chamo de digressões sentimentais), com a
mãe, fique com deus...” “memória do melodrama cinematográfico”.
Veremos ainda quatro planos fixos e rápidos Passageiros termina com uma sucessão
da penitenciária – plano médio do corredor, de vários retratos de migrantes, em São Paulo
detalhe da chave fechando a cela e das grades e no Nordeste, que dizem seus nomes e seu
em contra-luz. É o fim da seqüência. A música, estado de origem. Uma estratégia de frag-
que não desapareceu nem por um minuto, faz mentação dos personagens e, ao mesmo
um leve agudo anunciando, e conduzindo, a fusão tempo, de instauração de uma unidade nar-
com cenas de estrada à noite. rativa já utilizada no início do filme. É uma
Voltamos, após essa digressão, para dentro seqüência que reafirma o trecho da narração
do ônibus, onde veremos, novamente, como de uma carta que é lida ao longo da seqüência,
um ciclo que se fecha, pessoas dormindo. A cujas imagens conferem uma autoridade e
música da sequência anterior some dando existência de realidade ao conteúdo dessa
lugar a alguns ruídos ambientes e logo depois carta. São Paulo é muito grande e eu sou
a outro trecho (instrumental) da música de um só. Embora muitos, somos todos, os
Luiz Gonzaga. Toda a atuação da música é migrantes, um só. E São Paulo, esse mundo
muito exuberante, pontuando sempre a se- moderno, pleno de possibilidades, continua
quência, conduzindo as expectativas emoci- muito grande.
220 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ser recriada em Recordações da Casa Ama- de Deus (1998) já funciona num registo
rela. Questiona-se a questão da Democracia, completamente surreal, que, como defende
com a pergunta colocada ao marinheiro Vítor Silva Tavares, se deverá estender a toda
americano (de novo a figuração do marinhei- a sua obra fílmica, e não só. O carácter onírico
ro), e introduzem-se, como motivo, a pros- da visita ao convento ou do achado da
tituta, figura com ecos futuros evidentes na herança remetem-nos para a dimensão ale-
obra de João César. atória que já encontrávamos no tratamento
Estavam, pois, lançados os dados para a do imaginário popular em filmes como
suprema transformação: João César dava Veredas ou Silvestre, sendo na trilogia, apesar
corpo a João de Deus, personagem fora (e de algumas fragilidades, a grande ponte para
dentro) dele, e As Recordações da Casa a desejável leitura de conjunto.
Amarela (1989) entrava no imaginário dos Muito curioso se torna o facto de a trilogia
portugueses, mais por via do publicitário spot de João de Deus, para sempre o seu ex-libris
televisivo (o tantas vezes citado: “adorei, criativo, ter aparecido intercalada de filmes
adorei, adorei”), que por conhecimento, de intervalares, mais frágeis do ponto de vista
facto, de uma das obras mais coerentes e ricas narrativo, como pausas para uma indolência
do Portugal de depois de Pessoa, numa essencial para o avanço: O Último Mergulho
espécie de refracção, encenada para melhor – Esboço de Filme (1992) transforma uma
complexificar o eu. É ainda em Pessoa que encomenda num exercício sobre a liberdade
encontramos, em fragmento, a formulação de filmar, sem programa nem rigor; esta
para tal refracção: “Sinto-me múltiplo. Sou espécie de autocomplacência, de elogio da
como um quarto com inúmeros espelhos preguiça e da loucura, como se a alienação,
fantásticos que torcem para reflexões falsas que espreita toda a obra para se perfilar como
uma única anterior realidade que não está em centro, a partir de Recordações, ganhasse
nenhuma e está em todas.”4 foros de programa. O passeio pela Lisboa
No entanto, em João César, acentuava-se, dos Santos Populares cita, ainda, em filigrana
sobretudo, a grande ruptura a caminho da e em desconstrução, o imaginário das comé-
derisão, do acentuar de um sublime dias populares lisboetas dos anos 30 e 40,
abjeccionismo, que misturava Schubert e Quim num tempo em que os pátios das cantigas
Barreiros; ressuscitava-se, na cena do hospí- já não fariam qualquer sentido. Depois,
cio, o Lívio de Quem Espera por Sapatos... irrompe com violência provocatória em Le
e terminava-se com uma magnífica citação do Bassin de J.W. (1997), o mais indefensável
Nosferatu de Murnau. Comédia urbana do (o mais negro) e o mais inclassificável dos
desencanto de se ser português, negro como retratos da (des)graça de ser português. Visto
Céline, de quem se usam excertos, e sacrílego em contexto, o strindberguiano, Le Bassin,
como Junqueiro de quem se lê o melro de visita aos Infernos do eu descontínuo, ganha
A Velhice do Padre Eterno, rompe com tudo novas linhas de força pela radicalidade de
o que está para trás, mas permite uma ligação, um olhar contraditório, no coração da con-
ainda não explorada (como bem sugere João tradição, exposto com inaudita coragem.
Bénard num dos depoimentos, agora acessí- Mas regressemos a Recordações de uma
veis por via do DVD) com os contos tradi- Casa Amarela, o objecto central deste breve
cionais da primeira trilogia. estudo, apresentado no genérico com o
Visto hoje, avulta como a obra-prima sugestivo subtítulo de “uma comédia lusita-
absoluta, que desencadeia o ímpeto final: os na”: tudo começa desencadeado por uma
dois tomos seguintes da trilogia, cada vez legenda, “Na minha terra, chamavam casa
menos negros, porque mais irrisórios e amarela à casa onde guardavam os presos.
demenciais. A Comédia de Deus (1995), com Por vezes, quando brincávamos na rua, nós,
a colecção de pêlos púbicos e o aparente crianças, lancávamos olhares furtivos para as
aburguesamento da personagem, acentua o grades escuras silenciosas das janelas altas
carácter de divertimento da auto-exposição, e, com o coração apertado, balbuciávamos:
ou auto-imolação, como lhe chama Fernando «Coitadinhos...»”.
Lopes - ainda e sempre a contribuição Depois sempre com o ecrã em negro,
videográfica da integral em DVD. As Bodas aparece a voz off do autor-protagonista (“Aqui
224 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
estamos mais uma vez sozinhos. Tudo isto guiadas por um aleatório fragmentado em
é tão lento. Tão pesado. Tão triste”), esbo- episódios vários, trazendo à liça a proble-
çando o carácter metonímico da ficção, para mática da honra e do estatuto social: “[El]
logo, fazendo raccord com o genérico e com tema del hambre, de la indigencia y la lucha
um longo travelling sobre Lisboa, a partir por la vida, sino alrededor de la respetabilidad
do rio, mencionar o ataque nocturno dos externa, que se funda en el traje, el tren de
percevejos, identificados mais tarde no di- vida y la calidad social heredada, ya que el
cionário e citados de Maïakovski como pícaro es la negación viva de esta honra
punaesis normalis. E, a par com esta des- externa.”6
crição sábia, elementos da irrisão, caracte- Tal noção de honra recuperada explica-
rização da pobreza: “Esforçava-me por não ria, por exemplo a subida na escala social
fazer bulir um pentelho...” ou “O ardor nos operada na passagem para A Comédia de
tomates só começou mais tarde, pela ma- Deus, com João de Deus, agora aburguesado,
nhã...”. gerindo uma gelataria e na descoberta e
A definição da personagem, entre o dissipação de uma fortuna encontrada, por
patético da progressiva depauperação e a via do acaso, em As Bodas de Deus, terceiro
ferida dignidade que o uso da sonata de e último volume da trilogia.
Schubert sublinha, ganha contornos no di- Uma vez instalado nesta dimensão pícara
álogo com a dona da pensão, D. Violeta (a que daria sentido à intervenção satírica, já
emblemática Manuela de Freitas), que fala anteriormente esboçada, João César Monteiro
da casa não como de uma casa velha, in- confere ao seu mundo ficcional uma espes-
festada pelos percevejos, mas de uma casa sura que jamais abandonará. Para além da
barroca, já filmada pela televisão. trilogia de João de Deus, haverá ainda uma
A matriz para este universo picaresco exploração lateral do fenómeno heteronímico
(barroco ou pré-barroco) encontramo-la na no entretanto abandonado e sarcástico, João
literatura espanhola iniciada com Lazarillo Raposão do Audiovisual de Conserva Aca-
de Tormes (1554), alternativa às novelas bada (1989)7, reflexão televisiva sobre a voga
pastoris e aos romances de cavalaria: o seu do audiovisual, como designação, e sobre os
tom realista e satírico, introduzindo um ridículos da indústria pessoana, patente em
imaginário urbano de mendigos e marginais, efígie na estátua sentada do poeta, junto à
como heróis ou anti-heróis da ficção, serve- Brasileira do Chiado.
nos à maravilha para caracterizar a perso- Terminada a segunda trilogia e instituída
nagem de João de Deus. a dimensão picaresca, regressa-se à primeira
Lemos no posfácio de Francisco J. trilogia com outra acutilância: Branca de
Sanchez e Nicholas Spadaccini, a The Neve (2000) constitui o “conto de fadas”
Picaresque Tradition and Displacement, possível, após a “viagem aos infernos e à
intitulado “Revisiting the Picaresque in loucura” de João de Deus e de João César,
Postmodern Times”: “An analysis of apesar de João de Deus, no strindbergiano
picaresque literature cannot be separated from Le Bassin. O equívoco que a obra ao negro
[...] the question of social marginality. [The] gerou numa crítica cega e numa opinião
meaning of this type of literature lies in the pública, que continuava a consumir o mito,
description of the picaro’s interaction with sem lhe conhecer a obra, fez de uma paci-
the urban world […]. It may be said that ficação pelo literário (Walser como alter-ego
the picaro now replaces the Knight errant impossível e matriz para a paixão da escrita)
as a mediator of knowledge as his wanderings a provocação máxima, que nunca pretendeu
in an urban setting give the reader access ser. Não se tratava de uma instalação, como
to a variety of experiences that […] represent se sugeriu, mas da filmagem rigorosa e
differing degrees of social interactions apaixonada da palavra dita. Todos os
undertaken in pursuit of some of the symbols inquisidores deste mundo encontraram pre-
of wealth”.5 texto (errado) para a irradicação do génio.
Assim se poderiam integrar no sub-género Felizmente, não o conseguiram e na obra
picaresco as deambulações de João de Deus, final, Vai e Vem (2003), que o público
por uma velha Lisboa de cheiros e sabores, inacreditavelmente ignorou, temos a noção
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 225
Bibliografia _______________________________
1
Universidade de Lisboa.
2
Bataillon, Marcel, Pícaros y Picaresca: Walter Benjamin, “A Obra de Arte na Era
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University of Minnesota Press, 1966.335. de Sá-Carneiro.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 227
“Nós saímos de um país sem imagem. 50, a mais negra do cinema português, da
A imagem do país que temos é muito qual apenas se retém a obra de Manuel de
construída pelo cinema. Há a cons- Guimarães) em detrimento do putrefacto
ciência, em qualquer cineasta portu- “cinema nacional” do Antigo Regime não foi
guês, que o cinema foi uma escola só maior, como bem mais fácil de levar a
para muita gente e foi também uma termo do que a operada em França pela
maneira de fixar um país que estava Nouvelle Vague. Ou seja, independentemen-
a deslocar-se a uma velocidade te da sua consciência plena ou não, desde
inacreditável. Eu acho que isso está essa viragem histórica, a principal preocu-
filmado, acho que o cinema portugu- pação política deste corpus de autores foi a
ês fixou esse deslocamento. E foi da salvaguarda do direito à existência de um
capaz de filmar muita coisa ao mes- cinema de raízes profundamente nacionais,
mo tempo: um país muito longínquo em cujo paradigma encontravam não só a obra
no tempo, na História, etc.. Era tudo singular, até então escassa, de Manoel de
isto e, simultaneamente, um país Oliveira, como a do quase “invisível” António
muito contemporâneo.” Campos. Uns, os seus detractores, denunci-
João Mário Grilo in arão os limites artesanais e a subsidiada
Número Magazine nº 18 situação de dependência; outros, os seus
apologistas, reclamarão por uma autonomia
O ponto de partida para este texto en- artística, afirmando uma identidade própria
cerra uma inquietação prévia ao problema: a defender.
que imagem do país o cinema português nos Toda a produção a partir dos anos 60
deixou? Isto é, saber, ao fim e ao cabo, qual ficará marcada por esta cisão entre a ape-
teria sido a imagem de Portugal sem uma lidada “vertente cinema de autor” do nosso
ideia de uma cinematografia nacional, um melhor cinema e a tímida apetência pela
imaginário comum que coube ao cinema criação de uma indústria cinematográfica
português, depois e a par de outras artes ou nacional, tendo como modelos ou a mítica
expressões, (re)criar ou perpetuar? idade de ouro associada à comédia popular
Dizemos prévia, porque subjacente a esta ou outro qualquer importado. O primeiro é
“ideia” está uma espécie de empenhamento sustentado pelo enorme equívoco (que ainda
político que integrou há pouco menos de meio hoje persiste) de que houve nos idos do
século uma boa parte dos nossos cineastas Estado Novo um cinema de sucesso e de
(e os, de longe, mais bem sucedidos, dentro grande impacto público. Para além da
e fora). Este engagement não foi fruto de teatralidade dos métodos e do profundo
uma mera reacção face à paupérrima produ- desfasamento com o cinema feito lá fora
ção cinematográfica anterior ao advento do (mesmo o de propaganda), esta evidência
Cinema Novo (inaugurada pela geração de assenta, afinal, numa produção escassa em
60 e a que os “anos-Gulbenkian” deram sucessos. Entre o primeiro filme (A Canção
continuidade), nem à situação política e social de Lisboa), de 1933, e o último do género
do país condicionada por décadas de dita- (O Costa de África), de 1954, apenas nove
dura. Aliás, a pugna efectuada por esta comédias ajudam a perpetuar um mito,
terceira geração de realizadores (a seguir à servindo para encobrir tanto o facto de que
dos pioneiros modernistas, com Leitão de nem os filmes citados foram à época grandes
Barros, Brum do Canto, Chianca de Garcia êxitos de bilheteira, ao contrário do que às
ou António Lopes Ribeiro, e à da década de vezes se pretende fazer crer, como a oposi-
228 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ção de alguns a uma tentativa séria de fazer toda a memória da arte neste “reino do campo
um cinema moderno em Portugal. único”. O resultado que se pretende impor
Quando falamos desta componente polí- é um híbrido, o telefilme, aquilo que o crítico
tica do cinema português, referimo-nos, so- e teórico Serge Daney vaticinou em 1982 para
bretudo, à preocupação e ao ímpeto que soube o cinema e a televisão, “um velho casal” cada
unir sensibilidades tão diversas num mesmo vez mais parecido2.
apelo: o esforço pela afirmação de algo Que risco existe, então, para uma cine-
inexistente até à data e pela manutenção, a matografia tão frágil como a portuguesa e
partir daí, dessa identidade precária, cons- para toda a visão heterogénea do mundo, a
tantemente à mercê de usurpações impostas submissão a modelos reducionistas, sejam
por modelos importados, fossem eles do estes produzidos e distribuídos por uma
cinema norte-americano, primeiro, agora e cinematografia como a norte-americana,
sempre, ou televisivos, mais recentemente. sejam condicionados pela realidade imposta
No que diz respeito à hegemonia do sistema pela televisão? Que espaço haverá, depois da
e da linguagem ditada por Hollywood, que nova lei do cinema, para a pretensa “eco-
perpassa a generalidade das cinematografias, logia” que, no entender de João Mário Grilo,
este modelo tem servido não só para subtrair contribuiu para a especificidade do cinema
ao nosso cinema, como a qualquer outro, o português?
direito a uma paisagem própria e a todos os Numa entrevista concedida à Número
mundos possíveis que se criam à sua ima- Magazine, este cineasta e investigador con-
gem. Ou seja, trata-se da contaminação por sidera que o período que vai desde o advento
parte de um imaginário preciso, delimitado do Cinema Novo até ao final dos anos 80
e modelado de outros que já existiam antes é marcado por uma experiência colectiva
da invenção do cinema e que lutam por singular, que foi capaz de preservar no interior
sobreviver à colonização massiva do cinema do cinema feito em Portugal uma certa
norte-americano. Não se trata, pois, de “ecologia”3. Esse ambiente específico terá
patriotismo ou de proteccionismo cultural, sido determinado mais por condições de
mas de salvaguardar um património que é produção do que por factores culturais. De
o direito a um imaginário identitário. Sobre- facto, o movimento iniciado nos anos 60 foi
tudo quando pensamos nas especificidades não só precursor de uma “ideia” para uma
culturais de que as diversas cinematografias cinematografia de raízes nacionais (sublinhe-
“nacionais” (mesmo que pulverizadas por se, de uma “ideia” primeira de cinema), como
inúmeras e diversas visões pessoais) mais não terá registado o nascimento, em simultâneo,
são do que um ponto numa linha de con- de toda uma geração de realizadores e téc-
tinuidade que engloba outras visões noutras nicos que fará o cinema português nas pró-
artes. ximas décadas, mesmo entre avanços e
Já a invasão televisiva surge, recuos. Os Verdes Anos (1963) é, neste caso,
conjunturalmente, depois do aparecimento, no paradigmático, uma vez que se trata da obra
início dos anos 90, dos canais privados e é, de estreia de um realizador (Paulo Rocha),
desde logo, enquadrada pelas sucessivas leis mas também de um produtor, de novos
que adequaram o cinema a uma lei geral do técnicos e actores. Nos créditos de Os Verdes
audiovisual. A televisão não só tem coloni- Anos, Belarmino (Fernando Lopes, 1964) e
zado toda a paisagem portuguesa, até porque Domingo à Tarde (António de Macedo, 1965),
tem uma velocidade de produção que o vemos os nomes de Fernando Matos Silva,
cinema não consegue acompanhar, como Elso Roque ou Acácio de Almeida, o que
afeiçoou o espectador aos seus modelos demonstra a existência de um “corpo uni-
narrativos, a uma linguagem sem distinção ficado” nos filmes produzidos por António
formal, espécie de estética industrial no seu da Cunha Telles. É, aliás, esse o argumento
“grau zero”, onde estão definidos a priori corolário dos que defendem a tese de que
os conteúdos e as suas aparentes ou supostas é Os Verdes Anos e não Dom Roberto (1962),
diferenças. Na sua aparência inócua, subjaz de Ernesto de Sousa, ou Pássaros de Asas
uma estratégia de dominação que uniformiza Cortadas (1963), de Artur Ramos, o filme
todas as imagens em circulação, reciclando inaugural e fiel depositário do termo novo:
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 229
“Não só o filme se inseria numa es- Rocha (?) como exemplos, um cinema de
tratégia de produção que visava a contornos neo-realistas, à semelhança do
continuidade (um produtor, Cunha italiano do pós-2ª Guerra Mundial, mas menos
Telles, reúne à sua volta os cineastas influenciado por este cinema do que pela
disponíveis – disponibilidade física e corrente literária portuguesa; em segundo,
teórica, entenda-se – e são eles Paulo “um cinema existencialista – mais influen-
Rocha, Fernando Lopes, Fonseca e ciado pela confirmação da Nouvelle Vague
Costa e António Macedo), como e pela evolução estética de cineastas como
igualmente essa produção se dotara Antonioni”, com uma linguagem “mais ela-
previamente de quadros técnicos for- borada, mais simbólica, abrindo-se progres-
mados pelo 1º Curso de Cinema do sivamente à parábola política”, integrando
Estúdio Universitário de Cinema Ex- António Macedo, Cunha Telles, Fonseca e
perimental, onde Cunha Telles era Costa e António-Pedro Vasconcelos; e, final-
também elemento capital e donde, no mente, através de Manoel de Oliveira e
domínio da fotografia, do som e da Fernando Lopes, “um cinema de ruptura“–
montagem sairiam as figuras dominan- projectado já a partir de Belarmino e de O
tes em todo o cinema português que Acto da Primavera (1962), uma linha docu-
se segue a Os Verdes Anos”4. mental que se construía em ficção recusando
a aparência naturalista, evidenciando uma
Para um grupo nascido para o cinema montagem de contrastes”.
sensivelmente na mesma altura, esta coesão Até para quem hoje considere totalmente
e solidariedade eram sentidas e transmitidas descabidos alguns dos exemplos citados,
quer dentro do próprio set, entre cineastas nomeadamente Paulo Rocha, a divisão pro-
e equipas, quer fora (basta verificar o rela- posta permite retirar duas ilações, sem pre-
tório “O Ofício do Cinema em Portugal”, juízo de estas se revelarem anacrónicas.
saído da I Semana do Cinema Novo Portu- Fazendo jus ao esforço também teórico
guês, em 1967, no Porto, assinado por vinte (mesmo que de algum modo inglório) de
cineastas e dirigido à Fundação Calouste ligação do cinema português, pela primeira
Gulbenkian e a cooperativa que daí nasce três vez na sua história, com as tendências
anos depois). Teria sido inevitável que este mundiais, duas das correntes reflectem pelo
corpus a que Paulo Rocha chamou “a escola menos o entrecruzar da produção portuguesa
portuguesa”, designação defendida por tan- com a experiência cinematográfica estrangei-
tos outros depois dele, afirmasse um “novo” ra. Nota-se no discurso à volta de ambas a
cinema ao impor uma ruptura estética-ide- vontade expressa de adquirir, para além da
ológica com o cinema anterior. Esta interna, uma legitimidade que advém das
(re)invenção nasce sem prejuízo do cinema influências de correntes contemporâneas. Esse
tradicional português, “já morto”, como reconhecimento, aliás, começa pelos contac-
afirma António Roma Torres [1972:15], mas tos mantidos por alguns dos cineastas por-
em resposta ao “ridículo cinematográfico” que tugueses com autores estrangeiros (P. Rocha
até então imperava, tanto em termos quali- foi assistente de Jean Renoir em Le Caporal
tativos como quantitativos. É talvez por isso Epinglé e Fonseca e Costa de Antonioni em
que durante uma década surja a indefinição L’Eclisse), mas também com a aceitação e
sobre qual a tendência estética predominante os prémios que os primeiros filmes granje-
do movimento e, consequentemente, qual a aram em festivais um pouco por toda a
fase (e face) inauguradora, fazendo coabitar Europa (A Promessa, de António Macedo,
lado a lado obras, filmes e correntes apa- 1972, foi o primeiro filme português selec-
rentemente contraditórios para o desejo de cionado em Cannes).
um grupo unificado em termos estéticos. O que dizer então do peso da tradição
O mesmo Roma Torres [idem:29-30] nesse esforço de legitimação? Serão herança
avança, em 1971, três tendências como de uma mesma filiação oliveiriana os laivos
hipótese de sistematização: em primeiro lugar, de neo-realismo de E. Sousa ou A. Tropa,
iniciado com Dom Roberto e tendo o próprio sem a toada ruralista de Brum do Canto ou
Ernesto de Sousa, Alfredo Tropa e Paulo Manuel Guimarães, e as primeiras incursões
230 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
“vanguardistas” (o cartaz de Os Verdes Anos cinema), subsistia, pelo menos até há pouco
anunciava “A Nova Vaga chegou a Portu- tempo, o predomínio da figura do realizador
gal”)? Para baralhar, não só Aniki-Bóbó face ao produtor.
(1942) era a única ficção até à data de A década de 90 viu serem produzidas dez
Oliveira, como M. Guimarães tinha sido seu longas metragens de ficção, em média, por
assistente de realização nesse que já foi ano. Esses cerca de 100 filmes reflectem,
considerado o filme precursor do neo-realis- mesmo que alguns irregularmente, a visão
mo. Essa fuga a uma universalidade (tenta- de perto de 60 realizadores diferentes. Só que,
tiva de legitimação a partir de dentro) capaz pese embora os cineastas portugueses se
de perverter a identidade desse corpus é mais mantenham fora do espartilho comercial, as
evidente, por isso, nessa terceira “tendência” condições de produção alteraram-se radical-
avançada por Roma Torres, uma vez que ela mente. As equipas de filmagens são agora
parece escapar melhor a uma qualquer cor- compostas por técnicos que trabalham no
respondência directa com o que influenciaria cinema apenas episodicamente, estando, na
fora (naquela que é a segunda das ilações maior parte do tempo, ocupados a fazer
possíveis) e porque, além do mais, tem televisão, o que acaba por moldá-las a um
Oliveira como garante de autenticidade. É outro modo de produção. A esta erosão
verdade a sua influência ou a possível acei- progressiva daquele que bem podia ser
tação de uma mesma paternidade estética em considerado o âmbito “familiar” do cinema
ambas as tendências anteriores, mas Oliveira feito em Portugal, há que acrescentar a cada
não está, nem nunca esteve, no neo-realismo vez maior contradição entre o modelo e a
e, muito menos, na Nouvelle Vague. A in- realidade nacional, até porque um filme é
venção da tradição operada no cinema sempre fruto de uma colaboração técnica e
moderno português faz-se em torno da obra artística que poucos cineastas controlam
de Oliveira mesmo que a desfiliação se dê cabalmente. Se um filme é também um
em breve e que aquilo que correspondeu ao reflexo directo do seu próprio processo de
forte espírito de solidariedade, digamos ar- produção, essa é uma realidade ainda mais
tística, da geração fundadora dê lugar à “so- premente no caso “singular” (para não dizer
lidão” (sentimento com que o mesmo P. artesanal) português. A experiência que o
Rocha definirá esse estádio) e à sua cisão condiciona define-o em grande medida,
definitiva a partir da polémica em torno de assunto sobre o qual nos debruçaremos mais
Amor de Perdição, em 1978. adiante, em jeito de conclusão, relativamente
No entanto, as condições de produção à experiência de Pedro Costa em No Quarto
mantiveram-se praticamente inalteradas du- da Vanda (2000), mas que serve também para
rante as décadas de 70 e 80. Mesmo quem, aquelas que consideramos serem as razões
em defesa de um “outro” cinema português, para a especificidade do imaginário cinema-
promovia a desvinculação a essa “escola tográfico português consolidado a partir do
portuguesa” do Cinema Novo, não deixava Cinema Novo.
de construir uma “ideia” presa a um conceito Se atentámos nas razões que possibilita-
de identidade “resultado de uma tripla von- ram em termos de condições de produção a
tade (invenção artística, resistência à norma- existência de um habitat preservado para os
lização industrial e interrogação sobre a cineastas portugueses e para a sua “ideia”
questão nacional portuguesa)”5. Se a última de cinema português, não podemos deixar,
é essencial e exclusivamente para debater a ainda, de referir o papel que os factores
nível temático, as duas primeiras foram desde culturais desempenharam nessa preservação
sempre consideradas os factores que mais e quais as suas consequências.
contribuíram para a criação de uma cinema- Primeiro, é necessário verificar que os
tografia justamente considerada uma das mais cineastas portugueses que, mais ou menos
felizes do mundo. Nesta “região demarcada timidamente, tentaram uma aproximação com
de produção cinematográfica”, conforme a o cinema feito fora de portas encontraram-
metáfora de António-Pedro Vasconcelos 6 se, durante décadas, confinados ao género
(curiosamente, uma das vozes que mais vezes documentário, muito por força das circuns-
reclamou por uma indústria nacional de tâncias políticas e económicas. À situação
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 231
precária vivida por Oliveira durante os seus genética para com as convenções próprias de
22 anos de interregno ficcional, entre Aniki- um cinema de cariz naturalista. Uns acusam-
Bóbó e Acto da Primavera (aceitando que no de inabilidade narrativa, outros de uma
se trata de uma ficção), contrapõem-se os propensão cultural para a poesia em detri-
sinais de esperança augurados por uma nova mento da prosa. Em jeito de prova, subli-
geração (F. Lopes, A. Macedo, P. Rocha) nhamos duas constatações que parecem re-
iniciada com trabalhos que de alguma forma ceber unanimidade. Frequentemente tentada,
revelam uma faceta documental, demarcan- a filmagem de histórias muito pouco portu-
do-se claramente do pendor nacionalista do guesas tem dado origem a filmes híbridos,
filme histórico e moralista da comédia po- cujo desconcerto resulta da tentativa de
pular, à época já pouco pródiga na crítica transcrição de um imaginário importado
de costumes e mais glorificadora de vedetas através de um modelo que nunca se destaca
nacionais do desporto, da tourada e do da estética estandardizada para TV. Também
cançonetismo. a escassa ligação do cinema português com
Daí que não haja volta a dar: o melhor a literatura romanesca não pode ser explicada
cinema português até aos anos 60 é nele que apenas pela difícil adaptabilidade da maior
tem o seu terreno, mas não a sua justifica- parte das nossas obras literárias, mas sobre-
ção, encarado essencialmente enquanto pre- tudo pelo pouco interesse que tais sempre
texto para ensaio e a maior parte das vezes suscitaram nos nossos cineastas, sendo Oli-
desabafo perante a conjuntura do país. A veira a enorme e honrosa excepção.
tradição não-realista do (moderno) cinema Cinematografia essencialmente poesia ou
português surge, em primeiro lugar e para- marcadamente pintura8, como sugere João
doxalmente, em virtude da impossibilidade Bénard da Costa em Cinema Português?
de uma ficção assumida, de uma sublimação (documentário-entrevista de Manuel Mozos
do real patente quer no género documentário, ao director da Cinemateca Portuguesa, em
quer na influência neo-realista exercida sobre 1996), nela prevalece um olhar intenso,
a pouca ficção aproveitável anterior aos anos excessivo, sobre a realidade que retrata,
60. Na maioria desses filmes, a procura de revelando a sua dupla natureza. É à volta
uma realidade portuguesa, ora surge subter- dessa metafísica, dessa tentativa de dar uma
raneamente, ora é intencional, mas nunca consciência à realidade e não de subordina-
explícita. A excepção é uma e chama-se ção do real a uma intriga ou conflito dra-
António Campos. Roma Torres refere pre- mático, que se tece o discurso de Bénard da
cisamente esse contraponto, citando o diá- Costa, mas também de José Manuel Costa
logo mantido entre o autor de Vilarinho das ou J. Mário Grilo9. Ao contrário do cinema
Furnas (1971) e Oliveira, a propósito do norte-americano, cinema da “ilusão” por
despojamento de A. Campos nesse filme, ao excelência, o cinema português tem-se per-
contrário do exemplo dado por Acto da filado como um cinema da “não-ilusão”10,
Primavera7. Tudo o resto vive dessa “impu- avesso à habitual caução que a ficção exige,
reza” que uns clamarão como sendo a es- porta aberta a todo e qualquer escapismo.
sência do cinema português, outros a Também no que diz respeito às determi-
consequência exacta de uma verdadeira nações culturais, algo mudou no panorama
primeira articulação com as vanguardas ci- português, pelo menos na última década e
nematográficas mundiais da época (refira-se meia. Por um lado, tem havido uma incor-
a influência de Dreyer, nomeadamente de poração excessiva de outros imaginários
Gertrud, na ficção oliveiriana ou as naquele que está preenchido cinematografi-
desconstruções de Straub, um dos cineastas camente desde os anos 60. A região de Trás-
mais referidos por mais do que uma geração os-Montes, espécie de território mítico para
de realizadores portugueses) e outros, ainda, o cinema português, de A. Campos a António
prova determinística de uma limitação Reis, passando esporadicamente por Olivei-
ficcional: cinematográfica e cultural. ra, já não serve de cenário para o retrato
Essa “impureza” é tanto do documentário, metafórico de um país isolado, encarcerado
como da ficção. Muito do melhor cinema na sua experiência presente, e mitológico,
português revela uma mesma dificuldade enquanto síntese anacrónica das suas raízes
232 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
geográficas e culturais, nem tem tido subs- Paradoxalmente, é mais uma vez no
tituto à altura, agora que a paisagem está interior desta linha de tradição que aqui se
definitivamente filmada pela televisão. Se há expôs, e não de qualquer modelo importado,
um filme que representa o toque de finados que encontraremos a melhor prova de sobre-
é O Movimento das Coisas (1985), de vivência e internacionalização dada pelo
Manuela Serra, documentário acerca de um cinema português nos últimos anos. No
mundo prestes a desaparecer. Por outro lado, Quarto da Vanda é, até por razões
emerge uma nova geração de realizadores cuja profilácticas, um exemplo a reter de resis-
obra, não renegando o cinema passado, tência a essa normalização industrial, impon-
aparenta alguma desfiliação, sobretudo a do uma salutar convivência com as novas
qualquer ideia de escola portuguesa. Portu- tecnologias, ao mesmo tempo que se inscre-
gal pode não constituir aqui uma excepção. ve numa crítica acérrima às actuais condi-
Se têm caído em desuso as teorias cinema- ções de produção em cinema. No debate que
tográficas que dão primazia às questões se seguiu à projecção do filme em Serpa,
nacionais, não é isso também fruto dos em 2000, por ocasião do Seminário Interna-
condicionalismos político-económicos da cional sobre Cinema Documental Doc’s
situação de predomínio da indústria cultural Kingdom, Pedro Costa referiu-se a esse
norte-americana? O facto é que, à falta de mesmo mal estar quando interpelado por
uma preocupação deliberada (mais ou menos Thierry Lounas acerca da hipótese sugerida
evidente) de dizer algo sobre o país ou acerca pelo crítico do Cahiers du Cinéma de que
do seu imaginário mítico, social ou até o realizador estaria a reagir contra as coisas
político, tem sido o documentário e não a que são do funcionamento básico da ficção
ficção a dar os melhores exemplos de toma- e da produção de ficção:
da em mãos dessa missão de pensar o país
“Eu começo a ter um desgosto enor-
e a sua história: A Dama de Chandor
me com a maneira de fazer filmes.
(Catarina Mourão, 1998), Outro País (Sérgio
Acho que é uma coisa tão violenta,
Tréfaut, 1999) ou Natal de 71 (Margarida
cega, surda e muda... a equipa, o
Cardoso, 2000). Com o aparecimento, pela
catering, os horários, as folhas de
primeira vez, de um movimento
trabalho...”11
assumidamente documentarista em Portugal,
terminam, enfim, as barreiras psicológicas que
No Quarto da Vanda insurge-se contra
toldavam as gerações mais velhas de uma
tudo isso, barricando-se numa “outra” forma
relação mais directa com o real. Curiosamen-
de produção, mais livre do que o esquema
te, na exacta proporção inversa em que vão pesado da indústria, que impede mais do que
escasseando os exemplos dessa “impureza” ajuda, que inviabiliza mais do que facilita.
ficcional ou documentarista que tantos e tão A par destes condicionalismos surgem uma
singulares filmes legou o cinema português. política e uma economia de cinema que,
Vimos como um corpus de autores aliadas a uma ética, transformam este filme
emergiu nos anos 60, perseguindo uma num objecto seminal na história do cinema
“ideia” de e para o cinema português, português e no contexto do cinema contem-
(re)inventando uma tradição (in)existente e porâneo.
(re)criando um imaginário identitário comum, Crucial para a nossa tese é essa espécie
determinado e preservado pelas condições de de “armadilha” realista, tanto pelo género –
produção específicas que esta geração funda- documentário – como pelo tema, que P. Costa
dora encontrou e pelas especificidades cul- foi capaz de montar. Acerca dela, Thierry
turais herdadas de trás. Esta “ecologia” vê- Lounas fala de uma “total ausência de sin-
se agora ameaçada com a normalização tomas do ‘real”12. Emmanuel Burdeau, tam-
industrial que se avizinha devido à cada vez bém do Cahiers, no mesmo debate, prefere
maior pressão do público e à adequação conciliar a ausência da violência habitual do
progressiva do cinema a uma lei geral do documentário, uma vez que “não há nenhum
audiovisual que o empurra para fora do efeito de ‘real’”, com a ausência da violência
território da arte. da composição inerente a grande parte das
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 233
ficções e, por isso, o situa nesse cruzamen- tremo. Vemos que há muito trabalho:
to13; e não esquece o papel que as condições manipulação do som, falsos campos /
de produção desempenharam no potenciar contracampos – que não podem ter sido
deste resultado: feitos ao mesmo tempo, pois só havia
uma câmara e penso que o Pedro não
“Do que eu gosto no filme, o que o poderia ter interrompido as conversas
torna novo, é que talvez pela primeira para o fazer. Se há qualquer coisa de
vez temos a impressão de que este novo é aqui, é no levar ao extremo
filme pôde ser feito de duas maneiras o método do que se chama o realismo
a priori completamente opostas: a pri- e levar ao extremo o método do ci-
meira forma seria a observação, a nema de montagem.”14
paciência, filmar muito de uma forma
repetida e continuada. Gosto muito O filme de P. Costa é também invulgar
quando o Pedro diz que apanhava o porque revela um realizador português que,
autocarro para ir lá todos os dias, da começado na ficção, faz o percurso inverso
forma menos artística possível, menos daquela que tinha sido a norma da geração
premeditada no sentido em que a fundadora. Não para proceder, como então,
premeditação é de tal forma repetida, a qualquer lógica de substituição – até porque,
que se torna rotina e nos põe ao nível como afirmou já várias vezes, a maioria dos
do retrato absoluto. A segunda manei- documentários, o documentário puro, não lhe
ra seria na montagem, pois ao utili- interessa –, mas antes para prosseguir naque-
zarmos o método totalmente oposto já la que é a característica do melhor cinema
não estamos no nível do retrato mas português e que No Quarto da Vanda faz por
sim no da construção levada ao ex- preservar. Vamos ver até quando.
234 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
4
Bibliografia M. S. Fonseca in folha policopiada da
Cinemateca Portuguesa distribuída aquando da
AAVV, Os Debates – Doc’s Kingdom exibição do filme Os Verdes Anos.
5
Denis Lévy, “Introdução” in L’Art du Cinéma
2000, AporDOC, 2002.
(especial Manoel de Oliveira), Agosto de 1998.
Costa, João Bénard da, Histórias do 6
Cit. in J. Bénard da Costa, Histórias do
Cinema – Sínteses da Cultura Portuguesa, Cinema – Sínteses da Cultura Portuguesa, Lisboa,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991, p.184.
1991. 7
Cf. A. Roma Torres, ob. cit., pp.44-45.
Grilo, João Mário e Monteiro, Paulo 8
Acerca desta dupla ligação, apetece ainda
Filipe (org.), O Que é o Cinema? – Revista “revisitar” Noronha da Costa, para quem o ci-
de Comunicação e Linguagens, nº23, Lisboa, nema era antes de mais a perpetuação da pro-
Edições Cosmos, 1996. messa Romântica de transformação do espaço
cenográfico em espaço-ecrã. Segundo o pintor, a
Matos-Cruz, José de, O Cais do Olhar,
arte da pintura teria tido os seus raríssimos
Lisboa, Cinemateca Portuguesa-Museu do momentos altos em Portugal na representação de
Cinema, 1999. uma “imagem errante, indefinível”. A poesia, de
Pina, Luís de, História do Cinema Camões a Pessoa, seria por isso uma consequência
Português, Lisboa, Europa-América, 1987. exacta dessa “imagem inencontrável” (Cf. catá-
Torres, António Roma, Cinema Portugu- logo da exposição “Noronha da Costa Revisitado”,
ês, Ano Gulbenkian, Porto, Soares Martins, comissariada por Nuno Faria e Miguel
1972. Wandschneider).
9
Cf. J. B. da Costa no documentário Cinema
Turigliatto, Roberto (coord.), Amore di
Português?, de Manuel Mozos; J. M. Costa in
Perdizione, Storie di Cinema Portoghese R. Turigliato (coord.), Amore di Perdizione, Storie
1970-1999, Turim, Lindau, 1999. di Cinema Portoghese 1970-1999, Turim, Lindau,
1999; e J. M. Grilo na citada entrevista a Número
Magazine, nº 18.
_______________________________ 10
Cf. J. M. Grilo na citada entrevista a Número
1
Universidade Autónoma de Lisboa. Magazine, nº 18.
2
Cf. Serge Daney, “Como Todos os Velhos 11
Pedro Costa in Os Debates – Doc’s Kingdom
Casais, Cinema e Televisão Acabaram Por Ficar 2000, AporDOC, 2002, p.80.
Parecidos”, in O Que é o Cinema? – Revista de 12
Thierry Lounas in Os Debates – Doc’s
Comunicação e Linguagens, nº23, Lisboa, Edi- Kingdom 2000, AporDOC, 2002, p.75.
ções Cosmos, 1996, pp.223-228. 13
Emmanuel Burdeau in Os Debates – Doc’s
3
Cf. João Mário Grilo in Número Magazine, Kingdom 2000, AporDOC, 2002, p.76.
nº 18. 14
Idem, p.94.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 235
No livro A Câmara Clara, Roland Barthes “No entanto, dessa emoção (ou dessa
tece conceitos úteis para qualquer pesquisa- essência) eu não podia falar, na me-
dor que se envolva com o universo das dida que nunca a conheci; não podia
imagens fotográficas. Nesta derradeira obra unir-me à coorte daqueles (os mais
Barthes estabelece uma relação entre a câmera numerosos) que tratam da Foto-segun-
clara, onde a imagem para ser reproduzida do-o-fotógrafo.”4
necessita da mão do homem, e a câmera
obscura que produz uma imagem ligada ao Contudo, o corte metodológico que o
referente através de sua emanação luminosa. coloca na posição de spectator, parece não
O texto se constrói entre a escrita aca- ser capaz de afastá-lo da emoção do operator
dêmica, precisa e analítica, e a literária, que é, durante o livro, diversas vezes ima-
emocional e metafórica. Desta forma qual- ginada.
quer tentativa de análise se vê amarrada por
esses dois pólos, que ora nos afastam de um “Eu podia supor que a emoção do
pensamento analítico e ora nos aproximam Operator (e portanto a essência da Fo-
de suas proposições conceituais. Entretanto, tografia-segundo-o-Fotógrafo) tinha
o caráter emocional da escrita somente alguma relação com o “pequeno ori-
aprofunda seu teor científico pois aproxima fício” (estênopo) pelo qual ele olha,
o leitor da essência da imagem fotográfica. limita, enquadra e coloca em perspec-
Barthes, logo no início de seu texto, nos tiva o que ele quer “captar” (surpre-
antecipa as dificuldades metodológicas enfren- ender)”5
tadas por quem deseja analisar a fotografia.
Barthes funde, na sua idéia de estênopo,
“Quem podia guiar-me? Desde o pri- dois oríficios distintos: o visor – enquadra-
meiro passo, o da classificação (é mento – e o pequeno orifício – responsável
preciso classificar, realizar amostra- pela indicialidade da imagem fotográfica:
gens, caso se queira constituir um
corpus) a fotografia se esquiva.”2 “A moldura se tornou o primeiro
filtro de acesso ao universo exterior
Por conseguinte Barthes se projeta como e janela metafórica ao ligar o mundo
mediador, como medida do saber fotográfi- interno ao externo, o interoceptivo ao
co, como atesta: “Decidi então tomar como exteroceptivo, o operator ao
guia de minha nova análise a atração que spectator numa dinâmica de relações
eu sentia por certas fotos. Pois pelo menos latentes do aparelho e agora realiza-
dessa atração eu estava certo.”3 das pela vontade e obra humana. O
Para então assinalar as três práticas fascínio inicial que se detinha no
ligadas à fotografia: fazer, suportar e olhar. orifício de entrada dos raios lumi-
O fazer representado pelo Operator. O olhar nosos, janela responsável pela con-
representado pelo Spectator, posição assumi- tigüidade física do referente, foi
da pelo autor. O suportar se referindo ao migrando para uma outra janela na
Spectrum e ao referente e sua condição fotografia contemporânea. Do orifí-
inevitável de retorno do morto. cio, que dá conta da representação
Ao se posicionar como Spectator para figurativa do referente, passa-se à
análise, Barthes se afasta da Foto-segundo- moldura, que representa o poder
o-fotógrafo. daquele que opera o aparelho”6
236 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
“SIRS, I have received Act II, Scene “E isso ainda mais porque tudo ocor-
II of “L’Acte Photographique,” wich re de fato na interioridade do pensa-
you were kind enough to send me. mento do sujeito. Afinal, se a memó-
I am deeply moved, and feel I must ria é uma atividade psíquica que
tell you how sensitive I am to your encontra na fotografia seu equivalen-
devotion to the action of our great te tecnológico moderno, é evidente-
masturbatory finger on the shutter mente, no outro sentido, que a me-
connected to the subversive agent that táfora nos interessa, como uma inver-
is our visual organ (see the dioptric são positivo/negativo: a fotografia é
of Descartes’s “Discourse on tanto um fenômeno psíquico quanto
Method”).”15 uma atividade ótica-química.”20
10
Bibliografia Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre
a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984,
Barthes, Roland. A câmara clara: nota p.35.
11
O “isso-foi” é a representação de um tempo
sobre a fotografia. Rio de Janeiro, Nova
vivido (do sentido) e não de um tempo crono-
Fronteira, 1984. lógico, linear, físico e empírico.”
Bresson, Henri Cartier. The mind’s eye: 12
Philippe Dubois, O ato fotográfico e outros
writings on photography and photographers. ensaios, Campinas, Papirus, 1994, p.66.
New York, Aperture, 1999. 13
Philippe Dubois, O ato fotográfico e outros
Caetano, Kati; Lima, Osvaldo. A ques- ensaios, Campinas, Papirus, 1994, p.161.
14
tão do referente em alguns fotógrafos con- Philippe Dubois, O ato fotográfico e outros
temporâneos. Significação – Revista brasi- ensaios, Campinas, Papirus, 1994, p.178.
15
leira de semiótica. São Paulo, Annablume, Henri Cartier-Bresson, The mind’s eye:
writings on photography and photographers, New
n.20, 2003.
York, Aperture, 1999, p. 105.
Dubois, Philippe. O ato fotográfico e 16
Além da relação entre o “momento deci-
outros ensaios. Campinas, Papirus, 1994. sivo” e o dedo masturbatório, verdadeiro órgão
Samain, Etienne.(Org) O fotográfico. São do fotógrafo e revelador de seu prazer solitário.
Paulo: Hucitec, 1998. 17
Relativização conceitual que visa dar conta
da emoção e de sua significação, para o operator,
quando do ato de tomada da fotografia.
18
_______________________________ Etienne Samain (Org), O fotográfico, São
1
Universidade Federal do Paraná. Paulo, Hucitec, 1998, p.130.
19
2
Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre Esta dupla face negativo-positivo
a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, (interioridade-exterioridade) trabalha aqui no sen-
p.12. tido de oposição e de contigüidade física.
20
3
Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre Philippe Dubois, O ato fotográfico e outros
a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, ensaios, Campinas, Papirus, 1994, p.316.
21
p.35. Philippe Dubois, O ato fotográfico e outros
4
Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre ensaios, Campinas, Papirus, 1994, p.326.
22
a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre
p.21, grifo nosso. a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984,
5
Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre p.46.
23
a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, Forma no sentido de seleção e combinação,
p.21. por meio de unidades figurativas.
24
6
Kati Caetano; Osvaldo Lima, Significação No sentido de tempo vivido (memorial) e
– Revista brasileira de semiótica, São Paulo, não de passado cronológico.
25
Annablume, 2003, n. 20, p. 137. Henri Cartier-Bresson somente fotografava
7
Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre com Leicas municiadas com objetiva normal (50
a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, mm).
26
p.46. Intensidade emocional, pontual do disparo.
27
8
Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre Henri Cartier-Bresson, The mind’s eye:
a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, writings on photography and photographers, New
p.45. York, Aperture, 1999, p. 15.
28
9
Este efeito se dá ao nível do discurso e pode Trabalhadores e Êxodos para citar apenas
ser caracterizado pelos estudos de Hjelmslev. dois.
240 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 241
Essa comunicação está baseada numa objetivo primeiro será identificar na obra do
pesquisa sobre a filmografia do cineasta cineasta conteúdos e significantes pregnantes
brasileiro Walter Salles Junior. Aprofundamos tais como o tema da desterritorialização e
a metodologia que vimos utilizando nos do exílio e conseqüentemente do “desam-
estudos de filmes e propomos um novo tema paro”, da “angústia” e do “desejo” em suas
que faz fronteira entre a Psicologia e os manifestações de tempo-espaço e “região
Estudos da Cultura. Começamos nosso es- nação” em apenas dois exemplos:
tudo, com cinco filmes do cineasta de longa- Na filmografia de Walter Salles Junior
metragem, todos muito bem premiados, e com escolhemos especialmente os filmes Terra
vasto repertório de vídeo cassetes, distribu- Estrangeira (1995) e Central do Brasil
ídos em quase todas das filmotecas do Brasil (1998). A percepção do diretor é conside-
e também em Portugal. rada como paradigmática do imaginário social
A filmografia de Walter Salles Junior da contemporaneidade e se sustenta numa
revela uma espécie de afirmação da “con- produção significativa, de linguagem contem-
dição subjetiva” no cinema brasileiro e não porânea que oferece uma nova percepção das
das condições socioeconômicas de um de- questões culturais até então não abordadas
terminado grupo ou classe social. As angús- na filmografia brasileira.
tias dos personagens se refletem nas dificul-
dades da realização de seus próprios desejos. Breve informação sobre o cinema de
As personagens são tratadas com suas con- Walter Salles Junior
dições psicológicas e subjetivas.
No filme Terra Estrangeira (1995) o O diretor Walter Moreira Salles Junior
personagem Paco, depende dos desejos de nasceu em 1956, no Rio de Janeiro. Os temas
sua mãe, Alex, aguarda os desejos de Miguel centrais das obras de ficção e dos
e Igor em frases agônicas. Revelando-se como documentários dirigidos por ele são o exílio,
verdadeiras personagens glauberianas, grita:“ a errância e a busca de identidade. Outros
é o fim do mundo (...), a memória foi-se conteúdos são observados em sua obra, tais
embora”. como a globalização a visão no tempo-es-
Estas expressões provocam um estudo paço e as construções de distância e o
interpretativo de argumentos psicanalíticos desamparo presente em todos os temas tra-
Por esta razão também concentramos nosso tados pelo diretor. Jovem ainda e dono de
estudo seguindo a obra do cineasta, no um brilhante trabalho e talento, todos os seus
conjunto de sua produção estético-subjetiva. filmes foram premiados. A seguir apresen-
Sua filmografia em longa metragem é ex- taremos uma visão rápida de sua produção
tensa, começando com A Grande arte (1991), cinematográfica.
Terra Estrangeira (1995), Central do Brasil
(1998), O primeiro dia (1999) e Abril despe- Década de 80:
daçado (2001), sendo que nesta apresenta- Sua consistente filmografia iniciada com
ção fragmentamos : Terra estrangeira (1995) filmes de curta-metragem, com o
e Central do Brasil (1998) e por fim Diário documentário Japão, Uma viagem no tempo
de motocicleta (2004). Kurosawa, Pintor de imagens (1986), em que
Encontramos nos filmes a diferença, o cineasta foi o diretor e o roteirista do
diversidades/semelhanças, em cada obra. A trabalho. No ano seguinte dirigiu e fez o
partir da especificidade de cada filme encon- roteiro de Krajcberg-O Poeta dos Vestígios
traremos a personalidade do conjunto. O (1987). Durante esta década o diretor ainda
242 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Capítulo III
Apresentação
Óscar Mealha1
ção ou correlação de tecnologias e/ou ser- e porventura, novas linguagens para a interface,
viços, mas com diminuta preocupação em funcionalidade e intervenção das novas tecno-
transformar o esforço em produto final logias nas quais se comece por construir com
encapsulado e ergonomicamente correcto. No a definição da natureza da equipa de trabalho,
fundo, conceptualizar e considerar o utilizador transdisciplinar. Outro factor relevante refere-
ou público final no processo de evolução da se à caracterização correcta do público alvo,
tecnologia. Continua-se a preferir a solução ou do utilizador final, em sintonia com os
de adequação ao quadro de integração e objectivos ao qual o instrumento tecnológico
utilização generalista nas plataformas poderá responder. A convergência de todo este
computacionais, nomeadamente no vulgar- processo deve conduzir-nos a um conjunto de
mente denominado, computador pessoal (de paradigmas, metáforas e linguagens, nomeada-
secretária ou portátil) numa matriz em tudo mente a visual, sonora e de interacção, ade-
muito idêntica à que foi proposta com os quadas ao contexto, social, cultural e/ou pro-
primeiros produtos comerciais (Williams, fissional em causa.
1983, 1984). A título de exemplo, que características
Compreende-se que, se por um lado e é que poderia ter uma consola computacional
desta forma a equação de sustentabilidade do em rede para a área do jornalismo? Por outras
progresso, nesta vertente, está temporariamen- palavras, que instrumento de trabalho
te garantida, por outro, perdem-se a todos computacional é que qualquer jornalista
os minutos que passam, utilizadores que gostaria de ter no seu gabinete, biblioteca ou
desesperam e desacreditam que um compu- secretária de trabalho? A resposta concentra-
tador de uso pessoal possa constituir, ou vir se numa máquina que ao ser ligada apresen-
a constituir, um instrumento de trabalho, de taria uma interface gráfica assente em
facto, eficiente e versátil. Ben Shneiderman paradigmas visuais que traduziriam a neces-
num dos seus últimos registos, (Shneiderman, sidade de um jornalista. Uma imagem que
2002) refere as necessidades prementes no representaria as opções de interacção para as
domínio da mediação tecnológica para as funções habituais de um profissional desta
áreas da saúde e da educação, mesmo a uma área. Desta forma estaríamos perante uma
escala global, para a intermediação com os proposta de interface unificadora de aplica-
centros de conhecimento e excelência. ções e suas correlações. Vejamos algumas das
Num plano mais geral, Donald Norman funcionalidades que poderia apresentar:
(Norman,1988) também há muito que alerta i) O resultado de uma pesquisa, a vários
para um défice de atitude crítica no cenário repositórios de informação nacionais e in-
mais abrangente das tecnologias de utiliza- ternacionais, é construído de forma a inte-
ção pessoal e doméstica. Com um apelo ao grar a notícia/informação em conformidade
design universal, alerta para as questões mais com o tema ou contexto de pesquisa. O
óbvias relacionadas com as tecnologias do próprio universo de pesquisa será
quotidiano, desde o puxador da porta até à prioritariamente condicionado aos repositórios
interface e funcionalidade do micro-ondas, de área profissional, pré-definidos pelo
videogravador, telemóvel, etc. utilizador ou já legitimados e pré-estabele-
Artefactos que se apresentam paradoxal- cidos por associações competentes.
mente como bastante modernos e por vezes, ii) O editor disponível foi construído
bastante ineficientes e pouco intuitivos, re- especificamente a pensar nas necessidades de
velando uma grande desadequação à tarefa edição de um jornalista. Dá prioridade à
para o qual foram concebidos, e exigindo do construção da notícia, ao seu valor informa-
utilizador uma taxa de esforço cognitivo e tivo e/ou semântico, considerando parâme-
motor, por vezes, descabido. tros multimédia (texto, imagem fixa e ima-
gem dinâmica) e remete para processos semi-
Novos paradigmas, novas linguagens automáticos, a tarefa de conversão para os
média de distribuição (revista, jornal, web,
Na verdade, como é que ocorrem? Que rádio, televisão, etc).
atitudes e princípios é que podem orientar iii) Os serviços de comunicação síncronos
o exercício de concepção de novos paradigmas e assíncronos encontram-se formatados e
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 251
Apresentação
Graça Rocha Simões1
mento tecnológico referido (maior capacida- perimentais possíveis, pelo que daqui resulta
de a menor custo), deve contrapor-se uma que as próprias soluções tentadas carecem do
lógica inteligente de organização e de gestão antídoto que pretendem anular: a padroniza-
dinâmica da informação. ção, tão essencial para a utilização eficaz dos
Tal mostra-se sobretudo premente quan- metadados13.
do fazemos da Internet o campo de recolha Ora, apesar da progressiva conversão das
de informação. Quem, por certo, já experi- agências noticiosas online a esta tecnologia,
mentou arquivar informação com base em o processo ainda se encontra em fase expe-
pesquisas na Internet não se terá deparado rimental, o que significa que apenas uma
tanto com a exiguidade do espaço em disco pequena parte das notícias estarão prepara-
(cada vez se compra mais por menor pre- das para suportar estes procedimentos. Daí
ço11), mas antes com um problema de ori- que os projectos de investigação que incidam
entação entre as centenas de ficheiros arqui- sobre recolha da informação pela Internet
vados. Quem já não terá experimentado uma enfrentem algumas dificuldades no
sensação mista de surpresa e de apreensão, manuseamento dos dados que dificilmente são
ao encontrar algum ficheiro importante es- ultrapassáveis – o processo de classificação
condido numa pasta recôndita? da notícia tem que ser feito no momento,
A solução imediata é a da elaboração de sem excepção.
bases de dados sobre a informação arquiva- Partindo deste campo de recolha, e par-
da. Mas, se optarmos por uma abordagem tilhando de muitas das dificuldades descri-
mais profissional - logo, mais intensa mas tas, o Projecto Mediascópio14 pretende estu-
também mais eficaz e exigente -, esta tarefa dar a comunicação e os media, designada-
parece insolúvel. mente aqueles publicados em agências e
Para a descrição dos recursos arquivados jornais impressos e electrónicos, nacionais e
tem-se procurado recorrer ao uso de estrangeiros. Esses textos podem estender-se
metadados, que consistem, basicamente, na a géneros diversos: notícias breves e desen-
formulação de dados sobre os dados. A ideia volvidas, entrevistas, reportagens, dossiers,
é a de desenvolver uma forma eficaz de textos opinativos (editoriais, colunas, análi-
descrever os recursos electrónicos, algo já ses, opiniões, cartas).
incontornável no ambiente caótico da A ideia da base de dados, neste caso,
Internet, ao qual os sistemas de indexação surgiu de uma constatação e de uma neces-
e de recuperação da informação tradicionais sidade: constatação, porque, ao reunir os
não permitem alcançar níveis satisfatórios materiais informativos para elaborar o regis-
(Baptista, e Machado, 2001). to dos eventos do campo da comunicação e
A aplicação de metadados tem sido dos media, verificava-se a existência de
experimentada no campo dos media, concre- documentos relevantes para a memória sobre
tamente no domínio da informação noticiosa o campo; necessidade, porque, para promo-
digital12, onde se tem procurado estabelecer ver as leituras sectoriais e globais, essa
um conjunto padronizado de metadados de documentação mostrava-se essencial.
modo a fornecer uma plataforma comum para Ao todo, estão compulsados cerca de 6600
a análise dos artigos noticiosos em formato registos, compreendidos entre inícios de 2000
digital, produzidos por agentes noticiosos e finais de 2003. A proveniência das fontes
online (Yaginuma et alii, 2003). Este sistema advém, em cerca de 85%, de jornais impres-
parte de duas premissas fundamentais em sos, sendo o restante dividido entre revistas
torno do ficheiro-base: por um lado, que ele e panfletos, em formato online, quando
contenha o texto propriamente dito (a notí- possível, ou através da versão papel, recor-
cia), e, por outro, que ele inclua na sua rendo-se à digitalização por scanner, em
código-estrutura os metadados - estes, para complemento.
além de descreverem a notícia, permitirão que As actividades no âmbito do projecto são,
sobre eles se aplique tratamento informático assim, escalonadas em duas fases: uma
adequado através da tecnologia de descrição primeira, a da produção digital da informa-
dos metadados extraídos. Tanto num como ção recolhida, e uma segunda, a da catalo-
em outro caso, são várias as abordagens ex- gação desses registos.
262 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Até ao momento, o projecto tem sido, nião de Kerckhove, tal pressupunha uma
igualmente, um laboratório de análise e “nova ecologia das redes”, baseada na
testagem ao desafio da criação de instrumen- interactividade, na hipertextualidade e na
tos eficientes de gestão e pesquisa da infor- conectividade (Kerckhove, 1997a). Mas, a
mação. A solução a adoptar ainda aguarda estas, há que assegurar o objectivo da
pela estabilização das ferramentas de extrac- interoperabilidade entre os sistemas, melho-
ção e descrição dos metadados. rando pela adopção da indexação e da
interconexão, condição imprescindível para
Conclusão o carácter funcional dos arquivos: “uma
memória está morta se não for catalogada,
O desígnio tecnológico, em muito expli- disponível, transmissível, criticada e eventu-
cado pela célebre Lei de Moore, teve o dom almente reinterpretada” (Hoog, 2003, p. 173).
de aproximar povos e culturas, impulsionando Antes mesmo da questão do que con-
a comunicação e a partilha de informação servar e do que transmitir, é preciso encon-
multimédia. A maior capacidade informática trar formas comuns de preservação da infor-
daí decorrente potencializou a rapidez e a mação já existente: “a história da memória
largura de banda da transmissão de dados. Ao deve ser também a história dos seus supor-
mesmo tempo, vai aumentando, de forma tes” (Hoog, 2003, p. 170).
espectacular, a capacidade de armazenamento Será, de facto, possível, construir-se uma
digital e descobrindo formas mais eficazes na memória a partir ciberespaço? Alguns entra-
compressão dos dados que contribui para a ves estão diagnosticados: a obsolescência dos
redução do tamanho ocupado, em bits. Como suportes de registo informativo, do código
consequência, a produção e a transmissão da linguístico e do seu respectivo equipamento;
informação ficou facilitada: produção de o carácter volátil e imaterial dos conteúdos;
websites institucionais e privados, mensagens a perenidade dos links que inter-relacionam
de e-mail, weblogs, conteúdos digitais mul- a informação na rede. Em conjunto, concor-
timédia diversos (fotos, vídeo, animações). rem para a urgência de, no presente, promo-
Parece, ainda que algo paradoxalmente, ver processos de produzir informação digital
que a sociedade tecnologicamente desenvol- que já incluam na estrutura-código a forma
vida criou um «monstro»: como gerir a de interpretação – um dna digital. A van-
avalanche informativa crescente e evitar o tagem é a da capacidade de proporcionar
soterramento? Simultaneamente, como con- imediato armazenamento, indexação e cata-
ferir utilidade ao oceano de dados? logação, através de programas estandardi-
A aproximação que se dá entre o sujeito zados apropriados. As ferramentas
e o conhecimento informático processa-se por informáticas devem corresponder às carac-
moldes diferentes dos tradicionais, que re- terísticas da open-source, de modo a ser
metiam para a relação com os livros: “este concretizável o objectivo da interopera-
novo salto na forma de adquirir e transmitir bilidade com outros sistemas, permitindo,
informações (…) certamente trará modifica- assim, a ampla disponibilização dos fichei-
ções às demais formas tradicionais – orais ros através da web, por meio de um sistema
e escritas – de se lidar com o saber” (Kenski, de procura e recuperação da informação.
1999, p. 173). De um ponto de vista do interesse individual
A ideia da World Wide Web, de Tim ou colectivo, todo o arquivo é património. A
Berners-Lee e dos seus colegas do CERN, tecnologia assim o vai permitindo, e permitirá
era a de integrar todos os conteúdos de cada vez melhor. Não nos cabe, agentes do
qualquer servidor em qualquer parte do presente, decidir o que sobre nós deverão saber,
mundo com outro computador online. O no futuro. Da mesma maneira que um arque-
caminho para alcançar esta convergência é ólogo exulta quando vê num artefacto um
o da digitalização de todos os conteúdos, mas sobrevivente da amnésia do tempo.
cuidando na promoção da interconectividade Refrescando a memória, porque a era
entre todas as redes e a humanização do tecnológica se esforça por permitir aos supor-
software e do hardware, atendendo aos efeitos tes do conhecimento a durabilidade e trans-
à escala globalizante dos satélites. Na opi- missão infinitas, sem degradação nem perdas.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 263
4
Entre outros exemplos, o RepositoriUM, isso, o copiarem mal, com o valor 10 (X romano),
repositório institucional da Universidade do levando a erros de transcrição (Santos, 1988). Em
Minho, “organizado por comunidades científicas, contrapartida, nos séculos XV e mesmo XVI era
armazena, preserva, divulga e dá acesso à pro- muito vulgar o R com valor de 40, que era uma
dução intelectual desta universidade em formato deturpação do x aspado (Nunes, 1981).
10
digital” [http://repositorium.sdum.uminho.pt]. Cf. “Quantum Information”, IBM Almaden
5
Cf. o protocolo Open Archives Initiative Research Center [http://www.almaden.ibm.com/st/
Protocol for Metadata Harvesting [http:// quantum_information/qio/index.shtml].
11
www.openarchives.org]. À data, os 300 Gb. do novo “Ultrastar
6
Como o sistema desenvolvido pela 10K300” da Hitachi converteu-se no disco-duro
Corporation for National Research Initiatives com maior capacidade no mercado comercial
[http://www.handle.net] [http://www.hitachi.com/New/cnews/E/2003/
7
Cite-se, da Microsoft, o MyLifeBits [http:/ 0106e/].
12
/research.microsoft.com/barc/MediaPresence/ Uma iniciativa da Information Society
MyLifeBits.aspx] baseada na visão pioneira de Technologies – o projecto Omnipaper (Smart Access
Vannevar Bush, que, em 1945, antecipava a to European Newspapers) [http://
possibilidade de se criar um dispositivo capaz de canada.esat.kuleuven.ac.be/omnipaper/] ––“pretende
tudo «ciberizar», isto é, registar todos os elemen- investigar formas de promover o acesso a diferentes
tos da vida de uma pessoa. Eram ideias visio- tipos de fontes de informação distribuída, permitin-
nárias, integradas num projecto pessoal denomi- do aos utilizadores um acesso estruturado, perso-
nado Memex, que consistia num “aparelho com nalizado e multilingue a todo o conjunto de artigos
o qual um indivíduo guardaria todos os seus livros, de notícias” (Yaginuma et alii, 2004).
13
registos, comunicações, numa forma mecânica, Por exemplo, o Dublin Core Metadata
pelo que tudo poderia ser consultado com extre- Elements Set e o Resource Description Framework
ma rapidez e flexibilidade”. [http:// (RDF), ambas recomendadas por organismos
www.theatlantic.com/unbound/flashbks/computer/ amplamente reconhecidos a nível mundial, tanto
bushf.htm]. pela comunidade científica, como pela comuni-
8
A Leitura Nova consiste na reescrita de um dade empresarial (a DCMI – Dublin Core
conjunto dos documentos legais e administrativos Metadata Iniciative, no primeiro caso, e a World
portugueses, copiados por ordem do rei D. Manuel Wide Web Consortium, no outro). Igualmente se
I entre 1504 e 1552 em letra vigente na época referenciam outros formatos estandardizados de
de sua transcrição, com o intuito de facilitar sua notícias, o NITF (News Industry Text Format) e
leitura e evitar a sua perda (Oliveira Marques, o NewsML, implementados pela International
1971). Press Telecommunications Council (IPTC), e o
9
Ainda no mesmo âmbito, e em jeito de XMLNews, desenvolvido pelo XMLNews.org
complemento, refira-se que muitas e graves (Yaginuma et alii, 2004).
14
imprecisões foram tomadas na tradução do X’ Estudo da Reconfiguração do Campo da
(“xis” aspado). Este numeral, que deriva do XL, Comunicação e dos Media em Portugal (Núcleo
com valor igual a 40, como sabido, foi muito de Estudos de Comunicação e Sociedade da
utilizado na Península Ibérica até ao séc. XIV, Universidade do Minho), projecto apoiado pela
mas nos séculos XV e XVI foi-se tornando raro FCT (POCTI/COM/41888/2001) – http://
ao ponto de muitos escribas o ignorarem e, por www.necs.ics.uminho.pt.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 265
Comunicação Organizacional
– impacto da adopção de um Sistema Workflow
Anabela Sarmento1
operacionais. A duração média das entrevis- altura era frequente o processo parar, aguar-
tas foi de cerca de 60 minutos. Foram todas dando o regresso do Director para assinar o
gravadas e totalmente transcritas. A análise documento. A implementação do sistema e a
dos dados foi feita recorrendo a métodos possibilidade de assinar electronicamente o
qualitativos16. documento a partir de qualquer ponto do globo
veio obviar as dificuldades referidas e a ace-
5. Apresentação e discussão dos resultados lerar o andamento dos processos. Por exemplo,
no processo de pedido de autorização de
A tabela seguinte lista as mudanças viagem, foi referido pelos entrevistados que o
verificadas após a implementação do sistema sistema veio possibilitar uma comunicação mais
workflow em todos os processos já referidos. rápida e sem distorção da informação nela
A primeira coluna representa os domínios de contida, além de que o processo e as respon-
mudança e a segunda coluna a alteração pro- sabilidades dos funcionários na realização de
priamente dita. cada tarefa ficaram mais transparentes.
No que diz respeito aos domínios par- Um outro aspecto mencionado pelos
ticulares da comunicação e colaboração funcionários como sendo uma vantagem da
vemos que o sistema workflow é encarado utilização do sistema é o registo dos eventos
de duas formas distintas: (1) para uns o e dos conteúdos, o que constitui uma segu-
sistema facilita o acesso ao interlocutor. O rança em caso de dúvida. Além disso, o
emissor não depende de aspectos temporais sistema permite saber se a mensagem che-
e geográficos para contactar o seu receptor, gou ao seu destinatário.
sendo um aspecto positivo da aplicação; (2) Apesar das vantagens atrás enunciadas,
para outros, a aplicação distancia a relação a utilização do sistema workflow, e segundo
e o contacto entre emissor e receptor, reve- a perspectiva de alguns funcionários, encerra
lando um aspecto negativo da aplicação. inconvenientes. Antes da implementação do
Antes da implementação do sistema, e sistema, os funcionários deslocavam-se na
dada a frequência com que alguns Directores fábrica para entregarem os documentos re-
se deslocam no país e no estrangeiro, havia lativos aos processos acima já referidos. Nesta
alguma dificuldade em conseguir dar anda- deslocação e contacto pessoal com o
mento a determinadas tarefas que requeriam interlocutor aproveitavam para conversar e
as assinaturas desses funcionários. Nessa trocar opiniões e ideias sobre diversos assun-
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 271
Após a identificação das alterações ocor- semelhantes aos em papel. Finalmente refi-
ridas fruto da implementação do sistema ra-se o facto dos funcionários sentirem que
workflow, procurou perceber-se de que for- o seu superior hierárquico estava sempre aces-
ma as características da organização sível mesmo durante a sua ausência da fábrica
condicionaram, inibindo ou potenciando, tais pode ter contribuído para uma melhor acei-
alterações. Os factores organizacionais envol- tação do novo sistema.
vidos foram: estruturais, políticos, humanos,
tecnológicos e culturais. Factores políticos
contrário dos operadores com uma escola- dor para realizar essas tarefas, pelo que
ridade mais elevada. A formação recebida resistem.
para utilizarem o sistema também foi alvo No entanto, procurou-se ter algum cui-
de críticas. Os funcionários referiram que esta dado com o desenho da interface gráfica
havia sido reduzida, muito teórica e espo- fazendo com que esta fosse a mais simples
rádica. Eles referem que era necessário te- e intuitiva possível e que não fosse preciso
rem tido mais prática de forma a melhor decorar comandos ou nomenclaturas.
memorizarem os procedimentos. Para aque-
les funcionários que não utilizam o compu- Factores culturais
tador para realizarem as suas tarefas diárias,
torna-se muito complicado fazê-los compre- A introdução do sistema workflow criou
ender a utilidade e as vantagens da utilização alguma nostalgia no seio das pessoas mais
do novo sistema. Alguns dos entrevistados velhas. Alguns dos entrevistados referiram
referiram, igualmente, que o facto da utili- que tinham saudades dos “velhos tempos”
zação do computador tornar as relações mais uma vez que antigamente sentiam-se mais
impessoais e distantes, servia como desculpa próximos uns dos outros, o que não acontece
para evitarem utilizá-lo. agora. O computador torna as relações mais
No entanto, verificou-se que aqueles distantes e impessoais.
funcionários que já utilizavam o computador Contudo, o facto de se sentir uma pre-
nas suas tarefas diárias aceitaram mais fa- ocupação com a gestão do conhecimento, de
cilmente o novo sistema. O mesmo se pas- se considerar a informação como um valor
sou com os funcionários mais novos. Parece acrescentado e de se considerar as mensa-
que as pessoas novas lidam melhor com a gens electrónicas como prova, contribui para
mudança do que as que têm mais idade. Estas ultrapassar algumas das resistências à mu-
últimas, como executaram as tarefas ao longo dança. Acresce ainda o facto da formação
dos anos sempre da mesma forma, têm mais dos recursos humanos ser uma prioridade e
dificuldade em se aperceberem de que exis- de existirem estímulos à partilha do conhe-
tem outras maneiras de as realizar, e mesmo cimento. Para além disso, o sistema workflow
até de as aceitar. permitiu uma uniformização da terminologia
Da mesma forma, as características da do trabalho, pelo que os processos e a lin-
personalidade também parecem influir no guagem utilizada deixam de ser produto da
sucesso da utilização do sistema. Há funci- vontade de cada um, para ser superior a todos.
onários curiosos e que querem explorar a
aplicação, como também há quem o não 6. Conclusões
pretenda fazer. E tal situação depende mais
das características individuais do funcioná- Procurou-se, neste artigo, descrever um caso
rios, da sua personalidade, do que propria- ilustrativo da adopção de uma determinada
mente de outros aspectos relacionados com tecnologia e das consequências que daí podem
a tecnologias ou com a organização. advir para a comunicação organizacional. A
identificação dos aspectos organizacionais que
Factores tecnológicos inibiram ou potenciaram a mudança e a acei-
tação do novo sistema foram, também, alvo
Relativamente aos factores tecnológicos, das nossas preocupações. Frequentemente, a
constatou-se que o equipamento existente adopção de sistemas de informação tem apenas
pode constituir um obstáculo caso seja por base as suas potencialidades e caracterís-
obsoleto ou não tenha capacidade suficiente. ticas tecnológicas, não se levando em consi-
Para além disso, algumas das tarefas demo- deração os factores humanos e o seu impacto
ram, mais tempo agora a realizar (por exem- nas relações interpessoais. São, no entanto, as
plo, o funcionário tem de ligar o computa- pessoas que os vão utilizar pelo que devem
dor, introduzir o seu login e password, abrir ser envolvidos no processo de mudança desde
algumas janelas antes de aceder ao documento o início, explicitando os seus receios e dialo-
electrónico); alguns operadores não reconhe- gando sobre as melhores práticas para a re-
cem vantagem alguma no uso do computa- alização da mudança.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 273
Bibıliografia _______________________________
1
ISCAP / IPP, S. Mamede Infesta; Centro
Cardoso, L., Gestão Estratégica das Algoritmi, Universidade do Minho, Guimarães.
2
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Miles, M. e Huberman, M., Qualitative 7
Anabela Sarmento, op. cit.
Data Analysis. London: SAGE, 1994. 8
Anabela Sarmento, op. cit.
Nonaka, I. e Takeuchi, H., The 9
S. Khoshafian, e M. Buckiewicz, Introduction
Knowledge Creating Company: How to Groupware, Workflow and Workgroup Computing,
Japanese companies create the dynamic of New York: John Wiley & Sons, Inc., 1995.
10
innovation. New York: Oxford University R. Dietrich; J. Grear; A. Ruth, How Real
is Communication in the Virtual World of
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2002, 19-38, http://www.wfmc.org/ 11
W. Lucas, “Effects of e-mail on the
information/introduction_to_workflow02.pdf, organization”, European Management Journal, 16
2002, acedido 26 Março 2004. (1), 1998, p. 18-30.
12
Sarmento, A., Impacto dos Sistemas R. Dietrich; J. Grear; A. Ruth, op. cit.
13
Colaborativos nas Organizações: Estudo de W. Lucas, op. cit.
14
M. Igbaria, e M. Tan, The Virtual Workplace,
Casos de Adopção e Utilização de Sistemas
Hershey: Idea Group Publishing, 1998.
Workflow. Tese de doutoramento. Braga: 15
L. Cardoso, Gestão Estratégica das Orga-
Universidade do Minho, 2002. nizações – ao encontro do 3º milénio, Lisboa:
WfMC, Introduction to the Workflow Verbo, 1997.
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274 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 275
vam a rede para trocarem informações sobre material, tangível, em oposição ao virtual que
os projectos em que estavam envolvidos. A expressa a ausência pura e simples da exis-
comunicação era estabelecida através de e- tência. Consideramos pertinente retirar im-
mail, newsgroups ou FTP-servers. A mais portância à excessiva ênfase dada por alguns
famosa comunidade virtual do início da autores à virtualidade das novas comunida-
história da Internet designou-se THE WELL des, na medida em que os seus habitantes
(Whole Earth ‘Lectronic‘Link) e foi criada definem-nas como comunidades reais.
em 1985, em São Francisco, pelos ecologis- Por sua vez, Kerckhove (1999: 67) faz
tas do Whole Earth Catalogue. Inicialmente, referência à Virtual Polis, de Carl Loeffler,
esta comunidade era constituída por indiví- como sendo a edificação de um ambiente
duos que se conheciam fora da rede e que virtual, descrito como um «apartamento
utilizavam a Internet como um meio adici- virtual, concebido pessoalmente, equipado
onal para trocarem informações. com um guarda-roupa virtual, integrado em
As novas comunidades, designadas como gavetas virtuais e comprado num centro
virtuais ou “tribos cibernéticas”, que encon- comercial virtual, ao lado de um parque de
traram em”THE WELL”o seu primeiro diversões virtual, num bairro virtual». Como
modelo, foram definidas por Laurel (1990) afirma Kerckhove (idem, ibidem), «em
como «the vibrant new villages of activity ambientes deste género, tudo é de facto
within the larger cultures of computing» (apud “virtual”, com a excepção de que as pessoas
Ramos, Do espaço público de Habermas ao que se encontram nele são”“reais”».
novo espaço público na era da revolução Rheingold (1996), autor da obra Comu-
informativa, p. 143). Mas comecemos por nidade Virtual, define comunidades virtuais
definir o conceito de virtual. como grupos de pessoas que se interligam entre
De acordo com Lévy (1999), si através de uma complexa rede informática
etimologicamente, virtual tem a sua origem (que obedece a uma estrutura rizomática, na
no baixo latim “virtualis”, derivado do qual não se identifica um princípio nem um
substantivo comum, do latim vulgar, virtus, fim), e não por intermédio de laços circuns-
que significa força, potência. Para se com- critos aos limites de um espaço físico. As novas
preender este conceito, Lévy apela aos comunidades resultantes das redes de compu-
ensinamentos da filosofia escolástica, segun- tadores podem ser caracterizadas como sendo
do a qual «virtual es aquello que existe en descentralizadoras, informais, ecléticas e com
potencia pero no en acto» (1999: 17). A uma «forte componente auto-governável, sem
imagem da árvore e da semente permite-lhe a necessidade de regulações exteriores...»
clarificar esta noção, já que, segundo ele, a (Ramos, 1998: 149).
árvore está virtualmente presente na semen- Rheingold (1996) caracteriza desta forma
te. Consciente de que o virtual se está a tornar a emergência de um tipo de comunidade, na
numa das categorias mais importantes da qual a troca de informações entre os sujeitos
cultura contemporânea, Miranda (1996) tam- é mediada pelos dispositivos informáticos,
bém procurou explicar este termo, para quem criando-se um novo sentido do conceito de
virtual é «o espaço do imaginário (determi- comunidade. Segundo ele, podemos identi-
nado metafisicamente, mas também teologi- ficar nas comunidades virtuais algumas das
camente ou politicamente) onde se institu- características das comunidades tradicionais,
íam, ou se construíam, as possibilidades» (p. ainda que a interacção seja mediada e não
1). Tendo por base o esquema aristotélico da seja, portanto, possível estabelecer uma
dynamis/energeia, que articula potencialida- relação face a face. A interacção entre os
de e actualização, o virtual corresponderia membros desta comunidade é transferida de
à potencialidade, pois, segundo este autor «de um espaço físico para um outro espaço
entre várias possibilidades apenas uma era concebido pelas novas tecnologias, um es-
realizada em cada momento» (idem, ibidem). paço sem uma referência estável, o que
A palavra virtual surge nos estudos sobre o conduz, na opinião de Lévy (1999), à re-
impacto dos novos media, em oposição a real. invenção de uma cultura nómada.
Segundo Lévy (1999), o uso corrente do As relações sociais estabelecidas entre os
conceito de real pressupõe uma realização indivíduos sofrem profundas modificações.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 277
encontra e para onde pode ir num dado entre as 10 primeiras ocorrências em todos
momento da navegação (Head, 1999: 109). os quatro motores de busca. Enquanto as
ligações para os portais dos estados do Rio
4. Tratamento de erros de Janeiro e de São Paulo obtêm presenças
positivas somente no Google, o da cidade
Por fim, a última categoria corresponde de São Paulo não é incluído em nenhum dos
ao tratamento de erros, que aponta para a buscadores. Constata-se, neste caso, a neces-
preocupação do governo em sanar problemas sidade de revisão dos metadados embutidos
funcionais no portal e garantir sua total nas páginas dos portais, de modo a melhorar
operacionalização. Pode-se identificar este suas classificações e fazendo com que o
quesito nos portais através da disponibiliza- cidadão tenha mais facilidade na localização
ção de um canal de comunicação (de pre- do portal na Internet. Em compensação, todas
ferência e-mail ou chat) com o webmaster as páginas avaliadas nos quatro portais go-
ou se é apresentada uma página que auxilie vernamentais mostraram-se plenamente
o usuário caso um link esteja inativo. O portal operacionais nos sistemas e navegadores em-
apresentando links inativos demonstra pro- pregados neste estudo. Em nenhum dos
blemas de funcionalidade, ou seja, se o site portais foi verificada qualquer alteração na
é funcional e se há um cuidado de manter interface que impedisse o acesso às suas
essa funcionalidade – já que links inativos seções principais. O cidadão que conseguir
significam a ausência de um trabalho mais encontrar o endereço do portal estará habi-
cuidadoso de manutenção. litado a acessar suas informações indepen-
dente de estar utilizando uma plataforma
Avaliação piloto da interface de portais específica. O mesmo não ocorre em relação
governamentais das Cidades e Estados do às facilidades para cidadãos com necessi-
Brasil dades especiais. A cidade de São Paulo é
a única cujo portal demonstra preocupação
Nesta fase de testes do modelo de ava- com este grupo de usuários, disponibilizando
liação o roteiro foi aplicado durante o mês na home page um link para informações sobre
de setembro de 2003, em portais governa- as peculiaridades do design universal. No
mentais de três capitais do Brasil: Rio de entanto, mesmo este portal não reúne as
Janeiro (www.rio.rj.gov.br), São Paulo condições para possibilitar o mais elementar
(www.prefeitura.sp.gov.br) e Porto Alegre nível de acesso especificado pelo W3C Web
(www.portoalegre.rs.gov.br) e um estado, o Content Accessibility Guidelines. Nenhum
Estado de São Paulo. Essa seleção foi ba- dos quatro portais obteve aprovação neste
seada numa pesquisa anterior, que dava conta critério, confirmando uma tendência já cons-
dos tipos de conteúdo disponibilizados pelos tatada em outros estudos do gênero15. Do
portais14. Sendo que essas três capitais se mesmo modo, os cidadãos estrangeiros que
destacaram pela variedade de informações e não dominam a língua portuguesa estão
serviços prestados, bem como pelo nível excluídos do acesso aos portais analisados,
destes conteúdos. Como esta ainda é uma fase exceto ao site do Estado de São Paulo, o
de validação das categorias e critérios deste único que disponibiliza conteúdos em inglês
modelo, os resultados a seguir apresentados e espanhol.
não estão quantificados, somente havendo a
possibilidade de serem descritos. 2. Otimização
page é de 48.83 segundos. A baixa da cidade de São Paulo de utilizar, pelo menos
performance nesta categoria deve-se ao na primeira página de cada seção, um in-
excesso de objetos presentes nas páginas dicador de localização (barra de sequência
principais, sejam eles texto, imagem ou de links em hipertexto). O mesmo problema
códigos de programação, demonstrando uma foi diagnosticado no portal da cidade do Rio
falta de critério na priorização das informa- de Janeiro, sendo que apenas o do Estado
ções que são oferecidas ao usuário no seu de São Paulo preocupa-se em indicar todo
primeiro contato com o portal. o percurso desde a página principal. Por sua
vez, o único portal a orientar o usuário
3. Navegabilidade sinalizando-o com o nome das páginas in-
ternas na barra de títulos do navegador é
Na verificação do primeiro critério desta o da cidade de São Paulo. Em todos os demais
categoria, constatou-se que nenhum dos sites esta informação é negligenciada. Na
portais utiliza uma página de abertura maioria dos casos, a barra de títulos do
precedente a home page. A inexistência deste navegador permanece intitulada com o nome
recurso atesta a predominância de uma boa genérico do portal. O caso mais grave é
prática de design. Ao optar pelo direcionando protagonizado pelo site de Porto Alegre, onde
do cidadão diretamente para a página prin- há páginas, como a do “Orçamento
cipal do portal, sem retê-lo com mensagens Participativo”, que sequer apresentam título,
introdutórias ou propaganda não solicitada, mostrando apenas a URL do arquivo. Esta
elimina-se etapas desnecessárias de navega- deficiência reflete diretamente na forma como
ção, diminuindo o tempo de conexão e as páginas são registradas nos bookmarks do
encurtando o caminho entre o usuário e o usuário, dificultando a sua identificação em
serviço por ele desejado. No entanto, todos futuras consultas. Por isso, embora todos os
os portais apresentam problemas em relação portais permitam o registro das páginas
a algum dos indicadores de contexto e lo- internas nos bookmarks, notadamente pelo
calização. As interfaces das cidades de São fato de nenhum deles utilizar frames na
Paulo e Porto Alegre não mantêm inalterado interface, apenas o da cidade de São Paulo
o menu de navegação global nas páginas garante uma correta identificação destas
internas, exigindo do usuário um esforço páginas.
adicional na percepção da arquitetura do site16. No último grupo de questões acerca da
No entanto, no caso do site da cidade de São navegabilidade, constatam-se significantes
Paulo, deve-se reconhecer o esforço de limitações na oferta de ferramentas de apoio
padronização aplicado à interface desta ci- à mobilidade. O único ponto positivo veri-
dade, sendo que na maioria das suas áreas ficado é que todos os portais, com a exceção
o cidadão tem sempre à disposição o menu apenas do de Porto Alegre, apresentam um
de navegação principal, exceto em algumas campo de motor de busca na home page.
seções como, por exemplo, naquela dedicada Entretanto, este recurso só é mantido nas
à Cidadania. Nesta seção, ao optar por in- páginas internas dos sites dos estados do Rio
formações sobre os Telecentros, é defronta- de Janeiro e São Paulo, sendo que neste
do, sem aviso prévio, com um novo espaço, último, o campo é substituído por um link,
onde a uniformidade da interface anterior é o que reduz a sua eficiência mas não a anula
abandonada. de todo. Aprofundando mais a verificação da
Os portais das cidades de São Paulo e qualidade do serviço de busca oferecido, nota-
Porto Alegre também não oferecem ao usu- se que nenhum dos portais disponibiliza
ário uma sinalização adequada da sua loca- recursos de busca avançada ou instruções
lização quando nas páginas internas do site. para a pesquisa. No que se refere à presença
Na avaliação deste critério não foi verificada de mapa do site, o portal do estado do Rio
a utilização de qualquer recurso que comu- de Janeiro é o único a disponibilizar link para
nique a posição em relação a home page e este tipo de navegação remota, tanto na home
a seção na qual o usuário se encontra. page quanto nas primeiras páginas das seções
Entretanto, vale ressaltar o esforço do site internas.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 287
9
versidade do Minho/Cadernos Inter.face, De acordo com o estudo, os
2003, [On-line] Disponível na Internet via estágios‘informativo, interativo e transacional são
WWW: http://www2.dsi.uminho.pt/gavea/ anteriores ao integrativo (Campos et al, 2002: 10).
10
Neste país, o Observatório do Mercado das
downloads/EstCam2002-v3.pdf (acessado em
Tecnologias e Sistemas de Informação avaliou, em 2000,
06.10.2003). a presença das câmaras municipais na Internet e concluiu
Sears, A., Introduction: empirical studies que enquanto 97% disponibilizam informações gené-
of WWW Usability, International Journal of ricas do município, apenas 23% oferecem informação
Human-Computer Interaction, 12 (2), 2000, específica sobre a própria prefeitura. O quadro se agrava
p. 167-171. em relação aos serviços interativos ou transacionais,
Shneiderman, B., Designing the user com apenas 2% das câmaras a incorporá-los aos seus
interface, Reading, MA, Addison-Wesley, Web sites. Considerando todos os fatores da avaliação,
1998. conteúdos, serviços e interface, o estudo revela que
apenas 6% dos portais são excelentes e 20%, bons
Tsagarousianou, R. et al, Cyberdemo-
(Santos e Amaral, 2000). Embora os portais tenham
cracy: technology, cities and civic networks, alcançado resultados mais positivos na segunda ava-
Londres, Routledge, 1998. liação, realizada em 2003, a oferta de serviços per-
manece com índices baixos, referindo a apenas 7%
do conteúdo disponibilizado, e nenhum dos web sites
_______________________________ atingiu ainda o mais elevado patamar de maturidade
1
Professor, Universidade Federal da Bahia (Santos e Amaral, 2003: 69-72).
11
(Brasil). Este estudo abrange o buscador nacional
2
Professor, Universidade Federal da Bahia do UOL (http;//www.radar.uol.com) e a versão
(Brasil); Estudante de Doutoramento, Universida- brasileira do Yahoo! (http://www.yahoo.com.br) e
de de Aveiro. do Google (http://www.google.br).
3 12
Estudante de Doutoramento, Universidade O nível de visibilidade de uma URL nos
Federal da Bahia (Brasil). motores de busca depende da qualidade dos
4
Estudante de Mestrado, Universidade Fede- metadados inseridos nas páginas do web site. Os
ral da Bahia (Brasil). metadados são palavras-chave embutidas no
5
Estudante de Graduação, Universidade código HTML de uma página que garantem a sua
Federal da Bahia (Brasil). correta indexação pelos mecanismos automáticos
6
Tendo em vista as potencialidades que a Internet de catalogação da World Wide Web (sobre o
pode trazer para a dinâmica do espaço urbano, a assunto, ver McGovern et al; 2001).
13
pesquisa “Cibercidades” está sendo realizada atra- De acordo com a 13a. Pesquisa Internet POP
vés, dentre outras ações, de um mapeamento dos do IBOPE Mídia, em 2002, 88% dos domicílios
sites oficiais dos estados e capitais do Brasil, com utilizava linha comum de telefone como forma
a finalidade de identificar qual o nível de desen- de acesso à Internet (http://www.ibope.com.br/).
14
volvimento dos portais governamentais no país aos A pesquisa está em andamento na fase de
níveis de conteúdo e interface. Esse artigo trata da análise dos dados. Ver GPC, em http://
questão das interfaces em portais de governos locais www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/cibercidades.
15
do Brasil. Ver os estudos desenvolvidos pela FIRJAN-
7
Veja matriz de análise em anexo. Federação das Indústrias do Estado do Rio de
8
Palestra apresentada no IX Colóquio Inter- Janeiro (Campos et al, 2002; Cruz et al, 2002).
16
nacional de Análise das Organizações e Gestão Os portais dos Estados de São Paulo e Rio
Estratégica, Salvador, Bahia, Brasil, 2003. A de Janeiro não apresentaram problemas neste
pesquisa referida faz parte de um projeto de critério de avaliação.
17
monitoramento dos web sites das administrações Este tipo de página normalmente encontra-
estadual e municipal, iniciada em 1999 (ver se pré-configurada na instalação dos Web servers
Akutsu; Gomes de Pinho, 2001). utilizados pelas prefeituras e estados.
290 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ANEXO
I. Acessibilidade
Todos
Google
1. Em quais motores de busca e catálogos o site é apresentado
Yahoo! Brasil
entre as 10 primeiras ocorrências?
Radar UOL
Nenhum
Nenhum
2.1. Em quais navegadores do Windows XP Home Edition o site é Internet Explorer 6.x
operacional? Netscape Navigator 7.x
Ambos
Nenhum
Internet Explorer 5.x
2.2. Em quais navegadores do Mac OS X o site é operacional?
Netscape Navigator 7.x
Ambos
Nenhum
Mozilla 1.x
2.3. Em quais navegadores do Linux o site é operacional?
Netscape Navigator 7.x
Ambos
3. A página principal do site disponibiliza o símbolo de acessibilidade Sim
ao qual seja associada uma página explicativa sobre as
características do acesso universal? Não
Nenhum
Nível A
4. Qual o nível de conformidade da página principal com as
Nível AA
diretrizes do Web Content Accessibility Guidelines 1.0 do W3C?
Nível AAA
Não verificado
Sim
5.1. O site disponibiliza versão em língua estrangeira?
Não
Inglês
5.2. Em caso afirmativo, em quais línguas? Espanhol
Outras
II. Otimização
Inferior a 10 seg.
III. Navegabilidade
Bibliografía _______________________________
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En China existen más de 80 millones de
Calmon, R., “Arancelar los contenidos
personas que se conectan a Internet. Estados
de los diarios digitales es un camino de ida” Unidos es el primer país del mundo en número
en Blanco, D., en Clarín.com, número 2775, de usuarios (150 millones). Véase la siguiente
de 6 de noviembre de 2003, en la direccin: noticia: “China prohíbe abrir cibercafés cerca de
[http://old.clarin.com/diario/2003/11/06/t- las escuelas para proteger a los jóvenes” en
654102.htm] IBLNEWS (25/03/2004) [http://iblnews.com/news/
Dader, J. L: Los cinco jinetes print.php3?id=103913]. En este texto se indica
apocalípticos del periodismo español actual” además que según Amnistía Internacional China
ha incrementado en un 60% el número de
en Sala de prensa (www.saladeprensa.org) nº detenciones de cibernautas en los últimos dos años.
65 Marzo 2004. Año VI. Vol. 3. 7
Una hora de conexión cuesta 2.000 dinares
Fernández Morales, I., “Sociedad de la (algo más de un dólar). Según una noticia
Información e Internet” en Pareja, Víctor publicada en Libertad Digital (02/12/04) “El uso
Manuel (Coord.), Guía de Internet para de Internet, ahora sin censura, se dispara en el
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Investigaciones Científicas (CSIC), 2003. w w w. l i b e r t a d d i g i t a l . c o m / . / n o t i c i a s /
noticia_1275770873.html] el ciudadano que quiera
García De Madariaga, J. M., “El
conectarse a Internet hoy en día tiene tres
periodista profesional ante la interactividad posibilidades: acudir a un cibercafé, aprovechar
digital” Comunicación presentada en el V las dos horas de conexión gratuitas ofrecidas por
Congreso de Periodismo Digital celebrado en el Ministerio de Información de 4 a 6 de la
Huesca entre los días 15 y 16 de enero de madrugada o comprar un acceso en el Ministerio
2004. (50 horas por 28 dólares) que por motivos de
En [http://www.congresoperiodismo.com/ saturación sólo se pueden usar a partir de la
medianoche y hasta las 6 de la mañana.
actualidad/noticia.asp?idNoticia=15]. 8
La red eléctrica es una red “global” que llega
Martínez Albertos, J. L., El Ocaso del a los lugares más remotos que podamos imaginar.
Periodismo, Barcelona, CIMS, 1997. Se estima que 3.000 millones de hogares del
Negroponte, N., El mundo digital, mundo tienen acceso a la red telefónica, frente
Barcelona, Ediciones B (4ªEd.), 1999. a los 8.000 millones de hogares que cuentan con
Pineda Alcázar, Migdalia, “El papel de red eléctrica. Op. cit. “Empresa valenciana diseña
Internet como un nuevo medio de un chip para la transmisión de Internet por la luz”
comunicación social en la era digital”. en:
[http://iblnews.com/news/
En [http://www.webjornalismo.com/
noticia.php3?id=94664&PHPSESSID=
sections.php?op=viewarticle&artid=62], ccb22627160e051d45f0daae689ce9bf]
2003. [Consulta: 11/12/2003].
Ramonet, I., La tiranía de la 9
Véase [http://www2.cronica.com.mx/
Comunicación, Madrid, Debate, 2001. nota.php?idc=116960]
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 299
10
C. Beckett et al., “Desconstruyendo la tecnológicos”, cuyos resultados se publicarán en
identidad del homo-digitalis”, Revista breve en un libro titulado El comunicador digital.
Comunicación nº 109, Caracas-Venezuela, Centro Un avance del mismo puede consultarse en http:/
Gumilla. 2000, p. 59. /cibersociedad.rediris.es/congreso/g24.htm.
11 15
El sábado 13 de marzo, jornada de reflexión Jose Luis, Dader, “Los cinco jinetes
anterior a las elecciones generales el tratamiento apocalípticos del periodismo español actual, Sala
de la información sobre el 11-M se conjugó con de prensa [http://www.saladeprensa.org] nº 65,
las nuevas tecnologías para sacar a la calle a miles Marzo 2004, Año VI, Vol. 3.
16
de personas. En 24 horas se dieron la vuelta los Nicholas Negroponte (1999:32) afirmaba ya
sondeos electorales y de las urnas salió un en 1995 que “Ser digital supondrá la aparición
Presidente del Gobierno que unos días antes veía de un contenido totalmente nuevo. Surgirán nuevos
incierta su victoria. Véase el artículo “Pásalo” en profesionales, inéditos modelos económicos e
La Razón digital de 26/03/2004 [http:// industriales locales de proveedores de información
www.larazon.es/ediciones/anteriores/2004-03-24/ y entretenimiento”.
17
noticias/noti_rep03.htm] Jaime Alonso y Lourdes Martínez, Medios
12
Íbid. interactivos: caracterización y contenidos, en Javier
13
Así lo ha declarado, por ejemplo Tom Hogan, Daz Noci, y Ramón S (Coords.), Manual de
Director General de Vignette, una de las empresas redacción ciberperiodística. Barcelona: Ariel,
líderes en el mercado de gestión de contenidos en 2003, p. 281.
18
Internet que soporta los portales y aplicaciones web En este sentido el periodismo digital tiene
de más de 1.600 empresas e instituciones -entre por delante un gran reto: desarrollar un lenguaje
ellas Telefónica, Vodafone y Amena. apropiado para el nuevo soporte en el que
14
Es muy interesante el trabajo realizado por convergen texto, audio, imgenes fijas y en
un equipo de profesores de la Facultad de Ciencias movimiento y bases de datos y adaptado a un
Sociales y de la Comunicación de la Universidad nuevo modelo de comunicación en la que el
Católica San Antonio de Murcia (UCAM) en el receptor (usuario) decide qu contenido quiere
que tambin ha colaborado el Profesor Jerome recibir, cómo y cuándo lo quiere.
19
Aumente, Director del Journalism Research Jaime Alonso y Lourdes Ortiz, Op. cit., p.
Institute (JRI). Se trata del PROYECTO DE 264.
20
INVESTIGACIÓN PMAFI-PI-07/1C/01 José Luis Martínez Albertos, El Ocaso del
“Transformaciones e innovaciones en las Periodismo. Barcelona, CIMS, 1997.
21
estrategias, protocolos y perfiles profesionales de Ignacio Ramonet, La tiranía de la
la comunicación en los nuevos entornos Comunicación. Madrid, Debate, 2001.
300 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 301
aumentando muito as proporções das neces- redes digitais requer o acesso simultâneo ou
sidades de armazenamento e a complexidade concorrente por vários usuários, cujas ope-
dos processos de recuperação e rações podem interagir, gerando inconsistên-
processamento dos dados. A principal dife- cias. Por exemplo, dois investidores, base-
rença existente entre as Bases de Dados ados em notícias em tempo real, descobrem
modernas e classificação mais antiga de que seria um bom investimento comprar todos
coleção de arquivos suportados pelo sistema os estoques de soja e autorizam seus agentes
operacional reside na possibilidade de rela- a comprá-los. Como somente um deles pode
cionamento dos dados entre si. Por mais concluir a ação, quanto antes a informação
complexa que seja uma coleção de arquivos sobre a compra e, se possível, quem com-
não reflete o inter-relacionamento que existe prou, chegar aos demais agentes do merca-
entre os dados nem as regras de consistência do, mais rapidamente estes atores poderão
que explicitam estes inter-relacionamentos se preparar para as conseqüências desta
(GUIMARÃES, 2003:20). transação. Em situações como estas somente
Chamadas entre os especialistas de regras o controle automático da concorrência, que
de negócio, tais regras podem, em alguns impede a continuidade de ações contraditó-
casos, ser simples como, por exemplo, reque- rias, tão logo um dado seja computado pelo
rer que a Lista das fontes que fazem parte sistema, pode garantir que o jornalismo
dos contatos do Editor de Esportes esteja acompanhe o ritmo deste tipo de transações,
contida na Lista Global de fontes mantida pela sem correr o risco de divulgar informações
Intranet da organização jornalística e na Lista inconsistentes. No século passado, quando da
de Fontes preferenciais do Editor Chefe. Em vinculação das transações na Bolsa de
outros casos, as regras podem ser mais com- Mercadorias às informações difundidas pelas
plexas, quando envolvem relacionamentos redes de telégrafo eliminou as diferenças entre
entre fontes, repórteres de distintas editorias, diferentes praças financeiras, para manter o
editores, colunistas, colaboradores e cronistas, controle do mercado remoto, a Bolsa de Nova
por exemplo, refletindo formas complexas e York decidiu estabelecer uma diferença de
específicas de gestão da informação e de 30 segundos em relação ao fechamento da
relações entre diversos profissionais envolvi- Bolsa de Boston.
dos no processo de produção de conteúdos Um lapso de tempo a uma só vez es-
em uma organização jornalística. sencial para o processamento quase que
Ao contrário das antigas coleções de totalmente mecânico das informações e
arquivos em que as informações são colo- necessário para que se especulasse, compran-
cadas uma a uma, uma Base de Dados do ou vendendo uma mercadoria que poderia
relacional possui uma característica, a sequer estar mais disponível. Neste começo
atomicidade, que estabelece a dependência de novo milênio, em que o tempo entre o
de que certas operações sobre os dados devem fechamento das transações e sua divulgação
ser feitas de forma conjunta e indivisível para pode ser de somente 15 segundos, mais que
preservar a consistência do sistema, mesmo nunca, a redução das inconsistências na
na presença de falhas no equipamento ou na produção das informações jornalísticas em
comunicação com a base de dados (GUIMA- tempo real fica atrelada ao desenvolvimento
RÃES,2002:21). Por exemplo, a partir de um de bancos de dados capazes de fornecer de
terminal remoto um repórter atualiza os forma automática os resultados destas mo-
resultados da rodada do campeonato nacio- vimentações dos agentes econômicos aos
nal de futebol. Seria inaceitável que, após jornalistas.
a atualização do resultado de um determi- Quando um raio X instantâneo da situ-
nado jogo, uma falha na comunicação ou no ação aparece como uma exigência prévia para
sistema impedisse uma atualização automá- uma intervenção inteligente em um sistema
tica dos demais dados do sistema envolven- de ações complexas e interligadas, talvez um
do os times ou mesmo os atletas relaciona- dos requisitos mais elementares de uma Base
dos com o dado alterado antes. de Dados que serve a uma organização
O funcionamento de uma Base de Dados jornalística seja a disponibilização confiável
de uma organização jornalística que opera nas e ininterrupta das informações aos usuários.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 303
A Base de Dados deve ser segura o sufici- Coube ao russo Lev Manovich o
ente para, em caso de falta de energia ou pioneirismo na demonstração de como os
de uma falha operacional, ativar de forma trabalhos de multimídia são compatíveis com
automática dispositivos de segurança capa- a forma cultural das Bases de Dados como
zes de colocar em funcionamento servidores modelo para a estruturação dos conteúdos
de reserva, garantindo a alimentação contí- apresentados. Para fins didáticos, no livro The
nua de informações que possibilita a inter- Language of new media, Manovich opta por,
venção dos atores sociais nos diversos sis- no primeiro momento, contrapor as formas
temas econômicos, políticos ou sociais. Se culturais da Narrativa e da Base de Dados.
o dispositivo de segurança for insuficiente, Somente ao final do capítulo que trata deste
a Base de Dados jornalística deixa de cum- tópico específico, Manovich defende a com-
prir com a função de retroalimentar o sis- patibilidade entre a noção do Banco de Dados
tema, o que pode comprometer a com uma forma de estruturação de informa-
racionalidade de todas as ações. ções e como um suporte para novos modelos
Até aqui vimos as especificidades das Bases de narrativa multimídia. Para Manovich os
de Dados e as suas possíveis aplicações como jogos de vídeo, por exemplo, são experimen-
uma forma cultural que estrutura os sistemas tados pelos usuários como narrativas enquanto
de produção de conteúdos das organizações que uma variedade de produtos – de CD-
jornalísticas. A compreensão das empresas ROMs a Sítios Web – o são como Bases de
jornalísticas enquanto organizações complexas Dados:
que obedecem etapas previamente programáveis
exige a aproximação das teorias do jornalismo “Thus, in contrast to a CD-ROM and
da ciência da computação. No próximo tópico Web database, which always appear
veremos como a computadorização da cultura arbitrary because the user knows
provoca a gradual reformulação das práticas additional material could have been
comunicacionais, que passam a adotar concei- added without modifying the logic, in
tos e lógicas oriundas do reino dos computa- a game, from the user’s point view,
dores. all the elements are motivated (i.e.,
their presence is justified)”
2. Base de Dados como suporte para (MANOVICH, 2001:220).
narrativas
Como se trata de uma lista seqüencial de
Naturalmente, nem todas as organizações elementos separados (blocos de textos, ima-
jornalísticas estão estruturadas como sistemas gens, vídeo clips e links), uma página web
de Bases de Dados complexas. Seja do ponto encarna uma lógica similar a dos Bancos de
de vista da gestão das informações, seja do Dados. A natureza aberta da Web a trans-
ponto de vista do armazenamento e recupe- forma em um meio incompleto e em per-
ração dos dados e, sobretudo, como um manente crescimento. (MONOVICH,
suporte para novos modelos de estruturação 2001:221). Na comparação preliminar que faz
de narrativas. Uma situação que antes de ser entre as duas formas culturais, Manovich
surpreendente chega a ser corriqueira na caracteriza a Base de Dados como uma lista
história dos meios de comunicação, como desordenada de itens, enquanto que a Nar-
relata Gosciola: rativa aparece definida como uma trajetória
de causa e efeito entre eventos, aparentemen-
“A arte de contar histórias é uma qua- te, desordenados. Se levássemos ao pé da letra
lidade por vezes deixada em segundo a conclusão que Manovich extrai desta dis-
plano quando uma nova técnica ou tinção parece que haveria pouco espaço para
uma nova tecnologia surge. No co- o desenvolvimento de nossa hipótese de Base
meço do cinema, as histórias eram de Dados pode servir como suporte para o
muito mais simples e rudimentares até desenvolvimento de narrativas multimídia:
se comparadas às histórias apresen- “...database and narrative are natural enemies.
tadas pela literatura da mesma época” Competing for the same territory of human
(GOSCIOLA, 2003:19). culture, each claims an exclusive right to
304 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
make meaning out of the world” conceito clássico de Narrativa quanto com
(MANOVICH, 2001:225). Mas, logo adian- o de Banco de Dados, pode-se incorrer no
te, o próprio Manovich inverte por completo equívoco de considerar uma sequência de
a situação, quando assume que, por detrás registros arbitrários de uma Base de Dados
das aparências, todos os novos meios são como uma Narrativa. Nada menos aconse-
Bases de Dados: lhável. Como sabemos, para receber a eti-
queta de Narrativa um objeto cultural deve
“In general, creating a work in new satisfazer uma série de critérios como ter um
media can be understood as the narrador, ao menos um ator, e uma história
construction of an interface to a com uma seqüência de eventos causados e
database. In the simplest case, the experimentados pelo ator.
interface simply provides access to the Na verdade, por mais que o caráter
underlying database” (MANOVICH, multifacético da Base de Dados possa au-
2001:226). torizar pensar o contrário, na cultura dos
computadores, mesmo que compatíveis um
Na era dos computadores, defende com o outro, Narrativa e Base de Dados
Manovich, a Base de Dados acaba se tor- mantém cada um seu próprio status:
nando a forma cultural que estrutura todo o
processo criativo, considerando que um objeto “In new media, the database supports
da nova mídia consiste de uma ou mais a variety de cultural forms that range
interfaces a uma Base de Dados de material from direct translation (i.e., a database
multimídia. Quando caracteriza a Base de stays a database) to a form whose
dados como a forma cultural que permite logic is the opposite of the logic of
quase que todo o processo criativo na era the material form itself – narrative.
dos computadores, Manovich percebe que More precisely, a database can support
mais interessante que contrapor Narrativa a narrative, but there is nothing in the
Base de Dados, para a exata compreensão logic of the medium itself that would
dos processos culturais em curso, talvez seja foster its generation” (MANOVICH,
mais conveniente redefinir o conceito clás- 2001:228).
sico de Narrativa:
Logo, como acentua Manovich, nada
“The “user” of a narrative is traversing menos surpreendente do que a relevância
a database, following links between alcançada pelas Bases de Dados no território
its records as established by the das novas mídias. No parágrafo final deste
database’s creator. An interactive tópico Manovich apresenta uma pergunta: por
narrative (which can be also called a que a narrativa todavia existe nas novas
hypernarrative in an analogy with mídias? A solução do enigma, cremos, tenha
hypertext) can then be understood as sido colocada pelo próprio Manovich: sim-
the sum of multiple trajectories plesmente porque a Base de Dados pode
through a database. servir de suporte para o desenvolvimento de
diferentes modelos de Narrativa multimídia.
A partir desta nova definição proposta por Mas, se apesar da compatibilidade com a
Manovich, antes da Base de Dados aparecer Narrativa nada nesta forma cultural promove
como o responsável pelo epitáfio da Narra- a sua geração espontânea, como podemos
tiva clássica, ao contrário, o caráter constatar pelo escasso uso destes recursos no
multifacético desta forma cultural, permite caso que mais nos interessa neste estudo, as
que a Narrativa linear convencional seja organizações jornalísticas, o que deveria ser
incorporada como uma das possíveis feito para melhor aproveitar as
trajetórias escolhidas pelo usuário dentro de potencialidades das Bases de Dados como
uma hipernarrativa. Mas, justo pelo fato do suporte para criativos modelos de narrativa
Banco de Dados como forma cultural apre- multilinear e multimídia?
sentar um caráter multifacético, que torna Em primeiro lugar, deveríamos ter claro,
pouco recomendável operar tanto com o como aconselha Roland De Wolk, que contar
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 305
uma história multimídia é diferente de tudo empresas. Uma opção que talvez seja uma
o que se faz nos meios convencionais porque possível consequência do senso comum das
a história é construída de diversas maneiras redações que defende que o jornalismo deve
e considera diferentes pontos de vista (De cuidar da cobertura do presente, cabendo o
WOLK, 2001:126). Em segundo lugar, de- tratamento da memória social à História. Nada
veríamos compreender que, afora os compo- mais equivocado, como veremos ao longo
nentes econômicos, culturais ou políticos, a deste tópico.
plena utilização das Bases de Dados como No mundo das redes digitais a memória
espaço para novos modelos de narrativa antes de refletir um passado morto, apresenta
depende, ao menos, de dois fatores: 1) do parâmetros para aumentar o coeficiente de
desenvolvimento de programas de autoração previsão no fluxo ininterrupto de circulação
compatíveis com as necessidades das orga- de notícias:
nizações jornalísticas e 2) da capacitação de
profissionais para contar de forma apropri- “O cenário emergente da cultura das
ada às reportagens publicadas. redes exige que cada organização jor-
nalística assuma a função de articular
3. A Base de Dados como memória no um sistema orgânico de saberes, aban-
jornalismo digital donando a metáfora do arquivo como
um depósito de registros do passado,
Se gravar e arquivar o nosso passado uma fonte auxiliar de pistas para re-
parece uma obsessão para a lógica da cultura portagens e um guia para o trabalho dos
e da técnica contemporâneas, impregnando jornalistas”, (MACHADO, 2002:54).
não somente o processo coletivo, mas a vida
cotidiana, os modos de pensar e as convic- Para cumprir com a nova função toda
ções pessoais, por que tão poucas organiza- organização jornalística deve adotar a forma
ções jornalísticas estão estruturadas na forma de uma Base de Dados complexa, que sirva,
de Bases de Dados complexas? Um fato mais como vimos, de estrutura para a organização
estranho quando se sabe que desde os anos das informações, de suporte para composi-
1980 a Base de Dados funciona como es- ção de narrativas multimídia e, acima de tudo,
trutura para armazenar notícias no permita a atualização constante da memória
organograma das organizações jornalísticas. armazenada.
Um serviço a mais que oferecia aos usuários Neste caso, deveríamos inverter o pos-
externos textos memorizados, artigos do tulado aristotélico que privilegia a mnémè,
próprio jornal ou de outras fontes. O The New centralizando o processo de preservação do
York Times Information Bank, por exemplo, passado na correta impressão da memória,
reunia um total de três milhões de documen- para recuperar a função da anámnèsis, en-
tos na metade dos anos 80 (COLOMBO, carregada de ativar o passado de acordo com
1991:26). as demandas do presente. Enquanto persistir
Ora, talvez tenhamos que voltar a dis- a tradição mnemotécnica fundada pela retó-
tinção feita entre mnémè e anámnèsis por rica a lógica do arquivamento nas organiza-
Aristóteles no De Memória et Reminiscentia ções jornalísticas, incluindo as digitais, es-
para compreender os motivos da falta de tará vinculada à capacidade de armazenar os
potencialização das organizações jornalísticas dados corretamente, ficando a atualização da
na forma de Bases de Dados. Para Aristóteles memória em plano secundário. “O ato de
a primeira faculdade consiste na simples recuperar a informação não é nada além de
conservação do passado, enquanto que a uma consequência direta que põe em ação
segunda possibilita a sua ativação mais a vontade do que a competência do
(COLOMBO, 1991:17). Até aqui a vocação usuário” (COLOMBO, 1991:33). Ao usuário
para a memória que permeia a cultura e a cabe eleger numa tela o conjunto de seleções
evolução tecnológica ao conceber o arqui- possíveis para aceder de forma remota aos
vamento jornalístico como conservação do dados disponibilizados, sem possibilidade de
passado favoreceu que o arquivo ocupasse colaborar para incrementar a complexidade
uma função marginal no organograma das da Base de Dados.
306 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
A manutenção da lógica arquivística nas datas, por exemplo. Para que o princípio da
organizações jornalísticas digitais contraria as transcodificação seja aplicável ao jornalismo
características da memória no ciberespaço digital, a Base de Dados deve servir tanto
porque mantém um processo individual e como um espaço para a experimentação de
centralizado de produção. Em contrapartida, formas diferenciadas de narrativa multimídia,
Palacios (2002:22) considera que a memória quanto como uma fonte de atualização do
no jornalismo digital seja ao mesmo tempo presente vivido à luz da memória armaze-
múltipla, instantânea e cumulativa. Se esti- nada.
vesse estruturada como um Banco de Dados O primeiro requisito para constituir uma
a organização jornalística poderia incorporar estética própria para as organizações
tanto os usuários no sistema de produção jornalísticas nas redes digitais passa por
quanto reutilizar de forma instantânea os perceber que nas novas mídias os elementos
fundos documentais armazenados. Como o constitutivos da narrativa são formatados
atual modelo de utilização da memória como Bases de Dados. Mais que lamentar
desconsidera as lógicas estruturantes do que, até agora, a Base de Dados, tenha
ciberespaço, os arquivos das organizações contado tão pouco como estrutura fundadora
jornalísticas são relegados a uma situação das diversas relações estabelecidas dentro das
marginal na economia produtiva das empre- organizações jornalísticas, deveríamos iden-
sas, seja no processo de produção dos con- tificar as verdadeiras causas deste
teúdos, seja como espaço para testar formas descompasso. Afinal, se nossa hipótese es-
diferenciadas de captação de recursos. tiver certa, o futuro das organizações
O formato padrão do arquivo jornalístico, jornalísticas nas redes, permanece condici-
concebido como um apêndice da organiza- onado a capacidade que teremos de traduzir
ção, ordena o passado como um retrato fixo as habilidades potencializadas pelos Bancos
e imóvel no tempo, enquanto que a verda- de Dados para automaticamente armazenar,
deira força do passado, como diz Pedro Nava, classificar, indexar, conectar, buscar e recu-
vem da multiplicidade e da simultaneidade perar vastas quantidades de dados em tipos
como são organizadas as lembranças para criativos de narrar o passado imediato como
atender as demandas do presente. “As recor- se fosse um presente projetado em direção
dações, sempre contraditórias, vão e vem ao futuro (GOMIS,1991:32).
segundo as solicitações da realidade atual, A estruturação dos modelos de produção
sempre efêmera e em constante negociação de conteúdos jornalísticos como Bases de
seja com o passado, seja com o futuro” Dados representa um esforço para adaptar as
(NAVA, 2000:213). Quando organiza o sis- organizações jornalísticas as características
tema de produção de forma independente da dos sistemas de memorização contemporâ-
memória armazenada, fica difícil para a neos. Na atualidade, a transferência da res-
empresa jornalística cumprir com sua função ponsabilidade de arquivar o passado para os
de estabelecer uma mediação entre passado grandes sistemas sociais de memória – como
e futuro, dando ao usuário a sensação de que, as organizações jornalísticas – revela uma
por viver em um presente contínuo, pode progressiva exteriorização das lembranças in-
controlar o futuro (GOMIS, 1991:33). dividuais e sociais. Uma exteriorização, ao
A plena incorporação pelas organizações menos se consideramos os modelos de ar-
jornalísticas da lógica dos Bancos de Dados quivamento nas organizações jornalísticas,
depende da utilização casada das funções de contraditória: de um lado, considera-se que
modelo de estruturação da informação, es- o individuo deveria confiar cada vez menos
paço para criação de narrativas e lugar para na capacidade pessoal de rememoração dos
ativação da memória. Como um simples fatos porque se encontra no centro de um
arquivo do conteúdo das publicações passa- sistema de redes informativas, enquanto, de
das, mesmo que organizada na forma de uma outro, nos sistemas sociais de memorização,
Base de Dados, uma empresa jornalística incluindo os jornalísticos, cabe ao usuário,
continua oferecendo ao usuário um conjunto como bem define Colombo, atuar como
de itens isolados, como resultado de buscas coadjuvante no direito de usufruir de um
pré-estabelecidas por palavras-chave ou por passado morto (COLOMBO, 1991:119).
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 307
“Nobody knows for sure how the new assumia o lugar central para que as discus-
interactive media will develop or how sões acerca da consolidação (ou não) de uma
they might shape the messages they nova mídia prosseguissem de forma sistemá-
deliver. We must make guesses about tica e acadêmica.
today, experiment with the new Por fim, ressaltamos que a configuração
technology, and try to understand desta comunicação também resulta das con-
how people will relate to it. But as tribuições de outras pesquisas relacionadas
we do, we have to be very sure about e integradas ao nosso tema central – a lin-
our purposes. The medium may affect guagem digital – desenvolvidas pelos pós-
the message, but the message comes graduandos do Núcleo de Jornalismo, Mer-
first. Just as with the use of marketing cado e Tecnologia da ECA-USP.
techniques, we have to know what we
want to say before deciding upon the 2. Conceitos, recortes e delimitações
best means of getting the message
through to the people we want to move A expressão “linguagens da informação
by it”. - Jack Fuller, jornalista. digital” que incluímos no próprio título deste
trabalho desencadeia, por si só, uma série de
1. Apresentação linhas de pensamento e campos do conheci-
mento que se entrecruzam para buscar uma
Desde o advento da World Wide Web uniformização do entendimento da expressão,
comercial, nos idos de 1992/93 e um pouco como a Teoria da Comunicação, a Semiologia,
mais tarde no Brasil, um dos aspectos mais a Arquitetura, a Informática, as Ciências da
discutidos tem sido a configuração de uma Informação e a Estética, entre outras.
linguagem informativa que explorasse os Evidentemente que tal amplitude foge aos
recursos tecnológicos inovadores trazidos propósitos de uma comunicação para um
pelos meios digitais – a hipermídia, e que simpósio e, portanto, optamos por delimitar
também preservasse as características ineren- e recortar os aspectos levantados, de forma
tes a cada especialidade midiática, a exem- a que pudéssemos apresentar coerência em
plo do jornalismo, da publicidade e dos meios nossas análises.
audiovisuais.
Nossas pesquisas, também iniciadas nos 2.1. As múltiplas visões da Linguagem
idos de 1992, inicialmente buscavam o en-
tendimento desta inovação tecnológica e o O primeiro recorte necessário refere-se ao
processo de sua absorção e utilização pelas conceito de Linguagem, com as devidas
empresas informativas2 e, conseqüentemen- precauções de não enveredarmos longamente
te, sua estratégia de viabilização empresarial para o campo dos estudos semióticos, sem
e consolidação como nova mídia para as qualquer vinculação aos meios digitais, um
empresas informativas3. O próprio processo de nossos objetos de investigação. Optamos
de pesquisa demonstrou, na medida em que aqui pela simplificação e pela objetividade.
acompanhávamos as criações, os modismos O professor Teixeira Coelho, da ECA-USP,
e o desenvolvimento da informação nos meios nos apresenta uma importante correlação entre
digitais, de que o trabalho de pesquisa lingüística e linguagem:
bastante aprofundado no campo da criação
de uma linguagem e definição de possibi- “A teoria linguística, cujo objeto de
lidades narrativas para a informação na web análise é a linguagem – que não deve
310 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ser entendida como simples sistema verbal e sonora – constituem-se nas três
de sinalização mas como matriz do matrizes de linguagem e pensamento:
comportamento e do pensamento
humanos – tem por objetivo a formu- “a partir das quais se originam todos
lação de um modelo de descrição os tipos de linguagens e processos
desse instrumento através do qual o sígnicos que os seres humanos ao
homem enforma seus atos, vontades, longo de toda sua história, foram
sentimentos, emoções e projetos. Apre- capazes de produzir. A grande vari-
sentando-se assim a linguagem como edade e a multiplicidade crescente de
um dos fundamentos das sociedades todas as formas de linguagem (lite-
humanas, não era difícil prever que ratura, música, teatro, desenho, pin-
a teoria lingüística acabaria por ser tura, gravura, escultura, arquitetura,
solicitada a prestar conta do que etc.) estão alicerçadas em não mais
ocorria em outros campos gerados e que três matrizes. Não obstante a
sustentados por aquela matriz funda- variedade de suportes, meios, canais
mental: o campo da arte, da (foto, cinema, televisão, vídeo, jornal,
arquitetura, do cinema e do teatro, rádio, etc.) em que as linguagens se
da psicanálise, da sociologia e ou- materializam e são veiculadas, não
tras áreas. E mesmo sem convite ela obstante as diferenças específicas que
acabaria, simplesmente, invadindo elas adquirem em cada um dos di-
esses domínios”. (TEIXEIRA COE- ferentes meios, subjacentes a essa va-
LHO, 2001: 15-16) riedade e a essas diferenças estão tão-
só e apenas em três matrizes”.
Numa revisão mais ampla entre os di- (SANTAELLA, 2001: 20)
ferentes pesquisadores do tema, a exemplo
de SANTAELLA, 2001; CRYSTAl, 2002; Já nos focando mais diretamente no
MURRAY, 1997; CHAPARRO, 2001; jornalismo, seus signos no campo da lingua-
PAVLIK, 2001; BOUGNOUX, 1995; COS- gem pertencem predominantemente à lingua-
TA, 2000 e CHOMKY, 1998, pudemos gem verbal, aonde inserem-se o texto e a
restringir um pouco mais as relações exis- escrita. Os sistemas sígnicos imagéticos e
tentes entre linguagens e novas mídias e, mais sonoros, apesar de não predominantes, pas-
adiante neste texto, o jornalismo inserido sam a ganhar espaço quando recursos
nesse contexto. tecnológicos funcionam como facilitadores da
A grande maioria dos autores localiza a linguagem.
linguagem num sistema de eixos ou ainda Através de CHAPARRO podemos situar
de matrizes de pensamento. Todas estas um pouco melhor o jornalismo no campo das
formas de conceituação inserem a linguagem ciências da linguagem:
em relações intrínsecas com a própria língua,
com mensagens e conteúdos e, alguns ou- “mais no jornalismo do que em outros
tros, com as formas e os meios de recepção, campos da linguagem escrita, a cla-
os contextos culturais e as variáveis reza vai além das questões de estilo
tecnológicas. e das capacidades do talento indivi-
HJELMSLEV (apud TEIXEIRA dual de quem escreve. Jornalismo é
COELLHO, 2001: 35 a 40) apresenta cinco texto de consumo rápido, imediato,
traços sem os quais não se pode falar na nos circuitos sociais. E carrega con-
existência de uma linguagem: os dois eixos sigo as subjetividades e complexida-
– o texto e a língua; os dois planos – de des de um processo interlocutório
expressão e de conteúdo; as relações entre muito amplo e complicado. Uma
expressão e conteúdo; as relações entre notícia, mais ainda uma reportagem,
unidades lingüísticas e a não-conformidade. é produto da interveniência interes-
Já a professora Lúcia Santaella, numa sada de múltiplos sujeitos, alguns
vertente peirceana, desenvolve a hipótese de deles partícipes dos fatos, outros,
que apenas três tipos de linguagem – visual, intérpretes dos fatos. Nos próprios
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 311
limites das redações, vários jornalis- riações encontradas. [...] Neste livro,
tas atuam no percurso da notícia – optei por uma ‘aproximação inicial’,
nem sempre harmoniosamente. A utilizando o termo variety sem quais-
questão da clareza está, pois, condi- quer outras correlações situacionais
cionada pela complicação das vinculadas à linguagem. Algumas
interações”. (CHAPARRO, 2001: 195) vezes, irei utilizar gêneros inseridos
na variedade. Na literatura internet
As referências aqui citadas nos interpõem essa terminologia modifica-se bastan-
dois condicionantes na relação linguagem e te conforme as diferentes situações de
jornalismo: 1) a complexidade decorrente do internet, com por exemplo, ambien-
processo interlocutório, aonde uma sucessão te, espaços interativos e espaços
de variáveis e variantes vai ocorrendo ao virtuais”. (CRYSTAL, 2001: 6)
longo da construção da informação jornalís-
tica; 2) a utilização de recursos de estrutura 2.2. Expressividade informativa nos meios
narrativa que são próprios do jornalismo, digitais
como a recorrência a algumas estratégias
narrativas para seu discurso referencial4. O segundo recorte refere-se ao campo da
Caminhando para as chamadas linguagens informação jornalística disponibilizado nos
digitais vemos que a maioria dos conceitos meios digitais e, especialmente, na web.
em literatura apresentam a linguagem a uma Apesar das recentes e importantes pesquisas
relação interdependente entre informação, sobre o uso da web como espaço para
computador e redes de transmissão de dados. narrativas ficcionais e também visuais, que
Surgem a partir disto os termos multimídia, nos fornecem interessantes insights sobre a
hipertexto e hipermídia, que se incorporam configuração de uma linguagem digital, a
e, muitas vezes se misturam, ao que preten- informação jornalística é nosso foco acadê-
demos conceituar como linguagem digital. mico primordial.
Sabemos que ainda não existe consenso Desde os primórdios e também num
sobre estes três termos – multimídia, processo de similaridade e repetição do
hipertexto e hipermídia. É neste momento que ocorrido com as demais mídias – especial-
surgem misturas, redundâncias e/ou novos mente a exemplo do rádio para a televisão
conceitos entre mídia e suporte, entre infor- – se pergunta como as informações deveriam
mação e comunicação, entre autoria e se expressar no meio digital, mantendo suas
interação, entre outras possibilidades. características de base conceitual e, ao mesmo
Santaella destaca que “pós digitalização, a tempo, aproveitando os diferenciais exclusi-
transmissão da informação digital é indepen- vos das NIC – Novas Tecnologias de Infor-
dente do meio de transporte (fio do telefone, mação e Comunicação5.
onda de rádio, satélite de televisão, cabo)” Como destacamos no item anterior, o
(SANTAELLA, 2001:24). Assim, o termo jornalismo nos meios digitais defronta-se com
hiper incorpora-se à construção da lingua- os condicionantes de complexidade dos
gem digital, uma vez que se reporta a es- agentes de interlocução e a caracterização de
truturas complexas alineares da informação. um novo estilo narrativo. Novamente, esta-
Finalizando esta breve revisão dos aspectos mos diante de duas temáticas extensas e que
de linguagem apresentamos a visão de ultrapassam os propósitos deste trabalho.
CRYSTAL que defende, com a disseminação Apenas destacamos a condicionante narrati-
da internet, o conceito de language variety: va estamos nos referenciando à construção
de um estilo de linguagem verbal, sonora ou
“é um sistema de expressão lingüística visual. Se pensarmos na linguagem digital,
cujo uso é regido por fatores podemos pressupor que seu estilo narrativo
situacionais. [...] à medida em que deveria integrar as três matrizes de lingua-
se desenvolve uma lingüística para a gem através da utilização dos recursos
internet, serão necessários modelos tecnológicos chamados por Santaella de
cada vez mais sofisticados para “hiper” – o hipertexto e a hipermídia. Se-
abarcar todas os elementos das va- gundo exposição da professora Cristina Costa,
312 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
“as narrativas são maneiras de expres- ma. Em outra pesquisa desenvolvida por esta
sar e realizar nossa temporalidade, tor- autora verificamos que:
nando-a tão objetiva quanto a certeza
de nossa finitude e transitoriedade. São “Tempo e espaço perdem seus parâ-
metáforas constitutivas de ordenação, metros físicos de medição e passam
de ritmos e seqüências seriais e cau- a funcionar no tempo e no lugar de
sais. E se não são capazes de criar re- cada um de das respectivas interfaces
almente uma duração, criam ao menos conectadas por uma rede de sinais
uma ‘ilusão de duração’. Assim, as es- elétricos. Compreender estas diferen-
truturas narrativas são formas de es- ças pode parecer abstrato para es-
tabelecer modulações e durações, trategistas e publishers de mídias
arquitetando a temporalidade humana”. digitais preocupados com sua renta-
(COSTA, Cristina, 2000: 41) bilidade, mas dá sentido à noção de
‘levar a informação na hora certa,
Verificamos, portanto, que o aspecto no lugar apropriado e do modo que
temporalidade é elemento constituinte fun- o usuário quer’. [...] O sistema téc-
damental para a estruturação de narrativas nico atual é dominado pelo transpor-
que se utilizam da linguagem digital. Em te de informações entre computado-
assim sendo, ao pensarmos na informação res que, por sua vez, possuem a
jornalística expressada em linguagem nos capacidade de controlar tempo e uni-
meios digitais, há que se considerar as formizar as mensagens. O estado da
variáveis tempo e também lugar (ou espaço) técnica atual permite não só a
como integrantes diferenciais. unicidades dos tempos, mas principal-
Em extensa pesquisa realizada por Cristina mente a convergência dos momentos,
Costa na ECA-USP (2002), embora focada nas não importando o estado físico e
narrativas ficcionais na web e suas possibili- concreto de pessoas e lugares. A
dades de interlocução e intervenção dos usu- possibilidade de deslocamento sem
ários, a professora identifica duas variáveis sair do lugar, de estar no fato, opinar
importantes: a primeira é o tempo narrativo sobre ele e trocar experiências sem
vinculado ao fato/tema, geralmente preservado sequer sair diante da tela de um
na interlocução e interação com o usuário como computador reposiciona a informação
forma de orientação e preservação do discurso; digital. Estaríamos diante de um novo
a segunda variável é o espaço/cenário narra- espaço?” (SAAD, 2003: 234-236)
tivos que proporcionam um sentido de lugar
e localização dos protagonistas dos fatos. Resumindo, a estruturação de estilos
Tais resultados de pesquisa, acrescidos de narrativos para o jornalismo, utilizando-se da
autores que também tratam extensivamente linguagem digital (embora ainda não total-
do tema, a exemplo de Manuel Castells mente conceituada e configurada), passa pelos
(sociólogo), Milton Santos (geógrafo), aspectos da complexidade, da utilização dos
William Mitchell (arquiteto) – humanistas que recursos “hiper” e de uma adequação de
têm em comum a preocupação com o ho- temporalidades e espcialidades. Tudo isso,
mem numa sociedade em mutação – nos sem deixar de lado os preceitos fundamen-
colocam uma segunda pressuposição para a tais dos valores-notícia e da ética jornalís-
sistematização de uma linguagem digital tica. Fechando com mais outras variáveis, a
voltada às informações jornalísticas: as exemplo das vinculadas aos aspectos de
variáveis de tempo e espaço como qualita- viabilização econômico-financeira e comer-
tivas neste processo de sistematização. cial da narrativa jornalística na web: susten-
Mundo digital e sociedade da informação tabilidade, lucratividade e oportunidade.
vêm atrelados à percepção coletiva de um
mundo onde tudo muda muito rápido, uma 3. A práxis da narrativa jornalística na web
sociedade em que as relações se estabelecem
sem a necessidade da presença física, em que Se considerarmos os primeiros sites in-
a eliminação das distâncias parece ser nor- formativos na World Wide Web, no Brasil
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 313
e também no exterior, vimos surgir, desapa- nirem seus projetos editoriais, esses
recer e ressurgir uma série de propostas portais criaram um compromisso com
narrativas nos meios digitais de comunica- a atualização permanente, uma abor-
ção que, se olhadas em conjunto ou também dagem conectada a uma idéia que
como um processo evolutivo, ainda não se define o meio como difusor de infor-
constituem numa práxis consolidada para a mação, mais do que formador de
informação digital. opinião. [...] em redações que funci-
Tomando por base o ambiente das onam 24 horas, 7 dias pode semana,
redações jornalísticas brasileiras que possu- a periodicidade passou a se confundir
íam/possuem produtos ou serviços na web, com instantaneidade”. (MARTINEZ,
poderíamos descrever um processo de “on- 2003: 99)
das sucessivas”:
a) a disputa inter-sites sobre a prioridade Um segundo aspecto a ser discutido como
de veiculação da informação, às vezes por práxis narrativa do jornalismo na internet
diferença de segundos: “qual site deu pri- brasileiro é o surgimento do “jornalista
meiro?”; b) a “normatização” de notícia em empacotador”, e aqui a pesquisa desenvol-
textos curtos e sucessivos como forma de criar vida pela professora Pollyana Ferrari Teixeira,
para os usuários sensações de “atualidade e que avaliou os portais UOL, Globo.com e
tempo real”; c) o conseqüente empilhamento Terra, constatou que,
da sucessão do fluxo noticioso; d) a trans-
posição pura e simples da informação “o caminho percorrido pela notícia,
construída para narrativas em meios impres- desde o seu surgimento na reunião de
sos para o meio digital; a utilização do recurso pauta, ou mesmo no momento em que
“enquetes” como ferramenta de o repórter ou o editor acessamos oa
“interatividade” na relação usuário – site; e) sites das agências de notícias, até a
um processo de repetição das narrativas sua publicação na internet demora,
verbais nas propostas de inclusão de links muitas vezes dez minutos. Por isso,
sonoros e/ou de imagens (fotos, vídeos), na no jargão jornalístico ‘empacotar a
intenção de incrementar a narrativa com re- notícia’ significa editar um material
cursos multimídia; f) a febre do “linkalism”6 que já está praticamente pronto”.
criando hiperlinks vinculados à publicidade (TEIXEIRA, 2002: 92)
e não ao conteúdo editorial; o atual predo-
mínio dos sistemas-robôs de inserção de O predomínio dos softwares ou siste-
notícias compradas em fluxos ou pacotes das mas publicadores também surge como uma
grandes agências noticiosas globais; g) uma práxis já bastante comum. Tais sistemas
perigosa tendência em substituir narrativas ultrapassam a condição de publicadores de
não lineares e navigacionais por versões em fluxos. Eles permitem uma pré-programação
formato PDF de conteúdos de suportes tra- para a publicação de conteúdos, automati-
dicionais. zando rotinas em horários de menor audi-
Destacamos, primeiramente, o aspecto dos ência, madrugadas e finais de semana; além
ritmos de publicação de informações notici- de algumas versões possuírem características
osas. Adriana Garcia Martinez, em sua dis- de agentes buscadores para rastrear os fluxos
sertação de mestrado, na qual descreve o das agências noticiosas através de palavras-
processo de constituição da narrativa jorna- chave.
lística no Portal IG, afirma: Ainda nesta etapa de levantamento de
questões, a professora Maria Regina Cardeal
“como vimos, dos ritmos possíveis de desenvolveu para sua tese de doutoramento
publicação pela internet, o que pa- uma metodologia que combina aspectos
rece ter sido mais utilizado pelos qualitativos e quantitativos para verificar a
portais brasileiros é o do tempo presença (em termos de importância edi-
urgente. Muito rapidamente percebeu- torial) e a freqüência do fluxo noticioso
se no Brasil que atualização constan- nos portais brasileiros, levando-se em
te é sinônimo de audiência. Ao defi- consideração as dificuldades de acesso ao
314 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
texto noticioso que, por conta da arquitetura que “interessam” ser vendidas mais rapidamen-
de multiplicação de links adotada por todos te. Não é o caso das notícias nos portais.
os portais, acaba fixando o usuário na leitura Segundo as conclusões das pesquisas de
das manchetes da lista atualizada minuto a TEIXEIRA, as informações temáticas e a
minuto (ver Quadro 1, página seguinte). prestação de serviços são as molas propulsoras
Referindo-nos aos aspectos qualitativos dos três portais analisados. Quantitativamente,
desse quadro, a pesquisadora definiu as seguin- através das páginas acessadas e registradas, foi
tes variáveis, com base na análise do dis- possível constatar que 99% do dia-a-dia destas
curso: globalização da notícia, cujo critério redações concentra-se em informações e pres-
foi o foco territorial de abrangência temática tação de serviços, e apenas 1% para o tradi-
– global ou local; características do noticiário cional fazer jornalístico.
– valor do conteúdo, predominância temática, Esta breve amostragem de resultados já nos
design do portal; e a relação notícia-tecnologia, aponta para um cenário de não sistematização
critério voltado para a exploração da hipermídia das atividades de uma redação estruturada para
(ver Quadro 2, página seguinte). os meios digitais que, em última instância, é
Mais um recorte de análise foi desenvol- o locus do desenvolvimento da narrativa di-
vido na mesma pesquisa conduzida pela gital. Tal cenário nos dá sustentação para apontar
professora Pollyana: a prática da usabilidade7 dois pontos-chave: a necessidade de transfor-
como forma de estimular o acesso a notícias mação do perfil profissional; e os aspectos de
nos portais por ela selecionados. Tenta-se, estratégia de empreendimentos informativos
aqui, estabelecer a relação entre conteúdo que, por conta de decisões de investimento e
e usabilidade através do cruzamento das modelo de negócios.
seguintes variáveis: acesso às homepages nos Pelo lado da transformação do perfil
horários de maior audiência; público-tipo; profissional, a pesquisa de MARTINEZ
oferta de conteúdos informativos. sugere como possíveis reposicionamentos: a
A pesquisadora levantou uma amostragem absorção do conceito de media literacy 8,
de 75 telas das homepages dos portais Terra, cunhado por KELLNER (2001); uma
UOL e Globo.com, na proporção de 25 telas consequente transição do papel de filtrador
por marca, avaliando os espaços reservados da realidade para um novo e desconhecido
à cobertura jornalística, ao comércio eletrônico, papel de agregador.
bate-papo, comunidades, etc. Algumas de suas Pelo lado do custo-benefício do
conclusões foram bastante significativas: determinismo tecnológico que a pesquisa re-
a) a grade de atualização das primeiras centemente publicada desta autora propõe à
páginas dos portais assemelha-se muito com empresa informativa e seus profissionais ain-
as grades de programação de televisão; b) da estão em gestação as tarefas de criação de
os portais analisados apresentam um conjun- fortes vínculos com os usuários do mundo
to de “conteúdos-âncora”: ferramenta de digital. É um processo de re-aprender a
busca, bate-papo, canais de conteúdos reutilizar sua própria produção de informação,
temáticos, comércio eletrônico, comunidades, aproveitar todo os materiais de captação, a
discos virtuais, e-mail, esportes, hospedagem armazenar o que antes era jogado fora se não
de páginas pessoais, jogos, tempo e notícias; publicado, a potencializar com recursos
c) a informação textual preencheu quase a tecnológicos o que antes era estático, a com-
totalidade das telas com resolução 800x600 preender a informação como um conjunto re-
pixels; quase sempre as chamadas noticiosas organizável de dados, imagens e sons que pode
e as fotos nas primeiras páginas dos três ser estruturado (através de narrativas especí-
portais são as mesmas ao longo dos diferen- ficas) adequadamente para qualquer mídia,
tes picos de audiência; d) de forma fixa ou incluindo as tradicionais. (SAAD, 2003: 78)
intermitente portais apresentam atrações
multimídia na homepage; as ofertas de in- 4. Reflexões e algumas propostas
formação ficam expostas numa espécie de
metáfora do hipermercado: o que é exposto Podemos sugerir, a partir destas primeiras
na altura dos olhos pelas gôndolas são as marcas pesquisas que os caminhos para reformular o
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 315
Quadro 1
Sumário quantitativo da cobertura de um dia nos portais UOL,
Estadão.com e Globo.com (Setembro 2000)
Quadro 2
Sumário da análise do noticiário nos portais UOL, Estadão.com, Globo.com
Período – Agosto a Setembro 2000
Aspecto
Primeiras conclusões
qualitativo
UOL: predomínio das notícias “globalizadas
Globalização Globo: predomínio das notícias locais
da notícia Estadão: aparente preponderância das notícias locais
Uso intensivo de traduções das agências internacionais
Tendência à homogeneização
Primazia para notícias com valor de mercado
Economia predomina á política editorial e em design
Maior espaço de cobertura a eventos globais
Características
Aparente equilíbrio entre global-padronizado e local-segmentado para
do noticiário
notícias de caráter trágico-espetacular
Estrutura gráfica e editorial interlia, nessa ordem de importância, aos
seguintes esforços: a) atrair público; b) fixar uma marca; c) obter receita e,
d) oferecer conteúdo.
Profusão de repetições de notícias por problemas técnico-editoriais
Lista de temas múltiplos e sucessivos confere peso semelhante a
Tecnologia informações de temas e importância diversos
Pouca informação visível para o uso do hipertexto ou da interatividade
Nova mídia não dá origem a um novo gênero jornalístico.
Fonte: CARDEAL, 2003: 280
316 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
atual status da narrativa jornalística na web rias nas estruturas das redações e também
brasileira se entrecruzam obrigatoriamente na da cadeia de valor da indústria da informa-
busca de uma narrativa adequada à linguagem ção e, por fim um realinhamento das rela-
proposta pelas mídias digitais. Para isso, há ções inter e intra empresas informativas,
que se assumir como linha de pensamento e jornalistas, os diferentes públicos: leitores,
valores que hoje a World Wide Web é a mais fontes, concorrentes, anunciantes e governo.
recente mídia que se incorpora aos demais (PAVLIK, 2001: xii)
meios de comunicação. Com tal status, en- Ramón Salaverría, Diretor do MMLab
tramos no campo da linguagem: um meio que (Mídia Lab) da Universidade de Navarra, na
possibilita a produção de sentidos e signifi- Espanha, propõe uma matriz de construção
cados para o individual e também para o narrativa baseada em células informativas:
coletivo. Sentidos e significados só são
traduzidos através de especificades narrativas “...se os tipos de narrativa jornalís-
que tipificam o meio. tica funcionam de fato como unida-
A vertente que expusemos desemboca na des estruturais de sentido dentro dos
emergência de formas narrativas para a web que gêneros jornalísticos tradicionais,
contemplem a informação jornalística em seus salta aos olhos sua utilidade como
diferentes gêneros e expressões. Tema centro de critério para decompor os mesmos
atenções constantes de pesquisadores como textos em conjuntos orgânicos inter-
MURRAY, PAVLIK, CRYSTAL, SALAVER- ligados pelo hipertexto. [...] a mesma
RÍA, COSTA, CHAPARRO, FULLER, entre informação poderia se decompor em
muitos outros, dos quais destacamos: unidades textuais e infográficas de
O jornalista Manel Carlos Chaparro, sentido pleno, distribuídas em diver-
aponta para o desaparecimento da perio- sas matérias correlacionadas em
dicidade e pela “mutação genética”9 do função de seus conteúdos. [...] tal
jornalismo no meio digital, tornando-se ele- estrutura não pode ser considerada
mentos desestruturante das rotinas narrativas: como fechada, mas sim como um
conjunto de elementos conectados
“Tocamos, assim, numa das variáveis pelo hipertexto cujas partes seria di-
mais interessantes e instigantes da tadas de rolar dos acontecimentos
crise que a tecnologia criou no jor- a cada caso. (SALAVERRÍA, 1999)
nalismo diário: o desaparecimento
daquele histórico intervalo chamado Já enveredando por formatos para esta
periodicidade, que organizava a narrativa integradora de recursos temos as
atualidade e que poderíamos explicar contribuições de David Crystal que coloca
assim: as coisas aconteciam, eram aquilo que ele chama de “linguagem digital”
observadas, apreendidas e compreen- numa relação de interdependência às seguin-
didas, para o relato jornalístico do tes variáveis: as características físicas (tama-
dia seguinte. E assim era a vida, nho, tela, modo de conexão, etc) dos dis-
organizada em ciclos de 24 horas.” positivos de recepção e leitura dos conteú-
(CHAPARRO, 2001: 76) dos; a construção de uma pedagogia para o
uso da linguagem Internet, sugerindo inclu-
John Pavlik, professor do Center of New sive a sistematização dos termos usados em
Media, na Universidade de Colúmbia, NY salas de bate-papos e fóruns de discussão;
propõe que o uso das técnicas oferecidas pelas o ensino do uso de ferramentas de busca e
NIC abre espaço para novos formatos nar- a criação de toda uma nova pedagogia que
rativos que buscam envolver o usuário na abrigue tantas transformações. (CRYSTAL,
navegação por conteúdos mais 2001:227-242).
contextualizados. Para ele, tais inovações Crystal também afirma que uma das mais
provocam uma narrativa mais fluida. O significativas contribuições sociais da Internet
professor também chama atenção para algu- é o contínuo enriquecimento da linguagem,
mas condições para a mudança: uma chegando a posicioná-la como uma quarta
reciclagem na práxis, mudanças compulsó- matriz de linguagem – a Netspeaking:
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 317
6
A idéia do linkalism foi divulgada num artigo camente acessar, analisar, interpretar, processar e
da Columbia Journalism Review que discutia o forte armazenar tanto material impresso quanto mate-
desafio de se criar uma narrativa digital diante do rial multimídia. (MARTINEZ, 2003, 154).
9
embate entre os valores-notícia e sua vinculação Tal mutação refere-se à possibilidade de
a hiperlinks comerciais em nome da almejada sus- expressão dos próprios atores dos fatos através
tentação financeira dos empreendimentos. da internet: hoje não é a atualidade que faz parte
7
Usabilidade endereça a relação entre uma do jornalismo, mas o inverso”, segundo Chaparro.
ferramenta ou uma interface digital e seu usuário. Assim, os sujeitos produtores de notícias que
Para uma ferramenta ser útil, ela tem de permitir controlam os media, assistem à mutação genética
aos clientes completar suas tarefas da melhor forma dos sujeitos produtores de acontecimentos com
possível. (TEIXEIRA, 2002: 114). atributos jornalísticos.
8 10
O autor afirma que a alfabetização O autor afirma que o processo de nave-
informática genuína inclui não somente conheci- gação por entre links, banco de dados, e troca
mentos e habilidades técnicas, mas também uma de mensagens é um processo contínuo e também
leitura refinada, escrita, pesquisa e capacidade de ao mesmo tempo renovável, ilimitado em termos
comunicar-se com capacidades intensas de criti- de trasnformação.
320 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 321
muy peculiares. Consiste básicamente en escritura en los que las diferentes imágenes
narrar hechos o acontecimientos a través de no representaban ideas u objetos, sino que
imágenes copiadas del mundo real con una representaban los sonidos de cada palabra.
evolución en el tiempo, de manera muy Los sonidos a su vez se representan por un
similar y bajo los mismos principios que una conjunto muy limitado de grafías, signos
tira ilustrada. Una manera infantil y primaria convencionales que en su infinitas
de contar historias mediante dibujos de menor combinaciones ofrecen la posibilidad de
o mayor complejidad y calidad. albergar cualquier tipo de concepto, los mas
Esta aparente limitación comunicativa a abstractos e imprecisos, y por supuesto
través de la cual es imposible transmitir también de pensamiento. Son este tipo de
pensamientos medianamente complejos, escrituras alfabéticas las que disociarán
resulta ser poseedora de un valor excepcional: definitivamente la imagen y la palabra,
no mantiene ningún tipo de conexión con las aunque la historia ofrecerá mecanismos para
diferentes lenguas y puede ser “escrita”, o realimentar esta situación.
sea codificada, y traducida o “leída”, por La imagen a su vez recupera cierta
cualquier persona que hable cualquier libertad al romper las ataduras con el campo
lenguaje, no siendo necesario que ambos lingüístico de la escritura. A partir de entonces
interlocutores compartan una lengua concreta. abandona un papel secundario en la
Mucho menos aún existe una dependencia comunicación para brillar por si misma en
de un código escrito que deba conocerse para unas circunstancias diferentes ampliando su
ser descifrado. función plástica.
Es cierto que su valor a la hora de ser Aún después de deslindarse de la imagen,
capaz de transmitir según qué contenidos es los rasgos alfabéticos no abandonan el sentido
francamente limitado, pero no es menos cierto estético y artístico de donde emanaron.
que la historia recurrirá a ello en un momento Aunque con una naturaleza distinta a la
dado como la gran alternativa a su encrucijada originaria iconográfica y simbólica, se
comunicativa. desarrolla el arte de la representación de la
En segundo lugar, nos encontramos con palabra, la tipografía. En todas las culturas
las escrituras jeroglíficas. Es una forma de y escuelas se conocen y se desarrollan formas
escritura diametralmente opuesta a la de representación de las formas de su palabra
anteriormente descrita. En este caso está lleno que son exquisitas, que representan y
de convenciones del propio lenguaje hablado, diferencian su pensamiento. La tipografía es
y por tanto, sólo podrá ser compartido entre una de las ciencias más complejas y muchas
personas que conozcan dichas lenguas. Un veces menos reconocida, no por sus métodos
baile de pictogramas primero y de ideogramas arquitectónicos de ejecución, sino por las
más tarde llevaron a la consecución de un profundas relaciones con la psicología del
sofisticado sistema de escritura mediante los inconsciente de la cultura que la desarrolla:
cuales la capacidad para transmitir “toda huella puede ser considerada como una
información era ya infinitamente mayor al marca de psiquismo”. (Gauthier, 1996:203)4
que ofrecía el otro uso de la imagen. Todo Esta idea se puede llevar hasta el extremo
un universo simbólico cuya evolución llevará de que, a pesar de la tremenda evolución que
al origen de símbolos fonéticos. Con el uso sufren los caracteres durante miles de años,
de signos sonoros, los fonogramas, se amplían hay quien considera que debajo de toda esa
las capacidades de la memoria y a través de arquitectura tipográfica subyacen todavía los
la estratificación del conocimiento se trazos de las antiguas representaciones
desarrolla una nueva manera de cognición. gráficas “con su capacidad de síntesis, su
Y es en esta etapa alfabética donde la intuición de las formas, y el conocimiento
palabra escrita sufre el primero de los de los elementos y los recursos gráficos”.
desencuentros que tendrá con la imagen en (Martín Montesinos/Mas Hurtuna, 2001:40)5
su madurez visual. Esta primera escisión la En cada uno de los sistemas o culturas
encontramos en el momento en que se alfabéticas se iba imponiendo
abandonan las formas de escritura progresivamente este distanciamiento entre la
pictográficas y aparecen los sistemas de palabra hablada y la representada, que se
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 323
Para além dos pontos de luz contém ainda Encomenda da Westdeutscher RundFunk,
3 raios laser, reflectidos por diferentes es- comporta sons electrónicos concebidos no
pelhos animados segundo dois planos por CEMAMu, microsons, sons concretos de
pequenos motores eléctricos. Os motivos, as diversos instrumentos tradicionais e ruídos
figuras geométricas, modificam-se constan- de objectos e materiais batidos uns nos outros.
temente quer na sua cor, quer na sua direc- Devido à pluralidade e diversidade das fon-
ção, localização ou forma. Realizada à frac- tes sonoras, a audição da obra permite, e
ção de segundo, a sua variação cria diferen- origina, um vasto conjunto de imagens
tes esculturas cinéticas. A banda sonora, mentais. A continuidade é absoluta, predo-
minando a modulação sonora e tímbrica. O
composta no Estúdio Acousti em Paris,
som, movimentando-se continuamente, remo-
contém espaços de timbres modulados con-
dela o espaço em espirais e atmosferas de
tinuamente.
sons com rugosidades várias.
Em Persépolis Xenakis cria um espectá-
O espectáculo luminoso contém diferen-
culo mais denso utilizando um conjunto tes configurações luminosas móveis, pontos,
diversificado de elementos que confluem para linhas, etc., encontrando-se a organização dos
um espectáculo de luz e som, encomenda do diferentes movimentos luminosos, contínuos
V Festival Internacional de Artes de Chiraz ou descontínuos, regida por funções mate-
– Persépolis, Irão. A obra, Persépolis, criada máticas8. Sendo um espectáculo onde as
a 26 de Agosto de 1971 nas ruínas do palácio superfícies curvas das paredes da tenda
de Darius I - o Apadana, tem uma duração condicionam e transformam a percepção dos
de 56 minutos. O espaço físico do palácio seus componentes, esta obra evidencia os
oferece ao público a possibilidade de se movimentos dos pontos luminosos e um
movimentar em 6 áreas de escuta sendo a movimento contínuo das duas componentes
música difundida por um conjunto de colu- do espectáculo – luz e som. Espaços de timbre
nas dispostas em três círculos5. Na montanha e cor cobrem e invadem todo o espaço da
em frente, perto dos túmulos reais, encon- tenda - O Diatope.
tram-se vários projectores que difundem para Em Polytope de Mycènes, uma obra de
o universo uma coreografia luminosa. No 1978, o público encontra-se sobre o flanco
cume, encontram-se dispostas várias foguei- de uma montanha face à cidade. Entre eles
ras. Ao longo da montanha, descendo len- encontra-se um grande vale de onde se avista
tamente e de forma desordenada, vários o Monte Elias. A obra combina 18 pontos
grupos de jovens transportam tochas de fogo sonoros e dramáticos, récitas de Homero,
hinos de Sófocles, versos de Eurípedes, coros
criando linhas que se dispersam e movimen-
de Ésquilo, 12 projectores antiaéreos, uma
tam pela montanha formando um conjunto
procissão de crianças, um rebanho de cabras
diversificado de figuras geométricas e cons-
com sinos e tochas de fogo e uma banda
telações de luz e fogo. No final, juntam-se
sonora. No início do espectáculo são ento-
entre os dois túmulos e escrevem em fogo ados por um coro textos de Helena de
Nós trazemos a luz da terra. Em seguida, Eurípedes. Em seguida, por um conjunto de
passam a ravina, entram pelo público desa- colunas dispostas de forma a que todo o vale
parecendo, a pouco e pouco, na floresta de seja inundado de som, ouvem-se declama-
colunas do palácio. Gigantesca, Persépolis ções em dialecto, posteriormente traduzidas
é uma obra “abstracta, densa e complexa, cuja em grego moderno, assim como, várias obras
força abrupta investe, tanto sobre os senti- do autor, entre elas Mycènes Alpha,
dos, como sobre o intelecto. [Para Xenakis], Persephassa e Psappha. A partir de um palco
corresponde ao rochedo sobre o qual estão que permite a repercussão do som de uma
gravadas diversas mensagens hieroglíficas de montanha para a outra através do eco, são
uma forma compacta e hermética, sendo im- ainda executadas diversas obras orquestrais
possível conhecer o seu significado”.6 e corais do compositor, terminando o espec-
La Légende d’Eer (1977), uma das obras táculo com Oresteia para coros e instrumen-
mais longas do compositor foi criada num tos. Paralelamente decorre uma procissão que
espaço de características únicas – O Diatope7. oferece flores.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 329
A parte luminosa comporta diversos alusão a John Cage representando uma versão
momentos, iniciando com a criação de um de 0’ 0’’, uma obra que consiste na reali-
tecido luminoso por vários projectores an- zação de uma qualquer acção desde que esta
tiaéreos. Situados perto das cidades de seja disciplinada. O momento inicial do
Tirynthe e Argos, formam uma pirâmide de espectáculo alude a 4’ 33’’. Enquanto o
luz estática. Em seguida, surge no vale um público entra na sala e se disponibiliza frui-
conjunto de tochas, pontos de fogo, desenhan- se a obra que se desenvolve autónoma na
do vários motivos plásticos. Um fogo imen- sala11.
so surge regularmente no cimo do Monte A referência a Bach encontra-se em Bossa
Elias, e um filme, apresentando os tesouros bem temperada onde no Prelúdio em Dó
dos túmulos antigos, é projectado sobre os Maior do Cravo Bem Temperado são cola-
muros da cidade. Xenakis faz subir pela dos e interpolados fragmentos de obras de
montanha um rebanho de cabras criando outra Gilberto, Jobim, Veloso ou Regina. Esta
constelação de luz9. Um grupo de soldados acção, não destrói, no entanto, a fluência e
descendo a montanha transportando tochas mestria técnica, formal e discursiva do seu
acesas anuncia o fim do espectáculo. Polytope autor. O espectáculo finaliza com Música
de Mycènes foi o maior espectáculo do autor. onde somos convidados a fruir um rap, uma
versão contemporânea e urbana de An die
Bach2Cage Musik: “bate no corpo e o corpo sente... é
som ardente... voz e pensamento, razão e
Bach2Cage é um espectáculo multimédia sentimento... laço eterno, céu, inferno, infi-
onde confluem diversos domínios do saber10. nito, vazio, rodopio... big-bang inicial,
“Mais do que um espectáculo, Bach2Cage apocalipse final, eclipse total, pecado origi-
é um processo, um laboratório experimental nal, pôr do sol, nascer da lua, água, fogo,
de cruzamentos de música/artes performativas terra crua, chuva, búzio, som de rua”. “É tão
com multimédia/arte digital”. Desenvolven- estranho o tempo perde o tamanho”....
do uma constante actualização – as suas Denunciando uma pluralidade e multi-
diferentes versões – procura uma interacção culturalidade marcadas, esta obra contribui
com o público e com os seus autores e para que o objecto artístico adquira diferen-
actores, sendo cada uma das versões, tes rostos e evolua numa multiplicidade de
consequência de um processo de procura, de formas e conceitos. A diversidade de cami-
indagação, de conhecimento, de aprendiza- nhos propostos reflecte a diversidade cultu-
gem e transformação de todos os que o ral e racial de uma sociedade que, em
integram. Assim, a obra de dois autores contínua transformação, tenta responder a
maiores da História da Música – Bach e Cage exigências, transformações e questões fun-
– revela-se o pretexto para um processo de damentais que se colocam ao ser humano
criação que se encontra em contínua trans- enquanto criador.
formação – “work in progress”. No entanto,
não será entendimento dos seus autores a sua III. Espaços multimédia e educação
re-produção, re-criação, re-interpretação ou
re-leitura condicionada por um conjunto de A escola, local de convergência e vivên-
condicionantes criativas. A obra e o universo cia de uma comunidade, que pela sua na-
criativo dos dois compositores são relidos, tureza e diversidade se manifesta, de uma
reavaliados e inseridos de uma forma nova forma geral, sempre aberta a novas experi-
no processo de criação. Como exemplo ências, revela-se um local propício para a
referimos Tango Perpétuo, uma alusão ao realização e concepção de espaços de cria-
poema de Cage Perpetual Tango, obra que ção multifacetados. Estes, motivo do interes-
se insere num universo musical Piazzoliano, se e curiosidade por parte dos discentes
interagindo igualmente com um conjunto de tornam-se apelativos, integrando o aluno na
imagens e acções teatrais que aludem à escola, fundamentando a sua educação artís-
oposição de elementos e realidades. A tica. A multiplicidade de saberes exigida na
máquina de escrever, recorrente numa das concepção de tais eventos, o esforço e o
versões do espectáculo, é igualmente uma trabalho de equipa exigidos na sua criação,
330 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
fomentam ainda uma responsabilidade face eventos formas novas, originais, inovadoras,
aos outros e à obra a realizar, e o desen- senão fundamentais no processo educativo
volvimento do espírito de interajuda indis- inserindo-se dentro de uma pedagogia de
pensáveis ao desenvolvimento e formação do projecto.
indivíduo. Inserindo-se dentro de projectos
A aquisição de conhecimentos e o estudo educativos, que se encontram encerrados nas
direccionado e vocacionado para um objec- suas próprias possibilidades de execução, não
tivo, a concepção do espectáculo, levam o deverão nunca perder de vista a concretização
aluno a pesquisar e a adquirir uma série de de um conjunto de objectivos. Nestes, con-
conhecimentos que não se encontram desli- fluem, tanto a pedagogia de projecto, como
gados de um objectivo, de uma realidade, e a pedagogia por objectivos. Através do
que de outra forma não seria possível inte- projecto o homem cria, implicando a reali-
grar na sua formação, no seu currículo. A zação de um projecto, a existência de uma
concepção e estruturação do objecto artístico estratégia que defina as diferentes etapas do
implica ainda a hierarquização e o domínio mesmo, e uma calendarização precisa das
claro e objectivo de todas as componentes tarefas, e objectivos, a cumprir. A estratégia
do mesmo. O uso de uma linguagem artís- do projecto, permitindo a sua realização,
tica, nova e complexa, e a utilização de uma contribui para a sua definição e
multiplicidade de saberes única, implica sequenciação12.
igualmente a apreensão de diferentes noções O tipo de trabalho que apresentamos
e acções implícitas ao acto criador, que insere-se dentro de um projecto com as
deverão ser geridas e assimiladas por todos características do projecto de acção educa-
os intervenientes do espectáculo a que se tiva ou projecto educativo, um projecto
procura dar forma. O discente torna-se um concebido por diferentes membros da comu-
artista, criando, interpretando, investigando nidade escolar, e que visa o aluno enquanto
e concebendo um produto no qual intervém criador, e enquanto membro de uma socie-
desde o primeiro instante. dade, e o projecto de formação. Concebido,
O homem, criador e investigador por tanto por docentes, como pelos discentes, a
natureza, tenta através da procura incessante sua acção desenvolve-se exteriormente ao
de novos caminhos, conduzir-se para novos espaço da escola consequência da qualidade
níveis de entendimento, conhecimento e do projecto idealizado e concretizado. Visan-
existência. Enquanto criativo, representa um do o aluno enquanto indivíduo em formação
mundo interior produto de uma educação e e enquanto ser criador, membro de uma
interacção com o meio. Sendo assim, não fica sociedade, inserem-se dentro de um projecto
indiferente às evoluções científicas e de formação: pela qualidade, originalidade e
tecnológicas que se processam tendendo a dimensão que possam possuir, podem, e sem
integrá-las no processo de criação. Fruto de qualquer restrição, sair do espaço da sala de
uma sociedade em contínua transformação aula, ou mesmo da escola. Assim, e em
representa-a através da obra, o seu reflexo. consequência, agem e interagem com a
De difícil realização e concepção tanto sociedade em que se inserem. Para além de
pela enorme quantidade como pela qualidade um espaço de formação e criação serão ainda
de meios exigida, estes espectáculos revelam- espaços de acção e transformação, permitin-
se no entanto de uma riqueza impar, e um do a aquisição, o desenvolvimento e a in-
contributo educativo de inegável valor. A re- vestigação de conteúdos vários, aplicados em
alização de espectáculos desta natureza, onde seguida num projecto mais vasto onde
interagem vários domínios do saber e dife- interagem diferentes domínios do saber.
rentes formas de expressão artística, revela- Através do projecto educativo o aluno
se bastante complexa. A sua concepção, confronta-se com o real, interage com o meio,
estruturação, produção e realização, implican- desenvolve as suas capacidades intelectuais,
do o conhecimento e a aquisição de uma criativas e sociais, fomentando a investiga-
multiplicidade de saberes que se torna bas- ção direccionada e sistematizada com um fim
tante útil na estruturação e definição do único. Realizando esta acção, o aluno age
processo de ensino aprendizagem, faz destes segundo uma metodologia que se situa numa
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 331
You can’t see me: Contributo para uma teoria das Ligações
Ivone Ferreira1
“Não vês os perigos com que o oráculo de Apolo, implorando um esposo para
o destino te ameaça? Estão ainda a filha. Mas a resposta foi para que a aban-
afastados, mas se não tiveres firmeza donasse numa rocha onde um terrível monstro
com grande antecipação, em breve imortal a iria buscar. E como a profecia tinha
estarão contigo. Tentarão sobretudo que ser cumprida, assim foi. Psiché é aban-
convencer-te a procurar ver-me. Como já donada no local combinado, após ter passado
frequentes vezes to repeti, se me vires pelo luto público. Acabou por cair no sono,
uma vez, nunca mais me verás.” embalada pelo sopro do Zéfiro que haveria de
Eros transportá-la. Acorda algum tempo depois, já
num lugar magnífico e coberto de riquezas. Ao
“Antes morreria mil vezes do que fim da noite, quase sem se aperceber, já o
faria qualquer coisa que pudesse monstro estava ao seu lado e a tomara por
romper uma união tão doce.” esposa. De manhã desaparecera, tal como
Psiché chegara, sem que ela o tivesse visto. E o
episódio repetia-se dia após dia, nunca o via,
Mais do que pronunciar-me sobre algu- limitava-se a usufruir das coisas que tinha à
ma teoria, procurarei estabelecer um sua disposição. E não poder vê-lo era para
paralelismo entre uma fábula antiga, a de Eros Psiché estranho, tal como é estranho para o
e Psique, e o funcionamento da Internet e homem conceber o infinito. (Moura: 2002, 3)
o tipo de relações sociais por ela fomenta- Tomou, então, Eros por marido e olhou para
das, relações que, a nosso ver, se asseme- ele como olharia qualquer cidadão para a
lham às existentes no mundo físico, sofren- tecnologia “with caution, but rarely with fear”
do, apenas, uma mudança de espaço, do (Katz citado por Marcelo, 56.)
mundo das relações presenciais para um local Passava os dias atraída pelas maravilhas
onde as relações são invisíveis e insensíveis do lugar onde agora habitava. A pouco e
(apenas porque não podemos tocar o outro). pouco, foi-se aventurando e explorando o
Entre as histórias do místico Lucius espaço ao redor, tornando-se cada mais
Apuleius, descobre-se a de Eros e Psique, audaciosa até transpor o limiar. “Aí admi-
a mortal que, de tão bela, provoca inveja à rava a sábia e ampla arquitectura dos com-
própria Vénus, e Eros, o senhor das ligações, partimentos onde se acumulavam imensos
que espalhava confusão pelo mundo. Vénus, tesouros. Numa palavra: nada havia de pre-
criadora de todos os elementos, sente-se cioso no universo que não se encontrasse ali;
desprestigiada por ser equiparada em beleza mas, qualquer que fosse o espanto em que
com uma mortal. Procura vingar-se e pede mergulhava o espectáculo das inumeráveis
ajuda ao seu filho, um jovem malicioso e riquezas, o que sobretudo a admirava era que
cheio de audácia, conhecido pelas paixões nenhuma barreira, nenhum guarda, impedis-
desordenadas e pelas suas inúmeras malda- sem a entrada naquele tesouro universal”
des. O seu nome: Eros. Seria ele o vingador (Apuleius, 114). Mas a riqueza não foi su-
da desertidão dos templos de Vénus. A ficiente para suprir a ausência do outro. Eros
vingança seria fazer com que Psiché se vinha apenas uma vez por dia ter com ela,
apaixonasse pelo pior dos homens, conde- sempre de noite. De manhã desaparecia, tal
nando-a, deste modo, à infelicidade. como viera. Sentia-se perdida e sem recurso.
As irmãs de Psique tinham já casado com Dizia ela: “entristeço-me fechada numa bela
homens abastados, só aquela estava sozinha. prisão, privada de qualquer contacto com as
O pai, suspeitando de ira celeste, consulta criaturas humanas” (Idem, 116).
334 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Ora uma ligação tão feliz mas com O ideal de Mcluhan era que os media
tamanhas lacunas encontra sempre oposição tecnológicos unissem a espécie, criando uma
de alguém. Eros avisara-a desde o primeiro comunidade global semelhante às comunida-
dia que esta relação corria perigo. “Tentarão des tribais. Ao contrário do idealizado, es-
sobretudo convencer-te a procurar ver-me. tamos perante uniões peer to peer, entre um
Mas, como já frequentes vezes to repeti, se ente individual e outro ente individual, lo-
me vires uma vez nunca mais me calizados em locais geograficamente distan-
verás”(Idem, 120). tes. Se entendermos que nas formas de
A oposição viria de fora, da família da interacção mediadas não há envolvimento
esposa, mas os avisos do marido não foram completo porque só um envolvimento físico
suficientes para impedir que Psiqué deixasse pode ser total, não compreenderemos a forte
que as suas irmãs, movidas por inveja, se relação entre Eros e Psiqué, uma vez que
aproximassem com conversas mansas destina- existia uma barreira entre eles
das a provocar-lhe dúvidas. Alertavam-na dos Esta fábula escrita no início da História
perigos que corria ao deitar-se com um mons- Ocidental contempla as formas de interacção
tro a quem nunca vira. Era necessário armar- dos indivíduos nesta nova fase
se, pegar numa navalha bem afiada e escondê- comunicacional e as expectativas que os
la na cama. Preparar também uma lâmpada de rodeiam. A fábula de Eros e Psiqué começa
azeite. Quando ele dormisse, era só pegar na com a constatação de uma frustração (a
lâmpada e na navalha e cortar a cabeça ao impossibilidade de encontrar marido para
dragão. E Psiqué assim fez. O destino prepa- Psique, apesar da sua beleza) e a crença numa
rara a derradeira armadilha, a profetizada pelo maldição, decorrente da consulta ao oráculo.
oráculo. “Apenas tinha aproximado a luz...que Psiqué estava ainda sozinha. É o pai que
viu ela? O mais doce, o mais amável de todos consulta o oráculo na tentativa de resolver
os monstros”: Eros em pessoa. Arrependida de esta situação. E são os pais que, acompa-
não ter ouvido os conselhos do marido, quis nhados da comunidade (em que se inclui
matar-se com a própria arma com que pensara família, vizinhos, conhecidos, etc.), fazem o
matá-lo mas aquela beleza pediu que o admi- luto e a abandonam no lugar determinado.
rasse mais uma vez. Quis então saciar-se de Após este episódio, raramente são feitas
amor, tocar aquele corpo, mas a lâmpada deixou referências aos pais ou a outros mortais. Diz-
cair uma gota de azeite sobre o ombro do senhor se apenas que Psiqué sofre com a ausência
das ligações. “Tu queimas o autor de todos os da família mas não ousa procurá-los. Como
fogos? Tu, que foste inventada por um amante explicaria ela estar casada com um semi-deus,
que queria gozar, mesmo durante a noite, da alguém a quem não vê mas com quem se
visão daquela a quem amava, é assim que tu sente feliz? Os pais, provavelmente, julga-
proteges os amantes?” (Apuleius, 128.) E a pu- ram a filha morta e choraram por ela. E que
nição profetizada vem: a ligação estava termi- é feito das pessoas que acompanharam Psiché
nada ou, pelo menos, temporariamente à rocha, enquanto esperava Eros? Onde estão
desactivada. os mortais a quem Vénus pediu que loca-
A Técnica interfere no quotidiano. Esta lizassem Psiché? Cumpriram a sua missão
premissa é ponto assente mas que os novos e desapareceram.
media inauguram uma nova identidade do A única alusão feita ao mundo exterior
indivíduo, com novas possibilidades, “trans- refere-se às irmãs, que acabarão por sofrer
formando a sociedade actual numa outra mais um fim trágico. Na sua sede de vingança,
ajustada às expectativas da condição huma- são enganadas. Lançam-se no espaço, ofe-
na”, ainda está a ser descoberto. recendo-se ao Amor “mas nem mesmo depois
A relação Eros/Psique era, por assim dizer, de mortas chegaram aonde queriam, ao alvo
uma relação comum. Não fosse Psique não dos seus insensatos desejos; porque os seus
poder vê-lo e teríamos uma relação comum: membros, quebrados e dispersos pelas rochas,
a união de duas pessoas por um laço sexual foram devorados pelas feras e pelas aves de
e com uma casa própria. A novidade neste rapina”(Apuleius, 131.) Ficam desfeitas,
relacionamento é fictícia, tal como o é nos partidas em pedaços. É o fim de todas as
relacionamentos virtuais. referências. Como tal, Psiqué fica sozinha,
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 335
a menos que consiga restabelecer a ligação ondas hertzianas já terem ultrapassado este
à única figura possível: Eros. É urgente patamar. A novidade está na multiplicidade
arranjar um mediador que a leve ao seu de localizações de informação: não há um
marido, e as figuras disponíveis são os deuses emissor e um receptor localizados num local
que não são entidades arbitrárias mas figuras específico. O projecto designado por Internet
que têm todo o sentido no delinear de uma Protocol (IP), criado nos anos setenta, viria
teoria das ligações. Psiché procura interme- a determinar a evolução da comunicação em
diários, alguém que restabeleça a ligação, que rede, colocando vários pontos em comuni-
lhe devolva Eros. Antes de viver naquele local cação. A comunica com B e este com C. E
poderia recorrer à família, vizinhos ou assim sucessivamente, até que nenhum dos
amigos, mas agora pode falar, sem dificul- pontos esteja isolado. Se um computador não
dade, com os deuses com quem se cruza no está ligado a outro e por sua vez estes ligados
caminho. Vemos, então, que a partir da à rede, ficam na contemplação do isolamento
relação com Eros, Psiché encontra-se enre- total, o que gera situações de dependência.
dada numa nova rede de ligações. (Marcelo, p.18) A tarefa de Euler para saber
Recorre em primeiro lugar a Pã, figura quantas vezes teriam os habitantes que re-
da fusão, que une as formas animais e as petir a travessia de uma das pontes de
formas humanas, filho de Hermes e mensa- Konigsberg para atravessar as sete pontes,
geiro dos deuses mas nem este a pode ajudar. seria agora mais difícil. Não há uma estrada
Continua a caminhada em busca do esposo única a percorrer, há miríades delas, inúme-
e entra no primeiro templo que encontra, o ros endereços de páginas, todas interligadas
de Ceres, deusa da multiplicação. Nem esta entre si. Não há estradas, seria pouco, mas
a ajuda, com receio do castigo de Vénus. um sistema de redes leva o nosso pedido à
Encontra o templo de Juno, protectora das outra parte do mundo e traz-nos a resposta
ligações contratuais mas nem ela a pôde em alguns segundos:
auxiliar. Como se não bastassem os males, “Yes, I heard you!”
Vénus toma conhecimento da união do filho (Lazlo Bárabasi)
a uma mortal e sua maior inimiga e ficou Partilhamos da opinião de Rodrigues
encolerizada. Mandou procurar Psiqué em quando diz que o modelo da Internet con-
todas as partes para a castigar. A Eros siste “numa dupla rede: uma rede de circu-
ameaçou pô-lo na companhia da Sobriedade, lação de mensagens, conservadas numa
que o castigaria pela abstinência. Resta a espécie de memória, a que os utentes estão
Psiqué entregar-se livremente a Vénus, que conectados por circuitos electrónicos, e uma
a submeterá a inúmeras provas, a fim de a rede aleatória e transversal à primeira,
castigar. interconectando os utentes entre si, indepen-
A primeira destas consiste em separar um dentemente da distância geográfica, social ou
monte de grãos e dividi-los por espécies. São cultural que os separe” (Rodrigues por
as formigas que fazem o trabalho, usando Marcelo, 133), ligação que é feita a uma
o mesmo processo que a rede utiliza quando velocidade quase vertiginosa. A distância no
digitamos uma palavra num qualquer motor espaço era sempre acompanhada pela distân-
de busca: “- Laboriosas filhas da terra com- cia no tempo (300 kms a 100 kms hora =
padeçam-se dos perigos que corre a esposa 3 horas de viagem) Agora vemos um e-mail
do Amor; voem em socorro da mais bela das chegar em segundos a outra parte do mundo.
jovens!” (Apuleius, 142, 143.) Prova supe- Are you there? Yes, you may come in. Está
rada. A ligação funcionou, como notou Vénus: sempre alguém do lado de lá.
“Feia criatura, isso não é obra tua, mas sim As tecnologias dão-nos a possibilidade de
do insolente a quem agradas.” (Idem, 143) deixarmos de estar confinados a um lugar
É obra do senhor das ligações. físico. Não permitem apenas um conjunto de
Partindo desta analogia, o aparecimento transformações e fusões humanas que tornam
da Internet deu-nos o livre acesso às fontes possível um novo tipo de formas corporais
de informação. Um acesso que levou o mas permitem também a produção e o
homem a querer ultrapassar o espaço do controlo da informação e a simulação e outras
visível, apesar de as linhas telefónicas e as entidades. Fazem-se e refazem-se mundos.
336 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Voltando à fábula, a segunda prova torno-os iguais, para que o casamento seja
colocada por Vénus consiste em pedir à nora legítimo e legal. Bebe, Psiché, e sê imortal!
que lhe traga um novelo de lã de ouro retirado Nunca o Amor se separará de ti, o himeneu
de carneiros selvagens. A solução é-lhe une-vos para sempre!”(Idem, 51)
segredada por Zéfiro, o mensageiro de Eros. Ultrapassada a primeira fase das provas
Prova ultrapassada. A terceira, trazer um balde em que é feita a triagem das fontes de
de água de uma fonte rodeada de um enorme informação - obra realizada pelas pequenas
rochedo, aparentemente inacessível por to- formigas, e superadas as barreiras que pre-
dos os lados. As águas rolavam por um canal tendiam impedir o acesso às fontes de in-
profundo e apertado, que despejava no vale formação - os dragões que guardavam a fonte,
próximo. De cada lado, duas cavernas, com vemo-nos em frente a uma nova realidade.
dois dragões acordados de dia e de noite. Por um lado um vasto número de “info-
Esta prova pode levar-nos, simbolicamente, excluídos” que as oposições governamentais
às questões de segurança na rede e levar- não se cansam de referir e que nesta fábula
nos a indagar se as leis do mundo físico estão representados pelos pais de Psiché; por
estarão aptas para reger os mundos virtuais. outro, a existência de um número cada vez
Um sistema governamental físico parece maior de addicted: os levados ao Hades que
obsoleto e incapaz de congregar pessoas não resistem a abrir a caixa. É esta a maior
situadas num espaço virtual. Este é um dos das provas a ultrapassar. Estamos ainda na
problemas abordados na colectânea editada fase da incompreensão. Afinal o que é que
por Peter Ludlow, Crypto Anarchy, está em jogo: Um mero instrumento técnico,
Cyberstates, and Pirate Utopias. Os dragões uma ligação à informação, ou o acesso ao
são exemplo das firewalls procurando barrar outro?
acesso a hackers. “Que fazes tu? Retira-te, A ausência física, patente nesta fábula,
pensa em fugir ou morrerás!”(Idem, pág.145) tem contribuído para que duvidemos da
Uma águia vai ajudá-la, em memória da altura possibilidade de existirem relacionamentos
em que o Amor prestara a Júpiter. Funciona entre indivíduos que não podem tocar-se,
a memória da ligação, tal como os nossos relacionamentos algo primários. Estas novas
computadores funcionam com a memória em formas de relacionamento (não creio que lhe
cache. possamos chamar novas porque temos rela-
Resta a prova final. Pegar numa caixa, cionamentos semelhantes aos que caracteri-
entrar no inferno e de lá trazer uma caixa zam o mundo físico, com a diferença de
com algumas parcelas de beleza. Chegar até existir uma separação geográfica entre os
lá implica uma série de passos: descobrir a pares) provocam alterações na psiché do
entrada, levando um bolo de cevada em cada indivíduo (Kerchove, 20), na medida em que
mão e duas moedas na boca. Não falar a consistem numa adulação do ego, confundin-
ninguém lá dentro. Dar uma moeda a Caronte do as emoções e fomentando o desequilíbrio.
para que possa entrar, um bolo ao animal Aquilo a que Freud chamava realidade
que guarda o palácio de Proserpina. Uma vez era sempre o problema de uma realidade
lá dentro devia recusar-se a sentar-se à mesa social, o problema da ligação aos outros e
e a comer as iguarias que lhe apresentassem. não de uma realidade física. É sempre o
Pediria apenas um pouco de pão duro e problema de se organizar no seio de uma
comeria sentada no chão. Traria a caixa, mas realidade humana e social, a realidade dos
sem a poder abrir. No regresso o mesmo outros homens, das instituições e valores.
percurso: o bolo a Cércero e a moeda a Agora a identidade é livre e depende apenas
Caronte. Feito o percurso, Psiché estaria a da nossa escolha.
salvo, logo que resistisse ao desejo de ter A utilização de uma identidade
a beleza para si. Mas não conseguiu e caiu exploratória, baseada nas narrativas infantis,
em sono profundo. Eros foi em seu auxílio em que podemos fingir ser quem quisermos,
e acordou-a. Apelou a Júpiter, defendeu a sua e que pode ser trocada a qualquer momento,
causa e este concordou em consentir o não é pacífica para o ser humano. Podemos
casamento. Tranquilizou Vénus, dizendo que escolher uma identidade uma vez e, depois
o seu filho não casaria com uma mortal. “Eu de jogarmos duas ou três vezes o mesmo jogo,
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 337
já sabemos quais as personagens que têm mais sição) mas durante o dia de trabalho, o que
sucesso. Basta treinar para escolher o que conta é a palavra amiga, o jogo do “quem
queremos ser. As tentativas valem o esforço, és tu e será que eu sou quem digo ser?” mas,
uma vez que o prémio alcançado é superar apesar de tudo, não nos podemos ver. Porque
as frustrações e os constrangimentos da também, nas ligações sociais, deixar o outro
realidade, tal como Psique. O mundo das ver-nos implicaria tirar toda a magia, seria
tecnologias ou dos semi-deuses permite-nos o cair da máscara. Se esta falhar, procura-
explorar o que quisermos, aparentemente sem remos outra ligação que supra a lacuna. Se
sermos vistos, num mundo com o poder for visto, é o fim do mistério. Resta procurar
ilimitado dos sonhos que gratifica a criati- outro nó de ligação ou encontrar o que se
vidade e a ominipotência. Com esta erosão perdeu.
do possível e impossível, real ou imaginário, A utopia à volta da tecnologia
a ênfase fica nas ligações (Robbins, 140). computacional é escapar aos constrangimen-
Há reminiscências de sentimentos e fantasias tos físicos. O sonho a cumprir é deixar a
de omnipotência quando se regressa ao carne e a imortalidade para trás para formar
mundo físico, aí a frustração é ainda maior. uma relação pura e incontaminada, através
A realidade artificial é designada de acordo da tecnologia. O corpo ideal não se cansa,
com os ditames do prazer e do desejo, não tem constrangimentos nem frustrações
motores das ligações, motores que estão a mas é na busca desse corpo que os nerds
apelar a um comportamento regressivo e a se tornam vegetais. Afastam-se da sociedade,
desejos solipsistas. (Robbins, 146) o que revela uma certa lacuna na comuni-
Há, contudo vantagens. Os utilizadores cação face a face, o que os leva a emergir
não ficam constrangidos pela presença do nesta nova realidade. Diz Rotzer que um só
outro mas também não há toque. (Será ele mundo já não é suficiente, queremos muitos.
preciso?) Depois, enredamo-nos numa rede Mas, acima de tudo, o que mais se verifica,
que fomenta a aparente invibilidade. Apa- é a transposição para a rede das necessidades
rente, dissemos, porque o não ser visto é do quotidiano. O que levou Psiché a Eros
fictício. O homem já não pode esconder- foi a incapacidade humana de suprir a sua
se, tal como Psiché não podia esconder-se necessidade. As fronteiras físicas estão di-
de Vénus. Quem é o senhor A? Posso tentar luídas, a informação circula quase livremen-
localizá-lo através de um motor de busca. te num constante vaivém. O fascínio vem de
O comum mortal sabe que o FBI utiliza acreditarmos que “uma simples ligação às
mecanismos de controlo inseridos nos pro- redes telemáticas parece trazer-nos o mundo
gramas da Microsoft. Os próprios sites inteiro ao domicílio e pô-lo ao nosso alcan-
instalam cookies para conhecerem o perfil ce. (Marcelo, 79) Foi o que aconteceu a
dos seus utilizadores. É a cultura do Psiché. Estar com Eros era a garantia de que
desvelamento, posso ser feliz assim...mas estaria tudo bem. E mesmo quando a ligação
quem será o outro que não vejo? É melhor foi quebrada ficou a memória dela. As provas
pegar na navalha e na lâmpada, na técnica que Vénus colocou à mortal Psiché foram
e na ciência, para saber quem está do outro resolvidas por ajuda de seres que trabalha-
lado de lá. ram em memória de serviços feitos pelo
Os relacionamentos de hoje, acompanham Amor. Estamos suspensos entre duas condi-
a nossa vida quotidiana, fazem parte dela. ções: a nostalgia do mundo físico (as remi-
A relação Homem/técnica mostra-se nesta niscências que Psique tinha da família) e a
relação Psiché / Eros, “derivam um em presença num lugar óptimo em que tudo está
relação ao outro, interpenetram-se e hibridam- à nossa disposição.
se”: Eros comete pecados como os mortais, Há, ainda, algo de alucinação perante esta
Psiché aspira à divinização. Actualmente, tecnologia dos sonhos e dos milagres que leva
podemos utilizar um media que nos põe em o homem a julgar-se transcendente e, ao fim
contacto com pessoas do outro lado do da tarde, é “a família dos amigos invisíveis”
mundo, dá acesso a toda a informação (o que que aparece, como afirma Rheingold. “You
fascinou Psiché foi não haver guardas na- can´t see me”porque fica sempre o desejo
quele imenso lugar que tinha à sua dispo- de uma identidade protegida. Quanto mais
338 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
se mostra, mais se perde a magia. E o sucesso help but anthropomorphize the elements in
dos chats e programas de troca de mensa- the world around us. It’s in our blood” (“The
gens tem a magia do véu que fica por Dishinibishion Effect”)
desvelar. E também You don´t know me que O que é feito da mortalidade de Psiché,
revela uma certa introprojecção solipsista da sua fraqueza? Terminou ao unir-se ao elo
porque, apesar de tudo, na Internet, está que é Eros, conseguiu a imortalidade. Tentou
(quase) tudo na nossa mente. Tudo parte de todas as mediações para recuperá-lo e con-
nós. A ideia do outro, do monstro está em cluiu que não precisava delas. Foi sozinha,
nós. entregar-se à mãe do Amor para conseguir
Há uma relação de transferência para o ter acesso a ele e conseguiu. Psiché torna-
computador, Eros não era Homem mas era se num novo media, um novo nó donde
ele que podia resolver os problemas de partirão novas ligações. Torna-se mais um
Psiché. “These models (em que a Internet ponto da rede, no mundo de Eros. Um mundo
está incluída) also shape how people select “aberto a todas as possibilidades, um espaço
and experience things in their lives that are fluído, oferta de múltiplos percursos e pos-
NOT human, but so closely touch our needs sibilidades infinitas” (Moura, 4) Um mundo
and emotions that we want to imbue them em que “You are Me, I am you, We are all
with human characteristics. We humans can´t together”.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 339
Sites Textos
17 sites : tema ecologia 600 textos
7 sites : tema gênero 200 textos
7 sites : tema dst /aids 200 textos
Total : 31 sites 1000 textos
342 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
AGIRAZUL na REDE
CAZUZA
GREENPEACE international X X
GRUDE X
GRUPO ORIGEM X X
MIRA-SERRA
SEA SHEPHERD
SOS CORPO X X
sim tomaram forma lentamente, ou seja, a objeto de pesquisa. Cada uma das tríades
pesquisa não avançou sob o clássico proces- ou díades foi inserida num processo de
so de codificação conforme categorias pré- construções de hipóteses experimentais,
vias. A não utilização desse processo, caro que estão relacionadas entre si e cotejadas
sob todos os aspectos, nos permitiu avançar com as questões teóricas e epistemológicas
em direção a um conjunto categorial novo no processo de análise. Este artigo se refere
relativamente às categorias e conceitos ori- especificamente a tríade informação, re-
ginalmente utilizados para a construção do flexão e política4
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 343
das políticas públicas, de mobilização dos mi- discurso, coordena suas perspectivas com seus
litantes e da ação social para a execução de concorrentes, e integra olhares conforme
um programa, etc. As dimensões políticas determinados perfis institucionais. Num jogo
podem ser dissimuladas, decorrência de uma sem fim entre conteúdos observados e for-
dependência de recursos governamentais para mas possíveis de relatar, o corte se faz na
o seu funcionamento (o que pode implicar temporalidade do campo jornalístico e nos
em determinados pactos sobre o modo de tempos de seus dispositivos específicos (rá-
dizer). As dimensões observáveis no discur- dio, televisão, etc.), nas agendas concorren-
so são a tematização de objetos pertencentes tes no espaço público, disputadas no campo
(virtual ou realmente) à esfera pública, a das mídias.
incidência nas políticas públicas estatais, a Nesse processo, há um nível específico
mobilização de simpatizantes, funcionários e relacionado ao dispositivo (Mouillaud, 1997,
militantes à ação política, etc. Ferreira, 2002b, 2002c). A informação jor-
Já as dimensões relacionadas a reflexão nalística é produzida em rotinas e objetivada
partem de nossa perspectiva teórica de que em textos estruturados em formas categoriais.
o texto é, em sua constituição ontológica A distribuição em editoriais, seções, capa,
resultante de uma ação social, necessariamen- títulos, legendas, fotos, etc. se constitui num
te uma forma de reflexão. Desenvolvemos processo de diferenciação, distinção e clas-
essa abordagem em vários artigos em que sificação incorporados às rotinas produtivas,
tratamos a produção de sentido advindas da que localizamos como um sistema sócio-
linguagem (Ferreira, 2002a, 2003a; Ferreira técnico de produção discursiva e cognitiva
e Dayan, 2003c). Piaget afirma isso, ao dizer do mundo. E, nesse sentido, a forma jornal
que a linguagem requisita um reflexionamento remete já a uma reflexão que atravessa a
perante o sentido da ação. Através da lin- produção, circulação e consumo de informa-
guagem, afirmamos que o jornalista ções jornalísticas. Aqui, quanto maior a
reconstitui ações de um acontecimento, diferenciação, distinção e classificação em
coordena ações num tempo e espaço diver- formas, maior o nível de reflexão.
sos do ontológico, categoriza os eventos, num
processo de reflexão ascendente que Das reflexões à construção de marcas
reconstitui os observáveis sugeridos em seu
discurso. Isso indica as dificuldades do A partir dessas reflexões teóricas, inves-
conceito de informação. Se a informação se tigamos essa tríade na perspectiva de marcas
refere ao relato, afirmamos que ela não existe discursivas. A forma jornal é observada numa
sem a opinião, na medida em que essa se organização do espaço – signo na forma de
constitui em torno dos processos de reflexão, lead, editorias, seções, colunas, links, foto,
substrato da argumentação e avaliação. Se legendas, títulos, assinaturas, citações, etc.
o texto já é reflexão, o relato já é opinião (Mouillaud, 1997). A atualidade abrange a
e comentário. presença na esfera do enunciado nas marcas
Isso não desfaz a possibilidade de uma de localização do acontecimento em três
diferenciação de textos mais ou menos modalidades temporais (presente, passado e
argumentativos. É esse degradê que dificulta futuro), nas técnicas de lead, na
a análise categorial estática, e expõe os limites processualidade operada através de títulos
da análise de conteúdo. As formas possíveis referenciais e informacionais. No título, o
de reconstituição das ações, a coordenação acontecimento é presentificado; no artigo, as
entre eventos no texto, a comparação entre diversas temporalidades são recuperadas. O
acontecimento concorrentes (a guerra do apagamento em relação a data do aconteci-
Iraque e o do Golfo, o governo Lula ou de mento pode ocorrer também pela omissão do
FHC), as categorizações (indiciais ou explí- verbo (o que significa omitir o tempo do
citas) das personagens e acontecimentos, acontecimento), fechando o título numa
podem estar mais ou menos subordinadas aos classificação do acontecimento, sendo a clas-
observáveis relatados. Esses são processos de sificação um trânsito do título informacional
regulação, através dos quais o jornalismo se para o título referencial. Nesse sentido, o
adapta à construção social dos objetos de efeito-presente do texto jornalístico relati-
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 345
vamente a data do acontecimento será bus- de evento; há muito tempo não ocorre; mas
cado no texto do artigo, em oposição ao efeito há também o que ocorre normalmente, o que
de atualidade buscado no enunciado (do significa acontecimento de rotina (habitual);
título). média probabilidade, acontecimento ocorre
Apaga-se também atos diversos, distribu- diversas vezes com o transcorrer do tempo.
ídos no discurso, que registrariam a presença O agendamento é o inverso do anterior.
de outros agentes do processo enunciativo. Aqui, o importante é se falar sobre algo que
Nesse sentido, o acontecimento sai, através é falado pelos outros, que pertence ao fluxo
das operações sobre os enunciados, da esfera de interações entre várias campos sociais, que
narrativa (história que se conta num tempo através de suas instituições, estabelece estra-
sobre eventos distribuídos em tempos e tégias de atualização informacional. O
espaços localizados, incluindo agentes do agendamento deixa marcas em processos
processo enunciativo) e “vai” para a esfera enunciativos, onde agentes de enunciação
da classificação (o que significa para nós, aparecem com outros enunciadores (de ou-
o ingresso no texto, ou do enunciado, na tras instituições e/ou campos sociais) e
esfera da ordem argumentativa, ou reflexi- agentes de enunciados (de outras instituições
va). e/ou campos sociais), ancorados em tempos
O texto tem as marcas do desenrolar diversos (fala-se em alguém num determi-
através de três operações marcadas no nado tempo e espaço).
enunciado. Primeira, através de outros dis- A partir dessas marcas construías foram
cursos dos agentes do processo enunciativo, configurados os seguintes dados agregados
há o título anafórico (Mouillaud, p. 105). (Tabela 3).
Nesse caso, aparecem o recurso aos artigos A dimensão reflexão inicia-se com a
definidos (o, a, os, as) a partir dos quais o categorização, ou tematização. Muitas vezes,
texto lembra “os acontecimentos antes do inicia com a ONG classificando a sim mesma.
número e dos quais a duração excede a Depois, classificando os outros, e assim por
duração quotidiana. O título anafórico con- diante, criando um sistema classificatório. As
fere ao jornal uma temporalidade específica” marcas da categorização são verbos que
(p. 105). Nesse tipo de título, há uma atu- indicam pertencimento de um indivíduo (ou
alização do acontecimento através de diver- coleção) a outra coleção, ou exclusão dos
sos níveis de categorizações. Num primeiro mesmos de outra coleção, através de uma
nível, o acontecimento remete a classes e determinada ação. Ou seja, é quase impos-
paradigmas gerais (tipo “ a caso Zé Dirceu...”, sível falar sem categorizar (através de con-
“A crise do Oriente...”). Esse nível, chama- junções – soma, disjunção – subtração, res-
mos de condensação. Num segundo nível, trições, oposições, causalidade, etc.). Esse
ocorre a ressemantizações através de outros processos aparecem como confrontação en-
níveis de tematizações (exemplo: no caso da tre discursos – confrontar discursos é uma
plataforma da Petrobrás que afundou, isso forma de reflexão. Assim, no campo das
aparece na ressemantização do acontecimen- mídias, podemos confrontar Rigotto com
to como acidente, escândalo, problema sin- Olivio, Lula com FHC, etc., ou comparação
dical, drama familiar...). dois discursos, ou dois acontecimento sobre
A baixa probabilidade foi pensada em os quais a mídia fala. Exemplo: a guerra do
termos relacionais. Um acontecimento pouco Vietnã com a Guerra do Iraque – uma guerra
provável é um acontecimento que tem um com ideologia, uma guerra sem princípios;
valor discursivo forte relativamente a outros ou, as duas guerras são decorrentes de in-
discursos. A presença discursiva das ONGs teresses econômicos; etc. A diferenciação
visa preencher lacunas discursivas no campo nasce da comparação (falar das diferenças
das mídias, procurando gerar um novo fluxo, sobre um determinado acontecimento): Guer-
em torno de falas sobre acontecimentos pouco ra do Vietnã (conjuntura de confronto entre
prováveis de serem ditos pelas mídias ex-União Soviética e EEUAA); guerras no
hegemônicas. Aqui, o importante é a fala diga Oriente (conjuntura de acirramento cultural
algo de novo (não porque é atual, mas porque entre ocidente e oriente; entre sociedade de
não foi dito) do tipo: nunca ocorreu este tipo mercados e sociedades pré-mercantis; entre
346 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
muçulmanos e cultura judaico-crista). E, final- duas guerras são compreendidas como um pro-
mente, a integração nasce também da compa- cesso único, do tipo: ambas se fazem contra
ração entre eventos e discursos diferentes, mas, os EUA, portanto, são conflitos vinculados a
na integração, não se busca a diferença. Se busca hegemonia desse Estado-Nação, contra cultu-
um lugar de identidade entre acontecimento ras alternativas (ideológicas, religiosas, políti-
diversos, recorrendo a um patamar em que as cas e culturais - Tabela 4).
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 347
mar numa questão de políticas de Estado, ou tema geral. As de organização se refere às agendas,
de debate na “praça pública”, envolvendo agentes datas, espaços materiais de atividade (prédios,
sociais localizados em vários campos sociais. cidadas, estados, nações), cronograma de de-
As marcas de mobilização vão se carac- senvolvimento das atividades, quadros com
terizar pela chamada a ação estrito senso. Uma responsabilidades diferentes, etc. (saldo).
passeata, uma caminhada, um ato coletivo e Marcas de um projeto pedagógico implica em
/ou individual, uma ocupação, um convite para cursos, cartilhas, bibliografia, textos, discur-
envio de e-mails, cartas, utilização de adesi- sos de formação, tempo para formação, qua-
vos, camisetas, etc. Isso pode ter como público- dros preparados, com capacidade de agir e dis-
alvo militantes, simpatizantes ou população em cursas sobre o tema da ONG, etc. (Tabela 5)
Tabela 5 - Agir, organizar e formar. Essas três dimensões se destacam como marcas
de um discurso que responde às rotinas das ONGs. Relacionadas às outras dimensões,
elas indicam enunciados vinculados ao campo político herdado da modernidade (em
especial, do movimento social-democrata e socialista).
é o caso do Sea Shepherd. Sua ação política Uma grande quantidade dos sites que se
agenda a mídia e, além disso, os textos rela- mantêm estáveis na rede são de informações
tivos aos acontecimentos que cria têm elevado e artigos opinativos com baixo valor
grau de aproveitamento nas mídias digitais, jornalístico (isso é, não preenchem os requi-
sempre reproduzidos muitas vezes na íntegra. sitos anteriores). Essa estrutura está presente
Porém, as classificações possíveis dos inclusive nos sites que apresentam textos
textos conforme apresentados anteriormente jornalísticos renovados com uma certa
não esgotam a problemática da distinção entre temporalidade. Ou seja, os sites das ONGs
mídias digitais assinadas pelas ONG‘s em não são jornalísticos, nem portais, mas sim
determinados mercados temáticos. A diferen- fortemente institucionais, e a notícia aí
ciação ocorre em vários níveis. O primeiro encontra-se portanto numa outra forma, em
deles é do acesso aos meios de produção. que o conjunto localiza o discurso jornalístico
Muitas ONG‘s utilizam servidores numa totalidade diferente do jornal. Em geral,
disponibilizados por outras instituições, ten- a notícia é vinculada a linques “notícia”, os
do uma vida instável. Isso pode estar vin- quais não são diferenciados em editorias, e
culado aos capitais econômicos, políticos e a única forma de organização é temporal (data
culturais, mas é necessário investigar em que de edição). Isso indica dois processos con-
medida as dimensões especificamente traditórios: se a ocorrência do texto
comunicacionais se articulam os processos jornalístico indica anuência à forma jornal,
sociais macroestruturais. O uso do blog como a indiferenciação da forma jornal indica uma
recurso foi observado como uma alternativa estratégia que a subordina a outras estraté-
sem sucesso (no sentido da produção e gias comunicacionais (do tipo comunicação
circulação da informação jornalística). institucional).
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 351
3
Traquina, Nelson. Jornalismo: Questões, A pesquisa é desenvolvida no Programa de
teorias e “estórias”. Lisboa: Veja. 1993. Pós Graduação em Ciências da Comunicação –
Traquina, Nelson. O estudo do jorna- PPGCC da Universidade do Vale do Rio dos Sinos
lismo no século XX. São Leopoldo: Unisinos. - Unisinos, Rio Grande do Sul, Brasil, com apoio
da Fundação de Amparo à Pesquisa do Rio Grande
2001.
do Sul - Fapergs. Abrange uma parceria com a
Verón, E. A produção de sentido. São
pesquisa Teoría y práctica de la investigación y la
Paulo: Cultrix, Editora da USP. 1980. intervención en comunidades y organizaciones
Verón, E. “Quand lire c´est faire: sociales. Implementación de un método y disposi-
l´énonciation dans le discours de la presse tivos innovadores en comunicación comunitaria, co-
écrite”. Sémiotique II, IREP (Institut de ordenada pelo professor Eduardo Vizer, na Univer-
Recherches et d´Etudes Publicitaires), Paris. sidade de Buenos Aires. Bolsistas de Iniciação
1983. Científica: Claucia Ferreira da Silva e Soraia
Zimmermann. O universo estudado é de 35 ONG‘s
(2/3 das quais no tema ecologia) e cerca de 1200
_______________________________ textos.
4
1
Os fundamentos teóricos das reflexões aqui Essa tríade retoma, com algumas modifica-
desenvolvidas estão em vários artigos do autor. ções, as clássicas funções do jornal político da
2
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – social-democracia d’ O que fazer, de Lenin (in-
Unisinos. formar, conscientizar e organizar).
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 353
protege [...] a lo mejor no es tan buena A pesar de los ataques de algunos sectores
idea porque podemos estar haciendo profesionales a la concesión que suponía este
el caldo gordo a intereses muy experimento, la semilla de Jane´s y Slashdot
distintos al del autor.13 ha germinado de diversas maneras en
diferentes medios digitales. En las mismas
La conclusión que mostraba José Cervera fechas nacía en Corea del Sur OhMyNews18,
en ese mismo congreso era aún más rotunda: un sitio de noticias que basaba su estructura
productiva en una inmensa red de
La propiedad intelectual está abolida corresponsales, formada hoy por 26.000
de facto, sólo falta que las leyes se ciudadanos-periodistas que nutren sus páginas
enteren. Lo que salvará a los autores de todo tipo de informaciones y opiniones.
de la copia indiscriminada será ‘’la Este medio participativo se ha convertido en
economía de la reputación’’: si el diario digital más influyente del país con
plagias, baja tu reputación en el una media de 14 millones de visitas diarias
mercado.14 y dos millones de lectores, es decir, un 35%
de la población surcoreana. De manera similar
Objetivo: abrir el núcleo de los discursos funcionan la publicación japonesa JanJan19,
dominantes que también se ha erigido en serio competidor
de los principales medios convencionales; o
Ante este panorama tan contradictorio, GetLocalNews 20 , una red de sitios web
resultan especialmente valiosas las desplegada por todos los Estados Unidos que
experiencias periodísticas que no se recoge mediante una infraestructura de
conforman con producir material informativo edición sencilla las inquietudes más presentes
al margen o en contra de los discursos entre la ciudadanía local. Ejemplos más
dominantes – tal como sucede con la mayoría recientes y más localizados son los de Santa
de los weblogs –, sino que apuestan por Fe New Mexican21 o The Dallas Morning
fórmulas de integración que aspiran a News22, que se han convertido en puntos de
incorporar en los medios convencionales las referencia inevitables siguiendo el modelo de
aportaciones de la ciudadanía y los OhMyNews.
movimientos sociales a través de los nuevos El llamativo de los último experimentos
recursos tecnológicos. En los últimos diez de periodismo participativo es el que Jason
años ha habido muchas experiencias de lo Calacanis inició en 2003 con
que se ha dado en llamar periodismo Weblogsinc.com23, una adaptación del código
ciudadano15, pero Jane’s Intelligence Review16 abierto al periodismo especializado que aspira
fue la primera publicación que puso en a reunir a 300 socios webloggers expertos
marcha en 1999 una iniciativa inspiradas en en diferentes áreas temáticas para superar los
el código abierto de Linux cuando sometió problemas de credibilidad y autonomía que
a la crítica de los usuarios expertos de padece el periodismo tradicional. Este
Slashdot17 un artículo sobre ciberterrorismo proyecto supone una sistematización de lo
y una lista de preguntas sobre sus contenidos que algunos medios convencionales como la
antes de publicarlo. La respuesta fue tan BBC han empezado a asumir con la
contundente que el editor de Jane´s decidió incorporación de espacios de publicación
desechar el texto original y construir uno personal en sus páginas web. Si ya son
nuevo con los comentarios aparecidos en muchos los precedentes en lo que se refiere
Slashdot y las clarificaciones y los datos que a aportación de materiales audiovisuales y
a continuación se solicitarían a algunos de testimonios por parte de la ciudadanía para
los expertos de este site. Con ello se la producción informativa convencional en
inauguraba una nueva forma de hacer sus diferentes vertientes (no sólo en Internet),
periodismo en la que la redacción informativa no son menores las expectativas que se abren
se asemejaba al proceso en el que los en el desarrollo de esa línea de trabajo, dadas
programadores de Linux analizan, critican y las potencialidades que brinda la cada vez
retocan una versión beta de software. más sofisticada y asequible tecnología móvil,
358 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
que pone en las manos de cualquier ciudadano síntomas contrastables de un nuevo marco
una verdadera unidad móvil multimedia. teórico basado en los nuevos paradigmas
Las experiencias de periodismo ciudadano comunicacionales, que plantean redefi-
revelan de manera clara la profundidad de niciones conceptuales en la comunicación
los efectos que las nuevas TIC están periodística y en la mediación social ejercida
provocando en la esencia de la comunicación hasta ahora por los periodistas, entre otros
social. Son efectos que ya nadie rechaza como actores.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 359
do, la palabra que describe mejor el pano- publicidad y servicios de comercio electró-
rama actual de los modelos de negocio en nico. Este modelo es el elegido por la mayoría
los cibermedios españoles vuelve a ser, sin de las publicaciones con presencia exclusiva
duda, la heterogeneidad. De hecho, los medios en Internet (publicaciones digitales,
hispanos en Internet presentan modelos de confidenciales, weblogs, etc.), por los sitios
negocio diversos no sólo desde una perspec- web de todas las cadenas y emisoras de radio
tiva mediática – es decir, en función de si y televisión, y por la mayoría de las ediciones
el medio matriz es un diario, una televisión digitales de los diarios, sobre todo los de
o una radio –, sino también desde el punto difusión regional.
de vista de las distintas cabeceras dentro de
los diarios, por ejemplo, el abanico de Modelo de pago
modelos de negocio adoptados por las Es aquél que obliga a los usuarios a pagar
publicaciones va desde la total gratuidad al por la consulta de la totalidad – o, al menos,
pleno pago. Toda esta diversidad actual en de la gran mayoría de las informaciones- y
la adopción de modelos de negocio es un por el uso de los eventuales servicios
síntoma de la desorientación que padecen las interactivos de los medios. Este modelo ha
empresas de comunicación en su propósito sido incorporado por pocos cibermedios en
de asentar modelos de negocio sostenibles España, pero existen no obstante algunos
en sus publicaciones digitales10. ejemplos muy significativos. El más desta-
En los cibermedios hispanos actuales, hay cado, sin duda, es el caso de Elpais.es,
quienes aspiran a la rentabilidad atrayendo íntegramente de pago desde el 18 noviembre
audiencias masivas mediante la oferta gra- de 2002, salvo las secciones de ‘Participación’
tuita de todos sus contenidos y la adopción y ‘Opinión’. Junto a este ciberdiario, han
de estrategias multiplicadoras de su adoptado el modelo de pago, entre otros, la
visibilidad o, en expresión de Phil Meyer, práctica totalidad de los sitios web de las
de su “influencia”. No faltan tampoco quienes agencias de noticias, algunas revistas (por
pretenden ser rentables con estrictos mode- ejemplo, Hola), las ediciones en Internet de
los de pago, si bien como se detallará a la prensa económica (Expansión, Cinco Días,
continuación apenas cabe incluir en esta La Gaceta de los Negocios) y, en general,
categoría más que a unos contados aquellos cibermedios cuyos contenidos gozan
cibermedios, entre los que destacan Elpais.es de un alto valor añadido por su utilidad
y las ediciones digitales de los diarios profesional.
económicos. Aumentan asimismo los medios
que tratan de alcanzar la deseada rentabilidad Modelo mixto
a través de una combinación de las dos Es el resultante de la combinación de los
estrategias anteriores. Y, por fin, hay medios dos modelos anteriores. Se distingue del
que todavía se limitan a estar presentes en modelo de pago en que, si bien se exige el
la Red, sin modelo de negocio alguno más abono por una cantidad significativa de
que el de mantener una presencia informa- contenidos y/o servicios, el usuario puede
tiva testimonial o, menos incluso, meramen- obtener un servicio informativo suficiente
te corporativa. Estas estrategias coexisten en sólo con la oferta gratuita. La extensión de
la Internet hispana actual11 y dibujan los este modelo mixto está en aumento en los
siguientes tres modelos de negocio que últimos años y alcanza a medios de diverso
pretendemos analizar con detalle en nuestra tipo, particularmente a los portales de Internet
investigación: (que cobran, sobre todo, por algunos de sus
servicios interactivos) y a las ediciones en
Modelo gratuito Internet de algunos diarios sobre todo de
Consiste en dar acceso a una oferta difusión nacional (El Mundo, Abc), pero
gratuita de contenidos y servicios interactivos, también de ámbito regional (periódicos del
con la que los medios pretenden atraer a la grupo Godó y del grupo Vocento) y local
mayor cantidad posible de usuarios para (Diario de Navarra, El Periódico del Alto
traducir esa audiencia en ingresos por Aragón, etc.).
364 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
y el horario dependiente del cierre de las Otro aspecto muy importante que debe
versiones tradicionales demuestran que este tenerse en cuenta a la hora de analizar el marco
periodismo no goza de buena salud, y que profesional del ciberperiodista español es el
los periodistas reconozcan en este contexto jurídico. Tanto el contractual (laboral o civil-
más debilidades que puntos fuertes20. mercantil) como el de los modelos asociativos
El estudio desarrollado por el Grup de (sindicación, asociacionismo o sindicación) o
Periodistes Digitals y el Sindicat de el de la gestión de los derechos de negociación
Periodistes de Catalunya21 confirma este colectiva o el de los derechos de autor. Puesto
elevado grado de insatisfacción. Una situación que Internet es un medio con características
difícil de resolver porque el periodista pre- bien diferentes, podría incluso pensarse que,
sume tradicionalmente de su alergia al al tratarse de una nueva profesión o del
asociacionismo, y porque las propias empre- desarrollo de otra no siempre suficientemente
sas no confían en Internet, manteniendo estas regulada en España (la de periodista) la
áreas al margen de los convenios laborales necesidad de mejorar los instrumentos jurí-
que afectan al resto de la plantilla. dicos que la definen es aún mayor.
368 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
15
60, 05/2003. Juan Varela, “La prensa en Internet Antonio Fernández-Coca, Producción y
se paga”, en Chasqui. Revista latinoamericana de diseño gráfico para la World Wide Web, Barce-
comunicación, nº 82, junio de 2003. lona, Paidós, 1998.
12 16
Javier Díaz Noci y Ramón Salaverría, Koldo Zuazo, Euskalkiak, herriaren
Manual de redacción ciberperiodística, Barcelo- lekukoak, San Sebastián, Elkar, 2003.
17
na, Ariel, 2003, pp. 15-43. Manuel Alvar (dir.), Manual de dialectología
13
Rafael Cores, “Shaping hypertext in news: hispánica, Barcelona, Ariel, 1996.
18
multimedia infographics”, en Ramón Salaverría Josep María Casasús, “Perspectiva ética del
y Charo Sádaba (eds.), Towards New Media periodismo electrónico”, http://www.ucm.es/info/
Paradigms. Content, Producers, Organizations and perioI/Period_I/EMP/Numer_07/7-3-Pone/7-3-
Audiences, Pamplona, Ediciones Eunate, pp. 27- 03.htm.
19
46. José Luis Valero, “El relato en la infografía María Bella Palomo Torres, El uso
digital”, en Javier Díaz Noci y Ramón Salaverría redaccional de Internet en la prensa diaria
(coords.), Manual de redacción ciberperiodística, española, Málaga, Universidad de Málaga, 2002.
20
Barcelona, Ariel, 2003, pp. 555-589. María Bella Palomo Torres, El periodista
14
Mª Ángeles Cabrera, “Convivencia de la on line: de la revolución a la evolución, Sevilla,
prensa escrita y la prensa online en su transición Comunicación Social, 2004.
21
hacia el modelo de comunicación multimedia”, Alojado en:
en Estudios sobre el mensaje periodístico, nº 7, http://www.periodistesdigitals.org/docs/
Madrid, UCM, 2001. informe_laboral_periodistas_digitales.pdf.
370 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 371
Interfaces meta-comunicativos:
uma análise das novas interfaces homem/máquina
José Manuel Bártolo1
about the total interface situation.” parece- interface corresponde, pois, à capacidade de
nos importante no sentido de orientar a processar elementos energéticos (mecânicos,
perspectiva de análise no interior de uma térmicos, sonoros, ou electromagnéticos) em
análise dos fenómenos de HCI e de novas informação conversível em operações.
interfaces em geral. Para que tal seja possível é necessária a
Numa outra ocasião, defendemos que as existência de uma espécie de diálogo entre
práticas sustentadas por relações de interface, o utilizador e a máquina. A máquina deve
sustentam-se a partir de determinados indi- ser capaz não só de reconhecer o discurso
cadores epistémicos que são construídos sobre usado pelo utilizador, mas ser capaz ela
o sistema percepção-linguagem mas que o própria de o utilizar.
deslocam num processo permanente de re- Esta operação de interface da qual de-
construção. O Sistema percepção linguagem pende todo o tipo de interactividade é
assim criado in process a partir de variados identificada na literatura como Recognition
indicadores epistémicos quer gramaticais, ou tracking.
quer gestuais, aproxima-se dos sistemas de No nosso caso vamos utilizar o conceito
logica fuzzy, pela indecidibilidade dos ter- de apropriação como sinónimo de recognition
mos, precisamente porque o que importa não e de tracking.
é a verificação do valor de verdade do No filme de Ridley Scott, Blade Runner,
discurso mas a sua performatividade. a personagem interpretada por Harrison Ford
Ao falarmos de interactividade estamos, introduz uma fotografia num Scanner e
pois, a falar de actividade mútua e simul- através da voz comanda o computador,
tânea entre um sistema biológico humano e explorando relações topológicas que ele
um sistema artificial. próprio detecta na imagem. “À direita de”,
O sistema humano é o que identificamos “Dentro de” são comandos proferidos pela
com o corpo: o corpo é capaz de movimen- personagem para explorar o espaço descrito
tos, emite calor, tem um aparato fónico que na fotografia e que pressupõe que o com-
emite sons tendo a capacidade de os articular putador tenha a mesma capacidade perceptiva
de modo a formar linguagens, é dotado de do utilizador. Tal é possível por operações
um cérebro com actividade electromagnéti- de apropriação do discurso humano por parte
ca. da máquina.
As estes quatro meios de transmissão O exemplo ilustra um dos cinco modelos
energética: a mecânica do corpo, a energia de interface por nós mencionados, neste caso
térmica, a energia sonora, e a electromag- o utilizador usa o comando voz, no compu-
nética correspondem quatro modos de tador ocorre aquilo que na linguagem da HCI
interface com o sistema artificial, aos quais se chama de Speech Recognition, isto é, há
podemos acrescentar um último que pressu- uma apropriação do discurso humano por
põe a interface directa do sistema artificial parte da máquina que permite converter a
com o nosso sistema nervoso e que desen- informação em acção.
volve portanto a ideia de conexão neuronal Esta eficácia da interface mantinha, ain-
que a literatura cyberpunk antecipara. da, uma diferença entre pensar e processar,
Mais do que uma análise exaustiva de entre o que é do domínio de speech
cada um destes cinco modelos de interface, recognition e o que é de domínio de speech
interessa-nos compreender, em geral, os understanding e uma distinção, de hardware
mecanismos da interface que, como procu- e de software, entre o humano e o maquinal.
raremos mostrar, são os mesmos para qual- Mas num programa como o Flying Mouse
quer modelo. desenvolvido pela SimGraphics apercebemo-
O fundamento da interface é o fundamen- nos como hoje, na realidade, as interfaces
to comunicativo, existe interactividade quan- ganharam um protagonismo, que nos anos
do os agentes conseguem processar informa- 80 não possuíam na ficção.
ção: é no processamento mútuo de informa- O Flying Mouse é um aparelho de re-
ção entre agentes de dois sistemas (um cepção para acrescentar as mãos ao progra-
biológico humano, um outro artificial) que ma de simulação Automated Mainframe
consiste o operar da interface. O operar da Assembly que deixa as marcas do movimento
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 373
realizado num dado terreno quando se na- bilidade perderem. A este respeito poder-se-
vega através de um campo de análise a 3 ia dar o exemplo de uns óculos produzido
dimensões, ou quando se faz digitalização de pela Cyberspace Corporation que projectam
objectos a 3 dimensões e ainda nas aplica- imagens directamente para a retina, óculos
ções que envolvem o posicionamento e de projecção de laser directamente na retina
visionamento de objectos ou entidades a 3 ou aparelhos de interface que utilizam as
dimensões. O aparelho controla a visão do ondas cerebrais do utilizador são exemplos
utilizador, selecciona a viabilidade de uma de tecnologias de interface desenvolvidas na
parte dos resultados verificando-os numa base direcção do processamento directo do pen-
de dados constituída por conjuntos particu- samento para a máquina, tratam-se de tec-
lares, e tentando encontrar espaços vagos. A nologias de interface que se aproximam, ao
partir do momento em que a tecnologia ponto de com eles se confundirem, do nosso
permite o movimento arbitrário e a visão corpo e da nossa mente constituindo-se já
alternada, podem ser realizadas todas as não apenas como sínteses comunicativas mas
operações do mundo real. Algumas dessas como sínteses sistémicas, no sentido de
funções CAD avançadas incluem detecção parcialmente, num determinado instante ou
das colisões em tempo real, prevenção das em relação a uma determinada operação,
penetrações e obtenção de imagens para as terem anulado as fronteiras entre o sistema
bases de dados. biológico humano e o sistema artificial.
O Flying Mouse é um exemplo de uma Importa reforçar que todas as operações
nova interface homem-máquina operada a de interface, mesmo as mais simples, que
partir de operações de eye tracking. Neste executamos para lidar no quotidiano, por
caso a apropriação do olhar por parte da exemplo, com o nosso telemóvel implicam
máquina é a base de toda a informação a funções de apropriação por parte da máquina
processar. O exemplo é mais fantástico na e, portanto, realizações, em menor ou maior
medida em que a máquina é capaz de se escala, de operações de síntese.
apropriar e, portanto de dominar, informação Por outro lado, o exemplo do telemóvel,
que não é dominada pelo humano. ao con- em particular, dos telemóveis da nova ge-
trário das operações por comando voz, nas ração são, ainda, um bom exemplo, de novas
quais o utilizador compreende os significa- competências semânticas de que se revestem
dos dos comandos “à direita”, “à esquerda” objectos marcadamente de interface no que
e a máquina sem os compreender reconhece- representa a diferença entre as novas
os, neste exemplo de interface por apropri- interfaces e a interface que se estabelecia com
ação do olhar é o utilizador humano a, na objectos mecânicos.
incapacidade de compreender o seu discurso No caso de objectos mecânicos, como
reconhecê-lo após processado pelo compu- uma bicicleta, a percepção do objecto con-
tador em imagens 3D. Trata-se, a meu ver, duz à consciência da sua estrutura de fun-
de um bom exemplo daquilo que chamo cionamento, sendo a função associada por nós
síntese comunicativa que traduz uma opera- à estrutura físico-mecânica dos componen-
ção de interface na qual o utilizador não é tes, ou seja o esquema mental que constru-
capaz de reconstituir analiticamente as fases ímos ao olhar uma bicicleta não é puramente
da interacção com a máquina. Existe um um esquema gráfico mas um esquema grá-
diálogo de que, a cada instante se reconhe- fico-mecânico. Com a introdução da electró-
cem resultados sem que se reconheçam os nica este esquematismo entra em crise, desde
momentos do diálogo propriamente dito, está- logo por a estrutura física do objecto, a
se de cada vez depositado no resultado da anatomia da máquina, deixar de ser
síntese. comunicante em relação à sua função. Os
Parece-me contudo excessivo concluir que novos telemóveis, por exemplo, não podem
com ferramentas de manipulação de objectos ser definidos simplesmente a partir da sua
3D em tempo real, o pensamento e o função. De facto, do ponto de vista funci-
processamento se estejam a tornar a mesma onal, o novo telemóvel é um objecto
coisa. Sem dúvida que as interfaces ganham conectivo de múltiplas funções utilitárias (as
tanto mais protagonismo quanto mais visi- funções standard de um telefone móvel, as
374 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
O
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tos são mais resistentes à mudança. am
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A questão que conduziu o estudo e
15
de passar da potência ao acto. Foi sabendo
10
desta discrepância entre potencialidade, re-
5
presentação e acção que se levou a cabo um 0
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380 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
30
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Sim Não
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Estes resultados podem ficar a dever-se tigadores lusófonos publicam muito pouco na
a inúmeros factores. Se se cruzarem estes Internet.
resultados com os comentários que os Contudo, quando a questão incide sobre
respondentes fizeram na área de comentário o tópico da troca de informação, de ideias,
aberto poder-se-á apontar como uma das etc., ou seja, um processo de comunicação
razões principais a falta de cultura de co- menos formal que a publicação, mais pes-
operação, ou seja, não está enraizado na soal, então os resultados obtidos são mais
cultura dos investigadores lusófonos a pro- favoráveis com quase metade dos
cura de parceiros dentro da lusofonia. Apre- respondentes a afirmarem usar a rede para
sentam como razão a facto de preferirem esse fim.
procurar como parceiros investigadores de A questão era: Troca regularmente infor-
países que estejam mais desenvolvidos na sua mações, ideias, etc. com colegas dos países
área de investigação, ou seja, que sejam mais de expressão portuguesa usando a Internet?
centrais no sistema científico mundial e, como
tal, potencialmente lhe tragam uma maior 60
visibilidade. Não se trata de uma questão de 55
lusofobia, mas sim de gestão da visibilidade
50
e do reconhecimento.
45
Quanto à questão: Tem algum documen-
40
to publicado em alguma revista on-line ou
em algum repositório digital de informação 35
20
15 A investigação realizada em consórcios
10 de investigação constituídos por investigado-
5 res das diferentes comunidades lusófonas será
0
seguramente uma investigação mais rica e
Am
Já
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processo.
Conheceu-os através da Internet ou já os conhecia O apelo é no sentido de desenharmos os
mapas cognitivos e relacionais que possam
Na área de comentário aberto do ques- ser orientadores do desenho de novos cami-
tionário muitos respondentes sublinharam nhos de cooperação no âmbito da investiga-
que, essencialmente, estabelecem novos ção mas, também, na cultura e desenvolvi-
conhecimentos nos encontros presenciais e mento em sentido lato. Para que o apelo dê
que os serviços em rede, nomeadamente, o fruto são necessárias iniciativas que se
correio electrónico e a partilha de ficheiros, contraponham à tendência excessivamente
servem para manter esses contactos. Por outro individualista e promovam a criação de redes
lado, para os investigadores que no seu humanas de parceiros.
percurso académico estudaram em outra No âmbito deste trabalho para a VI
instituição, em outro país a rede serve para Lusocom procuraram-se iniciativas e projec-
dar continuidade às relações enraizadas que tos que já estivessem em curso. Fez-se uma
durante esse período estabeleceram. selecção que se apresenta de seguida.
Quanto à teia e densidade das relações
entre os membros da comunidade científica 3. Algumas Iniciativas em Curso
lusófona os dados indiciam que a teia é ténue
e as relações são pouco densas. A maioria Em primeiro plano deve-se sublinhar a
das relações são estabelecidas entre o Brasil existência de um instrumento com grande
e Portugal existindo áreas como os estudos capital para potenciar a cooperação no seio
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 383
Significando e ressignificando
Lourdes Meireles Leão1
PALAVRA SIGNIFICADO
Abortar (o comando) Suspender uma operação
Afundamento Diminuição de energia
Alimentação - alimentar uma linha Energia - colocar energia na linha
Anel aberto Quando a energia não volta ao ponto inicial
Quando a energia volta sempre ao ponto
Anel fechado
inicial, está circulando
Banco de carga Uma grande quantidade de energia
Linha de grande porte que transporta um
Barra
volume muito grande de energia
Cair (uma subestação) Deixar de funcionar por algum problema
Correr a linha Fazer uma vistoria no local
Perder (uma linha, uma subestação, etc.) Deixar de funcionar por algum problema
Sistema malhado Com bastante interligação
plas funções num processo de construção ções, novas configurações e, por conseguinte
de significados. novos significados e novas conceitualizações.
Como estas noções se integram? Como Tais construções linguísticas, bastante cria-
isto funciona? De acordo com as elaborações tivas, são impulsionadas por um importante
de Fauconnier, dois espaços mentais iniciais processo cognitivo que é a integração
que têm correspondência um com o outro, conceitual ou mesclagem. Para ele,
pelo processo de mesclagem ou integração mesclagem é uma operação que embora
conceitual, dão surgimento a um terceiro, a simples (é um processo cognitivo que opera
mescla (blend). Esta usa as estruturas vindas sobre dois espaços mentais para obter um
dos espaços estímulos e dos conhecimentos terceiro) pode explicar uma série de fenô-
de fundo do sujeito para criar uma nova menos lingüísticos e contribuir para melhor
estrutura e permitir que o trabalho cognitivo se conhecer a natureza das relações existen-
central seja desempenhado. Este terceiro tes entre construções lingüísticas e processos
espaço herda a estrutura parcial dos espaços cognitivos. Na opinião de Sweetser e
iniciais, mas tem estrutura emergente própria. Fauconnier (1996), a idéia básica é que à
O ponto de partida ou o espaço base, como medida que nós pensamos e falamos, espa-
ços mentais são estabelecidos, estruturados
sugere Fauconnier, é sempre um sistema de
e ligados sob pressões vindas da gramática,
relações correspondidas em um outro espaço
contexto e cultura.
mental. Almeida (1999) utiliza uma metáfora
Chiavegato, 1999: 111, por sua vez, afir-
para exemplificar o processo:
ma que
Clipoema:
a inter-relação das linguagens visual, sonora e verbal
Luiz Antonio Zahdi Salgado1
Os anseios gerados pela poesia concreta Os poetas deste grupo estavam conectados
brasileira nascida nos anos 50, donde as pos- às idéias artísticas e teóricas de Mallarmé,
sibilidades plásticas da palavra ganharam James Joyce, Ezra Pound, Cummings e
importância, são agora, nestes últimos 12 Apollinaire e também as tentativas experi-
anos, concretizadas através do cruzamento mentais futuristas/dadaístas que estão na raiz
com as atuais interfaces tecnológicas. A ampla do novo procedimento poético, que se im-
revolução causada pela ferramenta digital puseram à organização convencional formal
possibilitou que a poesia escrita, sua imagem do verso. (Campos 1987: 50). Os signos
e movimento agregassem novos valores. O verbais da poesia se abrem para a visualidade
som e seus desdobramentos, a música, a das Artes Plásticas e do Design Gráfico, a
utilização de ruídos, a poesia falada, bem leitura tradicional rende-se para uma visão
como outros recursos oriundos de outras ma- multidirecional da distribuição do poema pelo
nifestações artísticas como, por exemplo, a espaço da página: os tipos se soltam sobre
performance e a vídeo arte podem ser agora a superfície branca plana.
elementos para serem agrupados em poesia. Para Philadelpho Menezes, o momento
O resultado desta inter-relação diferenciada concretista é considerado “o de maior alcance
de linguagens chama-se no Brasil da consciência crítica até então produzido pela
“Clipoema”. vanguarda brasileira”, quando foram dados os
A inter-relação das linguagens visual, primeiros passos para “(…) o caminho da
sonora e verbal (VSV) já ocorre a quase 80 crescente presença da visualidade, que acabaria
anos nas manifestações cinematográficas de por aprofundar a implosão sintática, chegando
modo indiscutivelmente consagrado, entretan- a própria unidade molecular do discurso ver-
to do cruzamento da poesia concreta com as bal: a palavra.”(Menezes, 1991: 13). Santaella
atuais interfaces tecnológicas ocorre um novo também trata do mesmo assunto e acrescenta
modo nessas relações: um alto grau de “no Brasil, o polêmico movimento da poesia
inter(IN)dependência entre elas, ou seja, cada concreta foi o primeiro a pôr programaticamente
linguagem pode se estabelecer independen- em discussão a visualidade na poesia (…)”
temente das outras, mas quando agrupadas (Santaella, 1998: 70-71).
não apenas funcionam como meras ilustra- Paralelo ao interesse pelo sentido visual
ções ou legendas umas das outras mas pro- da palavra, principalmente pelo grupo de
porcionam múltiplas possibilidades de leitu- poetas do Noigandres, também já estava
ra e entendimento de modo que ampliam contido, na dinâmica concretista, o desejo de
consideravelmente as possibilidades de sig- utilizar o som na construção poética, con-
nificado da mensagem poética. Entendo que forme declara Augusto de Campos. (Araújo,
isto caracteriza o Clipoema. 1999: 50) Muito da estrutura da poesia está
Há meio século os poetas Augusto de na sonoridade proporcionada pela combina-
Campos, Haroldo de Campos e Décio ção criativa das letras, sílabas e palavras que
Pignatari, como integrantes do Grupo possibilitam resultados interessantes tanto no-
Noigandres, iniciaram um movimento de poema recitado quanto no cantado. Entretan-
vanguarda, pioneiro, bastante considerado in- to, a utilização do som proposta por estes
ternacionalmente, que abriu novos caminhos poetas é aquela cujas referências se encon-
para a poesia brasileira, “(…) surge a poesia tram nos grandes compositores que inova-
concreta detectando a crise do verso e ten- ram e ampliaram os conceitos musicais do
tando reordenar o caos gráfico do esfacela- século XX, como Schoenberg, Webern,
mento da linearidade” (Menezes, 1991: 13). Boulez, Xenakis, Cage, entre outros.
396 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Pode-se ainda dizer que uma das prin- Na obra Nome se encontra a continuidade
cipais características da poesia visual já se do percurso iniciado pelo concretismo, uma
encontrava antecipadamente no pensamento obra de poesia que se vale de outras lingua-
concretista: a exploração de novos suportes. gens não só para ilustrar o seu sentido verbal,
“Antecipando a explosão das variadas ma- mas para, na inter-relação com o som e a
nifestações da poesia visual (poema proces- imagem, gerar múltiplos significados.
so, poesia experimental, alternativa, arte
postal, gestual, poesia visiva, grafismo, Informação, comunicação e repertório
letrismo), a poesia concreta, especialmente
nos desdobramentos por que viria passar na A percepção da obra Nome passa a
obra de Augusto de Campos, antecipou ocorrer através da combinação de variados
também o pulsar dos movimentos em luz ou caminhos, possibilitando uma leitura ampla
som de uma poética eletrônica na era da e diversificada, limitada apenas pelo reper-
automação” (Santaella et al, 1998: 71). tório individual do público apreciador. O
Os elementos inscritos pelo movimento público atingido por este formato de trabalho
concretista atravessaram décadas em busca de aumenta em número, porque a obra atrai,
movimento e animação. Entretanto, através dos numa mesma idéia, amantes da música, do
mesmos poetas citados e juntando-se a eles vídeo e da poesia.
o artista plástico Júlio Plaza e também o artista Uma das mais importantes características
multimídia Arnaldo Antunes, novas experimen- encontradas na obra Nome está relacionada
tações surgiram na composição com signos com o modo de utilização dos repertórios
verbais e não verbais. Estas explorações sonoro, visual e verbal, dos cruzamentos, das
ocorreram principalmente na utilização de complementações, das linhas de fuga, enfim,
outros suportes tecnológicos como o fax, o das relações intersemióticas entre eles. O
vídeo texto, o holograma, o laser, o vídeo e artista multimídia combina os três repertó-
o computador, que foram emprestados de suas rios de forma bastante variada, gerando uma
funções para servirem como interfaces para obra múltipla onde cada poema, clipoema,
expressão artística destes poetas. música, apresenta diferenças de níveis de
Na década de 90, no Laboratório de inteligibilidade e redundância. Podem-se
Sistemas Integráveis da Escola Politécnica da encontrar músicas de repertório facilmente
USP, foram desenvolvidos alguns poemas a reconhecido, assim como poemas com níveis
partir dos recursos da computação gráfica. altos de inteligibilidade e que exigem do
A idéia era transcriar poemas do papel para receptor um repertório mais elevado.
o vídeo (Araújo, 1999: 15), este evento foi A obra apresenta múltiplos cruzamentos,
chamado de Vídeo Poesia. Paralelo a este com variados graus de complexidade, pois
evento, AA desenvolveu a obra multimídia a utilização do recurso de repetição não segue
Nome. uma lógica convencional. Os elementos são
organizados em estruturas diversas que
Nome buscam muito mais a experimentação esté-
tica. O alto grau de informação da obra como
Nome é o título/tema um todo resulta num complexo organismo
da obra de Arnaldo onde em cada parte se observam níveis
Antunes. Esta obra variados de disposição da informação, alguns
datada de 1993, con- momentos mais redundantes, outros intensa-
siderada multimídia mente mais informativos, causando radicais
por envolver vários enfrentamentos entre inteligibilidade e
meios para sua produ- previsibilidade.
ção e apresentação, é Por exemplo, pode-se observar no vídeo
composta de CD com Cultura uma combinação de repertórios que
23 músicas, vídeo facilita ao público o entendimento da men-
com 30 clipoemas, sagem poética.
livro com 30 poemas Já em outro clipoema onde o título frase
e show musical. “os nomes dos bichos não são os bichos”,
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 397
Imagens abstratas
Forma
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 401
Estrutura
Salto
dos serviços de correio electrónico, chats no uso da Internet, sendo que 81,2% refere
e serviços integrados oferecendo a possibi- usar a Rede há pelo menos 2 anos.
lidade de comunicação por texto, som e
imagem, na manutenção de relações 2.1 Contributos dos serviços de comuni-
estabelecidas no espaço físico e no estabe- cação assentes em Internet para a manu-
lecimento de novas relações. Relativamente tenção das redes de relações dos sujeitos
a este último indicador é analisada a rele-
vância que a inserção dos sujeitos em redes Os dados relativos ao uso dos serviços
estabelecidas no espaço físico pode desem- de comunicação Internet, para a manutenção
penhar. de contactos com indivíduos cujos relacio-
namentos foram estabelecidos no espaço
2. Apresentação dos resultados: caracteri- físico, demonstram que estes serviços vie-
zação dos respondentes ram adicionar uma nova forma de manter
estas ligações. Neste sentido, 89,8% dos
A tabela 1 permite determinar o perfil dos respondentes indicam recorrer a estes servi-
respondentes ao inquérito. Através da sua ços no contacto com amigos, familiares e
análise é possível constatar que predominam colegas. A tabela 2 apresenta os grupos de
respondentes do sexo feminino. 75,4% dos indivíduos com quem os respondentes indi-
inquiridos tem idades compreendidas entre cam contactar através da Internet.
os 18 e os 35 anos, e uma significativa parte Como decorre da leitura da tabela, a
possui ou frequenta o ensino superior. Os categoria de pessoas que mais destaque
respondentes possuem já alguma experiência assume nas comunicações estabelecidas atra-
Sexo
Feminimo 55,7
Masculino 44,3
Faixa etária
Menores de 18 6,8
18-25 39,5
26-35 35,9
36-45 11,5
46-50 2,8
51-60 2,8
Maiores de 60 0,7
Habilitações literárias
Inferior ao Ensino Secundário 4,9
Ensino Secundário 20,1
Bacharelato/Licenciatura/Pós-graduação 56,2
Mestrado/Doutoramento 18,8
Experiência de uso da Internet
Menos de 1 ano 4,6
1 ano 14,2
2-5 anos 50
Mais de 5 anos 31,2
Participação activa em instituições sociais, culturais, religiosas,
desportivas ou recreativas
Sim 45,2
Não 54,8
Base: Todos os respondentes do questionário
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 411
vés da Internet é a que integra familiares e mos em conta que é a partilha de um mesmo
amigos com os quais há uma relação pró- espaço-tempo e as vivências em comum que
xima. Saliente-se no entanto, que todas as alimentam as cumplicidades é natural que exista
outras categorias são significativamente as- menos a dizer a alguém que não tem partilhado
sinaladas, pelo que a Internet parece adequar- as mesmas experiências que o sujeito. No
se ao contacto entre todos aqueles que têm entanto, a simplicidade, rapidez e baixo custo
um conhecimento sedimentado no espaço das comunicações realizadas através da Internet,
físico, independente da força da relação que concretamente através do serviço de correio
os une. electrónico, que surge como o canal mais
A tabela 3 pretende estabelecer uma referido no contacto com pessoas com as quais
relação entre o uso da Internet, no contacto há uma relação próxima criada nos espaços
com indivíduos com os quais existe uma físicos, possibilita que esta ferramenta surja
ligação iniciada no espaço físico, e a peri- como um meio adequado para a manutenção
odicidade dos seus encontros presenciais. de relações independentemente da distância.
Tabela 3: Frequência com que os respondentes usam a Internet para comunicar com
pessoas, conhecidas no espaço físico, e periodicidade dos seus contactos presenciais
1 vez por mês e menos de 1 vez por semana Uma vez analisados alguns aspectos
e 66,8% dizem recorrer a esta Rede para relativos às comunicações que ocorrem entre
comunicar com pessoas com quem se encon- sujeitos com relações estabelecidas e conso-
tram com grande assiduidade (pelo menos 1 lidadas nos espaços de lugar, procede-se à
vez por semana). Estes valores parecem observação de alguns dados relativos ao
indiciar que os serviços de comunicação contributo da Rede para a expansão de li-
Internet se afiguram como meios de contacto gações a outros indivíduos.
complementares aos encontros presenciais
podendo servir mesmo para mediar o rela- 2.2 Contributos dos serviços de comuni-
cionamento entre esses encontros. cação assentes em Internet no alargamen-
A apresentação dos motivos invocados to das redes de relações dos sujeitos
pelos respondentes para contactar amigos,
familiares ou colegas através da Internet De acordo com as ideias expressas na
permitirá obter uma imagem mais detalhada introdução, uma das características mais
sobre as comunicações que ocorrem on-line interessantes de alguns dos novos serviços
(tabela 4). de comunicação Internet é a possibilidade de
Da análise da tabela ressalta que os usos alargar o círculo de interacção dos sujeitos,
lúdicos são de longe aqueles que colocam permitindo pôr em contacto pessoas de di-
a circular, entre pessoas que têm já relações ferentes grupos, potencialmente portadoras de
firmadas no espaço físico, um maior número informações e conhecimentos diferentes.
de mensagens na Internet. A requerer de facto Relativamente ao uso dos serviços de
um maior envolvimento, por parte do indi- comunicação Internet, enquanto veículo de alar-
víduo que estabelecem a interacção, e a tes- gamento das redes de relações dos indivíduos,
temunhar eventualmente o sentido de proxi- o estudo indica que cerca de dois terços dos
midade proporcionado pelos meios electró- inquiridos (74%) já estabeleceu novos contac-
nicos estão as mensagens destinadas a as- tos através da Rede. Os motivos que desen-
sinalar ocasiões importantes (regular ou fre- cadeiam os contactos, mediados pela tecnologia,
quentemente enviadas por 63,3% dos dividem-se em duas categorias distintas:
respondentes a esta questão). O envio de motivos pessoais e motivos profissionais.
informação, quer direccionada aos interesses A tabela 5 sumaria os principais motivos
específicos do interlocutor quer de carácter indicados como estando na origem de rela-
genérico, assume igualmente uma conside- cionamentos desencadeados através da
rável expressão sendo transmitida regular ou Internet.
frequentemente por cerca de 60% dos Uma análise ao perfil dos indivíduos que
respondentes. referem um ou outro tipo de motivos evi-
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 413
Motivos Pessoais %
Estabelecimento de novas amizades 48,5
Curiosidade 43,4
Necessidade de efectuar um negócio 30,5
Debate e/ou aprofundamento de conhecimentos em áreas
28,3
com um elevado número de interessados
Debate de assuntos relativos a convicções 25,6
Debate e/ou aprofundamento de conhecimentos em áreas
21,7
com interesse apenas para um grupo restrito
Necessidade de desabafar, encontrar apoio 19,6
Coleccionismo 6,5
Motivos Profissionais
Esclarecer dúvida sobre algum aspecto da actividade
50,4
profissional
Obtenção de informações, sobre a actividade levada a
44
cabo pelo interlocutor
Troca de impressões com indivíduo que trabalham na
33,8
mesma área que o respondente
Aquisição de produto(s) necessário(s) para o
28
desempenho da actividade
Necessidade de recorrer à prestação de algum serviço
20
relacionado com a actividade do respondente
Base: Respondentes que indicaram já ter usado a Internet para estabelecer
contactos com indivíduos com quem nunca tinham tido qualquer relacionamento
social no espaço físico (as percentagens apresentadas referem-se a motivos
pessoais e profissionais considerados separadamente).
dos interlocutores em determinado meio. A Este aspecto pode ainda ser analisado em
tabela apresenta apenas os cinco motivos maior detalhe através da análise dos lugares
pessoais e profissionais mais referidos e tem onde os diversos interlocutores da interacção
como base o contacto, desencadeado a partir se situam (Tabela 7). Note-se que a tabela
da Internet, considerado pelos respondentes apresentada não leva agora em consideração
como mais significativo, tendo sido esse a especificidade dos vários motivos pessoais
contacto iniciado por eles próprios. e profissionais.
O motivo porque é desencadeada a interacção Pela análise da tabela apresentada é
parece ter alguma relação com a inserção do possível verificar que de uma forma geral
interlocutor num determinado meio. Assim, para é na Região de Lisboa e Grande Porto que
as comunicações que têm na sua origem o se concentra a maior parte dos destinatários
estabelecimento de novas amizades, a mera das interacções (refira-se também que é nestas
curiosidade ou o desabafar o que interessa, na zonas que se concentra uma percentagem
generalidade dos casos, é de facto encontrar significativa da população portuguesa).
alguém disposto a interagir. Nas comunicações A finalidade por que é estabelecida a
originadas por motivos profissionais, a maior interacção vem demonstrar que para comu-
parte dos indivíduos invoca naturalmente ter pre- nicações desencadeadas por motivos pessoais
tendido comunicar com um indivíduo em par- é muito mais heterogénea a localização dos
ticular, por este se encontrar inserido num de- sujeitos, tanto a nível do território nacional
terminado meio. Parece pois verificar-se que em (eventualmente espelhando a densidade de po-
áreas de grande especificidade a inserção em pulação residente em cada região) como a nível
redes, geradoras de confiança e capazes de sa- internacional. Neste domínio, as interacções
tisfazer necessidades específicas do sujeito, será com indivíduos localizados no Brasil obtêm
sem dúvida uma mais-valia. algum destaque, porventura pela partilha da
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 415
Motivos Motivos
Região de Portugal / País Estrangeiro
Pessoais Profissionais
Noroeste (Minho-Lima, Cávado, Ave, Tâmega,
5,3 2,8
Entre Douro e Vouga)
Interior Norte (Alto Trás-os-Montes, Douro) —
Interior Centro (Dão-Lafões, Beira Interior Norte e Sul, Serra
3,9 1,3
da Estrela, Pinhal Interior Norte e Sul, Cova da Beira)
Baixo Vouga, Baixo Mondego 9,4 9,8
Pinhal Litoral, Oeste, Médio Tejo e Lezíria do Tejo 4,5 2,5
Região de Lisboa, Grande Porto e Península de Setúbal 45 40,9
Alentejo 2,2 1,6
Algarve 1,9 —
Ilhas 2,3 —
Países da EU + Suíça e Noruega 5,5 19,2
Países do alargamento — —
EUA+Canadá 2 8
Brasil 6,2 2,1
Outros países de expressão portuguesa —
Outros países 2 1,2
Desconhece a localização do interlocutor 8,8 8,8
Base: respondentes que indicaram ter sido eles a iniciar a interacção (as percentagens apresentadas referem-se a
motivos pessoais e motivos profissionais apresentados separadamente).
—: valor não apresentado devido ao pequeno número de casos (N<10).
mesma língua. Tratando-se de motivos desen- travados no espaço físico e às dinâmicas dos
cadeados por razões profissionais, onde a lugares. Tratando-se do estabelecimento de
localização do interlocutor terá porventura novos contactos, e de situações que envolvam
muito mais relevância, vamos encontrar, no a troca de sentimentos pessoais, a pertença
território nacional, interlocutores inseridos do interlocutor a uma qualquer rede estruturada
sobretudo em Lisboa e Porto. No caso de revela-se totalmente irrelevante.
países terceiros, há uma elevada No entanto, o crescimento exponencial de
representatividade da Europa e da América do mensagens pessoais, da oferta de informação,
Norte, que juntas acolhem 27,2% dos desti- e também de serviços na Internet contribui
natários das interacções. sobremaneira para a crescente complexidade do
ciberespaço colocando ao utilizador dificulda-
3. Conclusões des na selecção do que realmente interessa mas
também daquilo em que pode confiar. Estes
Quando do surgimento e expansão das aspectos são particularmente relevantes quando
comunicações mediadas por computador acre- na interacção estão envolvidas informações (mas
ditava-se que as interacções on-line alheariam também produtos e serviços) com elevados custos
os sujeitos dos relacionamentos que mantinham de transacção. Quando assim acontece, os in-
nos espaços físicos e poderiam igualmente divíduos tendem a procurar agentes inseridos em
conduzir a uma perda da relevância dos redes firmadas e validadas nos espaços físicos,
lugares. Contudo o que sucessivos estudos têm que lhes possam assegurar confiança e credi-
vindo a demonstrar é precisamente o contrá- bilidade. Neste sentido Internet e espaços ge-
rio. Também de acordo com os dados ana- ográficos mais do que espaços alternativos de
lisados, as interacções que ocorrem na Rede comunicação afiguram-se como inevitavelmen-
estão fortemente ligadas aos relacionamentos te complementares.
416 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
1. Públicos que visitan el site de la Guardia utiliza para transmitirlo, Internet. Asimismo
Civil en algunos tramos de las páginas hay una
total ausencia de fotografías o espacios libres
En el site y tal como está diseñado se que relajen la lectura.
ven cuatro públicos claramente diferenciados: Se observa un especial cuidado en la
- Los medios de comunicación que son navegación, no existe la sensación de sentirse
atendidos mediante el gabinete de prensa perdido en el web. También se pone a
virtual. Para los cuales se han creado disposición del navegante motores de
múltiples herramientas con objeto de búsqueda en las secciones que son necesarias
satisfacer sus necesidades informativas. para encontrar más rápidamente y con el
- Personal del Cuerpo o futuros miembros menor esfuerzo la información. El valor
de la institución. Que buscan en el site obtener añadido en el site es una constante. En casi
información vinculada a la organización a la todas las páginas se ofrece la posibilidad de
que pertenecen o bien recabar datos sobre utilizar un servicio que proporciona el
convocatorias, pruebas de acceso e Cuerpo, como el servicio de intervención de
información de interés para los aspirantes a armas virtual, el de delitos telemáticos,
formar parte de la Guardia Civil. violencia doméstica, etc.. Con estos servicios
- Ciudadanos de a pie que buscan un se busca agilizar la burocracia propia de las
servicio concreto de la organización o instituciones, dar una respuesta rápida al
asesoramiento ante situaciones delictivas. ciudadano aunque solo sea para satisfacer una
- Público infantil que seguramente navega consulta. Se está estudiando la posibilidad
con la compañía de sus padres. de instalar un servicio de denuncias virtual
En cada sección se usa un lenguaje acorde mediante firma electrónica.
con el público y también una estructura
distinta, como en el caso de la web infantil, 2. Usabilidad en el site de la Guardia Civil
en la que se prescinde del fondo institución
y se toma partido por un fondo verde que La usabilidad se define2 como el grado
no deja de ser un elemento claramente de efectividad, eficiencia y satisfacción con
corporativo. A la vez que usa un lenguaje la que los usuarios alcanzan los objetivos
próximo a los niños. Existe una perfecta unión formales contemplados en un sitio web
entre los contenidos, el lenguaje utilizado y concreto. Según Ramos (2001:199-201) el
el público objetivo de cada sección del site. principio de usabilidad quedaría claramente
Podemos decir que predomina un lenguaje definido y contenido en los siguientes
neutro sin intención de convencer, recordemos aspectos:
que no es una web comercial. Sólo se hace - Visibilidad de la web: para el
uso de un lenguaje persuasivo o peticionario posicionamiento mental del site en la mente
cuando se recomienda adoptar un del consumidor. Lo que implica una clara
comportamiento vinculado a nuestra propia imagen del site y de sus herramientas para
seguridad. que el conjunto sea reconocible por el
Persiste un error en cuanto a los navegante. En la página web de la Guardia
contenidos, en el abuso del texto en aquellas Civil tanto la home con el resto de páginas
secciones poco “serviciales” es decir, aquellas tiene una estructura bien delimitada e
que solo van a ser visitadas por personal inconfundible.
cualificado y que denotan una gran dejadez - Reconocimiento: los elementos de la
de adaptación del lenguaje al medio que se pantalla deben tener significado por sí
418 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
mismos. En la web del Cuerpo todos los links - Estructuración de contenidos: que sigan
están etiquetados con la acción que producen. un orden lógico.
- Feed-back: si se lleva acabo una acción - Variedad y actualización del site.
que tenga una respuesta inmediata. Ante el - Facilidad y rapidez en las búsquedas:
simple click en cualquier elemento del site que las herramientas de uso simplifiquen la
se recibe una respuesta que como mínimo se navegación.
traduce en un cambio visual y de contenido. - Comprensión de la información: claridad
- Accesibilidad: que sea fácil y rápida la en los contenidos, en como se facilita la
navegación. La existencia de pocos caminos, información y en el uso del lenguaje.
la disposición jerárquica de la información - Utilización de sistemas de ayuda al
y ofrecer claves al usuario que le permitan usuario: mapas web, motores de búsqueda
reconocer los puntos de interés. Todo ello y FAQ’s (Preguntas frecuentes).
está contemplado en la web de la institución, Al aplicar el término de usabilidad al web
los caminos de navegación están claramente site de la Guardia Civil llegamos a varias
prefijados y es imposible perderse en la conclusiones:
página, los contenidos siguen una estructura 1. El público objetivo formado por medios
rígida como ya comentamos al principio y de comunicación posee todas las herramientas
los puntos de interés están indicados. para buscar y confeccionar noticias, tanto
Orientación en la navegación: que nunca se pasadas como de última hora. Se pone a su
sienta perdido el usuario, orientarlo mediante alcance una base de datos con noticias y
hipervínculos, una clara visualización de la reportajes donde la institución es protagonista.
web y que sepa donde se encuentra. Siempre Los contenidos se actualizan diariamente a
existe un hipervínculo que nos devuelve a través de la ORIS3 y las OPC’s4. Asimismo
la home al igual que indicaciones en cada tiene la opción de solicitar información o
sección situándonos no solo dentro de la exponer cualquier tipo de necesidades a través
misma sino del propio site y en relación con del contacto directo con la OPC de su
los contenidos generales de la página. localidad o mediante correo electrónico con
- Evitar errores, satisfacción y legibilidad: la oficina de prensa.
la satisfacción de uso se obtiene mediante 2. Los ciudadanos son informados de sus
un servicio en la página, objetivo que cumple derechos ante la institución, de las
perfectamente el site. La navegación no posibilidades legales que tienen de defenderse
provoca errores debido a que los posibles de la delincuencia, sea promovida a través
tramos de uso del site ya están fijados de de actos comunes como timos o utilizando
antemano. Legibilidad se obtiene mediante la más alta tecnología, delitos informáticos.
el uso de un vocabulario que se adecue al Pueden acceder a un amplio directorio de
público que consume las secciones y en este enlaces de interés, comunicarse mediante el
último caso ya comprobamos que hay una site con aquel servicio de la Guardia Civil
clara relación entre el lenguaje y el target que pueda resolver sus dudas, etc..
de las secciones. 3. Los miembros del Cuerpo son
- Diseño visual: página simple, que los atendidos a través de la Intranet pero también
elementos más destacados sean los más tienen su apartado en aquellas secciones como
visuales, utilizar colores y blancos que relajen el Consejo Asesor de Personal, formación etc..
la lectura al igual que el tamaño de letra e 4. Los niños encuentran en este site una
intercalar gráficos y material fotográfico. En forma divertida de aprender consejos de
este apartado es donde el site necesita más seguridad que al mismo tiempo también
cambios ya que en algunas páginas se adolece satisface las necesidades de los padres.
de falta de relajación en el ritmo de lectura, 5. Cualquier navegante que entre el site
profusión de texto y falta de iconicidad. encontrará que hay una constante
Los usuarios de Internet según la interactividad. Contemplando interactividad
consultora Júpiter Research y en contraste como el cambio o respuesta ante una acción
con estudios de teóricos como De Salas y del usuario.
Nielsen, valoran en un site(dejando de lado No podemos olvidar que este web site
aspectos técnicos) los siguientes puntos: nace con una doble vertiente: ser una web
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 419
Recordemos, como ya dijimos antes, que demasiado influenciado por los medios
los usuarios de Internet según la consultora impresos. Es notorio el hecho de que los
Júpiter Research y en contraste con estudios contenidos, la estructuración y la
de teóricos como De Salas y Nielsen, valoran actualización no se realiza bajo la supervisión
en un site (dejando de lado aspectos técnicos) de la ORIS perteneciente a la Dirección
los siguientes puntos: General de la Policía. Un instrumento que
- Estructuración de contenidos: que sigan podría ser tan potente en el plan estratégico
un orden lógico. de comunicación como es Internet, está
- Variedad y actualización del site. totalmente desaprovechado en este caso.
- Facilidad y rapidez en las búsquedas:
que las herramientas de uso simplifiquen la 5. Propuesta de análisis de sites
navegación. institucionales
- Comprensión de la información: claridad
en los contenidos, en como se facilita la Por último proponemos un conjunto de
información y en el uso del lenguaje. ítems que pueden ayudar al análisis de una
- Utilización de sistemas de ayuda al web institucional5 de estas características. Los
usuario: mapas web, motores de búsqueda campos básicos sobre el análisis del site son
y FAQ’s (Preguntas frecuentes). un compendio de características propuestas
En este site no existen motores de que debe contener un site según Nielsen
búsqueda ni FAQ’s. La estructuración de (2000) y De Salas (2001). Los ítems
contenidos sigue un orden lógico y los propuestos específicamente para esta web son
instrumentos de navegación están a la vista. una propuesta particular basada en el análisis
Respecto al nivel expositivo de los de los dos sites institucionales estudiados en
contenidos, el lenguaje se adecua pero está esta investigación.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 421
Navegador Se obtiene una imagen de idéntica calidad Se obtiene una imagen de idéntica calidad
utilizando Explorer y Nestscape. utilizando Explorer y Nestscape.
Apertura de ventanas al Desde marzo de este año se abre la web El site del Ministerio del Interior se abre al
descargarse la web del Ministerio del Interior. mismo tiempo que la página web de la
Policía.
Espacio útil 90 % de la página. 90 % de la página.
Disposición de texto en Sigue una estructura lineal, sin columnas Sigue una estructura lineal, sin columnas
pantalla ni formas distintas a la escritura en ni formas distintas a la escritura en
cualquier medio impreso, a diferencia de la cualquier medio impreso.
web infantil donde sí se utiliza la
disposición del texto en columnas.
Tamaño de texto Tamaño 10. Tamaño 10.
Disposición de párrafos En su mayoría largos, es una web En su mayoría largos, es una web
institucional y se dedica a dar la mayor institucional y se dedica a dar la mayor
información aprovechando al máximo el información aprovechando al máximo el
espacio. espacio.
Elementos que impidan la Lectura de los contenidos mediante una Lectura de los contenidos mediante una
lectura o la navegación barra de desplazamiento que interrumpe el barra de desplazamiento que interrumpe el
libre ritmo de lectura del texto. ritmo de lectura del texto. Falta de links
para volver a la página principal durante
toda la navegación por el site. Solo hay un
link en el menú desplegable que no
funciona y en la página de la revista digital.
Existencia de imágenes Utilización de fotografías como apoyo de Utilización de fotografías como apoyo de
texto y elemento de relajación en la lectura. texto y elemento de relajación en la lectura.
No hay vídeos. Disponibilidad de vídeos.
Impresión directa del texto Solo en algunas secciones. No se da esa posibilidad ni se permite
copiar el texto de la página.
Utilización de espacios “en Sí, para relajar la lectura y la sensación de Escasos.
blanco” o vacíos hipertextualidad de la página.
Fondo y colores Fondo gris con el emblema del Estado Fondo gris con el emblema del Estado
corporativos español, colores corporativos en todas la español, colores corporativos en todas la
páginas que identifican el site como páginas que identifican el site como
perteneciente a la administración pública. perteneciente a la administración pública.
Posibilidad de descargas Solos textos PDF y Word. Videos y formatos PDF.
.../...
(continua)
422 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
.../...
(continuación)
Bibliografia _______________________________
1
Universidad de Málaga.
2
De Salas, Mª I. (2001): “La incidencia Según la ISO CDS 9241.
3
Oficina de Relaciones Informativas y
del medio interactivo en la estrategia
Sociales de la Guardia Civil, es la responsable
publicitaria”, Reiniciar el sistema: Actas de de la comunicación de la organización.
las III Jornadas de Publicidad Interactiva, 4
Oficinas Periféricas de Comunicación, son
Universidad de Málaga, pp. 27-36. los enlaces o sucursales con los que cuenta la
Nielsen, J. (2000): Usabilidad. Diseño de ORIS para ejercer su labor de enlace con los
sitios webs. Madrid: Prentice Hall. medios locales y la población.
5
Ramos Serrano, M. (2001): “El correo El mayor inconveniente para plantear un
electrónico y el diseño gráfico”, Reiniciar el modelo tipo es la falta de investigación en análisis
sistema: Actas de las III Jornadas de de sites institucionales ya que solamente se han
investigado páginas comerciales.
Publicidad Interactiva, Universidad de
Málaga, pp. 199-201.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 423
mas ferramentas de backoffice como o gestor pode alterar o seu conteúdo sempre que se
de salas que, por sua vez, dará origem ao justifique.
gestor de recursos em sala.
Por fim existe ainda um conjunto de Funcionalidades do módulo formando
menus correspondentes à publicação de
documentos consoante a área a que se des- Neste módulo são disponibilizados os
tinam, nesses menus é possível ver quais os materiais referentes aos cursos, nomeadamen-
documentos actualmente on-line. te os sumários das disciplinas leccionadas e
os documentos informativos.
Funcionalidades do módulo de formador Para aceder a esse material o formando
tem que escolher o curso que lhe interessa
Para aceder ao módulo do formador é e posteriormente seleccionar a disciplina que
necessária a autenticação por login e pretende. O acesso a esta informação é livre.
password. Após estar autenticado, o forma- Após a selecção do curso surge uma
dor fica com acesso à lista de disciplinas que listagem de disciplinas leccionadas, respec-
lecciona, como se pode ver pela Figura 6. tivos formadores e carga horária da mesma.
No menu que tem ao seu dispor nesta Depois de escolher a disciplina o formando
página, o formador pode ainda modificar ou tem a possibilidade de efectivamente aceder
visualizar os seus dados pessoais e/ou aos sumários ou ver a listagem de alunos
modificar, visualizar ou apagar o curriculum inscritos. Se o item seleccionado for “Alunos
vitae. Inscritos” o que aparece é uma listagem de
Após a selecção de uma disciplina este alunos onde é apresentado para cada aluno
menu aumenta e permite também realizar o seu email, situação curricular e número de
operações relacionadas com a disciplina que faltas.
escolheu. O formador pode listar, adicionar,
modificar ou apagar sumários e ainda ver uma Funcionalidades do módulo inscrição na
listagem dos alunos inscritos nessa disciplina. bolsa de formador
Após a selecção de uma disciplina apa-
rece na parte do cabeçalho da página o nome Este módulo possibilita a todos os inte-
da disciplina escolhida, permitindo assim ao ressados em dar formação neste programa
formador saber em que disciplina está a registarem-se como candidatos a formadores.
aceder. Para isso têm que escolher a opção “Novo
Na área de sumários o formador tem ao utilizador” e preencher os campos respecti-
seu dispor um espaço de aula que lhe per- vos à sua pessoa como mostra a figura
mite sumariar as aulas e registar as presenças seguinte.
dos seus alunos. Para fazer esta operação o Após o registo o formador recebe uma
formador tem que preencher o conjunto de mensagem convidando-o a formalizar a sua
dados que mostra a Figura 7. candidatura preenchendo o seu curriculum
As restantes operações relacionadas com vitae. Para proceder a este passo o formador
os sumários processam-se de uma forma tem que entrar na sua área de trabalho e aí
muito semelhante. O formador pode ainda escolher a função “Inserir”.
visualizar uma listagem dos seus alunos
seleccionando a função ”Alunos Inscritos” do Funcionalidades do módulo Pré-inscrição
menu. Neste caso, o formador tem acesso a (Candidatura a formando)
todo o histórico de faltas do aluno após a
selecção do mês referente ao campo frequên- Este módulo é destinado a todos os
cia (Figura 8). formandos que pretendam inscrever-se num
Tal como já foi referido, para além do dos cursos existentes no programa. Desta
espaço de aula o formador tem sempre a forma podem fazer um abordagem inicial à
possibilidade de alterar ou consultar os seus instituição sem que para isso tenham de se
dados pessoais. deslocar pessoalmente até ao local.
Para além dos dados pessoais o formador A pré-inscrição consiste no preenchimen-
pode ainda aceder ao seu curriculum onde to de um questionário que está divido em
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 429
vários passos e onde o formando inicialmen- que os agreguem à secretaria virtual, nas suas
te começa por preencher o curso que pre- disciplinas e segmentados por aulas.
tende, depois os dados pessoais e restante
informação considerada relevante para a Conclusões
instituição de ensino.
A secretaria virtual é uma aplicação que
Desenvolvimento de novas funcionalidades se encontra em pleno desenvolvimento desde
para ensino assistido o início de 2002. Constantemente, é alvo de
reestruturações e novos desenvolvimentos tais
Actualmente, a Secretaria Virtual já é um como a aposta no ensino assistido.
sistema de informação embrionário de apoio Existem alguns pontos fracos que devem
ao ensino assistido. Facilita a inserção de ser tomados em consideração em actualiza-
sumários por parte dos formadores e divulga- ções futuras, como por exemplo, a falta de
os aos alunos, controla presenças em aula e visibilidade em relação à posição do utilizador
possui outras funcionalidades descritas ante- na aplicação, ou seja, neste momento não
riormente, permite a gestão de horários, etc.. existe nenhuma indicação sobre a localiza-
Tendo em conta os objectivos propostos ção e o que o utilizador está a fazer em
de novas funcionalidades para apoio ao ensino algumas funcionalidades.
assistido, é facultado aos formadores a Como podemos aferir de uma forma
possibilidade de inserção de uma planifica- bastante clara e objectiva, a relação existente
ção global da disciplina que leccionam. entre as ferramentas de ensino, os actores
Assim, na área da disciplina, o formador tem envolvidos neste novo programa formativo
a possibilidade de inserir, visualizar e alterar e materiais pedagógicos é bem mais proble-
algumas informações relevantes para a dis- mática do que o que poderia parecer numa
ciplina, tais como Objectivos, Fundamenta- primeira análise. A utilidade deste tipo de
ção, Abordagem, Programa, Metodologia, ferramentas é altamente dependente da
Avaliação e Bibliografia (Figura 9). potenciação das suas funcionalidades. Pode-
Em fase de análise e desenvolvimento se dizer que há uma relação de mutualismo
encontra-se aquilo que foi denominado por que ainda falta (e é necessário) gerar entre
‘roteiros de aula’. Tendo em conta a diver- professores e alunos de forma a criar um
sidade dos alunos que aprendem na Escola ambiente realmente integrado de geração,
Aveiro Norte, surge a necessidade de se disseminação e aquisição de conhecimento
reinventar o conceito de aula. Assim, pre- de importância formativa relevante. A solu-
tende-se que os formadores disponibilizem ção não é única nem unidireccional mas
materiais pedagógicos das suas disciplinas e pretende-se unificadora.
432 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
rajar a ligação entre o humano” (Arkin, et diz que os seres humanos possuem a capa-
al, 2003) e o artefacto interactivo. cidade de prever e explicar o comportamento
dos outros utilizando a sua própria mente,
Estado actual da emoção constituída pela sua estrutura cognitivista,
para simular mentalmente as suas acções
Em o “O Erro de Descartes” Damásio (Gordon e Cruz, 2001). Esta teoria é actu-
(1994) lançou uma das suas mais fortes almente suportada com os últimos trabalhos
teorias sobre a lógica da emoção, sendo esta na área da neurociência nomeadamente a
também aquela que mais nos interessa no descoberta dos Neurónios Espelho (Gallesse
âmbito do nosso estudo à qual deu o conhe- e Goldman, 1998).
cido nome de “Hipótese dos marcadores- Interessa ainda salientar para este estudo
somáticos”. Segundo esta teoria, o processo a distinção que Damásio (1999) faz entre
racional de tomada de decisões é condici- emoção e sentimento. A emoção é definida
onado por respostas emocionais observáveis como uma “representação externa” do nosso
que o sujeito usa como forma de despistar corpo visível e pública ao contrário do sen-
a “boa” decisão da “má” decisão. Hipótese timento que apenas ocorre num plano inter-
que Damásio sustenta com a apresentação de no através da “experiência mental e privada
casos clínicos de sujeitos que perderam partes de uma emoção” (p.62). É nesta lógica que
do cérebro ao longo da sua vida. assenta o facto de o nosso estudo versar as
Em 1999, Damásio definiu a emoção emoções e não os sentimentos. Ao preten-
humana no prisma concreto da neurobiologia dermos estudar e aplicar padrões de compor-
como “conjuntos complicados de respostas tamento sobre os nossos personagens virtu-
químicas e neurais que formam um padrão” ais, interessa-nos para já que estes demons-
(p.72). Estas respostas usam o “corpo como trem a emoção e não que possuam sentimen-
teatro” para além de afectarem “numerosos tos. Talvez no futuro a IA consiga dar esse
circuitos cerebrais” ou seja o padrão é passo extremamente complexo.
constituído por modificações profundas tan-
to ao nível da “paisagem corporal, como da A emoção no cinema
paisagem cerebral” (p.73). Charlton (2000)
resumiu de forma bastante perceptível este Analisemos agora de que forma o cinema
processo: estimula as emoções do espectador. Para Tan
(1996) o espectador selecciona de toda a
“se virmos aproximar um homem com informação recebida apenas aquela que o
ar agressivo, esta imagem irá provo- afecta, que lhe interessa, aquela que de uma
car a activação do sistema nervoso “forma imediata e espontânea o atinge como
simpático o que afectará o ambiente significante”. Ou seja a emoção surge apenas
interno do corpo através da sua acção quando à informação que recebo atribuo
sobre os músculos e níveis hormonais. “importância”, por sua vez significado. O acto
Esta alteração do estado do corpo de seleccionar é desenvolvido pelo especta-
correspondente à emoção que nós dor num processo activo de inferência ela-
chamamos de medo conduz a padrões borando significado a partir do filme de duas
de activação de células nervosas no formas distintas, quer através dos estímulos
cérebro. As emoções são assim repre- da percepção quer através de esquemas
sentações cognitivas de estados do cognitivos constituídos por “expectativas, co-
corpo que fazem parte do mecanismo nhecimentos pré-adquiridos, processos de
homeostático... e influenciam o com- resolução de problemas e outros” (Bordwell,
portamento de todo o organismo”. 1985:31). Este processo cognitivo forma por
sua vez uma simulação no espectador mais
Desta definição falta-nos perceber o modo ou menos bem sucedida.
como damos significado, ou seja a estrutura O processo da selecção de informação
cognitiva que identifica a imagem daquele relevante, ocorre sobre duas áreas distintas
homem como agressivo ou não. Para tal do filme, a primeira no plano diegético a
recorremos à Teoria da Simulação que nos segunda no plano do artefacto. No campo
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 435
quem questões morais para o espectador. Esta e as zonas inferiores representam de uma
perspectiva é também aceite por Zillmann forma geral zonas de explicação ou descri-
(1996) mas para quem é condição necessária ção da ficção na qual as emoções são
que o espectador testemunhe o conflito sem maioritariamente neutras. Em cada gráfico são
poder intervir. Vorderer (2000) sobre esta apresentados duas curvas, as curvas (A)
condição diz que “se o espectador pudesse representam a resolução final das narrativas
influenciar o conflito, o seu estado de ex- as curvas (B) representam as pequenas re-
perimentação mudaria para verdadeiras emo- soluções ou “catarses em pequena escala” que
ções de medo ou de esperança”. Interpreta- acontecem ao longo da experiência e que
mos a palavra “verdadeiras” como mais fazem manter o sujeito motivado para a
intensas, uma vez que em nossa perspectiva grande e final resolução do objecto em si.
as emoções despoletadas pelos media são Existem vários pontos que distinguem este
verdadeiras. processo aparentemente tão parecido. A curva
Analisadas as narrativas e tendo em conta (B) no videojogo oferece-nos uma curva com
o argumento de Vorderer facilmente se elege picos de tensão, que representam a
o videojogo como uma “máquina” ainda efemeridade das resoluções da tensão dos
mais poderosa de criação de emoções que videojogos criados em parte pela sua dinâ-
o cinema. Desta forma onde é que falha o mica de vitória ou objectivos predefinidos.
poder emocional do videojogo? Porque é que Por sua vez a sua efemeridade no tempo reduz
as emoções no cinema são mais profundas, drasticamente a área em que seria possível
intensas e duradouras? Porque é que os ocorrer o maior e mais intenso número de
videojogos não conseguem, no mínimo, emoções o que analisado em confronto com
despoletar toda a gama de emoções bási- a curva do filme explica as diferenças. No
cas5? que toca à curva (A) no filme, ela exibe um
aumento gradual e ponderado desembocando
numa resolução final com abertura suficiente
para o maior número possível de emoções,
sendo que as pequenas resoluções continuam
a acontecer mesmo depois da resolução final
ter ocorrido em contraponto com o que sucede
no videojogo que ultrapassado o objectivo
final termina por completo a sua capacidade
de acção sobre o utilizador.
Face ao demonstrado por estes gráficos
no ponto seguinte vamos explorar os elemen-
tos de emoção nos videojogos capazes de
produzir uma maior “área de emoção” du-
rante os períodos de resolução tendo em
consideração os elementos de emoção exis-
tentes no filme.
Os elementos
propiciará picos de tensão sem muito espaço para do utilizador está intimamente ligada à
áreas emocionais (ver gráfico 2). A invocação semântica da acção a tomar.
de resolução através da lógica por parte do Assim e voltando ao exemplo do elemen-
utilizador coloca-o numa esfera de abstracção to anterior, o videojogo precisa de dar ao
em relação à natureza semântica da narrativa, utilizador a possibilidade de este decidir
visto que este acaba por se deixar envolver na ajudar ou não, C a chegar a B se ele assim
sua teia mental de resolução do padrão acaban- o entender. O videojogo não pode bloquear
do por se retirar da situação emocional em que a progressão do utilizador unicamente por este
o videojogo o pretenderia inserir inicialmente. motivo, isto porque se o fizer incorre no
Assim quando o sujeito constrói padrões perigo de “desvelar” a verdade sobre o padrão
mentais sobre o videojogo que enfrenta, não lógico por detrás da operação semântica entre
devemos permitir que ele se interesse ou C e B. Acontecendo o desvelamento a decisão
melhor que ele sequer tenha conhecimento, a tomar deixa de conter significado narrativo
se deve ou não concluir a tarefa C antes de e assim o risco emocional da ficção desa-
B para poder chegar a A. Ou seja, não parece para dar lugar ao raciocínio de lógica.
interessa qual é a lógica necessária ao cum- Então para que o risco ocorra precisamos
primento dessas tarefas mas sim qual é a de semântica que coloque em causa os valores
semântica dessa acção. Se C for apenas um bem e mal no utilizador e que consequen-
objecto que necessite ser “encaixado” em B temente possua castigos e recompensas (Ross,
para que o utilizador avance para A, esta- 2003). Assim se o utilizador decidir não
remos a dar ao utilizador unicamente um caso ajudar C ele poderá continuar a sua progres-
de raciocínio baseado em unidades lógicas. são no videojogo, mas essa progressão irá
Se C é um personagem que possui uma custar-lhe um castigo num período
necessidade qualquer (ex. ferimento) e se indeterminado de tempo a seguir ao acon-
torna necessário ao utilizador ajudar C a tecimento. Tendo em conta que num
chegar a B (ex. hospital) então estaremos a videojogo tudo se desenrola muito rapida-
lidar com uma questão de variáveis morais. mente, no momento do castigo poderemos
Assim o utilizador ajuda C porque os seus usar técnicas explicativas como o “flashback”
esquemas cognitivos simulam a acção como narrativo para que o utilizador perceba a razão
importante para ele e não porque é neces- do castigo. A utilização do castigo e da
sária à progressão no videojogo. Criou-se no recompensa é fulcral para a criação do factor
utilizador uma preocupação moral com o risco. Por sua vez o factor risco aliado ao
decorrer da sequência levando-o a agir sobre factor incerteza permitirá criar uma enorme
o objecto C e desta forma serão despoletadas diversidade de indutores de emoção no
várias classes de emoções. utilizador.
A world wide web surge como elemento Evolução e modelos de rádio na Internet
fundamental neste contexto, enquanto supor-
te para os meios de comunicação e serviços O conceito de rádio na Internet, está ainda
que se vêm desenvolvendo. Na web, encon- por definir.
tramos todo o tipo de serviços, para con- Uma rádio com texto e vídeo, foge ao
sulta ou comercialização, a par com apli- modelo tradicional, mas actualiza um forma-
cações de lazer e informação, que transfor- to com cerca de oitenta anos de existência
mam o tradicional esquema da comunica- e fornece ao utilizador, que é também o
ção de massas. É por esta razão que ao ouvinte, um amplo conjunto de
pensarmos a relação da rádio com a Internet, potencialidades, que até aqui seriam
devemos considerar os aspectos que a impensáveis.
caracterizam e que influenciam a forma Avançar propostas para classificar as
como a rádio potencia a estrutura da sua formas que a rádio apresenta na Internet, pode
comunicação. fazer-se recorrendo aos termos que estão
Uma vez que a Internet está a transfor- associados a esta nova realidade tecnológica,
mar a rádio, devemos então, desenvolver usando-os para estabelecer eixos de orien-
elementos de análise deste impacto, consi- tação nesta análise.
derando as tecnologias e estruturas que As emissoras que têm uma presença
alteram a comunicação deste meio. Consi- mínima na rede poderão enquadrar-se num
derando as possibilidades multimédia e modelo testemunhal, relativo a websites que
multimediáticas deste sistema, quais serão nos indiquem apenas as informações essen-
então, os desenvolvimentos possíveis para a ciais sobre a estação, sem transmissão em
a Internet em si e a rádio em particular, directo das emissões.
quando presente no mundo virtual? Outro, multimediático, corresponde aos
Ao longo desta sumária análise, procu- operadores que exploram a Internet parale-
ramos compreender a nova estrutura de lamente à emissão regular, assumindo a sua
comunicação radiofónica, através dos ele- presença na rede como mais um canal de
mentos que tradicionalmente compõem a difusão que transforma a rádio num modelo
sua linguagem e as alterações proporcio- de comunicação multimédia.
nadas pela integração de vários modelos Há também um esquema telemático, que
expressivos na extensão deste meio para se apresenta exclusivamente on-line, com
a Internet. serviços próprios, vulgarmente designado
Em termos gerais, encontramos um qua- webradio.
dro analítico no qual prevalece um modelo Na rádio, a Internet começou por ser
de emissão em Frequência Modelada e outro, utilizada essencialmente como ferramenta de
ainda em evolução, eminentemente conver- trabalho. A partir da sua produção para as
gente. Este modelo, multimediático, resulta ondas hertzianas, muitas estações começaram
da tendência integradora de meios e do a disponibilizar os seus conteúdos na Internet
objectivo das empresas de estarem presentes em websites próprios sem aumentarem nada
em todos os mercados da comunicação. A ao formato inicial. Posteriormente, as esta-
rádio passa a oferecer serviços que unem ao ções começaram a produzir conteúdos espe-
som, elementos escritos e visuais e junta-se cíficos para a Internet, e surgiram projectos
a outros media para estar presente e respon- a operar exclusivamente neste novo meio de
der às solicitações do consumidor multimé- comunicação, sendo este o estágio que se
dia. desenvolve na actualidade.
A programação apresenta-se de carácter Decorrendo em paralelo, mas num núme-
generalista, mas deixa lugar para a emergên- ro menor de websites, o mais recente esque-
cia de um novo modelo de cariz temático ma operacional disponibiliza os seus conteú-
que especializa cada emissora em conteúdos dos exclusivamente na Internet, sem emissão
monotemáticos e que se reflecte para já, na por ondas hertzianas e pode utilizar todas as
especialização musical de algumas estações potencialidades que a Internet oferece, na
de rádio. construção um produto completamente di-
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 445
nações para o conceito, pois em muitos casos O estilo multimediático agora utilizado
é difícil precisar até que ponto não passarão recorre a quase todos os recursos da rede,
estes projectos de uma mera oferta de con- como a interactividade, as hiperligações, som
teúdos para a rede, ainda sem definição e imagem, personalização e actualização
concreta. constante, aspectos que não encontramos no
O novo modelo começa a desenhar-se, formato tradicional da rádio.
mas está ainda em desenvolvimento, não Na impossibilidade de uma descrição
sendo possível, por enquanto, saber a me- exaustiva dos melhores exemplos para ilus-
dida exacta dessa nova «rádio». trar o modelo multimediático, a escolha recaiu
Quando esta revolução digital estiver sobre um website que, não sendo uma es-
concluída, será possível para a rádio voltar tação de rádio, congrega os principais aspec-
a concentrar a sua atenção nos conteúdos e tos desta fértil relação: www.cotonete.iol.pt.
serviços que a vão acabar por definir, dife- O «Cotonete» é um portal de música que
renciando as estações e procurando atender parte de uma estrutura idêntica à de uma rádio
às necessidades individuais e sociais. para promover e divulgar artistas e produtos
Aquilo que durante tanto tempo marcou da indústria fonográfica.
a especificidade da rádio face aos restantes É um projecto do grupo de comunicação
meios de comunicação social, deverá conti- Media Capital, que, um pouco à semelhança
nuar a ser a principal aposta da webradio. As do projecto Usina do Som, 5 incentiva o
webradios podem fundar uma nova modali- utilizador à construção da sua própria rádio,
dade, colocando os ouvintes/utilizadores como definindo-a em todos os seus aspectos.
produtores da comunicação. Tirando partido No «Cotonete», é o utilizador que decide
da interactividade que a Internet oferece, estes o que pretende ouvir, a partir de uma se-
são estimulados a produzirem e emitirem os lecção que se organiza em secções diferen-
seus programas, transformando a concepção tes. Neste website estão reunidas variadas
tradicional da rádio. informações do universo musical, como
notícias, reportagens e entrevistas. O
O modelo multimediático na rede utilizador pode aceder a uma base biográfica
dos principais artistas, discografias e letras
A integração de práticas precedentes tem das canções. O website disponibiliza também
sido comum na evolução dos meios de a escuta de excertos das músicas.
comunicação. A rádio socorreu-se do cinema Encontramos também estações pré-pro-
e da imprensa para compor uma nova es- gramadas que abrangem todos os géneros
trutura comunicativa, da mesma maneira que musicais. Para além das estações criadas e
numa primeira fase, a Internet integrou os com emissão exclusiva para a Net (Baladas,
meios existentes. A rádio instalou-se na rede, Cotonete, Dança, Pop Rock, Teen, Alterna-
desenhou a sua identidade em sites na web tiva, Clássica, Cotton Club, Fado e Portu-
e passou a participar da comunicação no guesa) as rádios do grupo Media Capital estão
ciberespaço, contribuindo para a evolução da também disponíveis para escuta (Comercial,
Internet enquanto meio. Nostalgia, Cidade, Mix e Nacional). Entre
Face à convergência dos meios de comu- esta variedade de oferta, encontramos ainda
nicação social num só suporte, a rádio pode os canais, um sistema diferente das rádios.
representar um dos diversos canais deste novo Não há, contudo, a possibilidade de escutar-
meio de comunicação, que se evidencia pelo mos outras rádios para além destas.
estímulo à participação dos seus utilizadores O projecto convida à personalização em
e deita por terra a passividade da audiência. todos os aspectos do website, de forma a
Mesmo no seu suporte em FM, as estações garantir o melhor serviço ao utilizador, dando-
de rádio têm implementado sistemas de lhe a hipótese de criar as suas rádios, ter as
comunicação que favorecem a interactividade suas notícias, ver o seu perfil e guardar as
entre produtores e receptores, numa estraté- suas músicas. A partir de «O meu Cotonete»
gia de acompanhamento das novas modali- o utilizador pode definir as notícias e as
dades comunicativas que a Internet veio músicas que deseja consultar, criando um
estabelecer. perfil e uma rádio, se assim o desejar. Esta
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 447
é uma das principais propostas deste projec- Os conteúdos das rádios na Internet
to, dando aos ouvintes a possibilidade de enquadram-se numa estrutura tecnológica que
escolherem as músicas que mais gostam, a lhe permite diversas ligações, numa extensão
partir de uma gigantesca base de dados de um mundo de informação ilimitada,
musical, que está em constante actualização. documentada e de fácil acesso a bases de
Entre os serviços proporcionados pelo dados especializadas. A ligação ao arquivo
«Cotonete», destacamos a secção «comprar». é uma nova esfera da comunicação, possi-
Tirando partido das plataformas de rede e bilitada pelo on-line e que vem desvirtuar
da convergência multimédia, o «Cotonete» a instantaneidade da comunicação
comercializa bilhetes para espectáculos e radiofónica.
discos de música. Os recursos hipermédia representam a
possibilidade de interagir com o público e
Conclusão a estação, num processo de intercâmbio que
recorre aos fóruns de discussão, salas de
As sinergias que as novas tecnologias conversação, correio electrónico, votações e
permitem, acabam por transformar não só a comentário de notícias, para tornar o ouvinte
forma como se processa a comunicação, mas num elemento que passa a poder fazer parte
a própria essência dos meios de comunica- da construção das emissões, aproximando-se
ção. Promove-se uma nova discursividade, do conceito de produtor da comunicação.
pela combinação de elementos de linguagens A expansão dos sistemas de difusão,
diferentes, menos singular, mas contudo, mais comporta a fragmentação das audiências que
rica, por via da utilização multimédia na se dividem em função do aumento do nú-
construção da sua mensagem. mero de estações emissoras e da diversifi-
A extensão da rádio para a Internet, cação dos seus conteúdos. A escuta de pro-
acarreta algumas transformações nas princi- gramas em diferido e a selecção entre os
pais características deste meio que assim se vários canais que a rádio na Internet pode
aproxima da especificidade da comunicação disponibilizar resulta num consumo diferen-
na Internet, mantendo em relação à rádio ciado, de acordo com os interesses e neces-
tradicional, a difusão sonora. sidades de cada indivíduo.
O modelo multimediático, aqui analisa- A tecnologia veio permitir a ampliação
do, comprova a fase de transição que a rádio, da difusão e uma maior capacidade de
enquanto meio, atravessa. armazenamento, favorecendo a utilização em
Os modelos coexistem e não há ainda uma função daquilo que os ouvintes/utilizadores
afirmação do multimédia sobre o FM, para determinem. Esta estrutura favorece a cria-
além de que as estações criadas para emissão ção de novas formas de organização dos
exclusiva na Internet estão ainda a procurar conteúdos e a personalização, pela definição
a sua identidade, não sendo, para já, uma da informação que cada utilizador recebe por
ameaça ao sistema que prevalece. correio electrónico, ou da estrutura da página
Neste novo modelo, o sistema expressivo de entrada do website.
da rádio decompõe-se e multiplica-se, adi- No geral, as estações de rádio apresen-
cionando mais elementos ao som, num tam websites criados em função das expec-
caminho que poderá vir a desvirtuar a sua tativas dos utilizadores, mas não têm ainda
importância e transformará o website de uma uma componente de informação e serviços
rádio num espaço multimédia onde a emis- que autonomize o website em relação ao FM.
são radiofónica é apenas mais uma das A escuta em directo, agenda de espectáculos
propostas que a rádio tem para oferecer. e acontecimentos, notícias, informação bi-
No modelo multimediático, a imediatez ográfica sobre os artistas, informação sobre
da rádio mantém-se, mas a mensagem pode o tema que está a tocar no momento e os
ter dados adicionais que o suporte áudio não temas da playlist, descrição com fotografia
comporta e que estão disponíveis nas dife- da equipa que faz a rádio em FM, são os
rentes unidades que compõem o website da aspectos mais comuns nas rádios nacionais
estação. enunciadas para esta análise.
448 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Bibliografia _______________________________
1
Universidade do Algarve.
2
1. Livros Na actualidade, a Rádio Comercial não é
temática e a rádio que aparentemente a vem
Balle, Francis (1999) Médias et Sociétés, «substituir» no campo temático (Best Rock FM)
9ª ed., Paris, Montchrestien. emite apenas em Lisboa e no Porto. Contudo,
tanto a Mega FM, como a Best Rock FM, por
Bassets, Lluís (1981) De las Ondas Rojas
emitirem fora de Lisboa, são consideradas para
a Las Radios Libres, Barcelona, Gustavo Gili.
as medidas de audiência ao nível nacional.
Belau, Angel Faus (1981) La Radio: 3
À semelhança da TSF, que tem uma «es-
introduccion a un medio desconocido, 2ª ed., pécie» de portal de informação, a Rádio Renas-
Madrid, Latina Universitaria. cença tem uma página que se apresenta quase
Herreros, Mariano Cebrián (2001) La como um portal informativo, sem esquecer a pro-
Radio en la Convergencia Multimedia, gramação. Cada estação do grupo tem um do-
Barcelona, Ed. Gedisa. mínio próprio onde estão conteúdos diferenci-
Rodrigues, A. D. (s/d) O Campo dos ados. Contudo, para que o website da Rádio Re-
Media, Lisboa, Vega. nascença se possa assumir como um portal,
deverá fazer referência aos diferentes projectos,
2. Documentos Electrónicos desenvolvendo conteúdos que poderiam ser
actualizados pelas equipas das respectivas esta-
«Digital Audio Broadcasting (DAB): a ções.
4
Rádio do ano 2000», José Manuel Nunes (s/ A UBI tem um projecto exclusivamente on-
d), Observatório da Comunicação http:// line – RUBIWEB – em http://www.rubi.ubi.pt,
www.obercom.pt/revista/ que nasceu de uma parceria da Universidade da
josemanuelnunes.htm (19.04.01). Beira Interior e a Universidade Pontifícia de
Salamanca.
«Radio Station Web Site Content: an in 5
De acordo com os dados na apresentação do
depth look», Larry Rosin e Janel S. Shul
site, o Usina do Som é um dos maiores fenómenos
(2000), Arbitron
da Internet no Brasil, apresentando, em média, 215
http://www.arbitron.com/downloads/ milhões de page views/mês, 120 mil unique visitors
radiostationwebstudy.pdf (10.09.02). por dia, mais de 1,3 milhão de utilizadores
«La radio como modelo de participación registados e mais de 2 milhões de rádios pessoais
democrática», Benjamín F. Bogado (47, criadas. Com pouco mais de um ano de existência,
Setembro de 2002, ano III, vol. 2), Sala de o site firmou-se como o primeiro e maior na
Prensa, http://www.saladeprensa.org/ categoria de música no Brasil. (http://
art198.htm, (12.10.02). www.usinadosom.com.br, 25.09.02).
450 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 451
2.1.1 Normalização da publicação periódica no todo (capa, lombada, sumário, legenda, ISBN,
periodicidade entre outros).
2.1.2 Normalização dos fascículos (sumário, título abreviado, referência, publicidade, peri-
odicidade).
2.1.3 Instruções ao autor (nome do autor, título, resumo, palavras-chave, endereço, filiação
entre outros)
2.2.1 Identificação de autoria nos artigos das revistas (afiliação do primeiro autor, resumo
estruturado, data de aceitação, data de edição, palavras-chave entre outros).
tou o levantamento de alguns pontos básicos sobre os conceitos: artigo inédito, artigo de
e iniciais para se discutir a problemática das acompanhamento, artigo de revisão etc? Faz
revistas científicas em ciências da comuni- sentido o uso desta terminologia para a área?
cação sob duas perspectivas: Quais são os tipos de trabalhos mais ade-
A revista como um todo: quados à área?
• quais critérios seguir para a avaliação
• os parâmetros já existentes de organi-
qualitativa dos conteúdos publicados na área?
zação e apresentação de conteúdos dos ar-
Se o objetivo da pesquisa é original e válido
cientificamente? Se os procedimentos utiliza- tigos científicos (resumo, introdução,
dos e o delineamento experimental são apro- objetivo, metodologia, resultados e conclu-
priados para responder às questões propostas? são) são adequados para a área de ciências
Se os dados experimentais possuem qualidade da comunicação? Por exemplo: faz sentido
suficiente para serem interpretados dentro do a exigência de um resumo estruturado para
contexto dos objetivos? Se os resultados a área?
justificam as conclusões indicadas pelos Análises complementares ao estudo de
autores? Se os resultados e as conclusões são mérito devem ser feitas, buscando observar
relevantes para questões importantes estuda- a representatividade e nível científico do
das por outros investigadores da área? editor e do comitê editorial, a percepção dos
• as normas padronizadas pela comunidade
pesquisadores quanto ao caráter científico da
científica nacional e internacional, no que se
revista, predominância de artigos frutos de
refere ao formato de apresentação das publi-
cações periódicas não estão sendo seguidas pesquisa ou reflexão originais, exaustividade
porquê? Elas não contemplam as especificidades e atualidade nos artigos de revisão e debates,
da área de ciências da comunicação? qualidade dos textos em relação à
O conteúdo da revista: metodologia e estrutura, processo de arbitra-
• do ponto de vista da tipologia dos gem e importância da revista para o desen-
trabalhos, como alcançar consenso na área volvimento da área.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 459
distribuição e convergência e cujo resultado de itens para rápida recuperação e que até
é a mudança de toda a cultura para formas então norteou os procedimentos de
de produção mediadas pelo computador. Os armazenamento e ordenamento de informa-
objetos da nova mídia tanto podem ser novos ções para adquirir o status de “nova forma
como os já existentes que têm sua forma cultural simbólica”, um novo modo de es-
afetada pelo uso do computador. Na migra- truturar a experiência humana. Neste senti-
ção para o ambiente do computador, ele diz, do, Manovich afirma:
a coleção de dados e o espaço navegável
incorporaram técnicas particulares para a Indeed, if after the death of God
estruturação e acesso dos dados ou informa- (Nietzche), the end of grand
ções: Narratives of Enlightenment
(Lyotard), and the arrival of the Web
So, for instance, a computer database (Tim-Berners Lee), the world appears
is quite different from a traditional to us as an endless and unstructured
collection of documents: it allows one collection of images, texts, and the
to quickly access, sort, and recognize other data records, it is only
millions of records; it can contain appropriate that we will be moved to
different media types, and it assumes model it is a database. But is also
multiple indexing of data, since each appropriate that we would want to
record besides the data itself contain develop a poetics, aesthetics, and
a number of fields with user-defined ethics of this database (Manovich,
values (Manovich, 2001: 214). 2001: 219).
com outros sites por meio dos links ou mesmo Diante disso é que consideramos ser
remetimentos a vários documentos). Tal possível pensar a internet como uma forma
princípio reforça, por outro lado, o quanto cultural maior e representativa da cibercultura,
a descentralização da produção de conteúdos em consonância com a visão empreendida por
pode funcionar como um agente ativador da Raymond Williams a respeito da televisão
rede, uma vez que assegura a sua permanen- (Williams, 1977, 1990) já que ela é parte da
te alimentação, sendo operada de maneira experiência humana e um processo social, o
contínua, em fluxo. que a torna um ambiente para estabelecimento
O que expomos acima também é expli- de práticas. Funciona, como sugere Palacios
cado por meio dos cinco princípios sistema- (2002), como um ambiente compartilhado de
tizados por Lev Manovich (2001:19-48) para comunicação, informação e ação para uma
demarcar algumas das principais diferenças multiplicidade de (sub) sistemas sociais e para
entre a antiga e a nova mídia, e que devem agentes cognitivos (humanos). Para Castells
ser considerados muito mais como tendên- (2001), a “Galáxia Internet” é um novo
cias gerais de uma cultura computadorizada entorno de comunicação, uma nova estrutura
do que como leis absolutas. social, que se está estabelecendo em todo o
Esses princípios são: - Representação planeta para a vida das pessoas, segundo sua
numérica: código digital permite trabalhar ou história, cultura e instituições (Castells, 2001:
modificar cada objeto da nova mídia auto- 305). Sendo a internet também um grande
maticamente, pois é programável; - banco de dados mais complexo, ela fornece
Modularidade: um objeto da nova mídia tem as condições para o surgimento de novas
a mesma estrutura em diferentes escalas tal formas culturais a partir do uso de bancos
qual um fractal7, o que significa que elemen- de dados inteligentes e dinâmicos - a base
tos de mídia como texto, som, imagem, estruturante para indefinidos tipos de sites.
podem estar reunidos numa única narrativa
3. Jornalismo e bancos de dados
ou documento, mas continuam mantendo suas
identidades separadas (exemplo são os sites
A utilização de bancos de dados no
que formam a WWW, pois são constituídos
jornalismo não é algo novo, pois, desde que
por diferentes elementos de mídia e cada um
as redações começaram a ser informatizadas
deles pode ser acessado separadamente ou
ainda na década de 70 nos Estados Unidos
mesmo ser modificado; - Automação: código
e em parte da Europa (no Brasil esse pro-
numérico da mídia (princípio 1) e a estrutura
cesso ocorre nos grandes jornais na década
modular de um objeto da mídia (princípio
de 80) e, logo em seguida com a incorpo-
2) permitem a automação de muitas opera- ração da Reportagem Assistida por Compu-
ções, desde a criação, à manipulação até o tador8 (RAC), passando pelo videotexto9, o
acesso da mídia; - Variabilidade: prevê que jornalismo empregou as estruturas
um objeto da mídia pode existir potencial- hierarquizadas de estocagem e ordenamento
mente em diferentes e infinitas versões (uma de informações dos bancos de dados para
fotografia, por exemplo, tanto pode ser usada adicionar maior qualidade e profundidade às
enquanto ilustração de um texto, integrar uma suas narrativas10.
galeria de fotos de tema específico, um slide Para o jornalismo digital de terceira
show e, ainda, ser empregada como uma geração, nosso interesse específico, pode-se
espécie de novo gênero, ao ser disponibilizada pensar na idéia dos bancos de dados inte-
juntamente com uma narração em áudio ligentes e dinâmicos como agentes com
associada onde o fotógrafo descreva o pro- capacidade de produzir rupturas e, até, de se
cesso de captura daquela determinada ima- constituírem como uma metáfora apropriada
gem). Ou seja, tem-se tanto uma variabili- para trazer nova luz no sentido de se superar
dade de modalidade como também de for- a metáfora do jornal impresso11 que, desde
mato; Transcodificação cultural: a os primeiros anos de experimentação do
computadorização transformou a mídia em jornalismo no suporte digital até agora,
dados do computador. Transcode quer dizer permanece sendo a mais empregada pelos
traduzir alguma coisa em outro formato. mais diferentes tipos de sites noticiosos.
464 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Mesmo que ainda se aponte a necessi- mação mais relevante proporcionada pela
dade de uso desta metáfora, sobretudo pelo internet. Por conseguinte, ele considera o
fato de garantir navegabilidade e usabilidade jornalismo de fonte aberta (cita como exem-
aos usuários, por conta da familiaridade, a plo o www.slashdot.org15) como um caso
adoção de bancos de dados inteligentes e paradigmático de um jornalismo específico
dinâmicos pode favorecer a inovação, per- sobre bases de dados e que os jornais (pre-
mitindo a exploração de novos gêneros, a ferimos denominar sites noticiosos) assenta-
oferta de conteúdo mais diverso, a disponi- dos em base de dados distinguem-se entre
bilização/apresentação das informações de os demais online por não terem edições fixas.
maneira diferenciada, mais flexível e dinâ- Isso ocorre, segundo o autor, pelo fato
mica, além da produção descentralizada - de uma edição ser apenas uma configuração
outra das características que o jornalismo possível gerada pela base de dados. Ao fazer
digital de terceira geração deve contemplar. esta afirmação, António Fidalgo estabelece
Compartilhamos, assim, da visão de a distinção entre um jornal online feito apenas
Manovich acerca do potencial do banco de em HTML - um produto único ainda que
dados como essa nova possível metáfora para recorra a templates ou modelos – e um que
a memória cultural. E, compreendendo o use bases de dados. Neste último, diz, o
jornalismo como forma singular de conhe- resultado é sempre uma determinada pesqui-
cimento e interpretação da realidade12, cuja sa dependente do conjunto de notícias
função de documentação e atualização da inseridas e da estrutura da base de dados,
memória social (Machado, 2002) é favorecida que determina a forma como as diferentes
pelo ambiente das redes, acreditamos ser notícias aparecem conjugadas na apresenta-
possível adotar essa nova metáfora para gerar ção online.
produtos mais criativos com mais chances de
enredar os usuários e conduzir o jornalismo A coerência sintáctica das notícias, or-
digital ao patamar desejado – e efetivamente ganizadas numa base de dados, não
possível - nesta sua terceira geração. se limita a uma edição, até porque esta
Trabalhos referenciais de pesquisadores estritamente não existe, mas a todas
nacionais e estrangeiros nos ajudam a enten- as notícias, presentes e passadas. Uma
der como a apropriação dos bancos de dados notícia recente remete, mediante a in-
inteligentes e dinâmicos deve ser tomada clusão dos títulos e respectivos links,
como uma decisão necessária, seja por parte para as notícias anteriores que incidam
das organizações de notícias mais tradicio- directamente ou indirectamente com
nais, ou por aquelas resultantes de fusões o assunto em questão. As regras da
entre empresas de informática, telecomuni- sintaxe aplicam-se ao todo da base de
cações, entre outras que possuem operações dados (Fidalgo, 2003:8).
digitais. No âmbito acadêmico, por outro lado,
já há experiências laboratoriais contemplan- Em sua análise, Fidalgo também aponta
do o uso de bancos de dados no intuito de para a mudança no procedimento do jorna-
indicar novos caminhos para o jornalismo lista com relação à incorporação de rotinas
digital13. de produção descentralizadas, ao acréscimo
O catedrático português António Fidalgo, ilimitado de temáticas abrangidas, à manu-
em seu artigo pioneiro Sintaxe e semântica tenção dos arquivos, pois, conforme pontua,
das notícias on-line. Para um jornalismo “o passado condiciona e determina o presen-
assente em base de dados14, acredita que a te na justa proporção em que pode ser
tecnologia das bases de dados é a recuperado”. Ou, como indica Elias Macha-
especificidade que distinguirá o jornalismo do (2000:54), na rede, a memória antes de
online do jornalismo dos meios tradicionais refletir um passado morto, apresenta parâ-
da imprensa, rádio e televisão, conferindo não metros para aumentar o coeficiente de pre-
só maior rigor, mas também maior visão no fluxo ininterrupto de circulação das
objetividade e melhor cobertura da realidade notícias. Sobre isso, faz-se importante
humana. Para Fidalgo, a simbiose entre referenciar a característica da memória con-
bancos de dados e jornalismo é a transfor- forme proposta por Palacios (1999, 2002)
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 465
ângulos das imagens – exemplo de como a ciberespaço informativo (Diaz Noci, 2002:
fotografia passa de acessório para se tornar 123). O pesquisador da Universidade do País
algo mais, um gênero - ou como a utilização Basco vê a entrevista como um gênero que
da TV na web vem originando hibridismos, se modifica, pois: pode ser usada como
tal qual nos apresenta sites como os da Reuters formato de perguntas e respostas que podem
(www.reuters.com) ou mesmo como a TV ser ouvidas e vistas; pode resultar em perfis
UOL News (www.uol.com.br), que articula multimídias e mesmo aparecendo como tex-
tratamentos diferenciados, oferecendo tanto to em si e, pode, principalmente, ter como
boletins ao vivo, mas também permitindo que protagonistas os usuários atuando como
se leia um texto e se tenha o áudio da entrevista entrevistadores ao participar de chats com
que deu origem a uma determinada notícia. personalidades, onde os jornalistas assumem
No El Mundo (www.elmundo.es), os função de intermediários, filtrando as pergun-
infográficos animados já foram incorporados tas. A infografia em três dimensões também
como um canal a mais para se apresentar um é citada por Javier Diaz Noci como um gênero
fato jornalístico e os mapas, mesmo ainda que também ganhará uma nova dimensão no
não animados, são usados como complemen- ciberespaço e alcançará grande desenvolvi-
to para as informações em portais como o mento.
Terra (www.terra.com.br). No Portal Estadão
(www.estadao.com.br), os arquivos já ganha- 5. Conclusão
ram canal exclusivo – Diário do Passado –
onde se tem uma mostra do uso potencial O que quisemos explorar neste ensaio foi
do material jornalístico anteriormente publi- a potencialidade de uma nova metáfora para
cado. Ou seja, tais exemplos iluminam o o jornalismo digital a partir do uso dos bancos
caminho e demonstram concretamente uma de dados como a forma cultural simbólica
diversidade de opções para a produção de da era do computador (Manovich, 2001).
conteúdos no jornalismo digital para além da Neste nosso exercício, intentamos’ampliar o
conformação mais básica para as informa- foco acerca do jornalismo digital nesta sua
ções como se tem visto. terceira geração ou terceira onda, com o
Javier Diaz Noci (2002) pensando os objetivo de lançar alguma luz no sentido da
gêneros jornalísticos e o texto eletrônico, exploração da diversidade para os conteúdos
afirma que o que tem ocorrido até agora é e para os formatos.
que a maioria dos jornais na internet tem Ao fazer isso, consideramos a possibili-
apenas transferido os tradicionais gêneros dade concreta para novas aplicações, saben-
presentes no impresso para o suporte digital. do que elas necessitam de investimentos para
Sobre eles, Diaz Noci confirma o potencial serem implementadas, mas, acima de tudo,
de gêneros interpretativos como a reporta- de criatividade, imaginação, para se inovar,
gem, beneficiada pela potencialidade do uso rompendo com os vícios. Assim como outros
de recursos, como som, imagens fixas e em pesquisadores, compartilhamos da idéia de
movimento, gráficos, e animações em três que o jornalismo digital tem na tecnologia
dimensões e, principalmente, pela ausência dos bancos de dados inteligentes e dinâmi-
de limites crono-espaciais - segundo ele, a cos o diferencial em relação às demais
reportagem é o gênero por excelência do modalidades.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 467
3
Segundo ele, a terceira onda do jornalismo Knowledge management in the digital newsroom.
online começa em 2001 quando já se tem a London: Focal Press, 2002, especificamente no
tecnologia de banda larga mais bem desenvolvi- capítulo New tools for journalists (p.114-138)
da, assim como produtos jornalísticos mais dife- apresenta uma forma sofisticada da RAC/CAR:
renciados naquilo que se refere à geração de o Geographical Information Systems (GIS) ou Sis-
conteúdos que usam mais amplamente os recur- temas de Informação Geográfica, que seria a união
sos do suporte digital. In: The third wave of online da cartografia e dos bancos de dados trabalhando
journalism. Online Journalism Review, 18/abril. juntos sob a cobertura de computadores para
In: www.ojr.org/ojr/future/1019174689.php Aces- produzir mapas e acompanhar estatísticas que
so em 28/10/2003. mostram como os eventos aconteceram.
9
4
Tal denominação deriva do emprego dos Sobre o videotexto, ver Roger Fidler.
diferentes modelos, arquiteturas, softwares e tec- Mediamorphosis. Understanding new media.
nologias avançadas para a construção de bases de London: Pine Forge Press, 1997; Emy
dados que vão operar num nível ainda maior de Armañanzaz; Javier Días Noci; Koldo Meso. El
complexidade para a organização, armazenamento, periodismo electrónico. Información y servicios
disponibilização, apresentação e consulta da in- multimedia en la era del ciberespacio. Barcelona:
formação. As aplicações de bancos de inteligentes Ariel Comunicación, 1996; Lizy Navarro Zamora.
e dinâmicos devem garantir a estruturação de Los periódicos on line. San Luis de Potosí:
grande volume de dados (sejam documentos Editorial Universitaria Potosina, 2002.
10
textuais, imagens estáticas ou em movimento, e Sobre o uso e potencial dos bancos de dados
arquivos de áudio até simulações) com segurança, no jornalismo ver Tom Koch. Journalism for the
baixo nível de redundância e acuracidade. 21 st century. Online information, electronic
5
O banco de dados seria a primeira forma databases and the news. New York: Praeger, 1991.
11
que se encontra na nova mídia, ao passo que o Sobre o uso da metáfora do jornal im-
espaço virtual interativo em 3-D empregado em presso aplicado no jornalismo digital ver o tra-
jogos de computador, animação, e nas interfaces balho de Melinda McAdams: Inventing online
homem-computador, seria a segunda. newspaper. In: www.sentex.net/~mmcadams/
6
Os outros princípios pensados por Lévy para invent.html, publicado pela primeira vez em 1995
preservar as possibilidades de múltiplas interpre- no Interpessoal Computing and Technology: as
tações do modelo de hipertexto são: o da meta- electronic journal for the 21st century. ISSN: 1064-
morfose, o de heterogeneidade, multiplicidade de 4326, july 1995, v. 3, p. 64-90.
12
encaixe das escalas, da topologia e de mobilidade O conceito de jornalismo como forma sin-
dos centros. In: As tecnologias da inteligência. gular de conhecimento da realidade e diferenci-
Rio de Janeiro: 34, 1993. ado do conhecimento do senso comum, da arte
7
Um fractal – termo cunhado em 1975 por e da ciência está presente em Adelmo Genro Filho.
Benoit Mandelbrot para descrever um objeto ge- O segredo da pirâmide. Para uma teoria marxista
ométrico que nunca perde a sua estrutura qual- do jornalismo. Porto Alegre: Tchê, 1987. Robert
quer que seja a distância de visão - é uma forma Park, ex-jornalista e sociólogo norte-americano,
geométrica, de aspecto irregular ou fragmentado, fundador da sociologia urbana, publicou em 1940
que pode ser subdividida indefinidamente em o artigo News as a form of knowledge, no qual
partes, as quais, de certa maneira, são cópias define o jornalismo como forma de conhecimento
reduzidas do todo. A palavra fractal significa, da realidade a partir do que ele tem de diferente
sobretudo, auto-semelhante. Auto-semelhança é a e do que lhe é específico. Ele propõe a existência
simetria através das escalas. Ou seja, um objeto de uma gradação entre um “conhecimento de” uti-
possui auto-semelhança se apresenta sempre o lizado no cotidiano e um “conhecimento sobre”,
mesmo aspecto aqualquer escala que seja obser- sistemático e analítico, como o produzido pelas
vado. Troncos de árvore, nuvens, montanhas são ciências, observado que o jornalismo realiza para
objetos que podem ser representados por fractais. o público as mesmas funções que a percepção
Em 1980, Mandelbrot descobriu o primeiro fractal realiza para os indivíduos (Eduardo Meditsch,
gerado por computador. A geometria fractal que 1997; Robert Park, 1955).
13
usa softwares sofisticados produz imagens belas Uma delas é o Projeto Akademia
e interessantes, mixando arte e matemática. (www.akademia.ubi.pt), Sistemas de Informação
8
Sobre a RAC, sigla em português para CAR e Novas Formas de Jornalismo Online, da Uni-
(Computer Assisted Reporting), ver LAGE, Nilson. versidade da Beira Interior, em Covilhã, Portugal.
A reportagem: teoria e técnica de entrevistas e Trata-se de um experimento de jornalismo de fonte
pesquisa jornalística. Rio de Janeiro: Record, aberta, iniciado em setembro de 2000.
14
2001, especialmente o capítulo “Reportagem O trabalho foi apresentado no XII Encontro
Assistida por Computador” (p.153-168). Ainda Nacional dos Programas de Pós-Graduação (Compós),
relacionado ao assunto, Stephen Quinn no seu livro realizado em Recife, em setembro de 2003.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 469
15
Podemos citar também como exemplo os apenas com outros textos pertencentes a um
Centros de Mídia Independente (http:// mesmo gênero, mas também entre textos e pú-
www.indymedia.org), com edições em vários idio- blicos (audiências), textos e produtores, produto-
mas, nas quais os usuários colaboram na produção res e audiências. Trata-se de um intercâmbio, de
do conteúdo, publicando desde textos, fotos até vídeos. uma mediação (conhecida, tacitamente aceita), que
16
Os gêneros podem ser entendidos como conta com o consenso cultural (Mazziotti,
conjuntos de convenções compartilhadas, não 2002:205).
470 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 471
verdadera red local de la TVG, ha ni tienen acceso a una cinta del producto al
proporcionado una baza importante a las no haber sido difundido éste por la cadena.
nuevas emisoras locales7 que, poco a poco Así, duermen en las estanterías más de
se van ganando la confianza de los públicos quince series documentales de entre ocho y
de su ámbito de influencia gracias a una trece capítulos cada una. Son productos
estrategia de televisión de proximidad. aletargados sin posibilidad de difusión a corto
La emisora autonómica, a pesar de plazo ya que no existe en este momento en
disponer casi desde su implantación en 1985 la emisora ninguna ventana estable que pueda
de delegaciones en las siete grandes ciudades dar cabida a este género. Si bien hasta finales
de Galicia, no llevó a cabo una estrategia de febrero se mantenía un fluctuante espacio
para reforzar estas células informativas los sábados a primeras horas de la tarde en
mediante la producción propia local y sólo donde se emitían documentales relacionados
tímidamente ha desarrollado una producción con la naturaleza y otros productos9, ese nicho
basada en pequeños espacios de desconexión no tiene viso de continuidad.
informativa. Una estrategia que contemplara El despegue del formato docu-soap10,
una apuesta orientada a desarrollar una gracias a unos buenos resultados de audiencia,
programación local producida en las propias abrió en el año 199911 una vía para incluir
delegaciones y basada en las desconexiones un espacio documental estable en la parrilla.
nutridas de programación de contenidos El tirón de audiencia de otros productos de
propios entre los que podrían destacar entre ficción como Mareas Vivas permitieron a la
otros el documental etnográfico y el reportaje, cadena arriesgar con documentales sin
habría sido determinante para la consolidación comprometer en demasía la preocupación
de una emisora autonómica más vertebrada máxima de la dirección de la cadena: el
y con posibilidad de competir hoy con la resultado de los números en la cuenta de
neonata televisión local y de proximidad que resultados de la cuota de pantalla12. Hasta el
poco a poco va marcando en los ámbitos más 2002 bien en late-night o antes del prime-time
urbanos, si no una cuota significativa de se programaron productos documentales13 con
mercado, sí un posicionamiento estratégico una cadencia bastante regular aunque truncada
y una tendencia de consumo al alza8. Una en muchas ocasiones por los compromisos
oportunidad perdida por la televisión derivados de los derechos de las
autonómica cuando aun las emisoras locales retransmisiones deportivas. Incluso el late-
eran todavía una entelequia. night de los lunes se utilizó durante un tiempo
para emitir productos alternativos. En este
III. El documental cautivo momento no existe una franja dedicada
explícitamente a la emisión de documentales
Dentro de la producción documental aunque, salpicados por la parrilla, según
propiamente dicha la cadena gallega tiene en necesidades programáticas y estrategias
este momento vampirizada la difusión de puntuales aparezcan colocados productos tales
estos contenidos. Mientras que la estrategia como series de reportajes elaborados por
de TVG en lo referente al apoyo de la enviados especiales a distintas zonas de
producción propia y contratada de conflicto internacional14 o piezas oportunistas
documentales mantiene unas pautas como la programación de una reportaje sobre
razonables, la emisión de estas piezas no sigue el terrorismo emitida en los días del atentado
el mismo ritmo. Muchas de los trabajos pasan del 11M.
años esperando un hueco en la parrilla La política de convertir la producción
provocando en la mayoría de los casos la documental en un activo de stock, algo que
obsolescencia de los productos y perdiendo es muy saludable a medio y largo plazo para
la oportunidad de ser emitidos en caliente. la cadena que dispone de esos fondos, no
Esta situación provoca que los responsables debe estar reñida con la realización de una
de las producciones y la propia emisora programación adecuada de los productos,
irradien una mala imagen ante los personajes teniendo en cuenta las características
filmados y comprometidos con el trabajo que singulares de cada serie con el fin de no
no ven nunca en emisión sus intervenciones, perder en las piezas valores tales como la
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 473
7
Bibliografía Sobre todo con la entrada del modelo
sindicado de Localia que oferta una programación
AA.VV. Carta de Ajuste, Revista de la competitiva tanto en el ámbito local como en la
Academia de las Ciencias y las Artes de programación que realiza en cadena.
8
Francisco Campos Freire. Director General
Televisión. Madrid 2004.
de RTVG: “Nuestros programas intentan ser un
AA.VV. El anuario de la televisión. reflejo fiel de la realidad gallega, y para ello
Gabinete de estudios de la comunicación necesitamos la colaboración activa de la gente de
(GECA). Madrid 2003. nuestra comunidad”. Fuente: AA.VV.”El anuario
AAVV. Audiovisual galego 2003. Centro de la televisión. Gabinete de estudios de la
Galego de Artes da Imaxe. Santiago de comunicación (GECA). Madrid 2002.
Compostela 2003 9
A pesca no mundo (Llagostera CPI-TVG)
Bustamante, Enrique. La televisión – Terras de Merlín (Faro-TVG) – Deep Blue
económica: financiación, estrategias y (BBC) – As viaxeiras da lúa (Ibisa–TVG)…
10
mercados. Gedisa. Barcelona 2001 Hacen uso de técnicas de producción y
realización basadas en la “modalidad de
Francés, Miquel. La producción de
observación” Francés, Miquel. La producción de
documentales en televisión en la era digital.
documentales en televisión en la era digital.
Cátedra. Madrid 2003. Cátedra. Madrid 2003. Pág.25.
11
Chunda-chunda (Costa Oeste-TVG).
12
El éxito comercial de la serie de Mareas
_______________________________ Vivas con un share máximo de 39,3 propició en
1
Universidad de Vigo. la temporada 2000-2001 la gestación de una docu-
2
TM, ETB, TVV, CS, TV3. serie que tomaba como argumento el propio rodaje
3
http://demiagalegadoaudiovisual.com página y los personajes. Con el título Vida nas Mareas
consultada el 20 de Abril de 2004. el documental se emitía los lunes antes de la serie
4
Francisco Campos Freire. Director General alcanzando un share máximo de 31,7 con lo que
de RTVG: “quizá una asignatura pendiente sea se situó como el tercer programa más visto de
la incorporación de programas dedicados a la toda la temporada. Ninguna otra serie documental
juventud donde ellos sean los protagonistas”. aparece reflejada dentro de los 25 programas más
Fuente: AA.VV. El anuario de la televisión. vistos. Fuente: AA.VV. El anuario de la televisión.
Gabinete de estudios de la comunicación (GECA). Gabinete de estudios de la comunicación (GECA)
Madrid 2002. Madrid 2002. A partir de datos TNsofres A.M.
5
La audiencia en TVG ha envejecido. En el 13
Sobre todo docu-soap tales como
reparto por edades la suma de las franjas de 45 Comediantes (TVG) – Vivir en Manhattan
a 65 años y de 65 en adelante suman un 66,2% (Universidad de Vigo-TVG).
de la audiencia de la cadena. La clase social que 14
No consideramos aquí los reportajes
consume la TVG se sitúa entre el 36,2 media- elaborados por los servicios informativos de la
mediabaja y un 32,2 baja. Fuente: AA.VV. El cadena propios del género documental. Aunque
anuario de la televisión. Gabinete de estudios de podamos decir que “existe una frontera muy
la comunicación (GECA). Madrid 2003. A partir difusa… …está más vinculado al periodismo con
de datos TNsofres A.M. un estilo poco retórico. El documental necesita
6
Programas para un público infantil o juvenil de una reflexión previa. Cuando comenzamos un
tales como el magazine A Tumba Aberta (año trabajo documental sabemos su punto de partida
1987), Xabarín (año 1995), o Chambo (2001) entre
pero desconocemos su final”. Francés, Miquel. La
otros, muy integrados en el ámbito regional, han producción de documentales en televisión en la
ido desapareciendo para dejar paso a una era digital. Cátedra. Madrid 2003. Pág.29.
programación rutinaria y conservadora que no 15
Entre otros productos documentales
arriesga en nuevos productos y que como única producidos y que no han sido emitidos por la
estrategia la producción se ha orientado casi cadena autonómica podemos destacar: O CORPO
exclusivamente a las series de ficción, que a pesar DA ALMA (13) - EMERXENTES (13) - EN
de que en algunos casos alcanzan buenas cuotas CLAVE NATURAL (6) - GALICIA DESTINO
de audiencia en la comunidad, tal y como sucedió MAR (9) - URBANITAS (8) - O MUNDO DE
en el caso de Mareas Vivas, no logran traspasar CELAVELLA (13) - AMENCER (6) -
las fronteras regionales. Todo esto en detrimento PEREGRINAXES (3) - TRES NO CAMIÑO (1)
de otros formatos como el documental o programas - UN BOSQUE DE MUSICA (1) - O QUE DIS
que estimulen la participación de audiencias más QUE DIN (1) - PUCHO BOEDO. UN CORNER
selectas, el análisis o el servicio público. NA FIN DO MUNDO (1) - 13 FERROCARRIL
476 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Capítulo IV
Apresentação
Fátima Pombo1
O território do estético pode ser a pos- No princípio do século XX, a arte reflec-
sibilidade de desenvolvimento de um conhe- te a imagem de um universo sem desculpas,
cimento de actualização poética do tempo fragmentado, isento da transcendência tute-
presente, na medida em que também fizer lar do belo. A arte seculariza-se num mundo
confluir o vasto domínio da criação artística, submetido à racionalização crescente de todas
com o apelo e a integração das particulares as actividades humanas, endurecido por
tradições culturais. Nesse território do esté- clivagens ideológicas e agitado por revolu-
tico, a arte e o design assumem a sua condição ções sociais, económicas, políticas. Os artis-
de formas de conhecimento que, em reali- tas interrogam-se sobre as implicações não
zação plena, são experiências que confron- só culturais ou estéticas da arte, mas sobre
tam o indivíduo com a condição de liber- a sua repercussão social e política. Os ar-
dade, a conseguida e a desejada. O conhe- tistas (alguns pelo menos) gritam de deses-
cimento poético, presente nas realizações pero e de revolta contra a guerra, contra a
artísticas, actualiza os conteúdos de verdade arte-ilusão, contra o belo enganador, elabo-
das obras de arte, através da forma (Adorno), rando, ao mesmo tempo, a sua teoria da arte
reflectindo sobre os problemas de sempre da e a sua obra artística. Os movimentos de
humanidade – a morte, o amor, a liberdade, vanguarda e a irrupção da arte moderna,
o ser, o existir –, propondo sucessivas res- utilizando novos materiais e procedimentos,
postas provisórias, que são condição de ensaiando novas formas, comprometendo a
visões-do-mundo (Husserl), de versões-do- arte no seu tempo, tornam a questão da arte
mundo (Goodman) para o sujeito compro- um problema da cultura, interrogando a sua
metido consigo e com o seu tempo futuro. finalidade e o seu papel na sociedade que
Como sustentava Aristóteles, a poética é mais lhe é contemporânea. O salto foi colossal e
importante do que a história, porque a his- teve força para desequilibrar a atitude do
tória relaciona-se com o que é ou o que foi; público (e da cultura académica) perante as
a poética relaciona-se com o que poderá vir coisas da arte. As experiências da “vanguar-
a ser. O conhecimento veiculado pela arte da histórica” prepararam o terreno para as
é peculiar, porque é, ao mesmo tempo, um novas vanguardas. O objectivo é fazer falar
conhecimento com implicações no plano da o mundo, em vez da alma emocionada pela
cultura comum, ao ensaiar respostas medi- imagem do mundo. A questão coloca-se entre
adoras, entre os tais problemas de sempre a não aceitação de que tudo seja arte, por
da humanidade, propondo ilhas de sentido uma ausência completa de critérios e o
e de ordem, e um conhecimento que é paradigma ontológico da natureza do que é
marcador de existência individual, quer do e não é arte. Quando Goodman substitui a
ponto de vista do criador, quer do fruidor. pergunta What is art? Por When is art?,
O cruzamento de destinos entre o plano caracterizando a natureza da arte pela pers-
dos fenómenos e o plano das ideias, entre pectiva da simbolização, assenta na premissa
o indivíduo e a sua condição de ser colec- de que não existe uma forma única de
tivo, entre o efémero e o perene... é o experiência estática, que possibilite a subs-
domínio a que se reporta a arte que, talvez, tituição de um essencialismo artístico por um
necessite de um momento de reflexão sobre essencialismo estético e na premissa de que
si própria, para que possa continuar a ser são os processos simbólicos implicados na
movida pelas interrogações do mundo e para experiência estética que caracterizam a arte.
que o mundo possa ser impregnado pela sua Construir mundos, fazer mundos é a
manifestação. proposta do pluralismo de Goodman para a
480 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
arte, ciência, filosofia, ou mesmo para a vida compreender a obra, é necessário compre-
comum. Trata-se de mundos e não do mundo; ender a poética que a ela preside. Não se
da construção no plural, da construção em trata apenas de fruir, mas de estar consciente
função de uma variedade que exige versões da fruição, não uma obra como forma sen-
e visões nem sempre compatíveis, nem sível, quer dizer, reagir aos estímulos físicos
sempre igualmente verdadeiras, povoadas por do objecto e reagir não apenas através de
sistemas simbólicos passíveis de funciona- um acordo de ordem intelectual, mas de um
rem em versões-de-mundo diferenciadas. conjunto de movimentos sinestésicos, de
A estética contemporânea não pode ser respostas emocionais, de maneira a que a
uma ciência normativa, nem partir de defi- fruição do objecto, ao complicar-se com todas
nições apriorísticas, ao pretender ser um estas respostas, não assuma a exactidão
pensamento vivo sobre as manifestações da unívoca da compreensão intelectual de um
arte. A estética renunciou a fundamentar as referente determinado e que a interpretação
possibilidades de uma actividade humana em da obra se torne, por isso, pessoal,
presumíveis estruturas imutáveis do ser e do posicionada, mutável, aberta.
espírito, de tentar uma fenomenologia con- A Estética procura repensar os ideais da
creta e compreensiva das várias atitudes modernidade e da pós-modernidade, tendo em
possíveis, das múltiplas inclinações dos conta um elemento novo – a cultura plane-
gostos e dos comportamentos pessoais para tária e globalizante –, o que impõe a neces-
encontrar uma justificação para uma série de sidade de reflectir sobre as relações da arte
fenómenos que não são definidos com uma com o mundo da comunicação interactiva,
fórmula, mas através de um discurso geral, na rede de uma cultura geral. A Estética que
que tenha em linha de conta um factor parta de um essencialismo, que se proponha
fundamental: a experiência estética é feita de encontrar normas em função de teorias gerais
atitudes pessoais, de contingências de gosto, da arte, actualmente, não tem campo de
da sucessão de estilos e critérios formativos. aplicação, correndo o risco de tornar-se um
A forma compreende-se como acto de co- pensamento de conteúdos anacrónicos, sem
municação e uma vez materializada não relação com o “espírito do tempo” e sob pena
continua a ser realidade impessoal, mas de alienar a relação da arte com a situação
configura-se como memória concreta de quem concreta das condições de possibilidade em
a criou e disponibiliza-se para as possíveis que se realiza. Pensar o comportamento dos
hipóteses interpretativas dos seus fruidores. indivíduos com as coisas, é manifestação de
O desenvolvimento da sensibilidade contem- atenção ao presente da vida no seu desen-
porânea acentuou a aspiração a um tipo de rolar-se.
obra de arte que, cada vez mais consciente Uma reflexão sobre o espiritual do design
das várias perspectivas de interpretação, se descobre como capaz de conceder esse valor
apresenta como estímulo para uma interpre- espiritual, quer a intenção do designer, quer
tação livre, orientada apenas nos seus traços o uso do artefacto criado, reforçando a
essenciais. perspectiva de que o que se faz, dá forma
A sugestão simbólica procura favorecer ao que somos e àquilo em que nos tornamos
não tanto a recepção de um significado (Victor Papanek). Por outro lado, o mundo
preciso, mas um leque de significados pos- também pode ser visto como um produto de
síveis, todos imprecisos e igualmente váli- uma civilização; é construído, projectado por
dos, conforme a capacidade interpretativa do indivíduos e, por isso, acontecem projectos
receptor. No limite extremo, temos certas conseguidos ou não conseguidos (Otl Aicher),
obras, que pela sua construção, renovam os através dos quais o indivíduo se vai trans-
seus significados, autoproliferando em pers- formando naquilo que vai sendo.
pectivas próprias e aspirando a constituir um O design, tal como a arte e a engenharia,
sucedâneo do mundo. Que concepção de obra procura desenvolver possibilidades de
têm os artistas hoje? De que modo estas interacção com a existência, quer do ponto
intenções se concretizam em modelos de vista emotivo (estético e ético), quer do
operativos e, logo, em estruturas formais? ponto de vista funcional (pragmático). A
Cada obra exprime uma poética e para prática do design distingue-se da prática
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 481
estética, pela condição de inutilidade funci- design é reforçada se, para além de quali-
onal da arte, estigma e condição do design. dades práticas/funcionais, a inovação espe-
Distingue-se também da prática da engenha- cífica do design manifestar novas propostas
ria, pela interpretação da construção da forma, estéticas, o que pressupõe esclarecimento
através do recurso a argumentos que não se acerca das relações entre a autoria, o produto
limitem à função e à tecnologia, mas sejam e a função.
portadores da poética de uma autoria, enquan- A Estética, a Arte e o Design são modos
to espaço conseguido de liberdade, a propó- de reflexão que podem colocar em relação
sito do projecto (Álvaro Siza). o indivíduo (inteligência emocional), a cul-
A reflexão sobre a origem da disciplina tura da comunidade (património, tradição,
do design, estabelece parcerias entre o pen- logos comum) e o mundo (ordem/desordem
samento que revela conteúdos pelo discurso, dinâmica), desenvolvendo elos de sentido,
pelo argumento, pelo conceito e o pensamento resultantes da aliança da experiência e do
materializado em artefactos culturais, pensamento, em ordem à criação de mais
marcadores do tempo e de conteúdos de argumentos de liberdade.
experiência, considerando as relações do
design com os seus parceiros mais directos
como o artesanato, a engenharia e a arte e _______________________________
com linhas interpretativas mais do domínio 1
Universidade de Aveiro. Coordenadora da
da ontologia, da semântica, da fenomenologia Sessão Temática de Estética, Arte e Design do
ou do estruturalismo. A natureza cultural do VI Lusocom.
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ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 483
Apresentação
Maria Teresa Cruz1
quais se organizam também novos desem- dominante e não são também externos nem
penhos e novas profissões e, ainda, novos divergentes relativamente à racionalidade
hábitos e novas formas de recepção : pro- comunicacional. A compreensão de algumas
gramar, desenhar, simular, jogar, interagir das dimensões fundamentais dos processos
etc... são dimensões da prática comunica- comunicacionais da actualidade exige, na
cional que fazem apelo, quer a competências verdade, o aprofundamento de vias de refle-
logotécnicas, quer a uma dimensão criativa xão que passam, quer pela compreensão da
do ser humano e a uma transformação da injução entre arte e técnica, indispensável para
suas formas de percepção e de sensibilidade. a compreensão do papel das mediações
O agir comunicacional torna-se assim impul- comunicacionais na produção cultural con-
sionador directo de experiências culturais temporânea, quer ainda pela injunção entre
novas, nas quais colidem e se instabilizam estética e técnica, para a compreensão da
categorias às quais o pensamento moderno mobilização e maquinação que a comunica-
havia procurado conferir autonomia e niti- ção faz da percepção e da afectividade. A
dez, como por exemplo as de arte e de técnica, efectividade destas convergências não é
que inclusivamente se oponham, de certo sequer inteiramente nova, como o mostra o
modo, entre si. O espaço do agir profundo entretecimento da cultura e dos
comunicacional e das suas novas mediações media, pelo menos desde o final do século
é hoje o lugar onde, pelo contrário, elas XIX e ao longo do século XX. Bastará para
parecem convergir. Esta convergência exige tanto referir: o advento da fotografia e do
articulações também no plano da reflexão. cinema que hoje entendemos, sem discussão,
Por um lado, a nossa concepção moderna de como fazendo simultaneamente parte do
arte e a autonomia conferida à prática ar- universo das artes e do universo da comu-
tística que lhe corresponde são estreitas para nicação ou o surgimento de um cultura e de
albergar as experiências com estes media
uma arte pop a meados do século XX,
comunicacionais. Por outro lado, uma
decorrentes de uma integração plena e re-
perspectivação tradicional da comunicação
flectida das mediações comunicacionais.
permance cega relativamente a estas injunções
Vários destes media, como o desenho, o
da comunicação com as artes e a estética,
grafismo, a fotografia, o cinema e o video,
encarando-as como uma dimensão
sendo plenamente reconhecidos como artes,
tendencialmente irracional da comunicação.
fazem também plenamente parte do universo
Um tal preconceito tem origem num ideal
comunicacional, tendo provocado um alarga-
de comunicação, de linguagem e de cultura,
mento decisivo do espaço alfabético em que
renitente em aceitar dimensões da experiên-
cia que a modernidade, contudo, vem expres- este se constitui desde a «galáxia de
sando desde há muito. Um ideal que é, em Gutenberg». Na sua plena ambivalência
si mesmo, limitador da compreensão da reconhecida de artes comunicacionias estes
comunicação nas sociedades contemporâne- media integram hoje, por sua vez, novas
as: o de sujeitos que comunicam entre si possibilidades de cinematismo, de animação,
segundo o modelo exclusivo de um uso de significação e de expresssão, conferidas
intencional, lógico e argumentativo da lin- pela mediação computacional multimedia, e
guagem, ao qual se juntam, quando muito, também isto corresponde a um alargamento
dimensões retóricas e pragmáticas da comu- do espaço da comunicação: o seu alargamen-
nicação, sujeitos esses que negoceiam entre to pela informação, que é um alargamento,
si aspectos da experiência cognitivos, polí- não apenas extensivo, mas intensivo, em
ticos, éticos e de gosto. O campo e as práticas virtude da plasticidade, acessibilidade sub-
comunicacionais são também constituídos, no jectiva e universalização que esta lhe con-
entanto, por dispositivos técnicos, por fere.
suscitações da criatividade e da expressão e, Tais possibilidades não podem deixar de
ainda, por mobilizações e formatações da transformar profundamente e conjuntamente,
percepção e da sensibilidade. quer a comunicação quer a cultura, tal como
Estas dimensões da experiência não são outrora o fizeram o alfabeto, a escrita e, ainda,
meros restos de uma dada racionalidade as diversos dispositivos da imagem.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 485
O design parece ocupar, nesta cultura dos Web Design) , os interfaces (Interface Design)
novos media, um protagonismo particular, e as interacções (Interaction Design). Dese-
unicamente comparável, talvez, àquele que nham-se igualmente as ideias e os projectos
tem pertencido à escrita na cultura da literacia, (Project Design) e, de certa forma, desenham-
sendo então necessário compreender as ra- se também já os corpos e as experiências.
zões de um tal protagonismo. O design é a disciplina que assiste hoje toda
A sua quase imposição à cultura em geral a cultura e, em especial, a cibercultura, na
está para além da procura de uma elevação tarefa de conferir um mínimo de estabilidade
estética dos seus objectos e práticas, ligan- e de tipologia (de forma) ao universo sem
do-se antes à obrigatoriedade de projectar, sentido do digital, que é, ao mesmo tempo,
construir e dar sentido a um verdadeiro novo um universo extremamente plástico, mutante
espaço cultural imposto pela comunicação e, e híbrido. A centralidade do design é pois
a de uma verdadeira nova linguagem em
sobretudo, pelas novas tecnologias da infor-
processo de constituição. Ele testemunha,
mação. Como mostram as suas novas espe-
talvez melhor do que qualquer outra prática
cialidades, tudo se desenha hoje: para além
comunicacional dos dias de hoje, o quanto
dos produtos industriais, a comunicação em as injunções entre comunicação, arte e es-
geral, ultrapassando em muito o desenho tética são centrais à racionalidade
gráfico. Desenha-se não apenas o universo comunicacional e o quanto necessitam, por
da palavra e do traço, mas também o da isso, de uma reflexão estratégica e crítica.
imagem (Image Design), desenha-se tudo o
que possa ser veiculado na forma da infor-
mação e, por isso, as especialidades do _______________________________
desenho de informação (Information Design) 1
Universidade Nova de Lisboa. Coordenadora
são hoje muito diversas: desenham-se os da Sessão Temática de Estética, Arte e Design
ambientes virtuais (Environmental Design e do II Ibérico.
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ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 487
destacan los realizados el Instituto de Bellas juntas; siendo éstas fijadas desde el interior,
Artes de Tetuán (Marruecos) y la realización con resina de poliéster y fibra de vidrio. Para
de videos didácticos de diferentes procesos. evitar posibles desacoples y una perfecta
Con estos proyectos se ha participado en unión se utilizó un sistema de torniquetes y
la mejora de la difusión de importantes obras gatos.
para la activación social y turística. La excesiva altura y peso de la figura
aconsejaba el desarrollo de un sistema basado
Proceso de restitución, reconstrucción de en la confección de diferentes radios de
fragmentos perdidos y policromado de copia sujeción, dispuestos a diferente altura, a
del “Giraldillo” medida que iban siendo restituidos los
fragmentos. Estos radios, que unían el interior
Este proyecto nace como resultado de de la figura con el vástago central,
la propuesta de recuperación y conservación garantizarían la estabilidad de la pieza y
de la copia del “Giraldillo”, de la que se evitaría posibles desplazamientos.
partió para el duplicado de bronce que hoy La siguiente fase consistiría en el repaso
vemos coronando la Giralda. Dicha copia, de las juntas desde el exterior. Se trataba de
confeccionada con resina de poliéster, fue reponer material donde faltaba y obtener
fragmentada en el transcurso del proceso de planos limpios en las superficies de unión
fundición. El objetivo de la actuación de las piezas.
pasaba, por tanto, por devolver todos estos Tras la reconstrucción de la copia y el
fragmentos a su disposición original. Sin estudio de la documentación histórica de la
embargo, la deformación que habían escultura, se resolvió acometer la restitución
experimentado la mayoría de las piezas, hipotética de la policromía original, de la que
impedían su perfecto ajuste; con lo cual, el no existe documentación gráfica, aunque sí
proceso de intervención adquiría una mayor escrita. Se trataba de ofrecer una propuesta
complejidad. abierta, teniendo en cuenta las circunstancias
Por otro lado, se detectó la inexistencia que han marcado la historia de la escultura:
de algunas piezas, tales como varios dedos pérdidas de policromía y volumétricas,
de la mano izquierda y derecha, así como repolicromados, añadidos,...
diversos fragmentos de la corona y de la Para la ornamentación de los elementos
palma. añadidos en 1770, se tuvo en cuenta un
El eje central de la escultura, de hierro detallado dibujo que conserva el Archivo
galvanizado, se hallaba fragmentado. Su Catedralicio. Entonces, la escultura, muy
lamentable estado desaconsejaba su deteriorada, fue sometida a importantes
reparación, por lo que fue sustituido por otro. alteraciones tanto en su estructura como en
Esta estructura central recorría la figura desde su aspecto externo.
la cabeza hasta los pies, sobresaliendo un El proceso de restitución de los
metro por debajo de estos, para, finalmente, tratamientos de superficie se inició con el
insertarse en la bola, que sirve de base a la dorado de la figura, prácticamente en su
figura. totalidad, a excepción de las zonas destinadas
Tras la localización de las piezas que a la encarnadura. El procedimiento elegido
habían sufrido deformaciones, alterando el fue el dorado con mistión al aceite y pan
movimiento general de la figura, se diseñó de oro.
la estrategia para devolverlas a su estado El policromado de la figura se desarrolló,
original. La naturaleza del material de soporte, tras la aplicación y secado de un barniz
la resina de poliéster, permitía su maleabilidad protector para metales, que evitaría la
con la elevación de la temperatura. Así, las oxidación del dorado al entrar en contacto
distintas piezas fueron siendo sometidas a con la humedad. La policromía se desarrolló
dicho proceso, llevando un orden ascendente. conforme a la iconografía y simbología de
Se corrigió la deformación existente, los colores de la época, así como a la
obteniéndose un perfecto ajuste entre sus documentación histórica mencionada.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 489
que se construyó junto con la puerta en 1460, según su dictamen, el estado de conservación
y fue destruido en una fuerte inundación en de estas era bueno para la aplicación del
1545. molde. No obstante se protegieron las mismas
Aunque desde entonces ha sufrido con un desmoldeante inocuo debido a que
numerosos daños ocasionados por las en algunas partes la piedra había perdido
repetidas crecidas del Guadiana, que ha consistencia.
obligado a su reconstrucción en diferentes Algunas piezas fueron limpiadas
ocasiones, como la del 6 de diciembre de superficialmente, por que en su superficie
1.876, acompañando estas actuaciones con habían aflorado musgos, al encontrarse
escudos e inscripciones recordatorias, como expuestas al exterior, como el caso del gran
documenta González, 1994: 205 – 213. panel de tres escudos, o el escudo de la Casa
Las piezas estuvieron colocadas en el Real.
puente hasta 1871, año en el que se sustituyó Los moldes de realizaron con silicona
el pretil de mampostería donde se hallaban, densa y caja de resina de poliéster y fibra
por una baranda metálica. Ese año, fueron de vidrio, reforzándose estas con listones de
recogidas por el Cuerpo de Ingenieros de aluminio que evitaron el arqueamiento de los
Caminos y se trasladaron al Taller de Obras moldes, sin aportar peso a estos.
Públicas. Tras 23 años de negociaciones, por Se desechó la silicona líquida para evitar
fin en 1894, se trasladaron al Museo la penetración de la misma en los poros de
Arqueológico la piedra, evitando así problemas de adhesión
Las piezas consisten en: y desgarro de los originales.
- Escudo de Badajoz, expuesto en las salas Especial rapidez y limpieza requirió el
del museo, y realizado en mármol. escudo de Badajoz expuesto en las salas del
- Gran panel en relieve, realizado en museo, trabajando molde de silicona y caja
mármol y compuesto de tres escudos: un en la tarde noche del domingo y lunes,
escudo de España, uno de Badajoz, y un dejando pieza y estancia preparadas para su
escudo de armas, de una casa desconocida. exposición.
- Escudo de la Casa Real rodeado del Los moldes de las piezas expuestas al aire
Toisón, realizado en mármol, expuesto al libre también requirieron rapidez de trabajo,
exterior. Con la corona y la cabeza del águila esta vez motivado por las inclemencias del
totalmente destruidas a pedradas en las tiempo, con la problemática añadida de los
revueltas del movimiento insurreccional del conflictos de catalización de la resina en
29 de septiembre de 1868. contacto con la humedad.
- Escudo de cinco carteles, entre ellos los Las reproducciones se hicieron fuera ya
de las Casas de los Mendoza y Solís, realizado de las estancias del Museo, en piedra
en mármol, y ubicado en los almacenes del artificial, conformada por cemento blanco y
Museo. mármol de diferentes densidades en
- Inscripción dedicada a Felipe II, perdida superficie, reforzadas en su interior por mallas
en su totalidad, y recogido su texto en metálicas.
documentos, año 1596. En cuanto a la inscripción perdida, se
- Inscripción de reconstrucción del puente construyó en su totalidad en el mismo
el 6 de Julio de 1609, realizado en mármol, material que el resto, aunque con un formato
ubicado en los almacenes. de texto actual, sin querer imitar a piezas
- Inscripción de ampliación del puente, arqueológicas, sino como referencia
en mármol, descubierto en el siglo XX, con informativa, aunque con la misma pátina que
la leyenda casi perdida, de muy difícil lectura, el resto de las piezas, para que su lectura
ubicado en los almacenes. cromática no distorsione.
La descripción y catalogación de los El tratamiento de superficie se realizó
mismos, como constata Mélida, 1926: 153 al óleo, siguiendo un criterio, no de
– 155, en la Serie Hispano-Cristiana. equiparación total al original, sino de lectura
La realización se efectuó en colaboración didáctica para el espectador, ya que esta será
con la arqueóloga y restauradora de piezas su misión en la ubicación definitiva de las
arqueológicas Fátima Marcos Fernández, reproducciones.
492 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Las obras se colocaron bajo el nivel de Se realizaron diez copias del caballo y
suelo, en unas cajas metálicas de aluminio, dos del bocado, todas ellas realizadas en
perforadas en sus laterales, con orificios de resina de poliéster, con una pátina de
conductividad del aire para evitar la imitación al bronce, siguiendo en esta los
condensación del agua, y protegidos por un pasos de oxidación del bronce, a través de
cristal blindado, que permite vislumbrarlos pinturas sintéticas especialmente tratadas y
desde la superficie. Un foco de luz blanca pigmentadas.
en cada una de las cajas, permite su
iluminación nocturna. Investigación de intervención sobre una copia
del busto romano de Adriano.
Caballo de Cancho Roano y bocado de
caballo. (Siglo V a.c.) (Museo Arqueológico En la Sala Villasís del Centro Cultural
Provincial de Badajoz). El Monte de la ciudad de Sevilla, tiene lugar
la exposición del año 2001: Retratos romanos
Como documenta Celestino, 2002: 22 – de la Bética. Con motivo de dicha muestra
35, la escultura del caballo y la cama lateral escultórica se proyecta la reconstrucción de
del bocado de un caballo, fueron encontradas fragmentos perdidos y policromado de una
en el sitio arqueológico de Cancho Roano, copia del Busto romano de Adriano, con el
junto a la localidad de Zalamea de la Serena, propósito de recuperar la visión original de
en Badajoz. la obra.
El sitio de Cancho Roano, pertenece a La muestra reunió esculturas marmóreas
un levantamiento prerromano destinado como procedentes de distintos Museos
centro religioso y de culto. Arqueológicos de Andalucía: Cádiz, Córdoba,
En el emplazamiento se hallaron
Málaga y Sevilla; del Museo Nacional, y de
numerosos objetos de cerámica, (jarros,
diversas colecciones privadas. La selección
ánforas), de bronce, (braseros, botones), dados
de retratos comprendía el período entre el
de hueso, etc.…, pero destaca especialmente
siglo I a.C. y el siglo III, por lo que permitía
la aparición de una escultura de pequeño
conocer el proceso evolutivo de la influencia
formato que representa un caballo ricamente
artística romana en la Comarca del Bajo
enjaezado, encontrado en el sector oeste.
Guadalquivir, a lo largo de dicho periodo.
Al tratarse de una pieza hallada en el
El Busto de Adriano, perteneciente al
término provincial de Badajoz, se destinó al
Museo Arqueológico de Sevilla, es situado
Museo Provincial de la Capital, donde se
entre la transición de la época adrianea y
expone hasta la fecha.
principios de la antoniniana. Se trata de una
Aprovechando una revisión de las piezas
encontradas en Cancho Roano por parte de talla en mármol pentélico, que presenta una
la restauradora de piezas arqueológicas intensa labor de trépano; con una altura de
Fátima Marcos Fernández, realizamos un 0,82 m., más 0,12 m. de pedestal. León, 2001:
molde sobre la escultura del caballo y del 306
bocado, para realizar reproducciones con Por lo que respecta a su estado de
vistas a realización de regalos oficiales por conservación, el principal deterioro lo
parte del Excmo. Ayuntamiento de Zalamea constituye, sin lugar a dudas, la pérdida del
de la Serena, (Badajoz), otorgando a la pieza hombro derecho y arranque del brazo del
un nuevo carácter de divulgación del mismo lado. Se detectan, además, pequeñas
patrimonio extremeño. pérdidas en los extremos de los bucles
Para la realización del molde se trataron anteriores y en la nariz del gorgoneion.
las piezas fijando su superficie de bronce y Esta pérdida de fragmentos alteraba
aplicando un desmoldeante inocuo sobre las considerablemente la visión original del
mismas. busto, puesto que provocaba un evidente
El molde se realizó con silicona densa desequilibrio de masas. Así pues, se procedió
y caja madre de resina de poliéster con fibra a la reconstrucción de los mismos sobre una
de vidrio, de siete piezas. copia de la obra. Se tuvieron en cuenta los
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 493
el amor, como dice el título en inglés, In Interesa analizar, por tanto, en esta
the mood for love, no quieren ser “como comunicación la presencia de los espacios y
ellos” y viven así una imposible historia de de los cuerpos, poniendo de manifiesto sus
amor. implicaciones formales y de sentido. En toda
Se trata de una historia contada desde el obra artística, el trabajo con las formas es
recuerdo. En el texto citado al final del film el lugar de encuentro con los sentidos; y
– que procede de un relato corto publicado Deseando amar es una obra de arte. Obra
por Liu Yichang, escritor expatriado original que muestra al espectador y al analista un
de Shanghai- se dice que vemos el pasado gran trabajo sobre las materias y los
a través de un cristal lleno de polvo, y no contenidos, que se presentan estrechamente
lo podemos tocar. Desde esa perspectiva nos imbricados. Hasta los más pequeños detalles
hemos acercado a las vidas de Chow y de entran en juego, se conjugan en una
Su Lizhen y de su historia de amor y desamor, transmisión de sentido encarnada en todos
desde una rememoración de un tiempo sus niveles: fotografía, encuadres,
pasado, desde un intento de reconstrucción movimientos de cámara, luz, color, música,
del mismo a través de las huellas borrosas fuera de campo, ritmo, utilización de la
que han quedado de un paso físico de unos cámara lenta, montaje, raccords, atrezzo,
cuerpos por unos espacios. Y lo que narración, personajes, espacios, tiempos, etc.
permanece en esa rememoración es el propio Aquí la forma es el fondo, la escritura es
recuerdo, no tanto el tiempo real, ya pasado. el contenido.
Lo que queda y lo que se nos ofrece es la Se manifiesta así una cuestión esencial:
memoria del pasado, no centrada tanto en la fuerza estética de la obra de Wong Kar-
los hechos de la aventura de amor entre los Wai no se queda en el vacío trabajo sobre
protagonistas, como en lo que ha quedado la forma propio de cierto arte postmoderno;
grabado de ella, revisitado y estetizado por en su trabajo formal y estético está un sentido,
el recuerdo. un universo imaginario, una forma
Volvemos con los personajes a sus insustituible de comunicar y mostrar la
vivencias de un tiempo pasado pero ya desde realidad ensoñada. Su preocupación por la
el prisma o el punto de vista de la pérdida. forma va íntimamente unida a su reflexión
Estamos ante un relato de un amor imposible sobre el sentido de lo que está contando. Por
y ese incumplimiento tiñe con su sentido de ello creo que es especialmente interesante el
pérdida cada una de las vivencias, dotándolas estudio de la visualidad de la obra de este
de una intensidad muy fuerte. Será director, ya que trabajando sobre la materia,
precisamente el relato fílmico como tal el trabaja sobre lo indecible. Va más allá del
que deje constancia de las huellas físicas de discurso vacío y esteticista propio de la
ese tiempo que se ha escapado en la realidad postmodernidad y, en este sentido, me parece
pero que permanece de alguna forma en la necesario reivindicar su trabajo. El cine de
memoria. Wong Kar-Wai tiene una importantísima
Manteniendo a lo largo del film esta dimensión visual y filosófica.
concepción de algo que se nos escapa, la Aproximándonos a su obra desde la
presencia tenue, matizada, elegante, de la poética de la imagen podemos reflexionar
corporalidad y de la espacialidad hacen que, sobre la potencia generadora de realidad, de
como espectadores, asistamos a la fuerza de expresión y de pensamiento que subyace en
esa historia de amor y a la peculiar relación el trabajo con las imágenes y que hoy se está
pasional entre los protagonistas. En una desarrollando también en el cine.
historia en la que el director desea contar Rescato aquí las palabras de Santos
cómo se viven los secretos, la realidad se Zunzunegui relativas a esta cuestión:
nos hurta y a la vez se nos muestra; de la
misma manera que les sucede a los propios “Para las modernas poéticas
personajes protagonistas de la historia. Se estructurales, la “motivación” se
reconstruye antes nuestros ojos la memoria puede entender de manera alternativa.
del pasado. No se trata de un puro juego formal
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 497
sin trascendencia en el plano del pasado, con historias, con encuentros; esto
contenido de la obra, sino de una seguirá sucediendo a lo largo de todo el film.
manera de organizar el nivel de los Es frecuente que las imágenes estén tomadas
significantes que permite llevar a cabo a través de un marco de una ventana, una
una homologación precisa con el cortina,... El director contó, en entrevistas
plano del significado. La poeticidad posteriores a la película, que con ella
de un texto remite tanto a prácticas pretendía reconstruir un ambiente de su
de referencialidad interna (del que las infancia; un ambiente en el que eran
“rimas” visuales o de otro tipo ofrecen omnipresentes los cotilleos de los vecinos:
un buen ejemplo) como a la manera plantea su relato como una película sobre los
en que esa trabazón del tejido textual rumores. En ese sentido, parece poner al
contribuye a situar la significación de espectador a acechar a los personajes como
la obra. De esta manera se puede un vecino más, mirando desde detrás de las
proceder a valorar un texto en su cortinas o a través de las ventanas.
dimensión formal sin perder de vista Todo se desarrolla en espacios muy
la manera en que sus estrategias cerrados: la planificación de los encuadres
textuales reescriben los parámetros y el trabajo de dirección artística están
culturales y artísticos en los que se encaminados muy intensamente en esta
inserta”3. dirección. No debe dejarse de lado la
importancia de William Chang, colaborador
Este es el punto de vista adoptado en el de nuestro director en la tarea de configurar
análisis de este film. los espacios en sus films. Un ejemplo claro
Nos enfrentamos a una obra que presenta de utilización muy marcada de los espacios
de cara al espectador y al analista un gran cerrados puede ser la secuencia de la
trabajo sobre los contenidos y las formas, que mudanza, en la que las escenas están vistas
se muestran estrechamente imbricados: hasta a través de ventanas ovaladas, de cortinas,
los más pequeños detalles están pulidos, de quicios de puertas.
entran en juego, se conjugan en una En este sentido también hay un trabajo
transmisión de sentido encarnada en todos importante con el espacio en campo y fuera
sus niveles. Las referencias que anoto de campo. Son numerosas las escenas en las
seguidamente pueden ponerse en relación de que se encuentran fuera de campo algunos
diversos modos con esta cuestión; iremos de los personajes que intervienen en ella. Es
deteniéndonos en ciertos aspectos concretos llamativo en este sentido que apenas se
referentes al tratamiento de lo físico en muestran a las respectivas parejas, algo más
Deseando amar. ella, pero siempre brevemente, de refilón, una
Podríamos plantear como punto de partida mano en el marco de la puerta, su cuerpo
que en esta película, la presencia de los entrando en una habitación, dando
espacios y de los cuerpos es la materia sobre rápidamente la vuelta a la escalera.
la que se sustenta lo esencial de la narración Los espacios en los que se desenvuelven
fílmica. En ello reposa la encarnación de la son confusos y abigarrados, parece que muy
historia; una encarnación muy alejada de lo intencionadamente. Es curiosa la planificación
fácil y de los recursos que hubiera explotado desde el principio, sin planos de referencia,
un cine convencional. La importancia de esta con saltos de raccord...., muy claramente
materia se manifiesta en todos los niveles visibles en la secuencia citada en la que se
del trabajo fílmico. Veamos algunos ejemplos. nos cuenta como Chow y Su Lizhen hacen
Son abundantes las escenas que se inician la mudanza para instalarse en el mismo
con planos sobre los objetos de la casa, de edificio. Esta cuestión referente al modo de
los espacios en los que se desenvuelven los mostrar los espacios, está en clara relación
protagonistas: lámparas, cuadros, ventanas, con la ambigüedad; es otra forma de mostrar
espejos, paredes... En el inicio, la película la confusión, las idas y venidas, los cruces
se abre con unas imágenes de los lugares en de los personajes exteriormente pero también
los que se van a conocer los protagonistas, en su fuero interno. Podemos así apreciar
situándonos ya sobre una casa habitada, con cómo los distintos niveles de significación
498 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
se superponen y son generados y trabajados Camboya, con lo que nos saca del mundo
desde distintos niveles en la construcción de la intimidad al mundo común de la
fílmica. sociedad, vemos a Chow en unos espacios
Hay espacios que se repiten: la escalera, mucho más abiertos, en el templo de Angkor
la reja. Y también se repiten las situaciones Vat, cumpliendo la leyenda china que dice
que se dan en esos lugares, especialmente que si queremos que no se pierdan nuestros
los encuentros entre los protagonistas. Con secretos hemos de acercarnos a un árbol y
ello podríamos poner en relación el motivo contarlos allí, en uno de sus agujeros; él,
de las coincidencias, reflejado en el film en dando un sentido más ritual, cuenta su historia
diferentes planos: parejas que viajan, parejas a las piedras del templo. A través de unos
que se relacionan, el hecho de que también planos muy lentos, va cerrándose la narración;
surja el amor entre ellos, los regalos ... Este y a los espectadores nos va sacando poco
último motivo es utilizado para mostrar el a poco de la situación de intensidad emocional
paulatino descubrimiento de la infidelidad que y recolocándonos en el mundo. En esta
sufren. secuencia también tiene una especial
Y yendo a los detalles, también hay importancia la música melancólica que
muchos motivos de atrezzo que aparecen una subraya el tono de la escena; en ella están
y otra vez: relojes, ventiladores, cortinas, presentes algunas cuestiones clave como el
marcos, escaleras. tema de la memoria y el futuro, el tema de
No puede dejarse de lado la relevancia la dimensión más amplia que tienen los actos
que tiene el trabajo con los colores en la humanos.
representación de los lugares y los cuerpos. Pero no son sólo los espacios los que
El color dota de gran fuerza a las imágenes llenan la imagen del film sino que los cuerpos
de este film. de los personajes están omnipresentes en esta
La historia está ambientada en los años obra.
60 y es llamativo el trabajo de reconstrucción Resaltan por ejemplo las escenas en
del aspecto de ese tiempo. También puede cámara lenta de los cruces de los
resultar expresivo desde el punto de vista protagonistas, en una coreografía apoyada
estético: decoración, vestuario, aire de otra muy explícita y sugerentemente por medio
época (cercana pero ya con cargas emotivas de la música.
y estéticas de muy diversa índole), etc. La Deseando amar es una historia de
situación de la historia en esos años también soledades que se cruzan y de abandonos que
es importante en el sentido de situar los están como trasfondo. En una entrevista, el
sucesos en un momento en que los director se refiere a esta cuestión:
convencionalismos sociales eran muy
marcados y condicionaron fuertemente la “Mi gusto por la coreografía es el
relación entre los protagonistas. resultado de una confrontación con la
Son originales y muy trabajados los vida y de una experiencia del cine,
movimientos de cámara, como por ejemplo arte mudo en su origen y que no ha
en la escena en la que por primera vez salen cambiado fundamentalmente, puesto
a cenar juntos los protagonistas. Entran en que muestra ante todo a los seres en
campo sentados a la mesa en un movimiento movimiento y nos ofrece tiempo para
de cámara perpendicular y que surge desde fijar sus posturas. Las películas de
detrás de ellos. Bresson produjeron, con toda
El ambiente, el aire está presente como seguridad, un gran impacto estético
tal en las imágenes de la película. La sobre mí: un arte de la vigilancia y
presencia del humo del tabaco, por ejemplo, del acecho. En su cine, los actores son
marcando la densidad de los espacios, equivalentes a las piedras, los árboles
reforzada por los encuadres cerrados y la o los objetos. Su trabajo se sitúa al
estrechez de los lugares. lado de los elementos, del borrado
La escena final contrasta fuertemente con progresivo de su estatus, de sus
todo lo que hemos visto a lo largo del film; connotaciones, para poder reescribir
tras presentarnos la visita de De Gaulle a por debajo”4.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 499
imágenes; él concibe el rodaje de sus películas y que confía como pocos en el poder de las
como un proceso, un largo proceso en el que imágenes. Un cineasta cuya divisa
se van poniendo en pie las cuestiones y su irrenunciable es: “Filmar los lugares, fijar su
tratamiento, en una concepción de la creación memoria”.
artística como el lugar de encuentro con el Termino con unas declaraciones del
conocimiento y la recreación de lo real. Y director en el Festival de cine de Cannes:
es especialmente en su trabajo creativo con
las imágenes, en su poética de la imagen “A los actores les había dicho que
puesta en pie en su obra, donde se manifiesta no iba a ser un film hablado, verbal;
la grandeza del trabajo fílmico de nuestro que ellos iban a expresarse no sólo
autor. a través de las palabras sino, sobre
Como plantea Carlos F. Heredero en su todo, a través del cuerpo, de los
obra La herida del tiempo. El cine de Wong pequeños gestos, de las miradas; sólo
Kar-wai 8 , estamos ante un cineasta podrían expresarse a través de su
radicalmente ajeno a toda tentación discursiva cuerpo”9.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 501
Bibliografía _______________________________
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Santos Zunzunegui. La mirada cercana.
Valladolid, 2002. (Microanálisis fílmico). Barcelona, Paidós, 1996,
Kar-Wai, Wong. Deseando amar. Edición p. 158.
4
del DVD. Araba Films, Kino Vision, 2001. Carlos Fernández Heredero. La herida del
tiempo. El cine de Wong Kar-wai. Valladolid,
Salabert, Pere. Pintura anémica, cuerpo Semana Internacional de Cine de Valladolid, 2002,
suculento. Barcelona, Laertes, 2003. p. 213.
Sánchez-Biosca, Vicente. Una cultura de 5
Carlos Fernández Heredero. Op. Cit., p. 233.
6
la fragmentación. Valencia, Filmoteca de la Carlos Fernández Heredero. Op. Cit.. p. 231.
7
Carlos Fernández Heredero. Op. Cit., p. 234.
Generalitat Valenciana, 1995. 8
Carlos Fernández Heredero. Op. Cit., p. 45.
Zunzunegui, Santos. La mirada cercana. 9
Entrevista incluida en la edición en DVD de
(Microanálisis fílmico). Barcelona, Paidós, la película, realizada en Cannes durante el 53 Festival
1996. internacional de cine el 21 de mayo de 2000.
502 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 503
programas de diseño gráfico, pensados para aplicando el de todos los elementos del
las dos dimensiones. Los alumnos lenguaje visual en singular y en plural.
descubrieron que el conocimiento de los
recursos expresivos les permitía elaborar
soluciones desconocidas hasta ahora. Es
importante reseñar que todos los ejercicios
se han realizado con alumnos de primer
curso 2002-2003 y el 2003-2004, durante
el primer cuatrimestre, y que lo aprendido
inicia a gran número de ellos, para marcar
un futuro objetivo, descubrir la propia
personalidad expresiva; los recursos
linguísticos ya se conocen (conociendo la
literatura, podremos expresar nuestra propia
identidad).
Nuestra percepción háptica y metodología
podrán igualmente hacer aportaciones en el
lenguaje y expresión de la forma para
invidentes, desde las experiencias que
Lowenfeld inició con alumnos ciegos, y que
Bordes, 2003: 594, relaciona con el dibujo También, dicho elemento expresivo indica
de memoria que Catterson-Smith proponía la viabilidad de recrear animaciones de
realizar con los ojos cerrados. imágenes provenientes de los programas de
Por las razones descritas en primera diseño gráfico, y que no usan esquemas de
estancia, el plano es el elemento de choque los sistemas de representación. El resultado
para dar el salto hacia el conocimiento obtenido no será de difícil elaboración, y
volumétrico, amparado en previos ejercicios resultará impactante y atrayente por
con la línea, pero el conociendo o sabiduría aprovechar conocimientos propios del
posterior avanza en poseer todos los recursos lenguaje del diseño. Por lo tanto, estamos
expresivos válidos para elaborar lo que hablando de un elemento literario de gran
queramos, con independencia de la valor expresivo para la comunicación
herramienta y el soporte, conociendo y tridimensional, en la actualidad.
508 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Diseño><Design
Eva Mª Domínguez Gómez1
En este camino hacia la mundialización, social que se sitúe dentro de una dinámica
no se puede dudar, las nuevas tecnologías comunicativa.
y formas de proyectar han tenido mucho que
ver. Jordi Pericot apuntaba en su 4 - A modo de conclusión
intervención en el congreso Renovar la
tradición:
10
Bomfim, Gustavo Amarante. “Coordenadas y enfoques críticos. Piados. Buenos Aires.1997,
cronológicas e cosmológicas como espaço das p.119.
16
transformações formais”. Em Formas do Design. Bassat, Luis. El libro Rojo de las Marcas.
2AB:PUC-Rio. Rio de Janeiro. 1999, p.152. Ed. Espasa Calpe, S.A. Madrid, 1999. (Bassat,
11
Bomfim, Gustavo Amarante. “Coordenadas 1999 :91)
17
cronológicas e cosmológicas como espaço das Arfuch, Leonor, Chaves, Norberto,
transformações formais”. Em Formas do Design. Ledesma, María. Diseño y Comunicación. Teorías
2AB: PUC-Rio. Rio de Janeiro. 1999, p.152. y enfoques críticos. Piados. Buenos Aires, 1997,
12
Resumen de las ideas a partir del libro p.208.
18
de Heratney, Eleanor. Pós-modernismo. Cosac & Palabras de Pericot, Jordi. “El diseño y sus
Naify. São Paulo. 2002. futuras responsabilidades”. Ponencia dentro del
13
Palabras de Pericot, Jordi. “El diseño y sus congreso Renovar la tradición. La Laguna, 2002.
futuras responsabilidades” Ponencia dentro del Tenerife – España.
19
congreso Renovar la tradición. La Laguna, 2002. Ver: Lúcia Nojima, Vera. “Formas do
Tenerife – España. Design. “Comunicação e leitura não verbal”.
14
Concepto extraído del documento Heinz R. Formas do Design. Ed: 2AB série design. Río
Sonntag & Nelly Arenas Gestión de las de Janeiro 1999. Brazil.
20
Transformaciones Sociales - MOST Documentos Branco, João “El objeto del diseño”.
de debate - Nº 6 “Lo Global, Lo Local, Lo Híbrido”. Experimenta 32. (Branco, 2000:36 ss).
15 21
Ver Arfuch,Leonor, Chaves,Norberto, Augé, Marc “El no lugar y sus objetos”
Ledesma, María. Diseño y Comunicación.Teorías Experimenta 32. (Augé, 2000:98).
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 517
Performance multimídia:
Laurie Anderson e arte feita de palavras e bits
Fernando do Nascimento Gonçalves1
Há mais de 30 anos, Laurie Anderson vem performance nos anos 80 e 90, que é, na
atuando em diversos campos da arte e realidade, a etapa atual da longa história de
operando com distintas linguagens e mídias. uma forma expressiva denominada “arte da
Tendo origem na vanguarda nova-iorquina performance”.
dos anos 70, Anderson produziu, ao longo A performance é uma expressão artística
de sua trajetória, um inédito e curioso di- típica dos anos 70, em que o corpo era
álogo com o circuito comercial de arte, a utilizado como um instrumento de comuni-
chamada mainstream. cação que tomava objetos, mídias, situações,
Seu trabalho vem mantendo, porém, uma lugares naturalizados e socialmente aceitos
qualidade essencialmente conceitual e pode -para resignificá-los. Historicamente, é pos-
ser visto como uma espécie de “vanguarda sível localizá-la como um fenômeno artístico
pop”, que parte da escultura minimalista2 e “de fronteira”,4 que representa o elo contem-
vai abraçar diversas formas expressivas (fo- porâneo de um conjunto de expressões es-
tografia, filme, música, instalações) e mídias tético-filosóficas do início do século XX -
(TV, vídeo, CD-rom e internet). Integradas da qual fazem parte o futurismo, o dadá, o
em suas performances, essas distintas lingua- expressionismo e o surrealismo – e do pós-
gens e mídias produzem uma arte feita de guerra, como o happening dos anos 60 e a
palavras e bits, capaz de produzir interessan- body art, dos anos 70 (Cohen, 1987). A
tes descosturas nos discursos e práticas li- performance representa esse conjunto de
gados à mídia e à tecnologia na sociedade experiências artísticas e consubstanciou o que
contemporânea. Glusberg chamou de um “fenômeno de arte-
Anderson vem desde o início de sua corpo-comunicação” (1987:66), que embora
carreira associando-se a artistas e músicos se apóie em formas de teatro, música e dança,
experimentais como Philip Glass, na então as retoma para desarticular seus elementos
cena alternativa do Soho, em Nova York e e se tornar outra coisa, que não é teatro, nem
seu percurso vem sendo documentado e música, nem dança.
discutido por diversos historiadores da A partir dos anos 80, com a consolidação
performance, críticos de arte e teóricos da do uso da televisão, do vídeo e de novas
cultura e da linguagem. tecnologias em suas apresentações, ao invés
Seu background familiar, suas experiên- de privilegiar a presença imediata do
cias pessoais e artísticas, os meios de co- performer, a performance passou a operar
municação, a tecnologia e a cultura ameri- frequentemente com uma presença
cana são as principais fontes de inspiração tecnologicamente mediada, como é o caso
para seus trabalhos. Sua originalidade está dos trabalhos de Laurie Anderson.
na forma como invoca reiteradamente esses Estabelecendo uma imageria visual como
elementos e os recombina, subvertendo meios parte integrante de suas performances,
e práticas, transformando-os em meios ca- Anderson ficou conhecida como uma
pazes de questionar os valores estabelecidos, “performer multimídia”, ao lançar mão de
principalmente os da cultura americana. slides, computação gráfica e outros recursos
Os trabalhos da artista se situam dentro para criar a animação de imagens que, por
do que alguns estudiosos americanos vezes, são narrativas e, por outras, simples
convencionaram chamar de contemporary fenômenos visuais. Suas criações se propõem
multimedia performance3 (MacAdams, 1996) a pensar as possíveis relações entre cultura
ou postmodern performance (Connor, 1993; e mídia na atualidade e correspondem a
Auslander, 1997), categoria típica da experimentações de linguagem na arte atra-
518 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
São esses modos de arranjo de sentido se inscreve nos limites de uma comunicação
que se organizam segundo determinados estandardizada.
pressupostos – pelos quais somos atravessa- A mensagem artística busca escapar a esse
dos e que nos constituem – que Deleuze e modelo e introduzir novidades na comuni-
Guattari chamaram de – “agenciamentos cação, questionando seu circuito. Não se
coletivos de enunciação”. São os constituindo nem na emissão, nem na trans-
agenciamentos ou modos de arranjo de missão, nem finalmente na recepção, como
sentido que denotam o caráter essencialmen- afirma Berger (1977:132), esse gênero de
te social da produção de discursos e das mensagem nunca é um dado totalmente pré-
práticas vividas em escala individual ou estabelecido, nem conta com critérios uni-
coletiva, produção esta que vai se tornar o versais de decodificação. Não se verifica aí
alvo preferido dos questionamentos da artis- uma questão de cifrar ou decifrar, de reco-
ta. nhecer ou dar a reconhecer, e sim, de criar
A arte de Anderson é essencialmente uma e comunicar, onde comunicar “é já parte de
arte que fala de seu próprio tempo e que busca um processo ativo de criação, que se efetiva
resistir aos arranjos banalizadores da mídia na medida que a corrente da comunicação
e da tecnologia na atualidade. Boa parte do se põe a atuar” (ibid).
material usado pela artista vem daquilo que É o que acredito ocorrer com a comu-
Philip Auslander denominou “cultura medi- nicação nos trabalhos de Anderson. Ao
atizada”. A noção de uma cultura mediati- hibridizar linguagens e mídias, Anderson
zada se associa ao princípio daquilo que atualiza os princípios da apropriação e da
Baudrillard chamou de “êxtase da comuni- colagem em suas apresentações para tentar
cação”, ou seja, de uma experiência social dizer o indizível no momento atual. O re-
de hiperpresença de um sistema relacional sultado não é nem música, nem teatro, nem
que se expressa pela “condição de se fazer multimídia: é uma arte de intervenção, de
parte de uma cultura que parece operar como potencialização de atos da língua, dos
um único e gigantesco sistema de informa- movimentos e das imagens, que se apóia num
ção” (Baudrillard, 1988: 24). rearranjo singular de elementos do cotidiano
Anderson reflete em seus trabalhos a e da cultura contemporânea.
preocupação com o fato de que muitos dos Assim, partindo da arte conceitual, pas-
processos comunicativos hoje parecem se sando pela fotografia, pela arte narrativa, até
colar a uma supercomunicação de fluxos chegar ao cinema, à performance, ao vídeo
instantâneos, que parecem trabalhar para uma e à hipermídia interativa, Anderson busca
repetição não criadora. Esses mecanismos – sempre justapor e conectar distintas referên-
nos quais a mensagem se apaga em favor cias, resignificando objetos, práticas e dis-
da informação e em detrimento de sua cursos. Reconhecendo a condição simbólica
qualidade de acontecimento –, produzem da cultura e da linguagem, a artista produz
apenas uma reverberação da informação em um corpo de obra que articula diferentes
si mesma e enquanto efeito de discurso. códigos, criando uma verdadeira rede sígnica,
Talvez por isso Deleuze afirme que hoje que ela, então, vai manipular e colocar a
“não sofremos da falta de comunicação, mas serviço da criação e da comunicabilidade.
de seu excesso” (Deleuze, 1992: 172). Por- Desde o início de sua carreira, por exem-
que também é feita de hiatos – e não apenas plo, é possível ver o uso de imagens de
de redundâncias –, a comunicação deverá ser aviões, desenhos de silhuetas de pessoas,
vista como modo de tornar possível o relógios, casas – cada qual fazendo referên-
questionamento do que está dado e de ins- cia a situações, estados de espírito e questões
taurar novas formas de viver, sentir e pensar. que busca discutir –, aparecerem várias vezes
Esse, o lugar onde comunicação e arte se em várias performances. Da mesma forma,
encontram. Perceber o funcionamento da co- músicas e histórias são frequentemente
municação no campo criador da arte pode recontadas e cantadas -eventualmente com
e deve fazer-nos refletir sobre as demais pequenas variações – tanto em eventos ao
modalidades de comunicação, sobretudo a vivo, quanto em álbuns e vídeos, formando
midiática, onde a linguagem frequentemente materiais com características distintas, ape-
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 521
sar de se apoiarem em elementos que são o amplifica e faz ressoar, porque não mais
invocados e recombinados constantemente. preso a uma individualidade, e sim, a um
Para Anderson, o que importa é coletivo de forças.
exatamente o uso daqueles elementos como Apoiado nessas idéias, acredito poder
leitmotifs que se relacionam semioticamente afirmar que o trabalho de Anderson é um
com questões que pretende discutir e com exemplo de agenciamento concreto desses
sensações que deseja provocar. Com esse processos singularizantes, onde a figura da
procedimento, Anderson vai formar um artista e seu trabalho formam uma abundân-
verdadeiro “banco de dados”, onde fatos e cia, um excesso criador que vaza e “engaja
objetos do cotidiano, de sua vida pessoal, da outras singularidades”. É por meio dessa
cultura americana podem ser recortados e articulação que Anderson realiza importantes
acionados a qualquer instante como blocos experimentações com as formas culturais,
de sensação e imaginação. Através da rei- estéticas e discursivas, alterando percepções
teração e do entrecruzamento desses fragmen- e produzindo novas sensibilidades. O con-
tos, Anderson parece querer produzir criar junto de sua obra forma uma espécie de
literalmente, através de músicas, histórias e solidariedade orgânica de natureza discursiva,
da tecnologia, uma ambiência discursiva feita onde os dispositivos técnicos parecem se
de imagens sensoriais, visuais, verbais e manifestar não isoladamente, mas fazendo
auditivas. engrenagem com outros tipos de dispositi-
O uso desses procedimentos indica um vos, como a narrativa e a performance, por
estilo e um projeto estético processuais, que exemplo, que, por sua vez, constituem, cada
se definem a partir de encontros e conjuga- qual a seu modo, uma máquina, um conjunto
ções, que vão, por sua vez, produzir outros de engrenagens.
cruzamentos criadores. Esses procedimentos Por esta razão, seria possível afirmar que
nos permitem pensar o trabalho de Anderson a tecnologia é uma das peças ou conexões
como uma espécie de “máquina estética”, no que formam máquina em sua máquina es-
sentido em que o entendem Deleuze e tética. Nos trabalhos de Anderson, o elemen-
Guattari (1977: 118). Concebida dessa for- to técnico se presta a uma experiência es-
ma, a arte funciona como uma máquina tética e sempre se associa à linguagem. Ao
produtora de novas sensibilidades: é esta mesmo tempo, o estético geralmente está
máquina que realiza, segundo Caiafa, “um impregnado de tecnicidade. Isso faz com que
trabalho criador com as formas expressivas objetos, instalações e performances se cons-
e abre brechas nas subjetividades padroni- tituam a partir de uma relação com dispo-
zadas, fazendo surgir singularidades” (Caiafa, sitivos técnicos que são importantes para
2000:66). produzir um efeito estético, mas, sobretudo,
Esse trabalho criador é precisamente um para efetivar certas condições de discurso.
exemplo do que Guattari (1993: 134-135) Portanto, os usos e as apropriações da
chamou de processos de singularização, tecnologia e dos discursos midiáticos feitas
processos que surgem desse poder da arte pela artista caracterizam exatamente um
de produzir rupturas nas significações domi- processo de subjetivação capaz de tornar
nantes e de sua capacidade de operar tam- possíveis novas escrituras, novas constitui-
bém transformações na própria subjetivida- ções de modo de vida não individuais, mas,
de, quando os segmentos semióticos que a coletivos. Assim é que Anderson parece tentar
constituem passam a formar novos campos neutralizar a “função-autor” em seus traba-
significacionais. lhos, apoiando-se na apresentação de fatos
A noção da obra de arte como uma corriqueiros falam de uma certa forma de
“máquina”, como um conjunto de conexões viver em sociedade e que são relatados
criadoras capazes de produzir diferença que aparentemente longe de um desejo de inter-
pode, por sua vez, engrenar-se a outros pretação e verdade.
conjuntos e fazer criar novas engrenagens Essa é, aliás, a base da estratégia que a
criativas – abole o princípio da inspiração artista desenvolveu para preservar-se da
e da criação geniais do artista. Essa idéia, super-exposição midiática e subvertê-la:
ao invés de apequenar o processo criativo, contra o excesso de uma “presença autoral”
522 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
absolutizadora, que muitas vezes é anexada assim que seu trabalho se comporta frequen-
pelo sistema e se torna despotencializada, temente como uma espécie de estratégia
teremos um despistamento dessa “presença” micropolítica de resistência, que cria ruptu-
através de formas particulares de aparição na ras nos padrões de percepção e sensibilidade
mídia, como os dummies e clones – que dominantes e produz singularidades. Buscan-
Anderson chama de “alter egos” ou “duplos”, do desembaraçar-se das grandes mediações,
que contracenam com ela em vídeo seu trabalho tem o poder – talvez por isso
performances veiculadas na TV,8 nas quais mesmo – de comprometer a verdade, na
realiza paródias alusivas à própria cultura medida em que evidencia certas constituições
televisiva. de modos de existência que podem então ser
Com seus dummies, Anderson parece repensados.
deslocar e diluir sua presença em cena, dando O importante para Anderson é narrar,
oportunidade a que uma série de outros criar, transformar, imprimir à tecnologia e à
discursos possam ter lugar. São esses duplos mediação outros funcionamentos, atravessá-
que lhe permitem descorporificar-se sem sair los com um outro desejo que não o de
inteiramente de cena e, assim, ceder o lugar representar ou fazer encaixar, mas de expe-
a outras presenças e vozes, os no bodies que rimentar, inventar, torná-los ferramentas para
Anderson invoca de suas experiências pes- a criação. Seus trabalhos demonstram como
soais e cotidianas. Ao manipular esses ele- a mídia e a tecnologia podem constituir
mentos, Anderson vai tornar-se uma persona, vetores de singularização que ajudem a nos
uma figura sempre deslocada, cuja constru- esquivar o quanto possível da lógica de
ção é parte de suas estratégias performáticas. padronização do capital e de suas instâncias
Finalmente, os usos e as apropriações da de modelização. Talvez possamos considerar
tecnologia e de elementos da mídia e da suas produções como indício provável daquilo
cultura de massa são formas encontradas por que Guattari chamou de “era pós-mídia”
Anderson para estabelecer experimentações (Guattari, 1992:16), caracterizada pela
com os elementos da cultura contemporânea. “reapropriação e uma resingularização do uso
Mas, ao mesmo tempo em que utiliza esses da mídia”. Nessa era, a mídia e suas
elementos, mantém deles uma certa distân- modelizações subjetivas, não teriam mais
cia, despistando-os sempre que necessário. pretensões de sobrecodificarem a realidade.
Essa apropriação com afastamento parece ser Ao contrário, teriam como objetivo serem
apenas um dos modos possíveis de interven- uma fonte de heterogeneidade e polifonia, de
ção num momento em que não apenas a arte novas formas de viver em sociedade.
e a cultura se mercantilizam, mas também Essa é, acredito, a maior contribuição do
a própria subjetividade. trabalho de Anderson para os estudos da
Ao utilizar a “cultura mediatizada” como comunicação: prover-nos, como sugere Suely
cenário e a mídia como objeto, Anderson cria Rolnik (1997:33), de recursos cartográficos
condições de possibilidade para se trapacear que nos permitam inventar novas formas de
com esses elementos. Ao invés de negá-los, sentir, de viver e de comunicar que estejam
vai realizar algo próximo daquilo que Deleuze mais de acordo com os desafios do momento
e Guattari (1980: 139) chamaram de produ- atual. Ao tratar das estratégias estéticas de
ção de “senhas”, ou seja, de contra-palavras Anderson, buscamos justamente evidenciar
de ordem, sob as próprias palavras de ordem. como é possível singularizar usando e ne-
Nisto consiste sua esperteza: Anderson se gociando com os recursos presentes na pró-
camufla nesse campo de forças de forma a pria cultura contemporânea e com eles
tentar despistar, mesmo que de forma revisitar o que está dado para fazer emergir
efêmera, os mecanismos modelizadores. É daí o diferente.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 523
a um leitor adulto, sendo que um dos mais Produções” propicia emprego a diversas
antigos registros históricos é a data de 30 equipes de desenhistas e roteiristas anônimos
de Janeiro, considerada como o Dia do que seguem um padrão de desenho e roteiro
Quadrinho Nacional, quando é entregue o em linha de montagem sob a marca registrada
troféu Ângelo Agostini aos melhores au- “Maurício de Souza”, a exemplo da linha
tores e revistas; isto porque, em 1869, nas Disney.
páginas da revista Vida Fluminense, na ci- Estas tiras e revistas em “formatinho”
dade do Rio de Janeiro, Ângelo Agostini primam pela ausência de símbolos, cenários
começa a publicar seu personagem fixo em ou temáticas brasileiras, os personagens são
quadrinhos de uma página, o Zé Caipora, tipos planos, não chegam a estereótipos, e
um fazendeiro simples que visita a corte do os temas simplórios dos roteiros garantem
Imperador, seguido por uma galeria como o ampla margem de leitores de todas as idades
Nhô Quim e outros. que lêem as revistas em ônibus, trens e praças
Marcados pela charge política surgem a título de passatempo e entretenimento, e
autores cuja obra prima pela crítica de cos- seus risos demonstram o acerto da equipe
tumes e o regionalismo ou mesmo um acen- Maurício que conhece muito bem o nível
tuado bairrismo; sendo um registro histórico, intelectual e emocional dos seus leitores.
foram verdadeiros cronistas de sua época O lucro em merchandising de brinque-
autores como J. Carlos no Rio e suas dos, jogos, produtos de higiene infantil e todo
“Melindrosas”, ou Belmonte em São Paulo tipo de publicidade mantém os lucros e ajuda
criticando Hitler, até Henfil denunciando a a exportação das tiras para diversos países.
ditadura militar com seus quadrinhos já clás- Ao mesmo tempo a editora Abril, pos-
sicos, os Fradins, estes bem menos datados suidora de um enorme parque gráfico, ad-
e alcançando uma dimensão mais atemporal. quire direitos de produção dos desenhos
Esta predominância do aspecto adulto e
animados, séries de televisão ou esportistas
politizado não cerceou o surgimento de obras
populares e produz HQ comercial visando o
infantis como o trio Reco-reco, Bolão e
consumidor infantil ou de mentalidade sim-
Azeitona do autor Luiz Sá na revista infantil
plória e baixa expectativa ou nula exigência
O Tico-Tico, por volta do ano 1905-1907.
de qualidade, feita por equipes anônimas.
Até então, a produção é marcadamente
Assim surgem revistas em formato pequeno
autoral e pessoal: é quando começa a esbo-
(formatinho) e baratas, com tiragens
çar-se uma indústria da HQ, e a partir do
astronômicas nunca exatamente reveladas,
surgimento da produção em linha de mon-
mas que alegam ser de 200 mil exemplares.
tagem pode-se perceber o surgimento de
padrões, os quais podem ser agrupados em São títulos como: He-Man, Xuxa, Os Tra-
duas categorias: 1-Comercial e 2-Autoral. palhões, Seninha, etc...
Toda esta produção oscila conforme a
2.1. Comercial audiência (ou sucesso do esportista) e tem
o objetivo despretensioso de entretenimento
Foi no decorrer da ditadura militar, ao passageiro, tendo os títulos vida muito curta.
término dos anos 60,que começaram a surgir Não pode-se omitir também a existência
as tiras de jornal do gênero infantil de de um incomensurável mercado de HQ
Maurício de Souza em São Paulo, que ateve- pornográfica que dá emprego a centenas de
se à oportunidade de produzir desenhos desenhistas trabalhando sob pseudônimos em
animados com seus personagens para publi- dúzias de títulos sem qualidade ou periodi-
cidade de molho de tomates enlatado, e estes cidade e com uma distribuição irregular, sem
comerciais de televisão trouxeram notorie- nome da editora ou endereço (sobre este tema
dade e sucesso às revistas da Turma da específico com maiores detalhes e aprofun-
Mônica que superam até mesmo a linha damento ver meu artigo: “As Histórias em
Disney em vendas, um fenômeno presente Quadrinhos do Gênero Erótico”. In: Revista
até os anos 90-2000 no mercado brasileiro. Brasileira de Ciências da Comunicação. São
A indústria de “Comic Strips” cuja de- Paulo, INTERCOM, v. XXI, nº 1, jan/jun
nominação comercial é “Maurício de Souza 1998. p. 53-62.).
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 527
A HQ assimila toda uma tradição histó- uma estrutura rica e desafiadora com dese-
rica de narrativa em imagens que remonta nho expressivo (meio mangá, meio
aos pictogramas das cavernas, aos hieróglifos caricatural) e diagramação planejada como
egípcios com texto e ilustração juntos, à Via movimentos de câmera (enquadramentos)
Crucis das paredes das igrejas da Idade cinematográficos e uma composição de pran-
Média, com o texto saindo da boca dos santos cha por vezes sem uma única linha de lei-
(filactera, o avô do balão),etc.. tura, coordenada ou paratática.
Tal evolução das Artes Visuais é assimi- Um fator por si só comprobatório das
lada pela HQ, cujo baixo preço de custo e características autorais da HQ brasileira é o
velocidade de produção permitem a realiza- reconhecimento internacional de diversos
ção de experiências gráficas como os planos autores, e uma amostragem aleatória demons-
gerais/panorâmicas de um “Little Nemo” e tra esta história recente:
a narrativa de um Will Eisner, cujo movi- Jô de Oliveira, adapta a linguagem
mento de câmera antecede o “Cidadão Kane”, gráfica das xilogravuras que ilustram os
de Orson Welles. livretos populares de literatura de cordel
Caminhando junto com o cinema, influ- nordestinos, e em 1973 publica na revista
enciando e sendo influenciada por todas as Linus (Itália) sagas de cangaceiros e do
artes, fazendo parte da Aldeia Global, a HQ folclore que envolve o já mítico Lampião,
alcança a maturidade estética ao tratar dos angariando diversos prêmios e sendo publi-
grandes temas e anseios da humanidade, cado em álbum no Brasil.
refletindo o humano do seu autor - que Sérgio Macedo, nascido no estado de
encontra eco no humano leitor que se iden- Minas Gerais, migra para a cidade de São
tifica, emociona-se com a obra. Caetano (Grande São Paulo) em 1970. Já em
Um ser humano comunicando-se, reve- 1972 publica pela revista Grilo seu álbum
lando-se, encontrando-se com outro ser Karma de Gaargot para em 1974 emigrar para
humano. Isto é a suprema emoção estética. a França, onde publica em revistas como
Isto se sente ao ler um livro de autor, Métal Hurlant e Linus, depois na americana
ao ver um filme de autor, ao ler um qua- Heavy Metal, raras vezes publicado no Brasil,
drinho de autor. desenvolve uma visão pessoal do misticismo
Ao ver o nome de Fellini ou Kurosawa, índio que mescla com ficção científica em
já se sabe o que terá no filme, os temas que um estilo personalizado a cores vivas em
preocupam o cineasta. O mesmo acontece ao aerógrafo.
se lerem na capa do álbum os nomes de Cynthia e Ofeliano, do Rio de Janeiro,
Moebius, Crepax, Manara, Eisner, Miller. publicam a série de aventura Leão Negro em
Este quadro proposto por mim serve como tiras no Jornal do Brasil e em 1990 em álbum
parâmetro para classificar as características colorido pela editora Meribérica de Portu-
da hq autoral ou de Arte, diferenciando-a da gal, para em 1996 saírem na coletânea
comercial feita anonimamente: Brasilian Heavy Metal. Misturam harmoni-
Estes dez itens não são fixos. Pode-se osamente elementos de traço europeu com
encontrar um quadrinhista que tenha todas recursos do Mangá japonês e dos Role
as características de arte publicando em Playing Games.
revista de banca ou diagramando tiras em Em 1990 a agência belga Commu recru-
jornais. ta desenhistas de diversos estados para
O que identificará, caracterizará o Qua- publicar álbuns na Europa, versando sobre
drinho de Autor é o estilo, o toque pessoal os bandeirantes paulistas que cruzam a linha
do autor refletido nos temas, na psicologia do tratado de Tordesilhas, lendas indígenas,
dos personagens e na estrutura narrativa. aventuras sexuais no Carnaval, fantasias
O Quadrinho adulto é inteligente, com- futuristas sobre o Rio de Janeiro e a floresta
plexo e sofisticado, exige um público ma- amazônica, etc.. Autores consagrados nas
duro e um quadrinhista competente, que saiba revistas de sexo explícito em quadrinhos no
escrever bons roteiros, com argumentos que parque industrial do eixo Rio-São Paulo são
sobreponham vários núcleos narrativos (ro- editados em álbuns pessoais e autorais,
mance, novela), arquitetados e articulados em como:
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 529
charge e cartum dos jornais para divulgar uma que muitos destes são universitários que
tira bairrista como a Escola Paulistana de cursam pós-graduação e participam de con-
Humor, outros sujeitam-se a desenhar super- gressos, realizando pesquisas onde unem a
heróis cobrindo férias dos americanos ou teoria à prática.
desenhando HQ comercial baseada em es- De todo o universo dos quadrinhos bra-
portistas ou programas de televisão, ou ainda sileiros, cerca de 70 autores profissionais e
expor-se como curiosidade mórbida à mídia de fanzines participam da coletânea
rotulando sua própria obra como arte-tera- Brazilian Heavy Metal, dando um panorama
pia, ou desenhando sexo explícito. da produção brasileira nos anos 90.
Porém, centenas de fanzines atuam como Futuras pesquisas poderão detalhar me-
resistência cultural em um movimento alter- lhor este horizonte do quadrinho brasileiro,
nativo que chega a ter distribuidoras atuando identificando os padrões dos estilos autorais
pelo correio, e deste universo surgem autores e as redes de influências internacionais destes
com uma obra autenticamente autoral, sendo e outros autores.
532 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
vem, «ainda não» determinado (é isso que no instante plástico. A apresentação plástica
significa a passibilidade: se suster pela indica apenas que alguma coisa existe. A
meditação), sem o pré-julgar nem apreender7. simplicidade dos elementos manifestados
Desta atitude, desta inquietação diante de uma neste quadro corresponde à categoria do
realidade que requer ser tratada como uma sublime, isto é, a expressão pictórica é uma
mensagem obscura enviada por uma instân- testemunha do inexprimível (The sublime is
cia desconhecida, ou mesmo inominável, vai now). Um quadro de Newman diz respeito
nascer o génio: «uma natureza que actua no a este inexprimível enquanto ocorre na
próprio espírito»8. Mas como? Testemunhar determinação da arte pictural, dado que a
um acontecimento não é um poder do pen- matéria cromática, a sua disposição, faz
samento que aparece como primeira «causa» sentido por si, sem remeter para outra coisa
de explicação de uma inquietação e que e sem aceitar o seu plausível sentido15.
implica a capacidade de memória e de re- Se, portanto, o tema mais importante
tenção. Um acontecimento não é um objecto sobre a apresentação plástica é o tema
determinado (válido enquanto «causa» da «acontecimento», a irrupção deste tema vem
questão). O seu sentido não está nem no é sobretudo pôr em causa as tendências
pensamento nem à frente dele, mas para além gramatológicas do pensamento. Que terá
dele, na apresentação que o acontecimento provocado este acontecimento à inscrição?
de si fizer. E porquê? O acontecimento, diz Lyotard explica-o no texto Conservation e
Lyotard: «é a presença enquanto algo não couleur cuja temática abarca a inscrição.
apresentável ao espírito»9. Nihil, nada, ne- Trata-se de uma reflexão inspirada na pro-
gação, para o pensamento10. blemática da matéria pictórica conservada
Em apoio desta ideia de a arte implicar como obra museológica. Logo na abertura
uma passibilidade do acontecimento (dada na a tese é posta em evidência: «’Inscrição’
resposta do expressionismo abstracto: o tempo significa que a coisa pode passar, não pode
é o próprio quadro), Lyotard faz referência não passar, permanecendo ali todavia os sinais
aos trabalhos de Barnett Baruch Newman11. que mostram que existiu. E, quando dizemos
Não é porém isolada a sua investigação levada que ‘permanecem ali’, pressupomos com este
a cabo entre os anos 1940 e 1970. Confron- ‘ali’ a salvação que qualquer memorização
ta-a com as transformações do dadaísta espera do espaço»16. O espaço, inclusivamente
Duchamp – propriamente, a relação/não- o espaço colorido, um quadro, permanece na
relação de um acontecimento e a sua figura.– sua posição, ou aquando da operação do opus,
Le Grand Verre, por exemplo, não é nem convertido em signos, transformando, pelo
figurativo nem não-figurativo, mas dado que seu arquivo que resiste ao tempo, uma
apresenta uma figura que não pode ser conservação de signos, o olhar do observa-
intuída, figura o infigurável12. Trata-se de dor sobre a cor no substituto. Pressupondo-
fazer a crítica de uma obra que se inscreve se como um museu de signos, transcrevendo
entre o ainda não (La Mariée) e o já não e mantendo o que então foi dito e pensado
(Étant donnés) temporal13. Nos quadros de de outras vezes para outrora, o espaço «passa»
Newman aparece a imagem aqui-agora (a sua uma actualidade do novo em função da
apresentação essencial): o dizer fundamental repetição, do seu património cultural, da sua
é o dizer aqui estou, liberto de modo de- comunicabilidade e da sua reserva. Mas há
finitivo do dizer vê isto, a narração14. O dizer também nele um inacabamento, esse entretien
fundamental é o dizer do infinito, do abso- infini (Blanchot) que define a transmissão
luto, de uma diferença, e que se simbolizará como espaço do tempo presente ou vivo que
como criação artística por intermédio por a inscreve no futuro, ao diferido (Derrida),
vezes até da tela inacabada. O quadro é um à difusão. Inscrever é, assim, retomar espa-
espaço orientado para a ideia de começo ços-tempos, transportando nesse retorno o que
segundo uma apresentação que não apresen- de separação entre o acto e a sua passagem
ta nada, é uma apresentação negativa, uma à reserva faz o arquivo, a escrita, a técnica.
apresentação a partir do princípio de que algo Se estamos sempre e em todo o lado
será possível, tem lugar, sendo o quadro o diante do diferido, se a cultura é sempre uma
meio desse lugar, onde acontece, condensado arquivologia (Stiegler), é porque um meio
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 535
algo expõe da obra espontânea, dessa relação do componente clássico da pintura, o dese-
deslocada entre o espírito e o tempo e o nho (Dioptrique de Descartes), para a linha,
espaço desde o opus, seja qual for o meio a cor, o relevo, a profundidade, o movimen-
onde a obra tem lugar. Em relação à ins- to, o contorno19. A «estrutura do aconteci-
crição da obra como organização espacio- mento»20: «O começo do traço estabelece,
temporal a título de repetição e transmissão instala um certo nível ou modo do linear…Em
na concepção da função de um museu, relação a ele, toda a inflexão que segue terá
Lyotard mostra alguma reserva na exigência valor diacrítico, será uma relação a si da linha,
que tem de levar a obra de volta à situação formará uma aventura, um sentido da linha»21.
original. Já a reserva que o aspecto de Linha-forma. A percepção estética que o
arquivo, o dispositivo, ultrapasse, na expo- artista traça num entrelaçado de linhas equi-
sição das obras, o aspecto do diferido é vale a um pensamento: um pensamento será
completa17. uma percepção estética, designa, assim, o ser
A exposição escrita de Diderot (Salon, nas suas surdas operações. O ser visa-se,
1767) – em que a reflexão de Lyotard se justamente, nas estruturas de carácter
inspira – das paisagens pintadas por Vernet perceptivo que apresentam o enigma da
simula esse meio por onde se «passa»: o visibilidade. Dele resulta uma apresentação
passeio fictício na paisagem das cores com sem conceito do ser, apresentação imediata22.
o Abade abre, por escrito, as superfícies dos L’oeil et l’esprit é uma reflexão que segue
quadros como se fossem as portas de uma na direcção indicada pela descrição da pas-
exposição. A cor move o olhar, acontece sividade da síntese perceptiva introduzida por
diante do olhar, mas também é uma paisa- Husserl: oposta ao procedimento de origem
gem que o olhar não domina. A escrita torna- racional na Dioptrique de Descartes, em que
se paisagem da cor porque lhe damos um o cogito concebe o visível segundo o modelo
lugar no nome, desarmamo-la do olhar. O que a si se dá: «vidência que nos torna
que faz uma cor é a presença material que presente o que está ausente»23. Portanto a
subtrai a intriga dominada e afecta o sen- pintura em Descartes não é um meio que
timento: não é, assim, a forma ou figura determina o ser, é, antes, um meio simbólico
apresentada numa disposição inteligível ou da evidência do cogito de um espaço sem
sensível que faz a cor18. Porque aqui a estética restrição, profundidade ou espessura. Espaço
da matéria é anterior à da forma: o que se que a perspectiva ensina a produzir. Daí, a
apresenta é anterior e suspende o que se quer pintura é um artifício que organiza a ilusão
apresentar: a libertação também sentida pelo de uma forma verdadeira das coisas. Em
observador. Por isso, o que o museu expõe Descartes a visão é pensamento ontológico.
é a própria matéria cromática: o amarelo do Com Merleau-Ponty as elaborações
Delft de Vermeer, por exemplo, pendurado perceptivas feitas pela pintura são elabora-
no museu de Mauritshuis, na Holanda, de- ções sintéticas, partindo de um entrelaçamen-
volve a presença para si mesma como de- to, troca, reciprocidade, entre coisas e corpo:
fecção do lugar que tem (não tem, pelo facto «elas estão incrustadas na sua carne»24. Para
de recorrer à presença). Como acontecimen- compreender a visão, o corpo deve passar
to, não como quadro. E acontecimento in- da carne de sentinte para a de sentido. Esta
visível porque Cézanne, diante da sua comunicação supõe um acordo sobre a
montanha, o que vê é o seu próprio limite. definição das coisas e do corpo: «o mundo
O que testemunha Cézanne? Para é feito do mesmo estofo que o corpo»25. O
Merleau-Ponty, em L’oeil et l’esprit, Cézanne que quer dizer que o corpo que vê aparece
o mínimo que requer do acontecimento é a como corpo que é visto e a visão devém
percepção de pequenas diferenças, da mu- visível por si mesma. Uma visão de tipo
dança – a cor, a linha, a luz, o espaço. Esta ontológico activo passivo. Efectivamente, é
posição dita que o acontecimento não resulta o sentir que manifesta o estofo (a carne) quer
de uma mediação, mas que a procura. Como ao que vê, quer ao que é visto. É ele que
«pequena sensação» (José Gil). A única desempenha na visão o papel do traço de
preocupação do pintor é, pois, a de um meio união: o que remete o espírito para a passivi-
que tem que ver com o incomensurável: fuga dade, o desapossa da sua autonomia própria,
536 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
– é um som, criado a partir do «tempo de que a audição se torna uma refém) da rede
acontecimento sonoro» (que não se ouve)35. A que liga a escuta à pertença: é da obrigação
obra musical pode transmitir esse tempo so- (Lyotard diz: «de uma passividade que
noro porque o transmite com um conceito – gostaria de traduzir por passibilidade»)36 desta
o conceito da encarnação do som na tecnologia. escuta que ouvimos sons, melodias ou har-
Inserida numa tecnologia do som e do monias de acordo com uma música enigmá-
impensado-som, numa anamnese, a experi- tica37. Assim não há arte tecnológica que se
ência estética do som, como escuta, proce- não funde em pressupostos ontológicos, o da
dendo como campo de apresentação, acaba doação, que é uma comunicação do espaço-
por engendrar um sentimento através do som. tempo invisível, o inaudível. Isto é válido
Nos termos de Lyotard, nesse caso julgar de para a música como para a pintura, as duas
forma determinante deixa de ser diferente de artes temporais (L’Acinéma é dedicado a outra
julgar de forma reflexionante. Podemos ligar arte temporal importante, o cinema). É a
à arte a ciência – a crítica da representação defecção do espírito que dá lugar a uma
do som e abertura do campo sonoro. O que estética de «antes» da representação da forma,
faz a Tonkunst essencialmente energética, ao a que Lyotard chama alma – alma mínima38.
contrário da Musik, que se inscreve numa Esta alma, diz: «Longe de ser mística, é, de
atenção ao quadro musical, à forma musical. preferência, material»39. Concluindo, o que
Nesta perspectiva, as músicas são correspon- está no princípio da sua estética da presença
dências (na teosofia swendenborgiana a material antes da visão das formas é o que
música é uma convocação de uma voz de resume o som.
538 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
4
Bibliografia Abismo que Casimiro de Brito concretiza
no seguinte fragmento: «Escrever como quem pinta
(…) refazendo a cor desfazendo a matéria sonora
Adorno, Theodor, 1993, Teoria estética
com novos afluentes do mesmo rio (…) a me-
[1970], trad. Artur Morão, Lisboa, Ed.70. mória do país silencioso (…) a nuvem de pedra
Barthes, Roland e Havas, Roland, 1987, que se instala nas cavernas vorazes da noite (…)
«Escuta» in Enciclopédia Einaudi, Vol.11, a ciência circular do poder, palavras infectas que
Oral/Escrito, Argumentação, TRAD. Teresa não sei manipular (…) um homem de palavras
não é um homem de mão (…) um rio sem margens
Coelho, Lisboa, IN-CM.
como se o tempo (a respiração) não existisse (…)
Blanchot, Maurice, 1984, O livro por vir nómada viagem imóvel ao interior de ilhas sem
[1959], trad., Lisboa, Relógio d’Água. memória (…) inesperado sul surdo (…) alimento
Brito, Casimiro de, 1982, «Da poesia: ars quem me alimenta (…).» (Casimiro de Brito: 1982,
combinatoria – fragmentos de um diário» in p.27, fragmento 12 citado tal qual).
5
Cadernos de Literatura, Centro de Literatura Alberto Pasquinelli: 1983, p.47, cita Carnap:
«A parte do labor filosófico que pode ser con-
Portuguesa da Universidade de Coimbra, siderada de natureza científica… não é senão a
nº12. análise lógica».
Deleuze, Gilles, 1980, Mille Plateaux, 6
Marta, minha filha, na idade de 3 anos: «Se
Paris, Les Éditions de Minuit. está escuro, o meu dói-dói está no meio do escuro.
Descartes, René, 1996, «Dioptrique» Se está dia, o dói-dói está no meio do dia. (Está
escuro!) Vês o meu dói-dói? Não vês!»
[1637] in Oeuvres de Descartes, Vol.VI, Paris, 7
Lyotard, op.cit., p.85.
Vrin, pp.79-228. 8
Ibidem, pp.84-86.
Gil, José, 2001, Movimento total, o corpo 9
Ibidem, p.154.
10
e a dança, Lisboa, Relógio d’Água. Ibidem, p.25. A diferença que se nega a
Lyotard, Jean-François, 1988, L’Inhumain, Derrida, a nomadização de Deleuze ou o eu de
causeries sur le temps, Paris, Galilée. Lévinas podem ver-se numa perspectiva «herme-
nêutica» que seja a audição dessa passibilidade
1990, Duchamp’s trans/formers [1977], do pensamento com o acontecimento, outra forma
trad. I.Mcleod, Venice, The Lapis Press. de aproximação ao tempo.
1992, Peregrinations, ley, forma, 11
À sua poética plástica e à sua ensaística.
12
acontecimientos [1988], trad. Maria Coy, Ibidem, p.90; Idem, 1990, p.87.
13
Madrid, Ediciones Cátedra. Idem, 1988, p.91.
14
Ibidem, p.92.
1998, Moralidades Postmodernas [1993], 15
A interpretação da determinação pictórica
2ª ed., trad. Agustin Izquierdo, Madrid decorre fundamentalmente de elementos religio-
Tecnos. sos hebraicos, desde a Paixão de Cristo que é o
2002, Discours, Figure [1971], 5ª ed., sinal do necessário recomeço, e, ainda, desde Adão
Paris, Kliencksieck,. ou Abraão. Na Paixão de Cristo (Bíblia) diz-se
que o desespero da pergunta de Jesus crucificado
Merleau-Ponty, Maurice, 1964, L’œil et a Deus atormenta os que o adoram, quer dizer,
l’esprit, Paris, Gallimard. é a pergunta original. A tela Be (sê) é a única
Pasquinelli, Alberto, 1983, Carnap e o resposta ouvida, retomada com os títulos Be I e
positivismo lógico, trad. Armindo José Be II. O risco rectilíneo nos quadros e as cores
Rodrigues, Lisboa, Ed.70. colocadas sobre uma superfície como se fosse o
universo são uma representação para conotar os
silêncios de Deus. Qual é o silêncio que se anuncia
sob a imagem de Broken Obelisk? A ponta virada
_______________________________ do obelisco toca o cimo da pirâmide, é o dedo
1
Universidade da Beira Interior. de Deus que tocará os que acolhem o desconhe-
2
Lyotard: 1988, p.92. cido. O meio em que se terá a tarefa ontológica
3
A problemática dos constituintes mínimos é o aqui e agora do quadro. Esta representação,
do espaço do quadro opera no declínio da ideia que se tornou uma preferência para significar o
clássica de espaço do quadro como espaço de texto choque da ocorrência no judaísmo, inspira-se no
(Greimas), com uma organização pragmática: sublime – este sentimento contraditório que a
mensagem, destinador, destinatário, referente (ins- vanguarda abstracta caracteriza recua ao antigo
tâncias responsáveis por um processo de comu- Dionísio Longino e ao modernismo de Edmund
nicação). Burke e Kant, de modo particular.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 539
16 30
Ibidem, pp.157-158. Lyotard, op.cit., p.179.
17 31
Ibidem, p.118: «Loucura devida a um Ibidem, p.188: «existe um minimalismo do
esquecimento ontológico: omite-se que o que muito complexo… Além do mais existe um
acontece é diferido e separado, que lhe pertence conceptualismo inevitável, até na escrita de obras
o esquecimento… Esquecer este esquecimento é ‘pobres’, feitas de ruídos obtidos a partir da
a sua maior ameaça». Trata-se de fazer saber do percussão de quaisquer objectos: o ‘indefinido’
secreto desejo de remissão que encena o «museu [qualunquisme] sonoro exige a maior reflexão e,
imaginário» de Malraux: «a escrita da escrita, o por vezes, uma verdadeira axiomática.»
32
artístico do artístico» (123), concretamente, o facto Ibidem, p.179: «…(digo destinação para
ontológico da autografia, a arte reduzida ao valor retomar um termo que cobre a área da reflexão
de si mesma. dita estética desde Kant até Heidegger)…».
18 33
Ibidem, p.151: «Já que a ideia de uma Ibidem, p.181: «O ritmo é devolvido à única
concordância natural entre a matéria e a forma escuta imóvel que podemos então qualificar de
está em declínio… a aposta das artes, sobretudo interior.» (Ib.): «Daí o interesse das coreografias de
da pintura e da música, só pode ser a de apro- Merce Cunningham, sobre ou ao lado das músicas
ximar-se da matéria». Oposição ao tema de John Cage. O ritmo sonoro não se inscreve nas
aristotélico da matéria e da forma: a matéria é capacidades ‘naturais’ ou ‘culturais’ do corpo. O
um poder concebido enquanto potencial, enquan- domínio deste último sobre o ‘seu’ espaço (ou o
to estado indeterminado da realidade, a forma, inverso), por meio de movimentos, é desconcerta-
segundo o seu modo de causalidade, é pensada do». Resta ver o que desencadeia as séries de gestos
como acto que figura o poder material. Este de Cunningham: «Perante o vazio está só, de uma
dispositivo metafísico é colocado sob o regime solidão que o arranca para fora de si. Está só e fora
do princípio de finalidade. de si. O seu gesto vai na direcção dos outros corpos.
19
Descartes: 1996, p.113: «um pouco de tinta Como dançar esse gesto? Como fazer? ‘Fazendo-
deitada sobre um papel» é um artifício do espaço o’, diz Cunningham» (José Gil: 2001, p.29).
34
em si. Representa-nos o que veríamos propria- Ibidem, p.183.
35
mente em presença das coisas. Ibidem, p.184.
20 36
Merleau-Ponty: 1964, p.61. Ibidem, p.190.
21 37
Ibidem, p.74. Roland Barthes: 1987, p.144-145: «o que
22
Ibidem, p.52. Podemos ver aqui uma es- normalmente se ouve (…) não é a presença de um
tética das qualidades puras à maneira do Filebo, significado, objecto de reconhecimento ou de
como nos ensina Deleuze (1980, p.376-377): há decifração, é a própria dispersão, o jogo de es-
um segredo de um devir que o meio contém, o pelhos dos significantes, incessantemente reproposto
que o faz funcionar como arquétipo e ser um por uma escuta que os produz incessantemente, sem
género de reminiscência. fixar nunca o sentido: este jogo de espelhos chama-
23
Merleau-Ponty, op.cit., p.41. se significância (distinta da significação): ao ‘es-
24
Ibidem, p.19. cutar’ um trecho de música clássica, propõe-se ao
25
Ibidem, p.21. ouvinte que o ‘decifre’, ou seja, que reconheça
26
Roland Barthes: 1987, p.142: «A partir desta (servindo-se da cultura, da atenção, da sensibili-
deslocação (que não deixa de lembrar o movi- dade) a construção, tão codificada (pré-determina-
mento de que provém o som) surge ao psicana- da) como a de um palácio em dada época. Mas
lista como que uma ressonância que lhe permite ao ‘escutar’ uma composição (…) de Cage, escuta-
‘orientar o ouvido’ para o essencial: o essencial se um som a seguir a outro, não na sua extensão
aqui é não perder (e fazer perder ao paciente) o sintagmática, mas na sua significância bruta e como
acesso à insistência singular, e extremamente que vertical». Apreciação análoga na pintura
sensível, de um elemento prevalecente do seu (Lyotard: 1988,153): «O que está assim em jogo,
inconsciente». A escuta do psicanalista consiste na tarefa de pintar não é, de modo algum, cobrir…
neste ouvir o inconsciente do outro e ela só existe o suporte… A aposta é pelo contrário, começar ou
com a suspensão do escudo teórico: «navegação tentar começar, aplicando um ‘primeiro’ toque de
feliz, infeliz que é a da narrativa, o canto já não cor, deixar chegar outro e outro matiz, deixando-
imediato, mas contado» (Blanchot: 1984, p.13). os associar-se segundo uma exigência que é a sua
A escuta que se revela na teoria deixa de ser e que deve ser sentida, não ser dominada».
38
imediata para ser diferida. Lyotard, op.cit., p.169: «Representa-se sem
27
Lyotard: 1992, p.36 continuidade, sem memória e sem espírito (nem
28
«L’obedience» (idem, 1988, pp.177-192) imagens nem ideias) com o objectivo de limitar
baseia-se neste sinal aberto sobre a técnica da arte, ao mais possível o mistério da sensação...somente
que se pode ver em Adorno: Filosofia da Nova quiçá uma arqui-epochê da sensação pudesse
Música e Teoria Estética. enunciar essa proposição.»
29 39
Adorno: 1993, p.95. Ibidem, p.163.
540 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 541
1. Habitar a palavra significa permanecer decompunha em fragmentos que por sua vez
dentro dela. Corresponde a uma miniatu- se fragmentavam, e nada se deixava possuir
rização do sujeito dentro do espaço que esta por um conceito. As palavras isoladas na-
ocupa. O espaço que ela descreve. Significa davam à minha volta; coagulavam e eram
alojar-se nela, ocupar o tempo todo em ela, olhos que me fixavam e sobre os quais era
não com ela. Morar lá. Quer dizer: demorar- forçado a fixar os meus: remoinhos que me
nos em ela. Isto não corresponde a uma dão vertigens quando neles mergulho o olhar,
mudança de perspectiva, de deslocação do que giram incessantemente e através dos quais
lugar de tematização. Àquela, por certo, se chega ao vazio»2.
pertence sempre uma mudança na percepção Esta experiência coloca-nos frente a duas
do mundo, mas não uma alteração do mesmo, aporias irresolúveis desde o ponto de vista
daquilo que permanece de fora. O mundo teórico. Primeiro, ou nos encontramos de tal
permanece. Demora-se. forma afastados da linguagem, que unicamen-
Habitar a palavra, significa, antes, vol- te a vemos como veículo. Posição
ver-se para dentro da própria perspectiva. Não diametralmente contrária à que anteriormen-
querer sair, demorar-se nos espaços que esta te descrevemos. Aí tudo é exterior, perma-
marca, delimita. Resumindo: elisão de toda necendo o nosso olho – ainda que falsamente
a intencionalidade. Isto constitui, precisamen- – como um limite da realidade. Claro que
te, o que filosoficamente cabe no vocábulo aí já não importa como dizer, apenas nos
indizível. Tudo o aquilo para o qual não entretemos em tentar apresentar o que está
encontramos uma palavra que emprestar, que aí, o objecto. Neste ponto, encontramo-nos
se manifesta inexpressável – ou que parece no domínio instrumental da utilização da
não encontrar expressão alguma –, não linguagem, onde perdura uma certeza
permanece fora dos limites da linguagem: inviolável: seja o que for, não conseguire-
habita em ela. Ou melhor, o indizível cons- mos nunca comunicar. Permaneceremos no
titui-se no limite das possibilidades do dizer, domínio simples da apresentação. Por outro
a saber, na experiência desses limites. Por lado, a linguagem ensina-nos o não esgota-
isso ele é assinalável. Existente. Ele aparece mento do querido dizer nas formas possíveis
sempre como uma possibilidade estética. O de o dizer. Remete-nos para os limites dessa
indizível corresponde ao estranhamento com experiência, por certo, os limites da expe-
que nos surpreendemos em a linguagem ao riência mesma. Isto é, alude às possibilida-
tentar comunicar algo. A que se deve esse des últimas que ela mesma nos oferece. E
estranhamento? Às possibilidades que nos sem prejuízo: nela somos obrigados a encon-
oferecem os modos de dizer. Mas no não trar-nos. Não há exercício da linguagem que
esgotamento destes. Essa estranheza devém não corresponda, também, a um encontro
angústia no momento em que os modos de connosco. Jacques Derrida é claro sobre este
dizer, na comunicabilidade, nos surgem ponto: «a auto-afecção é uma estrutura
dotados com o mesmo valor. Qualquer palavra universal da experiência. Todo o que é vivo
sobra na expressão; toda a palavra se ma- tem a potência de auto-afecção. E somente
nifesta deficiente. Ou calamos ou falamos um ser capaz de simbolizar, quer dizer, de
indefinidamente. As hierarquias derrubam-se, se auto-afectar, se pode deixar afectar pelo
qualquer forma é legítima, apresenta-se como outro em geral. A auto-fecção é a condição
legítima. O emudecimento de Lord Chandos, de uma experiência em geral»3. Aí, a dis-
na célebre carta de Hugo von Hofmannsthal, tância relativamente ao querido dizer –
corresponde a essa perplexidade: «tudo se imagine-se uma infinidade de ‘objectos’ – é
542 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
de tal forma ínfima, que sucumbimos no uni- pois corresponde, de princípio, a um único
verso de significação para o qual nos qui- indivíduo –, que se abra em direcção ao seu
sermos remeter: o outro. Na síntese que a centro, quer dizer, em direcção ao silêncio.
palavra nos apresenta, não está dada a soma E nisto consiste o movimento da leitura:
das suas partes: ela é menos do que isso, penetrar-nos pelo discurso, habitar, no modo
não chega. Mas na mínima distância que pro- de dizer, nas palavras fixadas, o querido dizer:
voquemos, emergirá dela essa síntese como aquilo que não se deixa apreender. Entre leitor
diferida: a palavra é mais, agora. Devolvida e autor, estabelece-se como que um elo
a nós, extravasa aquilo que se quis dizer. Esta mágico. Ao ensejo do primeiro, corresponde
tensão estabelecida entre o excesso e o defeito uma exigência do segundo: saber que as
da palavra, no querido dizer, abre as portas palavra se lhe dirigem, dar conta disso: «[…]
do silêncio. E neste, no emudecimento, a as palavras, os livros, os monumentos, os
necessidade de o fazer calar, de o anular. símbolos, os risos são apenas caminhos desse
E é no silêncio (e da necessidade de a ele contágio, dessas passagens. Assim, não so-
nos juntarmos) de onde ressurge, novamente, mos nada, nem tu nem eu, junto das palavras
a palavra. Aquilo que aqui chamamos «ha- ardentes que poderiam ir de mim para ti,
bitar as palavra». Insuficiência e simultane- impressas em uma folha: pois eu só teria
amente excesso diante da experiência que a vivido para escrevê-las e, se é verdade que
funda. Quer dizer, insuficiência da palavra, elas se endereçam a ti, tu viverás por ter tido
excesso de experiência. a força de escutá-las»7.
Aquela experiência não pode ir mais além 2. A tensão que acima descrevemos,
da linguagem. Semelhante suposição afirma- existe, de forma absoluta, num texto de
ria a existência de um pensamento fora dos Bataille A experiência interior. Mas isso não
limites da nossa linguagem, o que sem se dá de uma forma velada, como seria de
qualquer esforço acrescido se manifestaria esperar. Pelo contrário, ela emerge como a
como uma contradição. De facto, não há sua condição de possibilidade, como a sua
pensamento sem (fora) linguagem4. A estru- origem. Desde o início desse texto, logo a
tura do pensamento é, necessariamente, partir da primeira linha, somos alertados de
logocêntrica. Toda a experiência, bem como que todo o esforço que aí se realiza tem uma
todo o pensamento, se efectivam em a lin- motivação ruinosa: procura purgar-se a si
guagem. O silêncio mostra-se, desta forma, mesmo. A sua única razão: mostrar que o
e a despeito da sua estrutura ambígua, como querido dizer do texto é, precisamente, a
uma possibilidade de linguagem. Ou cons- tensão que abre todo o exercício do pensar,
titui-se como uma luta em a linguagem, ou todo o exercício linguístico: a de narrar o
como um reenvio da linguagem a ela mes- inenarrável, a de comunicar o indizível.
ma: «O silêncio é uma palavra que não é Experiência, porque vai até aos limites do
uma palavra, e o sopro um objecto que não possível do homem. Porque se abre à auto-
é um objecto»5. De qualquer das formas, o afecção e à diferença, para utilizarmos con-
silêncio permanece também por entre as ceitos de Derrida. Disso Bataille nos quer
palavras. O silêncio, por assim dizer, habita dar conta. Interior, porque a própria expe-
todo o discurso. Por isso, podemos afirmar riência deve, necessariamente, habitar a
que todo o movimento de leitura é eterno, palavra, diferi-la, reconduzi-la a si. Silêncio
infinito. Mas também é o da escrita, exac- que foi quebrado para que volte a emudecer,
tamente pelas mesmas razões6. Nesta encer- mas na leitura. Interior, porque permanece
ramos o querido dizer – na forma de o fazer dentro dos limites do indivíduo, única forma
–, mas libertamos a palavra, pela fixação, ao de procurar atingir o universal. Em suma,
mesmo tempo, da sua prisão, da volatilidade interior porque visa a comunicação. O enig-
da oralidade. Deferimos o discurso, procu- ma fica patenteado, exposto até. Esse é o
rando que este se abra, procurando que este esforço de Georges Bataille. Mas não é o
se deixe penetrar, numa tentativa de mostrar enigma em si mesmo, apenas a forma do seu
o que se quis dizer. Este é o sentido mais deixar-se ver. Quer dizer, todo o esforço da
alargado da comunicação: procurar que o escrita em Bataille consiste em fazer apare-
fechamento que todo discurso pressupõe – cer a forma do enigma. E a única perplexi-
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 543
dade que nos causa é precisamente essa: que mundo. É isso que também quer apontar
o enigma se deixe ver. Diz Derrida que o Jacques Derrida quando põe em jogo a
esforço de Bataille se concentra no «dever «estrutura geral da auto-afecção»12. Uma
de encontrar um discurso que mantenha o experiência – em forma de constatação – que
silêncio»8. E isto significa que enigma fica é obviada propositadamente. Como dissemos,
por resolver, que tampouco se queira resol- ela é só apresentada em tangente. Dificilmente
ver. O discurso de Bataille, não se apresenta, poderá ser apresentada doutra forma. As
desta forma, um texto propedêutico – ele não palavras tocam–lhe ao de leve13. A descrição
habilita. Tampouco é um texto iniciático – exaustiva e totalizante deste confronto, con-
ele não prepara. Surge somente como um duzir-nos-ia a uma suspensão – e a uma
texto descritivo. Um esforço de descrição consequente dispersão – daquilo que realmen-
daquilo a que chama a expérience interieur. te importa: habitar já dentro do enigma14. Sem
Experiência que necessariamente é sua, lhe quaisquer mediações o problema aparece
pertence interiormente, permanecendo nele, assim formulado: «Se perguntar face a um
não fosse a palavra... E é, exactamente, nesse outro: por qual via se acalma nele o desejo
esforço da descrição simples que a tensão de ser tudo?»15. Contingência, discontinuum
da sua escrita se concentra. Apresentação do no processo de constituição do mundo,
deserto, de um espaço infinito onde devemos particularidade do sujeito frente à universa-
habitar a palavra9. lidade da experiência, tudo isto surge como
Não há habilidade, no autor, em nos o prelúdio de uma longa viagem a percorrer,
prender com fáceis compromissos morais. uma viagem que se quer feita dentro dos
Tampouco se quer dar um valor acrescido limites traçados pelo confronto entre desejo
ao texto, como se as palavras estivessem e razão, entre vontade e poder. Renunciar,
mortas e a narração acabada. Existe, sim, uma como nos diz, as essas ilusões nebulosas16,
responsabilidade dada ao leitor, uma exigên- que tornam a vida, por outro lado suportável,
cia que lhe é feita. Sem lhe fazer qualquer funda o ‘objecto’’– aquilo que este quer visar,
concessão, diz: «Este livro é a narração de aquilo que se pretende nomear, ainda que sem
um desespero»10. Nada mais podemos espe- nunca o conseguir – do texto: a confissão
rar. Ou por outra, devemos querer e poder de um sofrimento: «O sofrimento, que se con-
esperar tudo. Narração de um desespero… fessa, do desintoxicado é o objecto deste
Haverá alguma outra experiência humana livro»17. Ou, melhor, a confissão progressiva
onde a experiência do emudecimento melhor e lenta desse sofrimento. É, pois, a narração
se faça sentir? O desespero é, por necessi- de um desespero, cujo objecto se constitui
dade lógica, inenarrável. Lá, onde não existe como uma confissão, ou um confessar-se
esperança, a palavra dissipa-se. O que ela lento, do sofrimento aí sentido. Sofrimento
quer aí apresentar não tem qualquer valor. que emerge perante o grande enigma com
O desespero é um estado de ausência total o qual já experienciámos o mundo, mas que
de palavras, de lugares, de movimentos, de também é o mundo. Enigma que nos torna
esperanças. Um espaço infinito e deserto. conscientes das possibilidades que ao homem
Também por essa razão ele é o que melhor lhe são dadas de apreender o mundo, ou os
permite tomar a palavra, andar em seu redor, seus múltiplos modo de ser. Consciência que
falar dela continuamente, mas num movimen- nos faz cair – que nos faz reduzir – ao no
to de irreferência pura. É ele que alimenta, silêncio, habitando apenas as palavras: «Tudo
também, todo o discurso. Esse desespero desabava! Acordei diante de um enigma novo,
nasce duma experiência que Bataille apre- e este, soube logo que era insolúvel: este
senta em forma de uma enorme obviedade: enigma era tão amargo que me deixou numa
que o mundo se nos manifesta como um impotência tão abatida, que eu o senti como
enigma a resolver11. Uma vez mais nos re- se Deus, se ele existe, o teria sentido»18. Esta
encontramos com o esforço da escrita, com impotência constitui a própria experiência, a
a tensão da comunicação. Porque toda a surpresa, o tudo pôr em causa. Impotência
experiência consiste nesse confronto discreto que constitui o cerne próprio do desespero
e directo com o enigma. Porque toda a que o livro quer e deseja narrar. O esforço
experiência evidencia o descontínuo do da escrita no texto de Bataille é, precisamen-
544 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
artifício que lhe seja exógeno. No interior supremo auto-conhecimento. Toda a experi-
do sujeito encontra-se, desta forma, a origem ência interior estaria condenada ao esforço
e disposição de toda a procura, pelo que de indagar dentro de uma estrutura que não
nenhuma categoria lhe pode servir. Estas, pelo lhe pertence, a do indizível. Quer dizer,
contrário, constituem já um limite dele se apresentar-se-ia, para nós, como objecto a co-
compreender a si mesmo, dele se entender nhecer, como o limite do possível, anulando
consigo mesmo. Toda a crítica de Bataille tudo o resto. Ainda que a evidência estivesse
ao pensamento moderno, assenta precisamen- assegurada. Bataille observa que esta
te neste ponto: que seja útil iniciar uma circularidade cai por terra, já que o sujeito
viagem de encontro ao de si mesmo quando que suporta e fundamenta a ‘procura’ é, em
se já vai munido de artefactos construídos si mesmo, incognoscível. Deus não pode se
pelo sujeito. Melhor, que a razão consiga unir constituir-se como objecto. E esta constitui
aquilo que a experiência mostra como a única via dele tomar conhecimento. De
descontínuo, que a discursividade consiga Deus não há experiência. Pelo que a unidade
relatar (universalizar) a individualidade da pressuposta é ilusória. De outra forma per-
experiência, que a evidência se mostre en- maneceria, também, o homem afastado do
quanto tal. Artefactos que permitem uma apa- conhecimento de si. Condenado sempre ao
rentemente focagem do homem. Utensílios fracasso nos seus esforços. É esta a ressalva
que apenas servem para separar o sujeito dele que nos faz Bataille – logo desde o início–
mesmo, procurando a todo o momento que na utilização da palavra «mística», quando
este se institua como objecto, impossibilitan- faz equivaler a «experiência interior» com
do que este se realize na plenitude do ser «aquilo que habitualmente se chama expe-
o que é, não dando lugar à negatividade: «O riência mística…»27. «Livre de amarras»,
movimento recomeça a partir daí; o saber significa livre de todo o fundamento, livre
novo, posso elaborá-lo (acabo de fazê-lo). de todo elo mediador estranho ao próprio
Chego a esta noção: sujeito e objecto são homem, estranho a toda a experienciabilidade
perspectivas do ser no momento da inércia; humana. Nenhum objecto, que por natureza
o objecto visado é a projecção do sujeito ipse seja incognoscível se pode constituir como
querendo tornar-se tudo, e toda representa- um objecto de experiência: ele não é nunca
ção do objecto é fantasmagoria resultante do domínio de experiência, do contacto, de
desta vontade ingénua e necessária (se co- conhecimento. Permanece sempre de fora,
locamos o objecto como coisa ou como afastado de toda a experiência possível. Não
existente, pouco importa); é preciso chegar pode, desta forma, constituir-se como um dos
a falar de comunicação, compreendendo que possíveis da experiência, já que não se institui
a comunicação suprime tanto o objecto quanto como um limite28, mas apenas como um
o sujeito (é o que se torna claro no auge vazio. O contrário significaria a aniquilação,
da comunicação, quando, na verdade, há em verdade, de todos os modos de ser do
comunicação entre sujeito e objecto de mesma homem, de todas as figuras humanas. Ora,
natureza, entre duas células, entre dois in- pelo contrário, o possível abre-se no domínio
divíduos)»25. A distância criada por semelhan- restrito29 da experienciabilidade; tudo o que
te processo é bem patente em toda a filosofia jaz para lá desta linha, encontra-se no do-
cartesiana26. Afinal, a dúvida é resolvida mínio da impossibilidade: permanece enquan-
mediante o recurso a uma instituição to ausência de possibilidade30. Para este não
inominável, relativamente à qual a existência existe nem palavra, nem figura; não constitui
humana – e com ela toda a experiência – qualquer modo de ser. A atenção prestada
fica adscrita e fundamentada. Desta forma relativamente ao conhecimento desse ser
justifica-se e simultaneamente erige-se todo supremo – ou da sua mera possibilidade –
o campo da experiência possível, já que o deve deslocar-se, por necessidade intrínseca,
sem nome surge como o último possível da em direcção a um novo conceito: o de não-
experiência. Quer dizer, estaria justificada a conhecido. Este com contornos bem distin-
unidade e continuidade do mundo. Desta tos daquele que anteriormente referimos. O
forma, a necessidade de conhecimento ine- não-conhecido remete para a plurivocidade
rente ao Ser, corresponderia ao último e dos modos de ser, aponta para uma figura
546 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
problema, de permanecer nele, deixando que como e na relação imediata que sujeito e
essa tensão se constitua como a fundadora objecto mantêm. Mas numa relação em que
de todo o caminhar. Não se trata de resolver o sujeito se despoja de si mesmo, anulando-
o problema, mas de deixar que o problema se, caminhando em direcção à renúncia,
nos dissolva a nós. De recuperar a palavra36. aceitando o desconhecido como ponto de
Toda a tensão se centra no binómio conhe- partida e como ponto de chegada; pois só
cido/desconhecido, uma tensão «nua, livre de este se pode configurar como sendo o ex-
amarras, mesmo de origem». Porque o des- tremo do possível. Onde existe a certeza de
conhecido é a condição de possibilidade do que o caminhar se tem de realizar, onde
conhecido, portanto, origem de toda a acti- estamos certos de que ganhamos algo, de que
vidade, de toda experiência possível: «A vida não perderemos nada, onde nos podemos
vai se perder na morte, os rios no mar e o constituir como homens. A renúncia a querer
conhecido no desconhecido. o conhecimento ser tudo assenta, justamente, na consciência
é o acesso ao desconhecido. o contra–senso de que podemos ser tudo, de que a expe-
é o resultado de cada sentido possível. É uma riência se constitui, precisamente, aí. No
tolice esgotante que, quando visivelmente limiar a experiência interior estabelece-se
faltam todos os meios, pretenda-se entretan- como uma luta da razão consigo mesma. O
to saber, em vez de conhecer a sua igno- projecto que ela cria somente ela tem o poder
rância, de reconhecer o desconhecido. Mais de destruir. Servindo-se dos seus artifícios,
triste, porém, é a enfermidade daqueles que, a razão discursiva, ao estabelecer o sujeito
se não têm mais meios, confessam que não como pedra angular de todo o edifício, erige
sabem, entrincheirandolse, no entanto, tola- o objecto seu único correlato; instituindo-se,
mente, naquilo que sabem. De qualquer modo, ela própria, como objecto. Mostrando desta
o facto de que um homem não vive com o maneira a falha que a constitui, e portanto:
pensamento incessante do desconhecido faz «A experiência interior é conduzida pela razão
ainda mais duvidar da inteligência, na medida discursiva. Só a razão tem o poder de desfazer
em que ele mesmo é ávido, mas cegamente, a sua obra, de destruir o que ela edificara.
de encontrar nas coisas a parte que o obriga A loucura não tem efeito, deixando substituir
a amar, ou o sacode com um riso inesgo- os destroços, atrapalhando, com a razão, a
tável, a do desconhecido. O mesmo acontece faculdade de comunicar (talvez ela seja, antes
com a luz: os olhos só possuem dela refle- de tudo, ruptura da comunicação interior).
xos»37. É na determinação do «desconheci- A exaltação natural ou o embriagamento têm
do» como possível que assentam os modos a virtude dos fogos de palha. Sem o apoio
de compreensão do texto. A experiência do da razão, nós não atingimos a “incandescência
emudecimento surge da constatação dos li- sombria»39.
mites que se traçam nessa experiência 4. Um projecto com estrutura semelhante
fronteiriça. A abertura de toda a experiência encontramo-lo em Ludwig Wittgenstein e no
desemboca, precisamente, na experiência dos Tractatus. Este texto constitui a prova de que
possíveis. Estes, por outra parte, constituem- toda incursão no domínio da razão discursiva,
se na nas possibilidades dos modos de ser se deve apresentar como a aniquilação dela
que a figura do «desconhecido» assume. A própria, como a sua superação. Também em
«autoridade» – que também pode ser lida Wittgenstein o projecto não é o de desfazer
como um compromisso ético – deve enten- a noção de objecto, anulá-lo. Mas a de
der-se como o encontro do indivíduo consigo procurar mostrar, como faz Bataille, que aí
mesmo, isto é, num reencontro que tem lugar – no limite da objectualidade – se constitui
nos limites dele mesmo, que por isso se deve a abertura aos possíveis. Pretende mostrar,
anular a cada momento, reconhecendo–se nas pelo contrário, que num edifício já construído,
múltiplas formas de ser, ou tal e como nos nada tem valor. Não se quer derrubar toda
diz: «Supressão do sujeito e do objecto, único a estrutura racional, mas sim superá-la, pondo
meio de não chegar à possessão do objecto a nu todas as suas brechas e utilizando para
pelo sujeito, quer dizer, de evitar a absurda tal a sua própria estrutura. Duas posições
corrida do ipse querendo tornar-se o tudo»38. distantes entre si, mas que procuram mostrar
A comunicação, assim, deve ser entendida que, nos limites estritos da racionalidade, da
548 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
lógica, do pensamento discursivo, o que fica pode haver uma hierarquia das formas das
de fora, constitui, de facto, o que realmente proposições. Só daquilo que nós próprios
importa. Queremos mostrar que estes dois construímos se pode ter uma antevisão. A
autores coincidem no projecto, que se dão realidade empírica é limitada pela totalidade
conta de que aquilo a que temos acesso fica dos objectos. Este limite revela-se de novo
para lá dos limites que traça a discursividade. na totalidade das proposições elementares. As
Que as palavras nos falham, mas que por hierarquias são e têm de ser independentes
isso mesmo devemos permanecer nelas, da realidade»44. Porém, a Lógica assume uma
habitando-as. Como nos diz Bataille: «a outra «função», um outro criterium que se
comunicação é um facto que não se acres- apresenta como uma «negatividade positiva».
centa de modo algum à realidade humana, Isto é, na sua tarefa de delimitar as fron-
mas a constitui»40. Também o Tractatus marca teiras, mostra o que é místico45; e traz ao
de forma clara o «fim da razão»41, entendida mundo toda a «expressividade» que nele não
esta como a possibilidade de conhecer e da cabe, nem pode, por definição, caber. Aqui
sua expressão. Para Wittgenstein, a a metáfora da fronteira mostra-se pertinente,
enunciação só pode referir «o que é o caso», pois aponta para o outro lado. A fronteira
para além dessa linguagem possível, não há não limita obscurecendo, mas sim clarifican-
qualquer «significatividade». Nada do que do. É o outro que se institui como fenda na
podemos «sentir» se constitui como objecto homogeneidade do domínio da comunicação
para o pensamento. Aquilo que se manifesta, e do conhecimento, mas que, por outro lado,
logo num primeiro momento, é a tentativa se manifesta como imanente nessa
de marcar os limites, de humanizar, de uma transcendência. Não são veladas as palavras
vez por todas, o homem. O «sentido» da- de Bataille a este propósito, pelo contrário,
quilo que realmente importa não está dado as suas palavras mostram uma coincidência
pelo simples contacto com o mundo. Não luzida: «a tua vida não se limita a esse
existe possibilidade de a ele poder aceder, inapreensível fluxo interior; ela também se
pelo menos, não com as estruturas racionais derrama para fora e abre-se incessantemente
tradicionais. A capacidade discursiva do ser ao que escorre ou jorra da tua direcção»46.
humano cinge-se, agora, ao finito mundo do Não existe qualquer possibilidade de comu-
«que é o caso». Só no acontecer se pode nidade de interesses, não há como conhecer
manifestar a razão. A razão mostra-se como o «sentido» da totalidade de um acontecer
a capacidade de tomar conta do mundo, não e, se o há, é meramente lógico, nunca te-
de um mundo «unitário» – o medium huma- ológico ou histórico e, como tal, completa-
no – mas sim do «mundo-totalidade-dos-fac- mente desenraizado da emergência da «ori-
tos-no-espaço-lógico»42, isto é, um mundo gem»: o que existe, o que realmente se pode
ausente de qualquer valor, um mundo onde intentar, não é mais que um esforço de
tudo vale o mesmo. Em suma, onde não expiação, um esforço de auto-expiação. A
existem hierarquias43. O que é afirmado, em haver uma História – uma unidade na co-
última análise, é uma impossibilidade de municação – teria de estar completamente
«comunicação», a impossibilidade de um fora do mundo, e por isso, da linguagem.
operador comum a todos o seres humanos. Isto é, teria de estar para além dos limites
Comunicar é pôr em espaço público aquilo da lógica. A História constitui um problema
que é, por essência, privado. Este, no transcendental, isto é, ela é a marca de uma
Tractatus, pertence ao domínio do indizível, forma de imanência. As dificuldades de
ao domínio daquilo que não «é o caso». A Bataille obtêm aí o seu fundamento, já que
Lógica, o limite da razão, é a tangente que a anulação de toda a transcendência deixa
limita toda essa possibilidade: todo o pen- o sujeito perante a perplexidade de não poder
samento é pensamento lógico e como tal, deixar de ver a História como uma imensa
completamente desprovido de todo o valor. acumulação de factos sem qualquer sentido:
Não há um pensamento – uma realidade s– «posso cada vez menos evocar um facto
que assuma mais valor que outro; as hierar- histórico sem ser desarmado pelo abuso que
quias são fantasmas construídos, são abso- existe em falar de coisas apropriadas ou
lutamente alheias ao que realmente é: «Não digeridas. Não que eu fique chocado com a
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 549
parte de erro: ela é inevitável»47. O que sim apresenta-se como uma forma de «revelação»:
parece claro é que essas análises lógicas dão da linguagem ao silêncio não há «ponte», o
passo a uma completa fragmentação da que existe é somente um salto, uma trans-
comunidade extralinguística, mas onde per- gressão dos limites. Os limites da razão são
manece, ainda que seja como uma miragem aqui os limites do mundo dizível. Para o que
desejada, esse impulso para as origens. A realmente importa não há, nem pode haver,
fragilidade da unidade de uma existência, no qualquer teoria. A ciência não esgota todo
texto de Bataille, tem correspondência com o campo «absoluto» do homem, apenas lhe
esse frágil enraizamento da sua origem, marca uma possibilidade de o chegar a
enraizamento que é consumado pela expe- conhecer. A consciência de Bataille mostra-
riência interior: «O que se chama um “ser” se na distinção que realiza entre «experiên-
não é nunca simples, e só ele tem a unidade cia interior» e «filosofia», mostrando que à
durável, somente a possui imperfeita: ela é primeira, as palavras apenas a tocam em
trabalhada pela su profunda divisão, perma- tangente, mostrando o progressivo silenciar,
nece mal fechada e, em certos pontos, mas conduzindo, nesse caminho à palavra:
atacável de fora»48. Se a Lógica é a lei que «a diferença ente a experiência interior e a
rege todo o pensamento, se ela é a forma filosofia reside principalmente no facto de
da legalidade 49 , é também, enquanto que, na experiência, o enunciado não é nada,
paradigma, o símile de como as «coisas» senão um meio, e ainda, não somente meio,
funcionam em a Ética; ou melhor, coincide mas obstáculo; o que conta não é mais o
com a estrutura50 da própria Ética. A Lógica enunciado do vento, é o vento»55. Assistimos
é o limite estrutural interno e externo (in- a uma inversão completa da ordem mundo.
terno enquanto marca o pensável e o não– O que parecia ser a base, mostra-se, neste
pensável, externo porque aponta para o que momento, como uma falha de sentido: é o
está) do mundo e da linguagem. Mas, en- abismo que se manifesta perante a impotên-
quanto estrutura de necessidade é exemplo51, cia do homem enquanto habitante do «mun-
analogon, de como as coisas devem ser no do-totalidadedos-factos-no-espaço-lógico».
domínio ético. A Lógica dá-nos assim a LudwigWittgenstein é peremptório, tal como
possibilidade de poder, por analogia, julgar o foi Georges Bataille: «Como posso ser um
eticamente: do absolutismo necessário das lógico se ainda não sou um homem! Antes
suas leis, podemos compreender o absoluto de tudo tenho que aclarar-me a mim mes-
juízo ético52 (ou o absoluto juízo da ética). mo»56. É o que Jacques Derrida chama de
A lógica converte-se num critério que pos- «interioridade pura da auto-afeccção», da qual
sibilita um juízo absoluto53. Noutra termino- diz que «não cai na exterioridade do espaço
logia, a lógica revela-se, em o domínio ético, e naquilo que chamamos o mundo, que não
como a possibilidade de uma linguagem é outra coisa que o fora da voz»57. Toda e
negativa, não uma linguagem que refira o qualquer manifestação humana é sempre uma
que é o caso, mas sim uma forma de ex- manifestação de «vida», uma manifestação
pressar que, de todo em todo, pode «apon- daquilo que não se deixa pensar; por isso,
tar». «Aponta» para uma teoria negativa, para a Ética e a Estética são, elas próprias, trans-
uma forma de presença: a transcendência da cendentes (mas em tangente) à Lógica. Na
Ética, revela-se, seguindo estas directivas, base de tudo não está a Lógica, mas sim
uma forma de imanência. Esta não permite, aquilo que não se deixa dizer: o fundamento
contudo, a possibilidade de uma enunciação da lógica é a ética, na base da linguagem
positiva: «Se o bem e o mal alteram o mundo está o silêncio58, na origem da ciência está
então só alteram os limites do mundo, não o misticismo. O fim da razão revela-se, pois,
os factos, não o que pode ser expresso na na necessidade existente de uma ruptura com
linguagem. Em resumo, o mundo tem que um sistema que tudo contenha. É aí onde
tornar-se de todo num outro, por meio do ela não pode chegar: o seu fundamento não
bem e do mal. Enquanto todo tem de ter, cabe dentro dela mesma, é o seu limite. A
por assim dizer, um crescente e um minguan- razão sucumbe ao seu fundamento. O que
te. O mundo dum homem feliz é diferente possibilita não pode, por princípio interno,
do dum homem infeliz»54. O limite interno possibilitar-se a si mesmo. É neste mistério
550 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
que a experiência surge como o único ele- Paris: Gallimard: 1973, pp. 7-187, p. 113. a partir
mento catártico: «purificar a linguagem é de agora sob a sigla EI.
6
purificar-se a si mesmo»59. A ruína da razão «Tudo se passa como se aquilo que nós
chamamos linguagem não pudesse ter na sua
é, numa palavra: a certeza de que só pode
origem e no seu fim mais que um momento, o
falar do que não interessa. Ou na formulação modo essencial mas determinado, um fenómeno,
de Bataille: «Na experiência, não há mais um aspecto, uma espécie de escritura (l’ecriture)»,
existência limitada»60. A reconciliação entre Jacques Derrida, op. cit., p. 18.
razão e experiência dá-se do domínio da 7
EI, p. 113.
experiência estética. É a estética que fornece 8
Jacques Derrida, «From Restricted to Ge-
a ligação, que se manifesta como compen- neral Economy: A Hegelianism without Reserve».
sação. Se recordarmos Friedrich Schiller In Fred Botting & Scott Willson, Bataille: A
depressa nos daremos conta que assim é. O Critical Reader. Oxford: Blackwell, 1997, pp.102-
138, p. 114.
acesso à beleza constitui o modo de chegar 9
Há um texto de Michel Foucault que não me
a unir as experiências e de possibilitar, de resisto aqui a citar: «o olho extirpado ou invertido
novo, uma nova união. Numa palavra: ela é o espaço da linguagem filosófica de Bataille, o
possibilitará a palavra, já que é ela que vazio que se verte e se perde, mas de que não
possibilita sempre a esperança no dizer. Diz cessa de falar – um pouco como o olho interior
Schiller: «através da beleza, o homem sen- dos místicos ou espirituais, diáfano ou iluminado,
sível vê-se conduzido à forma e ao pensa- marca o ponto onde a linguagem secreta da oração
mento; através da beleza, o homem espiritual se fixa e se aferra numa comunicação maravilhosa
que o faz calar. Igualmente, mas de uma maneira
vê-se reconduzido à matéria e devolvido ao
invertida, o olho de Bataille desenha o espaço de
mundo dos sentidos. […] A beleza estabe- pertença da linguagem e da morte, ali onde a
lece a ligação entre os dois estados opostos linguagem descobre o seu ser na transposição dos
da sensação e do pensamento, e contudo não limites: a forma de uma linguagem não dialéctica
existe nenhum meio-termo entre ambos. da filosofia». Michel Foucault, «Préface à la
Aquela é apreendida através da experiência, transgression». In Michel Foucault, Dits et Ecrits
este directamente pela razão»61. Existe forma I (1954-1975). Paris: Gallimard, 1994, pp. 261-278,
mais simples de justificar a necessidade das p. 275.
10
palavras e de compensar a sua futilidade? EI, p. 11.
11
Idem.
12
Cfr., op. cit., p. 235ss.
13
Diz Michel Foucault, «Talvez ela defina o
_______________________________ espaço de uma experiência na qual o sujeito que
1
Universidade Lusófona de Humanidades e fala, em lugar de se expressar, se expõe, onde
Tecnologias. Departamento de Ciências da Comu- vai ao encontro da sua própria finitude e onde,
nicação, Artes e Tecnologias da Informação. sob cada palavra, se encontra remetido para a sua
2
Hugo von Hofmannsthal, A Carta de Lord própria morte», loc. cit., op. cit., p. 277.
Chandos. Lisboa: Hiena, 1990, pp. 31/1. 14
Giorgio Agamben, nesta direcção, diz-nos:
3
Jacques Derrida, De la grammatologie. Paris: «Isso significa que o enigmático se refere ex-
Les Éditions de Minuit, p. 236. clusivamente à linguagem e à sua ambiguidade,
4
Esta ideia encontramo-la presente em «So- mas não àquilo que se entende na linguagem, o
bre a linguagem em geral e sobre a linguagem qual em si não só está privado de mistério, mas
dos humanos» de Walter Benjamin: «Uma existên- inclusive é totalmente indiferente à linguagem que
cia que não tenha qualquer relação com a lin- o deveria expressar». «Idea del Enigma». In
guagem é uma ideia, mas esta ideia ainda que Giorgio Agamben, Idea de la Prosa. Barcelona:
permaneça ela mesma no círculo das ideias, cuja Península, 1989, pp. 91-94, p. 91.
circunferência marca a ideia de Deus, não pode 15
EI, p. 10.
frutificar». Walter Benjamin, «Über Sprache 16
Idem.
überhaupt und über die Sprache des Menschen». 17
Idem.
In Gesammelte Schriften, II. 1. Frankfurt am Main: 18
EI, p. 11.
Suhrkamp, 1978, pp., 140-157, p. 141. Quer dizer, 19
Esta experiência do emudecimento podemos
mostra-se infrutífera precisamente porque teria de encontrá-la em diversos autores, ainda que apre-
ser pensada em a linguagem, como não perten- sentada de uma forma completamente distinta. O
cente a ela. Um esforço inútil. mais emblemático parece-nos ser o de
5
Georges Bataille, «L’expérience intérieur». Wittgenstein. Mais adiante tentaremos confrontá-
In Georges Bataille, Oevres Complétes (vol. V). los, não tanto para mostrar as duas concepções,
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 551
mas para elucidarmos a estrutura de um problema necessário achar uma palavra que encontre o si-
comum. lêncio. Necessidade do impossível: dizer na lin-
20
EI, p. 48: «Mas em mim tudo recomeça, guagem do servilismo o que não é servil. Se a
nada, nunca, está feito» palavra silencio é, “entre todas as palavras, a mais
21
EI, p. 50/1. perversa ou a mais poética” é porque, quando finge
22
EI, p. 19. que cala o sentido, diz o sem-sentido, desliza-se
23
EI, p. 15. e apaga-se nela mesma, não se mantém, mas cala-
24
Quer dizer, que lhe vêm de fora, que não se ela mesma, não como silêncio, mas sim como
constituem, realmente, um limite da experiência fala. Esse escorregar trai, ao mesmo tempo, o
ou uma experiência desse limite, mas que são discurso e o não discurso. É impossível que se
impostos ao sujeito, exteriormente, limitando a seu imponha sobre nós, mas também a soberania pode
experienciar, quer dizer, obstruindo todas as suas intervir aí para trair rigorosamente o sentido no
possibilidades. sentido, o discurso no discurso. “Temos de encon-
25
EI, p. 68. trar”, explica Bataille, quem escolhe o “silêncio”
26
EI, 124: «esse espírito de contestação, que como “exemplo da palavra escorregadia”, “pala-
foi o génio atormentado de Descartes». vras” e objectos que, desta maneira, “nos façam
27
O que nos diz a este respeito é claro, EI, escorregar”. Para onde? Sem dúvida que para outras
p. 15: «Entendo por experiência interior aquilo palavras, para outros objectos que anunciam a
que geralmente se chama de experiência mística: soberania». Jacques Derrida, «From Restricted to
os estados de êxtase, de arrebatamento, pelo menos General Economy: A Hegelianism without Reser-
de emoção meditada. Mas penso menos na ex- ve». In Fred Botting & Scott Willson, Bataille:
periência confessional, à qual foi preciso ater-se A Critical Reader. Oxford: Blackwell, 1997, pp.102-
até agora, do que numa experiência nua, livre de 138, p. 114.
37
amarras, mesmo de origem, a qualquer religião EI, p. 119.
38
que seja. É por isso que não gosto da palavra EI, p. 66.
39
mística». EI, p. 60.
28 40
A ser assim, ainda se poderia falar de uma EI, p. 36.
41
experienciabilidade, que haveria experiência des- Sobre o tema, cfr., Isidoro Reguera, La
se limite enquanto limite. miseria de la razón. El primer Wittgenstein.
29
Referimo-nos, claro está, ao domínio que Madrid: Taurus, 1980. Especialmente o capítulo
lhe cabe, não que esse domínio seja restrito, senão IV «La Trascendentalidad del lenguaje.
que ela se restringe a ele, só dentro dos seus limites Recuperación de la teoría descriptiva: objeto y
tem lugar. sujeto.», pp. 141-180.
30 42
Jacques Derrida afirma: «E já se pressente, A expressão é de Isidoro Reguera.
43
neste prelúdio, que o impossível meditado por Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-
Bataille terá sempre esta forma: como, depois de Philosophicus. Madrid: Revista de Ocidente, 1957,
ter esgotado o discurso da filosofia, inscrever no 6.4. A partir de agora sob a sigla TLP.
44
léxico e na sintaxe de uma língua, a nossa, que TLP, 5.556 e 5. 5561 respectivamente.
45
foi também a da filosofia, aquilo que excede, Entenda-se como um estar para além do
contudo, as oposições dos conceitos dominados domínio da expressão.
46
por esta lógica comum? Necessário e impossível, EI, p. 111.
47
este excesso deveria abrir o discurso numa es- EI, p. 155.
48
tranha figura». Jacques Derrida, «From Restricted EI, p 110.
49
to General Economy: A Hegelianism without Diz Wittegenstein: «O livro trata dos pro-
Reserve». In Fred Botting & Scott Willson, blemas da Filosofia e mostra – creio eu – que
Bataille: A Critical Reader. Oxford: Blackwell, a posição de onde se interroga estes problemas
1997, pp.102-138, p. 103/4. repousa numa má compreensão dos problemas da
31
EI, p. 128. nossa linguagem». TLP, Prólogo.
50
32
EI, pp. 125. O sublinhado é nosso. Falamos da estrutura limite, isto é, da legal-
33
EI, p. 75. formalidade. Também na Ética as coisas não são
34
EI, pp. 126. acidentais. Cfr. Ludwig Wittgenstein, «Lecture on
35
EI, pp. 126. Ethics». The Philosophical Review (Vol. LXXIV),
36
Diz Jacques Derrida «Mas é necessário falar. 1965, p. 3ss. A partir de agora LE. O vocábulo
“A inadequação de toda a palavra… pelo menos «ética» remete para aquilo que está para além do
deveria ser dita”, conservar a soberania, quer dizer, expressável e é o que faz com que a vida «mereça
de certo modo, para a perder, para reservar ainda ser vivida», loc. cit., p. 5.
51
a possibilidade, não do seu sentido, mas do seu É representação reguladora; não nos pode-
sem-sentido, para distribui-lo, mediante esse “co- mos esquecer que a linguagem, ainda que não
mentário” impossível, de toda a negatividade. É possa referir o que está para lá do domínio da
552 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
58
Lógica, pode, no entanto, apontar para o que está A referência – que já aparece comentada
fora desse domínio. Cfr. TLP, 5.62 e 6.522. em Derrida – é mais que explícita, EI, p. 28. «Darei
52
Cfr. LE, p. 5ss. um exemplo de palavra escorregadia. Digo pa-
53
Sobre o tema, cfr., Isidoro Reguera, op. cit, lavra: pode ser também a frase onde se insere
p. 67: «A lógica é transcendental, constitui o a palavra, mas limito-me à palavra silêncio. Essa
mundo, a linguagem e a ciência, cuja estrutura palavra já é, eu disse, a abolição do ruído que
interna e limite externos coincidem em todos os é a palavra; entre todas as palavras é a mais
pontos com os seus. É a lógica quem os esta- perversa, ou a mais poética: ela é a garantia da
belece ou a razão desde a sua formalidade lógica, sua morte. (…) Este segredo não é senão presença
por assim dizer. Nestes âmbitos de sentido raci- interior, silenciosa, insondável e nua, que uma
onal, toda a essência é lógica e não pode não atenção constante às palavras (aos objectos) nos
sê-lo, já que a lógica é o tratado de toda a furta, e que ela nos devolve na pior das hipóteses
possibilidade. De toda a possibilidade e de toda se nós a damos a um ou outro objecto, entre os
a legal formalidade, de maneira que a necessidade mais transparente».
59
lógica tem a ver com o dever ético». Isidoro Reguera, El feliz absurdo de la ética,
54
TLP, 6.43. op. cit, p. 20.
55 60
EI, p. p. 25. EI, p. 40.
56 61
L. Wittgenstein, Briefwechsel. Frankfurt: Friedrich Schiller, Sobre educação esté-
Shurkamp, 1980, p. 47. tica do ser humano numa série de cartas e
57
Jaques Derrida, De la grammatologie, op. outros textos. Lisboa: IN/CM, 1994, carta XVIII,
cit., p. 236. p. 69.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 553
verbal. O bebê possui seu próprio código emocional muito maior do que em outras
lingüístico, ativado pelo reconhecimento do línguas. Essa concentração da carga emoci-
código utilizado pela mãe.2 onal na sílaba tônica tende à queda de
intensidade nas sílabas átonas, resultando
Até os 6 meses o bebê desenvolve um numa “certa moleza, ou uma espécie de
repertório de vocalizes que compre- carícia (titia, que beleza, etc) do objeto
ende todos os sons de todas as lín- designado, ou uma carga explosiva concen-
guas humanas; de outra parte, nos 6 trada” (Kiefer, 1979: 40). Esse jogo rítmico
meses seguintes, o bebê não produz gera ondas, curvas melódicas que passam
sons além daqueles próprios à comu- despercebidas após o domínio do código
nidade linguística em que se encontra linguístico. Há que se considerar ainda o
(Castarède, 1991: 74). tonema,6 que, se bem articulado, define a
intenção da frase. Podemos então afirmar que
Esse caráter sonoro da língua vai se o ritmo em si é uma linguagem dentro da
perdendo a partir do momento em que a língua. Nele há, portanto, uma melodia
criança começa a dominar o complexo có- embrionária. As nuances fônicas, ao calor da
digo verbal. Ela passa a usar as sonoridades oratória, transformam-se em verdadeiros
vocais de forma secundária, inconsciente, intervalos musicais.
sendo agora prioritárias a concisão e a cla- O homem antigo tinha consciência disso.
reza da comunicação. Dessa maneira, as Jean Jacques Rousseau (1978)7, expoente do
nuances de cada palavra vão ser enfatizadas naturalismo, afirma que “num passado remo-
apenas em momentos especiais. to, o homem teria vivido em estado de
Cada língua tem sua musicalidade par- natureza, onde música e palavra constituiri-
ticular implícita. Algumas mais, outras menos, am um todo indivisível, podendo o homem
de acordo com seu processo de
expressar suas paixões e sentimentos plena-
culturalização.3 “Quanto mais a língua se
mente: as línguas carregariam os acentos
torna civilizada, tanto menor a quantidade de
musicais, índices vocalizados das paixões”
exclamações e interjeições, menos os risos
(Valente, 1999: 108).8
e inflexões que a voz adota” (Schafer, 1881:
Interessa-nos o fato de que, com a
235). Da mesma forma, a língua falada pelo
inflexão das frases, influenciadas pelo efeito
povo é a sua melhor força de expressão.4
das emoções intensas, ocorrem variações de
intensidade, andamento, subidas e descidas
A entoação geral do idioma, a acen-
do som, numa fala mais apaixonada e agi-
tuação e o modo de pronunciar os vo-
cábulos, o timbre das vozes é que re- tada que a nossa, fala que é canto. (Jaspensen,
presentam os elementos específicos da in: Schafer, 1991: 270/271)
língua de cada povo. Essa música Nós, homens da era da máquina, perde-
racial da linguagem corresponde, em mos as sutilezas de modulação na voz.
harmonia perfeita, aos outros carac- Certamente os homens primitivos, medievais
teres da raça”. (E. Dupré e M. Nathan, e renascentistas tinham na voz um instrumen-
in: Andrade, 1965: 122).5 to vital. Todas as novidades eram lidas em
voz alta pelo arauto. Cabia a ele expressar,
Cada língua tem um ritmo próprio, que por intermédio da leitura, a intenção do texto.
“desempenha um papel expressivo de suma “Não precisávamos que McLuhan9 nos con-
importância” (Kiefer, 1979: 39). Uma mes- tasse que, do mesmo modo como a máquina
ma frase dita com ritmo e inflexão antagônica de costura... criou a longa linha reta nas
altera completamente o sentido dela. Uma fala roupas... o linotipo achatou o estilo vocal
em tom marcial significa ordem a ser cum- humano”. Murray Schafer10 propõe ser fun-
prida; a mesma ordem dada em tom mater- damental trabalhar com o som vocal bruto,
nal, terá sentido diverso. A variação na altura, “recomeçar como os aborígines, que nem
a acentuação e uma maior duração dada à mesmo sabem a diferença entre fala e canto,
sílaba tônica, aspectos característicos da significado e sonoridade”. (Schafer, 1991:
língua portuguesa, conferem-lhe uma carga 207/8).
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 555
(Schafer, 1991: 243), lembrar a importância clima festivo. A mistura pensada de vozes
da celebração dos cultos, da tradição, decla- conflitantes emitidas de forma defasada cria
rar a culpa e sua expiação, refletir sobre o a paisagem sonora do caos, da metrópole.
destino ou descrever peculiaridades, famili- O uso do jogral amplia o espectro sonoro
arizando o ouvinte com o ambiente da ação. em possibilidades quase ilimitadas em torno
(Lesky, 1971) Esse costume se estendeu pelo de paisagens sonoras.
Império Romano e atravessou a Idade Média, O jogral na peça radiofônica tem a função
quando tomou um aspecto mais religioso. de aconselhar, alertar, advertir, sinalizar,
Essa técnica é utilizada até os dias de hoje. localizar o ouvinte dentro do conto. O jogral
A montagem da tragédia grega Medeia, possibilita ainda tornar oral a consciência dos
sob a direção de Antunes Filho, em cartaz personagens, narrar a história, produzir efei-
na cidade de São Paulo, no ano de 2003, tos onomatopaicos, aconselhar, torcer, tornar
nos mostra a utilização plena das nuances público o inconsciente coletivo e as cobran-
vocálicas para criar uma dimensão dramá- ças da sociedade19.
tica. Com o uso de um cenário enxuto, a O jogral dá ritmo e movimento à peça
atenção volta-se para a exploração de vasta radiofônica e propicia volume e equilíbrio
gama dos itens que passamos a analisar a sonoro, por meio de contrastes, de
seguir. contrapontos entre as vozes femininas e
O coro grego, do qual se deriva o jogral, masculinas, entre as vozes graves e agudas,
é a forma mais eficiente de treino da entre os diferentes timbres vocais. O número
sincronia, da precisão rítmica e da dosagem de doze participantes, habitual na tragédia
da intensidade de sentimentos para transmitir grega, é ideal para se obter peso, massa
determinada idéia. O leque de possibilidades sonora, possibilitando toda gama de possi-
se amplia na mesma proporção do número bilidades de timbre.
de integrantes envolvidos. É apoio fundamen-
tal para se criar uma paisagem sonora, uma A caverna das infinitas possibilidades
ambientação para determinados textos.
A junção de vozes permite a utilização Para utilizar adequadamente a voz nos
de recursos como a similaridade rítmica moldes das propostas acima descritas, suge-
(quando todos falam na mesma tomada de rimos alguns passos na elaboração dos tex-
respiração, ao mesmo tempo, na mesma tos. Cada palavra tem uma intenção, um
velocidade) ou a similaridade tímbrica (quan- sentido, uma curva psicográfica, que se vale
do se escolhem vozes com características das vogais e das consoantes para sua cons-
semelhantes). Podemos afirmar que essas trução. Dessa união, utilizando-se uma
opções propiciam gamas sonoras de emissão correta, a palavra ganha sentido.
homogeneidade ou heterogeneidade, Descobrir esse sentido e transformá-lo em
homofonia ou polifonia vocal. voz é o nosso grande desafio.
Vozes com características semelhantes, “As vogais, como diziam os antigos
faladas ao mesmo tempo, produzem efeitos humanistas rabínicos, são a alma das pala-
homofônicos. A mistura de vozes diferenci- vras, e as consoantes, seu esqueleto. Em
adas timbristicamente, vozes de prata unidas música, são as vogais que dão oportunidade
a vozes de bronze, vozes graves unidas a ao compositor para a invenção melódica,
vozes agudas, vozes fortes a vozes fracas, enquanto as consoantes articulam o ritmo. Um
suaves a roucas, aspiradas a nasalizadas, foneticista define a vogal como o pico sonoro
agressivas a receosas, acanhadas a dinâmi- de cada sílaba. É a vogal que fornece asas
cas, sobretudo se emitidas defasadas, possi- para o vôo da palavra” (Schafer, 1991: 224).
bilitam uma polifonia oral. A vogal é o som puro, sem obstáculo, que
Para cada clima desejado, monta-se um empresta cadência e ritmo, que projeta a voz.
grupo vocal específico. Vozes masculinas O uso da prosódia20 vem em auxílio da
graves de timbre bronze possibilitam a descoberta da força interna de cada sílaba
emissão de uma fala lúgubre, criando-se dessa dentro da palavra. A emissão correta exige
forma uma paisagem sonora de mistério, de a observação rigorosa do acento tônico nos
horror. Vozes femininas agudas criam um vocábulos de mais de uma sílaba. A sucessão
558 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
11
em tom médio e calmo, a cantarem músicas suaves. O diafragma é um grande músculo trans-
Para mais detalhes a respeito da voz materna versal que tem a forma de uma abóbada e que
exercendo influência fundamental no código separa a cavidade torácica da cavidade abdomi-
linguístico do bebê, ver: Tomatis (1991); Casterède nal. É constituído de fibras musculares que se
(1991); Nunes (1993); Valente (1999). fixam na base da caixa torácica, convergindo para
3
Fernando Lopes Graça (s.d: 165) afirma que o centro frênico. Os pulmões e o coração apóiam-
“há línguas naturalmente musicais, como o ita- se sobre a sua face superior; sob a face inferior
liano e, de certo modo, o espanhol; outras, cuja estão: fígado, estômago, rins e intestinos.
12
constituição oferece uma tal ou qual resistência Ressonador é cada uma das cavidades que,
à música, como o francês e o alemão”. Heloísa na fonação humana, se produzem no canal vocal
Valente (1999: 108) cita Rousseau, dizendo que pela disposição que os órgãos assumem no
“certas línguas serviriam para serem lidas e escritas momento da articulação (Houaiss, 2001: 2441),
(o francês, o alemão, o inglês, por exemplo), aumentando as vibrações na voz.
13
enquanto outras, para serem cantadas (árabe, persa, As nuances da voz humana, o único ins-
italiano)”. trumento que reúne no mesmo corpo executante
4
Características específicas do modo de falar e meio de execução, são quase infinitas, depen-
de cada povo, ou mesmo de cada região de um dendo da situação do palco de ação. Uma con-
determinado povo, formam essa gama de sono- versa a dois exige um nível diferente de um
ridades implícitas na fala. É o popular sotaque, discurso de palanque, de uma conferência cien-
que possibilita que identifiquemos, por exemplo, tífica, de uma discussão. Zumthor (1985) distin-
um brasileiro do Rio Grande do Sul, do Rio de gue quatro níveis de oralidade: a) primária,
Janeiro, do Nordeste. desvinculada da escrita: b) secundária, precedida
5
Diversos musicólogos têm se dedicado ao pela escrita, a partir da qual a oralidade se re-
estudo da musicalidade inerente a cada língua. Ver: compõe; c) mista, na qual oralidade e escrita
Kiefer, 1979; Mâche, 1983; Valente, 1999. coexistem; d) mediatizada, pelo rádio, televisão,
6
Tonema é a inflexão final, a cadência de discos, etc.
14
um grupo fônico ou os “traços entoativos Impostar é emitir corretamente a voz. “A
localizáveis em determinados pontos do discurso. voz assemelha-se ao jato de um chafariz que se
A afirmação, a resignação e a constatação impli- eleva desde o diafragma, passando pela solida-
cam no movimento melódico descendente, enquan- riedade da garganta, chegando até seu alto-falante
to contentamento, exclamação e surpresa deter- que é a boca e se projetando numa ducha de sons
minam o movimento melódico ascendente” (Va- para toda a platéia” (Beuttenmüller, 1992).
15
lente, 1999: 110). Os parâmetros básicos da linguagem musical
7
Jean Jacques Rousseau (1712-1778), filó- podem clarear essas possibilidades: a) altura – é
sofo e romancista suíço de língua francesa, via pelo registro vocal que podemos identificar os
uma estreita relação entre política, moral e edu- vários matizes entre o agudo e o grave. As vozes
cação. Naturalista convicto, Rousseau proclama- são classificadas, de acordo com esse parâmetro,
va que a sociedade corrompia o homem, natu- em soprano (voz feminina aguda), contralto (voz
ralmente bom, mostrando-se, dessa forma, um feminina grave), tenor (voz masculina aguda) e
crítico implacável da organização social, do baixo (voz masculina grave). Essas quatro cate-
racionalismo progressista e do Estado despótico. gorias vocais possuem nuances, que escapam do
8
A frase a seguir esclarece o pensamento de objeto deste artigo. Ainda, o peso das sílabas
Rousseau: “Os sons simples saem naturalmente tônicas e átonas evidencia a inflexão melódica;
da garganta, permanecendo a boca mais ou menos b) timbre – permite reconhecer as qualidades de
aberta. Mas as modificações da língua e do palato, cada voz: ouro, bronze, gutural, nasalada, etc. É
que fazem a articulação, exigem atenção e exer- determinado pelo sexo, pela idade, pela caixa óssea
cícios... Os gritos e os gemidos são vozes sim- craniana e pela espessura das pregas vocais; c)
ples” (1978: 165). modos de ataque – formas de emitir o som
9
Herbert Marshall McLuhan (1911-1980), determinam a clareza da pronúncia (articulação
pedagogo e filósofo canadense, é autor de diver- fonética) e do fraseado, da textura vocal; d)
sos livros, destacando-se: A Galáxia de Gutenberg intensidade –– é determinada pela maior ou menor
(1962), e Os meios de comunicação como exten- energia empregada na fala. Essa gradação vai do
sões do homem (1964). grito até o sussurro; e) duração – estabelece o
10
Murray Schafer, compositor e artista plás- maior ou menor tempo de cada sílaba na palavra,
tico canadense nascido em 1933, tem se dedicado ou da palavra na frase. O modo de alongar sílabas
ao ensino da música. Ele propõe um novo “olhar” tônicas dá à palavra um valor expressivo muito
sobre o mundo pelo viés da escuta, apontando grande. A esses parâmetros podemos aplicar outros,
novos caminhos para a atuação sobre o ambiente tais como a velocidade da fala, ritmo, acentos e
sonoro. pausas. (Valente, 1999: 105).
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 561
16
A polioralidade é a junção de várias vozes, para designar uma espécie de declamação musi-
especialmente escolhidas por semelhança ou dis- cal, entre o canto e a fala.
19
tinção de timbre. Trechos das tragédias de Sófocles e
17
Jogral é o grupo de pessoal que lê textos, Eurípides são ideais para treino da polioralidade.
alternando partes individuais e partes coletivas. Também, a sua utilização em contos, por meio
Não confundir com o artista medieval que ganha- da inserção dos aspectos descritos acima nos textos
va a vida divertindo o público ou o divulgador originais, auxiliam na prática do jogral.
20
da poesia trovadoresca. A prosódia é a parte da gramática que trata
18
Técnica de emissão vocal muito usada por da correta acentuação e pronúncia das letras,
Schoenberg e outros compositores de sua escola sílabas e palavras.
562 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 563
morrer são uma unidade. (Nietzsche, Mas dizei, que poderá ainda fazer
1872: 45) uma criança, que nem sequer pôde
o leão? (...)
Criação e destruição apresentam-se de Inocência é a criança, e esquecimen-
forma justaposta, estabelecendo contornos e to; um novo começo, um jogo, uma
vazios. Para criar é necessário, por assim roda que gira por si mesma, um
dizer, também morrer. Morte ampla, meta- movimento inicial, um sagrado dizer
fórica e parcial; a morte de nossas próprias “sim”.
cascas e seivas. Sim, meus irmãos, para o jogo da cri-
As três metamorfoses, anunciadas por ação é preciso dizer um sagrado
Zaratustra em seu primeiro discurso (1885: “sim”; o espírito, agora, quer a sua
43), propõem infinitas mortes e renascimentos vontade, aquele que está perdido para
de aspectos e essências. Propõem crescimen- o mundo conquista o seu mundo.”
to irregular, intensificação da vida. Nelas (Nietzsche, 1885: 44)
também é possível observar uma saga atra-
vés da qual só é possível libertar-se a partir A riqueza metafórica com que os
de ações. Em cada etapa observa-se aspectos
movimentos são descritos permitem aproxi-
decisivos para uma compreensão sobre a
mações com a própria existência e incluem
existência criadora.
a possibilidade de observar em si tais trans-
formações e tremores de terras.
O espírito de suportação, para além de
Como o espírito se torna camelo e
pesadíssimas cargas, carrega os fardos de
o camelo, leão e o leão,
por fim, criança. (...) um tipo de moral que requer o cumprimento
“O que há de pesado?”, pergunta o de deveres. Mas a marcha para o próprio
espírito de suportação; e ajoelha deserto, uma tal solitude parece engenhar
como um camelo, e quer ficar bem o espaço necessário à transformação. O de-
carregado. serto como metáfora de vazio e de desterro
“O que há de pesado, ó heróis”, per- pode ser capaz de inspirar uma salutar con-
gunta o espírito de suportação, “para frontação consigo mesmo. Pode inspirar,
que eu o tome sobre mim e minha ainda, vontade de potência, dominação; o
força se alegre?”(...) desejo de ser senhor em seu próprio deserto,
pesadíssimos fardos toma sobre si enfim.
próprio o espírito de suportação; e Quando ocorre a segunda metamorfose
tal como o camelo, que marcha observa-se a necessidade do estabelecimento
carregado para o deserto, marcha ele de uma luta para a conquista da liberdade.
para o seu próprio deserto. Uma luta que requer força selvagem. Tal
Mas, no mais ermo dos desertos, dá- força, que não carrega fardos, é livre para
se a segunda metamorfose: ali o se impor como vontade; para estender seus
espírito torna-se leão, quer conquis- domínios.
tar, como presa, a sua liberdade e ser Criar para si a liberdade de novas
senhor em seu próprio deserto. (...) criações talvez seja um exercício necessário
Qual o grande dragão, ao qual o e uma luta diária. Nesse sentido, as meta-
espírito não quer mais chamar senhor morfoses se realizariam com possibilidades
nem deus? “Tu deves” chama-se o quase infinitas de reincidências. Mas tais
grande dragão. Mas o espírito do leão fenômenos não seriam propriamente repeti-
diz: “eu quero”. (....)” ções, pois encontrariam no homem outro
Criar novos valores – isso também campo de experiência, profundamente alte-
o leão ainda não pode fazer; mas rado pelas metamorfoses anteriores. A idéia
criar para si a liberdade de novas de eterno retorno aqui, é compreendida
criações - isso a pujança do leão pode apenas como possibilidade transitória, a partir
fazer. (...)” de observação de Nietzsche.
566 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
The new artist, equipped for acting questão que se propõe debater é a possibi-
in the ambit of net economies, will lidade da criação de matrizes abertas à acção
necessarily be a social agent belonging de um utilizador/criador de interfaces. O autor
to the sector of immaterial labour, that controla a matriz de construção como obra
of the production of knowledge. He aberta e reconfigurável, e prepara-a para a
shall never more be a shaman, a lay acção de diferentes criadores num espaço
preacher, or a bohemian living outside amplo de múltiplas possibilidades. Para que
the productive economic sphere. a obra seja emergente, o autor abdica de parte
Rather, she or he will qualify as“know do controlo da matriz, permitindo ao
workers. utilizador desenvolver um conjunto de ac-
net.art and the coming culture ções possíveis da sua autoria, nomeadamen-
– José Luis Brea te, a manipulação e samplagem do design,
do software e da arquitectura do sistema. O
Podemos imaginar uma cultura em software, por seu lado, como engenho de
que os discursos circulassem e fos- inteligência artificial, automatiza-se e é capaz
sem recebidos sem que a função autor não só de replicar o processo iniciado pelo
jamais aparecesse. Todos os discur- autor e utilizador como também de introdu-
sos, qualquer que fosse o seu esta- zir na obra decisões ao nível do cenário,
tuto, a sua forma, o seu valor e permitindo ainda a incursão de novas per-
qualquer que fosse o tratamento que sonagens e espaços em resposta às acções
se lhes desse, desenrolar-se-iam no do jogador.
anonimato do murmúrio. Deixaríamos Dos inúmeros exemplos de autoria par-
de ouvir as questões por tanto tempo tilhada possíveis escolhi seis que me pare-
repetidas: “Quem é que falou realmen- cem exemplificar bem o tipo de relações que,
te? Foi mesmo ele e não outro? Com no futuro, se vão desenvolver em termos de
que autenticidade, ou com que origi- autoria multimédia. O primeiro é um jogo
nalidade? E o que é que ele exprimiu à volta da economia mundial do colectivo
do mais profundo de si mesmo no seu de artists etoys. O Segundo é um site: 1001
discurso?” Nights in Manhattan: Mapping Sex in New
O que é um autor? York City que permite a inscrição de histó-
– Michel Foucault rias na rede. O terceiro, um programa de
software de nome FMOL (Faust Music On
Where once art was at the center of Line) desenvolvido por Sergi Jordà para o
moral existence, it now seems possible espectáculo Fausto v3.0 dos Fura dels Baus.
that play, given all its variable O quarto, o trabalho digital do colectivo Jodi
meanings, given the imaginary, will à volta da descontrução do código e do
have that central role. mapeamento das representações em rede. O
The Ambiguity of Play quinto, um exemplo retirado da tese de
– Brian Sutton-Smith mestrado do designer e editor Gonzalo Frasca.
Por último, um jogo de arcada, desenvolvido
Os jogos em rede, ao apelarem à parti- pelos artistas alemães Furs, que inflige dor
cipação e criação colectivas, permitem a aos utilizadores.
construção em tempo real, de histórias
emergentes, de dispositivos de programação (...) we, as readers, may become not
abertos, elaborados por diferentes autores. A the masters of the text, but
570 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
collaborators in its writing, partici- presa que os tinha tentado aniquilar com uma
pants in the process of our own campanha absolutamente desleal. Porque os
becoming. (Keep, 1999: 180) etoy ousaram entrar e introduzir o vírus
artístico no espaço do comércio, como nos
Que objectos são estes que, através de conta Birgit Richard, a eToys tentou “reenviá-
uma colaboração dinâmica de diferentes los para o gueto”. Por intermédio dos etoy
autorias e proveniências, questionam o papel a arte concorre com a economia não somente
do autor e do utilizador/leitor? O hipertexto no plano visual mas também estrutural e,
como medium de escrita metamorfoseia o segundo a autora, engendra num corpo
autor num editor ou produtor multimédia, colectivo, a partir de uma estética geral, a
como nos diz George P. Landow 3 ? O sua identidade como empresa. Mais resisten-
hipermédia, como o cinema, o vídeo e a ópera te às pressões económicas do que um artista
será um trabalho de equipa para o qual individual, o corpo virtual redefine o jogo
contribuem inúmeros especialistas de dife- informático como uma toywar e, utiliza a arte
rentes áreas? A quem atribuir a autoria destes na internet, através de um jogo em rede, para
objectos: ao argumentista interactivo? Ao resistir a uma forma invisível de violência
designer de interfaces? Ao designer de económica. A transferência de modelos
software? Ao programador? O utilizador/leitor comerciais para o domínio da arte é também
colabora com o autor da obra através das suas uma forma de fugir ao sistema artístico
escolhas? Não existirá, no entanto, uma convencional. E, neste caso, a uniformidade
qualidade obscura no hipertexto que, através colectiva torna-se subversiva.
da sua estrutura organizacional, força dese-
jos no utilizador/leitor, tal como o super- The virtual presence of other texts and
mercado força desejos no consumidor, como other authors contributes importantly
refere Chistopher J. Keep, e, neste contexto, to the radical reconception of
nos fornece uma ilusão de liberdade ao propor authorship, authorial property, and
um utilizador que escolhe e toca as coisas collaboration associated with
que melhor lhe assentam? Não poderá tam- hypertext. Within a hipertext
bém o hipertexto e a hiperficção, incutir environment all writing becomes
desejos, sofrimentos, vontades? Um compra- collaborative writing, doubly so.
dor/leitor livre que se move num mundo (Landow, 1997: 104-05)
infindável de comodidades lexicais?4
A autoria partilhada nos objectos multi-
Le collectif etoy représente la future média é definida por George P. Landow
generation artistique: basée sur le web, mediante quatro formas de produção distin-
élitare et creative. Il réunit différentes tas. Em primeiro lugar, o objecto revela-se
tendencies du net art, du net activisme, através das decisões e escolhas de percurso
et les traditionnels modèles artistique efectuadas pelo receptor; o autor não existe
et commerciaux. Préférant à la sem que exista um potencial utilizador da
rebellion classique l’assimilation des sua obra. Em segundo lugar, o autor tem
armes commerciales, il engage um consciência da existência de outros poten-
combat structurel pour l’occupation ciais autores na rede; o criador tem a cons-
esthétique des espaces. (Richard, 2002) ciência da presença virtual no sistema de
outros autores, que embora tenham escrito
Uma polémica interessante foi gerada pela em tempos diferentes, com ele dialogam
empresa eToys com o colectivo de artistas através de links e estruturas abertas. Em
etoy.com5. A empresa americana de venda de terceiro lugar, alguns projectos promovem a
brinquedos online, promoveu uma persegui- segmentação de tarefas dos diferentes
ção aos artistas para conseguir o URL da etoy, intervenientes no processo de criação. Exis-
tendo colocado o colectivo em tribunal para te, neste caso, no final, uma assemblage em
além de os insultar inúmeras vezes publica- que as contribuições individuais se agrupam
mente. Os artistas organizaram um interes- num só objecto. Por último, uma quarta forma
sante jogo em rede para destruírem a em- de produção revela-se como uma combina-
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 571
as: misturam-se épocas e fases históricas num o computador. Para Rodney Brooks do MIT,
mesmo caldeirão lírico. O potencial teatral citado por N. Katherine Hayles, uma vez
de tais actuações colectivas é enorme e, tal descoberta a essência do ser e da sua forma
como um livro, é capaz de transportar para de reagir, os problemas de comportamento,
o seu interior o leitor. Estes jogos apelam linguagem, aplicação e conhecimento apli-
à temática da evasão, promovendo nos seus cados tornam-se fáceis de simular. Da essên-
participantes a ideia de possibilidade de fuga cia, para os estudiosos da vida artificial,
à realidade. Uma voz constante nestes fazem parte a habilidade para o movimento
fazedores de mundos: “quando eu leio algu- num ambiente dinâmico, a capacidade de
ma coisa, é geralmente um pouco para sair sentir a envolvente e os arredores e um grau
da realidade”16. Da mesma forma a simula- suficiente para se chegar à preservação da
ção das diferentes personagens mágicas, que vida e à reprodução.
vão adquirindo competências no jogo, são es- O que resulta deste sistema? Primeiro: não
colhidas de acordo com imaginários extra- há uma representação central. Segundo: o
terrestres, da ficção científica, paranormais controlo está distribuído pelas várias com-
e afins. Não se reproduzem os diferentes ponentes. Terceiro: os comportamentos de-
papéis da vida real, como nos Sims e à senvolvem-se em directa interacção com o
maneira da comédia da vida, como nos relata ambiente em vez de se basearem num modelo
Erving Goffman, mas antes se utilizam estes abstracto. Quarto: comportamentos comple-
para um ensaio de potencialidades mágicas xos emergem espontaneamente através de um
e rituais. processo de auto-organização emergente. A
possibilidade de um sistema integrado que
What is this changed way of thinking? aprende a pensar através das experiências do
To summarize: first, there is no cen- corpo, resolvendo progressivamente objecti-
tral representation; second, control is vos abstractos, leva-nos a repensar as nossas
distributed throughout the system; noções sobre a inteligência, diz-nos N.
third, behaviors develop in direct Katherine Hayles. O que é que permite ao
interaction with the environment sistema envolver-se num processo de orga-
rather than through an abstract model; nização auto-regulada? Diferentes níveis de
and fourth, complex behaviors emer- organização sistémica, conexão por loops de
ge spontaneously through self- feedback, regras locais que, através de re-
organizing, emergent processes petidas aplicações, desencadeiam estruturas
(Hayles, 1999: 213) globais emergentes. O utilizador tem, neste
contexto, a capacidade de desencadear no
Criar dispositivos e engenhos de inteli- sistema uma mutação espontânea adquirindo
gência artificial que estudam e replicam as um status quase semelhante ao do autor
acções do sujeito e permitem capturar a inicial.
estrutura lógica do processo não é uma forma
de criar modelos de evolução mas a evolu- (But then, consciousness itself may be
ção em si, diz-nos N. Katherine Hayles17. Os an emergent phenomenon arising from
agentes artificiais, incorporados no meio das distributed systems no more
nossas marionetas e personagens nos jogos enlightened than the computer
que jogamos, descobrem o mundo através das program.) Cog [o robot] meets cogi-
suas interacções com o ambiente. Estes to. (Hayles, 1999: 219)
autómatos vão sendo criados sem deterem
qualquer representação central do mundo, sem Um sistema que aprende a pensar através
imagens nem comportamentos pré-programa- das experiências de um corpo? Mas não
dos. Estes programas não imitam mas antes estamos perante o programa da Fenome-
simulam comportamentos, interacções, mo- nologia da Percepção, de Merleau-Ponty?
mentos. O jogo sofre um processo de mutação Não é a fenomenologia o estudo das essên-
e o nosso corpo reorganiza-se para acolher cias? O estudo da essência da percepção e
novos padrões tactéis, quinestésicos, visuais da consciência?18 Partindo do pressuposto que
e sonoros, provenientes da interacção com o real é um tecido sólido e que o mundo
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 575
não é aquilo que se pensa mas aquilo que É necessário passar das teorias de um conhe-
se vive, a unidade do objecto/mundo funda- cimento dos factos psicológicos e fisiológi-
se no pressentimento de uma ordem eminen- cos, ao reconhecimento do evento anímico
te que dá resposta a questões apenas latentes como processo vital inerente à nossa expe-
na paisagem. É num processo de captura do riência. A união da alma e do corpo não é
mundo que o índividuo constrói e resolve os resolvida através de um decreto arbitrário entre
seus problemas. Os estímulos e sensações dois termos exteriores (objecto e sujeito), está
provenientes do exterior fornecem a este explícita em cada instante no movimento da
corpo uma vaga inquietude, organizam os ele- existência (Merleau-Ponty, 1945: 105). Este
mentos que até aí não pertencem ao mesmo corpo, não é mais um objecto do mundo mas
universo e que por essa razão não podem um meio na nossa comunicação com ele. O
ser associados (Merleau-Ponty, 1945: 24-25). mundo deixa de ser a soma de objectos do pen-
Eliminamos, na nossa relação com o mundo, samento cartesiano para se transformar no
segundo Merleau-Ponty, criticando detalha- horizonte latente da nossa experiência. Um
damente a escola empirista e intelectualista, a presente sem pensamento determinante. O
ideia de que a atenção, a atenção ao que nos espaço corporal é um espaço interior, um fundo
rodeia, não cria nada. Considera-se, neste caso, sobre o qual pode surgir o objecto como
que a atenção cria um campo perceptivo ou princípio de acção. O homem, tal como o actor,
mental que o homem pode dominar através dos não toma como reais situações imaginárias mas
seus movimentos e explorações. A atenção não inversamente serve-se do corpo real e da sua
é, uma associação de imagens, a memória situação vital para o fazer respirar, falar e cheirar
“forrada” com os seus objectos, mas antes a no imaginário (Merleau-Ponty, 1945: 110-22).
constituição activa de um objecto novo que Cada estimulação corporal acorda no
explicita e constrói o que ainda não tinha sido homem não um movimento efectivo mas um
oferecido ao corpo senão como horizonte tipo de movimento virtual. A parte sensibi-
indeterminado (Merleau-Ponty, 1945: 36-39)19. lizada sai do anonimato e anuncia através de
uma tensão particular e com a força da acção,
Je peux donc m’installer, par le moyen o quadro do dispositivo anatómico. O corpo
de mon corps comme puissance d’un é, neste contexto, um centro de acção virtual,
certain nombre d’actions familières e a existência espacial uma condição primor-
dans mon entourage comme ensemble dial de toda a percepção viva (Merleau-Ponty,
de manipulanda, sans viser mon corps 1945: 126). A percepção e o movimento
ni mon entourage comme des objects formam um sistema que se modifica como
au sens kantien, c’est-à-dire comme um todo e é através de uma concertação de
des systèmes de qualities liées par une gestos e sentidos que os orgãos do corpo
loi intelligible, comme des entités próprio exploram o mundo como um sistema
transparentes, libre de toute adhérence integrado, em que o controlo está distribuido
locale ou temporelle et prêtes pour la pelos diferentes membros. O táctil puro ou
dénomination ou du moins pour un a visão pura seriam sempre, para Merleau
geste de désignation (Merleau-Ponty, -Ponty, experiências e fenómenos patológi-
1945: 122). cos, pois não há um gesto táctil e uma ex-
periência visual per si, mas antes uma ex-
O campo fenomenal não é um mundo periência integrada onde é impossível
interior, o fenómeno não é um estado de discernir os diferentes estímulos e proveni-
consciência ou um facto psíquico, a reali- ências sensoriais.
dade existe para ser percepcionada. A expe-
riência dos fenómenos não é uma increase ball speed 3x… doubles pain
instrospecção ou uma intuição, como dizia execution time… almost unblockable
Berkeley20. Merleau Ponty apela-nos para a ricochet… quadruples pain execution
destruição da ideia de exterior como time… Pain execution time? What
conceptualização prévia, como projecção na kind of pain? What kind of execution?
mente, através da experiência do corpo como It’s really about getting the body
representação (Merleau-Ponty, 1945: 90-99). involved (Lockridge, 200221)
576 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
O Museu Virtual:
as novas tecnologias e a reinvenção do espaço museológico
Rute Muchacho1
Un nouveau type d’artiste apparaît, “es un labor clave, que exige un planeamen-
qui ne raconte plus d’histoire. to diario y hasta una invención y redefinición
C’est un architecte de l’espace des de la calidad de sus servicios, acrecentada
événements, un ingénieur de mondes esta necessidad por el protagonismo que há
pour des milliards d’histoires à venir. adquirido el visitante y su entusiasmo
Il sculpte à même le virtuel. creciente por el consumo que le ofrecen estas
(Levy, 1998: 145) instituciones culturales” (Fernandez,
1999:126). O museu tem de se adaptar às
O desenvolvimento das Tecnologias da necessidades da Sociedade actual, em cons-
Informação e da Comunicação (TIC) e as con- tante mutação. As novas correntes
sequências da sua massificação na Sociedade museológicas não surgem como um substi-
actual são cada vez mais ponto de análise tuto à Museologia tradicional, mas como uma
e reflexão. O potencial social das TIC e os nova forma de entender o espaço museal.
efeitos que produzem na forma de pensar e Como afirmou Mário Moutinho “não foi a
de agir de cada indivíduo são, de acordo com Museologia tradicional que evoluiu para uma
alguns autores (Castells, 2002), indiscutíveis. Nova Museologia mas sim a transformação
Este trabalho tem dois objectivos essen- da sociedade que levou à mudança dos
ciais: parâmetros da Museologia” (1989:102).
- definição e discussão do conceito de O museu da actualidade está a enfrentar
museu virtual; um desafio constante e primordial:
- definição das formas possíveis de - a comunicação com o seu público.
materialização desse conceito através do O espaço fechado em si próprio, criado
recurso às TIC. com o objectivo principal de preservar e sal-
A sua apresentação desenvolve-se ao vaguardar um património,4 está a alterar-se
longo de dois aspectos centrais para a para ser capaz de transmitir um conceito e
temática: de possibilitar aos diversos públicos expe-
- utilização das TIC como instrumento riências sensíveis através da interligação com
de comunicação entre o museu e o seu o objecto museal. Como defende Varine “é
público; no contacto sensorial entre o homem e o
- utilização das TIC como instrumento objecto que o museu encontra a sua justi-
de transformação do espaço expositivo ficação e por vezes a sua necessidade”
material e imaterial do museu. (1992:52).
O museu, como importante meio de O discurso expositivo tem de possuir uma
comunicação, tem de aproveitar todo este de- relação clara com aquilo que se expõe. O
senvolvimento comunicacional e tecno-lógi- novo pensamento museológico veio trazer
co, no sentido de satisfazer as novas corren- novos desafios à expografia, criando a ne-
tes da museologia que se estão a debruçar cessidade de novas formas de expor, “o
sobre o papel do museu na sociedade actual.2 desafio que se coloca é o de introduzir no
A instituição museológica sofreu grandes museu o utensílio da forma ( não herdada,
alterações e foi alvo de salutar discussão3 que mas constituída como obra de arte, enten-
motivou novas formas de pensar o museu, dida nos sentidos referidos) como suporte
havendo agora a consciência de que neces- para a comunicação das ideias” (Moutinho,
sita de se libertar do espaço tradicional e 1994:20).
limitado, para se tornar acessível ao grande A exposição é vista como uma ambiência,
público. A atenção e a educação do público na qual os objectos são colocados num
580 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
determinado contexto, de forma a se poder pectivas das TIC face aos museus, em es-
comunicar determinada mensagem ao visi- pecial na forma como expõem os objectos
tante. O sentido do objecto é exteriorizado e comunicam com o público.
pelo seu contexto. O conceptor da exposição Ao visitar um museu, via Internet ou CD-
vê o percurso expositivo como um conjunto ROM, fica-se com nova visão do espaço
de objectos colocados de forma concreta, museológico. A visita desenrola-se num ecrã
tendo como fim a trans-missão de determi- e é comandada pela escolha do visitante
nada mensagem, mas, no entanto, cada visi- virtual, de acordo com as suas necessidades.
tante integra experiências prévias e as suas As barreiras físicas entre os objectos e os
próprias expectativas e interesses em relação visitantes são dominadas, o mesmo aconte-
determinada exposição.5 cendo à obrigatoriedade de seguir determi-
O museu tradicional não consegue trans- nado percurso. Como defende Alison Griffiths
mitir todo o seu valor através da visita, “such technologies have changed the physical
fechado sobre si próprio e preocupado so- character of the museum, frequently creating
bretudo com a colecção e salvaguarda de striking juxtapositions between nineteenth-
objectos, não conse-gue desempenhar a sua century monumental architecture and the
função mais enriquecedora e fundamental: electronic glow of the twenty-first century
comunicar com o público. computer screen. Via the World Wide Web,
As TIC são um instrumento precioso no the museum now transcends the fixities of
processo de comunicação entre o museu e time and place, allowing virtual visitors to
o seu público. A sua utilização como com- wander through its perpetually deserted
plemento de uma exposição vem facilitar a galleries and interact with objects in ways
transmissão da mensagem pretendida e cap- previously unimagined”. Na verdade, quase
tar a atenção do visitante, possibilitando uma que podemos afirmar que se realiza uma nova
nova visão do objecto museológico. visita, abrangendo determinados objectos e
Esta nova realidade levanta uma questão percursos expositivos que não foi possível
pertinente: “the tension between the museum realizar no museu tradicional. Quando se passa
as a site of uplift and rational learning as para o campo virtual, o campo de acção alarga-
opposed to one of amusement and spectacle” se, dando origem a múltiplos percursos
(Griffiths, 2003: 376). Os museus podem ser interactivos. O visitante assiste à “imposição
mais atractivos para o público se disponibili- de um espaço tecnológico, ou melhor, do
zarem mais informação e entretenimento, ou tecnológico como espaço, como palco, por
a combinação dos dois – edutainment – excelência, da abertura dos possíveis da
constituindo um espaço atractivo, com ca- experiência – o ciberespaço” (Cruz, 1998:12).
pacidade para alargar e multiplicar as expe- O objecto museológico abre-se à expe-
riências sensoriais e cognitivas que cada riência estética através do virtual, através de
sujeito pode usufruir. um artifício: a imagem virtual.
As instituições museológicas estão a A expressão “imagem virtual” engloba as
esforçar-se por possuir um site institucional imagens numéricas e a ideia de simulação
de forma a transmitir ao grande público do real. Como afirma Jean Baudrillard “já
informação sobre o conteúdo do seu acervo não existe coextensividade imaginária: é a
e sobre as actividades culturais desenvolvi- miniaturização genética que é a dimensão
das no seu espaço. O museu está a ser da simulação. O real é produzido a partir
democratizado, tornando-se facilmente aces- de células miniaturizadas, de matrizes e de
sível em qualquer parte do mundo. memórias, de modelos de comando – e pode
O museu virtual é uma realidade nova ser reproduzido um número indefinido de
na museologia, mas existem poucos estudos vezes a partir daí. (...). Na verdade, já não
sobre esta temática, embora se tivesse assis- é o real (...) é um hiper-real, produto de
tido nos últimos anos a uma proliferação do síntese irradiando modelos combinatórios
uso do conceito. Muitas vezes o que é num hiperespaço sem atmosfera” (1981: 8).
intitulado de museu virtual é apenas um site O museu virtual vai dissociar o objecto
informativo sobre as actividades do museu, museológico da sua aura, materializando-o
esquecendo as potencialidades e novas pers- sob a forma de imagem virtual, ou seja, de
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 581
Capítulo V
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL
586 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 587
Apresentação
Manuel Damásio1
meio. Quer estejamos a discutir as novas em que nos preocupávamos com a análise
formas híbridas de comunicação audiovisual, da infra-estrutura de transmissão, terminais
como é o caso da televisão interactiva, ou de recepção e natureza do canal, devemos
as tecnologias mais tradicionais, como a rádio agora passar a um novo período, em que as
ou a televisão, o que está sempre em causa ciências da comunicação se concentrem mais
é a capacidade que o meio demonstra de nas práticas individuais e colectivas de uso
destas tecnologias e menos na forma e
fornecer ao seu utilizador uma experiência
natureza das mensagens que elas produzem.
cada vez mais credível e adaptada às suas
necessidades e condições reais.
Hoje já não podemos isolar o audiovisual
_______________________________
do conjunto das tecnologias que lidam com 1
Universidade Lusófona. Coordenador da
a criação destas experiências subjectivas cada Sessão Temática de Comunicação Audiovisual do
vez mais ricas e personalizadas. De um tempo VI Lusocom.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 589
Apresentação
Francisco Rui Cádima1
Em primeiro lugar diria que, numa in- cas da recepção específicas atinentes ao
trodução à temática da ‘comunicação campo do telespectador.
audiovisual’, importa contextualizar a emer- Repare-se que as práticas culturais dos
gência da Televisão no âmbito do dispositivo portugueses, nomeadamente no que diz res-
histórico-cultural e comunicacional do sécu- peito ao consumo de televisão têm vindo a
lo passado e procurar compreender esse mudar nos últimos anos. Desde a chegada
fenómeno no plano societal, no contexto da televisão por cabo, foram conquistados
jurídico-político e cultural do tempo. cerca de três milhões de telespectadores à
Compreender, por exemplo, os mecanis- televisão hertziana, boa parte dos quais
mos de apropriação dos media por parte dos tornaram-se progressivamente telespectado-
diversos campos de dominação, transforman- res de canais temáticos, nas suas diferentes
do-os, por vezes em máquinas de propagan- tipologias.
da, ou em aparelhos ideológicos de poder, Claro que uma visão actualizada do
através da imposição de lógicas de consenso dispositivo televisivo implica problematizar
social, cultural e político. a própria inflexão tecnológica do presente e
Explicitar os contextos mass-mediáticos, nessa perspectiva implica introduzir as pro-
quer enquanto processo de enunciação
blemáticas da evolução das linguagens e dos
subsumido num fluxo unívoco de comuni-
conteúdos específicos da transição do ambi-
cação, quer enquanto fluxo bidireccional em
ente analógico para o novo contexto digital.
transição para um dispositivo matricial pon-
Vejamos para já a anterior lógica de
to-a-ponto, interactivo.
difusão ponto-multiponto, específica do
Pensar, enfim, as relações entre a tele-
modelo tradicional de televisão generalista,
visão e a sociedade, sistema complexo ao qual
a investigação científica não tem dado a que ainda se mantém, apesar da cada vez
devida importância, apesar de se tratar de uma maior fragmentação do audiovisual. Neste
complexa temática, porventura decisiva para modelo de ‘pirâmide’ a comunicação é
uma percepção mais clara da contempora- unívoca, integra uma complexa rede
neidade. discursiva vinculante, legitimadora, uma nova
Ora é sabido que um meio de comuni- ordem simbólica, de certa forma dissuasora,
cação, isto é, os seus principais actores, or- unilateral, estabelecendo-se assim um mode-
ganizam e enunciam o seu discurso em função lo contratual, no fundo, uma ordem política
das relações de poder e das representações e um quadro normativo-cultural, com impac-
que se configuram num determinado campo to também no plano dos comportamentos e
social e num contexto epocal. No sentido de das condutas.
se poder pensar o modo como se constitui Poder-se-ia referir aqui o texto clássico
o sentido dessa dinâmica discursiva, importa de Casetti e Odin, onde se problematiza a
conhecer e compreender a noção de dispo- oposição entre Paleo e Neo televisão. Para
sitivo mediático, nas suas diferentes dimen- estes autores, a televisão foi desde logo
sões, que do ponto de vista do emissor – apropriada por uma experiência de comuni-
através das dimensões técnica, instrumental cação pedagógica, processo que se configu-
e performativa –, quer do ponto de vista da rou, nas primeiras décadas da sua história,
recepção, percebendo-se a lógica de inflexão num ‘contrato’ com o telespectador, trans-
de modelos comunicacionais e dos respec- formando-se assim, claramente a televisão
tivos campos de mediação a partir da emer- como uma ‘empresa’ de escolarização
gência do conceito de audimetria e das práti- alargada o todo o social.
590 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
el contenido y buscan fórmulas que aporten consiste en construir todos los procesos de
más capitalización y liquidez. la empresa tomando como primera referencia
En este escenario caracterizado por la al cliente/consumidor. El objetivo es construir
revolución tecnológica en marcha y por la relaciones duraderas mediante la comprensión
concentración empresarial, con grandes de las necesidades y preferencias individuales
desafíos comunicativos, el consumidor/cliente añadiendo un valor a la empresa y al
se ha convertido en el protagonista de una consumidor. La estrategia de negocio se
nueva era, la era digital, y de una nueva utiliza como base para mejorar la capacidad
sociedad, la Sociedad de la Información. de innovación de la empresa u organización
Los consumidores no sólo han modificado asegurándose que las mejoras y renovaciones
de manera radical sus hábitos en los últimos de productos y servicios satisfagan al
años, sino que se han vuelto cada vez más consumidor. Para ello, las empresas utilizan
exigentes. De esta forma, el cliente del tercer más de un canal para llegar a sus clientes:
milenio aparece como una persona informada, representantes de ventas, atención telefónica,
sensible a los precios, que cuenta con una internet, extranet,9 cadena de minoristas,
amplia gama de opciones donde elegir, tiene mayoristas, etcétera.
gustos sofisticados y está acostumbrada a La estrategia de negocio se anticipa a esas
altos niveles de calidad y de servicio. Ante necesidades de los consumidores, incrementa
este nuevo paradigma, las empresas se su fidelidad y rentabilidad, ahorra en costes
esfuerzan más para gestionar adecuadamente de venta gracias a la selección del público
las relaciones con sus clientes con el fin de objetivo y mejora su grado de satisfacción.
satisfacerlos y retenerlos. Esto es debido a un incremento en la
Las relaciones entre el cliente y la eficiencia de la atención al cliente, a la
empresa en la Sociedad de la Información reducción del tiempo en la resolución de
y de las Comunicaciones, pasan a ocupar un problemas, en el incremento de frecuencia
lugar privilegiado. El consumidor/cliente se de contacto con el consumidor y en su
ha convertido en el centro y objetivo de todas satisfacción así como en la conversión de
las actividades, procesos, personas, estrategias centro de costes a centro de beneficios.
y sistemas de la empresa. Conseguir un nuevo Emerge, así, una nueva forma de entender
cliente y mantener a los actuales supone para el papel del cliente o usuario por la mayor
las organizaciones una gran dificultad. De capacidad de decisión en periodos de tiempo
hecho, captar a un nuevo cliente cuesta entre cada vez más reducidos y por la
cinco y diez veces más que fidelizar a uno personalización característica de este contexto
ya existente. Estos parámetros son aplicables donde se combinan los usuarios individuales
a todo tipo de empresas, independientemente e institucionales. Al mismo tiempo se
del sector en el que se muevan. requieren estudios concretos sobre qué
Este nuevo mercado de la información información es solicitada y cómo se pide, si
y de la comunicación ha dado lugar a una bien se debe recordar que el criterio
nueva estrategia, la estrategia de negocio que predominante ha de ser el economicista.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 599
Figura 1: Electronic Programme Guide, Sky diferentes canais de áudio (comentários e som
do estádio) e repetições dos jogos;
pago de cabo ou de satélite, na altura em das e que, quando encontram tempo para
que decidir migrar para a TDT15. ver Televisão, encaram-na como um meio
útil de relaxar, interagir com outras pessoas
3. Conclusões: adequar a oferta às neces- e estar a par dos acontecimentos nacionais
sidades e preferências dos utilizadores e internacionais do mundo “real”, bem como
dos eventos dos mundos da “ficção” ofe-
Como medium, a Televisão Interactiva recidos pelas novelas, seéries e filmes18. “A
ainda mal começou a dar os primeiros passos, indústria da televisão está a começar a
defende Scott Gronmark, que foi o principal perceber que a imagem tradicional da fa-
responsável da BBC pela área de desenvol-
mília reunida à volta do televisor está ul-
vimento de programação interactiva até
trapassada”, afirmou o director de novos
Janeiro de 2004 (Gronmark, cit. Gawlinksi:
Media e tecnologia da BBCi Ashley
2003):
Highfield, na conferência Next MEDIA que
“Alguns grandes acontecimentos, decorreu em finais de 2003, acrescentando
como Wimbledon, “Big Brother”, que as empresas de Media com sucesso serão
“Walking With Beasts” e “Test The as que compreenderem que o contexto
Nation”, trouxeram luz à grande ques- mudou e que os espectadores querem con-
tão”– o que querem os espectadores sumir Media de formas diferentes19.
da interactividade? Em lugar de re- De acordo com os recentes estudos tor-
petirmos infinitamente estes formatos nados públicos pela BBC, existem quatro
iniciais, necessitamos de continuar a novas e importantes tendências sociais que
experimentar e criar novos forma- demonstram que a forma como consumimos
tos”16. televisão está a mudar de forma irreversível.
Daí que a BBC tenha começado a mudar os
No entanto, a inovação e a experimen- seus conteúdos e a procurar esbater as fron-
tação só fazem verdadeiramente sentido teiras entre novos e “velhos” Media de
através da adequação às necessidades e maneira a que todos saiam beneficiados, como
preferências dos utilizadores/ espectadores. referiu Ashley Highfield. Assim, há a assi-
Num estudo da reponsabilidade do British nalar as seguintes tendências de fundo:
Film Institute, no qual cerca de 500 parti- - as pessoas estão a assumir o controlo
cipantes completaram diários detalhados do seu consumo de Media,
sobre as suas vidas e a Televisão durante um - as pessoas querem cada vez mais
período de cinco anos, a maior parte das
participar e estar próximo dos Media,
pessoas consultadas mostrou-se aberta a
- as pessoas consomem cada vez mais
desenvolvimentos futuros nas áreas da Te-
diversos Media em simultâneo,
levisão e Home Entertainment – embora, a
- as pessoas querem partilhar conteúdos
generalidade das pessoas não esteja tão
ansiosa por novos produtos e serviços quan- – vídeo, música, etc – com outros pares20.
to o desejado pelas empresas fornecedoras Margherita Pagani, investigadora do I-Lab
de equipamentos e serviços nestes sectores Research Center on Digital Economy da
(Gaunlett and Hill: 1998): Universidade de Bocconi em Itália, defende
o seguinte ponto de vista (Pagani: 2003):
“até mesmo aqueles que eram mais
entusiastas das novas tecnologias eram “Hoje os líderes da indústria da te-
cautelosos em três pontos essenciais levisão enfrentam o dilema de esco-
– custo, estética e tempo disponível”17. lher qual o papel que querem desem-
penhar no panorama da Televisão
Este mesmo estudo – que serviu de base Digital nos próximos cinco a dez anos.
ao livro TV Living de David Gaunlett e Essencialmente, resume-se a uma
Annete Hill - revelou que os participantes questão simples: querem ser princi-
não estão propriamente colados ao televisor, palmente detentores de conteúdos ou
antes que levam vidas preenchidas e anima- detentores de consumidores?”21
606 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
O mesmo será dizer, que a primeira opção A. Norman enfatiza que é fundamental in-
envolve desenvolver e explorar conteúdos vestigar as reais necessidades dos utilizadores.
através de uma série de canais de distribui- Um exemplo desta orientação para as
ção para os consumidores, uma estratégia necessidades reais das pessoas, bem como da
sumarizada na conhecida expressão “content importância de simplificar a utilização dos
is king”. Já a segunda opção envolve cons- novos media e das novas tecnologias é o serviço
truir o negócio com base na relação com o de Áudio-Descrição. Este serviço consiste em
consumidor, em que o “consumer is king”. adicionar uma faixa de áudio a um programa
O grande desafio é o de compreender de televisão de forma a descrever por palavras
profundamente o que os consumidores/ o que se passa na imagem, destinado a pessoas
utilizadores querem, tal como aponta Ben com deficiências visuais. Este tipo de serviço
Schneiderman, um dos maiores especialistas já existe em diversos países, como é o caso
mundiais na área do Interface Homem- da Inglaterra, através dos operadores de TV paga
Máquina, já que as tecnologias bem suce- como a Sky e de canais como a BBC. No fundo,
didas são as que estão em harmonia com as trata-se neste caso de proporcionar a pessoas
necessidades dos utilizadores (Schneiderman: com necessidades especiais uma experiência
2003): mais rica de televisão, auxiliando na compre-
ensão do programa através das descrições de
“Estas devem apoiar relações e acti- um narrador. Simples e útil, projectos como
vidades que enriquecem as experiên- este podem e devem ser acarinhados por ope-
cias dos utilizadores”22. radores de televisão, canais de televisão, pro-
dutoras de televisão e outras entidades com
De igual modo, Donald Norman, uma responsabilidade nas áreas dos Media e das
autoridade mundial no campo da usabilidade, novas Tecnologias de Informação e Comuni-
tem por mandamento “know your customer” cação.
– conhece o teu cliente, já que não interessa Em resumo, a próxima vaga de inovação
ser o primeiro, ser o melhor ou mesmo estar deverá ser impulsionada pelas necessidades
certo, o que interessa é o que os clientes humanas em vez de o ser pela tecnologia,
pensam23. Definindo human-centred product assim o defende Ben Schneiderman, para
development como o processo de desenvol- quem a “excelência técnica deve estar em
vimento de um produto que se inicia com harmonia com as necessidades dos
os utilizadores e com as suas necessidades, utilizadores” e para quem “as grandes obras
em vez de começar pela tecnologia, Donald de Arte e da Ciência são para todos”24.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 607
Bibliografia Future_Media_Events/FM_Presentations/
adrian_stroud.pdf,
Austin, Gary, “Is the novelty of DTV Teixeira, Clara, “Candidatos Admitem
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1
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17
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11
Gawlinski, Mark, Interactive Television 18
Gauntlett, David and Hill, Annette, TV
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12
Austin, Gary, “Is the novelty of DTV Routledge, 1999, pag. 292.
wearing off?”, apresentação da BMRB 19
Highfield, Ashley, “Adventures in integrated
International conferência Future Media Events content”, discurso na conferência Next MEDIA
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13
Klein, Jeremy, Karger, Somin, Sinclair, Kay, 20
Highfield, Ashley, “Adventures in integrated
Attitudes to Digital Television – preliminary content”, discurso na conferência Next MEDIA
findings on consumer adoption of Digital
Charlottetown, Canada, C21 web site, 27 de
Television, prepared for the Digital Television
Outubro 2003. Disponível online em: http://
Project, January 2004. Disponível online em: http:/
www.c21media.net/features/
/www.digitaltelevision.gov.uk/
detail.asp?area=2&article=17945.
attitudes_to_DTV.html. 21
14 Pagani, Margherita, Multimedia and
Teixeira, Clara “Candidatos Admitem Te-
Interactive Digital TV: Managing the
levisão Digital Terrestre Gratuita para Aumentar
a Adesão”, jornal Público, 12 Março, 2004. Opportunities Created by Digital Convergence,
Disponível online em: http://jornal.publico.pt/ IRM Press, 2003, pag. 130.
22
publico/2004/03/12/Media/R01.html. Shneiderman, Ben, Leonardo’s Laptop:
15
Teixeira, Clara, “Candidatos Admitem Te- Human Needs and the New Computing
levisão Digital Terrestre Gratuita para Aumentar Technologies, MIT Press, 2003, pag.3.
23
a Adesão”, jornal Público, 12 Março, 2004. Dis- Norman, Donald A., The Invisible Computer,
ponível online em: http://jornal.publico.pt/publi- MIT Press, 1999, pag. 12
24
co/2004/03/12/Media/R01.html Schneiderman, Ben, Leonardo’s Laptop:
16
Gawlinski, Mark, Interactive Television Human Needs and the New Computing
Production, Focal Press, 2003, pag. 242. Technologies, MIT Press, 2003.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 609
adas, taxa que varia de 10 a 200 reais mensais, participação popular desenvolvidas em cada
de acordo com as possibilidades de pagamen- canal.
to de cada entidade; patrocínios (apoio
cultural) a programas; trabalho voluntário; Canal Comunitário de Porto Alegre
doações; pagamento de taxas pelo uso do
estúdio de gravação e edição (não de O Canal Comunitário de Porto Alegre
veiculação). permanece no ar de 1 a 4 horas, numa média
O canal está relativamente bem instalado de 2 horas diárias, exceto domingo, sempre
com sede própria e possui um modesto após às 19 horas25. Sem contar o “Jornal
estúdio de gravação e centro de transmissão. Eletrônico” 26 que permanece no ar
A TV Comunitária do Rio de Janeiro ininterruptamente durante o restante do tem-
sobrevive com as mensalidades das associ- po.
adas; doações; trabalho voluntário; colabo-
Segundo o coordenador geral do Canal
ração de terceiros através do empréstimo de
Comunitário de Porto Alegre, Jorge Vieira27,
sala para a sede pelo Movimento Viva Rio
os objetivos do canal foram traçados com base
e do centro de transmissão que funciona a
em ampla discussão entre os representantes
partir dos estúdios da Universidade Estácio
de Sá. de mais de uma centena de entidades que
Vem encontrando muitas dificuldades de participaram da assembléia de criação do
avançar, dispõe de poucos recursos até porque canal. Em respeito aos parâmetros da Lei de
as associadas não pagam regularmente suas TV a Cabo que institui os canais comuni-
mensalidades. tários, acordou-se que o Canal deveria ter
O Canal Comunitário da Cidade de São como princípios o respeito à pluralidade, à
Paulo se mantém a partir de apoio cultural; democracia e à igualdade.
cobrança de espaço para transmissão de Pelo que se depreende da fala do seu
programas; doações; e apoio financeiro das coordenador, o Canal Comunitário de Porto
signatárias do Acordo Institucional. Alegre procura colocar em prática esses
O canal está bem estruturado com estú- princípios garantindo a participação de todas
dio e centro de transmissão, sede própria, tem as entidades, independente de seu pensamen-
quase duas dezenas de funcionários. to político e do valor pago em mensalidades.
Nas suas palavras: a proposta é que não haja
4. Participação popular na programação24 nenhuma ingerência da mantenedora do canal
[a Associação de Entidades Usuárias] na
A televisão comunitária tem entre suas ocupação do espaço do canal. “O objetivo
diferenças, uma que é fundamental para o dela é coordenar a programação, fazer valer
entendimento de sua programação. Trata-se o direito de todas as associadas [...]. Mas
da possibilidade de ser um canal produtor o Canal Comunitário não é da instituição
ou um canal provedor. O canal é produtor mantenedora. O Canal Comunitário é públi-
quando ele mesmo produz os programas que co [...]. Nós temos a posse dele. Nós ocu-
coloca no ar. Já um canal provedor é aquele pamos e só”.
que apenas abre e organiza o espaço para
A Associação de Usuários do canal de
transmissão de programas produzidos por
Porto Alegre conta atualmente com 187
terceiros, no caso as próprias entidades que
entidades cadastradas e outras 70 associadas28.
partilham a grade de programação. Trata-se
Está aberta a receber novas entidades que
de uma decisão básica a ser tomada pela
direção de um canal comunitário, a qual queiram se associar, desde que se enquadrem
definirá a estratégia de ocupação da grade. nos parâmetros da lei e dos Estatutos.
Ela depende da concepção de canal comu- A participação das entidades associadas
nitário idealizado pelo grupo dirigente e das na vida do canal sempre se caracterizou como
condições técnicas e de infra-estrutura dis- uma preocupação estratégica do Canal Co-
poníveis. munitário de Porto Alegre, tanto no processo
A seguir apresentamos os principais de criação, no seu planejamento, na gestão
aspectos da programação e as formas de e na programação.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 615
UBE – União Brasileira dos Escritores; A taxa é igual para todos. Assim, por um
AACD - Associação de Assistência à Cri- programa semanal de 15 minutos, a entidade
ança Defeituosa; APETESP - Associação dos usuária paga R$ 30,00 (trinta reais)41.
Produtores de Espetáculos Teatrais do Esta- Segundo Carlos Meceni, diretor presiden-
do de São Paulo; OAB-SP - Ordem dos te do Canal, o valor não deve ser conside-
Advogados do Brasil – Secção São Paulo; rado uma “venda de espaço”, pois é como
Sindicato dos Jornalistas; Sindicato dos se fosse um condomínio que tem uma des-
Advogados. pesa, que é rateada entre os usuários. Orçou-
Os programas Em Cartaz e Comentando se que os gastos do Canal somam cerca de
a Notícia, de responsabilidade direta do R$50.000,00 (cinqüenta mil) por mês, quan-
Canal, podem ser considerados de livre tia que cobriria as despesas operacionais,
acesso público. Os dois programas são feitos incluindo funcionários”– e sobraria uns cin-
ao vivo no estúdio do Canal e são consi- co mil para a compra de equipamentos e
derados de sucesso. Com estes programas o fundo de reserva42.
Canal Comunitário da Cidade de São Paulo A cobrança de taxa de veiculação para
visa oferecer espaços de participação direta veiculação de programas tem sido bastante
na programação a cidadãos e entidades que criticada por lideranças do universo da TV
não tem possibilidades de produzir seus Comunitária. Ela é entendida como “venda
próprios programas. de espaço”, o que reproduziria as práticas
Carlos Meceni esclarece que qualquer da TV comercial. No entanto, a perspectiva
cidadão – mesmo que não faça parte de colocada por Carlos Meceni para tal cobran-
associação alguma – e queira usar o canal ça merece ser analisada. Afinal, tal cobrança
ao vivo para dar seu recado, pode fazê-lo além de poder ser vista por outro ângulo”–
através dos dois espaços mencionados. Para como rateio de custos, vem demonstrando que
Meceni o programa Em Cartaz, que vai ao é uma maneira de viabilizar a
ar das 13 às 14 horas, “atende as manifes- operacionalidade (melhoria na qualidade de
tações culturais que estão acontecendo em som e imagem, produção de programas,
determinado bairro, na zona leste por exem- aquisição de equipamentos, pagamento de
plo, que nenhum outro canal de TV divulga. mão de obra etc.) e o avanço do canal.
O cidadão “vem aqui e divulga a quermesse, Ele comenta, por exemplo, que não existe
o cantor local, o grupo de teatro etc. (...). veiculação “de graça” e que as entidades
[São informações] que não cabem dentro de associadas a uma associação de usuários de
uma emissora aberta [que opera em nível um canal, ao pagarem suas mensalidades,
nacional]. É como se fosse uma TV foca- também estão indiretamente pagando pelo uso
lizada (...) na cidade de São Paulo (...). [O do canal.
que] acaba sendo um super serviço de di- Apesar da validade do raciocínio, não
vulgação da produção da cidade de São Paulo. convém menosprezar o senso de partilha e
Já no final da tarde, das 18 às 19 horas, tem de igualdade explícito na proposta de uso
um programa jornalístico[Comentando a gratuito da grade de programação pelas
Notícia]. O indivíduo que quiser fazer recla- associadas, haja vista que todas pagam e usa
mação sobre saúde, segurança etc., pode fazê- quem quiser e que qualquer uma tem direito
lo (...), ele telefona e vem”. de veicular programas independente se a
Voltando a questão dos programas das entidade paga R$10,00 ou R$100,00 reais de
entidades com espaços regulares. Como já mensalidade43.
foi dito, são programas produzidos pelas Pelos conceitos já explicitados anterior-
próprias entidades e que são de inteira res- mente nota-se que o Canal Comunitário da
ponsabilidade das mesmas. A direção não Cidade de São Paulo é ao mesmo tempo um
interfere no conteúdo, segundo o diretor. Às canal provedor e produtor, mas com ten-
vezes apenas ajuda na captação de imagem dência maior a ser um canal provedor de
para garantir um certo padrão de qualidade. espaço para a transmissão de programas por
O acesso à grade para veicular progra- um leque grande e variado de entidades. Na
mas implica no pagamento de uma taxa de gestão de Carlos Meceni, se frisa muito o
veiculação de R$ 2,00 (dois reais) por minuto. interesse do Canal em ser um “canal cida-
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 619
16
nião sobre autogestão, realizada em Belgrado em A partir de janeiro de 2004 passou a ocupar
1977, e em Seminário do CIESPAL/UNESCO, em o canal 6 por imposição da operadora.
17
1978: participação em nível da produção, do Parcialmente extraído do texto “Gestão dos
planejamento e da gestão. canais comunitários no Brasil” (Peruzzo, 2001).
18
3
Parcialmente extraído do texto “Gestão dos Sobre o histórico dos canais ver Peruzzo
canais comunitários no Brasil” (Peruzzo, 2001). (2001).
19
4
Para detalhamento e mais informações sobre Veja por exemplo o caso de Brasília e de
algumas destas experiências ver Cicilia M.K. Belo Horizonte.
20
Peruzzo, TV comunitária no Brasil: aspectos Apresentado como Estatuto e trata-se do
históricos (2000), Irene C. Gurgel do Amaral, A documento mais completo sobre a estrutura in-
Movimentação dos Sem Tela (1995) e Cassia terna do Conselho.
21
Chaffin, O Circo-Eletrônico – TV de Rua (1995). Ligada à Federação dos Empregados do
5
Ver sobre maior aprofundamento do tema Comércio.
22
em (Peruzzo, 2000). Na época de realização desta pesquisa havia
6
Cada estado brasileiro tem um canal de o pedido de mais uma entidade para compor o
televisão educativa, sediado nas capitais, perten- Conselho gestor: a Associação dos Amigos do
cente ao Governo Estadual. Os canais educativos Canal Comunitário de São Paulo. Algumas das
que tem obtido uma maior expressividade em nível entidades que participam da Associação de Amigos
nacional são a TV Cultura de São Paulo e a TV do Canal Comunitário veiculam programas no
Educativa do Rio de Janeiro. Canal, como é o caso do Ministério Público.
23
7
Ver Botão & Zaccaria, 1996. Parcialmente extraído de Peruzzo (2001).
24
8
A mesma da TVs abertas, tais como TV Parcialmente extraído do texto “As estra-
Globo, TV Record, SBT etc. tégias de programação dos canais comunitários no
9 Brasil” (Peruzzo, 2004b, inédito)
Ver Serva, 1986, p.27. 25
10 O número de horas varia em função da grade
Ver Peruzzo (2000) e Wainer (1995).
11 de programação que reflete o interesse de horário
Outros sistemas de transmissão de TVs por
das entidades associadas. Tem dia que tem uma
assinatura são: MMDS – Multichannel Multipoint
hora e meia, outro 3:00h ou 4:00 horas.
Distribution System, através de antena microon- 26
Consiste num letreiro “rotativo” com in-
das (por ar e terra); DBS – Direct Broadcasting
formações de utilidade pública.
Satellite, por satélite e exige parabólica para 27
Em entrevista concedida à autora no dia
recepção; STV – Subscription Television, por
09 de julho de 2001. As demais citações de falas
satélite; DTH – Direct To Home, o satélite (di- de Jorge Vieira também foram obtidas na mesma
gital), utilizados pela Sky e Direct TV. Ver Duarte, entrevista.
1996. 28
Segundo os estatutos, até seis meses, mesmo
12
Pessoa jurídica que atua mediante conces- não pagando a mensalidade, é considerada asso-
são que através de seus equipamentos e instala- ciada.
ções recebem, processa e geram programas e 29
Os programas das entidades são de 30
sinais. minutos e transmitidos uma vez por semana, com
13
Pelo Artigo 23 são três canais legislativos reprises.
(destinados ao Senado Federal, Câmara dos 30
A taxa é para cobrir os custos de gravação
Deputados e Assembléias Legislativas/Câmaras de e edição. Para os demais programas não é co-
Vereadores). Um canal universitário (para uso brado nenhum valor. A condição de participação
partilhado das universidades sediadas na área de é ser associada do Canal, pagando uma mensa-
prestação do serviço), um educativo–cultural lidade como sócia.
(reservado para uso dos órgãos que tratam de 31
Os dois primeiros programas da lista operam
educação e cultura do governo federal, governos no canal desde o início e nunca se afastaram e
estaduais e municipais) e um comunitário (aberto raramente reprisam.
para utilização livre por entidades não gover- 32
O trabalho voluntário é permitido – apenas
namentais e sem fins lucrativos). Em 2003 por para colaborar em atividades -, mas não tem dado
incluída TV Justiça (STF). muito certo porque “só aparecem desempregados”
14
O Canal Comunitário de Belo Horizonte e o pessoal do Canal não se sente bem em
teria entrado no cabo no início de 1997. O Canal aproveitar tal mão-de-obra que no fundo tem a
Comunitário de Brasília começou a operar em expectativa de ser contratada – o que não ocor-
julho de 1997. reria -, além de ser preciso oferecer pelo menos
15
O canal de São Paulo foi escolhido para vales refeição e transporte.
este estudo porque optamos em trabalhar com um 33
Esta e outras citações de Alberto López
canal de uma grande cidade, além dos dois Mejía foram obtidas por meio de entrevista
primeiros a serem instalados no País. concedida à autora no dia 18 de julho de 2001.
622 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
34 39
Refere-se à discriminação do acesso em Programa “Trocando Idéias”.
decorrência dos preços cobrados pelas assinaturas 40
Que é uma das sócias da TV Interação.
que a torna proibitiva aos mais pobres. 41
Em se tratando de TV e comparativamente
35
É exibido em 22 TVs Comunitárias em nível aos valores cobrados pelos canais comerciais, este
nacional. valor é irrisório.
36
Informações fornecidas por Alberto López 42
Segundo Meceni, a diretoria presta conta
Mejía, por e-mail. dos gastos aos usuários mensalmente.
37
Basta o Sindicato que exclui o não sindi- 43
Por outro, é importante ficar bem claro
calizado, a Associação que exclui o não associ-
que a adoção de mecanismos de cobrança, como
ado... Não faz muito sentido uma TV Comunitária
os do Canal de São Paulo, pressupõe a exis-
excluir o cidadão e o movimento social ainda não
associado. A exigência de criação de uma tência de políticas expressas e formas de con-
Associação de Usuários do Canal, para poder trole que assegurem a aplicação dos recursos
operar operá-lo é necessária, mas a lei não é tão com finalidade pública, ou seja apenas para
rígida a ponto de impedir o acesso do não as- operação, manutenção e investimentos do pró-
sociado à programação. prio canal.
44
38
Todas falas de Carlos Meceni, citadas neste Se a cidade é grande ou pequena, se existem
trabalho, foram obtidas em entrevista concedida ou não organizações sociais fortes e mobilizadas
à autora no dia 20 de julho de 2001. etc..
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 623
sociológica do «facto social total» e do seu mais ainda, a dinâmica dos acontecimentos
impacto nas audiências, e ainda, mas em subsequentes ao facto trágico fundador es-
menor grau, o enquadramento institucional tabelece-se principalmente em função da
e técnico das emissões televisivas, aproxi- televisão.
mação ao objecto que motivou uma aborda- Na identificação do género da tragédia
gem multidisciplinar com recurso aos estu- televisiva sublinhamos:
dos literários, culturais, jornalísticos, socio- - a acessibilidade dos meios técnicos, a
lógicos e outros. concorrência entre operadores e ainda a
A queda da Ponte e o 11 de Setembro facilidade de atingir uma grande audiência,
são eventos que dizem respeito a toda a verificando-se de facto um acompanhamento
comunidade e que são como tal vividos por das emissões muito superior ao normal.
ela. Explorando ideias de Ferdinand Tönnies - O uso intensivo do directo, tornando-
e de Max Weber, pode dizer-se que, em caso o a essência do fluxo televisivo interrompen-
de catástrofe vivida como nacional, em caso do e sobrepondo-se à emissão normal.
de tragédia televisiva, a comunidade sobre- - O recurso a arquétipos, símbolos e
põe-se à sociedade9 e os afectos sobrepõem- mitos recorrentes no mundo trágico, como,
se à acção social inspirada «numa compen- por exemplo, a transformação dos eventos
sação de interesses por motivos racionais».10 em dramas trágicos, a tipificação dos even-
Estes eventos abalam as instituições e ins- tos em ficções pré-existentes (violência, inun-
talam o conceito de crise. O discurso comum dação) e dos intervenientes em personagens
e jornalístico identifica de imediato estes dramáticos.
acontecimentos como tragédias, criando-se - O recurso às configurações acerca do
uma correlação entre a tragédia texto e destino e do divino no acontecido, vividas
espectáculo teatral e a tragédia catástrofe do nos eventos e pelos espectadores, ou ima-
mundo real. Quer dizer, a correlação resulta ginadas por estes.
de a realidade se organizar, explicar e aceitar - A assunção da tragicidade dos eventos
através de um modelo milenar da literatura e da condição humana que lhe é própria.
e do espectáculo. - Elementos do texto trágico como as
O facto de a sociedade se transformar em unidades de acção, de tempo e de lugar.
comunidade que se sente em crise torna - A morte e o destino dos cadáveres, bem
possível a comparação entre eventos de como da sua eventual exibição, como ques-
proporções tão diferentes quanto a queda da tão central da evolução do evento, enfren-
Ponte e o 11 de Setembro, pois o que conta tando a televisão problemas e soluções pró-
é a estrutura do evento quando narrado e ximos do que ocorreram aos autores da
mostrado. Daí que se possa criar uma tragédia clássica.
genealogia da tragédia televisiva começando - Mudança do jornalismo televisivo em
no assassínio de John Kennedy até ao 11 de tempo de catástrofes, adoptando estratégias
Março madrileno. semelhantes às da tragédia clássica, incluin-
O que hoje mais identifica este tipo de do o discurso emocionado, sem o qual em
eventos catastróficos é o papel central da vez de tragédia televisiva haveria apenas a
televisão na cristalização do modelo trágico. dimensão espectacular da televisão, o que
A televisão coloca-se no centro do aconte- contrariaria a ética de muitos espectadores
cimento pela sua omnipresença nas casas, num acontecimento dizendo respeito à co-
lugares de trabalho e convívio, pelas suas munidade nacional.
qualidades audiovisuais, por ser o principal - A transformação dos intervenientes em
meio informativo de acompanhamento dos personagens de tipos semelhantes aos que
eventos e pela forma como permite ao es- encontramos nas tragédias clássicas; tal como
pectador questionar as relações de poder num acontece nestas, verifica-se ainda que os
momento de crise. Dadas as crescentes fa- papéis assumidos pelas personagens resultam
cilidades técnicas e a concorrência entre da própria acção da tragédia televisiva. Nos
operadores, a televisão participa no/do even- casos estudados, destacam-se os heróis in-
to. Por causa dela, a visão e a interpretação dividuais (os presidentes das câmaras) os
do evento pelo espectador modificam-se, mas, heróis colectivos (os salvadores e as vítimas,
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 625
9
_______________________________ Ferdinand Tönnies, Comunidad y Asociación,
1
Doutorando no ICS. Docente na UCP e no Barcelona, Edicions 62, 1979.
10
ISCEM. Crítico no Público e Jornal de Negócios, Max Weber, Economia y Sociedad, México,
autor. Fondo de Cultura Económica, 1983, p.27.
2 11
Esta comunicação ao LUSOCOM (Covilhã, Aristóteles, Poética, Lisboa, INMC, 6ªed.,
22.04.2004) apresenta as conclusões da disserta- s.d., e The Art of Rhetoric, Londres, Penguin
ção de Mestrado em Comunicação, Cultura e Classics, 1991.
12
Tecnologias da Informação, apresentada ao ISCTE Émile Durkheim, Les Formes Élémentaires
sob orientação científica do Professor Doutor de la Vie Religieuse, Paris, PUF, 5ª ed, 1968.
13
Manuel Villaverde Cabral e aprovada em prova Almeida Garrett, «Ao Conservatório Real»,
pública em 3 de Dezembro de 2003. Da bibli- Memória lida em conferência do Conservatório
ografia consultada referem-se aqui, em pé de Real de Lisboa em 6 de Maio de 1843, in Obras
página, apenas as obras citadas. Completas, Vol. I, Empresa de História de Por-
3
Edgar Morin, «Une télé-tragédie américaine: tugal da Sociedade Editora, 1904, p.773.
14
l’assassinat du Président Kennedy», Tamar Liebes, «Television’s Disaster
Communications, nº3, 1964, p.81. Marathons: A Danger for Democratic Processes?»,
4
Marcel Mauss, Manuel d’Ethnographie, in Tamar Liebes e James Curran (eds.), Media,
prefácio de Denise Paulme, Paris, Payot, 2ª ed., Ritual and Identity, Londres, Routledge, 1998,
2002, p.13. pp.71-84.
5 15
Ibidem. Johann W. Goethe, Fausto, Lisboa, Relógio
6
John Hartley, Uses of Television, Londres, d’Água, 1999, pp.30-36.
16
Routledge, 1999, p.19. A. D. Nuttall, Why Does Tragedy Give
7
Charlotte Brunsdon, «What Is the ‘Television’ Pleasure, Oxford, Clarendon Press, 1996, p.77.
17
of Television Studies»,’in Horace Newcomb (ed), Jean-Pierre Vernant, e Pierre Vidal-Naquet,
Television. The Criticial View, New York, OUP, Mythe et Tragédie en Grèce Ancienne, Paris, La
6ªed., 2000, p.625. Découverte, vol. I, 2001, p.15.
8 18
Bernadette Casey, Neil Casey, Ben Calvert, Vladimir Nabokov, «On a Book Entitled
Liam French e Justin Lewis, Television Studies. The Lolita», in Lolita, Londres, Penguin, 1995,
Key Concepts, Londres, Routledge, 2002, p.vii. p.312.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 629
Q.4. Preferência por directo ou diferido Q.7. Sensação de estar presente no local
Diferido Nenhum Directo Nada, pouco Nem... nem Bastante, total
Q.11. Contactar de imediato outras pessoas Q.14. Os jornalistas devem mostrar emoções?
Nada, pouco Nem... nem Bastante, muito Nada, pouco Nem... nem Bastante, muito
Desde hace varios años las televisiones su formato debemos, y éste el propósito del
de todo el mundo han dado con un nuevo presente trabajo, rastrear los cambios
filón que parece haber revitalizado el prime producidos en un grupo de factores
time ampliamente consolidado con los interdependientes que han cambiado su peso
espacios dramáticos en forma de teleseries y naturaleza en la red que sustenta la
y con los eventos deportivos. Nos referimos estructura de la ficción clásica. Nos referimos
al reality show o simplemente reality. Su a las relaciones creadas entre los
repercusión trasciende horarios y medios. El protagonistas, el papel del espacio y el tiempo
estreno de un reality es algo que va mas allá en el drama y el lugar que ocupa la mirada
de la franja horaria en la que se exhibe y del espectador en este conjunto.
hace que otros programas, como por el efecto
de una onda expansiva, incluyan en sus El héroe clásico y la aventura
contenidos personajes, temas, revisiones de
lo sucedido, etc.2 Los protagonistas de estos La narración clásica presupone un
programas abundan en las páginas de las determinado estado de esta red: eleva al héroe
revistas del corazón y consiguen, gracias a como el elemento más poderoso de la ficción,
su participación, el aval como tertulianos y cuyo trabajo se produce en lucha contra el
comunicadores populares en el medio. espacio y el tiempo, y mantiene al espectador
¿Qué ofrece este nuevo formato para en un nivel inferior, de contemplación
cautivar audiencias en todas las televisiones admirativa.
del mundo, como un formato universal por Cuando se habla del HÉROE el referente
encima de cualquier singularidad nacional? más inmediato es nuestro imaginario cultural,
Una aproximación empírica y coloquial normalmente las narraciones épicas clásicas.
nos permite describir este tipo de reality, Pero, ¿a qué o a quién nos referimos cuando
sobre el que nos centraremos, también hablamos de héroe?, ¿cuáles son sus
denominado docu-show, docu-game, características, sus atributos? Desde
televerdad, telerrealidad,..., como un formato planteamientos narrativos, que son aquellos
televisivo donde unos personajes cotidianos, de los que aquí partimos, debemos precisar
corrientes, conviven en un espacio cerrado que con este término podríamos aludir a dos
para conseguir una cantidad económica que aspectos diferentes, según sea considerado
se ofrece como premio. Los personajes no como función narrativa o como cualidad del
son atractivos, a veces ni quiera físicamente, personaje. En la narración clásica, el héroe
ni tienen profesionalidad como actores (no es aquel personaje sobre quien recae el peso
olvidemos que son “reales”), no hay un de la acción y que manifiesta la orientación
conflicto dramático lo suficientemente del relato, pero, al mismo tiempo, es aquel
sugestivo como en cualquier film o serie de que desempeña funciones que están pautadas
éxito, no hay grandes pasiones ni intrigas. como heroicas. Por lo tanto acción y atributos
Y el escenario es cerrado y enormemente son las dos caras de una misma moneda: no
parecido a cualquier casa del teleespectador. existen cualidades sin acción, ni acción sin
¿Dónde está entonces el poder de seducción cualidades.
de estos programas para que se conviertan Donde el héroe clásico aparece con todos
en el formato de más éxito en los últimos sus atributos es en el reino de la aventura,
años de la televisión mundial? o mejor dicho, es en la aventura donde se
Para entender en buena medida el éxito forja el héroe. Podríamos, sin pretender ser
del reality y la novedad que se esconde en exhaustivos, mencionar una serie de rasgos
634 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
relacionados entre si, que pueden entenderse explícitamente su intención de alcanzar algún
como señales que acompañan y anuncian la objetivo concreto (material o no: salvar al
aventura del héroe: mundo o rescatar a la chica, alcanzar
a) Por un lado debemos hacer referencia reconocimiento, encontrar algún ser, algún
a la ruptura vital que supone el cambio del objeto o algún conocimiento, resolver un
tiempo cotidiano, rutinario, por otro al que enigma o alcanzar algún bien) y para ello
podríamos denominar dramático, en el que se ve lanzado a recorrer un camino cuyo final
ocurren cosas diferentes a las habituales y es el logro de lo perseguido. Pero también
que exigen por parte de quien lo vive acciones puede ocurrir que accidentalmente se vea
y reacciones que son las que lo convierten obligado a recorrer ese camino sin que exista
precisamente en héroe. un objetivo previo. En cualquier caso, lo
b) Ligado a esta cuestión de ruptura con importante es el itinerario recorrido, la
el tiempo cotidiano podríamos destacar un aventura, donde, a través de múltiples y
segundo rasgo que sería la suspensión o arriesgadas pruebas, obtendrá quizá lo
incluso la desaparición de la normalidad. buscado, pero siempre experiencia y
Nuestra vida cotidiana se sustenta por frágiles conocimiento. Y es ese conocimiento el que
mecanismos que defienden nuestra transforma al individuo, el que hace que la
tranquilidad. Un entorno familiar, costumbres persona que partió y la que vuelve ya no
entre las que nos movemos con soltura, sean la misma. El itinerario es el espacio de
escasas agresiones naturales, instituciones la aventura por oposición al espacio
teóricamente encargadas de impedir la doméstico, el lugar de la no-aventura, de la
violencia entre los individuos, rituales rutina por excelencia, el lugar donde es
amorosos culturalmente codificados... Pero la imposible investirse con los atributos del
aventura es el ámbito de lo inseguro e héroe, donde no es posible realizar pruebas
imprevisible, donde no se puede anticipar qué heroicas, donde no existe un camino que nos
ocurrirá o cómo reaccionaremos sin puntos permita alcanzar experiencia o conocimiento,
de referencia que se hacen más remotos o porque todo es sabido: es el espacio opuesto
acaban por desvanecerse: países extranjeros, a la narración. Por eso el héroe abandona
costumbres desconocidas, naturaleza el espacio doméstico, espacio aislado del
indómita, violencia interpersonal frente a la tiempo, porque nada ocurre en él que no sea
que no tenemos otra defensa que nuestros previsible, no hay movimiento, y se lanza
propios recursos, amores que rompen con la al camino para lograr una trayectoria vital
moderación o la “decencia” debidas… En que confirme o cambie una identidad
esas situaciones de inseguridad son las estancada. Y sin embargo, si el héroe supera
acciones que realiza las que convierten al las pruebas, vuelve (como Ulises) al hogar,
individuo en héroe. En la narración épica principio y fin de su aventura, donde, tal vez
clásica, el héroe estaba hasta cierto punto ni siquiera sea reconocido o haya sido
destinado a serlo, incluso antes de su olvidado. Un hogar que, por su inmovilidad
nacimiento en muchos casos (Rank, 1991); espacial y temporal pueda ser considerado,
sin embargo, en las narraciones épicas como antes apuntábamos, como una especie
contemporáneas, son muchos los individuos de muerte: el héroe vuelve a casa para morir
corrientes que, enfrentándose a situaciones (metafóricamente o no) entre los suyos, pero
ajenas a su cotidianeidad, se ven obligados pidiendo el reconocimiento de su nueva
a comportarse como tales. identidad. Cuando esta nueva identidad ha
c) Otro de los rasgos fundamentales es sido domésticamente reconocida se cierra la
el itinerario, el trayecto que debe recorrer posibilidad de continuación narrativa.3
el héroe en el transcurso de su aventura. Este d) En la aventura siempre está presente
camino tiene un inicio y tiene un final, la muerte: la muerte es lo desafiado. Es
generalmente el mismo, doméstico, cotidiano, precisamente el protagonismo de la muerte
en un movimiento circular en el que se lo que diferencia a la aventura del juego, o
regresa al punto de partida, con la salvedad bien lo que convierte ciertos juegos en
de que no es el mismo individuo quien aventuras. Pero, ¿qué es la muerte en la
regresa. Puede que el héroe manifieste narración épica? El héroe puede
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 635
Este nuevo tipo de relato no presenta al con amigos que conoce, un grupo donde
héroe clásico ni siquiera al héroe ambiguo, nada va a cambiar, revelar sorpresas ni poner
descreído y un tanto cínico de la modernidad en cuestión las bases de la relación. Los
sino que lo que se nos propone es el tipo sucesos, las situaciones que mueven la
corriente, la persona devenida en personaje, ficción son externos y provocan la reacción,
alguien cotidiano, alguien como nosotros, al más que la acción de los protagonistas, todo
que le ocurren las mismas cosas y que ello con el fin no de alterar o cambiar un
reacciona de manera similar a como nosotros estado, ni descubrir algún sentimiento
lo haríamos en parecidas situaciones. recóndito, sino de volver a exteriorizar lo
La sitcom o comedia de situación toma conocido: la forma de ser de esos personajes
como constante un grupo de personajes y unos (sus maneras que provocan la risa y la
escenarios. Las tramas son débiles complicidad) y el mensaje final que predica
comparadas con la gran narrativa propia del constantemente la sitcom y es lo que se
cine. La necesidad de la continuación a la obtiene como saldo del episodio, no la
que obliga la serialidad hace bascular el experiencia sino la repetición constante de
proceso dramático del trabajo con la un tema con mensajes positivistas y
experiencia a los atributos de los personajes,
convencionales del estilo: es posible la
y de la acción como motor del héroe a la
convivencia aún entre personas dispares
reacción de personajes cotidianos frente a
(Doctor en Alaska) o podemos ser buenos
situaciones cercanas a la vida cotidiana, casi
padres aunque seamos estúpidos o fracasados
siempre en tono humorístico.
(Los Simpson).
Si el héroe actúa sobre un espacio y
La imposibilidad del cambio en los
tiempo a través de un trayecto físico externo
y un trayecto moral y emotivo interno que personajes anula por completo la capacidad
le hace saldar la aventura con un cambio, de aprendizaje, de experiencia y por lo tanto
es decir con una experiencia, en la comedia ésta no se ofrece como saldo final al
de situación cambio, acción y trayecto espectador, no hay “mensaje” ni marco de
desaparecen. Los personajes no pueden valores que aprender, como sucedía con el
cambiar porque alterarían el planteamiento héroe. El espectador busca una identificación
de la comedia y de los escenarios, estos deben con personajes semejantes en actitudes y
de permanecer inmutables porque el perfil social. La serie y la situación tiñen
presupuesto no podría permitir construir de valores positivos a estos personajes y el
decorados nuevos para cada episodio. Así el drama en el que se insertan. De esta forma
espacio se convierte en un condicionante lo que el espectador consigue con su
narrativo. La trama se transmuta en situación, fidelidad como público es una revalorización
pequeño conflicto que hace reaccionar a los de sí mismo, un refuerzo a su vida, sus
personajes con su habitual repertorio de costumbres, sus creencias, etc.
respuestas, gags, chistes verbales, etc. es ¿Y qué ocurre con la muerte, ese otro
decir, los atributos que les caracterizan como elemento fundamental en la narración
personajes singulares. clásica? El héroe podía morir tras ver
La sitcom se construye como un cumplida su misión, tras llegar al fin de su
planteamiento de relaciones entre personajes hazaña, no sin antes dejar claro la enseñanza
singulares, que predican un tono o una visión que su acción debe transmitir: la muerte se
más o menos original de un tema. Los encuentra omitida, el héroe como cualquier
guionistas y productores de una sitcom saben dios desaparece de escena y regresa o ingresa
que, más que tramas y conflictos poderosos, en el olimpo mítico. En la sitcom no puede
la base de una telecomedia son unos haber muerte porque al igualarnos nosotros
personajes bien caracterizados, a los que como espectadores con sus protagonistas la
adecuar actores con carisma, dentro de una muerte de ellos implicaría nuestra propia
red de relaciones bien coordinada. El muerte como espectadores, sería un corte
espectador asiste a una telecomedia como el sin balance positivo, equivaldría a una
buen compañero que se reúne una y otra vez simple interrupción de la emisión.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 637
Realismo fin de siglo: hacia la mirada observados, en una palabra, nuestra mirada
omnipotente aplica un deseo narrativo.
Lo que los realizadores de los realitys
La tecnología audiovisual de los años ofrecen al espectador es convertirse en
setenta puso al alcance de artistas y mirones privilegiados ya que otorgan el poder
aficionados las primeras cámaras de vídeo de observar cualquier espacio y en cualquier
para uso domestico. Dejaron de ser pesados momento. El realizador tradicional construye
y costosos artefactos que sólo se utilizaban el espacio dirigiendo la mirada con la cámara.
en el terreno profesional. Reducidas en Aquí la realización parece inexistente gracias
dimensiones y asequibles económicamente, a la sensación de que no hay dirección y por
salieron a la calle para otros usos ajenos al reacción campo oculto sino que todo es
ámbito televisivo. Uno de ellos es el circuito visible.
cerrado de televisión que se generalizó en Ciertos formatos del reality show nos
centros educativos, culturales, empresariales, ofrecen una mirada permanente sobre un
etc. La miniaturización de las cámaras espacio acotado, generalmente una casa
permitió que se utilizarán bajo un nuevo uso compartida por unos seres extraídos de la
heredado del circuito cerrado: la realidad, ya ni siquiera personajes con
videovigilancia. Bancos, locales, centros atributos cercanos a nosotros, a nuestra
oficiales, calles y carreteras se han llenado cotidianeidad, son ciudadanos con nombres
de cámaras. Nos hemos acostumbrado a y apellidos reales. No han sido seleccionados
convivir con este ojo omnipresente y no sólo precisamente por su carácter heroico, bien
a ser mirados sino también a mirar. Y este sea por haber realizado acciones que les
es un factor fundamental para entender el avalan o por atributos dignos de un héroe.
cambio hacía una nueva actitud en el Tampoco podrían representar lo que llamamos
espectador que sustenta la atracción del estereotipos del hombre de la calle. Muchos
reality. de ellos ni son atractivos físicamente, se
Cuando miramos la pantalla cinemato- expresan verbalmente con dificultad, no saben
gráfica o televisiva para contemplar una moverse o no tienen gracia dialogando.
ficción quedamos seducidos por los hábiles Estos personajes, seguiremos llamándolos
mecanismos del drama que con su intriga, así por convención aunque su caracterización
el poder de identificación con los dista cada vez más de lo que entendemos
protagonistas, etc. atrapan nuestra atención. como agentes de un drama, se mueven por
Sin embargo en el reality lo observado carece, el espacio cerrado de la casa y sus aledaños
de forma calculada por los autores, de la (patio, piscina, etc.) sin aparente motivación,
construcción artificiosa y seductora de la sin casi objeto ni conflicto, su móvil no es
ficción. La realidad en su estado más otro que el del común de los espectadores:
cotidiano deviene en objeto de interés gracias levantarse, ir al baño, cocinar, lavarse la ropa,
a que el hecho de nuestra observación nos etc. en una palabra vivir. Y para ello los
eleva a un rango de poder sobre lo observado. productores y técnicos del programa han
Mirar a los demás con el deseo de revelar desplegado una infraestructura tecnológica de
secretos que ocultan y no ser descubierto por cámaras que situadas estratégicamente nos
ello es una de las pasiones más antiguas del permiten observarlos en cualquier rincón de
hombre. Mirar entre los visillos al vecino de su cómoda cárcel. Pero el alcance de la
enfrente intentado descubrir en sus actos mirada no sólo es físico sino también
cotidianos un algo de extraordinario, y si es temporal. El reality dinamita las largamente
posible censurable, es un pequeño pecado consolidadas estructuras temporales de la
común. Nuestra mirada no es neutra ni ficción: los actos dramáticos del cine y el
meramente registradora como la cámara que teatro, el tempo del gag con su juego de
da fe de los clientes que pasan por un cajero réplicas y contrarréplicas que es la base del
automático o de los coches que se agolpan éxito de muchas sitcom, las pausas en
en un cruce en hora punta. Miramos buscando momentos de tensión que elevan el interés
penetrar la apariencia de la realidad, urdir de la acción, etc. Todo ello queda suspendido
tramas con las acciones inconexas de los por una retrasmisión que suministra acciones
638 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
cotidianas sin casi estructura dramática, sin vedado: el poder de la mirada sobre la
tensión, sin ritmo. Y, además, en ocasiones realidad y en cierta forma el control de la
durante 24 horas al día. muerte.
Los protagonistas de los realitys son gente Retomando la red de factores mencionada
real, de la que, a veces, llegamos a saber más arriba podemos concluir señalando la
que de los que nos rodean en nuestro entorno. evolución de cada uno de sus componentes:
En estos formatos, más o menos híbridos, a a) Del héroe al individuo real. Los dioses
los que denominamos televerdad o dejaron de ser los protagonistas de los relatos
telerrealidad, se plantea la recuperación de la ejemplares de la ficción. De ahí pasaron a ser
mirada omnisciente del relato decimonónico, mortales dignos de cariño, compresión y
nos convertimos en el ojo que todo lo ve afecto, aunque fueran mezquinos y calvos o
(espacio) en todo momento (tiempo). con kilos demás; eran los individuos tipo con
Desaparece el tiempo de la representación para los mismos defectos que nosotros, un espejo,
dejar paso (aparentemente) a un tiempo real en definitiva, en el que mirarnos y
en el que evolucionan seres (aparentemente) reafirmarnos. Y los protagonistas del reality
reales. El carácter realista de la emisión pierden su carácter tipificador y ya son seres
produce la impresión de que el programa es reales, con nombres y apellidos, no representan
meramente un “espejo” que muestra clases sociales ni prototipos familiares, no
directamente lo real, que el programa abre las tienen atributos singulares, se les reduce a su
ventanas de la casa para que el espectador mera condición biológica: seres que viven,
pueda ver lo que allí ocurre tal cual sucede4. comen, duermen, interactúan, pelean y mueren.
como pretendemos que sea nuestra casa. En imbuidos de su gracia. A los personajes de
el reality los personajes viven en contenedores. la sitcom los miramos cara a cara, de frente,
Su espacio muchas veces es artificial, no son el nosotros de la realidad, y a los que
pretende reproducir un lugar habitual, ni las participan en un reality los miramos desde
habitaciones o salones están personalizados, arriba, son demasiado vulgares para que les
sólo se disponen y articulan en función de consideremos nuestros semejantes, los
las necesidades vitales: dormitorios, cocina, observamos como si fuéramos los artífices de
baños, etc. Este diseño redunda en la sensación un experimento antropológico5, como cobayas
de experimento y laboratorio que tienen este en un laboratorio, más aún, con la misma
tipo de programas. El espacio ahora no es superioridad y curiosidad de niño ante la boca
narrativo ni cotidiano, es transparente. Los de un hormiguero que, sabedor de su poder
antecedentes de la casa transparente y el deseo vacía una botellita de agua en la entrada y
de mirar a través de las paredes es un viejo observa sus efectos.
sueño de la cultura occidental. Las nuevas tecnologías se alían para
Ya la en la literatura española de aumentar el poder de la mirada y gracias a
principios del siglo XVII podemos encontrar dispositivos como el teléfono móvil decidimos
un claro antecedente en El diablo cojuelo, el destino de sus vidas. La muerte, inherente
Vélez de Guevara. En esta sátira social, el a toda aventura, tiene en este tipo de narración
diablo lleva al estudiante a un vuelo por la una forma muy distinta a la del héroe épico:
ciudad que le permite ver (sólo ver, no actuar es el espectador quien, actuando como
sobre ellos) los interiores y las vidas de los demiurgo, decide la vida y la muerte de los
vecinos de Madrid, poniendo al descubierto personajes, es decir, decide quién debe
y criticando los vicios, miserias y engaños abandonar el relato con una simple llamada
generales de la sociedad del momento. telefónica. Pero lo paradójico es que, para el
individuo real que se ha convertido en personaje,
La arquitectura se esforzó en el siglo XX
esa muerte es el comienzo de una vida diferente,
por romper el modelo clásico y llegar a una
igual que ocurría en el caso del héroe clásico.
fórmula pura que convirtiera el diseño en una
No es una muerte real evidentemente, pero
simple combinatoria de módulos básicos
tampoco la muerte metafórica de volver a la
habitables. La progresiva incorporación de
cotidianeidad, al anonimato, ya imposible. El
materiales como el cristal y el aligeramiento
camino empieza en el final del relato, porque
de las estructuras hicieron que el sueño de
se inicia un nuevo itinerario vital en el que
una casa libre de divisiones interiores pudiera el individuo ya es personaje, ya es héroe y,
dar lugar a un espacio diáfano con grandes manteniendo sus atributos, comienza a recorrer
ventanales, es decir a una casa transparente. el camino. Y el olimpo en el que ingresa no
Esta labor de la arquitectura se ve es un cielo intemporal del que emanan todo
correspondida en el tiempo por la que ejerció tipo de virtudes y valores, es el terrenal mundo
la pintura con la muerte de la hegemonía de mediático, los otros programas a los que asistirá,
la perspectiva clásica. El cubismo y las ya como invitado o como tertuliano en nómina,
vanguardias buscaron la posibilidad de como cronista cuya voz ya es legítima. Le
contemplar la realidad desde varias permitimos por lo tanto, eso que antes se
perspectivas para establecer un diálogo entre llamaba el salto a la fama.
formas y espacios que aportaran una nueva El espectador entonces ha dejado de ser
visión de la realidad. La tecnología fotográfica el miembro de un grupo que asiste a un ritual
y televisiva vino a potenciar este deseo que dramático en el que conecta con los dioses
culmina con esa red de cámaras de la para convertirse en un solitario dios en el salón
videovigilancia que da luz a un ojo poderoso de su casa que, gracias al poder de la mirada
gracias a la multiplicidad de la visión. y su móvil, decide sobre la realidad de unos
c) La muerte en manos del espectador. personajes reales, con un cierto grado de
Decíamos que el espectador asistía a las estremecimiento y con el placer que supone
aventuras del héroe y a su mensaje como fieles jugar con un destino que no es el propio. Con
ante un rito religioso. Mirábamos a los héroes el reality la épica desaparece. Lo que el reality
desde abajo, porque tras su muerte ascendían nos ofrece cómodamente en el sillón de casa
al cielo. Y nosotros quedábamos en al tierra es la sensación de poder sobre la realidad.
640 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Bibliografia _______________________________
1
Universidad Rey Juan Carlos, Madrid.
2
Abril, G.: “La televisión hiperrealista” Una forma de referirnos a este fenómeno
es denominarlo “efecto salpicadura”, puesto que
C.I.C., nº 1, 1995.
se expande por toda la programación de la cadena
Aladro, E.: “De la telenovela a la que lo emite. Algunos teóricos del medio van más
televigilancia. “Gran Hermano” y la nueva allá y hablan de “killer formats”, llegando a
era del perspectivismo relacional en plantearse que la onda expansiva es tan potente
televisión” C.I.C, nº 5, 2002. que no sólo contamina sino que asesina el resto
Berciano, R.: (1999). La comedia de la programación de la cadena que emite el
enlatada. De Lucille Ball a Los Simpson, programa que deja de tener entidad por sí misma
Barcelona, Ed. Gedisa. y depende absolutamente del reality.
3
Bou, N. & Perez, X.: (2000) El tiempo Podemos señalar como excepción los cuentos
populares rusos, donde las historias de princesas
del héroe, Barcelona, Ed. Paidós.
salvadas por héroes tienen en muchos casos
Bueno, G.: Televisión: Apariencia y continuación en el desarrollo de su vida doméstica.
verdad, Barcelona, Gedisa, 2000. 4
Por ejemplo, Gran Hermano muestra acciones
Castañares, W.: “Géneros realistas en y situaciones que no podríamos calificar como
televisión: los reality shows”, C.I.C., nº 1, reales puesto que no existirían fuera del medio,
1995. pero tampoco podríamos calificarlas como ficción
Castañares, W.: “Nuevas formas de ver, porque ocurren en la realidad y, sobre todo, porque
nuevas formas de ser: el hiperrealismo están protagonizadas por personas que existen en
la vida real. Son acontecimientos generados,
televisivo”, Revista de Occidente, 170-171,
construidos por el medio, pero con apariencia de
1995. realidad porque están protagonizados por sujetos
Mondelo, E. y Gaitán J. A.: “La función comunes y porque (aparentemente) no existe nadie
social de la televerdad”, Telos, nº 53, Madrid, detrás que los dirija, nadie crea el relato porque
octubre-diciembre 2002. este se va creando solo (aparentemente) ante la
Rank, O.: (1991) El mito del nacimiento vista de todos.
5
del héroe, Barcelona, Ed. Paidós. Este es quizá el argumento que más se ha
Savater, F.: (1992) La tarea del héroe, manejado para justificar Gran Hermano, y también
Barcelona, Ed. Destino. el más contestado y criticado.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 641
“Big Brother”:
um programa que mapeou a informação televisiva
Felisbela Lopes1
principal actor, concedendo à realidade ex- dor toma-o como paradigma da transforma-
tra-mediática quotidiana, na qual se movi- ção gradual de esquemas existentes, como
mentam os receptores, um espaço estratégico uma espécie de montra de programas diver-
tão importante como aquele que se encontra sos que fizeram sucesso nos últimos anos.
dentro do pequeno ecrã. Nas palavras de Afirmando que “o programa é ele próprio
Eliseo Veron, este tipo de programa “coloca a publicidade”, Jost vê nos novos códigos
em cena uma semiótica do laço social estruturantes desse formato o esbatimento da
quotidiano extra-mediático”, através do qual fronteira que separava o campo publicitário
se completa aquilo que o programador pla- dos programas televisivos. A sua posição
neou. Nesta fase, a programação fica em marcadamente semiótica é, no entanto, in-
aberto, dando-se aos receptores o poder de fluenciada pelas apreciações mais de natu-
decidirem o desfecho dos programas. Veron reza sociológica e cognitiva de Serge Tisseron
pensa que esta será a última etapa da TV que, no ano anterior, havia publicado L’
generalista. Intimité Surexposée. Nesse livro, o psicana-
Outro dos investigadores que tem vindo lista assinala a passagem para um novo
a reunir elementos pertinentes para o estudo período da história da intimidade. Para trás
da evolução da comunicação televisiva é ficavam duas etapas distintas. A primeira onde
François Jost. Elegendo a imagem como “a individualidade e a interioridade apare-
vector estruturante das suas análises, o ceram como um luxo dos privilegiados
académico francês assinala a passagem da- enquanto a maioria tinha de seguir a exi-
quilo a que chama “imagem espírito” que ca- gência do grupo” e uma segunda onde se
racterizaria a TV dos anos 50 para a “ima- “exaltou a individualidade de um grande
gem corpo” intrínseca aos programas da número de pessoas”5. Actualmente, a intimi-
actualidade, misturando-se essa mudança com dade situar-se-ia onde cada um quer que ela
outras de idêntica natureza: “a câmara já não esteja. Poucos meses antes da publicação
é um pássaro que desliza na superfície do desse livro, a investigadora Dominique Mehl
mundo, mas um peixe que emerge no meio reafirmara-nos exactamente isso numa entre-
daqueles de quem capta a vida”3. Faltará aqui vista que publicámos na revista “Jornalistas
a referência a uma terceira etapa, apenas e Jornalismo”. Confrontada com o que
aludida na conclusão do livro La Télévision entende hoje por vida privada, a investiga-
do Quotidien, quando se enfatiza a actual dora francesa afirmava o seguinte: “Cada um
necessidade (de quem produz e de quem vê deve definir o que reserva para si próprio,
televisão) de “tocar o vivido”. Para Jost, é o que guarda no espaço privado e o que
aí que a imagem “encontra o seu pleno valor mostra aos outros através do debate públi-
de índice”. No ano seguinte, no livro dedi- co”. Seria este um outro modo de vivermos
cado ao “Loft Story”, há outro espaço para o dia-a-dia, mas esta alteração
falar no novo patamar da comunicação comportamental tem também profundas in-
televisiva: aquela que é inaugurada por fluências no modo como a televisão organiza
programas que misturam imagens reais e a sua comunicação, certamente porque tam-
fictícias, que apagam as últimas fronteiras bém houve a tal mudança de “interpretante”
(ainda) existentes: aquelas que separam os de que nos fala Veron, adquirindo o quoti-
programas da publicidade. Percorrendo ca- diano extra-mediático uma força que não
minhos diferentes de Eliseo Veron, François tinha num passado recente. Se numa primei-
Jost também vê no surgimento dos chamados ra época o Estado criava através do pequeno
“programas da vida real” a emergência de ecrã uma janela por onde pretendia fazer olhar
uma nova fase da televisão. A eles dedica os telespectadores; se num segundo momen-
um livro que intitula L’Empire du Loft, es- to a televisão reorganizava a realidade com
crevendo aí que esse tipo de emissão “apa- códigos que eram os seus, fazendo a audi-
rece na convergência de três modos: o da ência acreditar estar ali um espelho daquilo
autenticidade, aberto pelos reality-show; o que era; actualmente são os próprios teles-
ficcional das sitcoms; e o do lúdico” 4. pectadores que levam para dentro do ecrã
Detendo-se no “Loft Story”, o formato mais aquilo que são e como a sua identidade é
conhecido como “Big Brother”, o investiga- uma construção cada vez mais instável a
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 643
Integrados num segmento horário em que vidados, refere-se a esse espaço como de
vingam conteúdos essencialmente vocacio- “análise” dos temas em destaque8; Marga-
nados para o entretenimento, os apresenta- rida Marante, apresentadora e coordenadora
dores dos programas de informação emitidos de “Esta Semana”, afirma ser “uma defen-
em 1999 fazem questão de delimitar fron- sora bastante séria da fronteira entre a
teiras. Maria Elisa, no período de lançamen- informação e o entretenimento”9; Conceição
to do seu programa, apesar de reconhecer que Lino, apresentadora e coordenadora de “Casos
ressaltará o lado “emocional” dos seus con- de Polícia”, assegura que há “uma aborda-
644 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
gem cuidadosa de modo a evitar o espec- cada estação opta por colocar as respectivas
táculo gratuito”10; Vítor Bandarra, apresen- emissões em dias diferentes. O que vem
tador de “Quero Justiça”, recusa para si o acontecendo desde 1993, altura em que
papel de “advogado, Provedor de Justiça e “Grande Área” (RTP) ia para o ar ao do-
Procurador”, assegurando ser “apenas um mingo; “Prolongamento” (TVI), à segunda-
jornalista que trata de casos que merecem feira; e “Donos da Bola”, sexta-feira. Seis
justiça”11. É, na verdade, à classe jornalística anos depois mantém-se o mesmo modelo de
que se entrega, em 1999, a apresentação da programação. No primeiro semestre, temos
maior parte dos programas que se querem “Domingo Desportivo” na RTP; “Donos da
informativos. Quando se opta por outro perfil Bola” nos serões de sexta-feira da SIC; e
profissional, a escolha recai em apresenta- “Golo” nas noites de terça-feira da TVI. No
dores que têm um saber/experiência que se segundo semestre de 1999, há uma
cruza com aquilo de que se fala, o que, de reformatação dessas emissões que aparecem,
certa forma, retém as emissões no campo da consequentemente, com outros nomes e surge
informação. No primeiro semestre de 1999, também um novo programa de informação
h dois casos que ilustram esta situação: desportiva no canal público generalista. Ao
“Conversas de Mário Soares” (RTP) da “Domingo Desportivo”, juntam-se na TVI,
responsabilidade do ex-Presidente da Repú- a partir de 19 de Agosto, “A Bola é Nossa”;
blica e “Já que Falamos de Sexo” (RTP) na SIC, a partir de 20 de Agosto, “Jogo
conduzido pelo psiquiatra Allen Gomes12. Limpo”; na RTP1, a partir de 23 de Agosto,
Ainda que vejamos em Mário Soares um “Jogo Falado” que transita da RTP-2. Os três
entrevistador que faz entrar as suas vivências têm em comum a presença em estúdio de
pessoais na formulação das perguntas, as suas um painel de comentadores fixos que repre-
conversas circunscrevem-se a factos do sentam os três maiores clubes de futebol, uma
domínio público, não enveredando pela fórmula que fez escola com “Donos da
exploração da esfera privada dos seus entre- Bola”14.
vistados. Mesmo tratando temáticas que Apesar de vários programas de informa-
facilmente poderiam convocar a exposição da ção não-diária integrarem a actualidade
vida íntima das pessoas, o psiquiatra Allen noticiosa nos temas que abordam, a maior
Gomes, antes de ir para o ar a primeira parte deles amplia e reformata uma realidade
emissão, assegurava que procuraria “tratar nem sempre muito visível no trabalho diário
os temas com rigor e frontalidade”13. dos jornalistas. A televisão assume, deste
O mimetismo que, em 1999, se nota ao modo, uma função mais estruturante do que
nível dos conteúdos de entretenimento entre estruturada do espaço público contemporâ-
as grelhas da RTP e da SIC apenas tem neo. Incidindo a sua atenção na realidade quo-
transposição no que diz respeito à informa- tidiana, as emissões de informação não-di-
ção não-diária nas noites de quinta-feira. Aí, ária deram, em 1999, particular atenção à so-
enquanto a SIC transmite “Esta Semana”, um ciedade civil, representada por especialistas
programa que integra uma entrevista e um de diversos campos de saber ou pelo cidadão
debate, a RTP1 alterna quinzenalmente esses comum ouvido a propósito de experiências
géneros jornalísticos em “Maria Elisa” e paradigmáticas. Esta última franja social est
“Grande Entrevista”. Estes dois últimos mais presente nos ecrãs da TV privada,
programas perdem alguma força em termos encontrando aí diferentes representações,
de audimetria não só porque se inserem num construídas segundo regras jornalísticas.
canal com um “share” global mais baixo, É o cidadão anónimo no papel de vítima
como também devido ao facto de terem uma ou de agressor que encontramos em grande
emisso quinzenal, o que dispersa a atenção parte das reportagens emitidas em “Casos de
do público. Poder-se-á ainda encontrar uma Polícia” (SIC). Por outro lado, este programa
certa concorrência noutro tipo de programa- presta também atenção ao funcionamento
ção informativa não-diária: nos programas irregular de certas instituições, nomeadamente
que debatem assuntos desportivos, nomeada- daquelas a quem compete zelar pela ordem
mente o futebol. No entanto, neste domínio, pública. Como frisa a respectiva coordenadora
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 645
multiplicar espelhos numa tentativa de se nocturno que se segue aos noticiários diá-
conseguir perceber melhor a respectiva iden- rios? Porque há outros conteúdos mais do
tidade. Não é exactamente isso que se passa interesse do público? Porque (ainda) não se
nesses programas. Sabendo que encontram descobriram meios que introduzam o espec-
no apresentador da emissão um coadjuvante tador nessas emissões? Porque a realidade
ou um opositor àquilo que expõem, os encontrou formas mais espectaculares de
convidados sentem-se na obrigação de repre- mediação?
sentar um papel. Não é para a verdade que Em 2003, SIC e TVI criaram novos
os depoimentos se orientam, mas para uma formatos para retratar a realidade. Com um
autenticidade que se pretende que comova novo perfil de convidados, com uma atitude
aqueles que assistem a isso: apresentador, participante do apresentador e com um
público no estúdio e, sobretudo, as audiên- público em estdio mais activo. No caso da
cias. Tal como acontece com as “novelas da SIC, as estreias que surgiram não perdura-
vida real”. Entre todos estes programas, não ram por muito tempo. Na TVI, “Vidas Reais”
há muitas diferenças. Em 2003, a TVI avança e “Eu Confesso” tiveram uma longevidade
com a quarta edição de “Big Brother”, mais maior, sem, no entanto, conseguirem força
arrojada do que as anteriores, cujo slogan é suficiente para vingarem em horário nobre.
a garantia de que os concorrentes “vão pôr Em qualquer dos casos, ficou por cumprir
tudo a nu”. Numa resposta à TVI, a SIC aquilo que estrutura a terceira fase de que
estreia a 5 de Setembro um formato da nos fala Eliseo Veron: o centralismo do
“Fremantle Media” chamado “Ídolos”, um telespectador no desenvolvimento dessas
programa bastante semelhante à “Operação emissões. Todavia, acompanhando o discur-
Triunfo” da RTP1. Numa entrevista à “TV so dos responsáveis pelas estações privadas,
7 Dias” (nº 863, de Outubro de 2003), o essa aproximação às audiências é uma pre-
director de Programas da SIC, Manuel da
ocupação constante. Ao comemorar a 20 de
Fonseca, refere as razões inerentes à escolha
Fevereiro de 2003 os dez anos da TVI, o
deste tipo de conteúdos: “Os ‘Ídolos’ per-
respectivo director-geral, em entrevista á Lusa
mitem-nos estabelecer uma relação directa
citada pelo “Público, apresenta a sua tele-
com os espectadores. É uma porta aberta à
visão como “próxima do cidadão”, com
opinião e ao voto, o que, no final, fará com
programas que “vão ao encontro dos gostos
que alguns milhões de espectadores sintam
dos espectadores” e com “uma informação
que foram eles a fazer o programa. É essa
a aposta: fazer uma estação de mãos dadas desengravatada”. Numa conferência sobre”
com o telespectador”. Eis aqui o exemplo “Cultura e Comunicação” realizada no Porto
da terceira fase da televisão de que fala Eliseo a 7 de Outubro de 2003, o presidente do
Veron. Se das audiências se espera uma Conselho de Administração da SIC, Francis-
participação que complete a produção de co Pinto Balsemão, defendia que “os pro-
determinado programa, torna-se obrigatório gramas têm de agradar ao maior número de
construir permanentes elos de ligação com pessoas e não têm necessariamente de ser
os diversos públicos, o que será facilitado enriquecedores, têm de divertir, entreter e
se os conteúdos se desenvolverem num libertar”29. Na base de tudo isto, estará aquilo
registo que promova a afectividade. É tam- que o director de programação da SIC, em
bém isso que se pretende em programas como entrevista à “TV Guia” (nº 1251, Janeiro de
o “Bombástico” e “Vidas Reais”, apesar de 2003), considerava “a melhor definição da
isso ser aí mais ilusório do que real. televisão privada”: “um negócio que tem
Será, então, que atingimos a terceira fase como único cliente os anunciantes a quem
da televisão? Ao nível do entretenimento, a vende o número da audiência alcançada”,
oferta televisiva dos canais privados da era concluindo, assim, que “servir o público é
“pós-Big Brother” sela as previsões de Eliseo inevitável”. No caso das televisões privadas,
Veron e de François Jost. Na programação o passado recente demonstra que a fórmula
emitida em horário nobre, evidenciam-se de sucesso se concentra em conteúdos de
sinais que atestam modificações profundas. entretenimento, onde é mais fácil levar a
Por que será que os canais privados expul- audiência a (acreditar que pode) determinar
saram a informação semanal do segmento o desenvolvimento das emissões. Neste
650 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Bibliografia _______________________________
1
Departamento de Ciências da Comunicação
Casetti, Francesco; Odin, Roger, “De la da Universidade do Minho.
2
paléo la néotélvision. Approche sémio- Francesco Casetti e Roger Odin retomam
pragmatique”, Rev. Communications, nº 51, a designação de “neotelevisão”, preparando, a
partir desse conceito, um número da revista
Paris: Le Seuil, 1990.
Communications sobre as mutações da televisão
Cavicchioli, Sandra ;Pezzini, Isabella, La que é publicado em 1990.
TV veritá. Da finestra sul mondo a 3
François Jost, La Télévision do Quotidien,
panopticon. Torino: Nuova Eri, 1993. Bruxelles, Ed. De Boeck Université, 2001, p.74.
Eco, Umberto, Viagens Na Irrealidade 4
François Jost, L’ Empire du Loft. Ed. La
Quotidiana. Difel, 1993. Dispute, 2002, p.70.
5
Jost, François, La Télévision du Serge Tisseron, L’Intimité Surexposée. Ed.
Quotidien: entre réalité et fiction. Bruxelles: Ramsay, 2001, p.76.
6
Ed. De Boeck Université, 2001. Este programa, apresentado pelo ex-Presi-
Jost, François, L’ Empire du Loft. Ed. La dente da República Mário Soares, não segue pro-
Dispute, 2002. priamente os critérios jornalísticos de uma entre-
vista, mas também não se configura como um
Lopes, Felisbela, “O Panorama
espaço de entretenimento.
Audiovisual Português: o passado recente e 7
Este programa é apresentado por psiquiatra
o futuro próximo”. Comunicação apresenta- e partilha as limitações assinaladas na nota an-
da na sessão “Indústrias Audiovisuais” do 4º terior.
Encontro Lusófono de Ciências da Comuni- 8
“TV Guia”, 5 de Outubro de 1996.
cação, sob o tema “Comunicação 9
“Expresso”, 15 de Novembro de 1997.
Intercultural: 500 anos de mestiagem”, São 10
“TV Guia”, 29 de Novembro de 1997.
11
Vicente, 19-22 de Abril de 2000. “TV Mais”, 19 de Fevereiro de 1999.
12
Lopes, Felisbela. “As políticas, as estra- “Já que Falamos de Sexo” estreou a 6 de
tégias e as tácticas do prime-time do PAP”. Março de 1999 e marcou o regresso de um género
Comunicação apresentada no I Congresso de programação que a RTP já experimentara em
1993 com “Sexualidades”, apresentado por outro
Ibrico de Comunicação, Málaga, Espanha, 7-
psiquiatra, Júlio Machado Vaz.
9 de Maio de 2001. 13
“TV Mais”, 26 de Fevereiro de 1999.
Pinto, Manuel (dir), A Comunicação em 14
“A Bola é Nossa” da TVI tinha como painel
Portugal: 1995-1999 – cronologia e leitura fixo os seguintes comentadores: o jornalista
de tendências. Colecção Comunicação e António Tavares Telles pelo Futebol Clube do
Sociedade, Universidade do Minho, 2000. Porto, o actor Henrique Viana pelo Benfica e o
Pozzato, Maria Pia, Lo spettatore senza fadista João Braga pelo Sporting. “Jogo Limpo”
qualità. Competenze e modelli di pubblico escolheu para comentadores residentes o advoga-
rappresentati in TV. Torino: Nuova Eri, 1995. do Lourenço Monteiro a representar o FCP, o
Tisseron, Serge, L’intimité surexposée. médico Alfredo Barroso como voz do Sporting
Ed. Ramsay, 2002. e Cinha Jardim como representante do Benfica.
“Jogo Falado” da RTP compunha o seu painel com
Veron, Eliseo, “Les publics entre
Pôncio Monteiro pelo FCP, Fernando Seara pelo
production et réception : problèmes pour une Benfica e Santana Lopes pelo Sporting.
théorie de la reconnaissance”. Conferências 15
“TV Mais”, 22 de Maio de 1998.
da Arrábida, 27 a 31 de Agosto de 2001(tex- 16
“TV Mais”, 19 de Fevereiro de 1999.
to policopiado). 17
Em 14 programas, a jornalista abordou temas
ligados ao “modus vivendi” de determinadas faixas
Jornais e revistas etárias ou categorias de pessoas (6 emissões),
saúde (4 emissões), aos problemas afectivos (3
“Expresso”: 15 de Novembro de 1997. emissões) e à situação económica dos portugue-
ses (uma emissão).
“Público”: 20 de Fevereiro de 2003; 3 18
“TV Guia”, 31 de Julho de 1999.
de Janeiro de 2004; 9 de Outubro de 2003. 19
“TV Mais”, 8 de Outubro de 1999.
“TV Guia”: 5 de Outubro de 1996; 29 20
Judite de Sousa entrevistou os seguintes
de Novembro de 1997; 31 de Julho de 1999. políticos: Maria de Belém, ministra da Sade (14
“TV Mais”: 22 de Maio de 1998; 7 de de Janeiro), Durão Barroso, ex-ministro dos
Agosto de 1998; 19 de Fevereiro de 1999; 26 Negócios Estrangeiros (11 de Fevereiro), Manuel
de Fevereiro de 1999; 8 de Outubro de 1999. Dias Loureiro, ex-ministro da Administração
652 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Interna (8 de Abril); e Álvaro Cunhal, ex-Secre- ção de Joana Prado, conhecida por “feiticeira”,
tário-Geral do PCP (6 de Maio). contratada para levar à loucura os concorrentes
21
Margarida Marante teve como polticos os homens (Lopes, 2000).
25
seguintes convidados: o primeiro-ministro António Os dados aqui apresentados são da Marktest
Guterres (14 de Janeiro), o ministro António e foram publicados na edição de 3 de Janeiro de
Vitorino (4 de Fevereiro), o ex-Presidente da Re- 2004 do jornal “Público”.
26
pública Mário Soares (11 de Fevereiro), o pre- Recuando, por exemplo, uma década, a
sidente do PSD Marcelo Rebelo de Sousa (25 de 1993 (primeiro ano de coabitação da RTP com
Fevereiro), e Durão Barroso (6 de Maio). a SIC e com a TVI), encontramos na grelha
22
Em várias emissões, o espaço dedicado à de primavera do Canal 1 dois debates que
entrevista foi substituído pela reportagem. alternam quinzenalmente nos serões de 3ª feira
23
Este programa foi criado para a emissão de (“Marcha do Tempo” e “De Caras”), um “talk-
uma reportagem sobre a operação de dois gémeos show” (“Conversa Afiada”) e um programa de
siameses moçambicanos. Como as audiências respon- desporto (“Grande Área”). Na grelha de Ou-
deram positivamente, decidiu-se pela sua continui- tono, mantém-se o “De Caras”, aparece um
dade. programa de entrevistas (“Maria Elisa”) e
24
A 6/7, fala-se do Programa do Ratinho – surgem dois “talk-shows” que se alternam 5ª
emitido pelo SBT e apresentado por Carlos Massa feira (“Você Excepcional” e “Raios e Coris-
(conhecido pelo nome de Ratinho) –, uma emis- cos”).
27
são que explora o lado mais execrável do quo- “Escândalos e Boatos” e “O Crime Não
tidiano de certos grupos sociais e que conseguiu Compensa” alternavam-se quinzenalmente no
quebrar o monopólio de audiências da TV Globo. mesmo horário, ambos era produzidos por Ediberto
A 3/8, foi a vez de A Tiazinha um verdadeiro Lima, o mesmo produtor do “reality show “O Bar
fenómeno de erotismo da Rede Bandeirantes – da TV”, e faziam parte de um projecto que se
reacender as expectativas. A 24/8, destaca-se a intitulava “Tera em Grande”.
28
apresentadora do “Programa H”, da Rede Ban- Serge Tisseron, L’Intimité Surexposée. Ed.
deirantes, que até poderia ser um vulgar espaço Ramsay, 2001, p.52-3.
29
de música e passatempos, se não tivesse a atrac- “Público”, 9 de Outubro de 2003.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 653
uma continuação cruel da mesma ambição contado dezessete aviões passarem sobre o
imperialista”, diz o canadense (ibdem). prédio e sobre o silêncio dos visitantes.
No seu Diário de sons do Oriente Médio É evidente que o relato do canadense
(idem, p. 196-205) Schafer dá vários exem- sobre Istambul, Teerã e Atenas, e as conclu-
plos de como sons urbanos comuns a qual- sões tiradas dessas visitas, se aplicam ao caso
quer metrópole fazem submergir, por sua de qualquer grande cidade, e o Rio de Janeiro,
maior potência, manifestações sonoras que onde é produzido este texto, assim como
podem ser identificadas como marcas locais. Lisboa, onde será lido, não são exceções. Do
Segundo sua descrição, sons característicos sexto andar de um edifício localizado em uma
de Istambul, como os pregões dos vendedo- rua de um bairro central de uma cidade
res nas ruas, brigam por espaço com o tráfego vizinha ao Rio de Janeiro, ouvem-se, enquan-
cada vez mais intenso, com “o número to se escreve, onze da manhã de uma quarta-
inacreditável de carros”, como diz o cana- feira: os mais variados motores dos carros
dense, cuja poluição sonora é exacerbada pelo e motocicletas que passam lá embaixo, na
hábito de buzinar de forma inclemente. Aos rua; um ou outro avião; uma buzina no
sons do trânsito turco Schafer faz uma res- momento em que escrevia a palavra avião;
salva, lembrando que uma tradição perma- o trânsito mais longínquo, que na verdade
nece em meio aos carros, e abranda a vi- envolve o ambiente como uma massa uni-
olência de seus ruídos: trata-se do transporte forme, de menor intensidade, mas
a cavalo, em cujas carruagens ouvem-se não onipresente, ao fundo; mais ao longe, um cão.
buzinas, mas sinos, certamente menos vio- São pouquíssimas as manifestações vocais de
lentos do que aquelas, e que servem como quem passa, posto que em uma rua ruidosa
lembretes de que os sons nas ruas têm ficado a maioria das pessoas passa em silêncio, ou
mais intensos, mais volumosos e mais agres- por estar desacompanhada, ou por preguiça
sivos com o passar do tempo. Um sino tinha, de fazer o esforço suficiente para competir
e ainda tem, a mesma função da buzina, com os motores, utilizando o instrumento
porém soando com menos rudeza. mais frágil que são as cordas vocais. Quantos
Visitando construções basilares da cultu- desses sons podem ser considerados carac-
ra do oriente próximo, Schafer descreve como terísticos do lugar onde vivo, marcas
o som de seus interiores ainda escapa, com identitárias do Rio de Janeiro? Quantos
maior ou menor sucesso, da interferência dos poderiam estar, indistintamente, em qualquer
ruídos externos. Ou seja, como o silêncio grande cidade?
projetado para ser o receptáculo da tradição
no interior dos lugares sagrados consegue 3. O céu de Lisboa
permanecer imaculado, ou não, pelos ruídos
apátridas dos motores, do tráfego, etc. O Na sequência inicial do filme, espécie de
canadense, em visita à famosa mesquita Shah prólogo no qual o personagem se dirige em
em Isfahan, no Irã, é testemunha do prazer seu carro para Lisboa, temos sobre as ima-
auditivo de se poder ouvir, estando gens das estradas e das alfândegas, todas
exatamente sob a cúpula principal, o eco sete vistas do que seria o ponto de vista do
vezes repetido de qualquer som que ali se motorista, uma grande colagem de sons,
produza. Já a relíquia arquitetônica que é o apresentados como se estivessem vindo do
antigo capitólio persa de Persépolis, situado rádio do carro, e que mudam à medida que
no alto de uma colina, se encontra envolta o motorista passeia pelas estações. Ouve-se
no zumbido constante de motores de gera- de início um noticiário em alemão. Mais à
dores e dos caminhões que passam nas frente, notícias em francês; música eletrônica;
montanhas próximas. No caminho de volta, música pop, em inglês; música clássica; hip
na Grécia, Schafer comenta ironicamente que hop francês. Já no fim da viagem, música
na Acrópole de Atenas há um aviso no qual pop em espanhol. Por duas vezes, entram
se lê: “Este é um lugar sagrado. É proibido brevemente canções do grupo português
cantar ou fazer barulho de qualquer tipo”. Madredeus, personagem do filme. Sobre essa
Enquanto a visitava, o canadense diz ter colagem do rádio, duas observações: primei-
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 655
ro, enquanto as imagens das estradas, vistas de música pop em inglês. Não é de se
de dentro do carro, não oferecem indicações imaginar que um carro no seu trajeto da
de onde o personagem está, uma vez que Alemanha para Portugal tenha passado pela
grandes rodovias e postos de pedágio ou Inglaterra, portanto este também não é um
alfândega são uniformes em quase qualquer caso de correspondência geográfica e sono-
lugar, a ordem a partir da qual os sons são ra. O que ocorre é que a música pop feita
montados corresponde ao trajeto da viagem. em língua inglesa tem, e isso não é novidade
Ou seja, os sons das rádios são responsáveis nem fenômeno recente, alcance mundial. Pode
por uma sutil construção do espaço geográ- ser facilmente ouvida em rádios não só de
fico da viagem. Um carro partindo da Ale- países da Europa ocidental, mas em rádios
manha para Portugal deve, seguindo o ca- da maioria dos países do mundo. Assim,
minho mais lógico, sair da Alemanha, cortar dentro da colagem sonora arquitetada por
a França, passar pela Espanha, e, deixando Wenders para o prólogo de seu filme, há um
esta, entrar no território luso. Enquanto vemos embate, ocorrendo no centro da Europa, em
imagens que do ponto de vista da identifi- 1994, entre sons, transmitidos via rádio, que
cação dos lugares são praticamente aleató- trazem forte marca nacional, reconhecíveis
rias, a ordem das estações de rádio corres- no primeiro instante de audição, e sons que
ponde à seqüência lógica das estradas: ou- não se enquadram tão facilmente na idéia de
vimos notícias em alemão, ainda não deixa- pátria, sendo, ao contrário, mais simples de
mos a Alemanha; escutamo-las em francês, se diagnosticar neles a ausência dessa noção.
e ouvimos música francesa, o carro está em Além da colagem a que nos referimos,
rodovias francesas; a rádio toca música um som é proeminente nestes primeiros
espanhola, já estamos na Espanha, e em breve minutos de filme, a voz over do personagem
estaremos em Portugal. Dentro desse raci- principal, o motorista, Phillip Winter, técnico
ocínio, a segunda observação, que na ver- de som para cinema a caminho de Lisboa.
dade são duas ressalvas: as duas inserções As palavras de Winter tratam de explicitar
de músicas do Madredeus não obedecem a as questões propostas sutilmente pelas esta-
esta lógica, e sim a outra, também aferível. ções de rádio. Winter começa sua narração,
Elas simplesmente aparecem quando os em alemão: “Europa sem fronteiras. Os
créditos iniciais, que atravessam a sequência, guardas nos deixam passar com facilidade.
mencionam o grupo, uma vez pela autoria Ninguém quer ver meu passaporte? Ou pelo
da trilha musical, outra pela presença de sua menos minha mala?”. Ouve-se algumas das
vocalista, Teresa Salgueiro, como atriz. A rádios já mencionadas, passam alguns planos
outra ressalva, mais complexa e mais inte- de estrada, e, após algum tempo, Phllip
ressante, se deve ao fato de haver inserções retoma: “A Europa está crescendo. Virou um
musicais que não traduzem claramente uma só país. As línguas, as músicas, os notici-
idéia de nacionalidade. Repare-se que este ários são diferentes. Mas e daí? A paisagem
é um pressuposto que acompanhou a lógica é sempre a mesma. Conta sempre a mesma
que expusemos: tratava-se de rádios alemãs, história de um velho continente cansado de
francesas, espanholas, transmitindo notícias guerra.” Terminará sua narração em voz over
e músicas de seus respectivos países. A carregado de ironia: “Sinto-me em casa. Esta
música eletrônica instrumental, porém, não é minha pátria.” Estas últimas palavras, as
permite ao primeiro contato dizer de onde pronuncia em vários idiomas, a começar pelo
ela vem, posto que está habilmente inserida seu alemão natal: “Das hier ist mein
nos pressupostos gerais de mercadoria que heimatland. Ma patrie. La mia patria. My
relativiza a idéia de fronteiras nacionais. A home country… My home country”, repete
música que se ouve no rádio do carro poderia, o inglês ao fim. Corre o primeiro ano da
sinceramente, ser produzida na Inglaterra, União Européia, e a viagem que atravessa
onde o fenômeno da música eletrônica da parte dos países que constituem o Mercado
década de 1990 eclodiu, na França, na Comum Europeu é o pretexto para que um
Alemanha, em qualquer nação da Europa cidadão alemão, Wenders através de Winter,
ocidental, ou mesmo nos Estados Unidos ou externe a estranheza de ter tido as fronteiras,
no Brasil. Da mesma forma funciona o trecho dentro das quais ele se entende parte de uma
656 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
com sucesso alguns instantes de suspense, Quando seu aparato está montado e o técnico
enquanto Winter anda lentamente pelos de som está pronto para começar a gravar
cômodos escuros da casa semi-fechada, pela primeira vez, Wenders faz com que
demorando-se em descobrir a fonte do som, ouçamos o que o técnico de som ouve através
uma canção facilmente identificada como de seus fones. Estamos ouvindo o que ele
tendo raízes na música tradicional portugue- ouve e grava. Nosso ponto de escuta é
sa. Winter chega ao outro lado da grande casa, exatamente o mesmo do personagem, e, ainda,
onde está ensaiando o grupo Madredeus, cujos o mesmo de seu microfone.2 De início, são
integrantes representam a si mesmos no filme. sons indistintos de cidade grande: um certo
Ouvira pela casa o instrumental onde se ruído de tráfego, um avião, passos, pombos,
sobressaiam os violões de Pedro Ayres burburinhos de pessoas. Neste último grupo
Magalhães e José Peixoto. Chegando à porta de sons há pelo menos uma marca identitária:
do cômodo onde o ensaio acontece, ouve a língua, posto que a conversa entreouvida
também a voz de Teresa Salgueiro. Teresa acontece em português.
cumprimenta a meia luz, em um intervalo, Phillip se interessa por sons que tragam
seu único espectador. A fascinação se esta- em si particularidades de Lisboa: o elétrico,
belece em Winter. Descobre que a casa em com seu som complexo, composto pelas
que está instalado é onde o Madredeus ensaia, campainhas, pelo passar pesado sobre o trilho,
e que o grupo está trabalhando na música pelos estalos ao deslizar pelo cabo; um barco
do misterioso filme. O Madredeus continua que dá a partida Tejo afora. Mais tarde,
seu ensaio, e Phillip está fascinado. Seu encontrará um belo exemplo de som tradi-
fascínio tem um centro: a voz e a presença cional: um amolador ambulante, que se faz
de Teresa Salgueiro. anunciar com sua bicicleta e seu apito ca-
Essa sequência do primeiro contato do racterístico, que antecede o pregão em por-
técnico de som alemão com a música por- tuguês. Gravará os sons da água em uma
tuguesa é ilustrativa do seguinte pressuposto, fonte, de um engraxate. Está tentando encon-
um tanto quanto óbvio: é mais fácil iden- trar nos ruídos o que encontrara na música:
tificar na música sons que tragam marcas manifestações intrínsecas a Lisboa. Gravará
identitárias da cultura de um lugar do que ainda, dentro de casa, um momento de si-
em outras matizes sonoras, como, por exem- lêncio, identificado na gravação como “o som
plo, nos ruídos (a gravação dos sons de Lisboa de Fritz ausente”. Habilmente, na seqüência
por Winter, que no filme começa na próxima a esse silêncio há os sons intensos do bonde
sequência, demonstrará essa dificuldade com em primeiro plano, correspondentes a um
relação e eles). Se os sons de cada grande plano de detalhe das mãos do condutor, com
cidade trazem cada vez menos as marcas o qual se inicia uma sequência de Winter
culturais do lugar, e, portanto, fascinam cada dentro do veículo. Pelo contraste com o ruído
vez menos o ouvido atento, a música, por volumoso, Wenders chama atenção para o
sua vez, sempre que traga elementos da silêncio do momento anterior.
tradição local, é um depositário dos sons De volta à casa, vê mais imagens de
específicos de cada lugar, dos sons que Lisboa captadas por Fritz: um aqueduto, e
garantem a resistência da identidade, no caso, uma obra, os homens trabalhando com suas
portuguesa. E por marcarem essa identidade, marretas, britadeiras, picaretas. Em sua es-
essa diferença da produção homogeneizada, pera ociosa por Fritz, está lendo o que
fascina os ouvidos que ainda não a conhe- encontra na casa: uma antologia de Fernando
cem, os ouvidos estrangeiros, os ouvidos de Pessoa traduzida para o inglês. Detêm-se
Winter. sobre um verso, o verso inicial de um poema:
Phillip Winter sai para trabalhar. Sem um “I listen without looking and so see”3. Numa
roteiro do que gravar, procurará gravar sons das paredes, há outro verso, pichado no
de Lisboa quase a esmo, guiado apenas pelo original em português, que no início de sua
que viu das imagens de Friedrich. Neste estada pedira para Zé, o menino, traduzir:
momento, Wenders engendra uma forma de “Ah, não ser eu toda a gente e toda a parte”4.
estabelecer uma grande identificação entre o Winter vira um aqueduto nas imagens
espectador e seu personagem principal. feitas por Fritz, e, com a ajuda de seu guia
658 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
juvenil, Zé, vai até ele, para ouvir quais sons sem controle. A voz de Friedrich que agora
do local pode captar. Lá no alto, Zé o informa passa a estar presente no filme instaura uma
que o interesse de Fritz em filmar aquela dubiedade na narrativa. O personagem de
região estava em registrar, lá de cima, as casas várias formas ainda não está presente, Phillip
e vilas antigas que estavam para ser postas segue sem encontrá-lo, ainda não o vimos,
abaixo com a construção de uma nova ro- mas ele já está presente pela sua voz,
dovia (a tal obra que vinha na sequência da acusmática, segundo o conceito de Michel
montagem do alemão). Fritz queria guardar Chion, ou seja, a voz que se ouve sem que
em imagens a memória das casas. Descendo o corpo que a produz esteja em cena.5 Após
às vilas, Phillip encontra um morador essa introdução do personagem apenas pela
registrado em plano próximo nas imagens que voz gravada nas fitas, Wenders segue fazen-
vira, e, reconhecendo-o, decide pegar um do a apresentação de seu misterioso perso-
depoimento seu, acabando por gravar, em nagem de forma inusitada. Winter acha tê-
português, a sua história de vida (tinha sido lo visto em um café. Começa uma persegui-
sapateiro, eram muitos irmãos, por isso tra- ção em planos gerais das ladeiras pelas quais
balhara desde muito novo, etc). Grava seus o suposto Fritz caminha. Antes de termos um
próprios passos numa escadaria, que, supõe, plano próximo, que identificaria o persona-
pode deixar de existir. Seus passos são gem, ouvimos sua voz colocada sobre os
invadidos por uma buzina do trânsito pró- planos gerais, voz que, entenderemos em
ximo, o que o irrita. Quer preservar os sons breve por meio de um plano de detalhe, ele
do bairro antigo, mas eles já estão invadidos próprio grava enquanto anda. Seguimos
pelos ruídos impessoais do tráfego. Verá, e durante um tempo ouvindo a voz sem ter
ouvirá, na sequência, que no fim da esca- certeza de sua fonte, se está sendo pronun-
daria passa um trem, moderno, barulhento. ciada naquele momento da história ou se é
Winter descobrirá, após novo encontro uma voz over, se está em quadro ou não.
com o Madredeus, que Fritz tem editada uma Winter o alcança, e percebemos que o que
seqüência sobre o bairro da Alfama, e que ouvimos vem sendo pronunciado, e gravado,
para aquela sequência o Madredeus compôs pelo alemão naquele mesmo momento. Ten-
uma canção homônima ao bairro. Tendo lhe do funcionado a brincadeira de Wenders,
sido dada esta pista de roteiro, gravará sons estivéramos ouvindo, por vários planos, uma
característicos das pequenas vilas e ladeiras voz sincrônica, em quadro, tratada como voz
do bairro, correspondentes às imagens que over, graças à diferença de escala entre os
vira na moviola de Fritz. Ali, no bairro antigo, sons e as imagens. Ouvíamos a voz em
os sons nos quais uma certa essência da velha primeiro plano, enquanto o personagem era
Lisboa, em seu raciocínio romântico, parece mostrado à extrema distância. Essa relação
emanar são mais fáceis de encontrar. Grava, de voz em primeiro plano com imagens em
por exemplo, as lavadeiras, que esfregam a plano geral caracteriza um uso padrão da voz
roupa suja em tanques nas calçadas. Phllip over, e é com a inversão desse procedimento,
Winter segue fiel à sua procura dos sons ou seja, uma voz sincrônica tratada dessa
característicos da cidade, mas parece forma, que Wenders brinca.
desconsiderar a sugestão de Fernando Pessoa Finalmente havendo o encontro entre o
que interessou Fritz a ponto deste destacá- diretor e o técnico de som, Fritz explica
la no livro: ouvir sem olhar. Desligar os sons melhor o seu projeto, assim como a falha
da, tentadora por que fácil, correspondência deste. Pretendia captar em imagens a velha
com as imagens. Winter tem como roteiro Lisboa, encarando a tarefa como um projeto
dos sons que deve gravar apenas as imagens assumidamente político, tomando a cidade
que já vê prontas. Mais ainda, tentará, sem antiga como um paradeiro da resistência
qualquer sucesso, fazer a sonoplastia da contra a modernização do velho continente.
imagens, dublando as ações enquanto vê as Não conseguira. Rodara, rodara e não cap-
imagens na moviola. tara, como ele a chama, a essência da cidade.
Mais tarde, descobrirá fitas gravadas onde “A cidade parecia se afastar”, diz ele. Cha-
Fritz fala de seu projeto. Sua premissa está mara Winter pois alimentava a ilusão de que
em andar a esmo com a câmera gravando o som daria conta da empreitada, onde as
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 659
imagens pareciam falhar. Como Winter Winter, revertendo a situação anterior. Vol-
percebera, também com o som não era tão tarão a fazer filmes da forma tradicional,
simples. A tese de Fritz era de que as imagens como mostram as sequências finais. Mas e
cada vez mais passaram a estar a serviço de quanto ao som? O que pode fazer a gravação
vender, e não de mostrar, e que esse modo de sons pela representação da, assim chama-
mercantil de produzi-las já estava assimilado da, essência da velha Lisboa, e a que con-
de modo quase irrefutável. Assim, chegara clusão chega a busca de Winter pelas ruas
à radical conclusão de que apenas uma da capital portuguesa? Wenders parece apro-
imagem produzida sem que se visse o que veitar o fechamento da porção romântica do
estava sendo captado estaria livre desse seu enredo, um último encontro, ainda
potencial de ser um instrumento de venda, platônico, de Phllip com Teresa Salgueiro,
pois não se pode vender aquilo que não se ela de volta da longa ausência provocada por
sabe o que é. Filmara a cidade sem ver o uma turnê no Brasil, para reafirmar o que
que filmava, com a câmera nas costas, virada a própria presença do Madredeus no decor-
para trás enquanto andava. A referência a rer do filme já fizera intuir. Antecipando o
Dziga Vertov, com relação à confiança de- encontro, como se dissesse que Teresa está
positada na câmera quanto ao registro do por aparecer, a música do grupo é colocada
cotidiano, é tornada explicita: “achava que sobre as imagens de Winter descendo uma
podia andar filmando em preto e branco por escadaria. Essa última presença da música
esta cidade velha, como Buster Keaton em parece dizer mais uma vez: mais fácil e mais
The cameraman. O homem com a câmera. direto é encontrar na música tradicional os
E viva Dziga Vertov!”6 sons que guardam e reverberam a história
Winter se mostra menos cético com de um lugar. Porém, Wenders mostra no
relação à presumível morte da essência decorrer do filme, através das gravações de
informativa da imagem, que haveria cedido Winter, que ruídos também podem, ainda,
lugar à exploração inexorável suas propri- produzir o mesmo efeito, embora haja uma
edades mercantis. Grava sua própria voz em disputa pelo espaço que sons tradicionais de
uma fita para Fritz, na qual aconselha-o a um lugar conseguem ocupar frente a uma
voltar a produzir imagens olhando-as de uniformização crescente dos ambientes so-
frente. Agora é Fritz quem apenas ouve noros das cidades.
660 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
Organização do Documento
Introdução
Na secção 2 são apresentadas as defini-
Com o aparecimento dos acessos de banda ções de conteúdo e contexto, segundo a pers-
larga, a globalização da informação multi- pectiva da análise de conteúdos. Na secção
média tornou-se uma realidade incontestável. 3 é discutida a sua aplicação actual no âmbito
No entanto, embora se verifiquem avanços da multimédia, e no seu seguimento, a secção
tecnológicos significativos, nomeadamente 4 apresenta algumas sistemas e abordagens
nas taxas de compressão, na velocidade e actualmente existentes. Na secção 5 é ana-
capacidade das redes, persistem dificuldades lisada a aplicabilidade da contextualização à
na recuperação da informação audiovisual recuperação de conteúdos multimédia. Final-
[Qun 2001, Dimitrova 2002]. mente, nas secções 6 e 7, encontram-se as
A complexidade é introduzida por algu- conclusões e as referências.
mas das qualidades intrínsecas à informação
audiovisual, nas quais se incluem a elevada Conteúdos e contextos – Os conceitos da
quantidade de dados, a diversidade de estru- análise de conteúdos
turas e heterogeneidade de tipos de media,
mas sobretudo pela própria subjectividade da A necessidade de contextualização dos
indexação. Na verdade, embora exista um conteúdos é apresentada por Krippendorff
conjunto diversificado de convenções e for- [Krippendorff 2004] a partir da sua definição
matos com meta-dados [Koenen 2001, AAF de conteúdo como algo que emerge do
2002, Pro-Mpeg 2002] que abrangem um processo de análise de um “texto”2 relativa-
leque alargado de atributos, a indexação mente a um contexto particular. Esta abor-
mantém-se subjectiva, quer seja manual ou dagem fundamenta-se essencialmente nos
automática: seguintes aspectos que caracterizam os “tex-
• quando é manual, reflecte frequente- tos”:
mente a subjectividade de quem anota; • os seus significados são sempre rela-
• quando é automática, espelha as pro- tivos a contextos, discursos e objectivos par-
priedades da informação consideradas rele- ticulares;
vantes por quem programa. • não têm qualidades independentes dos
Por esta razão, a probabilidade da “leitores”, e portanto não têm um significado
indexação reflectir os critérios pelos quais único que possa ser descoberto, identificado
os utilizadores pesquisam e personalizam os ou descrito;
seus conteúdos torna-se reduzida. • não “contêm” ou “possuem” os signi-
Uma alternativa para aumentar a relevân- ficados, uma vez que estes informam os
cia dos atributos utilizados para indexar vídeo leitores, invocam sentimentos e provocam
passa pela sua contextualização e mudanças comportamentais.
personalização. A questão da contextualização O contexto é aliás parte integrante da
dos conteúdos tem vindo a ser estudada com framework para a análise de conteúdos
algum detalhe no âmbito das técnicas de sugerida por Krippendorff (Figura 1).
análise de conteúdo, sendo considerada uma
componente importantíssima da análise. Par- Conteúdos e contextos em multimédia
tindo deste conceito, será discutida neste artigo
a sua aplicabilidade no âmbito da anotação Na área de multimédia o entendimento
e recuperação de conteúdos multimédia. de conteúdo é sobretudo que este é inerente
662 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
MPEG - Moving Picture Experts Group rentes tipos de conteúdo e formas de nave-
O MPEG é uma família de normas não gação, permitindo dependências do contexto
proprietárias de compressão de vídeo. Den- em termos de temporais e espaciais.
tro destas, o MPEG-7 convenciona mecanis- O formato MPEG-21 tem como objec-
mos para descrever a estrutura e a semântica tivo principal permitir o acesso universal aos
de conteúdos multimédia. O objectivo desde conteúdos multimédia. Esta norma unifica a
formato é aumentar a eficiência do acesso descrição dos ambientes de utilização, englo-
à informação audiovisual e tornar possível bando-se aqui redes, terminais e condições
a sua pesquisa e filtragem. A informação que de acesso, permitindo que um dado conteúdo
pode ser guardada pelo MPEG-7 é a seguinte se adapte dinamicamente face a determina-
[Salembier 2001] (Figura 2): das circunstâncias de consumo [Koenen
O contexto de utilização é suportado por 2001].
este formato, através do descritor para O MPEG-21 permite ainda expressões
Interacção do utilizador com o conteúdo. As sobre os direitos relativamente à propriedade
preferências podem ser descritas para dife- intelectual, completando o MPEG-7, razão
664 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
pela qual existem já sistemas que utilizam ciários televisivos para segmentar e identi-
ambas as normas [Steiger 2003, Tseng 2004]. ficar os vários segmentos vídeo que os
compõem. Isto foi feito com base em co-
AAF - Advanced Authoring Format nhecimento sobre a estrutura espacial e
O AAF [AAF 2002] foi lançado em 2000 temporal típica deste tipo de informação.
e é uma norma para a pós-produção e autoria Fisher et al. [Fisher 1995] procuraram
de conteúdos multimédia. Este formato classificar programas televisivos com base
permite que os criadores dos conteúdos tro- nos chamados perfis de estilo, um género de
quem facilmente informação audiovisual e assinatura contendo aspectos característicos
meta-dados entre aplicações e plataformas. de uma determinada classe de programas.
O modelo do AAF suporta as seguintes Mais recentemente, Xie et al. [Xie 2003]
categorias de meta-dados (Figura 3). apresentam algoritmos para a análise da
estrutura de vídeos de jogos de futebol
MXF - Material eXchange Format utilizando conhecimento do domínio. É com
O MXF [Pro-Mpeg 2002] é um formato base nestes algoritmos que estes autores
não proprietário muito recente, fundamental- efectuam a segmentação temporal da infor-
mente direccionado para a troca de conteú- mação e a classificação automática dos
dos audiovisuais associados com dados e segmentos obtidos.
meta-dados.
Como a informação que pode ser guar- Pesquisas e anotações em formato
dada sob a forma de meta-dados é infindável, audiovisual
este formato permite filtrar o que é relevante
para um determinado contexto operacional. Vários autores referem as limitações das
Inclui os seguintes tipos de meta-dados: a anotações textuais quando utilizadas para
estrutura de ficheiros, os próprios conteúdos, representar uma série de aspectos que exis-
palavras-chave ou títulos, notas de edição, tem nos conteúdos multimédia [Davis 1995,
localização, tempo, data, versão, etc. Elmagarmid 1997], pelo que existem alguns
sistemas que optaram por permitir anotações
Modelos de domínio e pesquisas em formato audiovisual.
Davis et al. [Davis 1995], por exemplo,
Os modelos de domínio procuram repre- criaram uma linguagem de anotação icónica
sentar a informação multimédia com conhe- para o sistema MediaStreams, para descrever
cimento acerca do seu domínio. Estes mo- os aspectos objectivos do conteúdo do vídeo.
delos restringem o contexto de utilização, Na área do áudio, Ghias et al. [Ghias 1995]
sendo sobretudo utilizados para a permitem a recuperação de uma dada melodia
segmentação e/ou classificação. simplesmente cantarolando-a (by humming).
Zhang et al. [Zhang 1994], por exemplo, Na área da imagem, o sistema QBIC da
utilizaram o modelo do domínio dos noti- IBM (Query By Image Content) permite
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 665
pesquisar bases de dados de imagens (http:/ é que terá sido o contexto da sua anotação?
/wwwqbic.almaden.ibm.com/). Esta pesquisa Arquitectura? Ciências? O ideal seriam as
é efectuada quer por objectos, quer por duas, mas qual será o número de contextos
imagens, utilizando propriedades como: cor previsível para os utilizadores do nosso
média, histogramas, textura, forma, esboço, sistema?
localização e desenho.
Abordagens para a aproximação dos con-
Contextos na recuperação de conteúdos textos
alternativas, ou mesmo utilizando mecanis- sistema. Neste âmbito, podem-se por exem-
mos de personalização. plo:
No caso da pesquisa por “planta”, por • realizar inquéritos para avaliação dos
exemplo, se a anotação do sistema incluir resultados periódicos ou mesmo on-line;
de facto os contextos de Arquitectura e • solicitar a colaboração dos utilizadores
Biologia, podem-se sugerir ao nosso no enriquecimento da anotação;
utilizador as alternativas de pesquisa “vege- • e analisar a historia de utilização do
tal” e “planta de edifício”, direccionando-o sistema, verificando, por exemplo, as tenta-
e permitindo-lhe compreender melhor o tivas dos utilizadores e os caminhos por estes
contexto da anotação. adoptados.
• depois da pesquisa (Ver secção).
Conclusões e trabalho futuro
Contextualizar a anotação no contexto do
utilizador A definição de contexto e conteúdo
apresentada no ponto é aplicável à recupe-
A contextualização da anotação pode ração de conteúdos multimédia. O contexto
também processar-se em três momentos: é aflorado no âmbito da multimédia, mas
• antes da anotação: Isto requer, por sobretudo no que se refere à sua
exemplo, a prévia identificação dos tipos de temporalidade. Actualmente existem várias
comunidades existentes e das suas necessi- abordagens que permitem de formas diversas
dades de anotação, e construir a anotação com aproximar os contextos de utilização e ano-
base nesta informação. A identificação das tação, mas em geral nesta área o conteúdo
comunidades e a classificação dos utilizadores continua a ser tido como uma coisa inerente
numa dessas comunidades, pode ser ao formato.
conseguida por exemplo através de inquéri- A combinação destas abordagens com
tos prévios e fazendo com que todos os alguns dos mecanismos referidos no ponto
utilizadores sejam registados. anterior pode efectivamente aproximar os
Neste âmbito, podem-se ainda fazer uso contextos de utilização e anotação, e deste
de mecanismos de personalização e também modo melhor os resultados das pesquisas. A
permitir que os próprios utilizadores colabo- validação dos resultados obtidos e a utiliza-
rem na anotação. ção desta informação para refinar e afinar
• durante a pesquisa, por exemplo, o sistema é, neste âmbito, um aspecto im-
solicitando de forma explicita ao utilizador portante a considerar.
os objectivos da sua pesquisa. Neste âmbito, Com base nisto, e como trabalho futuro,
podem-se ainda utilizar dicionários para que, pretende-se desenvolver um protótipo para
com base no perfil de utilizador, se tenha o arquivo de vídeo da faculdade utilizando
acesso a um conjunto termos relacionados. algumas destas técnicas. A comunidade será
• depois da pesquisa (Ver secção). fechada consistindo numa primeira fase nos
professores e alunos da licenciatura de
Validar os resultados da recuperação Cinema, Vídeo e Multimédia. Pretende-se
deste modo elaborar inquéritos prévios para
A validação dos resultados obtidos pelo identificar as suas necessidades de anota-
sistema permite não só aferir o sucesso da ção, verificar os resultados obtidos e soli-
pesquisa, mas também afinar e enriquecer a citar a sua colaboração para a anotação do
anotação, possibilitando a aprendizagem do sistema.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 667
mucho menos exhaustiva, he aquí tres tipos emite sus gruñidos y hace gestos de
de los que incluimos en esta investigación: satisfacción. Ella le da un tortazo. En
a) Seducción compartida o bidireccional. la publicidad que aparecía en el
He aquí tres ejemplos: autobús se anunciaba la cerveza
Buckler. Los gestos de él estaban
S5: (Martini): Una seductora mujer asociados al placer de la cerveza que
aparece en un balcón regando un le evocaba la visión del anuncio en
limonero. Abajo, en la calle, sentados el autobús. Ella, sin embargo, los
en la terraza de un bar, un grupo de había interpretado como intentos de
amigos, chicos y chicas miran a la establecer un contacto de naturaleza
joven. Se incorpora al grupo un chico. sexual.
El también dirige su mirada hacia ella.
En ese momento ella le hace un gesto. S16: (Crunch): Un hombre está
Ambos se sonríen. Los otros les miran. haciendo pesas en su piso. En el piso
El joven les muestra un limón. Vemos de enfrente hay dos chicas. Él les
unos vasos de Martini con limón. Los guiña un ojo y les hace gestos
jóvenes brindan con Martini entre mientras sigue con las pesas. Ellas no
ellos. Se ríen y disfrutan del momento. se sienten atraídas por él. De repente
Aparece el slogan: Viva la vita. una de ellas coge los cereales Crunch
Alguien coge un limón de un y al comer una cucharada el crujido
limonero. es tan fuerte que las ondas sonoras
rompen algo en la casa de él. Al darse
S27: (Orbit): En una cafetería. En una cuenta de ese efecto las dos comen
mesa dos chicas miran a un chico y comen Crunch de tal modo que todo
sentado en otra mesa. Una le dice a en la casa de él se rompe y salta en
la otra <<ves no está nada mal. Voy mil pedazos. Él ya no aparece seguro
a decirle algo>>. Se levanta y se dirige y fuerte como al principio sino frágil,
hacia el chico. Le dice algo al oído. débil y atemorizado. Ellas ríen y
Sonrisas de complicidad. Elle le pasa disfrutan con la situación.
por debajo de la mesa un paquete de
chicles Orbit. Él lo abre y coge uno. En los spots de seducción rechazada o
malinterpretada, a diferencia del caso
En los spots de seducción compartida la anterior, o bien el que inicia la seducción
acción es bidireccional en el sentido de que no es correspondido o bien hay una mal
ambos participan y responden a la acción interpretación de las acciones del otro de
seductora del otro. modo que la seducción compartida no sólo
no se produce sino que hay un rechazo
b) Seducción rechazada o malinterpretada. explícito de alguna de las personas implicadas
He aquí dos ejemplos: en las acciones de seducción.
2
Bibliografía Bermejo Berros, J. (2001) La influencia de
la cultura y la personalidad en la respuesta
Bermejo Berros, J. La influencia de la publicitaria del sujeto. Publifilia. Revista de
Culturas Publicitarias. 4-5, 23-35.
cultura y la personalidad en la respuesta 3
Petty, R.E. y Cacioppo, J.T. (1986)
publicitaria del sujeto. Publifilia. Revista de Communication and persuasion. Central and
Culturas Publicitarias. 2001, 4-5, 23-35. Peripherical Routes to Attitude Change. New York:
Bermejo Berros, J. Los límites de la Springer Verlag.
persuasión publicitaria: entre la seducción y Bermejo Berros, J. (2004). Los limites de la
la propaganda. In R.Eguizábal Maza (Ed.). persuasión publicitaria: entre la seducción y la
Perspectivas y análisis de la comunicación propaganda. In R.Eguizábal Maza (Ed.).
publicitaria. Sevilla: Comunicación Social Perspectivas y análisis de la comunicación
Ediciones y Publicaciones. 2004 publicitaria. Sevilla: Comunicación Social
Ediciones y Publicaciones.
Bermejo Berros, J. Los marcadores de 4
Equipo de Investigación que participó en la
la diferencia entre hombres y mujeres en su aplicación de las pruebas del procedimiento
encuentro con los relatos audiovisuales experimental y en una parte del análisis de
publicitarios. Actas del II Congreso de resultados: Esther Sampol Bibiloni; Ana Espinosa
Análisis Textual La Diferencia Sexual. de Frutos; Mar Coca Ulloa; Marta Ruiz Peña;
Madrid. Universidad Complutense. 15-19 de Benedicto de Miguel Rodríguez; Jaime Rodríguez
noviembre. CD-ROM. 2004 Sosa; Miguel Usera Ballester; Laura Castillo
Bermejo Berros, J. y Couderchon, P. Sánchez.
Agradezco a Elias García Ledo su apoyo
Cine, género e identidad: encuentros y
técnico en la edición de los vídeos de la
“desencuentros”. Trama & Fondo. 2002, 13, investigación.
95-105. 5
Todos los spots citados en esta investigación
MacKenzie, S.B. y Lutz, R.J. An pueden verse en: Bermejo Berros, J. (2004). Los
empirical examination of the structural marcadores de la diferencia entre hombres y mujeres
antecedents of attitude toward the ad in an en su encuentro con los relatos audiovisuales
advertising pretesting context, Journal of publicitarios. Actas del II Congreso de Análisis
Marketing, 1989, vol.53, 48-65. Textual La Diferencia Sexual. Madrid. Universidad
Petty, R.E. y Cacioppo, J.T. Complutense. 15-19 de noviembre. CD-ROM
6
Bermejo Berros, J. y Couderchon, P. (2002)
Communication and persuasion. Central and
Cine, género e identidad: encuentros y
Peripherical Routes to Attitude Change. New “desencuentros”. Trama & Fondo. 13, 95-105.
York: Springer Verlag. 1986. 7
MacKenzie, S.B. y Lutz, R.J. (1989) An
empirical examination of the structural antecedents
of attitude toward the ad in an advertising
_______________________________ pretesting context, Journal of Marketing, vol.53,
1
Facultad de Ciencias Sociales, Jurídicas y 48-65.
de la Comunicación, Universidad de Valladolid. Bermejo Berros, J. (2001). Cf. nota 1.
678 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 679
A “colonização pelo colonizado” acon- questão que nos propomos: registrar a recep-
teceu fortemente na exportação de telenove- ção desse novo produto ficcional quanto à
las brasileiras para a Europa. Em Portugal inserção de um novo horário na grade
não foi diferente. Há registros que apontam televisiva (16h), e observar o quanto ela traz
essa passagem e interesse por parte dos por- imbricada ou não a linguagem da telenovela
tugueses pelo produto ficcional brasileiro. Em brasileira.
uma descomprometida verificação de turis- Olhos D’Água, estréia no Brasil no dia
tas brasileiros nota-se, em restaurantes e 19 de janeiro, na TV Bandeirante (BAND),
hotéis, a televisão ligada e a telenovela sendo às 16h. Faz parte da nova estratégia da
assistida pelos locais – os índices de audi- emissora, iniciada em 2000, com o objetivo
ência comprovam esse interesse. de disputar posições de liderança2. No Brasil,
Não há como desprezar o rompimento de o ranking de audiência das emissoras tem
barreiras favorecido pelas facilidades como líder a Rede Globo de Televisão
tecnológicas (grandes redes de comunicação, (Globo) desde a década de 70, seguida pelo
transmissão via cabo/ satélites) a dados e Sistema Brasileiro de Televisão (SBT). Nesse
programações que transitam em tempo real, contexto, a disputa pelo terceiro lugar é algo
incluindo os noticiários, mas também as almejado pelas demais emissoras que inte-
ficcionais e de lazer. gram as televisões de canal aberto no Brasil.
A intenção deste estudo é investigar o No caso da BAND, sua estratégia na
quanto a cultura local reage frente à presença busca de audiência recai na diversificação,
de produtos importados em termos de acei- já que durante anos, apostou em um único
tação e/ou rejeição, influência e estímulo para segmento: o esporte. Ao decidir pela mudan-
criação e comercialização da programação ça com o objetivo de tornar-se mais com-
ficcional televisiva. Se no passado o Brasil petitiva percebe a necessidade de apostar em
exportava telenovelas para Portugal, e me- outros segmentos e é isso que tem feito:
taforicamente era o ‘colonizado colonizando investido em contratações de apresentadores,
o colonizador’, hoje temos uma proposta diretores e estabelecido parcerias com pro-
concreta que tenta reverter essa situação, dutoras como a NBP3.
quando o Brasil põe no ar uma telenovela Tendo se caracterizado como emissora
portuguesa. voltada aos esportes resgata sua participação
Tomamos conhecimento da emergência da na teledramaturgia em 2004. Apesar de ter
telenovela Olhos D´Água em Portugal, in- inaugurado sua participação no gênero
clusive do seu sucesso, obscurecendo a, até teledramatúrgico em 1967, suas investidas
então, hegemônica telenovela brasileira. foram assistemáticas a exemplo das demais
O que torna um produto hegemônico? O emissoras nacionais, que não possuem tra-
local tem preferência para os nativos? Qual dição na produção e mesmo veiculação sis-
o interesse que poderá gerar uma telenovela temática de telenovelas. Isto, se comparado
portuguesa, num país que se caracteriza pela à emissora líder que é hegemônica nesse
excelência do produto? Que inovações pro- segmento. Para esse retorno escolheu duas
mete a telenovela portuguesa? Que trocas ela obras de ficção de grande audiência em
promove com a brasileira? Ou, que apropri- Portugal, país de origem da produção, Olá
ações ela faz do formato brasileiro? Pai! e Olhos D’Água. A primeira,
Fazer uma análise da telenovela Olhos categorizada como série, estreou no dia 18
D’Água, nestas primeiras semanas de exibi- de janeiro (2004), às 19h. Já a segunda, objeto
ção no Brasil, seria precipitado, mas é a principal deste texto, refere-se a uma teleno-
680 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
vela e teve, como mencionado anteriormen- em outra cultura que apesar de mãe se vê
te, sua estréia no dia seguinte a essa série4. invadida pela presença marcante da
Como parte da estratégia, ou por precau- brasilidade. São vários os exemplos da
ção, a BAND pretendendo atrair outro pú- apropriação do cotidiano brasileiro no dia-
blico que não aquele cativo do horário nobre5, a-dia português.
lança Olhos D’Água no horário vespertino Mas o tempo foi passando e a hegemonia
lembrando o início da telenovela no Brasil. das telenovelas brasileiras foi interrompida.
Início marcado pela veiculação dessa ficção Em 2001, com a estréia de Olhos D’Água
em faixas horárias propícias a donas-de-casa na TVI portuguesa, as telenovelas brasileiras
quando ainda a telenovela era considerada perdem a liderança. A repercussão e a
como produto de menor prestígio na grade manutenção dessa obra como líder de audi-
das emissoras e, portanto, restrita ao horário ência foi um dos objetos que mereceu a
vespertino não comprometendo assim a investigação de Ferin-Cunha.6
programação da emissora. Era o começo de Já no Brasil, é interessante registrar o
uma história ainda distante do hábito coti- momento que a televisão brasileira dá espa-
diano, inaugurado em 1963, com a primeira ço na grade de programação para uma te-
telenovela diária 2-5499 Ocupado, uma lenovela genuinamente portuguesa, por uma
adaptação de obra argentina que respeitou o de suas emissoras (BAND). O que se pode
texto de origem. perceber desse momento de experimentação?
A história da teledramaturgia no Brasil Será que o fluxo se inverterá? Será que as
é rica em tentativas, erros e acertos. Até a raízes lusas florescerão e se identificarão com
sua consolidação foram várias as investidas a trama apresentada? É prematuro responder
nesse gênero que, no começo, seguia os a esses questionamentos, mas poderíamos
moldes das produções latino-americanas arriscar algumas observações.
tendo seus textos origem na Argentina, no O processo desencadeado pela BAND
México e em Cuba. Mesmo quando escritos poderia ser enquadrado como uma das ex-
aqui, seus roteiristas, muitas vezes proveni- perimentações promovidas por outras emis-
entes desses países, mantinham forte ligação soras em busca de audiência. Ainda sem muita
com o estilo cunhado por esses textos lati- certeza do caminho a seguir, investiram com
nos. Tais fatores determinavam a produção comprometimento comedido na
das telenovelas como obras distantes da teledramaturgia. Evidente que esse não é um
realidade brasileira. campo fácil para ousadas incursões, já que
Nessas mais de quatro décadas, o Brasil no Brasil a tradição se fez pela TV Globo,
já possui uma teledramaturgia consolidada e líder de audiência durante todas essas déca-
essencialmente nacional, o que lhe vale estar das. Difícil até mesmo ter uma posição
entre os respeitados produtores e exportado- expressiva, principalmente se concorre no
res desse gênero ficcional. Exportando, com horário nobre, destinado aos produtos de
grande sucesso, suas telenovelas para inúme- maior audiência da TV, com as telenovelas
ros países, Portugal figura entre um dos da Rede Globo, o que não é o caso. Cautela
maiores consumidores, o que provocou um respeitada pela equipe que montou a estra-
movimento contrário à colonização. De tégia da BAND. Ao optar pelo horário
colonizados, através das obras ficcionais vespertino tentou garimpar um “novo públi-
brasileiras, passou a “colonizar” o país co”, no que parece não ter obtido sucesso
descobridor e colonizador do Brasil. De já que Olhos D’Água, no horário das 16h,
colônia que se mirava nos modelos vindos esteve na faixa de 1 a 2% de audiência, não
da matriz européia, as telenovelas brasileiras ultrapassando os programas apresentados por
levaram para Portugal os costumes, a fala, outras emissoras no mesmo horário.
o ritmo, o jeito próprio brasileiro. Esse É muito provável que o horário não deve
momento pode demonstrar o esforço de ter sido o único elemento a provocar
inversão do fluxo de consumo cultural, já que insucesso dessa tentativa. Uma das razões
esse cotidiano totalmente brasileiro toma que, com certeza, provocaram a não adersão
conta dos lares portugueses e torna-se modelo a esse produto foi o distanciamento de ele-
para os hábitos lusitanos. Interferência direta mentos de identificação do público receptor.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 681
e não houve elementos que permitissem o ano brasileiro e inseridos nas tramas, nos dramas
que podemos chamar de verossimilhança. A sociais, políticos, culturais vividos e vivenciados
narrativa não envolveu aqueles que assisti- pelos habitantes desses tantos brasis.
am, distanciando-se até mesmo dos que A mudança em nossa teledramaturgia
poderiam encontrar nela pontes de identifi- decretada por Beto Rockefeller determinou
cação como é o caso das inúmeras colônias os rumos dessas obras ficcionais no Brasil.
portuguesas que vivem no Brasil. Difícil é para um leitor experiente de tele-
Nesse momento é relevante considerar a novela brasileira se enredar por outras obras,
narrativa como fator determinante nesse que mantenham distanciamento considerável
processo. Conforme destacado anteriormen- das fortes raízes da teledramaturgia nacional.
te, o Brasil tem uma forte tradição na criação Difícil, mas não impossível. É importante
dessas obras televisivas e os diferentes brasis, acompanhar essas experimentações como o
durante décadas, se especializaram em assis- início de um processo deflagrado pelo
tir telenovelas. Os telespectadores daqui momento de contínua expansão da
possuem acuidade especifica sobre esse globalização. Nesse desmontar de barreiras,
produto pela forma do fazer brasileiro, que os produtos de outras culturas cada vez mais
caracteriza a produção da telenovela brasi- visitam outros portos e muitas vezes a re-
leira. Essa telenovela brasileira reconhecida jeição inicial, após ajustes e reajustes, se torna
por apresentar inúmeras tramas em uma um elemento que se aclimata à cultura local.
mesma obra, com forte apelo no ficcional, Já em outros momentos, em uma adaptação
mas usando e “abusando”9 do cotidiano real menos invasiva, pode assumir novo signifi-
cria, assim, em muitos momentos intersec- cado a partir das concessões, negociações e
ções que dificultam a separação entre real entendimentos com a cultura que visita.
e ficcional. Explora ao máximo as riquezas Na visita realizada por Olhos D’Água ao
naturais do meio ambiente, da sensualidade Brasil já houve a concessão ao acordo tácito
e do erotismo próprios do povo brasileiro, ditado e permitido pela especificidade pró-
prendendo o telespectador em tramas que são pria desse tipo de produto que se caracteriza
desvendadas pouco a pouco, o que exige sua como obra em aberto (Pallottini: 1998), o
assistência diária ou pelo menos periódica, que propicia, dessa forma, mudanças em seu
por seu forte caráter de pauta para as con- desenvolvimento. Foi o que aconteceu com
versas do dia-a-dia, sobretudo por sua reper- essa visitante, que teve sua trama modificada
cussão nas diferentes mídias. Difícil concor- na forma de apresentação ao público brasi-
rer com essa experiência acumulada. Essas leiro, diferenciando-se do original veiculado
são hipóteses, apenas incursões exploratórias em Portugal. Telenovela, como produto da
para futuras investigações, que serão consi- comunicação, também é questão de cultura,
deradas no aprofundamento deste estudo. culturas e não só de aparatos, conforme
A telenovela importada de além-mar tem alerta Martín-Barbero.
sua narrativa centrada em uma única trama. É impossível conhecer novas praias sem
Seu apelo é tênue até mesmo para o mote identificar seus contornos, suas nuances, os
principal que conduz à trama: duas irmãs locais de perigo e o melhor lugar para o
gêmeas separadas na infância reencontram- mergulho tranquilo e o emergir seguro. Ou
se anos depois – uma pobre e outra rica. Esse seja, é preciso entender a especificidade do
posicionamento relembra mais uma vez o público. Principalmente de um público que
início da teledramaturgia no Brasil, pela tem, gostando ou não, forte tradição em ver
preocupação em distanciar-se de questões e fazer telenovela, sendo essa uma das
contemporâneas. Com narrativa leve, sem pre- maiores expressões dessa cultura.
ocupação em amarrar as ações dramáticas, Pensar a telenovela portuguesa nos pro-
acaba distanciando o telespectador que picia um olhar amoroso para nossa própria
mesmo de origem ou de descendência lusi- cultura, na medida em que faz ver como a
tana foi alfabetizado pela produção brasileira nossa formação multicultural nos abre para
e, portanto, escolarizado em assistir teleno- as diferentes culturas e, ao mesmo tempo,
vela. A diferença está no ritmo do contar a nos alerta para a especificidade resultante da
história, nos elementos resgatados do cotidi- miscigenação e o grau de consolidação dessa
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 683
5. Uma outra hipótese possível é a do projeto maior. Se não agora, é provável que
natural estranhamento frente a algo novo. o caminho será encontrado. Não há nada que
Estranhamento que tem se manifestado quan- a associação de tempo, talento e persistência,
do se processam mudanças na receita do que não seja capaz de resolver.
denominamos telenovela brasileira, ou seja, Afinal, como dizem experientes roteiristas
no jeito de ser da produção dramatúrgica da de cinema e televisão, e que já se constitui
TV Globo, que construiu e impôs seu modelo, um aforismo, todas as boas histórias já foram
através de sucessivas experimentações. Espe- contadas. Assim, o desafio criativo desloca-
rar que um produto diferente possa gozar de se do o que contar para o como contar. É
uma pronta aceitação, uma entrega sem re- o como que deve ser buscado na mescla do
sistência, nos parece ingenuidade. A própria dinamismo da telenovela brasileira, manten-
TV Globo trava uma permanente luta entre do-se a marca da diferença, que entendemos
os modelos no ar e os índices de audiência. deve consistir em manter a integridade da
Não há como prever o êxito, que às vezes história (sem excesso de permeabilidade
ocorre por obra do puro acaso, como o que mercadológica) com apelos que podem nas-
fez com que o exotismo buscado por Glória cer da própria história. A inclusão de uma
Perez ao construir um núcleo muçulmano em cenografia que mostre ao Brasil um pouco
O Clone ganhasse proeminência graças à da cultura portuguesa ou do mundo portu-
tragédia provocada pelos atentados às torres guês, para além do cotidiano dramático vivido
gêmeas do World Trade Center em Nova York pelas personagens, pode ser um exemplo. Ou,
e ao Pentágono. As Filhas da Mãe, de um dito de outro modo, a ação dramática deveria
roteirista experimentado como Sílvio de Abreu, se desenvolver, enquanto ficção, com apoio
não alcançou a audiência esperada, assim como na concretude de um mundo real pleno de
Torre de Babel, do mesmo autor, encontrou atrativos, de encantos e peculiaridades, que
resistência por parte do público e teve que podem ser dados a conhecer associando-se
ser modificada. É bom lembrar, voltando no à viagem ficcional a viagem pelo país real
tempo, que Beto Rockefeller só foi um su- recortado pelo fazer ficcional.
cesso depois de uma experimentação fracas- Tais considerações têm apenas o objetivo
sada de outra telenovela que tentou inovar na de abrir um debate. Afinal, para além dos
linguagem. Outras tentativas de inovação motivos dramatúrgicos estão os de caráter
também foram rejeitadas como a elaborada mercadológico, de importância capital, em duplo
Espelho Mágico, de Lauro César Muniz. sentido, quando sabemos, de há muito, sobre
6. Por outro lado, não se pode negar a ambivalência da indústria cultural, onde
qualidades à telenovela Olhos D’Água, que viabilidade do negócio e lucratividade estão em
representa um modelo de qualidade incompa- tensão dialética com o caráter artístico e a
rável se tomamos como parâmetro as teleno- capacidade de inovar do bem produzido. Achar
velas mexicanas que têm audiência suficiente a fórmula é questão de interesse para os que
para mantê-las no ar. Talvez, o maniqueísmo pensam sobre e para os que produzem teleno-
das personagens e o desempenho excessivamen- vela, independentemente de onde se situam as
te dramático dos atores, beirando ao caricato, raízes do local na proposta que visa a trans-
esteja mais próximo do gosto de certos seg- posição de fronteiras, sejam das culturas in-
mentos do que a ingênua e suave novela Olhos ternas (ao nacional) ou das culturas externas
D’Água, mais contida como interpretação, mais (ao nacional) em direção ao transnacional.
elaborada enquanto produto audiovisual e que Como pesquisadores, nosso interesse está
ainda luta pela captura da audiência. na maior diversidade e na maior competi-
Mas, estamos apenas formulando hipó- tividade para que se depure o gênero e se
teses. Talvez se possa, futuramente, identi- apure a qualidade e a capacidade da ficção
ficar quais são pertinentes, quais são mais para que ela possa cumprir, enquanto histó-
determinantes. Pode ser ainda que cada qual ria, seu velho papel de a um só tempo nos
concorra a seu modo para dificultar a via- distrair e nos tornar melhores, explicação dos
bilidade da proposta. Afinal, há brasileiros habitantes de Marrakech para seu interesse
envolvidos na roteirização e na produção da em se reunirem na praça e ouvir, por horas
novela, certamente estamos diante de um a fio, o contador de histórias.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 685
Bibliografia _______________________________
1
Professora e doutoranda na ECA-USP, res-
Bosi, E. (1994). Memória e sociedade: pectivamente.
2
Entrevista concedida por Marcelo Parada,
lembranças de velhos. São Paulo, Cia das
vice-presidente da BAND, à revista Contigo de
Letras, 1994. p. 56. 12 fevereiro de 2004, p.50.
Canclini, N. (1997). “Cultura y 3
Segundo material de divulgação da Emis-
comunicación: entre lo global y lo local”. La sora, a produtora NBP é a maior produtora de
Plata, Buenos Aires, Argentina: Ediciones de TV em ficção de Portugal.
4
Periodismo y comunicación nº 9. Obras produzidas pela NBP.
5
Ferin-Cunha, I. (2002). Telenovelas No Brasil, “período em que se registram as
Brasileiras em Portugal: Indicadores de maiores audiências e são mais caros os preços de
propaganda; compreendido, em geral, entre 19 e
aceitação e mudança (no prelo).
22 horas e, no período diurno, entre 7 e 10 horas
Martín-Barbero, J. (1997) Dos Meios às (em ing., ‘prime time’).” Rabaça, C.A.; Barbosa,
Mediações: comunicação cultura e G.G. Dicionário de Comunicação. 2. ed. rev. e
hegemonia. Rio de Janeiro: Universidade atualizada. Rio de Janeiro: Campus, 2001.
Federal do Rio de Janeiro. 6
Conforme artigo apresentado no Seminário
Motter, M. L. (2000). “Ficção e reali- Telenovela: internacionalização e intercultura-
dade – Telenovela: um fazer brasileiro”. Ética lidade, realizado na ECA-USP, em 2002: “Tele-
& Comunicação – FIAM, São Paulo, n. 2, novelas Brasileiras em Portugal: Indicadores de
aceitação e mudança” (no prelo).
p. 43, ago/dez. 7
Entendida como conjunto dos processos
______ (2001). “A telenovela: documen- sociais de produção, circulação e consumo da
to histórico e lugar de memória”. Revista USP, significação na vida social. Ver, por exemplo,
n. 48. Canclini, N. Cultura y comunicación: entre lo global
Muñoz, S. (1992). Mundos de vida y y lo local. La Plata, Buenos Aires, Argentina:
modos de ver: Televisión y Melodrama. Ediciones de Periodismo y comunicación nº 9, 1997.
8
Colombia: Tercer Mundo Ed. Conforme observação da direção da NBP,
quando do lançamento da telenovela no Brasil.
Pallottini, R. (1998). Teledramaturgia de 9
Excesso de temáticas sociais com tratamen-
Televisão. São Paulo: Moderna. to superficial como, por exemplo, a recente
Rabaça, C.A.; Barbosa, G.G. (2001) Di- Mulheres Apaixonadas, telenovela de Manoel
cionário de Comunicação. 2. ed. rev. e Carlos veiculada em horário nobre na Rede Globo
atualizada. Rio de Janeiro: Campus. de Televisão.
686 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 687
desta resultar de um conjunto também he- de confiança que se estabelece entre este e
terogéneo de tecnologias, que engloba as mais o aparelho. Com os novos conteúdos
diversas soluções proprietárias para além da interactivos disponibilizados, a confiança
já referida natureza open-source da net que estende-se aos restantes intervenientes do
não limita o leque de opções à disposição processo, desde a emissora à operadora do
do produtor de conteúdos. Esta proliferação serviço, consequentemente resultando numa
de formatos e tecnologias invade agora o mais valia às empresas envolvidas, quando
domínio dos audiovisuais, onde inúmeras comparadas com outras que prestam um mau
plataformas lutam entre si para se tornar o serviço aos seus subscritores (que não terão
standard da televisão interactiva do futuro. dificuldade em lhes apontar responsabilida-
Uma aplicação de iTV não deve ser vista des).
como uma aplicação stand-alone que obe- Assim é importante compreender que as
dece a certos critérios de apresentação de falhas que nos habituamos a menosprezar
conteúdo, mas como o culminar de uma série quando navegamos na WEB assumirão um
de experiências que o utilizador possui sobre peso diferente na televisão e não passarão
este, a sua motivação para o utilizar, e o despercebidas. O espectador de hoje já não
contexto em que o faz. Ou seja, a sua se lembra da última vez que viu a sua
construção deverá ter em conta factores de programação interrompida por motivos téc-
comportamento humano, e como os espec- nicos, e também não espera encontrar o erro
tadores interagem com a televisão e o con- 404 quando tenta aceder a um conteúdo
trolo das suas opções. interactivo ou reiniciar a sua televisão quan-
A primeira grande dificuldade ao traba- do esta bloqueia. Mas a distinção entre iTV
lhar para televisão interactiva reside na e o PC eleva-se muito além das considera-
mudança de atitude que representa para com ções tecnológicas: o contexto de utilização
é radicalmente oposto, essencialmente domi-
o modelo de televisão tradicional. Conside-
nado pela temática do entretenimento, e de
rado um meio “sit back”, termo que refere
carácter extremamente social.
a passividade com que o espectador participa
Essas diferenças do contexto de utiliza-
no processo, espera-se que a multiplicidade
ção têm de ser levadas em conta no desenho
de opções e serviços que a iTV proporciona
dos interfaces, pois um espectador de tele-
ao seu subscritor lhe confira uma atitude mais
visão não será tão facilmente “absorvido”
activa, referida pelo conceito de “lean
pelo que se passa no seu ecrã como uma
forward”. Por isso, além das principais
pessoa sentada em frente a um PC, que
guidelines no que respeita ao desenho de
activamente interage com este, à procura de
interfaces para iTV que se centram em torno algo e voluntariamente conduzindo todo o
de questões técnicas (a resolução do ecrã, desenrolar de acções que se produzem no
uso da cor, distancia de visionamento, etc.) monitor a uma distância não muito maior do
existem questões sociais ou comportamentais, que alguns centímetros de si. Ao contrário
como a expectativa sobre os conteúdos desta proximidade e intensidade de partici-
fornecidos e o modo de interagir com eles pação, a relação TV/espectador é bastante
a ser considerados. mais volátil. Ver televisão é um processo
Mais uma vez podemos retomar a dife- normalmente desleixado, marcado pela cons-
rença entre TV e PC para melhor compre- tante mudança de canais, e isso apenas
ender essas implicações. Ao longo dos anos, quando o espectador efectivamente se senta
desenvolveu-se um elo de confiança entre os à frente desta para lhe dar o mínimo de
espectadores e a televisão, que deriva do facto atenção, já que não é anormal a televisão
de sempre que estes carregam num determi- apenas cumprir as funções de produzir ba-
nado botão, a televisão responde com o rulho de fundo enquanto o suposto espec-
resultado pretendido e no tempo adequado. tador desenvolve uma série de actividades
A introdução da interactividade na televisão paralelas.
deve respeitar essa relação, sobre risco de Mesmo quando existe uma intenção
destruir as expectativas do utilizador. E não declarada do espectador de se deixar absor-
é apenas o espectador que beneficia da relação ver pelo conteúdo do aparelho, esta é em boa
690 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
parte das vezes uma acção colectiva, onde Possibilitar aos utilizadores mais frequen-
mais do que uma pessoa partilham do even- tes a utilização de shortcuts, que os leve
to. O carácter social da televisão contrasta directamente ao conteúdo procurado sem
bastante com o hábito normalmente solitário terem de passar por todas as fases intermédias
da relação utilizador – computador. Parado- que eles já não precisam de ver. Este é um
xalmente, a própria interactividade dita iTV aspecto essencialmente problemático no que
pode ser outra causa de distanciamento entre respeita à aplicação à iTV, dada a necessi-
os dois ambientes. No computador o dade não menos importante de reduzir a
utilizador está habituado a um constante vai utilização do teclado ao mínimo e mesmo
e vem de informação, e mesmo a desenvol- do controlo remoto a uma combinação fixa
ver várias actividades paralelas no seu PC, de botões.
com duas, três ou quatro aplicações abertas Possibilitar e evidenciar o feedback de
e saltando livremente entre elas como se de informações entre as aplicações e o utilizador.
um todo se tratasse. Já na iTV, o fluxo do É necessário tornar óbvio ao utilizador que
vai e vem de informação não depende in- as suas acções provocam reacções no siste-
teiramente de si, pelo menos no estado actual ma, e assim levá-lo a compreender como este
de desenvolvimento que nos é apresentado funciona. Mesmo quando a sua acção não
pelas plataformas existentes. A emissão desencadeia nenhum processo de
contínua não é interrompida pelo novo nível interactividade, seja porque é “ilegal” no
de interactividade oferecido ao espectador, contexto em que se encontra, ou porque os
para este mais tarde poder retomar ao seu conteúdos não estão lá, ou por qualquer outro
momento inicial, pelo que terá de dividir a motivo, mesmo assim deverá haver algum
sua atenção entre a emissão e os serviços feedback do servido para que não hajam
que entretanto activou. Este novo problema dúvidas no espectador que o seu comando
pode-se ainda somar ao anteriormente des- foi recebido pela televisão. Este feedback
crito carácter social do visionamento da também permite a quem assiste ao processo
televisão: se ao espectador que desencadeou mas não está na posse do controlo remoto
a interactividade é exigida uma duplicação perceber e acompanhar o que se passa.
da sua atenção, a quem se encontra ao seu Representação contínua é importante para
lado é necessário oferecer uma explicação do compreender:
que está a acontecer, quais os passos que estão a) o que se passa no ecrã e criar no
a ser dados, etc. espectador a sensação de controlo dos even-
Das guidelines tradicionalmente herdadas tos e dos elementos mostrados. Os objectos
dos estudos do Human -Computer Interaction não devem simplesmente posicionar-se na
aplicados ao desenho de interfaces para iTV posição x ou y como o espectador comanda,
podem-se salientar os seguintes: mas deslocar-se até essa posição, fortalecen-
Consistência: as sequências de acções do o sentido da acção. Tal como os menus
necessárias, os tipos de opções, termos uti- não devem simplesmente possuir um estado
lizados, cores, objectos, layouts, etc., devem aberto e fechado, mas “crescerem” gradual-
todos manter-se regulares ao longo da apli- mente quando solicitados, para o espectador
cação, para que o utilizador não tenha de nunca ter dúvidas de onde veio aquele menu
constantemente reaprender a navegar pelas e porque de repente apareceu no ecrã. Estes
opções possíveis. Esta regra não implica no comportamentos animados podem ser enten-
entanto que todas as aplicações sejam iguais: didos muito à luz do ponto anterior. Boas
não é o aspecto delas que se pretende em representações contínuas tornam claro ao
última análise sempre igual, mas a sua espectador que o botão que pressionou pro-
utilização. Num ambiente onde a atenção do duziu um efeito no fluxo de informação do
utilizador é constantemente exigida em dois ecrã, mesmo que se tal efeito se reduz a um
streamings de informação separados, e com breve piscar de cores sobre a opção pres-
um interface físico limitado como o controlo sionada. Essa correspondência reforça a
remoto (e o teclado extra quando esse exis- relação entre o controlo remoto e a imediata
te), o modelo de navegação deve manter-se resposta do sistema, que por sua vez ajudam
simples. o seu utilizador a compreender a aplicação
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 691
e a aprender com as suas acções. Não será que não deveria ter necessidade de parar para
totalmente despropositado colocar mesmo pensar no que lhe é pedido ou proposto, ou
uma espécie de histórico de botões pressi- ter de olhar para o objecto que tem na mão
onados, tal como será bastante vantajoso (mas à procura do botão A ou B. Este conceito
dependerá sempre do tipo de projecto em pode ser descrito com termos tão caros ao
questão) representar de alguma forma no ecrã HCI como “familiaridade”, “generalização”
o botão pressionado. Dado que a aplicação “consistência”, “aprendizagem”, “relevância”,
interactiva “concorre” com a emissão normal “eficiência” ou “atitude”, etc.…
da televisão pela atenção do espectador e a Existem obviamente diferenças entre o
sua compreensão, estas animações e feedback que se aprendeu com a Web e este novo meio,
das acções do utilizador ajudam ao processo. pelo que os próprios especialistas de avali-
Mas por outro lado, quando demasiado ação da utilização de interfaces não podem
intrusivas, e sobretudo se simplesmente transitar os seus conhecimen-
b) o espectador não estiver interessado tos sem primeiro os modificar para englobar
no conteúdo ou serviço que oferecem, po- os novos objectivos que se pretendem alcan-
dem ser irritantes, acabando por alienar o seu çar. Nesse sentido, o estudo da usabilidade
público. Um mecanismo de temporização que para televisão interactiva deve ter em aten-
automaticamente desactive essas funções deve ção outros elementos como o uso do remoto
por isso ser tido em conta. e do teclado, inclusive o passar destes entre
Oferecer formas simples de lidar com indivíduos, as mudanças de atenção que
erros. Idealmente dever-se-ia eliminar qual- ocorrem entre o televisor e o remoto (e
quer possibilidade deles existirem, mas tal teclado), os comentários dos intervenientes
tarefa quando muito apenas pode ser levada activos no processo sobre as opções dispo-
a bom termo ao nível técnico. Haverá sem- níveis e a sua interacção com essas opções
pre erros na compreensão e manuseamento e as interacções que se desenvolvem entre
do sistema por parte do utilizador, por mais si, além dos comentários comparativos entre
simples e óbvia que esta seja. E dado que o que estão a utilizar e outras tecnologias,
se trata de uma audiência pouco habituada nomeadamente através da nomenclatura que
a lidar com erros, devem ser criados meca- utilizam para descrever funções e conteúdos.
nismos de os ultrapassar ou anular. Tendo em conta as especificidades
Possibilidade de voltar atrás. Este aspec- identificadas anteriormente na iTV, um es-
to prende-se muito com o ponto anterior. Para tudo de usabilidade em iTV levado a cabo
qualquer acção que o utilizador possa desen- num laboratório montado para o efeito de-
cadear, a este deve-lhe ser sempre possibi- verá ter em conta as seguintes características
litado o “voltar atrás”, tenha essa acção sido (Pemberton-Griffiths, 2003):
um erro ou uma opção intencional. Opções Características físicas da interacção:
de navegação como “undo”, “back” e deverá ser criada a distância típica a que o
“forward” ajudam os utilizadores a navegar telespectador vê televisão, num ambiente
e a anular erros. A sua importância aumenta tradicionalmente relaxado e confortável. Dado
com a complexidade da aplicação em si. Se que nesta plataforma, ao contrário da Web,
tratar de um serviço como o EPG, que mostra muita da informação mais importante é
uma listagem de programas e permite ao apresentada na forma de áudio, o espaço em
utilizador aceder a um deles clicando sobre que os testes de avaliação são realizados deve
ele, deveria haver a possibilidade de retornar captar todos os sons produzidos pela apli-
ao último ecrã do EPG mesmo depois de o cação e pelos indivíduos que estão a ser
utilizador entrar no programa por si esco- observados no teste, além de vistas claras dos
lhido, sem ter que reiniciar o EPG do seu interfaces utilizados e respectivos periféricos
ecrã inicial. (controlo remoto mais teclado se for caso
Transparência: a capacidade de o disso).
utilizador usar a ferramenta sem pensar nela Alguns estudos apontam que as mais
ou sequer olhar para ela. O utilizador de iTV relevantes descobertas na utilização de apli-
deverá estar tão à vontade com o seu con- cações de iTV resultam de co-descobertas,
trolo remoto e as opções que lhe são dadas onde várias pessoas que partilham laços de
692 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
amizade ou família se ajudam mutuamente durante a sua aplicação real é que esta poderá
num processo de “pensar em voz alta”, e que ser devidamente estudada e avaliada, pois as
deve ser documentado na avaliação da apli- reacções do individuo serão bastante mais
cação. genuínas e menos forçadas do que quando
Múltiplos canais de informação a cor- em laboratório é instruído que faça isto e
rerem sobre o mesmo aparelho: a divisão aquilo com antecedência. Quando o tipo de
cognitiva que os utilizadores fazem entre o usabilidade a testar não depende do momen-
stream normal da programação e a peça to da sua transmissão, pode-se recorrer a
interactiva a que acabam de aceder deve ser protótipos para simular a interactividade.
levada em conta. Tradicionalmente, esta Estes podem ser protótipos em papel, que
divisão reflecte-se na disposição dos objec- se debruçam sobre elementos relacionados
tos ao longo do layout apresentado, onde se com tarefas, e onde a fidelidade com o
reserva normalmente uma área para a colo- produto final não tem que ser a mais precisa,
cação do objecto tv. No entanto, por ques- ou protótipos funcionais, recorrendo a apli-
tões de facilidade, este objecto é quase sempre cações como o Powerpoint ou o Director.
representado por uma imagem estática du- Apesar das vantagens acrescidas de utilizar
rante as fases de teste, pelo que o compor- uma aplicação funcional mais próxima da
tamento do utilizador final poderá ser bas- aplicação final, com alguns custos adicionais
tante diferente da presenciada no laboratório. em relação ao protótipo em papel nomeada-
A natureza embebida dos serviços mente no custo de execução e elaboração,
interactivos: a interactividade de um progra- mas mesmo assim inferiores ao produto
ma não pode ser dissociada deste, pelo que acabado, é necessário ter em atenção que este
nos testes de usabilidade levados a cabo não protótipo pode funcionar melhor que a apli-
se pode ignorar o facto de que se o programa cação interactiva, pelo que pausas e demoras
não for convidativo, dificilmente alguém na apresentação de conteúdos devem ser tidas
acederá à parte interactiva do mesmo, ao em conta e adicionados ao protótipo.
contrário do que se passa no laboratório, onde A televisão não é obrigatória: como já
o utilizador sabe à partida que deve e tem foi dito anteriormente, a nossa atitude para
de participar no processo. Da mesma forma, com a tv influencia a nossa relação. Enquan-
é necessário ter em conta que o fã incon- to no pc estamos habituados a realizar ta-
dicional de uma qualquer série ou programa refas conotadas como trabalho, motivo pelo
sujeitar-se-á a um nível de interactividade que qual nos sujeitamos a determinado tipo de
outros utilizadores optarão por ignorar. situações sem sequer as questionarmos, essa
Aspectos relacionados com a transmis- atitude é inexistente actualmente na sala de
são do programa: embora certos serviços estar frente ao televisor. Por esse motivo, é
possam ser testados com maior fidelidade sem necessário repensar a estratégia de definir x
qualquer dependência à altura exacta em que tarefas ao utilizador do sistema de iTV
serão disponibilizados, outros estão fortemen- quando este entra no laboratório para testes,
te ligados com o momento em que vão para sobre risco mais uma vez das operações e
o ar. É impossível testar com toda a segu- comportamentos ai observados em nada se
rança um serviço que depende da motivação assemelharem à realidade, já que a vontade
do utilizador, quando esse depende por sua de perseverança do utilizador está à partida
vez do momento real da sua exibição na condicionada pelo contexto em que se en-
televisão. Poder-se-á testar e apresentar contra.
cenários de uma aplicação interactiva a ser Características sociais da interacção: este
desenvolvida para uma final de um campe- será o aspecto mais complexo de reproduzir
onato europeu de futebol, mas apenas no dia num laboratório de iTV, já que as situações
deste jogo todas as condições que motivam em que os telespectadores assistem a pro-
os utilizadores do programa estarão reuni- gramas de televisão na companhia de pes-
das, com a dificuldade acrescida de que é soas desconhecidas são bastante reduzidas e
impossível repetir o evento. O exemplo mais pontuais, e normalmente ocorrem em lugares
ilustrativo desta situação prende-se com a públicos nos quais não possuem qualquer
interactividade dependente do tempo-real. Só possibilidade de domínio sobre o processo
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 693