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ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 3

ANTÓNIO FIDALGO e PAULO SERRA (ORG.)

Ciências da Comunicação em Congresso na Covilhã


Actas do III Sopcom, VI Lusocom e II Ibérico

Volume I

ESTÉTICA E TECNOLOGIAS DA IMAGEM

UNIVERSIDADE DA BEIRA INTERIOR


4 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Actas dos III SOPCOM, IV LUSOCOM e II IBÉRICO


Design da Capa: Catarina Moura



Edição e Execução Gráfica: Serviços Gráficos da Universidade da Beira Interior


Tiragem: 200 exemplares

Covilhã, 2005

Depósito Legal Nº 233236/05


ISBN – 972-8790-36-8

Apoio:

Programa Operacional Ciência, Tecnologia, Inovação do III Quadro Comunitário de Apoio

Instituto da Comunicação Social


ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 5

ÍNDICE

Apresentação, António Fidalgo e Paulo Serra ............................................................... 11

Capítulo I
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS

Discurso proferido pelo Presidente da Comissão Executiva dos III SOPCOM, VI


LUSOCOM e II IBÉRICO, Prof. Doutor António Fidalgo, na Sessão de Abertura dos
Congressos .......................................................................................................................... 15
Discurso do Sr. Ministro da Presidência, Dr. Nuno Morais Sarmento, na Sessão de Abertura
dos Congressos ................................................................................................................... 21
Discurso proferido pelo Reitor da Universidade da Beira Interior, Prof. Doutor Manuel
José dos Santos Silva, na Sessão de Abertura dos Congressos ............................. 25
A construção da identidade nacional e as identidades regionais no rádio brasileiro (o
caso gaúcho), Doris Fagundes Haussen .......................................................................... 27
Tecnologia e Sonho de Humanidade, Moisés de Lemos Martins .............................. 35
Textos sobre identidades como textos: um exercício a partir das literaturas de língua
portuguesa, Augusto Santos Silva .................................................................................... 41
Desafios da comunicação lusófona na globalização, Antonio Teixeira de Barros .... 59
A democracia digital e o problema da participação civil na decisão política, Wilson
Gomes .................................................................................................................................. 65
A cidadania como problema, José A. Bragança de Miranda ...................................... 73

Capítulo II
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA

Apresentação, Paulo Filipe Monteiro .............................................................................. 79


Apresentação, Eduardo Jorge Esperança ......................................................................... 81
O real quando menos se espera, Anabela Moutinho .................................................... 83
La identidad de género: aproximación desde el consumo cinematográfico entre los
estudiantes de la Universidad del Pais Vasco, Casilda de Miguel, Elena Olabarri, Leire
Ituarte ................................................................................................................................... 89
“Linhas de fuga” na cinematografia brasileira contemporânea, Denize Correa Araujo ..... 97
Formas documentárias da representação do real na fotografia, no filme documentário
e no reality show televisivo atuais, Fernando Andacht ............................................. 103
6 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

El registro cinematográfico: nuevas señales de vida. Restaurar el silencio es la función


del objeto, Francisca Bermejo ........................................................................................ 113
Comic e cinema, uma relação entre iguais?, Gêisa Fernandes D´Oliveira ..................... 119
Imagens de som /Sons de Imagem: Philip Glass versus Godfrey Reggio, Helena Santana
e Rosário Santana ............................................................................................................ 127
Documentário e a produção da imagem estereoscópica digital, Hélio Augusto Godoy-
de-Souza ............................................................................................................................ 133
A atmosfera como figura fílmica, Inês Gil ................................................................. 141
Generación y utilización de tecnologías digitales e informacionales para el análisis de
la imagen fotográfica, José Aguilar García, Fco. Javier Gómez Tarín, Javier Marzal Felici
e Emilio Sáez Soro ......................................................................................................... 147
La fotografía como interfaz cinematográfico: importancia de la luz en el discurso ci-
nematográfico, José Manuel Susperregui ...................................................................... 157
O herói solitário e o herói vilão - Dois paradigmas de anti-herói, em filmes portugueses
de 2003, Leonor Areal .................................................................................................... 165
A percepção cromática na imagem fotográfica em preto-e-branco: uma análise em nove
“eventos de cor”, Luciana Martha Silveira .................................................................. 175
O filme documentário em debate: John Grierson e o movimento documentarista britânico,
Manuela Penafria ............................................................................................................. 185
Fronteiras Imprecisas: o documentário antropológico entre a exploração do exótico e a
representação do outro, Március Freire ........................................................................ 197
Entre cine e foto: Un sorriso a cámara, Margarita Ledo Andión ........................... 205
Lágrimas para o Real – a inscrição da piedade através de documentários melodramáticos,
Mariana Baltar .................................................................................................................. 213
O Picaresco e as Hipóteses de Heteronimia no Cinema de João César Monteiro, Mário
Jorge Torres ...................................................................................................................... 221
Em defesa de uma “ecologia” para o cinema português (ou questões levantadas pelo
desaparecimento de um ecossistema), Nuno Aníbal Figueiredo .............................. 227
Câmara Clara, um diálogo com Barthes, Osvaldo L. dos Santos Lima ...................... 235
Desterritorialização e exilio no cinema de Walter Salles Junior, Regina Glória Nunes
Andrade ............................................................................................................................. 241

Capítulo III
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS

Apresentação, Óscar Mealha ........................................................................................... 249


Apresentação, Graça Rocha Simões .............................................................................. 255
Refrescando a memória – arquivo e gestão da informação, Alberto Sá ...................... 257
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 7

Comunicação Organizacional – impacto da adopção de um Sistema Workflow, Anabela


Sarmento ............................................................................................................................ 265
Novos media: inauguração de novas formas de sociabilidade, Ana Sofia André Bentes
Marcelo .............................................................................................................................. 275
Cidade, tecnologia e interfaces. Análise de interfaces de portais governamentais brasi-
leiros. Uma proposta metodológica, André Lemos, José Mamede, Rodrigo Nóbrega, Silvado
Pereira, Luize Meirelles .................................................................................................. 283
La figura del comunicador digital en la era de la Sociedad de la Información: Contexto
y retos de futuro, Beatriz Correyero Ruiz ................................................................... 293
A Base de Dados como Formato no Jornalismo Digital, Elias Machado ...................... 301
Linguagens da informação digital: reflexões conceituais e uma proposta de sistematização,
Elizabeth Saad Corrêa ..................................................................................................... 309
Transformaciones estructurales del lenguaje en el entorno digital, Guiomar Salvat
Martinrey ........................................................................................................................... 321
Espaços Multifacetados em Arte – Novas Formas, Novas Linguagens, Helena Santana
e Rosário Santana ............................................................................................................ 327
You can’t see me: Contributo para uma teoria das Ligações, Ivone Ferreira ....................... 333
Estratégias de midiatização das ONG's, Jairo Ferreira ............................................... 341
Periodismo de “código abierto”: diversidad contrainformativa en la era digital, José María
García de Madariaga ....................................................................................................... 353
El impacto de Internet en los medios de comunicación en España. Aproximación
metodológica y primeros resultados, José Pereira, Manuel Gago, Xosé López, Ramón
Salaverría, Javier Díaz Noci, Koldo Meso, María Ángeles Cabrera, María Bella
Palomo .............................................................................................................................. 361
Interfaces meta-comunicativos: uma análise das novas interfaces homem/máquina, José
Manuel Bártolo ................................................................................................................. 371
Qual o papel da Internet na promoção da (in)existência de laços entre os investigadores
da comunidade lusófona?, Lídia J. Oliveira L. Silva ................................................ 377
Significando e ressignificando, Lourdes Meireles Leão ........................................... 387
Clipoema: a inter-relação das linguagens visual, sonora e verbal, Luiz Antonio Zahdi
Salgado .............................................................................................................................. 395
Modelos de Personalização de conteúdos em Audiovisual: novas formas de aceder a velhos
conteúdos, Manuel José Damásio .................................................................................. 403
Contributo dos serviços de comunicação assentes em Internet para a manutenção e alar-
gamento das redes de relações dos sujeitos, Maria João Antunes, Eduardo Anselmo Castro,
Óscar Mealha .................................................................................................................... 409
Los web sites instituciones. Dos casos concretos: Guardia Civil y Cuerpo Nacional de
Policía, María de las Mercedes Cancelo San Martín ................................................. 417
8 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Enquadramento e impacto dos sistemas de informação no Programa Aveiro Norte, Miguel


Oliveira, Pedro Beça, Nuno Carvalho, Sara Petiz e A. Manuel de Oliveira Duarte .. 423
Elementos de Emoção no Entretenimento Virtual Interactivo, Nelson Zagalo, Vasco Branco,
Anthony Barker ................................................................................................................ 433
Rádio e Internet: novas perspectivas para um velho meio, Paula Cordeiro ...................... 443
Critérios de qualidade para revistas científicas em Ciências da Comunicação: reflexões para
a PORTCOM, Sueli Mara Soares Pinto Ferreira .......................................................... 451
Banco de dados como metáfora para o jornalismo digital de terceira geração, Suzana
Barbosa .............................................................................................................................. 461
Killer parrilla generalista. Producción, programación y difusión documental, Xaime Fandiño
Alonso ............................................................................................................................... 471

Capítulo IV
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN

Apresentação, Fátima Pombo ......................................................................................... 479


Apresentação, Maria Teresa Cruz .................................................................................. 483
Resultados y función de procesos de investigación sobre intervención en esculturas del
patrimonio, Antonio García Romero, Vicente Albarrán Fernández, Rodrigo Espada Belmonte,
Cayetano José Cruz García ............................................................................................ 487
La poética de la imagen en Deseando Amar de Wong Kar-Wai: El cuerpo y el espacio como
las materias del espíritu, Begõna González Cuesta ........................................................ 495
Dibujar la forma volumétrica, matérica y espacial mediante el uso del elemento de
comunicación visual: El plano. Experiencias didácticas innovadoras para diseño industrial,
Cayetano José Cruz García ............................................................................................ 503
Diseño><Design, Eva Mª Domínguez Gómez ............................................................. 509
Performance multimídia: Laurie Anderson e arte feita de palavras e bits, Fernando do
Nascimento Gonçalves ..................................................................................................... 517
As Bandas Desenhadas brasileiras contemporâneas, Flávio de Alcântara Calazans .. 525
Vê isto, ou antes, escuta, José A. Domingues ............................................................ 533
O estético como compensação, José Manuel Gomes Pinto ....................................... 541
Em busca de paisagens sonoras: polioralidade, a voz midiática, Marcos Júlio Sergl .... 552
Nietzsche, Arte e Estética, Marisa C. Forghieri ......................................................... 563
Paraísos artificiais: autoria partilhada na criação contemporânea e na era dos jogos em
rede, Patrícia Gouveia ..................................................................................................... 569
O Museu Virtual: as novas tecnologias e a reinvenção do espaço museológico, Rute
Muchacho .......................................................................................................................... 579
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 9

Capítulo V
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL

Apresentação, Manuel Damásio ..................................................................................... 587


Apresentação, Francisco Rui Cádima ............................................................................ 589
El protagonista del nuevo mercado de la información y la comunicación: el consumidor,
Carmen Fernández Camacho .......................................................................................... 593
Televisão Digital e Interactiva: o desafio de adequar a oferta às necessidades e prefe-
rências dos utilizadores, Célia Quico ............................................................................ 601
Tv comunitária no Brasil: histórico e participação popular na gestão e na programação,
Cicilia M.Krohling Peruzzo ............................................................................................ 609
Identificando um género: a tragédia televisiva, Eduardo Cintra Torres ..................... 623
La desaparición del héroe: espacio y épica en el reality, Edysa Mondelo González, Alfonso
Cuadrado Alvarado ........................................................................................................... 633
“Big Brother”: um programa que mapeou a informação televisiva, Felisbela Lopes ..... 641
Os sons das cidades, o céu de Lisboa, Fernando Morais da Costa ....................... 653
Personalização de Conteúdos Multimédia. Análise aos atributos relevantes para a sua
anotação, Inês Oliveira .................................................................................................... 661
La eficacia del relato narrativo audiovisual frente al discurso persuasivo retórico, Jesús
Bermejo Berros ................................................................................................................ 669
Portugal / Brasil: a telenovela no entre-fronteiras, Maria Lourdes Motter, Maria Ataide
Malcher .............................................................................................................................. 679
Regras de usabilidade para a produção de aplicações em televisão interactiva, Valter de
Matos ................................................................................................................................. 687
10 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 11

APRESENTAÇÃO
António Fidalgo e Paulo Serra

“Ciências da Comunicação em Congres- Universidade Lusófona, em Lisboa, o I


so na Covilhã” (CCCC) foi a designação Encontro Luso-Brasileiro de Ciências da
escolhida, pela Direcção da SOPCOM – Comunicação, momento em que os investi-
Associação Portuguesa de Ciências da Co- gadores portugueses decidem criar a
municação, para o seu III Congresso, inte- SOPCOM – Associação Portuguesa de Ci-
grando o VI LUSOCOM e o II IBÉRICO, ências da Comunicação. Um ano mais tarde,
e que teve lugar na UBI, Covilhã, entre os em Abril de 1998, o II Encontro é organi-
dias 21 e 24 de Abril de 2004 (o LUSOCOM zado na Universidade Federal de Sergipe, no
teve lugar nos dois primeiros dias e o Brasil, incluindo investigadores de países
IBÉRICO nos dois últimos). africanos de língua portuguesa. É então que
Dedicados aos temas da Informação, se funda a LUSOCOM – Federação das
Identidades e Cidadania, os Congressos de Associações Lusófonas de Ciências da Co-
Ciências da Comunicação na Covilhã cons- municação. A terceira edição do LUSOCOM
tituíram um momento privilegiado de encon- realiza-se na Universidade do Minho, nova-
tro das comunidades académicas lusófona e mente em Portugal, em Outubro de 1999,
ibérica, fazendo público o estado da pesquisa regressando ao Brasil para a sua quarta
científica nos diferentes países e lançando edição, desta vez a S. Vicente, em Abril de
pontes para a internacionalização da respec- 2000. Depois de dois anos de pausa, o V
tiva investigação. Ao mesmo tempo, contri- LUSOCOM estreia Moçambique como país
buíram de forma importante para a conso- organizador, decorrendo em Maputo em Abril
lidação, tanto interna como externa – rela- de 2002. Apenas com uma edição, realizada
tivamente à comunidade científica, ao mun- em Málaga em Maio de 2001, o Congresso
do académico e ao próprio público em geral Ibérico de Ciências da Comunicação procura
– das Ciências da Comunicação como campo agora, pela segunda vez, juntar investigado-
académico e científico em Portugal. res e académicos de Espanha e de Portugal,
Este duplo resultado é ainda mais rele- e assumir-se assim como momento de união
vante tendo em conta que se trata de campo e debate acerca do trabalho levado a cabo
de investigação recente em Portugal. Não nos dois países. O primeiro congresso
pretendendo fazer uma descrição exaustiva SOPCOM – a Associação teve a sua criação
do seu historial, assinalem-se algumas datas legal em Fevereiro de 1998 –, realizou-se em
mais significativas. O primeiro curso de Março de 1999, em Lisboa, sendo também
licenciatura na área das Ciências da Comu- aí que, decorridos mais dois anos, viria a
nicação – na altura denominado de Comu- organizar-se o II SOPCOM, em Outubro de
nicação Social – iniciou-se em 1979, na 2001.
Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da No decurso dos quatro dias em que
Universidade Nova de Lisboa, a que se decorreram os Congressos de Ciências da
seguiram o do ISCSP da Universidade Téc- Comunicação na Covilhã foram apresentadas
nica de Lisboa (em 1980) e o da UBI (em cerca de duzentas comunicações, repartidas
1989), para citarmos apenas os três primei- por dezasseis Sessões Temáticas (repetidas
ros, expandindo-se até aos actuais 33 cursos em cada um dos Congressos), a saber: Teorias
superiores do ensino público universitário e da Comunicação, Semiótica e Texto, Econo-
politécnico actualmente existentes. mia e Políticas da Comunicação, Retórica e
No que se refere aos antecedentes ime- Argumentação, Fotografia, Vídeo e Cinema,
diatos dos Congressos que tiveram lugar na Novas Tecnologias, Novas Linguagens, Di-
UBI, em Abril de 1997 realizava-se na reito e Ética da Comunicação, História da
12 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Comunicação, Estética, Arte e Design, Pu- (Capítulo III), Estética, Arte e Design
blicidade e Relações Públicas, Jornalismo, (Capítulo IV) e Comunicação Audiovisual
Estudos Culturais e de Género, Comunica- (Capítulo V); o Volume II, intitulado Te-
ção e Educação, Comunicação Audiovisual, orias e Estratégias Discursivas, compreen-
Opinião Pública e Audiências, Comunicação de as comunicações referentes a Teorias da
e Organização. Comunicação (Capítulo I), Semiótica e Texto
A publicação do enorme volume de (Capítulo II), Retórica e Argumentação
páginas resultante de tal número de comu- (Capítulo III) e Publicidade e Relações
nicações – um volume que, e a aplicar o Públicas (Capítulo IV); o Volume III,
formato estabelecido para a redacção das intitulado Visões Disciplinares, compreende
comunicações, excederia as duas mil e as comunicações referentes a Economia e
quinhentas páginas –, colocava vários dile- Políticas da Comunicação (Capítulo I),
mas, nomeadamente: i) Publicar as Actas do Direito e Ética da Comunicação (Capítulo
VI LUSOCOM e do II IBÉRICO em sepa- II), História da Comunicação (Capítulo III)
rado, ou publicá-las em conjunto; ii) Publi- e Estudos Culturais e de Género (Capítulo
car as Actas pela ordem cronológica das IV); finalmente, o Volume IV, intitulado
Sessões Temáticas ou agrupar estas em grupos Campos da Comunicação, compreende as
temáticos mais amplos; iii) Dada a impos- comunicações referentes a Jornalismo (Ca-
sibilidade de reunir as Actas, mesmo que de pítulo I), Comunicação e Educação (Capí-
um só Congresso, em um só volume, quantos tulo II), Opinião Pública e Audiências
volumes publicar. (Capítulo III) e Comunicação e Organiza-
A solução escolhida veio a ser a de ção (Capítulo IV).
publicar as Actas de ambos os Congressos A realização dos Congressos de Ciências
em conjunto, agrupando Sessões Temáticas da Comunicação na Covilhã e a publicação
com maior afinidade em quatro volumes destas Actas só foi possível graças ao apoio,
distintos: o Volume I, intitulado Estética e ao trabalho e à colaboração de muitas pes-
Tecnologias da Imagem, compreende os soas e entidades, de que nos cumpre destacar
discursos/comunicações referentes à Aber- a Universidade da Beira Interior, o Instituto
tura e Sessões Plenárias (Capítulo I), Fo- de Comunicação Social, a Fundação para a
tografia, Vídeo e Cinema (Capítulo II), Ciência e Tecnologia e a Fundação Calouste
Novas Tecnologias e Novas Linguagens Gulbenkian.
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 13

Capítulo I

ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS


14 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 15

Discurso proferido pelo Presidente da Comissão Executiva dos


III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO,
Prof. Doutor António Fidalgo, na Sessão de Abertura dos Congressos1

1 - Breve historial dos Congressos da a) Representar os Cursos Superiores, os


SOPCOM e da LUSOCOM docentes e os investigadores, da área dos
estudos em ciências da comunicação;
Os Congressos de Ciências da Comuni- b) Promover o intercâmbio científico e
cação que se realizam de hoje a sábado na pedagógico entre os referidos cursos;
UBI, o III SOPCOM, o VI LUSOCOM, e c) Contribuir para a melhoria da quali-
o II IBÉRICO, constituem um marco deci- dade dos cursos existentes ou a criar;
sivo e memorável no desenvolvimento e na d) Fomentar a investigação científica nesta
afirmação das Ciências da Comunicação em área de estudos;
Portugal, no mundo lusófono e no espaço e) Dinamizar o intercâmbio internacional.
ibérico. A confluência dos três congressos esta Porém, esta iniciativa do ECCO, que
semana na cidade da Covilhã resulta de uma privilegiava o lado institucional dos cursos
feliz coincidência de alternância de organi- universitários, não vingou. Foi preciso espe-
zação pelos diferentes países, mas acontece, rar pelo I Encontro dos Investigadores Por-
fundamentalmente, por decisão da Direcção tugueses e Brasileiros, realizado em 18 e 19
da SOPCOM – Associação Portuguesa de de Abril de 1997 na Universidade Lusófona
Ciências da Comunicação, a quem desde já em Lisboa, para os investigadores portugue-
agradeço a confiança depositada na UBI, em ses ali reunidos avançarem com a Comissão
particular no Departamento de Comunicação Instaladora da SOPCOM, já não como uma
e Artes e no LABCOM, para organizar e associação de cursos, mas de investigadores
acolher os três congressos de uma vez. e profissionais da área da comunicação.2 É
O primeiro curso de licenciatura em esse encontro de Abril de 97 que hoje re-
Ciências da Comunicação foi criado há ferimos como o I LUSOCOM e que deve
precisamente 25 anos na Universidade Nova ser encarado de facto como o momento fun-
de Lisboa, em 1979. Um ano depois surgiu dador da SOPCOM, que viria a ser cons-
o segundo curso no ISCSP da Universidade tituída de iure em 6 de Fevereiro de 1998.
Técnica de Lisboa e o curso da UBI foi o O II Encontro Lusófono de Ciências da
terceiro curso de licenciatura a ser criado em Comunicação realizou-se de 28 a 30 de Abril
Portugal em 1989. Actualmente existem 27 de 1998, em Sergipe – Brasil, tendo aí par-
cursos superiores na área das Ciências da ticipado dois investigadores da África
Comunicação em 21 instituições do ensino Lusófona, um angolano, Albino Carlos, e um
público universitário e politécnico, somando, moçambicano, Nelson Saúte. Foi nesse encon-
em 2003, as respectivas vagas de ingresso tro na Universidade Federal de Sergipe, na
1243. cidade de Aracaju, que se fundou a
Dada a extraordinária expansão dos cursos LUSOCOM, como Federação das Associações
registada na década de 90, impunha-se a Lusófonas de Ciências da Comunicação.
colaboração das escolas e dos investigadores Em 1999 a SOPCOM estabelece-se de-
da área. Em 11 e 12 de Novembro de 1994, finitivamente como Associação representati-
teve lugar, nas instalações da UBI o I va da comunidade com a realização do seu
Encontro dos Cursos de Comunicação I Congresso Nacional, realizado em Lisboa
(ECCO), nomeadamente dos cursos da UNL, na Fundação Calouste Gulbenkian de 22 a 24
da UTL, da UBI, Universidade do Minho, de Março, e com o III LUSOCOM, que teve
da Universidade de Aveiro, da Universidade lugar de 27 a 30 de Outubro na Universidade
Católica e da Universidade de Coimbra. Do do Minho, Braga. Foram congressos de gran-
comunicado emanado desse Encontro foram de participação, como o comprovam os vo-
apontados como objectivos: lumosos livros de Actas respectivos.
16 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Dos congressos que precederam os que seu lado profissionalizante, as Ciências da


hoje iniciamos, quero ainda referir o V Comunicação são mais afins aos cursos
LUSOCOM, realizado em Moçambique, pois citados que aos cursos de ciências sociais e
mostra o quanto a LUSOCOM pretende de humanidades, com que têm grande afi-
abranger e integrar os novos países lusófonos. nidade epistemológica, mas que, além do
Estas foram as origens da Associação que ensino, não têm saídas profissionais especí-
hoje organiza com a UBI os congressos; e ficas. Muito justamente e bem o Ministério
se pode parecer estranho que o III Congresso da tutela sempre considerou o aspecto
da SOPCOM acolha dois congressos, o VI profissionalizante, com as consequentes
LUSOCOM e o II IBÉRICO, a explanação necessidades laboratoriais e de trabalho de
do surgimento da SOPCOM, mostra o quan- atelier, para efeitos de contabilização do ratio
to, pela sua história, está ligada à lusofonia. de alunos/professor dos cursos de Ciências
da Comunicação, que é igual ao das Enge-
2 - Ciências e profissões da comunicação nharias.
Abordo este ponto da tensão entre o lado
Se os cursos superiores de ciências da profissionalizante dos cursos e a componente
comunicação tiveram em Portugal na década teórica (mais propícia à investigação) por duas
de 90 uma expansão extraordinária, que ficou razões: uma política e outra epistemológica.
conhecida como o “milagre da multiplicação Primeiro por causa das relações entre o poder
dos cursos” na expressão feliz de Mário político e os cursos superiores de comuni-
Mesquita, é porque havia uma necessidade cação. A segunda razão para desse modo
e uma apetência da sociedade portuguesa contribuir para uma fixação epistemológica
relativamente às profissões da comunicação, das ciências da comunicação.
em particular, jornalismo, relações públicas, Dado que os cursos universitários
publicidade e audiovisual. Os cursos supe- profissionalizantes atrás referidos, têm já uma
riores de comunicação eram vistos pelos larga tradição curricular e existe um consen-
jovens portugueses como o melhor meio de so alargado sobre as matérias científicas a
acesso a profissões já estabelecidas como o incluir, não surge a acusação de serem
jornalismo e às novas profissões entretanto demasiado teóricos. Ao invés, acha-se que
induzidas pelo extraordinário incremento uma excelente formação científica de base
económico a seguir à adesão de Portugal às é condição necessária para uma sólida for-
Comunidades Europeias em 1986. Felizmen- mação profissional. Infelizmente esse consen-
te que o mal-estar por mim denunciado no so curricular ainda não existe nas ciências
III LUSOCOM em 1999 entre as classes da comunicação. E até pelo contrário, por
profissionais ligadas à comunicação, nome- vezes, a dimensão teórico-científica é vista
adamente jornalistas e publicitários, e os como uma esclerose académica, que deveria
cursos superiores de comunicação, se des- ser banida dos currículos.
vaneceu. O papel da comunicação na sociedade
Mas a tensão entre o cariz profis- é crucial e os diferentes poderes, social,
sionalizante que os cursos de comunicação económico e político (executivo, legislativo
têm necessariamente de ter e a natureza e judicial), registam o poder da comuni-
teórico-científica própria dos cursos superi- cação, respeitam-no, temem-no, criticam-
ores, em particular, os universitários, man- no, lutam com ele. Mas não se dá a devida
tém-se. importância à análise, à investigação e à
Tal tensão é, porém, normal e mesmo reflexão que as Ciências da Comunicação
saudável, e não é de natureza diferente da produzem.
de outros cursos superiores profissionalizantes É sabido que o Governo tem dedicado
como as Engenharias, a Medicina e até o especial atenção, e recursos financeiros, às
Direito. Raros serão os alunos desses cursos ciências da saúde, não só aos hospitais e
que não achem demasiada a componente centros de saúde, mas também às respectivas
teórica dos seus cursos, respectivamente as instituições de ensino, criando até para o
disciplinas curriculares de Matemática, Físi- efeito um Grupo de Missão para o Ensino
ca, Bioquímica e Biologia, e Filosofia. No da Medicina em Portugal. Ora este Governo
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 17

dedicou também especial atenção à reorga- membro da SOPCOM. O trabalho realizado


nização da comunicação social estatal, no- foi um trabalho pioneiro que permitirá à
meadamente à RTP e à RDP, procedendo a próxima comissão aferir a evolução do ensino
reformas que há muito se impunham. Seria superior português em Ciências da Comuni-
um erro não flanquear essas reformas com cação.
uma atenção cuidada aos cursos superiores É fundamental que os cursos sejam
em que se formam os profissionais do sector. avaliados, que os respectivos corpos docen-
A segunda razão por que abordo a tensão tes sejam identificados e avaliados pedagó-
entre o lado profissionalizante e o lado teórico gica e cientificamente, que se averigue a
dos cursos é, como disse, de cariz pertinência e coerência dos respectivos cur-
epistemológico. As Ciências da Comunica- rículos e das matérias leccionadas, que se
ção cobrem um vasto espectro de saberes, escrutine as condições de salas, bibliotecas
como é visível pela multiplicidade e diver- e laboratórios, que sejam salientados os
sidade das Mesas Temáticas. Há obviamente pontos fortes e os pontos fracos de cada curso,
pontos afins com outras ciências como a Fi- que as falhas sejam detectadas e apontadas
losofia, a Sociologia, os Estudos Linguísticos e que no fim os relatórios sejam divulgados
e Artísticos, mas é fundamental fixar o núcleo de modo a que a sociedade portuguesa em
duro específico. Pelo menos desde Peirce, geral e os estudantes em particular tenham
Kuhn, Merton, sabemos que as ciências são os dados suficientes para escolherem com
produtos de uma comunidade de investiga- conhecimento de causa um curso de qualida-
dores. de. É preciso que se saiba, publicamente,
Em Portugal, nestes congressos, reúne- como as universidades e os politécnicos,
se a comunidade científica, que no seu labor, públicos e privados, ministram o ensino, e
em colaboração, vai definindo esse núcleo com que qualidade o fazem. Os milhares de
de saber e de investigação. Não é o facto
candidatos aos cursos de comunicação de-
de uma disciplina integrar um currículo de
vem poder escolher o curso que pretendem
licenciatura que a converte numa área espe-
com conhecimento desse relatório de avali-
cífica da ciência que tutela e sistematiza tal
ação.
licenciatura. Faz todo o sentido incluir dis-
Quanto ao financiamento e à avaliação
ciplinas de Ética ou de Direito Comercial num
da investigação, houve passos extremamente
curso de licenciatura em Economia, mas não
significativos nos últimos anos. Só em 2000
faria qualquer sentido considerar Ética ou
os projectos de investigação em Ciências da
Direito como áreas disciplinares da Econo-
Comunicação, apresentados à FCT - Funda-
mia. Por estes congressos passa também a
definição epistemológica das Ciências da ção para a Ciência e Tecnologia, começaram
Comunicação. Não é que seja o povo a fazer a ser financiados numa rubrica específica e
a ciência como faz a língua, mas é a co- avaliados por um comissão própria. Até então
munidade científica que faz a ciência. os projectos eram avaliados ora pela Comis-
são de Filosofia ora de Linguística. E só em
3 - Avaliação do Ensino e da Investigação 2003 se constitui a Comissão das Ciências
da Comunicação para avaliar os centros de
Decorrem no âmbito do CNAVES, Con- investigação. Em 2003 houve 8 centros de
selho Nacional de Avaliação do Ensino investigação na área de ciências da comu-
Superior, as reuniões preparatórias para a nicação avaliados, sendo 5 deles novos, ou
constituição da Comissão de Avaliação seja avaliados pela primeira vez. Este facto
Externa dos Cursos de Ciências da Comu- deve ser encarado como um passo decisivo
nicação, dos cursos universitários públicos e e do maior alcance na afirmação e no de-
dos cursos do ensino privado. Será a segun- senvolvimento das ciências da comunicação
da vez que se procederá a essa avaliação. em Portugal. Desde o ano passado que temos
A primeira ocorreu em 1998/1999, feita por 8 centros a serem financiados pela FCT, a
uma comissão presidida pelo Prof. Manuel saber:
Lopes da Silva, Professor Jubilado da Uni- 1 - CECL - Centro de Estudos de Co-
versidade Nova de Lisboa, ele próprio municação e Linguagens, na UNL (Good);
18 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

2 - UNICA - Unidade de Investigação Se não havia condições para colocar no


em Comunicação e Arte, na Universidade de painel nenhum investigador português, por-
Aveiro (Fair). quê não incluir então investigadores do Brasil
3 - Centro Interdisciplinar de Ciência, ou mesmo de Espanha? Com esta pergunta,
Tecnologia e Sociedade da Universidade de que é tanto retórica quanto crítica, passo ao
Lisboa (Fair); ponto seguinte da minha intervenção de
4 - CETAC.COM - Centro de Estudos abertura neste congresso, e que é sobre a
das Tecnologias, Artes e Ciências da Comu- internacionalização da investigação, sobre as
nicação, na Universidade do Porto (Fair); parcerias de cooperação da comunidade
5 - CIMJ - Centro de Investigação Media científica portuguesa com outras comunida-
e Jornalismo, em Lisboa (Good); des científicas e sobre as estratégias de
6 - LABCOM - Laboratório de Comu- afirmação de um grande espaço ibérico-
nicação Online, na UBI (Good); americano na ciência, nomeadamente na área
7 - CICANT - Centro de Investigação em dos estudos em comunicação.
Comunicação Aplicada, Cultura e Novas Tec-
nologias, na Universidade Lusófona em Lis- 4 - A internacionalização necessária e
boa (Fair); desejável
8 - Núcleo de Estudos de Comunicação
e Sociedade, na Universidade do Minho (Very Por definição a ciência é universal. Não
Good). há uma ciência portuguesa, nem brasileira,
Atendendo à dimensão das Ciências da nem espanhola, nem tão pouco americana ou
Comunicação, ao número de Departamentos inglesa. Há sim comunidades científicas, com
e de cursos, de estudantes e de professores, maior ou menor vitalidade, coesão e
podemos achar que é pouco, que relativa- internacionalização. O facto de a língua
inglesa ser actualmente a língua dominante
mente a outras áreas muito mais pequenas,
na ciência é um facto circunstancial e aces-
como a Filosofia ou a Linguística, por exem-
sório e não um princípio perene e imutável.
plo, que tiveram respectivamente 11 e 9
Noutras épocas, não muito longínquas, as
unidades avaliadas, o quadro não é favorá-
línguas dominantes das ciências foram ou-
vel, sobretudo se atendermos à classificação
tras, bastando lembrar que no Século XVII
obtida.
Descartes, Espinosa, Newton e Leibniz es-
Há que considerar todavia que a avali-
creveram em Latim, de modo a serem lidos
ação das unidades de Comunicação se fez
e entendidos noutros países, que até à II
pela primeira vez, que as equipas de inves-
Guerra Mundial o francês e o alemão foram
tigação só agora começam a constituir-se. O tão ou mais importantes que o inglês como
passo estratégico mais importante era de facto línguas de comunicação na ciência. O pre-
criar a área e isso foi conseguido. domínio indiscutível que hoje o inglês
Devo, no entanto, fazer aqui um reparo mantém nas ciências não é uniforme, mas
à forma como foi constituído o painel de variável de ciência para ciência, e verifica-
avaliação das Ciências da Comunicação. Os se sobretudo nas ciências exactas. Nas ci-
três membros do painel de avaliação, cuja ências sociais, e mais ainda nas humanida-
competência científica não é questionada, des, já é muito discutível esse domínio. Os
eram todos do norte da Europa, nenhum deles contributos originais da Europa Continental
falava ou entendia português, oral ou escrito. são fundamentais para a filosofia, a socio-
Ora se a produção científica em Ciências da logia, a antropologia, a linguística, a
Comunicação em Portugal é feita na quase semiótica, e também para as ciências da
totalidade em português, como pôde haver comunicação. Nomes como Habermas, Karl-
uma avaliação objectiva, profunda, do que Otto Apel, Niklas Luhmann, Foucault,
as unidades fizeram? Sinto-me à vontade para Deleuze, Baudrillard, Barthes, Greimas, entre
fazer aqui em público este reparo, apesar de muitos outros, são cabal exemplo disso.
ser um dos avaliados, porque, antes da saída O conceito físico de massa crítica apli-
dos resultados, o fiz por escrito ao Presiden- cado à dimensão de uma comunidade cien-
te da FCT, Prof. Ramôa Ribeiro. tífica faz sentido se e somente se houver uma
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 19

comunidade crítica. E comunidade científica comunidades científicas lusófona e ibérica.


obriga antes de mais a uma proximidade de É por aí que tem de começar a nossa
investigadores, não física apenas, obviamen- internacionalização, e de começar não ape-
te, mas sobretudo a uma proximidade de nas como ponto de passagem (como se a meta
formação, de interesses, de problemas, de fosse a absorção na comunidade anglo-
debates, dos investigadores envolvidos. saxónica), mas de começar porque prioritária
Ora não há maior proximidade de inves- para já e sempre.
tigação que a da língua em que é feita. A Impossível não é certamente, mas seria
internacionalização da ciência não pode de descabido, e mesmo ridículo, fazer ciência
modo algum significar, como por vezes da comunicação em inglês em países que
parece acontecer em Portugal, um conheci- comunicam em português e espanhol.
mento vasto do que se faz no mundo anglo- A lusofonia compreende hoje mais de
saxónico, num olímpico desconhecimento do 200 milhões de pessoas, nos diferentes
que se faz cá dentro, às vezes numa univer- continentes.
sidade vizinha, ou num departamento mesmo Os falantes de espanhol são cerca de 350
ao lado. A internacionalização individual, de- milhões, o que somados constitui o principal
sintegrada de uma comunidade real de in- grupo linguístico no hemisfério ocidental.
vestigação, conduz apenas a um atomização
de investigadores, e constitui pura e simples- 5 - Passos a dar
mente a negação do conceito e da realidade
de comunidade e de equipa de investigação. O VI LUSOCOM como o número indica
A questão em causa é simples, mas de não é um ponto de partida.
suma importância. Como muitos outros bens, Também o não é o II IBÉRICO, com que
também a ciência e a cultura se produzem, completaremos o III Congresso da SOPCOM.
Tal facto representa já uma ligação existente,
se transaccionam e se consomem. O nosso
a funcionar, entre as comunidades académicas
propósito não pode ser outro que não seja
e científicas de Portugal com os países
o de produzir ciência. E a melhor maneira
lusófonos, em especial o Brasil, e com a
de o fazer aqui, por nós, será fazê-lo em
Espanha. Desta vez coincidimos aqui na UBI,
português.
e os congressos que se seguirão a estes terão
O III Congresso da SOPCOM concreti-
um tempo e espaço diferentes; o VII
za-se em dois congressos internacionais, o
LUSOCOM realizar-se-á num outro país
VI LUSOCOM e o II IBÉRICO. Procurou-
lusófono e o III IBÉRICO terá lugar em
se uma paridade entre investigadores naci-
Espanha. Mas o encontro de investigadores,
onais e estrangeiros, que se expressam na a apresentação do seu trabalho, o debate de
mesma língua ou em línguas próximas (ga- ideias, o lançamento de projectos comuns,
lego e espanhol) em cada uma das mesas. aqui, nesta semana de Abril que antecede o
Não é esta porventura a internacionalização 30º aniversário do 25 de Abril de 1974,
primeira e prioritária que as Ciências da Co- constitui um marco importante da SOPCOM-
municação cumprem nestes dias aqui na UBI da Associação que organiza os congressos e
e que deveria ser um exemplo para as outras das Ciências da Comunicação dos países
comunidades científicas nacionais? lusófonos e ibéricos.
Não considero que seja um serviço à Que estes Congressos ocorram na
ciência a organização de seminários e con- Covilhã, bem no Interior de Portugal, que
gressos científicos em Portugal, com mais de a adesão tenha sido muito superior às me-
90 por cento de participantes portugueses, e lhores expectativas, resultam também dos
em que a única língua admitida é o inglês. novos meios de comunicação. Sem a Internet,
O princípio primeiro da comunicação cien- a web e o correio electrónico, nunca pode-
tífica mantém-se: o mais importante não é ríamos ter organizado estes eventos. O facto
a língua em que se diz, mas o que se diz. de a UBI ser desde o início da SOPCOM
As comunidades que nos estão mais a placa giratória das informações electróni-
próximas, pela língua, pela formação, por cas, de as páginas web dos congressos
problemas comuns e até idênticos, são as anteriores estarem sediadas aqui, e continua-
20 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

rem ainda online, de a Biblioteca Online de da Covilhã, aos Presidentes das Associações
Ciências da Comunicação ser hoje o maior Lusófonas de Ciências da Comunicação, e
repositório de textos científicos da área, de o aos muitos membros da Comissão Organiza-
número dos seus autores e dos seus visitantes dora que verdadeiramente viabilizaram
aumentar de mês para mês, tornou possível que logisticamente os congressos.
investigadores da Catalunha ao Rio Grande do
Sul se juntassem aqui esta semana.
_______________________________
Termino com os agradecimentos ao Sr. 1
A Sessão de Abertura teve lugar em 21 de
Ministro da Presidência, que honrou com a Abril de 2004.
2
sua presença a abertura dos congressos, ao A acta dessa reunião pode ser consultada
Sr. Reitor da UBI, ao Sr Presidente da Câmara online na página web da SOPCOM.
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 21

Discurso do Sr. Ministro da Presidência,


Dr. Nuno Morais Sarmento, na Sessão de Abertura dos Congressos1

Magnífico Reitor da Universidade da Beira interesse de um número cada vez maior de


Interior jovens.
Senhora Governadora Civil de Castelo Branco E este interesse – também aqui consta-
Senhor Presidente da Câmara Municipal da tado pelo grande número de inscrições no
Covilhã Congresso – é precisamente o ponto de
Senhor Presidente da Comissão Executiva do partida para a minha curta intervenção em
Congresso que pretendo apenas partilhar duas ideias.
Senhora Vice-Presidente da FCT
Ilustres conferencistas e participantes Sociedade da comunicação e autodetermi-
Senhores Docentes nação
Estimados Alunos
Minhas Senhoras e meus Senhores Em primeiro lugar, a empatia partilhada
por esta área das Ciências da Comunicação,
Aproveito a circunstância de aqui estar mais do que uma coincidência, é um ver-
para felicitar, em primeiro lugar, a Univer- dadeiro fenómeno social, que caracteriza, na
sidade da Beira Interior e faço-o dirigindo- minha opinião, a sociedade em que vivemos.
me a si, Senhor Reitor. A multiplicação de cursos e licenciaturas
A UBI tem demonstrado um dinamismo de Ciências da Comunicação – já referida
incessante, uma procura de afirmação que pelo Prof. Doutor António Fidalgo – reflecte
vem da percepção do papel e do serviço que o nosso tempo, a que outros já apelidaram,
pode e deve desempenhar na Região em que o tempo da comunicação.
se insere e no País que serve. A Comunicação é mesmo, nos nossos
Todos esperamos que assim continue. dias, com algum excesso, tomada como
Pela nossa parte continuaremos a apostar Verdade, porque tantas vezes se confunde o
no seu crescimento, como disso é prova a que parece, neste caso o que se comunica,
residência universitária, a maior e mais com a realidade.
moderna do País, que daqui a dois dias o Retirados os excessos, Comunicar é de
Senhor Primeiro-Ministro irá inaugurar nesta facto, inquestionavelmente, uma regra, um
cidade. imperativo de qualquer indivíduo, de qual-
Quero, em segundo lugar, cumprimentar quer grupo seja ele político, religioso ou
toda a comissão executiva deste evento e em empresarial.
particular o seu presidente, Prof. António Neste contexto, é bom que um dos
Fidalgo. leitmotiv escolhidos para este Congresso tenha
É através de iniciativas como esta que sido justamente o da comunicação.
a Associação Portuguesa de Ciências da Co- Mas, e esta é a primeira nota que queria
municação continua a dar um relevante trazer, na “era de individualismo”, como
contributo não só para a comunidade cien- chamou Thomas Franck ao nosso tempo, a
tífica do nosso País, como para a comuni- comunicação (e de modo reflexo, a informa-
dade mais vasta da lusofonia e do mundo ção) é um instrumento permanente de reve-
ibérico. lação e protecção de identidades colectivas.
Todos temos a ganhar com isso e, por E em consequência, a comunicação é
isso, esperamos que se sintam sempre en- também um modo de desenvolvimento do
corajados a continuar. direito de autodeterminação de cada um.
As Ciências da Comunicação são hoje, Nessa medida, e inevitavelmente, a in-
de facto, uma área do saber que suscita o formação realiza direitos individuais e colec-
22 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

tivos, respectivamente, na sua singularidade Escravos que nos tornámos, quantas


e na sua diversidade. vezes, do que os outros pensam de nós, tenho
E é por isso que não subscrevo a ideia para mim muito vincada a ideia de que
pessimista de que a generalização da comu- devemos procurar resistir a seguir, de forma
nicação conduziria inevitavelmente à “nor- sistemática, aquilo para que aponta a “mai-
malização” descaracterizada em termos glo- oria” do pensar conjuntural.
bais. Pelo contrário, enquanto espaço de É verdade que a opinião pública, que
realização individual e colectivo que é, alguns entendem até já estar erigida à con-
acredito que a comunicação continuará a ser dição de “sujeito”, determina realmente as
factor de iniciativa e debate, de singularida- comunidades, naquela dimensão “imaginada”
de e diversidade. de que falava Benedict Anderson.
Em particular, neste sentido, comunicar na Mas, numa era de democracia que no-
nossa própria língua, o português, é também vamente se pretende “deliberativa”, a infor-
recusar pré-formatações da realidade. mação e o uso que dela seja feito em termos
É por isso - e a concluir este ponto - comunicacionais e identitários, podem arras-
que considero que a informação e a comu- tar-nos para o que Susan Stokes descreve
como “patologias da deliberação” – como
nicação, são e continuarão a ser no futuro
diria eu, o processo inibidor da decisão.
dimensões fundamentais do político e da
E foi a isso que renunciei no início do
nossa liberdade, independentemente da sua
meu mandato e que, agora dois anos mais
massificação.
tarde, penso ter sido o caminho certo.
Este é naturalmente apenas um ponto de
O diagnóstico do estado disfuncional da
vista que trago aqui e que não tem a pre-
sociedade, reflectida à data em que assumi
tensão de ser fechado. funções, numa comunicação social em crise,
Ao trazê-lo aqui pretendi, apenas, pôr em abundava.
comum uma reflexão que, embora sendo Estudos e declarações reafirmando
pessoal, me ocorreu a propósito da abertura ciclicamente o estado de crise faziam parte
desta Conferência, porque a Universidade é dum conhecimento adquirido e duma reali-
o lugar por excelência da discussão e da dade contra a qual pouco ou nada parecia
realização federal de diferentes pensares e possível fazer-se.
saberes. Na preparação desta Conferência e ao
consultar papéis antigos, encontrei as actas
Comunicação social e democracia de uma outra conferência internacional re-
alizada pela Fundação Friedrich Ebert, em
A segunda ideia que aqui deixo, tem a Maio de 1997.
ver com a Comunicação Social e a Demo- Reli aí as declarações do membro do
cracia. Governo de então, o Dr. Arons de Carvalho
Sendo eu um político com responsabili- que, de resto, por ser também membro da
dades nessa área, permitam-me que destaque Comissão Científica do SOPCOM pode muito
a importância política e sistémica da comu- bem ser chamado à colação.
nicação social, a propósito da celebração dos Dizia ele que em Portugal não existiria
30 anos do 25 de Abril. um consenso político em relação ao serviço
E neste domínio, creio que importaria público de televisão, não só porque a ideia
determo-nos na ligação que frequentemente de serviço público não está arreigada na
se faz entre democracia, “opinião pública” população em geral, mas também porque ao
e “audiências”. nível partidário cada organização tinha idei-
O balanço do nosso projecto político as completamente diferentes sobre esta
colectivo que neste aniversário somos con- matéria.
vidados a fazer, obriga a uma reflexão sobre Ora, a minha constatação é a inversa. É
a nossa identidade, mas também a um a de que a partir de uma política feita de
reequacionar dos limites e subversões a que riscos que assumimos; uma política que não
a Comunicação pode conduzir. ficou presa a constatações e que rompeu com
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 23

o atavismo da indecisão, se conseguiu ca- povo que se vê diante do desafio do aco-


minhar da divergência para um acordo. lhimento.
Ou para utilizar a linguagem hegeliana Como Ministro responsável pela integra-
de uma situação de ruptura se avançou para ção dos imigrantes, tenho-me apercebido
a síntese. como cada vez mais o destino de Portugal
Por isso, é com muita alegria que na é também o de acolher as pessoas que querem
celebração dos 30 anos do 25 de Abril, vir viver entre nós.
acredito que na Comunicação Social o País E esta perspectiva, a de quem parte e de
se conseguirá unir acima de perspectivas quem acolhe, a de quem pertence a uma
partidárias. comunidade que convida a ir além de si
E, por isso, considero que há condições próprio, é sem dúvida a forma que melhor
para, mesmo ao nível de uma revisão cons- demonstra o desafio da Comunicação.
titucional, se evidenciar tal acordo. Porque, seja como processo cognitivo,
Esta é uma conclusão que, creio, pode seja como processo de decisão, ou como
ser retirada da reflexão que façamos sobre processo existencial de uma vida, comunicar
esta temática: a obsessão comunicacional não é sempre partir.
deve impor-se como obstáculo ao caminho, Partir para uma aventura que supõe pelo
ou se quisermos, à decisão. Pelo contrário, menos duas pessoas. Porque ninguém comu-
a capacidade de romper com a comunicação nica sozinho.
e ser capaz de decidir para além dela pode Por isso, o meu desejo neste início destas
ser, no final, um caminho de reencontro e Conferências é que as experiências de inves-
concordância. tigação permitam a cada um partir, deslocar-
se. E chegar a algum lado.
Minhas Senhoras e Meu Senhores, Muitos partiram de longe para estar aqui
hoje. Alguns do Brasil e também de Angola
Não quero terminar sem ter uma palavra e de Moçambique. Outros da vizinha Galiza.
para o âmbito internacional desta Conferên- Que a esta viagem de alguns, todos
cia, ou melhor dito destas Conferências e em permitam associar uma viagem para além de
particular para o LUSOCOM que hoje se cada um, na aprendizagem e no conhecimen-
inicia... to. Porque é assim que formamos comuni-
A cidadania, a lusofonia são, para um dade e porque é assim que somos verdadei-
português, conceitos parentes, se não irmãos. ramente nós.
Na minha acção governativa, tenho vi- E já agora, que estas viagens se multi-
vido esta experiência de modo muito inten- pliquem. No nosso país. No mundo lusófono.
so. No espaço ibérico.
Portugal vive hoje a realidade internaci-
onal da lusofonia dentro das suas fronteiras. Muito obrigado.
País que secularmente se conheceu a
partir, seja nos seus navegadores seja nos seus
emigrantes, desse modo representado no _______________________________
1
imaginário colectivo, é nos nossos dias um Só faz fé o discurso efectivamente proferido.
24 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 25

Discurso proferido pelo Reitor da Universidade da Beira Interior,


Prof. Doutor Manuel José dos Santos Silva,
na Sessão de Abertura dos Congressos

Senhor Ministro da Presidência, Excelência A UBI encontra-se implantada numa


Senhora Governadora Civil de Castelo Branco região em que o sector têxtil possui não só
Senhor Presidente da Câmara Municipal da uma longa tradição, como um peso
Covilhã determinante. Foi, aliás, a necessidade de
Senhores Membros da Comissão de Honra formação de quadros técnicos altamente
Senhores Membros da Comissão Executiva qualificados para a indústria que esteve na
Senhores Membros da Comissão Científica origem da criação das licenciaturas em
Senhores Congressistas Engenharia Têxtil e em Gestão, dois dos
Senhores Membros da Comissão Orga- cursos mais antigos desta Instituição.
nizadora Numa cidade com cerca de 40 mil ha-
Senhores Docentes bitantes e numa região que sofreu a crise da
Estimados Alunos mono-indústria dos lanifícios, a presença e
Minhas Senhoras e Meus Senhores evolução de uma Instituição como a Univer-
sidade da Beira Interior tem um impacto
Gostaria, antes de mais, de cumprimentar muito significativo, não só na actividade
todos os presentes, em especial, Sua Exce- económica, mas também na quantidade e
qualidade dos acontecimentos de cariz cien-
lência o Ministro da Presidência, Dr. Morais
tífico, cultural e social que leva a efeito, e
Sarmento, que pela primeira vez se desloca
ainda na requalificação do património legado
à Universidade da Beira Interior, e dirigir uma
à cidade pela sua indústria, como poderão,
palavra de boas vindas a todos os especi-
certamente, apreciar no decurso deste con-
alistas nacionais e internacionais que parti-
gresso.
cipam neste III Congresso da SOPCOM -
A Universidade assume assim um papel
Associação Portuguesa de Ciências da Co-
central na região, o que pode ser compro-
municação, que engloba o VI Congresso da vado por alguns números que a caracterizam:
LUSOCOM e o II Congresso IBÉRICO. o campus universitário, com uma área de mais
É para mim uma grande honra e uma de 150.000 m2, conta com uma população
enorme satisfação dar início a este aconte- estudantil de cerca de 5500 alunos (dos quais
cimento que reúne mais de 700 congressis- 5017 em licenciatura e 420 em pós-gradu-
tas, oriundos de países como Angola, Brasil, ação), e com um corpo docente composto
Espanha, Guiné, Moçambique e, naturalmen- por mais de 460 elementos, dos quais cerca
te, Portugal. Trata-se de uma iniciativa de 50 % doutorados, apoiado por 408 fun-
ambiciosa, que se assume como ponto de cionários.
convergência entre os diferentes percursos dos Actualmente, a UBI ministra 31 licenci-
referidos congressos, sob a égide dos temas aturas, 28 cursos de mestrado e 25 ramos
Informação e Identidades e Cidadania, e que de doutoramento nas mais diversas áreas do
constitui um momento privilegiado de encon- saber, desde as Engenharias às Artes e Letras,
tro das comunidades académicas lusófonas passando pelas Ciências Sociais e Humanas,
e ibéricas, fazendo público o estado da pelas Ciências Exactas e pelas Ciências da
pesquisa científica nos diferentes países e Saúde. A sua filosofia de ensino assenta na
lançando pontes para a internacionalização estreita aliança entre a formação integral do
da respectiva investigação. indivíduo e a componente de preparação
Permitam-me, então, que lhes apresente, prática e de investigação, recorrendo às mais
de forma resumida, a Universidade que os modernas metodologias de ensino e apren-
irá acolher durante os próximos dias. dizagem e à actualização permanente dos
26 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

programas de estudo, adaptando-os às saídas volvimento da sociedade e melhoria das con-


profissionais dos futuros licenciados. dições de vida da humanidade.
Além de um ensino teórico de qualidade, A longa experiência e conhecimento
solidamente assente na formação e qualifi- adquiridos, ao longo do tempo, pelo Depar-
cação do corpo docente, a UBI é caracte- tamento de Comunicação e Artes da Univer-
rizada pela qualidade dos seus edifícios e sidade da Beira Interior permitem-lhe, actu-
equipamentos e dispõe, actualmente, de um almente, assumir um papel extremamente
conjunto de laboratórios e oficinas conside- activo no desenvolvimento da investigação
rado, por muitos, exemplar, no seio dos quais científica a nível nacional. Chegou o momen-
são levados a efeito trabalhos de investiga- to de apostar na promoção do relacionamen-
ção, muitos dos quais realizados no domínio to internacional e na cooperação estratégica
da prestação de serviços à comunidade. com instituições estrangeiras, estabelecendo
Desta forma, embora face às suas um diálogo de interacção que possibilite o
congéneres nacionais apresente uma dimen- debate de ideias e a apresentação de resul-
são relativamente pequena, a Universidade tados de estudos científicos, permitindo que
da Beira Interior tornou-se um dos motores a investigação reverta para a sociedade de
de desenvolvimento da região, tendo por base uma forma mais rápida e mais directa, numa
os seus meios humanos qualificados e a lógica de intercâmbio que beneficiará não só
qualidade das suas modernas infra-estruturas a investigação, mas também o próprio en-
de ensino e investigação. sino.
Com efeito, à medida que aumenta a A avaliar pelo número de interessados em
importância e significado da investigação no participar neste Congresso e pela enverga-
desenvolvimento das sociedades, mais se dura que assumiu esta iniciativa, não só se
estreita a relação entre universidade e comu- atingiram os objectivos, como se ultrapas-
nidade. Assim, por parte das instituições de saram as expectativas. A Comissão
ensino superior torna-se cada vez mais pre- Organizadora e o Departamento de Comu-
mente a necessidade de um desenvolvimento nicação e Artes estão, por isso, de parabéns
estratégico da investigação científica funda- pelo empenho, entusiasmo e dinamismo com
mental como forma e instrumento de criação que, desde a primeira hora, assumiram a
cultural por excelência. responsabilidade de levar em frente esta
Por outro lado – e eis-nos chegados ao iniciativa. Dirijo aqui uma palavra do maior
motivo pelo qual hoje estamos aqui reunidos apreço ao Senhor Prof. António Fidalgo pela
- há que saber articular a actividade cien- excelente organização deste Congresso, para
tífica produzida pelas diversas instituições, o qual formulo votos dos maiores êxitos.
promovendo a cooperação nacional e inter- Termino, agradecendo a participação de
nacional através do trabalho de equipa, da todos os congressistas e desejando a todos
circulação dos investigadores e dos resulta- uma frutuosa e agradável estadia na Covilhã.
dos da investigação que deverão ser
disponibilizados e contribuir para o desen- Muito obrigado.
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 27

A construção da identidade nacional e as identidades


regionais no rádio brasileiro (o caso gaúcho)1
Doris Fagundes Haussen2

O processo de construção da identidade a entrelaçar os interesses diversos da nação...”


nacional brasileira teve no rádio um forte (Getúlio Vargas. Mensagem ao Congresso
aliado, a partir da sua instalação no país, na Nacional, 1º/5/1937, in Cabral, 1975).
década de 20 do século passado. Desde o O papel do rádio, portanto, precisa ser
seu início, o veículo serviu de expressão às analisado sob o ponto de vista do contexto
diferentes manifestações culturais, principal- da época em que está inserido. Os anos 30
mente através da música, do esporte e da in- e 40, por exemplo, foram de grandes trans-
formação. Mas, possibilitou, também, outros formações em toda a sociedade brasileira,
usos, como o político e, também mais re- com o aumento da população, o crescimento
centemente, o religioso. dos centros urbanos e o desenvolvimento da
O Brasil, assim como vários países la- indústria e dos serviços. No início, a coor-
tino-americanos, viveu forte movimento na- denação do setor de divulgação e propagan-
cionalista na primeira metade do século XX. da do governo esteve sob a responsabilidade
O crescimento da população urbana prestou- do Ministério da Educação. O projeto cul-
se a projetos políticos populistas e naciona- tural e educativo, de uma maneira ampla,
listas resultando na organização do poder que tinha uma visão nacionalista e buscava a
deu forma ao compromisso entre essas massas mobilização e a participação cívicas, assim
e o Estado. Por seu turno, o rádio e o cinema, como as reformas educacionais.
que iniciavam a sua trajetória, introduziram Mas, já em 1934, Getúlio Vargas criaria
uma nova linguagem e um novo discurso o Departamento de Propaganda e Difusão
social: o popular massivo. Estas tecnologias Cultural ligado ao Ministério da Justiça,
de comunicação tiveram, assim, a sua re- esvaziando o Ministério da Educação não só
lação com a cultura mediada por um projeto da propaganda como também do rádio e do
estatal de modernização político mas, tam- cinema. A meta era estudar a utilização do
bém, cultural. À época, “não era possível cinema, da radiotelegrafia e de outros pro-
transformar esses países em nações sem criar cessos técnicos, no sentido de usá-los como
neles uma cultura nacional” (Martín-Barbero, instrumentos de difusão, sob a influência do
1987). recém criado Ministério da Propaganda ale-
Neste sentido, Getúlio Vargas no seu mão (Schwartzman, 1984). No entanto,
primeiro período como presidente do Brasil embora nesses primeiros anos o governo
- 1930/1945 - governou sob forte cunho Vargas tenha criado uma série de leis e
nacionalista, influindo sobre os meios de dispositivos para controlar a radiodifusão, na
comunicação ao buscar impor o seu projeto prática o veículo teve, também, uma vida
político que incluía a unificação nacional. Em própria, construída por diversos atores, entre
1º de maio de 1937 já destacava o valor que eles os radialistas, artistas, técnicos, empre-
daria ao rádio, na mensagem enviada ao sários e políticos. A colaboração de intelec-
Congresso Nacional anunciando o aumento tuais engajados ao movimento nacionalista
do número de emissoras no país. Nela, também foi de grande importância para o
aconselhava os estados e municípios a ins- projeto político de Vargas3.
talarem “aparelhos rádio-receptores, providos Sobre o assunto, Oliven (1983:81) con-
de alto-falantes, em condições de facilitar a sidera que, no Brasil, “o papel do Estado em
todos os brasileiros, sem distinção de sexo relação à cultura é complexo: ele não é apenas
nem de idade, momentos de educação po- o agente de repressão e de censura mas,
lítica e social, informes úteis aos seus ne- também, o incentivador da produção cultu-
gócios e toda a sorte de notícias tendentes ral”. Para o autor, o Estado, acima de tudo,
28 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

“é o criador de uma imagem que tenta se centro integrador da diversidade nacional”.


apropriar do monopólio da memória nacio- Para o autor, “a exploração comercial dos
nal”. No mesmo sentido, Miceli (1972:218) mercados se fazia, portanto, regionalmente,
lembra que os meios de comunicação, nesta faltando ao rádio brasileiro da época esta
fase, “constituem os veículos de uma ação dimensão integradora característica das in-
pedagógica a serviço do processo de unifi- dústrias da cultura”.
cação do mercado material e simbólico, que A não-formatação inicial do sistema
se traduz pela imposição diferencial da cultura radiofônico em redes possibilitou, assim, a
dominante”. emergência de inúmeras emissoras pelo Brasil
Pode-se dizer, assim, que a trajetória do afora, cada uma preenchendo a sua progra-
rádio acompanha a do país em, praticamen- mação com as características locais. As di-
te, todo o século XX. Da mesma forma que ferenciadas manifestações culturais do país
o Brasil começava a se estruturar o rádio tiveram, deste modo, possibilidade de se
também dava os seus primeiros passos. mostrar. A Rádio Nacional do Rio de Janei-
Quando Getúlio Vargas assumiu a presidên- ro, que teve um forte papel integrador a partir
cia em 1930, o veículo sofreu o seu impacto dos anos 40, após ser encampada pelo
inicial ao surgir o primeiro documento sobre governo federal, não deixou de aproveitar esta
a radiodifusão que, até então, era regida pelas riqueza, principalmente da música, do humor
leis da radiotelegrafia. A partir de 1932 a e de artistas de todo o Brasil.
publicidade foi legalmente permitida, o que A partir da década de 40 o veículo tomou
viria a traçar os rumos da trajetória da o seu grande impulso e a “fase de ouro” do
radiodifusão brasileira. rádio (anos 40-50) pôde existir, segundo Ortiz
As modificações na legislação influíram (1988:134), porque o mesmo concentrava a
no rádio dos anos 30 que se caracterizava massa de investimento publicitário disponí-
por programações eruditas e musicais. A vel na época. “Com o deslocamento da verba
chegada das agências de publicidade altera- publicitária para a televisão, sua exploração
ria a feição do veículo que se tornaria, a partir comercial teve que levar em conta novos
de então, comercial. Com o aporte da pu- fatores de mercado, caminhando para a es-
blicidade, o rádio incrementou a sua progra- pecialização das emissoras e a formação de
mação, tanto de entretenimento como de redes”.
jornalismo, pois as agências internacionais de De lá para cá, o Brasil viveu diversos
notícias que chegavam ao Brasil iriam au- processos políticos e culturais. Mas, pode-
xiliar neste sentido. A ocorrência da Segunda se dizer que, na sua trajetória, o veículo esteve
Guerra Mundial (1939-1945) também impul- presente em todas as manifestações mais
sionou o jornalismo uma vez que a popu- importantes da vida do país. A relação rádio
lação queria se informar sobre o conflito e, e cultura, assim, tem sido visceral, desde a
neste sentido, a vinda do noticioso Repórter divulgação das primeiras músicas gravadas,
Esso responderia a este anseio (e, também, no início da década de 20, passando pelos
a sua finalidade principal que era a de programas de auditório, de humor, radiono-
divulgar as notícias sob o ponto de vista dos velas, jornalismo, pelas jornadas esportivas
Aliados). e reportagens. O rádio divulgou eventos e
Neste período, segundo Ortiz (1988:54), promoveu nomes de jornalistas, radialistas,
“o sonho do Estado totalitário de construir artistas, músicos, políticos, esportistas. Fez
um sistema radiofônico em nível nacional se grandes coberturas de momentos felizes e de
desfaz diante da impossibilidade material de grandes tragédias brasileiras. O veículo foi
realizá-lo”. Isto porque a radiodifusão bra- responsável, também, por impulsionar a
sileira não adquiriu a forma de rede, o que indústria cultural no país através de vários
favoreceu o desenvolvimento da radiofonia elos desta corrente: a indústria fonográfica,
local. “O que acontecia era que algumas as revistas especializadas, os jornais, o ci-
emissoras mais potentes limitavam-se a nema, os artistas, o esporte e a publicidade.
irradiar a sua programação a partir de sua Na atualidade, a característica principal
base geográfica, mas elas não constituíam um do veículo continua sendo a da proximidade
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 29

com a comunidade local. Se a televisão aberta a partir daquela data, a prioridade estava nas
tomou para si o papel que a Rádio Nacional questões nacionais em detrimento das regi-
desempenhava, se a globalização e a onais. E, no caso da proibição do idioma
tecnologia trazem cada vez mais as informa- alemão, além do motivo político, a partir da
ções mundiais, coube justamente ao rádio, definição do Brasil de apoiar os aliados,
devido às suas características inerentes, estava a questão da unificação da língua
promover as informações locais. Isto sem portuguesa.
falar nas rádios comunitárias que se proli- Em relação à cultura nacional, Hall
feram em grande número pelo país (estima- (1999:59) lembra que a mesma nunca foi um
tivas extra-oficiais constatam existir, na simples ponto de lealdade, união e identi-
atualidade, mais de dez mil emissoras deste ficação simbólica. “Ela é também uma es-
tipo no Brasil). trutura de poder cultural”. Para o autor, é
Por sua vez, o novo panorama desenhado preciso levar-se em consideração que a
pelas possibilidades tecnológicas, como a maioria das nações consiste de culturas
internet, começa a alterar a ecologia dos separadas que só foram unificadas por um
meios de comunicação, não significando, até longo processo de conquista violenta. Tam-
o momento, o fim do rádio atual. O que está bém salienta que as nações são sempre
mudando, principalmente, é a convivência compostas de diferentes classes sociais e
entre os antigos e os novos meios. Neste diferentes grupos étnicos e de gênero. E,
sentido, Castells (2001:224) considera que o lembra ainda, que as nações ocidentais
rádio está vivendo um renascimento e ex- modernas foram também os centros de
perimentando um grande auge, tanto as impérios ou de esferas neoimperiais de in-
emissoras que emitem através das ondas fluência, exercendo uma hegemonia cultural
quanto as que o fazem apenas pela rede. Para sobre a cultura dos colonizados. Desta for-
o autor, um dos fatores determinantes desta ma, diz o autor, “em vez de pensar as culturas
transformação está na dificuldade de satis- nacionais como unificadas, deveríamos pensá-
fazer o interesse por assuntos locais a uma las como constituindo um dispositivo
escala global, fora do alcance das redes locais discursivo que representa a diferença como
de informação. unidade ou identidade (...) as nações moder-
nas são todas híbridos culturais” (idem:60).
A identidade brasileira A questão da mídia brasileira, neste
sentido, tem que ser recolocada. Na
O rádio, em relação à construção da atualidade, com 3668 emissoras de rádio, 416
identidade nacional brasileira teve, assim, um canais de televisão e 9543 retransmissoras,
importante papel. Esta construção, por sua acesso a inúmeros canais de TV a cabo e
vez, não só no Brasil mas na maioria dos satélite, com mais de 10% da população
países do mundo, mostrou a sua face dura. conectada à internet4, além de grande núme-
Para atingir seus objetivos, precisou negar ro de jornais e revistas disponíveis no Brasil,
e impedir a manifestação de outros tipos de o panorama é outro. Se na primeira metade
identidade: étnicas, regionais, etc. Durante o do século XX o rádio pôde cumprir, num
Estado Novo (1937-1945), por exemplo, certo sentido, um papel unificador (seguido
foram famosos os casos da “queima das pela TV na outra metade), com a fragmen-
bandeiras” e da proibição da utilização do tação da oferta de comunicação e da infor-
idioma alemão pelos imigrantes durante a mação e a inserção do país num mundo
Segunda Guerra Mundial, além da extinção globalizado isto não é mais possível.
dos partidos políticos e do banimento dos Sobre a questão, Ortiz (2000:87) salienta
hinos, escudos, e outros símbolos regionais. que a globalização não deve ser entendida
A “queima das bandeiras” foi um gesto como um processo exterior, alheio à vida
simbólico promovido pelo presidente Getú- nacional, pois “as contradições inauguradas
lio Vargas, em que as bandeiras de cada estado pela sociedade industrial e que atravessam
brasileiro foram incineradas, na então capital os espaços nacionais ganham agora uma nova
do país, Rio de Janeiro, para demonstrar que, dimensão”. Para o autor, “elas extravasam
30 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

para o plano mundial. Neste contexto, a o Rio Grande, têm sua identidade forjada
identidade nacional perde a sua posição pelas questões políticas. “Os gaúchos foram
privilegiada de fonte produtora de sentido republicanos antes do restante do país. E isto
pois emergem outros referentes, questionan- quer dizer igualdade perante a lei, ter uma
do a sua legitimidade”. constituição que vale para todos”, entre outras
No entanto, Ortiz considera que não é questões. Para o antropólogo, “estes elemen-
possível falar-se em “cultura global” pois tos acabam determinando uma imagem de
seria “insensato” buscar-se uma identidade uma pessoa que luta pelos seus direitos, é
global. Para ele, o processo de mundialização assertiva”8.
da cultura 5 engendra novos referentes Outro autor que se dedica a estudar o
identitários havendo, na atualidade, à dispo- assunto, Oliven (1992:128) considera que
sição das coletividades um conjunto variado para os gaúchos, “só se chega ao nacional
de referentes. Alguns são antigos, como a através do regional, ou seja, para eles só é
etnicidade, o local e o regional, por exemplo, possível ser brasileiro sendo gaúcho antes”.
e outros mais recentes, resultantes da Segundo o pesquisador, quando se pretende
mundialização da cultura (a juventude, o comparar o Rio Grande do Sul ao resto do
consumo, etc.). Desta forma, cada grupo país, apontando diferenças e construindo uma
social, na elaboração da sua identidade identidade social, “é quase inegável que este
coletiva, deles se apropriarão de maneira di- processo lance mão do passado rural e da
ferenciada. Mas, para o autor, as identidades figura do gaúcho, por serem estes os elemen-
são diferentes e desiguais porque as instân- tos emblemáticos que permitem ser utiliza-
cias que as constróem desfrutam distintas dos como sinais distintivos”. Mas, conforme
posições de poder e de legitimidade. “Con- Jacks (1999:86), “difícil é definir em que
cretamente, elas se exprimem num campo de medida, com que relações se constitui esta
lutas e de conflitos, nele prevalecendo as identidade, especialmente porque estão em
linhas de força desenhadas pela lógica da jogo diversos agentes desta construção, como
máquina da sociedade”(idem:93). o Estado, os meios de comunicação, a es-
Neste sentido, Hall (1999:65) salienta que, cola, os Centros de Tradição Gaúcha9, e as
quando se discute se as identidades nacio- práticas culturais como um todo”.
nais estão sendo deslocadas, deve-se ter em Na atualidade, o tema é retomado, ana-
mente “a forma pela qual as culturas naci- lisando-se o alargamento das fronteiras. Com
onais contribuem para ´costurar` as diferen- as questões da globalização da economia e
ças numa única identidade”. Um caso inte- a mundialização da cultura, o gaúcho, no-
ressante para exemplificar a questão é o da vamente, é chamado a explicar a sua iden-
identidade gaúcha. tidade. E, de novo, busca as suas raízes (reais
ou imaginadas) para sobreviver no mundo
A identidade gaúcha mais amplo. Dependendo do desafio, o nativo
do Rio Grande do Sul vai apresentar-se/sentir-
O tema da identidade gaúcha tem servido se como “gaúcho” ou como “brasileiro” (ou,
de base a muitas discussões, teses, reporta- quem sabe, cidadão do Mercosul, se este vier
gens na imprensa, não só no Rio Grande do a vingar...) e também, como “latino-ameri-
Sul mas em outros estados brasileiros. O tema cano”, revelando as suas múltiplas identida-
é recorrente e tem intrigado pela força desta des. O que há de novo, portanto, é a per-
identidade que se apóia na figura de um cepção mais expandida da própria identidade
gaúcho mítico, oriundo do pampa, região e, também, das diferenças. O que, em termos
fronteiriça entre Brasil, Argentina e o Uru- gerais, não necessariamente tem significado
guai6. Uma figura masculina e rural e que maior compreensão com as demais identida-
representa apenas parcialmente os componen- des (em alguns casos tem ocorrido justamen-
tes da sociedade riograndense. De onde, te o contrário, com casos de xenofobia).
então, vem esta força? Sobre o recrudescimento das identidades
Para DaMatta (2003:9)7, a figura mascu- locais perante a globalização, DaMatta lem-
lina é preponderante nos locais que, como bra que um dos fatores a considerar é o de
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 31

que uma identidade forte não é liquidada Como registra DaMatta, se há a disposição
facilmente em pouco tempo. “No fundo, as de se morrer por uma bandeira, o outro lado
identidades estão ligadas a experiências da moeda significa que, também, se está
elementares, e não apenas a experiências in- disposto a matar. E aí reside o risco da
telectuais. A identidade gaúcha, por exem- intransigência.
plo, tem uma base muito sólida nos costu- Neste sentido, Bauman (2003:21) vai dizer
mes, na realidade, no cheiro, na comida, até que “uma vida dedicada à procura da iden-
no ar que se respira no Sul”. O antropólogo tidade é cheia de som e de fúria. Identidade
conclui: “Por que os países vão à guerra? significa aparecer; ser diferente e, por essa
Por que se morre, se mata por uma bandeira? diferença, singular - e assim a procura da
Por uma língua, por um estilo de vida? Porque identidade não pode deixar de dividir e de
as pessoas defendem a sua identidade. Se separar”. Para ele, desta forma, não é de
fosse tão fácil mudar a imagem de um povo surpreender que num mundo globalizado as
de uma hora para outra, o mundo seria muito fronteiras não desapareçam e que, pelo con-
mais manipulável”. trário, se fortaleçam. Num certo sentido, o
Mas, mesmo em situações de identidade grande desafio, conforme Wolton (2003:24),
local forte, é conveniente lembrar, conforme é o da “coabitação cultural”, Para o autor, se
García-Canclíni (2002:91), que hoje, no a revolução da tecnologia permitiu a liberação
mundo todo, muitos setores populares mi- das distâncias físicas foi para provar, em
gram, comunicam-se na diáspora, subsistem seguida, a dificuldade das distâncias culturais.
graças a remessas de dinheiro, informação Ou seja, “a obrigação da coabitação cultural
e recursos materiais procedentes de diversas facilita uma espécie de retorno da experiên-
regiões. Assim, o local-popular10 se produz cia, do tempo, das raízes, da tradição e da
e reproduz em vizinhanças virtuais já pouco geografia como condição de encontro. Como
ligadas a um determinado território e outras se a obrigação da coabitação cultural fosse
características definidoras do político. Segun- revalorizar o que as performances da moder-
do o autor, “vive-se o popular-local confor- nidade consideraram como ultrapassado”.
me se padece a globalização ou se participa
nela”. E, mais, “em um mundo midiático, ser Considerações finais
um sujeito popular incluído requer controlar,
em certa medida, o habitat físico imediato Retomando-se a questão do papel do rádio
e, também, tornar-se capaz de disputar os e da identidade brasileira, ao acompanhar-
circuitos translocais dos quais depende a sua mos a trajetória do veículo ao longo de 80
auto-reprodução”. Neste sentido, muitos anos do século XX e início do século XXI,
autores preferem falar mais em identificação percebemos que, se por um lado auxiliou na
do que em identidade, aludindo a um sentido construção de uma identidade nacional, por
contextual e flutuante. outro também contribuiu para o fortalecimen-
Na época atual, de interações to de identidades regionais, devido as suas
transnacionais, de comunicação agilizada, características intrínsecas de proximidade
uma mesma pessoa pode identificar-se com com o local. Na atualidade, com as possi-
várias línguas e estilos de vida. O que não bilidades tecnológicas, o que está se confi-
necessariamente significa o abandono da gurando é o que Castells considera a liber-
identidade nacional mas o acréscimo, ou a dade de buscar uma identidade local própria
aceitação (e também o rechaço), de outras via “uma rede global de comunicação local”
identidades. Num certo sentido, tomando-se (entre as demais identidades). Evidentemen-
o exemplo da identidade gaúcha, regional/ te, uma liberdade que vai depender da
local, brasileira e latinoamericana, esta pas- condição econômica dos países de dotarem
sa, também a perceber-se de uma maneira as comunidades da infra-estrutura necessá-
mais ampla, como parte de um mundo maior. ria, além das disponibilidades individuais. E
Se por um lado há o receio de perder a sua aí já é outra história. A possibilidade
força, por outro pode ganhar ao tornar-se tecnológica é real, existe. Mas, a sua con-
menos rígida e acessível aos novos desafios. secução, até o momento, não tem sido para
32 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

todos. É a face excludente da questão, que Outro dado interessante refere-se aos sites
já vem sendo estudada, em profundidade, por de centros de tradição gaúchas existentes na
diversos autores. internet12 através dos quais, gaúchos e sim-
No caso específico do rádio e da iden- patizantes desta cultura, em todo o mundo,
tidade gaúcha, pode-se dizer que o veículo, têm se encontrado13. Neste sentido, García-
mesmo com grande número de emissoras Canclíni (1997:80) considera que repensar a
operando em rede11, tem auxiliado na ma- identidade em tempos de globalização é
nutenção da identidade cultural. Atualmente, repensá-la como uma “identidade
cerca de 96% das residências gaúchas pos- multicultural” que se nutre de vários “reper-
suem aparelhos de rádio (no Brasil o índice tórios”. Para o autor, esta identidade pode
é de 90%), havendo 366 emissoras de rádio ser multilíngue, nômade, pode transitar,
no Rio Grande do Sul. Destas, 180 são em deslocar-se, reproduzir-se como identidade em
Ondas Médias, 176 em Frequência Modu- lugares distantes do território onde nasceu.
lada e 10 em Ondas Curtas e grande parte O fenômeno demonstra que a tecnologia -
da programação dedica-se a assuntos de para quem dela dispõe - tem auxiliado no
interesse local. Várias emissoras também já encontro e na manutenção de comunidades
disponibilizam a sua programação na internet. à distância, reforçando, também, a tese da
Lembrando Moreira (2002:218), “mesmo com possibilidade de múltiplas identidades. A
as facilidades de informação disponíveis em discussão, portanto, está longe de se esgotar
sistemas de comunicação globalizados como e os caminhos estão abertos. O caso da
a internet ou nas transmissões de rádio digital, identidade cultural gaúcha é apenas um dentre
o perfil dos ouvintes tende a continuar local, tantos que ocorrem no mundo neste momen-
ainda que com uma inserção global”. to.
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 33

Bibliografia Rio de Janeiro. Mil Palavras.


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Revista. Ano 6, nº 52, Porto Alegre, Plural
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1
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comunicación: entre lo global y lo local. La inaugural do VI Lusocom, em 21 de Abril de 2004,
Plata, EPC/Universidad Nacional de La Plata. subordinada ao tema “Comunicação e Identida-
——————(2002). Latinoamericanos des”.
2
buscando lugar en este siglo. Buenos Aires, Pontifícia Universidade Católica do Rio
Paidós. Grande do Sul.
3
Ver Doris Fagundes Haussen, Rádio e
Hall, S. (1999, 3ªed.). A identidade cul-
Política. Tempos de Vargas e Perón. Porto Ale-
tural na pós-modernidade. Rio de Janeiro,
gre, Edipucrs, 2001, 2ªed.
DP&A editora. 4
Dados da Fundação Getúlio Vargas sobre
Haussen, D.F. (2001,2ªed.). Rádio e Po- o Mapa da Exclusão Digital, citados no Portal
lítica. Tempos de Vargas e Perón. Porto da Revista Exame, em abril de 2003
Alegre, Edipucrs. (www.portalexame.abril.com.br).
Haussen D. F. e Duval, A. Redes 5
Quanto aos conceitos de globalização e
radiofônicas e produção local: um estudo de mundialização Ortiz diz: “prefiro utilizar o termo
caso. In Moreira, S.V. e Del Bianco, N. globalização quando falo de economia e de
(orgs.2001). Desafios do rádio no século XXI. tecnologia; são dimensões que nos reenviam a uma
Rio de Janeiro, UERJ/Intercom. certa unicidade da vida social. Reservo, assim,
Jacks, N. (1999). Querência. Cultura re- o termo mundialização ao domínio específico da
gional como mediação simbólica Um estudo cultura” (2000:24).
6
de recepção. Porto Alegre, Edufrgs. Sobre a contribuição dos açorianos à for-
—————— (1998). Mídia nativa. mação do gaúcho, Assis Brasil (1994:137) diz que
“os açorianos, habituados às pequenas proprieda-
Indústria cultural e regional. Porto Alegre,
des das ilhas, aqui chegaram e receberam enor-
Edufrgs.
mes extensões de terras, muitas delas maiores do
Martín-Barbero, J. (1987). Procesos de que as próprias ilhas de onde vieram. Adaptaram-
comunicación y matrices de cultura. Itine- se logo às circunstâncias de clima e topografia,
rário para salir de la razón dualista. Mé- e já na primeira geração eram estancieiros ple-
xico, Gustavo Gilli. namente estabelecidos. Não tiveram problema em
Miceli, S. (1972). A noite da madrinha. mesclar-se com os castelhanos andarilhos, gente
São Paulo, Perspectiva. que vagava pelo campo sem ocupção definida,
Moreira, S.V. (2002). Rádio em Tran- mas que, se sabiam algo, sabiam tropear, cuidar
sição. Tecnologias e Leis nos Estados Uni- do gado, pelear... Formou-se, assim, um
dos e no Brasil. caldeamento de raças que resultou num tipo
34 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

humano ímpar, o gaúcho da campanha, cujas específica dinâmica cultural de suas transforma-
noções de insolência e possíveis problemas com ções e, ao mesmo tempo, buscamos entendê-las
a lei foram amortecidos com o tempo”. correlacionadas com a lógica econômica seletiva
7
A entrevista de Roberto DaMatta foi con- e com as novas disputas políticas” (2002:90).
11
cedida a Daniel Feix e Fernanda Albuquerque e Sobre redes ver Doris F. Haussen e Adriana
publicada em Aplauso. Cultura em Revista, ano R. Duval Redes radiofônicas e produção local:
6, nº 52, Porto Alegre, Plural Comunicação, 2003, um estudo de caso. In Sonia V. Moreira e Nélia
p.7-9. Del Bianco, N. Desafios do Rádio no século XXI.
8
O autor aprofunda este tema em Roberto Rio de Janeiro, UERJ/Intercom, 2001, p.193-207.
12
DaMatta Nação e Região: em torno do signifi- Os principais endereços de busca são
cado cultural de uma permanente dualidade www.mtg.org.br ; www.paginadogaucho.com.br e
brasileira In Fernando Luís Schuler e Maria da www.galpaovirtual.com.br Este último, o site
Glória Bordini (orgs.) Cultura e Identidade Galpão Virtual divulga arte e tradição gaúchas
Regional, Coleção Memória das Letras, Porto e é do provedor Internet Via RS, petencente à
Alegre, Edipucrs, 2004, p.19-30. Companhia de Processamento de Dados do Rio
9
Os Centros de Tradição Gaúcha (CTG) têm Grande do Sul. Na seção do site denominada Tchê-
como ideário, segundo um de seus fundadores, mail a comunidade de internautas virtual deixa
zelar pelas tradições do Rio Grande do Sul as suas impressões sobre o mesmo e assuntos
(história, lendas, canções, costumes, etc.); lutar correlatos.
13
por uma sempre e maior elevação cultural e moral Em seu estudo sobre a cultura regional
do Estado e fomentar a criação de núcleos gaúcha, Jacks (1999:257) já observava que a
regionalistas dando-lhes todo o apoio possível presença de Centros de Tradição Gaúcha (reais
(Lessa, 1985, in Jacks, 1998:38). e, não, virtuais) em vários estados brasileiros e
10
García-Canclíni diz “Ao resistirmos a li- no exterior significava uma reterritorialização,
mitar o popular ao local-tradicional, podemos uma vez que “o CTG, no imaginário tradiciona-
começar a compreender sua persistência nas etapas lista é a recriação do pago ( lugar onde se nasceu,
mais recentes do capitalismo. Reconhecemos a o lar) em um ambiente distante dele”.
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 35

Tecnologia e Sonho de Humanidade1


Moisés de Lemos Martins2

1. A tecnologia no castelo da cultura porta aberta sobre “O grande tédio” (título


do primeiro capítulo); sobre “Uma tempo-
Ao intervir nesta sessão plenária sobre rada no Inferno” (título do segundo capítu-
o tema “Comunicação e Identidades”, gos- lo), sobre a “Pós-cultura” (título do terceiro
taria de convocar, de entrada, Dominique capítulo”).
Wolton. Na sua obra A outra globalização, Mas estas “notas para uma redefinição
refere Wolton (2004: 43) que a comunicação da cultura”, qual última porta aberta para a
e a identidade constituem, com a cultura, “o noite do seu castelo, não significam qualquer
triângulo explosivo do século XXI”. E a meu conformismo ou submissão à noite por onde
ver, o que torna explosivo este triângulo são entra. Referindo-se ao “Amanhã”, título do
as novas tecnologias, sejam as biotecnologias, quarto e último capítulo do seu ensaio, George
sejam as tecnologias da informação. Steiner tem esta palavra de lucidez, ao mesmo
Na minha intervenção, vou, todavia, tempo trágica e heróica: “Não podemos optar
ocupar-me exclusivamente das novas tecno- pelos sonhos da ignorância. Abriremos, penso
logias da informação. E muito particularmen- eu, a última porta do castelo embora ela possa
te, vou debater as figurações do humano por levar, ou talvez porque ela pode levar, a
elas projectadas, quero dizer, os sonhos de realidades que estão para além da capacida-
humanidade que as animam. Para o fazer, de do entendimento e controlo humanos. Fá-
coloco-me sob a inspiração de George Steiner. lo-emos com a lucidez desolada, que a música
Para caracterizar a cultura contemporâ- de Bartok prodigiosamente nos comunica,
nea, Steiner escreveu em 1971 um ensaio, porque abrir portas é o trágico preço da nossa
que intitulou No Castelo do Barba Azul. Este identidade” (Steiner, 1992: 141).
título tem tanto de sugestivo como de inqui- Seguindo a sugestão de Steiner, de abrir
etante. Todos nos lembramos do conto tra- portas no castelo da cultura, entendo que a
dicional em que um tenebroso senhor, de porta do castelo que hoje há que abrir é a
barba azul, guardava um terrível segredo bem porta da tecnologia. E a minha proposta é
aferroado no quarto do seu castelo. Era nesse exactamente essa: debater a técnica e o papel
verdadeiro quarto dos horrores que escondia que as novas tecnologias, que incluem os
os cadáveres esquartejados das sucessivas media, têm na redefinição da cultura, ou seja,
mulheres com quem se casara, mas que na delimitação do humano. Trata-se de uma
invariavelmente assassinara. porta que não podemos deixar de abrir, uma
O compositor húngaro Bella Bartok fez vez que ela constitui hoje “o trágico preço
deste conto tradicional o libreto de uma das da nossa identidade”, como podemos dizer,
suas óperas. E George Steiner, logo na retomando uma fórmula de Steiner.
abertura do seu ensaio sobre a cultura con- Penso, de facto, que o novum da expe-
temporânea, convoca uma personagem de riência contemporânea é precisamente este,
Bartok, querendo com ela precisar todo o o de a technê se fundir com a bios. Num
sentido da viagem que quer empreender momento em que, com as biotecnologias, se
connosco. Escreve então: “Dir-se-ia que fala da clonagem, de replicantes e de cyborgs,
estamos, no que se refere a uma teoria da de hibridez, de pós-orgânico e de trans-
cultura, no mesmo ponto em que a Judite humano, e que, com as novas tecnologias da
de Bartok quando pede para abrir a última informação, se fala daquilo a que Lyotard
porta para a noite” (Steiner, 1992: 5). chama “logotécnicas”, com a crescente
Abrir a última porta para a noite! É isso miniaturização da técnica e com a
o que faz Steiner neste seu ensaio, que é uma “imaterialização” do digital, neste tempo de
36 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

biotecnologias e de novas tecnologias da A tecnologia inscreve-se, deste modo, no


informação, dizia, dá-se a completa imersão movimento daquilo a que Bragança de
da técnica na história e nos corpos. Miranda (1999) chama “razão medial”, ou
Esta imersão da técnica na vida - a fusão seja, uma razão que não constituindo a razão
da bios com a technê -, é particularmente dos media, seria todavia o suporte da razão
evidente com as biotecnologias, os implan- que produz e controla a existência. Neste
tes, as próteses, a engenharia genética. Mas entendimento, a tecnologia é vista como um
acontece também no caso das novas tecno- “dispositivo” (Foucault) e tem o carácter de
logias da imagem. Aquilo que hoje chama- uma maquinação: com a tecnologia maqui-
mos as tecnologias da comunicação e da na-se a estética, compõe-se uma sensibilida-
informação, especificamente a fotografia, o de artificial, “uma síntese artificial no inte-
cinema, a televisão, o multimédia, as redes rior da qual se desintegram as sensações, as
cibernéticas e os ambientes virtuais, funci- emoções e os desejos” (Cruz, s.d.: 111-112).
onam em nós como próteses de produção de Num processo de “crescente
emoções, como maquinetas que modelam em anestesiamento da vida nas sociedades
nós uma sensibilidade puxada à manivela modernas” Guy Debord (1991: 16) falará
(Martins, 2002 b: 181-186). antes de uma congelação dissimulada do
Se bem observarmos, vemos esta tese mundo: “a sociedade moderna acorrentada
declinada por inteiro em La Monnaie Vivante [...] não exprime senão o seu desejo de dormir.
de Pierre Klossowski (1997): “desejo, valor O espectáculo é o guardião deste sono”3.
e simulacro”, aí está “o triângulo que nos
domina e nos constitui na nossa história, sem 2. A pele da cultura
dúvida desde há séculos”, como bem assi-
nala Michel Foucault na carta que precede Não podemos, pois, deixar de abrir esta
a obra (Foucault, in Klossowski, 1997: 9). porta do Castelo. Para retomar a fórmula de
Aliás, já era claro para Walter Benjamin Steiner, essa porta - uma porta aberta para
(1936-1939), na primeira metade do século a noite - constitui “o preço trágico da nossa
XX, que os dispositivos de imagens causa- identidade”.
vam comoção e impacto generalizados, e que, Da técnica depende hoje, com efeito, a
portanto, como assinalou Teresa Cruz (s.d.: possibilidade de delimitarmos o humano,
112), “a nossa sensibilidade estava a ser enfim, a possibilidade de nos definirmos a
penetrada pela aparelhagem técnica, de um nós mesmos. O nosso problema é, com efeito,
modo simultaneamente óptico e táctil”. Mas o seguinte: a técnica deixou de prolongar o
foi nos anos sessenta deste mesmo século que nosso braço; pelo contrário, ela faz o nosso
McLuhan (1968: 37) insistiu neste ponto: não braço. Mais, a técnica promete produzir-nos
é ao nível das ideias e dos conceitos que a por inteiro. Tendo deixado de ser feita à nossa
tecnologia tem os seus efeitos; é a sua relação imagem e semelhança, somos nós próprios
com os sentidos e com os modelos de per- que somos feitos à imagem e semelhança da
cepção que a tecnologia transforma pouco a técnica. Ela aparelha a vida e os corpos,
pouco, e sem encontrar a menor resistência. investindo-os, penetrando-os, atravessando-
E foram Gilles Deleuze e Félix Guattari quem, os, alucinando-os, ou então, anestesiando-os.
já nos anos setenta, fez o a diagnóstico mais A técnica tanto produz e administra a vida,
completo desta situação, em que a técnica e como produz e administra os corpos. E ao
a estética fazem bloco” – um “bloco fazer uma coisa e outra, a técnica faz bloco,
alucinatório”, como escreve, a propósito, cada vez mais, com a estética, quero eu dizer,
Bragança de Miranda (s.d.: 101). No Anti- com os sentidos, com as emoções, com a
Oedipe, Deleuze e Guattari propõem a equi- sensibilidade. A técnica, que é um artefacto
valência entre corpo, máquina e desejo. Sendo da razão, faz bloco com a emoção. Ela
a máquina desejante e o desejo maquinado, exprime, é verdade, a racionalidade moder-
é ideia de ambos que existem “tantos seres na, a razão como controle da existência. Mas,
vivos na máquina como máquinas nos seres por outro lado, produz e administra emoções.
vivos” (Deleuze e Guattari, 1972: 230). Ou seja, a técnica reorganiza toda a nossa
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 37

emotividade e produz, por outro lado, o efeito Oedipe (1972): o desejo é maquínico e a
cada vez mais alargado de uma estetização máquina é desejante, de maneira que há tantos
da existência. A técnica produz, pois, o efeito seres vivos na máquina como máquinas nos
de um espaço que se gasta em emoções, quero seres vivos. Neste quarto do castelo, um
dizer, um espaço agitado, excitado, sobre- quarto de horrores, de homens-máquinas,
aquecido, que se esgota em emoção. E então corpo, máquina e desejo fazem uma liga que
é ver-nos a replicar-nos neste mundo, clónica não apenas nos fascina, mas que igualmente
e protesicamente: com regimes alimentares, nos inquieta.
com normalização em ginásio, com plásti-
cas, com próteses de silicone, com implantes 3. A melancolia das narrativas tecnológicas
de cabelo, com implantes electrónicos no
cérebro para realizar up grades de inteligên- Gostaria de dar mais um passo portas
cia, com implantes de embriões clonados para adentro deste quarto do castelo, evocando as
apurar a raça humana. figuras da ruína e da utopia do corpo nas
Autores há que falam, a este propósito, imagens tecnológicas. A ruína e a utopia do
da existência em nós de uma pele tecnológica, corpo são figuradas, por exemplo, nos cor-
de uma pele para a afecção e a emoção. É pos virtuais, corpos que são imagem pura,
o caso de Derrick de Kerckhove. Na obra absoluta criação tecnológica, corpos aliás
The Skin of Culture, defende este autor a tese volatilizados pela técnica, corpos pervasivos,
de que os media electrónicos são extensões de total irrealidade, todos eles luz.
não apenas do nosso sistema nervoso e do Entre esses corpos virtuais, encontra-se
nosso corpo, mas também extensões da Kyoko, uma “pop star” japonesa, que existe
psicologia humana. entre o real e o virtual. Um dos sites que
Steven Shaviro radicaliza esta tese ao falar
esta estrela tem na Internet faz a seguinte
da “erotic life of machines”. Trabalhando
descrição de Kyoko: “Além de cantora,
sobre o videoclip que Chris Cunningham
trabalha num restaurante fast-food de Tóquio,
realizou para a canção de Björk “All is full
cidade onde os pais também têm um restau-
of love”, Shaviro analisa o modo como Björk
rante. Tem fãs no Japão e no mundo inteiro.
se transforma num cyborg e como esse
Medidas: Tem 40 000 polígonos (pixels) e
fantasma, esse duplo de Björk, se replica
uma equipa de criadores que a inventam e
noutro cyborg, ou seja noutro duplo, acaban-
reinventam a todo o instante (site:
do os duplos de Björk apaixonados um pelo
www.citi.pt/estudos)5.
outro.
Ora aqui está um corpo prolongado por
Ora, nesse videoclip, o ser vivo que é
próteses miniaturizadas, pelos pixels do
Björk vai deslizando até se fundir com a
máquina, ou seja, com a imagem maquínica computador, pela imagem que está sempre
de Björk. Essa fusão, uma liga de bios e de em mutação, criação e reinvenção. Kyoko é
technê, faz irromper o pós-orgânico. A voz a figuração de uma verdadeira “máquina
de Björk figura esta pós-organicidade, dei- autopoiética”. Este corpo sem defeito dá-nos
xando de ser a voz de um ser humano para a possibilidade de uma identificção que rompe
se identificar com o som de um sintetizador. com as deficiências e as insuficiências de um
O inorgânico, todos o sabemos, é estéril corpo real. Uma star virtual não está nunca
por natureza. Mas o pós-orgânico (essa liga sujeita a doenças, acidentes e problemas
de bios e de technê), fantasia um acto de sentimentais. A sua imagem é segura e a nossa
criação, através de um amor estritamente identificação faz-se com uma perenidade e
endogâmico 4 . O videoclip de Chris uma infinitude, vividas em imagem.
Cunningham apresenta-nos assim um enlace Num tempo sem Génesis nem Apocalipse,
entre dois cyborgs, entre dois duplos, entre um tempo em “sofrimento de finalidade”,
dois fantasmas de Björk, encenando o pre- como diria Lyotard (1993: 93), um tempo
lúdio de um acto sexual. sem qualquer promessa de redenção que o
Convoco, de novo, neste ponto, a tese finalize, a tecnologia, neste caso Kyoko, é
proposta por Deleuze e Guattari no Anti- a escatologia que nos resta.
38 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Kyoko é uma narrativa mítica sobre a conquistas biotecnológicas – é sem sombra


beleza, a saúde e a juventude de um corpo de dúvida o persistente fascínio que o enig-
imperecível. Mas é uma narrativa melancó- ma da vida exerce sobre o espírito do Homem.
lica, que diz o mal-estar em que nos encon- Mas, em contrapartida, o criador não está de
tramos relativamente ao corpo, a incomodi- modo nenhum sossegado quanto ao risco de
dade de um corpo em ruína, de que perma- vir a perder o controlo da sua criatura.
nentemente fazemos um estaleiro para dietas Todas estas narrativas filmográficas são
e exercícios de reanimação, implantes, narrativas míticas, que glosam, nas novas
liftings, limpezas e plásticas. condições tecnológicas, o mito do Jardim do
Gostaria de evocar igualmente aqui o Éden. Diria, no entanto, que se trata de
imaginário futurista de um corpus de alguns narrativas míticas melancólicas, que dizem
filmes das últimas décadas do século XX. o mal-estar em que nos encontramos por
Tanto pelos seus fantasmas, como pelas relação ao nosso Planeta. Sentimo-nos, com
inseguranças, inquietações, temores e espe- efeito, desconfortáveis diante da sua ruína,
ranças que os animam, é possível manifestar pelo que um dos fantasmas que hoje mais
a alma que nos constitui, ou seja, é possível nos assombram é o fantasma da defesa e da
manifestar as nossas esperanças mais utópi- preservação da natureza, o fantasma da defesa
cas, e também os nossos medos mais e da preservação do meio-ambiente.
recalcados. Refiro-me, por exemplo, aos A melancolia diz bem o nosso sentimen-
seguintes filmes: Sleeper, realizado por to diante do real, sempre que ele nos falta
Woddy Allen em 1973; Blade Runner, rea- ou abre brechas. Neste crepúsculo de época
lizado por Ridley Scott em 1982; Strange em ruína, a melancolia vive jungida à nar-
Days, realizado por Kathryn Begelow em rativa mítica, essa sabedoria que hoje levanta
1995; a trilogia dos irmãos Wachowsky (The voo, qual coruja de Minerva em Hegel,
Matrix, realizado em 1999, The Matrix exprimindo o nosso mal-estar.
Reloaded e The Matrix Revolutions, ambos Aqui está entreaberta – apenas entreaber-
realizados em 2003), e Artificial Inteligence, ta – a porta do castelo que eu penso ser
realizado por Spielberg em 20016. necessário abrir bem aberta para nos enten-
Em todos estes filmes acaba por se impor dermos a nós próprios. Steiner falava de uma
uma mesma conclusão, indecisa entre a saída porta aberta para a noite. Quaisquer horrores
airosa que o herói encontra para a sua vida que todavia a habitem não podem nunca ser-
e a irresolução dos problemas que afligem nos inteiramente estranhos. Mesmo que o
a humanidade. Ou seja, o happy-end da vida preço a pagar seja trágico. É esse, com efeito,
do herói mistura-se com a falta de soluções o preço da nossa identidade: as novas tec-
para os problemas colectivos. Dir-se-ia que nologias são hoje, cada vez mais, uma fron-
o fantasma mais recorrente deste imaginário teira onde se joga a possibilidade de deli-
– um imaginário suportado pelas grandes mitarmos o humano.
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 39

Bibliografia Perniola, Mário, 1993 [1991], Do Sentir,


Lisboa, Presença.
Benjamin, Walter, 1992 [1936-1939], «A Perniola, Mário, 1994 [1990], Enigmas.
Obra de Arte na Era da sua Reprodutibilidade O Momento Egípcio na Sociedade e na Arte,
Técnica», in Sobre Arte, Técnica, Linguagem Lisboa, Bertrand.
e Política, Lisboa, Relógio d’Água, pp. 71- Perniola, Mário, 2004 [1994], O Sex
110. Appeal do Inorgânico, Lisboa.
Cruz, Maria Teresa, s.d., «Da Nova Sen- Shaviro, Steven, 2000, «The Erotic Life
sibilidade Artificial», in Imagens e Reflexões. of Machines (Björk and Chris Cunningham,
Actas da 2.ª Semana Internacional do “All Is Full of Love”)», Curso de Verão no
Audiovisual e Multimédia, Lisboa, Ed. Convento da Arrábida sobre “Tecnologia e
Universitárias Lusófonas, pp. 111-116. vida contemporânea”, organizado por
Debord, Guy, 1991 [1967], A Sociedade Hermínio Martins e José Bragança de
do Espectáculo, Lisboa, Mobilis in Mobile. Miranda.
Deleuze, Gilles & guattari, Félix, 1972, Steiner, George, 1992 [1971], No Cas-
L’Anti-Oedipe, Paris, Éditions de Minuit. telo do Barba Azul. Algumas Notas para a
Kerckhove, Derrick de, 1997 [1995], A Redefinição da Cultura, Lisboa, Relógio
Pele da Cultura – Uma Investigação sobre D’Água.
a Nova Realidade Electrónica, Lisboa, Wolton, Dominique, 2004 [2003], A
Relógio D’Água. Outra Globalização, Lisboa, Difel.
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1
Martins, Moisés de Lemos, 2002 a, «O Conferência proferida na Sessão Plenária
Trágico como Imaginário da Era Mediática», inaugural do VI Lusocom, em 21 de Abril de 2004,
in Comunicação e Sociedade, Braga, NECS, subordinada ao tema “Comunicação e Identidades”.
2
Instituto de Ciências Sociais da Universi-
n. 4, pp. 73-79.
dade do Minho.
Martins, Moisés de Lemos, 2002 b, A 3
Ver também Martins (2002 a, 2002 b), Perniola
Linguagem, a Verdade e o Poder, Lisboa, (1993, 1994 e 2004), e ainda, Shaviro (2000).
Fundação Calouste Gulbenkian & Fundação 4
Não posso, no entanto, deixar de assinalar
para a Ciência e a Tecnologia. a tese proposta por Mário Perniola (1994) sobre
Mcluhan, Marshall, 1968 [1964], Pour “o sex appeal do inorgânico”, que contraria o meu
Comprendre les Médias, Paris, Seuil. ponto de vista.
5
Miranda, José Bragança de, 1999, «Fim A figuração da ruína e da utopia do corpo
da Mediação? De uma Agitação na Metafísica nas novas tecnologias constitui o objecto de uma
Contemporânea», in Revista de Comunicação dissertação de mestrado em Ciências da Comu-
nicação na Universidade do Minho, a realizar por
e Linguagens, n. 25, pp. 293-330.
Mário Camarão Neto em 2004/2005.
Miranda, José Bragança de, s.d, «Crítica 6
Estes filmes constituem parte do objecto de
da Esteticização Moderna», in Imagens e Re- estudo sobre que incide uma dissertação de
flexões. Actas da 2.ª Semana Internacional do mestrado em Ciências da Comunicação, a realizar
Audiovisual e Multimédia, Lisboa, Ed. Uni- por Lurdes Macedo na Universidade do Minho
versitárias Lusófonas, pp. 92-105. em 2004/2005.
40 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 41

Textos sobre identidades como textos:


um exercício a partir das literaturas de língua portuguesa1
Augusto Santos Silva2

1. Sociologia cultural e literatura sentimentos, ideias, imagens, eventos,


edificações, a que atribuem valor simbólico,
Podemos começar por recordar que já e com que procuram situar-se, agregar-se e
passaram trinta anos sobre o 25 de Abril de distinguir-se, constituindo-se e pensando-se
1974. E que ele desencadeou uma experi- como colectivos, com os seus traços, ícones,
ência social intensa e arrebatadora: revolu- emblemas, discursos próprios. O primeiro
ção política, descolonização dos antigos caminho, essencialista, leva-nos ao beco sem
territórios ultramarinos e regresso de Portu- saída dos primordialismos. O segundo cami-
gal ao seu território peninsular. E que foi ele nho reconduz-nos ao sentido, como condição
que permitiu a institucionalização de um sine qua non da acção humana.
regime político democrático, a reorientação Só, todavia, o percorreremos se colocar-
para a Europa e, depois, a integração na que mos as identidades dentro, e não fora, das
agora se designa como União Europeia, dinâmicas sociais, articulando-as com os
tomando-a por referência fundamental de um contextos e agentes da sua produção e
desenvolvimento económico e social final- aquisição; se tomarmos as identidades como
mente concebido em termos modernos. factores de dinâmica social, e não exclusiva
Pensando neste sobressalto como poucos ou predominantemente como resultados ou
teve a história portuguesa, percebe-se bem efeitos; se concebermos as identidades como
quão ilusório é enunciar a identidade ao modo “textos sociais”, matérias significantes, que
antigo, como a essência psíquica ou moral enunciam visões e representações do mundo
que ontologicamente caracterizaria um ser ou e são motivo de sucessivas e diferentes
personalidade colectiva, assim a distinguin- interpretações (Alexander & Smith, 1998;
do e singularizando no concerto das demais: Costa, 1999: 61-115, 494-505; Silva, 1999:
isso seria prolongar indagações próprias dos 117-122). Não basta, portanto, declinar as
tempos anteriores ao 25 de Abril, que as identidades no plural; é preciso situá-las
houve várias, de diferentes proveniências socialmente, e também como produtoras de
cognitivas e ideológicas, procurando fixar realidade social, integrando-as nos encade-
uma identidade histórica nacional (cf. Leal, amentos múltiplos (e tensos) de interpreta-
2000: 63-82). Mas também se compreende ção que lhes vão conferindo sentido.
quão errado se tornaria confundir a recusa A estes encadeamentos pertencem os
da concepção essencialista e patrimonialista discursos especializados que, em registo
da identidade colectiva com o menosprezo ficcional, analítico ou comunicacional – isto
por essa dimensão constitutiva das realida- é, partindo do imaginário, dos saberes ou da
des sociais que são as representações sim- interacção simbólica – elaboram, codificam,
bólicas que sobre si próprias vão construindo interpelam identidades. Fazendo-o, produzem
as comunidades e os agentes especializados conhecimento (o que as coisas são), inter-
dos seus campos culturais (Almeida, 2001). pretação (porque e como as coisas são o que
Uma coisa seria aceitar a enésima tentativa são) e apreciação (o que as coisas valem)
de definir e impor uma matriz nacional e na intersecção daqueles registos e destes
uniforme e permanente, um “ser colectivo planos é que o jogo das identidades adquire
nacional”, português ou de qualquer outro o seu mais amplo significado social e pode
povo; coisa diversa é considerar e interpretar ser apreendido fora da vulgata essencialista.
os múltiplos planos e formas através dos quais Se o que fica dito tiver pertinência, então
os grupos sociais e os círculos culturais vão tornar-se-ão claras as potencialidades de um
elaborando e reelaborando, dinamicamente, exercício analítico em torno dos sobressaltos
42 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

identitários associados à revolução democrá- mos a família do seu filho, lavrador a


tica portuguesa, ao processo de contragosto, instalado na rotina de agrário,
descolonização e à formação dos novos preso a um tempo que ele próprio pressente
Estados africanos de língua portuguesa. E que vai passar. A sequência dos romances
pode-se procurar percebê-los recorrendo à ressituará a acção de A Paixão (na sua edição
mediação de textos literários que os tomam revista de 1976) no dia 12 de Abril de 1974,
por temas ou pontos de partida. sexta-feira santa. A sucessão de textos curtos
Vou atrever-me a fazer o exercício, apenas que organiza o romance, segundo a cadência
para tentar mostrar como ele seria interes- Manhã, Tarde, Noite, inicia-se com a ante-
sante, se fosse conduzido de forma menos cipação do dia de trabalho duro por parte
canhestra do que aquela de que não vou da cozinheira e faz depois ver o impasse
seguramente sair. Não pretendo fazer análise social e cultural da família pelas perspecti-
literária; o que designei, à falta de melhor vas, geralmente dadas pela descrição de
expressão, como consideração analítica de sonhos, dos pais, dos cinco filhos e dos
textos literários refere-se ao trabalho próprio criados de casa e lavoura. Ao longo deste
de disciplinas do universo das ciências dia de Paixão, o leitor apercebe-se dos sinais
sociais, tais como a sociologia, a história, a de transformação iminente: a postura
antropologia ou a semiologia. Mas, para um desistente dos pais, amarrados ao passado sem
convicto defensor da “análise cultural” em futuro e ao código da sua classe latifundi-
sociologia (Silva, 1994: 13-144) ou, o que ária; o distanciamento dos filhos mais ve-
vem a dar ao mesmo, da “sociologia cultu- lhos; a revolta surda dos trabalhadores ru-
ral” (Alexander & Smith, 1998), é sempre rais. Os acontecimentos-chave do romance
motivo de mágoa que os debates periódicos são o incêndio da herdade (porventura fogo
sobre identidades no universo da lusofonia posto) e a saída de casa de um dos filhos,
não aproveitem o riquíssimo material de João Carlos, estudante universitário em
representação e significação que as literatu- Lisboa e aí participante das lutas contra a
ras lusófonas vêm construindo sobre as ditadura, que rompe pessoal e politicamente
encruzilhadas identitárias e as identidades de com os pais e o seu meio social.
encruzilhada que as nossas nações vão cons- Que estamos em vésperas do 25 de Abril,
truindo. eis o que explicita o romance de 1978, Cortes.
Cortes, rupturas: é de novo a acção de um
2. Portugal diminuído no espelho cosmo- dia, o sábado santo, a partir das vozes e
polita sentimentos do pai, da mãe, dos filhos e
namoradas, do criado de lavoura e das cria-
Pedirei, então, licença ao escritor Almeida das. A vila tem nome: Montemínimo. Os
Faria, nascido em 1943 e revelado como um filhos têm idades: João Carlos, doravante JC
dos iniciadores da renovação literária portu- (como Cristo), 18 anos, André, 24, Arminda,
guesa dos anos 1960, com o romance Rumor 21; Jó, 12, e Tiago, 11, ainda crianças,
Branco, que publicou aos 19 anos, para me defrontam-se com a primeira adolescência.
servir da tetralogia que dedicou ao que, por Com diferentes níveis de intensidade, a
minha conta e risco, chamarei os dilemas ruptura envolve os três jovens: André é contra
identitários da revolução portuguesa. Refiro- a guerra, Arminda anda com um militante
me aos livros A Paixão, cuja primeira edição comunista, JC, já sabíamos, na luta estudan-
data de 1963 mas foi objecto de uma im- til. Corte com os pais, a educação familiar,
portante revisão em 1976, Cortes, saído em as normas do meio social (da classe, do
1978, Lusitânia, de 1980, e Cavaleiro An- latifúndio alentejano), o regime, o país, numa
dante, de 1983. gradação que, como se vê sobretudo no caso
Acompanhamos uma família alentejana, de JC, não pára – e esse é o ponto capital
de proprietários latifundiários. Acompa- – na situação política, porque abarca a
nhamo-la, desde A Paixão, em ciclo descen- sociedade portuguesa, o padrão de compor-
dente. Já desapareceu a personagem forte, o tamentos, a moral pública, o lastro da his-
fundador da herdade dos Cantares. Nós segui- tória. Ou seja, e por assim dizer, a identida-
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 43

de colectivamente constituída. Ajuste de osos, mais interessados na rapariga do que


contas de uma juventude culta com o seu no rapaz. Na trama narrativa, o que o epi-
país encalhado, parado, bloqueado. André há- sódio faz é colocar JC fora de Portugal, para
de pensar que “fugir ao intragável tornou- daí assistir à revolução, operando uma se-
se obsessiva ambição deste país caído em gunda descolagem do seu protagonista prin-
caliginoso bréu” (Faria, 1978: 112). Marta, cipal, primeiro fugido da sua família e meio
namorada de JC, há-de deduzir, passando social, agora deslocado do país.
ocasionalmente por uma rua lisboeta chama- Como a revolução democrática, o roman-
da Travessa da Espera, que esta é o ce encadeia-se em três partes.
“Águas mil”, a euforia da libertação e
“retrato duma espécie de pátria à logo algumas perplexidades. No dia 24, JC
espera que o tiraninho fuja e a ainda escreve à mãe sobre “esse universo
ditamole engula ou que a ditaputa fechado, essa asfixia” (Faria, 1980: 50), que
estique caindo do pedestal do Cristo- envolve a mãe, a casa e a nação, com que
Rei-saca-rolhas sempre presente dian- rompeu e que não quer. Depois, sabedor da
te da miséria de abrir de espanto os revolução”– e também de que o irmão mais
braços à mais incrédula estátua” velho fora obrigado a assumir as responsa-
(Faria, 1978: 172-173). E o romance bilidades de primogénito, porque o pai está
acaba dando-nos a ver JC e Marta morto e a mãe e os benjamins desamparados,
juntos, a congeminarem o exílio para o dinheiro e o património escasseiam, e a
sair desta “merda de pátria” (Faria, namorada dele, Sónia, nascida em Angola,
1978: 185). a Angola volta – JC verifica que não deseja
regressar a Portugal, descobre-se desalinha-
Entretanto, que sucedera nesse sábado do, ambíguo, não enquadrável. Identidade
santo, em Montemínino? O assassinato do incerta, ou melhor, identificações perdidas –
pai por trabalhadores rurais na herdade dos a herdada, que filho de terratenente não quis
Cantares, talvez como vingança da antece- ser, a nova, que não o empolga nem a
dente morte do militante comunista suspeito disciplina partidária, nem o “individualismo
de ter ateado o fogo do dia anterior. O revolucionário”. “Falta-me fé para defender
latifúndio morreu, os jovens que com ele qualquer seita, por anárquica que seja”, “sou
cortaram verão a história cortar-lhes, por sua apenas o desdichado, o tenebroso, ausente
vez, a amarra do modo que nunca imagina- nos momentos-chave, o que esqueceu a
ram. A morte real redobra a morte simbólica, chave” (Faria, 1980: 64). Entretanto, os
confere-lhe a crueza e a irrevocabilidade que irmãos que estão em Portugal e vivem por
ela sozinha não teria. dentro a comoção do primeiro Primeiro de
Dois anos depois da edição de Cortes, Maio, André e Arminda, assistem à morte
em 1980, Almeida Faria publica o romance gratuita de uns marinheiros perdidos e à
Lusitânia. Dedica-o a Eduardo Lourenço e progressiva frieza do namorado comunista
coloca-lhe como pórtico a última frase de O dela, embaraçado com o possível significado
Crime do Padre Amaro: “pátria para sempre de uma relação com a que, para todos os
passada, memória quase perdida”. Agora, a efeitos, continuava a ser filha, embora órfã,
forma é epistolar: as personagens adultas de um latifundiário.
trocam correspondência, e o narrador assu- O segundo tempo do romance – e da
me a perspectiva dos dois irmãos mais novos, revolução – é Setembro de 1974. “Setembro
ainda meninos, relatando os seus sonhos, negro”, é o título: a contragosto, sucumbindo
pesadelos e desventuras. A primeira carta à pressão da família, JC regressa, mas sem
pertence a JC e é datada de 14 de Abril de Marta, que se recusa a abandonar Veneza e
1974: domingo de Páscoa, pois. Escrita em os seus canais, a sua arquitectura, a sua arte.
Veneza, aonde JC e Marta acabaram por As palavras do retornado são violentíssimas,
aportar, salvos por um filho-família italiano numa torrente de revoltas contra o rumo que
de um rapto rocambolesco de que haviam vai levando a revolução. Que se reúne ao
sido vítimas, orquestrado por árabes misteri- desespero do irmão André, impedido pelas
44 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

circunstâncias familiares de ir ter com Sónia contextos e lugares sociais – estas são as
a Angola, e que também não compreende o perspectivas de protagonistas eles próprios
“folclore revolucionário” (Faria, 1980: 141). pessoal e grupalmente perturbados, desloca-
Terceiro tempo, “idos de Março”, de dos, desvinculados, dilacerados. Mas dessa
Março de 1975. Na perspectiva de JC, a opção básica do ciclo romanesco o que resulta
revolução virou opereta. “Agora – escreve– é uma representação do país e do seu pre-
– volta a vir ao de cima o nosso secular sente, da oportunidade perdida do seu pre-
cepticismo, indiferença, fatalismo, transfor- sente, perdida por causa da repetição da
mando em gesto nacional o encolher-de- pequenez, da tacanhez ancestral. André, o
ombros de outrora conhecido” (Faria, 1980: irmão mais velho, o que vai morrer, escreve
158). Marta em Veneza, não apenas Marta, numa das suas cartas de São Paulo, Brasil:
Veneza como lugar-outro e contraponto ao
“carnaval na quaresma” (Faria, 1980: 169) “Durante as minhas insónias
em que virou o processo revolucionário. E crepitantes, penso que não me perten-
o romance conclui-se nesta amargura: a ço, sou não eu mas um povo inteiro
ruptura querida tornou-se numa ruptura perdido de si, confusamente à procu-
vencida, a amada diz que não volta, JC que ra de não sabe que saída. Já em Lisboa
vá ter com ela se quiser. pensava isto ao olhar as ruas degra-
A publicação, em 1983, de Cavaleiro dadas a que os murais revolucioná-
Andante fechará o círculo ficcional sobre esse rios ainda davam tons de revolta ou
país-Portugal perdido na história secular de de ironia contra a história que nos tem
injustiças, atavismos e bloqueios, mas tam- andado a enganar. Ou fomos nós que
bém perdido numa revolução que lhe terá nos enganámos preferindo culpar os
mudado apenas a epiderme. As cartas são
outros, por ser mais fácil?” (Faria,
trocadas entre Junho e Novembro de 1975,
1983: 131).
e entre Lisboa, onde está JC, ou os sítios
por onde transita no seu novo emprego de
Assim se opera uma espécie de
comissário de bordo, Veneza, onde continua
desocultação, através dos sonhos, dos pen-
Marta, o Brasil onde André, o mais velho,
samentos, das cartas dos personagens –
vai tentar encontrar trabalho, para logo
primeiro, nos dois romances iniciais, alargada
desistir, e Luanda, onde está Sónia, a namo-
a perspectiva ao olhar dos subalternos, as
rada de André, e aonde este acabará por se
criadas de casa, o velho empregado, os
dirigir, aí morrendo, junto a ela, de doença
trabalhadores rurais, depois, nos dois últimos,
fulminante.
circunscrita aos diálogos de jovens separa-
Assim se combinam duas escalas, porém
dos entre si e de si mesmos (e à sua relação
o elemento de articulação é o mesmo: para
os jovens filhos de lavradores alentejanos, com a mãe que não compreende o que se
apanhados na voragem revolucionária ao passa e com as crianças que experimentam
mesmo tempo que inquietos dos seus vín- a adolescência). Essa desocultação mostra um
culos de família, clã ou meio e imersos na país pequenino, onde terratenentes e revo-
tensão dos relacionamentos afectivos e lucionários, onde colonos e descolonizadores,
amorosos, a ressaca do Portugal-império, tão onde conservadores e progressistas estão
mal descolonizado quanto havia sido mal presos de análogas incapacidades, encontram-
administrado, é homóloga da ressaca do se nos mesmos impasses, que são os impasses
Portugal-paróquia, provinciano e pacóvio, que da história e das elites sociais nacionais.
vive uma revolução sem grandeza e pathos, Como explicará JC a Marta, à Marta que
“à maneira — nas cáusticas palavras de Marta prefere Veneza a Lisboa porque prefere a arte
— dos festivais da canção Eurovisão” (Faria, ao provincianismo e prefere o prazer ao
1983: 233). engajamento e prefere-se a si própria a
Claro que – aí estão as identidades si- qualquer ente gregário transcendente, a raiz
tuadas de que começámos por falar, do impasse está na aversão ao
construídas ou desestruturadas de dentro de cosmopolitismo:
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 45

“Que pode a ideologia mudar nisto? ciclo ilusoriamente imperial, em que a si


Pouco, ao menos neste pequeno país mesma se ludibriou, incapaz de imaginar
que certas direitas e curtas esquerdas outras formas de relação, pós-colonial, no
tornam mais mínimo ainda, ambas de espaço triangular que ela própria historica-
acordo num ponto, no exacerbado mente criou, ressituando-se positivamente
nacionalismo, no ataque ao entre o Rio de Janeiro ou São Paulo e Luanda
cosmopolitismo considerado crime (ou Maputo). Lisboa diminuída na todavia
político, no destemperado elogio do inevitável e inadiável comparação com a
‘povo’ e das delícias da ‘pátria’ Europa da modernidade de criação e gosto.
umbigo do mundo, o qual pode aca- Rupturas por fazer, vínculos desaparecidos
bar à vontade desde que sobrem estes sem equivalentes nem alternativas, desencan-
duzentos quilómetros de largura que tamento e dilaceração.
Deus teve o bom-senso de criar entre Apetecia convocar outros universos
a Espanha já perigosamente Europa ficcionais: por exemplo o de António Lobo
e o mar onde está a nossa ‘alma’ a Antunes. Mas, para sugerir o filão analítico
que as direitas chamam vocação atlân- contido na elaboração literária sobre a tensão
tica e as curtas esquerdas vocação
entre identidades e mudanças, há-de bastar
terceiro-mundista por nos aproximar
a singularidade de Almeida Faria. Ele
do sul que ‘descobrimos’. Não me
desconstrói por assim dizer de dentro, inter-
entendo com tal gente, nem me con-
pelando a experiência revolucionária a partir
venço, depois de ver Veneza, que a
da perspectiva de personagens jovens que
nossa capital, degradada mistura de
apostaram no corte com valores e hábitos
Belgrado e Istambul, seja a jóia que
esta crassa cambada de ignorantes ou longamente estabelecidos e se viram por eles
parvos pretende impor-me. Gosto de mesmos tolhidos, prematuramente vencidos.
muitas ruas de Lisboa descendo para Ora, André, o mais velho deles, o que vai
o rio, gosto da luz feroz em certos morrer, doente da alma e do corpo, depois
dias, do azul sem uma nuvem sema- de falhar Portugal e de falhar o Brasil,
nas seguidas, gosto do verão aqui, mas morrerá em Luanda, isto é, na África nosso
não me obriguem a transformar com- descobrimento e culpa, assim se fechando
plexos de inferioridade em superio- ficcionalmente, como escreveu Eduardo
ridades ridículas” (Faria, 1983: 153). Lourenço (1999: 119), “o ciclo do nosso
imaginário lusófono enquanto imperial”. A
3. Moçambique redimível pela força das interpretação da obra de Almeida Faria como
raízes uma interpelação do Portugal conformista em
aparente revolução (uma das múltiplas hipó-
Talvez não seja exagerado escrever que teses de leitura e, sem dúvida, a menos
os romances de Almeida Faria organizam literária) é indissociável, pois, da sua
como que um processo, ora sarcástico, ora prefiguração do tempo pós-colonial como
melancólico (Lourenço, 1999: 115) ao Por- impossibilidade. O que talvez justifique
tugal-país-e-império que passou ao lado de confrontar-se esta portuguesa perspectiva, em
uma transformação de mentalidades e com- conflito consigo própria porque se sente não-
portamentos, porque o ancestral défice de europeia, não-moderna, anticosmopolita, com
cosmopolitismo levou avante sobre o impul- outras elaborações literárias sobre a encru-
so voluntarista, afinal superficial. Vista do zilhada pós-ditadura e pós-colonialismo,
lugar de observação destes romances, a elaborações de outros escritores noutros
questão portuguesa é mais cultural do que lugares de escrita – designadamente, os
ideológica: o fechamento na escala “mínima”, escritores que usando a mesma língua por-
o temor à abertura e à confrontação, o peso tuguesa e editando em Portugal, falam de e
dos emblemas passadistas, mesmo se dou- a partir de África. Será que, se mudarmos
trinária e politicamente reciclados. Lisboa assim o posto e os instrumentos de obser-
perdida na incapacidade de saber fechar um vação, mudam as paisagens observadas?
46 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Almeida Faria coloca a sua pátria, de imediato, é por causa da incrível força
Montemínimo/país-mínimo, num divã de que emana da complexidade de África. “Esse
esteta; e sacode-lhe o arcaico provincianismo era o suspiro do colono. Em África, tudo é
com os ventos fortes e instantes da cultura outra coisa” (Couto, 2004: 92). Como agarrá-
moderna e cosmopolita. Se fosse, porém, ao -la, pois, como dominá-la, como prendê-la?
contrário? Se a raiz que prende a identidade O foco principal da obra ficcional de Mia
colectiva à terra e ao passado constituísse Couto não é, porém, o tempo colonial, mas
o que resta de melhor, para enfrentar a sim a alvorada do novo Estado, a quase
desventura e manter um grão de esperança imediata convulsão da guerra civil e a cus-
mesmo quando parece que tudo se desmo- tosa e incerta saída dela para a possibilidade
rona? Se o moderno estivesse longe de ser da paz e do desenvolvimento.
o horizonte exaltante face ao qual haveria No primeiro romance, Terra Sonâmbula,
de lamentar-se a âncora que nos prende ao de 1992, é a desolação que impera. Um velho
chão das tradições, e fosse ao invés neste e um moço, deslocados e sozinhos, tomam
chão que residissem as forças de resistência por provisório abrigo um autocarro incendi-
e de futuro? ado em estrada intransitável; e nele desco-
Poderíamos talvez reler, desse ângulo, a brem os cadernos manuscritos de outro jovem,
obra até agora publicada pelo romancista e Kindzu, que o moço lerá em voz alta para
contista moçambicano Mia Couto, nascido em o velho e para si próprio. Kindzu, que partira
1955. O que é a África? Quando o autor, da aldeia em busca dos míticos naparamas,
ele próprio branco, alude ao Moçambique guerreiros da justiça, encontra uma mulher
colonial, logo sobressai a incapacidade do e, a pedido desta, tenta recuperar-lhe o filho.
colono para entender África. Em Vinte e No sonho com que acaba o romance, Kindzu
Zinco, novela publicada em 1999 como
acaba por chegar ao autocarro, o moço seria
evocação do 25.º aniversário do 25 de Abril,
afinal o filho da mulher, lendo os cadernos
o ódio dos colonos pelos negros vem carre-
escritos por quem o procura. A guerra matou
gado, ao mesmo tempo, de medo e fascínio
o país (“agora, já não há país”, Couto, 1992:
pela Mãe África, a sua exuberância natural
165), as aldeias, as estradas, as bases da
e cultural, os poderes “ilógicos” e “ocultos”,
existência e da comunicação. As gentes estão
a ancestralidade. O pide Lourenço de Castro,
à mercê dos “bandidos armados”, da nomen-
abusador e torcionário, não deixa de ser um
clatura dirigente, da raiva e do ódio que
menino da mamã, que dorme com um pano
destroem; as gentes foram arrancadas às suas
de fralda por travesseiro e o cavalinho de
comunidades, deslocadas para campos de
pau ao lado da cama, e arde de desejo pela
refugiados, estão famintas, desesperadas. O
sua tia “traidora”, mulher branca
que é, então, a esperança? É esta “terra
frequentadora de negras e negros, amante de
África e comprometida com a Frelimo. A sonâmbula”, a sua história e imaginário, a
personagem cega, cega e negra, comenta: sua capacidade de sonhar, o amor entre os
velhos e os jovens e das mães aos filhos,
“os brancos falam da ideia como é que uns se atrevam a figurar possibilidades
coisa solar que ilumina as mentes. que vão além do preconceito, do tribalismo,
Mas a ideia, todos sabemos, pertence do racismo, da corrupção e do rancor. Como
ao mundo do escuro, dessas aquele comerciante indiano, Surendra, “mais
profundezas de onde nossas vísceras sua nação sonhada: o oceano sem nenhum
nos conduzem” (Couto, 1999: 84) fim” (Couto, 1992: 214): os continentes
separam e o mar une e seria, portanto,
– e esta diferença condensa a contradição das preferível conceber moçambicanos, de um dos
maneiras de ver e avaliar a relação entre lados do Índico, e indianos, do outro, como
mente e corpo, seres e coisas. Quando, no nacionais de uma mesma nação. Ou, então,
conto “O novo padre” de O Fio das como os homens de que Surendra gosta, os
Missangas, o colono se apercebe de que o “homens que não têm raça” (Couto, 1992:
novo padre é negro e não consegue reagir 29). Ou como aquele velho, Nhamataca, que
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 47

quer cavar um rio, para reparar a ofensa feita morto”. “O verdadeiro crime que está a ser
à terra e repor a paz, porque o rio “costura cometido aqui é que estão matando o anti-
os destinos dos viventes” (Couto, 1992: 96). gamente”, “as últimas raízes”. “Estes velhos
Não é muito diferente o tom do volume estão morrendo dentro de nós”, isto é, na
de contos publicado em 1994, Estórias nossa indiferença, na nossa incapacidade de
Abensonhadas. Moçambique na incerta paz articular o presente à terra, à história, à sua
que sucede ao fim da guerra civil. O conflito herança. Marta previne:”“Há que guardar este
entre Renamo e Frelimo não é poupado, por passado. Senão o país fica sem chão” (Couto,
exemplo no conto-parábola significativamente 1996: 59, 60, 103).
intitulado “A guerra dos palhaços”, assim Um país a que roubam o chão, eis a nação
como não deixa de ser castigado o sem- moçambicana engolida pelo abismo, à espera
sentido de vários rituais e decisões do Estado- da possibilidade de uma redenção – que é
Frelimo (“Jorojão vai embalando lembran- como a ficciona o fim do romance de 2000,
ças”). Mas, entre a amargura, sinais de O Último Voo do Flamingo. Quem lho rouba
esperança, “estórias abensonhadas” de gente não é só a guerra civil, os “bandidos” de
comum, capaz de inventar, no labirinto das um e outro campo; não é só a nomenclatura
desgraças, pequenos caminhos de felicidade.
dirigente do Estado, merecido alvo de
Dessa gente se poderia dizer o que intui o
impiedosos sarcasmos; é também o olhar
narrador de certa moça: “desenvenenava o
“ocidental” e “moderno”, o novo discurso da
tempo, sempre ávido de desgraça?” (Couto,
ordem democrática tutelada pelos organismos
1994: 24).
internacionais, em que se recicla a nomen-
Alguém pergunta a um “descamponês” –
clatura, e os peritos dessa ordem que teimam
que as terras lhe haviam sido retiradas, só
lhe sobrando o descampado – “Como vos em não entender a cultura oral, popular e
sobreviveu a esperança?”. E ele responde: tradicional, protagonizada sobretudo por
“Mastigámo-la. Foi da fome” (Couto, 1997: velhos e mulheres, e a ela pretendem qui-
115). Cito os Contos do Nascer da Terra, mericamente contrapor a sua lógica político-
contos que falam sobre os sonhos das pes- administrativa “exterior”, urbana e
soas, rurais ou suburbanas, as suas relações transnacional. E, como a cultura ancestral é
com a terra e os bichos, com as tradições, indomável, e tem do seu lado o mistério —
com os mortos e os velhos a que se deve quer dizer, o que o racionalismo plano do
obediência, com o misterioso, o insólito, o discurso moderno não consegue apreender na
inesperado, que são todos outros modos de sua complexidade multifacetada, porque o
ver e imaginar as coisas. (Des)encontros entre olha de um só ângulo — é que se dão esses
a vida e a morte, o homem e a mulher, o estranhos e não deslindados casos, como certa
menino e o adulto, o normal e o insólito, explosão de capacetes azuis da ONU nos
a tradição e o que a transgride, o saber comum confins do território moçambicano (Couto,
e o saber técnico ou burocrático, a vizinhan- 2000).
ça e o Estado, a natureza e o homem pre- E, como a terra é indomável, é ela a última
dador… barreira aos ventos de corrupção que casti-
Ora, é a pujança ancestral, física e sim- gam o país devastado: querem enterrar um
bólica, da terra moçambicana que os discur- Avô, que ninguém sabe se morreu se con-
sos e os actos de dominação não entendem tinua vivo, ou seja, que está, à semelhança
e, por não entenderem, violentam — e afinal do país, como que em suspenso entre direc-
se perdem, tolhidos na sua própria ções contrárias; e a terra fecha-se, impedindo
incompreensão. N’A Varanda do Frangipani, que se cave a sepultura. Fecha-se porque
a enfermeira Marta usa termos muito duros havia sido conspurcada com o pó branco das
para a denúncia da morte dos “velhos” (os drogas que os traficantes tentavam introduzir
intérpretes das raízes de uma nação devas- na ilha, a terra fecha-se porque o desenlace
tada pela guerra, a corrupção e a indiferen- da relação dos homens com o “rio chamado
ça). Eles são “guardiães de um mundo”, diz tempo” e a “casa chamada terra” está por
Marta. “É todo esse mundo que está sendo decidir.
48 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Refiro-me agora, bem entendido, ao toca às identidades. Porém, o Portugal que


romance de 2002, com esse título. Mariano regressa do seu império de pacotilha falha
é um jovem universitário, estudante na ci- o encontro com a Europa, porque afinal,
dade, que se desloca à ilha natal e à casa liberto da ditadura, continua preso ao mesmo
familiar para participar no funeral de seu défice de modernidade, continua preso à
suposto avô, também chamado Mariano, o mesma pequenez. Isto o sentem e dizem
tal que nem vive (ainda) nem (já) morreu. jovens que quereriam romper com o seu meio
O pai de Mariano, Fulano Malta, é um ex- e cultura e se acham tolhidos e amarrados,
guerrilheiro da Frelimo, amargurado com o falhando sucessivamente saídas positivas para
rumo da sua causa, o tio mais velho, a triangulação entre o seu país, o Brasil e
Abstinêncio, é um humilde e fugidio funci- a África que o seu país conheceu e confor-
onário, o tio mais novo, Ultímio, é membro mou. O saldo desta relação no presente
arrogante e corrupto da elite dirigente. O anuncia-se tão negativo quanto historicamente
jovem penetra na casa-mundo, que envolve o fora. E quando se busca a razão, vai-se
no seu interior os homens, as coisas e as ter à multissecular aversão à abertura, à
memórias; e a casa-mundo vai iniciando-o inovação, ao cosmopolitismo. Para a juven-
na rede de mistérios, tendo por fio os su- tude desalentada e dilacerada posta em li-
cessivos bilhetes com que o Avô lhe fala teratura por Almeida Faria, o problema da
através da própria caligrafia dele, o neto identidade portuguesa está na sua raiz, que
Mariano, até que ele aceda à descoberta da a prende bem fundo a esse solo histórico que
verdadeira identidade do Avô, afinal seu pai impede o corte, a ruptura em direcção ao
biológico, filho que foi de um amor proibido futuro.
dele com a cunhada Admirança. Mariano, Ora, é bem outra a perspectiva de Mia
universitário, jovem e urbano, está afinal Couto, lidando com o parto doloroso da nova
ligado mais vigorosamente do que alguém nação moçambicana e a convulsão que
pensara a essa fonte de saber local, a essa imediatamente se lhe seguiu e de que ela se
misteriosa raiz (física e cultural) de identi- vai libertando, se é que se liberta,
dade e resistência que o suposto avô, afinal custosamente. Toda a força criativa da obra
pai, poderia personificar. ficcional de Mia Couto, a espantosa recri-
ação da língua portuguesa como a não menos
4. O cosmopolitismo reconfigurado como espantosa respiração poética das narrativas,
travessia é nas raízes que se alimenta: no mundo da
oralidade, das falas, das estórias, das visões,
A obra de Mia Couto é “comparável” com das memórias, dos sonhos, das maneiras de
a de Almeida Faria? Não me parece que faça ser, pensar, sentir e agir longamente
sentido dizê-lo. Ou, pelo menos, não é isso amadurecidas pelo viver comunitário e
que pretendo discutir. Cuido é de identidades sedimentadas nos sentimentos, nas crenças
problemáticas em tempos de mudança e e nas palavras dos velhos, dos aldeões, dos
encruzilhada, tendo a ver com a maneira homens e mulheres a seu modo sábios,
como um velho país e novas nações ligados lógicos, mestres do segredo da polivalência
pela história colonial podem viver a aurora dos símbolos e das oscilações do sentido, e
de liberdade; e sirvo-me, desrespeitoso, de que estão ligados, indissoluvelmente ligados,
elaborações literárias. Mas não para provo- à terra africana. Cortar os laços, desenraizar
car uma cansativa reiteração de abordagens as gentes, fazendo “parar a vida e anoitecer
afins, ao contrário, para acentuar contrastes. as vozes” (Couto, 1987: 19), é esse o maior
A revolução aparentemente perdida, ao olhar crime das múltiplas violências que sobre elas
esteticizante de Almeida Faria, do Portugal se foram abatendo – a dominação colonial,
pós-ditadura e pós-colonialismo, configura- a guerra civil, o abuso do Estado e da clique
ria certamente uma dessas situações de dirigente, a desumanidade das cidades, a
desenlace incerto, também no que toca aos escassez e a fome, até a linguagem e a atitude
modos colectivos de se definir, qualificar e das organizações portadoras da racionalidade
posicionar face a outrem – isto é, no que e do progresso ocidental, caixeiros viajantes
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 49

da paz e da democracia feitas mercadorias romances de Almeida Faria. Para estes, por
de exportação. Mas é também enorme o vigor não prezar o que vem de fora e é moderno
dos laços e raízes, e da duração que os é que Portugal se perdeu e perdido continua,
protege, a força que permite sobreviver, a mesmo quando se sobressalta: falha
resistência, a capacidade de enfraquecer e incontornável da ausência de cosmopolitismo.
desnortear o dominador, a esperança. Aqui, Para os protagonistas da ficção de Mia Couto,
no Moçambique de Mia Couto, quem está por não ser prezado o longo e paciente
do lado sombrio e no pólo negativo é a trabalho das gerações é que tantas ameaças
modernidade unidimensional, inábil na co- pairam, colocando em perigo a identidade
municação com o que lhe escapa, incapaz moçambicana e o seu devir: erro fatal da
de acolher o que é da ordem do onírico, do modernidade sem chão. É, pois, a dialéctica
misterioso, do sagrado, a modernidade da entre estes dois pólos que define, do ponto
racionalidade fria e instrumental e da domi- de vista criativo, a dinâmica das identidades?
nação tecnocrática. Positiva e prometedora O muito que gosto em Agualusa e o pouco
é a cultura, em toda a sua latitude antropo- que posso dizer acerca da sua obra levam-
lógica, a cultura material e simbólica tão me a sugerir que não. Que a relação se pode
próxima da terra, tão alicerçada na espessura ainda adensar um pouco mais.
geo-histórica, luminosas são as tradições, as José Eduardo Agualusa nasceu em 1960
linguagens, usos, gestos, o fio das gerações no Huambo, em Angola. Estudou agronomia
e dos territórios. Não haverá futuro, pelo em Portugal e aí se fez jornalista. Com o
menos humano, pacífico e são, para uma mo- romance A Conjura, ganhou o Prémio Re-
dernidade sem raiz, para um país feito de velação Sonangol de 1989. A partir daí
fora, em combate com o seu próprio povo, escreveu, até ao ano de 2004, cinco roman-
a sua própria paisagem e o seu próprio ces, além de contos, novelas, crónicas e
passado. “O sagrado tem seus métodos, as literatura para crianças. Viveu também no
lendas se sabem defender” (Couto, 1994: 91) Brasil e na Alemanha. Neste aspecto, é dos
– e nós só conseguiremos resolver positiva- escritores de origem africana e língua por-
mente a questão da identidade se soubermos tuguesa mais cosmopolitas. A sua ficção fala-
respeitar o muito que é complexo e escapa nos sobretudo de Angola, da Angola de dois
a uma apreensão chã, que por ser complexo momentos históricos fundamentais: de um
só se nos oferece se soubermos estimá-lo, lado, a segunda metade do século XIX e o
honrá-lo, preservá-lo, usando de todos os início do século XX – a sociedade “ango-
recursos da razão e do sonho para lense” dos tempos coloniais e a sua relação
compreendê-lo plenamente. com as questões da autonomia, da indepen-
Num dos mais belos contos “do nascer dência, da escravatura – e, do outro lado,
da terra”, um velho português, agora asilado, a actualidade, a luta pela independência e a
faz a pergunta: sua consagração em 1975, a interminável
guerra civil que se lhe seguiu e os equívocos
“Foi então que eu vi as árvores, da – “normalização” operada depois da li-
enormes sentinelas da terra. Nesse mo- quidação de Jonas Savimbi. Mas não fala só
mento aprendi a espreitar as árvores. de Angola, fala de Angola-em-relação: Angola
São os únicos monumentos em Áfri- face a Portugal, Angola face ao Brasil; e,
ca, os testemunhos da antiguidade. Me mais recentemente, também de Portugal face
diga uma coisa: lá fora ainda exis- ao Brasil e reciprocamente (além de Goa).
tem? Pergunto sobre as árvores” Neste plano, Agualusa é um dos escritores
(Couto, 1997: 111). de língua portuguesa que melhor se movi-
menta em todo o espaço geográfico, histó-
Perguntar pelas árvores: perguntar pelas rico e cultural da lusofonia.
raízes, pelo que liga ar e chão, identidade Creio que posso exprimir a interpretação
e memória. cultural que proponho se sugerir que estão
O olhar de Mia Couto não é o olhar presentes, na ficção de Agualusa, duas linhas
cosmopolita do João Carlos e da Marta dos de aproximação à identidade angolana.
50 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

A primeira desenvolve-se segundo o fio Os conspiradores são gente de vida cheia


do processo de independência nacional. A e aventurosa, e o romance evoca poderosa-
Conjura, romance de estreia, escrito em mente essa capital colonial dos fins do século
Lisboa, em 1987-88, fala-nos sobre um golpe XIX, o ambiente de paixões, amizades,
preparado por meios luandenses – um golpe polémicas, loucuras, que faz o quotidiano de
abortado, a 16 de Junho de 1911, pela traição toda uma geração. Um ambiente que a novela
de um dos implicados, que o denunciou às A Feira dos Assombrados, claramente deve-
autoridades coloniais portuguesas. Esses dora do modelo literário do realismo fantás-
meios provinham do que Agualusa designa tico, evoca também, agora tendo como ce-
como “angolenses”, naturais de Angola, na nário um posto avançado de povoamento e
sua maioria mulatos, pouco menos que to- comércio, o Dondo, na margem do rio
lerados e muitas vezes hostilizados pelos Quanza. O narrador do estranho e não
proprietários e funcionários coloniais prove- deslindado caso da chegada à vila, flutuando
nientes da “metrópole”. Os angolenses que pelo rio, de sucessivos cadáveres, é um
organizam a “Sociedade” conspiradora, e cuja comerciante nela estabelecido: e é pelo seu
vida o romance acompanha entre 1880 e 1911, olhar que acompanhamos as personagens da
sonham com a independência do país e o seu história, o major do exército que administra
desenvolvimento próprio, querem que Ango- o concelho, o padre, o professor, o capitão
la deixe de ser apenas um lugar de degredo que veio degredado de Portugal por haver
para os criminosos ou perseguidos políticos participado na revolta do 31 de Janeiro de
e um território rico para exploração infrene 1891, os comerciantes. E é também ele que
e enriquecimento fácil. Parte deles sonha nos relata certa vinda de seu primo Severino
também com um tratamento mais humano de Sousa, um dos principais conspiradores
para os escravos negros e revolta-se contra de A Conjura, para tentar recrutar (em vão),
o racismo cru dos escravocratas. Parte de-
no Dondo, companheiros de revolta
positou esperanças no movimento republica-
(Agualusa, 1992).
no português; e a conspiração é precipitada,
Ora, esta Angola inquieta, esta Angola que
em Junho de 1911, precisamente pela desi-
se não quer deixar amordaçar pelo modelo
lusão com o facto de, a seus olhos, a im-
de colonização portuguesa (implacavelmente
plantação da República não ter trazido ne-
descrito na carta de Fradique Mendes a Eça
nhuma mudança de vulto. A revolta é vencida,
de Queirós, imaginada em Nação Crioula:
mas não a esperança. O romance acaba com
colonização sem fomento, nenhum carinho
uma nota optimista. O inspirador-mor da
pelas elites locais, ânsia do lucro fácil,
conjura, o barbeiro Caninguili,
nenhum sentido de planeamento, mero es-
“naquela semana havia envelhecido coadouro de degredados, cf. Agualusa, 2003b:
anos. E só então Adolfo [um dos con- 125-128), esta Angola exuberante, resistente
jurados, que o visita] reparou que tinha e esperançosa, esta Angola carnal, acabará
os cabelos todos brancos e lhe tre- por matar-se a si mesma. Assim conclui o
miam as mãos e que a sua voz era notável romance de 1996, Estação das
insegura e quebradiça. Alice, por seu Chuvas, cuja última frase pertence ao relo-
lado, parecia cada vez mais alheada joeiro Joãoquinzinho. “E agora?”, pergunta-
das coisas deste mundo. Mas quando lhe o narrador — agora depois dos massa-
ambos [o barbeiro e a mulher] se cres de 1992 e do reinício, ainda mais brutal,
levantaram para os acompanharem da guerra civil.
[aos visitantes] à porta, a frágil se-
nhora passou o braço pela cintura do “Joãoquinzinho fez um gesto largo,
marido e havia nesse gesto tanta mostrando a casa, com as paredes co-
ternura e tanta autoridade que Adolfo midas pelas balas. A cidade apodre-
compreendeu que tudo podia ainda ser cendo sem remédio. Os prédios com
recomeçado. Porque o barbeiro tinha as entranhas devastadas. Os cães a
a sustentá-lo a maior força do mun- comer os mortos. Os homens a comer
do” (Agualusa, 1998: 203). os cães e os excrementos dos cães. Os
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 51

loucos com o corpo coberto de alca- O que restaria, neste curso das coisas,
trão. Os mutilados de olhar perdido. seriam a desilusão, a amargura e o sarcasmo.
Os soldados em pânico no meio dos Na incursão por Goa, no quadro de uma bolsa
escombros. E mais além as aldeias de criação literária oferecida pela Fundação
desertas, as lavras calcinadas, as tur- Oriente, Agualusa exila na antiga Índia
vas multidões de foragidos. E ainda portuguesa um velho combatente da guerri-
mais além a natureza transtornada, o lha do MPLA, Plácido Domingo, depois da
fogo devorando os horizontes. independência acusado de traição e persegui-
Disse: do, como suposto agente da PIDE infiltrado
- Este país morreu!” (Agualusa, no movimento: com esta experiência, onde
2003a: 279). fica o mal, senão sempre connosco, irreme-
diavelmente perto de nós, inseparável com-
Morreu depois de ter lutado contra o panheiro do que julgamos ser o bem, e o
colonialismo português e de o ter vencido, que é doravante Angola se não uma
morreu depois de ganhar a sua própria in- inexistência, uma não-origem, um nada – que,
dependência, morreu por causa da guerra civil contudo, cada um procura recriar noutras
e dos ódios cruzados contra a paz e a li- paisagens, noutros lugares, os lugares de
berdade. O narrador é um jovem jornalista, exílio, procurando os rios que pareçam o
que, por ter como contexto de formação e Quanza ou os cheiros que lembrem a floresta
pertença política um pequeno grupo esquer- (Agualusa, 2000: 26, 50)?
dista, a Organização Comunista de Angola, Depois, no romance O Ano em que Zumbi
assume um radical distanciamento face a Tomou o Rio, que ficciona uma guerra civil
qualquer um dos principais contendores, o urbana desencadeada pela revolta dos
MPLA, a FNLA e a UNITA, e vive a favelados do Rio de Janeiro, comandados por
experiência da prisão arbitrária às ordens do um estranho traficante de droga animado de
poder de Agostinho Neto. Ele interessa-se consciência política, participa Francisco
pela vida de uma mulher, Lídia do Carmo Palmares, negro, ex-coronel do exército de
Ferreira, poetisa e professora, fundadora do Angola, herói desiludido com a revolução e
MPLA e depois ligada à Revolução Activa o regime do seu país. Palmares coloca-se do
de Mário Pinto de Andrade, que desaparece lado dos revoltosos, acabando assim por
(perdida, morta?) nos sangrentos confrontos abraçar uma nova causa, dada à partida como
de 1992. E são os seus dois pontos de vista perdida, por isso talvez ganhadora, abrindo
que nos descrevem a tragédia angolana, no caminho para uma morte, “bela aventura” que
intervalo temporal que vai da resistência confira ao menos um derradeiro sentido ao
anticolonial, ao longo da segunda metade do que se foi (Agualusa, 2002: 248, 282); e é
século XX, até aos massacres de Luanda, os outro angolano, Euclides Matoso da Câmara,
tais que liquidam a ilusão de que as eleições negro e anão, jornalista, que acompanha e
de Setembro de 1992 poderiam ter contri- observa mais de perto este percurso terminal.
buído para a resolução pacífica da luta pelo No romance mais recente, saído em 2004,
poder. Avaliada do seu lugar de observação, O Vendedor de Passados, a acção regressa
Angola morre às mãos do tribalismo, das a Luanda. Remexendo em feridas por sarar,
várias formas de racismo, do mercenarismo designadamente as lutas entre facções do
e da corrupção, do exercício brutal do poder MPLA, o esmagamento do golpe de Nito
e da força, e também morre às mãos da Alves em 1997 e a perseguição implacável
demissão, da indiferença, do refúgio num da direcção do partido aos nitistas. O pro-
modo de sobrevivência feito do desenrascanço tagonista Félix Ventura vive de inventar
e dos pequenos prazeres. A guerra existe e passados e os seus clientes são habitualmen-
destrói porque os beligerantes, tão contrários te figuras da nomenclatura do regime, que
na retórica ideológica, reclamando-se uns da querem retocar as genealogias pessoais e
África profunda e tribal, outro do ambiente familiares, para rasurar pontos negativos ou
urbano, estão afinal irmanados na mesma compor ilustrações nobilitantes. Vale por
sanha sanguinária e no mesmo ódio às pessoas todas a figura do Ministro, assim chamado,
e à sua liberdade. cuja origem Ventura fará ficticiamente remon-
52 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

tar até ao próprio Salvador Correia de Sá, imaginaram a nova nação? Parece destruído
herói da reconquista de Luanda aos holan- inapelavelmente pela guerra, o ódio, a opres-
deses, no já longínquo século XVII. Mas são, o desvario, a crueldade feita poder.
como, perturba-se o Ministro, esse não é um Parece desapossado de futuro ou sequer
colonialista, por isso mesmo apeado do esperança, seja na demência da guerra civil,
patronato do liceu da capital? Que não, seja no inferno totalitário, seja na hipócrita
sossega-o o inventor, Correia de Sá vinha do pacificação de agora. As identidades pare-
Brasil, não de Portugal, e até se ligou, é certo cem, pois, ou perdidas, vergadas ao peso da
que por via de adultério e concubinato, às falsidade e do simulacro, ou fechadas no
negras de Angola. Qual quê, brada então o círculo dos tribalismos mutuamente exclusi-
Ministro, é preciso repor a honra perdida de vos que as torna, como diz Maalouf (1999),
Correia de Sá, afinal combatente “assassinas”.
internacionalista (por ser brasileiro) e Esta não é, todavia, a única linha de
anticolonialista (por ter expulsado os holan- aproximação à questão das identidades que
deses), além de, doravante, “afro-ascenden- entrevejo na ficção de Agualusa. Há uma
te”, visto que ficará sendo a origem da ilustre segunda linha: a que parte da inquietação que
árvore cujo actual fruto é ele próprio, o não se conforma com destinos de injustiça
Ministro (Agualusa, 2004: 143). Neste sar- e imagina outras possibilidades. A que pensa
casmo está condensada a denúncia da clique “Angola, nossa mãe dolorosa e ofendida”
a que desgraçadamente Angola se encontra (Agualusa, 1992: 42), marcada secularmen-
sujeita. Não chegam, porém, ao Ministro, uns te, desde os fins de Quatrocentos, pela
tais louros do passado: quer publicar a condição da escravatura, a pensa também
autobiografia, Memórias de um Combatente, como matriz, também como fundura, como
e dela se encarrega Ventura, que é preciso força subterrânea, como amplidão de terri-
transformar a ínvia ascensão de uma perso- tórios, paisagens, imaginários. À intrusão
nagem obscura, cobarde, oportunista e ligada colonial, à enorme ferida que os europeus
a negócios mal-afamados, na gloriosa “vida abrem e rasgam no espaço e na história
de um combatente” (Agualusa, 2004: 163- africana, os angolenses de A Conjura con-
167). trapõem a força ancestral do seu continente,
É este o ofício de Ventura; mas por causa o que há nele de fecundo, pletórico,
do ofício será demandado por um “estran- perturbador e indomável. É dessa força que,
geiro”, nascido em Portugal, que também mulatos que são, feitos de cruzamento, novos
quer um passado: um passado novo, que protagonistas nem inteiramente negros nem
Ventura lhe procura e tece, e que ele in- brancos, é dessa força que querem ser, por
corpora com tal força que o inventor aca- assim dizer, representantes, intermediando o
bará confrontado com a “realidade” da sua incontornável relacionamento dela com a
invenção. Ora, quem assim tão desespe- civilização económica e técnica da moder-
radamente procura reescrever a sua raiz é nidade europeia.
na verdade um tal Pedro Gouveia, envol-
vido no golpe de 1977, preso às ordens da “Eu penso [diz Severino, um dos
facção de Agostinho Neto e sujeito a cas- heróis da conspiração] que a força e
tigos tão bárbaros quanto a tortura da filha a originalidade de um genuíno roman-
recém-nascida e o assassinato da mulher. O ce angolense só se poderá conseguir
torcionário é um chamado Reis, então agente através da sábia mistura entre o
da segurança do Estado e, agora, com a imaginário e a realidade. Porque é
suposta normalização democrática do regi- assim que nós somos” (Agualusa,
me, deitado fora, tornado de agente em “ex- 1998: 128-129).
gente”, mendigo e sem abrigo refugiado
numa sarjeta (Agualusa, 2004: 183-190). Protagonistas do que está no meio,
Onde está, portanto, o país sonhado pelos irredutível a oposições polares, e pode mediar,
conspiradores angolenses do fim do século articulando os contrários e fazendo comuni-
XIX, pelos resistentes da guerra contra o car os diferentes, hão-de ser também, em
colonialismo, pelos poetas e artistas que Nação Crioula: a Correspondência Secreta
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 53

de Fradique Mendes, o Fradique queirosiano, das. Portadores, assim, da possibilidade de


moderno e dandy, curioso insaciável e vi- recriação de pertenças múltiplas e abertas (uso
ajante incansável, cidadão que se quer do adequadamente os termos de Maalouf, 1999).
mundo, que Agualusa brilhantemente imagi- Lídia do Carmo Ferreira, de quem o jovem
na descobridor e amante de Angola, e a negra narrador de Estação das Chuvas se quer fazer
Ana Olímpia, filha de uma escrava e de um biógrafo, é uma delas, não encerrável nos
príncipe congolês, de quem ele se enamora. círculos fechados que odeiam a alteridade,
“Os negros carregam o Brasil” (Agualusa, defensora, mesmo no mais aceso dos com-
2003b: 86), o suor e o sangue da África bates intelectuais de Senghor ou Pinto de
escravizada fazem o Brasil – é com esta Andrade pela “negritude”, da abertura à
questão que o cosmopolita Fradique se verá, diversidade do mundo e à fecundidade da
afinal, confrontado. Começa por aportar a comunicação (Agualusa, 2003a: 81-86). N’O
Luanda, em 1868, aventureiro em busca de Vendedor de Passados, Ventura é um negro
uma daquelas combinações de ordem e sin- albino, outro inclassificável, pois, outro
gularidade de que Eça o havia feito paladino. excêntrico ao jogo de mesmidades mutuamen-
África, atracção irresistível para tantos, te exclusivas. E, se Pedro Gouveia, o per-
prendê-lo-á. Porém, o tráfico de escravos seguido do regime, se fez fotógrafo de correr
rumo ao Brasil, já clandestino por causa da mundo, de guerra em guerra, já Angélica, a
proibição imposta pelos ingleses, massacra sua filha torturada em bebé, fotógrafa tam-
e, ao mesmo tempo, embaraça os africanos, bém, prefere olhar o céu e fixar-se em
alguns dos quais desse tráfico vivem. A paisagens, em nuvens – em esperança. Vários
própria Ana Olímpia casará com um negrei- contos de Catálogo das Sombras (Agualusa,
ro angolense. Mas, quando enviúva, aperce- 2003c) falam igualmente desta gente que
be-se de que este se havia esquecido de escapa à reprodução das ideias e linhagens
alforriá-la e cai outra vez na condição de feitas e desse escape faz sementeira de novas
escrava. Fradique participará na aventura da ideias e linhagens: o projeccionista de cine-
sua libertação, fugindo com ela para o Brasil, ma, de ascendência russa, que continua a
onde contactará com os círculos abolicionistas deambular pela Angola mergulhada em guerra
e da sua causa se tornará combatente. É esta civil; o pescador brasileiro, amante de lite-
sua condição cosmopolita, de quem sempre ratura; o pernambucano preguiçoso que à
se encontra disponível para articular as coisas, guerra contrapõe o ócio, “não sei de cólera
para percorrer as distâncias, físicas, históri- que resista ao balanço de uma cadeira”
cas e culturais, quem viaja, encontra, des- (Agualusa, 2003c: 131), etc. E é da mesma
cobre, que lhe permite ligar vários mundos incapacidade de fixar rigidamente, num
e dessa ligação construir uma identidade estereótipo, a complexidade dinâmica da vida
pessoal múltipla. E é esta identidade que lhe que nos fala o escritor, “estranho em Goa”,
permite sopesar, a partir de pontos de vista em busca de traços da presença portuguesa
mais amplos, o valor e a desvalia recíprocos e da ausência-presente desse lugar que talvez
da civilização ocidental moderna que é a sua, não exista, chamado Angola, mas que, por-
do Portugal-país e nação que é o seu (com que, o acompanha a todo o lado (Agualusa,
as virtudes e os defeitos que discute ao 2000).
almoço com Eça, certa tarde de Lisboa, cf. Recorro novamente ao texto de Amin
Agualusa, 2003b: 107-108), da África e do Maalouf: às “identidades assassinas” não se
Brasil aparentemente tão distantes da sua opõe a vã pretensão de não haver identidades
formação e interesses, e afinal, sugere colectivas, consolidadas e influentes; opõe-
Agualusa, tão pertinentemente motivos e se sim a valorização dessas”“identidades
facilitadores de uma compreensão fazedora compósitas”, feitas de “múltiplas pertenças”,
de futuros. que são afinal o que melhor nos caracteriza
Outros personagens das narrativas de como humanos, frutos de múltiplos encon-
Agualusa compartilharão esta condição de tros de cultura mais do que afiliados à forma
mediadores, de produtos e agentes de encon- monista do discurso da identidade “autênti-
tro e mistura, e portanto de resistência ao ca” (Maalouf, 1999: 41-47). Ao fim e ao cabo,
encerramento em pertenças únicas e fecha- construindo uma ficção que gira em torno
54 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

da exploração das travessias”– sendo como estão sempre a reinvestir de sentido as


é radicalmente intertextual, literatura sobre identidades e que se confrontam umas com
a literatura e literatura sobre a história, a as outras na variável determinação das suas
viagem, a deslocação, as deambulações por significações?
diferentes territórios e culturas e os textos Se isto aceitarmos, então teremos de
que delas resultam – Agualusa, escritor aceitar que as identidades estão envoltas numa
multicultural, como alguns diriam com ên- espiral discursiva: as identidades como tex-
fase, propõe-nos também uma via de apro- tos só são apercebidas a partir de sucessivos
ximação à identidade e ao futuro de África textos sobre identidades. O que é o discurso
e dos mundos que com África dialogam. identitário, seja de que sujeito colectivo for
Aproximação feita da valorização da — um grupo, uma classe, uma instituição,
pluralidade, da alteridade e, a bem dizer, do uma sociedade, uma religião, uma civiliza-
carácter inclassificável, não-enclausurável, de ção — é indissociável do que são os dis-
cada um de nós, sempre–“misturas”, espe- cursos sobre esse discurso identitário, as
remos que “sábias”, como queriam o con- interpelações, recriações, re-presentações
jurado Severino de Sousa e a poeta Lídia do constantemente operadas a partir dele, sobre
Carmo Ferreira. Ou, como certo amigo do ele.
escritor, oficialmente perguntado sobre a sua Na espiral discursiva, no encadeamento
raça: de textos sobre textos – a que também
pertencem, ao contrário do que julgam
“A minha raça? Ponha raça melho- aqueles que reivindicam uma exterioridade
rada, por favor” (Agualusa, 2003d: objectivista, as interpretações históricas,
71). antropológicas e sociológicas acerca das
dinâmicas sociais da identidade – os discur-
Esta via não faz sentido sem a outra, a sos literários ocupam um lugar de relevo. Por
denúncia e o pronunciamento crítico, a re- várias razões, interessando-nos aqui, pelo
volta perante a África ou o Brasil “dolorosos menos, quatro. Por uma questão de densi-
e ofendidos” pela exploração colonial, os dade textual: valem por si próprios, são
racismos, as desigualdades, a violência ur- representações simbólicas que detêm a sua
bana ou tribal. Mas, críticos e às vezes mesmo espessura própria, não se podendo reduzir à
profetas, os escritores não são ainda cons- lógica testemunhal, porque são uma ordem
trutores de possibilidades, proponentes de significante em si própria. Por uma questão
caminhos-outros? E não é essa uma sua de riqueza significativa: a polivalência e a
função essencial, enquanto intelectuais? abertura interpretativa características das
práticas e das obras simbólicas redobram-se
5. Lusofonia como espaço de pertenças no e pelo trabalho literário sobre linguagens,
múltiplas ideias e emoções, assim gerando uma
pluralidade de aproximações de segundo grau.
Não é possível falar sobre a acção social Por uma questão de capacidade interpelativa:
sem falar sobre as identidades sociais: como o poder de problematização da literatura é
compreenderíamos a relação entre estruturas enorme, na medida em que a sua aproxima-
e práticas se não a focássemos também do ção ao real mobiliza o trabalho específico
lado dos sentidos que, sobre si próprios e de criação da língua literária e a relação
os outros, as pessoas e os grupos que elas original com o conjunto dos textos
formam estão constantemente a construir e constitutivos da(s) história(s) e património(s)
reconstruir? Não é possível falar sobre iden- literários. Por uma questão de configuração
tidades sem considerá-las também como de possibilidades: quem senão o escritor pode
“textos sociais” (Alexander & Smith, 1998: explorar sem limites as possibilidades ins-
108-109, 113-115): se incorrêssemos no erro critas ou imagináveis nas coisas e nos seres
de atribuir-lhes significados genuínos, rígi- e nas respectivas ligações? Porque não há-
dos e estáticos, como evitaríamos as derivas de o médico Ricardo Reis, emigrado no Rio
essencialistas, como daríamos conta da com- de Janeiro, voltar a Lisboa quando sabe da
plexidade e pluralidade das interpretações que morte do seu amigo Fernando Pessoa e aí
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 55

ver-se envolvido no ambiente já sufocante elas o vivem), é necessariamente discorrer


da ditadura salazarista, desmentindo afinal a sobre a sua interrelação: uma, Portugal, deixa
sua própria máxima de “sábio é o que se de ser a potência colonial das outras,
contenta com o espectáculo do mundo” Moçambique e Angola, todas se articulam,
(Saramago, 1984)? E porque é que esse embora de diferentes maneiras, com nações
compulsivo indagador dos terrenos em que histórico-culturalmente próximas, como Por-
a razão se faz mistério e o mistério, razão, tugal e Angola com o Brasil e Moçambique
chamado Fernando Pessoa, não haveria de com parte da Índia, e com outros países e
interessar-se pelo candomblé brasileiro povos estão envolvidas num espaço de lín-
(Agualusa, 2003c: 11-27)? gua comum e numa história de
Não se peça à literatura o que ela não (des)encontros, que, um pouco mais tarde,
pode nem deve dar; ela não é uma expli- alguns anos passados sobre o trauma da
cação “total” do mundo. Nem se aprisione descolonização, tenderão a imaginar e ante-
o texto literário numa espécie de revelador cipar como uma espécie de pertença parti-
sociológico, um “reflexo” mais ou menos lhada, penhor dado por todos, a “lusofonia”.
elaborado e oblíquo do real. Mas perceba- Peçamos, por fim, a três escritores, singu-
se melhor, com a ajuda da literatura, e em lares em cada um dos três países, Portugal,
particular das indagações literárias sobre Moçambique e Angola, a permissão de usar
questões de identidade, como as identidades como pretexto e texto de exercício as res-
são processos: realidades dinâmicas, comple- pectivas obras. Poderiam ser outros, mas
xas, abertas, múltiplas, plurais, regularmente chegarão estes, o português Almeida Faria,
construídas e desconstruídas e reconstruídas, o moçambicano Mia Couto e o angolano-
incorporadas e transformadas por diversos cidadão do mundo José Eduardo Agualusa
sujeitos em diversos contextos e de muito — que se trata apenas de defender, junto de
diversas formas. É quando o que está afinal quem saiba fazê-lo, a enorme vantagem de
em jogo é o jogo das identidades – o que incorporar a análise literária das suas obras
se é e como se é, onde e com quem se está, numa análise cultural mais geral.
o que se quer e projecta ser – que o discurso São suficientemente contrastantes entre si
literário pode sobremaneira iluminar, desa- para que a deambulação entre eles seja
fiando-o, o labor interpretativo da sociologia produtiva. Mas também são suficientemente
cultural. centrados sobre a temática que nos ocupa,
Ora, consideremos situações de crise, a interpelação sobre histórias e identidades
ruptura e passagem, de que pode vir a surgir colectivas, sobre os recursos e os projectos
algo de novo, a democracia num país culturais das gentes. Intersectam-se, desafi-
longamente estabelecido, como o Portugal dos am-se várias vezes as suas elaborações. Não
meados da década de 1970, a própria in- é sociologia”da literatura que sobre eles, a
dependência e constituição de novos Esta- propósito deles quereremos fazer: mesmo
dos, como nas principais possessões coloni- quando consegue sair da arcaica imagem da
ais portuguesas de então, Angola e literatura como reflexo, representação, cons-
Moçambique, e novos quadros e modos de ciência de uma realidade histórico-social
relacionamento entre um e outros. Sondemos sempre outra e sempre precedente sobre o
o que se passa com a ajuda dos olhos e das corpo literário propriamente dito, mesmo
expressões de escritores, não como se eles quando consegue ao menos compreender os
fossem repórteres ou informantes, mas sim escritores e as obras por relação com o seu
como o que são: criadores que, a esse material próprio campo intelectual e por aí mediar e
eventualmente literário que são as encruzi- afinar a sua articulação ao campo social mais
lhadas da história, do presente e do futuro geral, mesmo quando consegue superar o
de tais nações, aplicam as suas biografismo e tratar os textos, mais do que
mundividências, os seus imaginários, as artes os autores, e as redes, mais do que os
próprias. Retenhamos que discorrer literari- indivíduos, como objecto de análise, a “ex-
amente sobre cada um desses “casos”, do plicação” sociológica da literatura sabe sem-
ponto de vista das identidades (o que vai pre a pouco, fica sempre presa, de forma
sucedendo a essas comunidades e como é que manifesta ou larvar, do reducionismo. Aqui,
56 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

não se trata de ir por tal caminho: não se E, se acompanharmos José Eduardo Agualusa
trata de fazer sociologia sobre a literatura, no seu próprio percurso cultural através do
mas de fazer sociologia com a literatura. Isto espaço lusófono, por terras e tempos de
é, usar esta obra ou este conjunto de obras Angola, de Portugal e do Brasil (ou do que
como uma interpretação com que se pode e resta em Goa), cosmopolitismo quer dizer
deve confrontar – e alimentar, e enriquecer uma coisa radicalmente diferente, quer dizer
— a interpretação sociológica. Não é, pois, abertura, travessia transfronteiriça,
um objecto, é um texto que podemos con- deambulação, comunicação recíproca,
siderar na tessitura do nosso próprio texto interculturalidade, e as identidades portado-
sociológico, um e outro texto construídos ras de futuro são as que se compõem de
sobre esses textos que são, por serem vívidos múltiplas origens, pertenças e projectos, e por
de sentido, e pelo menos nas suas dimensões isso não são enclausuráveis em círculos
simbólicas, os processos sociais. fechados ou descrições monocromáticas, são,
Mas se é assim, se pode ser assim, então a bem dizer, inclassificáveis, são identidades
não se evitará outra consequência: é que os do meio, da mistura, e por aí, ao menos
textos produzem realidade, não exprimem só, potencialmente, da mediação.
produzem realidade, criam factos, determi- E, contudo, todas três são obras de
nam ideias e emoções, orientam a acção. amargura e desencanto, e também de denún-
Neste sentido, o diálogo entre os textos cia e violento sarcasmo contra a injustiça,
sociológicos ou antropológicos e os textos o horror ou a estupidez. O que é típico do
literários também produz realidade: e, no caso labor literário, quer dizer, criativo, é ao
vertente, produz realidade acerca e a propó- mesmo tempo imaginar possibilidades, cami-
sito das identidades culturais. nhos-outros. Ora, não é isto, propor possi-
Sumariando temerariamente o que ficou bilidades, que define a criação cultural? Não
visto ser complexo, dir-se-á que o olhar que é isto também o que define a relação entre
Almeida Faria projecta sobre a revolução a criação cultural e a intervenção pública,
portuguesa sobre-evidencia a desvalia estru- de que quer dar conta, desde o fim do século
tural do país e da sua gente, que continuam XIX, a ideia do intelectual? Não será isto
“mínimos”, porque avessos à modernidade que poderá ser, apesar ou para além da
e ao cosmopolitismo, encerrados na triste solenidade ritual ou do interesse táctico, a
história da pequenez mal disfarçada. O lusofonia – como espaço multicultural de
verdadeiro “Cavaleiro Andante” não será, comunicação intercultural, estruturado por
contudo, o JC distanciado e crítico, mas o aquilo que, como escreveu Eduardo Louren-
seu irmão mais velho, o tal que tentou refazer, ço (1999: 164), os portugueses “que perde-
agora em sentido positivo, o trajecto histó- ram tudo (perdendo-se no tudo com que se
rico de Portugal para o Brasil e África, no encontraram)” não perderam, a língua? E, se
reverso do que fazia a grande torrente dos for isso, não será enfim baseada numa forma
ex-colonos “retornados”, e em África aca- mais densa, mais abrangente de
baria por encontrar, apenas, a morte. Se o cosmopolitismo, como abertura, como traves-
olhar for o de Mia Couto e projectar-se sobre sia, como comunicação além-fronteiras e
o tumultuoso parto da nação moçambicana, ligação entre territórios? E, se for isso, não
então o que fica em destaque é o valor do se encontrará assim um novo sentido para
que a história chã das pessoas comuns, dos a história comum e tomada, criticamente, por
seus lugares, territórios, paisagens, costumes, inteiro – um sentido que nos projecte para
tradições, numa palavra, a sua cultura, foi lá das imagens simétricas e simetricamente
consolidando e é o principal meio de resis- distorcidas da culpa irredimível da predação
tência contra os vários males que afligem colonial e da variante doce de um
Moçambique (miopia ocidental incluída), bem colonialismo rasurado em encontro e singu-
como quase único factor de esperança. Aí, laridade “luso-tropical” (cf. Almeida, 2000:
é a raiz que segura e acalenta, de cada um 161-184)? E não se resgatará enfim o sonho
fazendo um ser de parte inteira (“cada homem do indiano Surendra, de Terra Sonâmbula,
é uma raça”, Couto, 1990) e de cada povo pertencer não aos continentes separados mas
uma comunidade de percurso e imaginação. ao oceano que os une (Couto, 1992: 26)?
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 57

Já ouço os analistas da literatura a fus- do pescador de um belo conto de Agualusa


tigar o primarismo da abordagem que (2003c: 97-101): “se nada mais der certo, leia
esquematizei. Se o problema é a incompe- Clarice”. Lispector, obviamente. Mas gene-
tência própria, não ficarei preocupado, quem
ralizarei por minha conta: se, na compreen-
sabe suprirá a falta. Ouvirei com maior
inquietação as críticas dos sociólogos que são das identidades e na projecção da
achem inútil, supérfluo ou até impertinente lusofonia, nada mais der certo, leiam a li-
o diálogo com a literatura. Perante esses, teratura dos autores que se exprimem em
posso apenas fazer minha a recomendação português.
58 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia Couto, Mia (1994): Estórias


Abensonhadas, Lisboa: Caminho.
Agualusa, José Eduardo (1992): A Feira Couto, Mia (1996): A Varanda do
dos Assombrados, Lisboa: Vega. Frangipani, Lisboa: Caminho.
Agualusa, José Eduardo (1998): A Con- Couto, Mia (1997): Contos do Nascer da
jura [1989], reed., Lisboa: Dom Quixote. Terra, Lisboa: Caminho.
Agualusa, José Eduardo (2000): Um Couto, Mia (1999): Vinte e Zinco, Lis-
Estranho em Goa, Lisboa: Cotovia/Fundação boa: Caminho.
Oriente. Couto, Mia (2000): O Último Voo do
Agualusa, José Eduardo (2002): O Ano
Flamingo, Lisboa: Caminho.
em que Zumbi Tomou o Rio, Lisboa: Dom
Couto, Mia (2002): Um Rio Chamado
Quixote.
Tempo, uma Casa Chamada Terra, Lisboa:
Agualusa, José Eduardo (2003a): Esta-
Caminho.
ção das Chuvas [1996], 6.ª ed., Lisboa: Dom
Quixote. Couto, Mia (2004): O Fio das Missangas,
Agualusa, José Eduardo (2003b): Nação Lisboa: Caminho.
Crioula: a Correspondência Secreta de Faria, Almeida (1976): A Paixão [1963],
Fradique Mendes [1997], reed., Porto: Público. 3ª ed. rev., Lisboa: Estampa.
Agualusa, José Eduardo (2003c): Catá- Faria, Almeida (1978): Cortes, Lisboa:
logo de Sombras, Lisboa: Dom Quixote. Dom Quixote.
Agualusa, José Eduardo (2003d): A Faria, Almeida (1980): Lusitânia, Lisboa:
Substância do Amor e Outras Crónicas Edições 70, 1980.
[2000], 2ª ed., Lisboa: Dom Quixote. Faria, Almeida (1983): Cavaleiro Andan-
Agualusa, José Eduardo (2004): O Ven- te, Lisboa: Imprensa Nacional.
dedor de Passados, Lisboa: Dom Quixote. Leal, João (2000): Etnografias Portugue-
Alexander, Jeffrey & Smith, Philip sas (1870-1970): Cultura Popular e Identi-
(1998): dade Nacional, Lisboa: Dom Quixote, 2000.
“Sociologie culturelle ou sociologie de la Lourenço, Eduardo (1999): A Nau de
culture? Um programme fort pour donner à Ícaro, Seguido de Imagem e Miragem da
la sociologie son second souffle”, Sociologie Lusofonia, Lisboa: Gradiva.
et Sociétés, XXX (1) : 107-1 16. Maalouf, Amin (1999):
Almeida, Miguel Vale de (2000) :Um Mar As Identidades Assassinas [1998], trad.,
da Cor da Terra: Raça, Cultura e Política Lisboa: Difel.
da Identidade, Oeiras: Celta Editora.
Saramago, José (1984): O Ano da Morte
Almeida, Onésimo Teotónio (2001):
de Ricardo Reis, Lisboa: Caminho.
“Identidade nacional – algumas achegas ao
Silva, Augusto Santos (1994): Tempos
debate português”, Semear. Revista da Cá-
Cruzados: um Estudo Interpretativo da
tedra Padre António Vieira de Estudos
Portugueses, 5: 151-165. Cultura Popular, Porto: Afrontamento.
Costa, António Firmino da (1999): So- Silva, Augusto Santos (1999): Parte
ciedade de Bairro: Dinâmicas Sociais da Devida: Intervenções Públicas, 1992-1998,
Identidade Cultural, Oeiras: Celta. Porto: Afrontamento.
Couto, Mia (1987): Vozes Anoitecidas
[1986], 3ª ed. (1ª portuguesa), Lisboa: Ca-
minho. _______________________________
1
O texto desenvolve a Conferência proferida
Couto, Mia (1990): Cada Homem é uma
na Sessão Plenária inaugural do VI Lusocom, em
Raça, Lisboa: Caminho. 21 de Abril de 2004, subordinada ao tema “Co-
Couto, Mia (1992): Terra Sonâmbula, municação e Identidades”.
Lisboa: Caminho. 2
Faculdade de Economia da Universidade do Porto.
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 59

Desafios da comunicação lusófona na globalização1


Antonio Teixeira de Barros2

“A língua sempre foi a O Instituto foi criado em novembro de


companheira do império” 1989 pelos chefes de Estado dos países
(Antonio de Nebrija, lusófonos reunidos na cidade de São Luís,
A Conquista da América) estado do Maranhão, no final do Governo
Sarney. A CPLP teve na sua última fase a
Introdução participação enfática do embaixador brasilei-
ro em Lisboa, José Aparecido de Oliveira.
A lusofonia exerceu um papel impor- Após sua criação, multiplicaram-se nos úl-
tante na globalização, desde os grandes em- timos anos as diligências diplomáticas, com
preendimentos náuticos que resultaram na vistas à cooperação técnica, política e cul-
colonização do Brasil e da África. Mais de tural e a dinamização econômico-social dos
500 anos depois, o tema continua relevan- países lusófonos.
te, com novos desafios para a reflexão aca- A cultura lusófona é o resultado da mescla
dêmica, a começar pela própria noção de cultural ocorrida ao longo de séculos dos
lusofonia. Pode-se conceituar lusofonia povos que ocuparam o centro-oeste da Pe-
como um “sistema de comunicação nínsula Ibérica, região dominada pelos ro-
lingüístico e cultural na língua portuguesa manos (séc. II a.C), que recebeu o nome de
e suas variedades lingüísticas, geográficas Lusitânia, em homenagem a Lusus, filho de
e sociais, pertencentes a vários povos de Liber, antigo deus do vinho dos povos itá-
que dela é instrumento de expressão licos. O habitante da Lusitânia era então
materna ou oficial.” (Cristóvão, 1999, chamado de lusitânus (em latim), isto é
p.10). Oficialmente, fazem parte desse lusitano/a, ou simplesmente luso/a. A expres-
sistema sete países: Portugal, Brasil, An- são Lusíada/s foi criada por Luís de Camões
gola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné- (século XVI), ao descrever a viagem de Vasco
Bissau e São Tomé e Príncipe. Há, ainda, da Gama às Índias, associando-o a Ulisses,
alguns dos antigos territórios portugueses o herói grego e sua obra Os Lusíadas à Ilíada
da Índia, da China e da Malásia que não de Homero. Luso, o herói mitológico fun-
falam o Português oficialmente, mas usam dador da Lusitânia, seria o filho de Baco,
a língua. São eles: Macau, Timor e Goa. o deus grego do vinho, correspondente a Liber
No total, são mais de 200 milhões de na mitologia itálica.
falantes da língua portuguesa. Em 1139, o pequeno Condado de Portus
A institucionalização da comunidade de Cales ou Porto de Cale, devido à vitória de
língua lusófona deu-se em Maio de 1986 com Afonso Henriques contra os califados árabes,
o Acordo Ortográfico, assinado pelos repre- que por séculos haviam dominado o sul da
sentantes dos setes países lusófonos, reuni- Península Ibérica, não só expandiu seu ter-
dos na Academia Brasileira de Letras, no Rio ritório como se tornou independente do Reino
de Janeiro. Com a necessidade da criação de de Castela, tornando-se o Reino de Portugal.
suportes necessários para o fortalecimento da Como o novo Estado se constituiu no antigo
identidade lusófona, o estabelecimento do território da Lusitânia, português é sinônimo
diálogo interno e a reivindicação internaci- de lusitano e quem fala português é lusófono.
onal, surgem duas organizações, voltadas para Mas a cultura lusófona não se esgota na
o intercâmbio e a união de esforços: o geocultura portuguesa, mas se desdobra em
Instituto Internacional da Língua Portuguesa várias outras geoculturas lusófonas.
e a Comunidade dos Povos da Língua Hoje, na chamada sociedade global ou
Portuguesa, conhecida como CPLP. globalizada, a lusofonia enfrenta diversos
60 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

desafios. Neste paper, não trataremos de todo safio epistemológico imposto às Ciências da
o sistema de cultura lusófono, mas de uma Comunicação pela chamada globalização das
aspecto específico: a configuração do campo tecnologias de informação é que proporci-
acadêmico da Comunicação e do sistema de onou uma ruptura com tais modelos
mídia. globalizantes. Significa dizer, portanto, que
a lógica do global é que gerou a necessidade
O campo da comunicação na comunidade de estudos particularizantes. O global impul-
lusófona sionou o local. Um exemplo são as pesquisas
de campo, os estudos de casos e as análises
A expansão das tecnologias de informa- mais específicas e contextualizadas, ao con-
ção e suas influências nas práticas midiáticas trário das análises teóricas no estilo
gestou um novo desafio epistemológico para frankfurtiano, ou seja, demaisadamente
as Ciências da Comunicação, a partir do abrangentes, sem base empírica.
estudo da mídia globalizada. Até então, os
estudos midiáticos tinham como referência Sociedade global e a comunicação lusófona
básica as sociedades nacionais e seu sistema
de indústria cultural. Tal fenômeno constitui A globalização é vista sob diversos pris-
herança direta do campo das Ciências So- mas. Para alguns a solução mágica para os
ciais, o qual talvez tenha exercido a maior problemas de comunicação do mundo, inclu-
influência na lógica, no arcabouço teórico e sive dos países da CPLP. Para outros, ao
na metodologia nas pesquisas comunica- mesmo tempo que a sociedade globalizada
cionais. traz benefícios para os indivíduos e as ins-
Em muitos casos, os próprios cientistas tituições sociais, também impõe problemas
sociais foram protagonistas das pesquisas. Tal de difícil solução. Um desses problemas é
influência, apesar de suas contribuições, a globalização de alguns idiomas e sua
também acarretou muitos equívocos. Em consequente supervalorização, em detrimen-
primeiro lugar, pode-se destacar a transferên- to de outros, a exemplo do que ocorre com
cia direta de conceitos e a transposição quase o inglês e o português.
literal das práticas de pesquisa daquele Essa questão não é recente. Como diz
campo. Neste sentido, houve uma avalanche Antonio de Nebrija (1983, p.120), “a língua
de estudos que podem ser caracterizados sempre foi a companheira do império”. A
como leituras sobre a Comunicação e não história nos fornece vários exemplos, passan-
estudos de Comunicação propriamente ditos. do por Napoleão III, que controlou
Em segundo lugar, o sistema nacional de rigorosomente o telégrafo e a imprensa
indústria cultural é estudado nos limites nacional, Salazar, em Portugal, Mussolini na
conceituais e metodológicos do próprio Itália, Hitler, na Alemanha e Getúlio Vargas
campo das Ciências Sociais, o que acarretou, no Brasil. A propósito, os países da CPLP,
na maioria das vezes, pesquisas sobre os ainda hoje, constituem exemplos
efeitos e impactos da mídia em comunidades emblemáticos de tal controle, como Angola,
localizadas. Finalmente, cabe destacar a Moçambique, Nova Guiné e Timor Leste.
generalização resultante das duas tendências Ademais, a experiência democrática parece
anteriores. O termo “indústria cultural” ou ser comum apenas entre Portugal e Brasil,
“mídia” tornou-se uma denominação aplicá- embora, de ambos os lados, seja recente.
vel a qualquer forma de comunicação me- Hoje, a mídia é a instituição que perso-
diada, ignorando as epecificidades de cada nifica o poder de controlar o idioma e colocá-
modalidade de comunicação, com suas lin- lo a serviço do poder. Como analisa Octávio
guagens específicas e características peculi- Ianni (1997), sobretudo a mídia eletrônica
ares. assume multifacetados papéis. Dependendo
Contraditoriamente, o quadro de referên- do ponto de vista, ela pode ser identificada
cia de análise que tinha por base as soci- como um “singular e insólito intelectual
edades nacionais, o que pode sugerir parti- orgânico”, ao articular “as organizações e
cularização, gerou modelos de análise empresas transnacionais predominantes nas
globalizantes. A mudança causada pelo de- relações, nos processos e nas estruturas de
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 61

dominação política e apropriação econômica originais (sobretudo no caso dos cursos de


que tecem o mundo, em conformidade com pós-graduação).
a ‘nova ordem econômica mundial’, ou as Essa idéia remete ao papel dos intelec-
novas geopolíticas regionais e mundiais” tuais, como “operários da língua”. No con-
(Ianni, 1997, p.95). Mas, pode ser identificada texto da chamada “aldeia global”, como
como o “novo príncipe”, no contexto da chama a atenção Octávio Ianni, dentre todos
modernidade-mundo. Se o príncipe de os elementos que se mobilizam na organi-
Maquiavel era tido como um indivíduo zação da aldeia global, logo sobressai a
excepcional, dotado de virtu (talento moral categoria dos intelectuais, pois
e político) e de fortuna (capacidade de
aproveitar as condições e possibilidades “são eles que pensam os meios e
emergentes na vida política de um reino), modos de operação de todo e de suas
hoje, como diz o próprio autor, “ o moderno partes, colaborando para que se ar-
príncipe, o mito-príncipe” não pode ser uma ticulem dinamicamente, de modo a
pessoa real, um indivíduo concreto; só pode constituir a aldeia como um sistema
ser “um organismo; um elemento complexo global. São esses intelectuais que
da sociedade no qual tenha se iniciado a promovem a tradução da organização
concretização de uma vontade coletiva reco- e dinâmica das forças sociais,
nhecida e fundamentada parcialmente na econômicas, políticas e culturais que
ação...” operam em âmbito mundial, transpon-
Nesta ordem de idéias, cabe ressaltar que, do fronteiras, regimes políticos, idi-
atualmente, a “língua do príncipe” é o inglês, omas, religiões, culturas e civilizações.
cuja valorização teve início ainda no século Para isso operam as tecnologias da
XIX, como “a língua do império britânico”. inteligência, cada vez mais indispen-
Tal processo foi acentuado com as duas
sáveis, quando se trata de desenhar,
guerras mundiais, tornando-o idioma do
tecer, colorir, sonorizar e movimentar
império norte-americano e “vulgata da
a aldeia global, traduzindo as confi-
globalização”, “jargão universal” e “língua
gurações e os movimentos da soci-
oficial da aldeia global”, como ressalta
edade mundial” (1997, p.101).
Octávio Ianni. É oportuno destacar ainda que
o inglês é referência para a informática e a
A comunicação lusófona e as relações
eletrônica, elementos essenciais à
Brasil – Portugal
mundialização da cultura. A troca de infor-
mações e idéias, bem como a formação de
símbolos e a construção de imagens passa Segundo o professor José Marques de
pelo crivo da língua inglesa, monopolizando Melo, em seu texto “Lusofonia midiática: a
todas as formas de trocas simbólicas, desde cooperação Brasil-Portugal”3, as relações de
as mercadorias às idéias, das moedas às cooperação entre Brasil e Portugal, no cam-
religiões, sem contar com a filosofia, a po da Comunicação Social, foram
ciência, a tecnologia, o cinema, a música, desencadeadas no âmbito profissional, mais
as artes e praticamente todas as formas de especificamente entre os profissionais de
comunicação e informação. jornalismo, há pouco mais de cem anos. Tal
Mesmo o conhecimento ou as informa- processo teve início com o interesse dos
ções produzidas em outros países ou regiões comunicadores de língua portuguesa em
passam pela tradução para o inglês e, por discutir a tese de que “o exercício profis-
meio deste idioma é que atingem os demais sional da comunicação já não podia conti-
públicos. Isto ocorre, inclusive, nos países nuar sob a égide do amadorismo” (p.1).
de língua lusófona. Como exemplos temos Evidenciava-se, portanto, a “necessidade de
o ensino quase obrigatório de inglês, quando formação sistemática dos produtores das
se trata da aprendizagem de uma segunda informações de atualidade difundidas pela
língua e a bibliografia básica dos cursos de imprensa, tendo em vista a transformação do
graduação e de pós-graduação, seja em ter- jornalismo em atividade industrial” (Id.,
mos de tradução ou da indicação de textos Ibidem).
62 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Essa tese, conforme Marques de Melo, gem a Lisboa para visitar as instituições que
no mesmo texto citado, foi exposta publi- então se dedicavam à pesquisa, documenta-
camente em Lisboa, em 1898, durante o V ção e ao ensino da comunicação social,
Congresso Internacional da Imprensa. Entre- demonstrando o interesse brasileiro na co-
tanto, o Brasil só viria a institucionalizar tal operação lusófona. Os laços se estreitariam
iniciativa quase meio século depois, mais na década de 1980, quando a diretoria da
precisamente em 1947, com a criação do INTERCOM convida o Prof. Adriano Duarte
curso de jornalismo da Universidade Cásper Rodrigues, fundador do Departamento de
Líbero, em convênio com a PUC-SP. Em Comunicação da Universidade Nova de
Portugal, a primeira Licenciatura em Comu- Lisboa para participar do V Congresso
nicação Social seria criada trinta e dois anos Brasileiro de Ciências da Comunicação,
depois, em 1979, na Universidade Nova de realizado em Bertioga, no estado de São
Lisboa e em 1985 a Escola Superior de Paulo.
Jornalismo do Porto. Portanto, enfatiza Em 1986, os professores portugueses
Marques de Melo, a cooperação Brasil-Por- Sebastião José Dinis e Salvato Trigo parti-
tugal, no campo das Ciências da Comuni- cipam de um colóquio em São Paulo, o qual
cação, é muito recente. Segundo ele, a visava ao estabelecimento de bases para a
cooperação “deslancha tão somente quando construção de um Thesaurus da Comunica-
Portugal inicia os primeiros programas de ção para uso nos países de língua portugue-
ensino e pesquisa na área, tanto em Lisboa sa. Entretanto, como registra Marques de
quanto na cidade do Porto” (idem). Antes Melo, do lado português, não houve o mesmo
disso, porém, “houve intercâmbio isolado de interesse no intercâmbio acadêmico. Apenas
experiências entre pesquisadores e profissi- a Escola Superior de Jornalismo, da cidade
onais. A literatura brasileira sobre comuni- do Porto, convidou alguns professores bra-
cação social circulou fartamente em Portu- sileiros - entre eles Mário Erbolato, Erasmo
gal, durante os anos 70”. Entre os autores, Nuzzi e Antonio Costela - para ministrar
destaca-se o próprio Marques de Melo, cujos cursos naquela cidade.
textos foram publicados em espanhol na
revista Informação, Comunicação, Turismo. Congressos e colóquios acadêmicos
Conforme descreve o autor, no texto
supracitado, após a Revolução dos Cravos, No âmbito dos congressos e colóquios
quando o governo português começou a acadêmicos, cabe destacar a realização dos
analisar a possibilidade de criar programas dois Encontros Afro-Luso-Brasileiro de Jor-
universitários para formar jornalistas, convi- nalismo e Literatura realizados em São Paulo
dou o Prof. Fernando Perrone, brasileiro (1983) e na cidade do Porto (1986). Anos
exilado na Europa, que havia sido parceiro depois, em 1992, seria realizado um semi-
de Mário Soares num empreendimento edi- nário sobre História e Jornalismo, por ini-
torial. Os contactos diretos entre os dois ciativa de Celia Freire, com a presença de
países foram conduzidos por iniciativa do um grupo de pesquisadores portugueses. No
próprio José Marques de Melo, a partir da mesmo ano, foi realizado, no Porto, o I
fundação da INTERCOM (Sociedade Brasi- Congresso da Imprensa de Expressão Por-
leira de Estudos Interdisciplinares da Comu- tuguesa, coordenado por Fernando de Sousa.
nicação), em 1977 e mais ainda com a criação O evento contou com a presença de uma
do PORTCOM - Centro de Documentação delegação expressiva de brasileiros: José
da Comunicação nos Países de Língua Marques de Melo, Fernando Perrone, Ana
Portuguesa -, quando a INTERCOM, por Arruda Callado, Celia Freire, João Alves das
meio de seu presidente, José Marques de Neves e Ciro Marcondes Filho.
Melo, procura articular-se com o Centro de Em 1994, foi realizado no Rio de Janei-
Documentação sobre Meios de Comunicação ro, o II Congresso Internacional de Jorna-
mantido pela Presidência da Republica Por- lismo de Língua Portuguesa, sob a coorde-
tuguesa, no Palácio da Foz, em Lisboa. nação acadêmica de José Marques de Melo.
Amanaria Fadul, durante sua gestão na Nessa ocasião, a Revista da INTERCOM
presidência da INTERCOM, faz uma via- dedicou uma edição especial à cooperação
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 63

luso-brasileira, acolhendo artigos de vários A LUSOCOM, criada em 1998, resulta de


cientistas lusófonos. Mas, o marco decisivo iniciativa das duas instituições supracitadas.
para institucionalizar a cooperação luso-bra- Tem como objetivo principal promover o
sileira no campo das Ciências da Comuni- desenvolvimento de estudos das ciências e
cação, segundo Marques de Melo, foi a políticas de comunicação no espaço lusófono.
proposta da INTERCOM para a realização Segundo Marques de Melo, em seu texto
de um Colóquio Luso-Brasileiro de Ciências já citado, sobre lusofonia midiática,
da Comunicação, como evento prévio ao III
Congresso Internacional de Jornalismo de “Se os historiadores e outros estudi-
Língua Portuguesa, organizado pelo Obser- osos do campo das humanidades já
vatório da Imprensa de Lisboa, sob a direção vinham se preparando para resgatar
de Joaquim Vieira, Rui Paulo da Cruz e o significado político-cultural da
Tereza Moutinho. efeméride, em boa hora a
O colóquio, idealizado pelo Prof. Pedro INTERCOM e a SOPCOM se unem
Jorge Brauman, liderado por Bragança de para dar dimensão midiática ao feito
Miranda e coordenado por Isabel Ferrin, foi de Cabral. Sem duvida nenhuma, a
realizado em 1997 e contribuiu para promo- chegada das naves lusitanas, ao lito-
ver o primeiro diálogo sistemático entre 40 ral baiano, em abril de 1500, contri-
pesquisadores brasileiros e 60 portugueses. buiu para o florescimento da idade
Desse encontro nasceu a SOPCOM (Socie- moderna. Tanto Cabral quanto
dade Portuguesa dos Investigadores da Comu- Colombo são protagonistas de um
nicação) e a LUSOCOM (Federação Lusófona movimento histórico que constitui o
das Ciências da Comunicação). O Encontro embrião daquilo hoje rotulado de
Lusófono de Ciências da Comunicação tor- “globalização”. Sua essência é, nada
nar-se-ia o evento oficial da comunicação
mais, nada menos, que a europeização
lusófona, a partir do final da década de 1990.
do mundo”.
Instituições
Do lado brasileiro, cabe destacar a par-
ticipação pioneira do Professor Catedráti-
Cabe destacar o papel de três instituições
co José Marques de Melo, um acadêmico
importantes, agentes do intercâmbio acadê-
entusiasta do intercâmbio científico, desde
mico no campo da Comunicação Lusófona:
sua atuação na Escola de Comunicações e
a Sociedade Brasileira de Estudos
Artes da Universidade de São Paulo até seu
Interdisciplinares da Comunicação
(INTERCOM), a Sociedade Portuguesa de trabalho como titular da Cátedra Unesco
Ciências da Comunicação (SOPCOM) e a Fe- de Comunicação para o Desenvolvimento
deração Lusófona de Ciências da Comuni- Regional, em parceria com a Universidade
cação (LUSOCOM). Metodista de São Paulo, bem sua atuação
Criada em 1977, a INTERCOM passou na ALAIC (Associação Latino-Americana
a integrar os pesquisadores brasileiros da área de Investigadores de la Comunicación) e
de Comunicação e a promover o intercâmbio na Rede de Pesquisa em Folkcomunicação,
com pesquisadores e instituições estrangei- que promoverá neste ano de 2004 a sua
ras. Nesse processo de intercâmbio atenção VII Conferência. Anualmente, em todas as
especial foi destinada aos países latino- Conferências promovidas pela Rede
americanos e ibéricos, destacando-se Portu- (FOLKCOM), desde o ano de 1998, tem
gal. Disso resultou a divulgação da obra de sido privilegiada a relação com pesquisa-
autores portugueses. A própria LUSOCOM dores de países ibéricos e lusófonos (em
é resultado desse processo. especial Portugal) e latinos. No caso da
A SOPCOM, criada em 1997, sob o participação nas conferências Rede
incentivo da INTERCOM, passou a congre- Folkcom, podemos destacar as contribui-
gar os pesquisadores portugueses, com o ções dos seguintes pesquisadores portugue-
intuito de conferir maior visibilidade ao ses: Carlos Nogueira, Jorge Pedro Souza
campo acadêmico da comunicação lusófona. e Luis Humberto Marcos.
64 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia Sousa, Jorge Pedro. Imagens actuais do


Brasil na imprensa portuguesa de grande
Barthes, Roland. Mitologias. Rio de circulação. Disponibilizado no sítio:
Janeiro: Bertrand Brasil, 1993. www.bocc.ubi.pt/pag/sousa-jorge-pedro-ima-
Cristovão, Fernando. A Língua Portugue- gens-brasil.html.
sa, a União Européia, a Lusofonia e a
Interfonia. Lusofonia. Revista da Faculdade
_______________________________
de Letras, n. 21/22, 5ª série, Lisboa: Uni- 1
Conferência proferida na Sessão Plenária de
versidade de Lisboa. 1996-97, p.7-14. Síntese do VI Lusocom, em 22 de Abril de 2004,
Ianni, Octavio. Teorias da Globalização. subordinada ao tema “Lusofonia e Globalização”.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. 2
Instituto de Educação Superior de Brasília
Melo, José Marques de. Lusofonia (IESB).
3
midiática: a cooperação Brasil-Portugal. Texto disponível no site: www.ubista.ubi.pt
- sem data. Para a redação deste tópico, utiliza-
Disponibilizado no sítio: www.ubista.pt/~co-
mos, basicamente, as informações contidas no
mum/melo-marques-lusofonia-midiatica.html. texto do Prof. José Marques de Melo - Lusofonia
Nebrija, Antonio de. A Conquista da midiática: as relações de cooperação entre Brasil
América. Lisboa: Gradiva, 1983. e Portugal.
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 65

A democracia digital e o problema


da participação civil na decisão política1
Wilson Gomes2

O argumento liberal sobre a comunica- cuperação da noção de interesse público no


ção pública interior da comunicação industrial.
A diversidade e renovação dos meios e
O eixo que vincula comunicação de ambientes da comunicação pública produzi-
massas e cidadania já foi objeto de consi- ram equivalente variedade e persistência dos
deração sob diversos aspectos na pesquisa argumentos que vinculam comunicação de
nas áreas de comunicação e ciências sociais. massa e cidadania. Num primeiro momento,
O modo mais típico de consideração desta pareciam repousar no jornalismo todas as
matéria tem consistido em apresentar um ou esperanças de garantias do espaço da par-
vários dos argumentos liberais tradicionais ticipação civil na esfera da decisão política.
sobre o papel da comunicação de massa para Todos conhecem o princípio jeffersoniano que
a subsistência da democracia. O mais tradi- traduz a fase heróica do jornalismo como
cional desses argumentos consiste em afir- campeão da esfera civil: “se coubesse a mim
mar que o papel democrático primário dos a escolha entre um governo sem jornais e
meios e agentes da comunicação de massa jornais sem governo, não hesitaria um só
é funcionar como cão de guarda a vigiar o momento em preferir este último modelo”.
Estado, em defesa do interesse público ou Isso tudo, apoiando-se na premissa maior de
do domínio da cidadania, daquilo que neste que “a base de nosso governo é a opinião
paper será referido como esfera civil. do povo” e acompanhado pela restrição,
Este argumento é interessante e conserva frequentemente esquecida, de que, preferir
parcialmente a sua verdade, mas parece velho jornais a governos pressuporia assegurar “que
e extenuado. Muitos dos argumentos liberais todo homem recebesse esses jornais e fosse
tradicionais encontram o seu horizonte mais capaz de lê-los”.
completo de sentido apenas num período A substituição do modelo de jornalismo
histórico onde civil pelo jornalismo de partido, primeiro, e
a sua substituição pelo padrão do jornalismo
“Os «meios» consistiam principalmen- industrial contemporâneo, depois, situado na
te em publicações políticas com convergência entre as indústrias da cultura,
pequena circulação e o Estado estava do entretenimento de massa e da informação,
dominado ainda por uma elite peque- põe fim a esta perspectiva. Outros meios
na de proprietários de terra. O resul- representaram outras expectativas, também
tado é um legado de velhos ditos que destinadas ao esgotamento retórico por muitas
conservam pouca relação com a re- e mui variadas razões. Como o rádio, por
alidade contemporânea mas que con- exemplo, que esteve no centro da retórica
tinuam a ser repetidos acriticamente liberal-democrática entre os anos 20 e 40 do
como se nada tivesse mudado” século passado (Spinelli 2000), ou a expe-
(Curran 1991, 82). riência de televisão a cabo, entendida nos
Estados Unidos nos anos 70 como a resti-
Nas cercanias deste argumento constitu- tuição à comunidade e à sociedade civil do
íram-se muitos outros, que vão desde a idéia controle pela emissão de informação política
tradicional dos meios como tribuna pública, (cf. Dahlberg 2001).
passando-se pela já desgastada idéia da Uma variante mais recente do argumento
função pedagógica da comunicação de massa, liberal vem se constituindo ao redor de três
até a mais recente e interessante proposta do expressões-chave: internet – esfera pública
jornalismo cívico, como possibilidade de re- – democracia. Cunha-se o verbete “democra-
66 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

cia digital” e formas semelhantes (democra- premissa, passa-se à promessa: a opinião do


cia eletrônica, e-democracy, democracia vir- povo deve prevalecer na condução dos
tual, ciberdemocracia, dentre outras), ao negócios de concernência comum, nas de-
redor dos quais se vem formando, nos úl- cisões que afetam a coisa pública. A con-
timos 10, 15 anos, uma volumosa biblio- solidação da experiência democrática, entre-
grafia interessada basicamente nas novas tanto, principalmente através dos modelos de
práticas e nas possibilidades para a política democracia representativa, findou por con-
democrática que emergem da nova infra- figurar uma esfera da decisão política apar-
estrutura tecnológica eletrônica proporcio- tada da sociedade ou esfera civil, formada
nada por computadores em rede e por um por agentes em dedicação profissional e
sem número de dispositivos de comunica- integrantes de corporações de controle e
ção e de organização, armazenamento e distribuição do capital circulante nesta esfera
oferta de dados e informações on-line. Nesta - os partidos. Constitucionalmente, as duas
literatura, discutem-se desde os dispositivos esferas precisam interagir apenas no momen-
e iniciativas para a extensão das oportuni- to da renovação dos mandatos, restringindo-
dades democráticas (governo eletrônico, voto se o papel dos mandantes civis à decisão
eletrônico, voto on-line, transparência digi- sobre quem integrará a esfera que toma as
tal do Estado etc.), até novas oportunidades decisões propriamente políticas.
para a sociedade civil na era digital O exame sobre as razões da excessiva
(cibermilitância, formas eletrônicas de co- autonomização da esfera da decisão política
municação alternativa, novos movimentos e da crescente atrofia das funções da esfera
sociais); das alternativas contemporâneas civil na condução do Estado, ao lado da
para o jogo político (partidos, eleições e formulação de alternativas, teóricas e práti-
campanhas no universo digital) até a dis- cas, para o crescimento dos níveis de par-
cussão sobre regulamentação de acesso e ticipação civil nos negócios públicos, tem se
controle de conteúdo na internet, passando- tornado no tema central e na grande novi-
se pelas questões das desigualdades digitais dade da teoria da democracia nas últimas
(exclusão digital). décadas. Conhecem-se, a partir daí, os
No que tange ao nosso tema, o veio mais modelos de “democracia participativa”,
importante consiste na discussão das conse- “strong democracy” e, ultimamente, de “de-
quências que as ferramentas e dispositivos mocracia deliberativa” que se multiplicaram
eletrônicos das redes contemporâneas, prin- na virada do século. Neste contexto, era
cipalmente a internet, comportam para a natural que a discussão sobre o ambiente, os
implementação de um novo modelo de meios e os modos da comunicação pública
democracia capaz de incluir de maneira mais como ferramenta para uma maior presença
plena a participação da esfera civil na de- da esfera civil na condução dos negócios
cisão política. A questão em tela é sobre se públicos encontrasse a discussão sobre
as novas tecnologias da comunicação podem, modelos de democracia voltados para o
de fato, alterar para melhor as possibilidades incremento da participação civil. Ademais,
da cidadania nas sociedades contemporâne- todas as restrições apresentadas na literatura
as. especializada sobre as convicções democrá-
ticas e a qualidade”“civil” da comunicação
Democracia e participação industrial de massa, somadas à aura não-
elitista, não-governamental, não-corporativa
O pressuposto fundamental da discussão da internet foram razão suficiente para as-
não será desenvolvido com a extensão ade- segurar a esta última um lugar particular na
quada neste artigo, por razões de espaço, mas discussão sobre democracia e participação
diz respeito a aspecto delicado da experiên- popular.
cia democrática. Trata-se da participação do A vinculação entre democracia e parti-
cidadão nas democracias liberais de hoje. O cipação civil na política possui diferentes
problema é bem conhecido: a democracia ênfases, cada uma delas portando consigo um
liberal constitui-se numa premissa fundamen- específico repertório de conseqüências teó-
tal, a saber, a idéia de soberania popular. Da ricas e práticas3. Há a rigor um continuum
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 67

que vai crescendo desde graus mais modera- um modelo de participação política do ci-
dos de reivindicações até formas mais ra- dadão através de um debate público relevan-
dicais de defesa da participação popular. Para te, constante e influente, onde se formam a
ficarmos numa tríade didaticamente confor- vontade e a opinião públicas, mas onde
tável, um tipo de participação moderado é também seriam constituídos os insumos
aquele representado pelo fortalecimento da fundamentais para a produção (pela esfera
presença da esfera civil na cena política, política) de uma decisão legítima sobre os
mediante variadas formas, que vão desde a negócios públicos.
formação de um consistente e expandido Para o modelo seguinte, a questão central
debate público sobre temas de relevância da democracia é a decisão política e o seu
política, passando pelas manifestações da problema principal consiste em como
vontade popular em todas as dimensões da incrementar os níveis de participação civil
esfera de visibilidade pública, até as formas na decisão concernente aos negócios públi-
de organização popular não-governamental cos. Este tipo de compreensão é mais co-
voltadas à reivindicação, à mobilização e mum nas discussões sobre internet e parti-
formação da opinião e da vontade públicas cipação popular em parte da literatura sobre
e à pressão sobre governos em particular democracia deliberativa. A questão aqui não
e a esfera política em geral. Uma partici- é apenas do debate público, mas de como
pação popular um pouco mais radical que tornar o sistema e a cultura política liberais
esta é representada pela intervenção da mais porosos à esfera civil, ao ponto de
opinião e da vontade civil na decisão política possibilitar a sua interferência na produção
relevante no interior do Estado. Neste caso, da decisão política.
a fronteira, preservada integralmente na Por fim, a idéia de participação da ci-
forma anterior, entre sociedade civil e so-
dadania entendida como ocupação civil da
ciedade política, entre mandantes e
esfera política encontra na internet as pos-
tomadores de decisão, torna-se mais difusa,
sibilidades técnicas e ideológicas da realiza-
e às funções “opinião”, “demanda de ex-
ção de um ideal de condução popular e direta
plicação” (o ato dos mandantes a que cor-
dos negócios públicos. Esta perspectiva é
responde a “prestação de contas” dos
sustentada basicamente pelas teorias
mandatários em regimes republicanos) e
libertárias da democracia e pela sua versão
“manifestação” acrescenta-se “interferência
anárquico-liberal da internet.
na decisão política”. Nos dois modelos,
contudo, a participação civil é compatível
A democracia digital
com a alternativa de democracia represen-
tativa, apenas com a reivindicação de au-
tenticação civil da esfera política não ape- Em todos os modelos a experiência da
nas eleitoral mas no respeito pela disposi- internet é vista ao mesmo tempo como
ção e opinião públicas. Cabe, portanto, um inspiração para formas de participação po-
modelo mais radical de participação popu- lítica protagonizada pela esfera civil e como
lar, em que a esfera política é dispensada demonstração de que há efetivamente formas
e as funções de decisão seriam assumidas e meios para a participação popular na vida
pela esfera civil, como ocorre no ideário da pública. A “democracia digital” (e outros
democracia direta. verbetes concorrentes) é, neste sentido, um
Em conformidade com tais modelos, a expediente semântico empregado para a
discussão sobre internet e democracia referência à experiência da internet e de
participativa ganha diversos contornos e dispositivos semelhantes voltados para o
começa a formar diferentes tradições. Aos incremento das potencialidades de participa-
graus mais moderados4 de participação de- ção civil na condução dos negócios públicos.
mocrática, corresponde, por exemplo, a maior Podemos buscar sintetizar a discussão
parte das discussões sobre internet e parti- genérica sobre democracia digital, ainda que
cipação popular a partir do conceito tardio de forma apressada, em um conjunto básico
de esfera pública. No seu centro se desenha de asserções.
68 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

1. A democracia digital se apresenta como 2. A democracia digital se apresenta como


uma oportunidade de superar as deficiên- uma alternativa para a implantação de uma
cias do estágio atual da democracia liberal. nova experiência democrática fundada
numa nova noção de democracia.
Parte-se da percepção de que as institui-
ções políticas, os atores e as práticas polí- As expressões democracia eletrônica,
ticas nas democracias liberais estão em crise, ciberdemocracia, democracia digital, e-
sobretudo em função da ausência de parti- democracy referem-se em geral às possibili-
cipação política dos cidadãos e da separação dades de extensão das possibilidades democrá-
nítida e seca entre a esfera civil e a esfera ticas instauradas pela infra-estrutura tecnológica
política. Isso significa, de algum modo, a das redes de computadores. Por trás destas
crise de um padrão simbólico da experiência expressões, um conjunto de pressupostos a
democrática que pretende que o cidadão, o respeito da internet e participação civil:
povo, a esfera civil, em suma, seja aquele a) A internet permitiria resolver o pro-
que governe. Como as democracias repre- blema da participação do público na política
sentativas contemporâneas atribuíram inte- que afeta as democracias representativas
gralmente ao colegiado dos representantes liberais contemporâneas, pois tornaria esta
(a esfera política) a capacidade de realizar participação mais fácil, mas ágil e mais
a decisão política sobre os negócios públi- conveniente (confortável, também). Isso é
cos. Com isso a esfera da política se vê particularmente importante em tempos de
cindida completamente entre a esfera civil, sociedade civil desorganizada e desmobilizada
cuja única função é formar e autorizar a ou de cidadania sem sociedade;
esfera política nas eleições, e a esfera b) A internet permitiria uma relação sem
política, cuja função principal é produzir a intermediários entre a esfera civil e a esfera
decisão política na forma de lei e na forma política, bloqueando as influências da esfera
de decisões de governo. Há, pois, uma esfera econômica e, sobretudo, das indústrias do
civil, a cidadania, considerada o coração dos entretenimento, da cultura e da informação
regimes democráticos mas que autoriza e não de massa, que nesse momento controla o
governa, e há por outro lado, uma esfera fluxo da informação política;
política cujo único vínculo constitucional c) A internet permitiria que a esfera civil
com a esfera civil é de natureza eleitoral. não fosse apenas o consumidor de informação
O modelo de democracia representativa política. Ou impediria que o fluxo da comu-
entra, portanto, em crise. nicação política fosse unidirecional, com um
A alternativa histórica à democracia vetor que normalmente vai da esfera política
representativa é a democracia direta, vencida para a esfera civil. Por fim, a internet repre-
historicamente por inadequada a sociedades sentaria a possibilidade de que a esfera civil
de massa e à complexidade do Estado con- produza informação política para o seu próprio
temporâneo - que exige profissionalismo (isto consumo e para o provimento da sua decisão.
é, dedicação exclusiva, formação e compe-
tência) de quem governa e de quem legisla. 3. O que a democracia digital como expe-
A introdução de uma nova infraestrutura riência deve assegurar é a participação do
tecnológica, entretanto, faz ressurgir forte- público nos processos de produção de
mente as esperanças de modelos alternativos decisão política (decision-making processes).
de democracia, que realize uma terceira via
entre a democracia representativa, que retira Há, digamos assim, alguns graus de
do povo a decisão política, e a democracia participação popular proporcionados pela
direta que a quer inteiramente consignada ao infra-estrutura da internet, que parecem
cidadão comum. Estes modelos giram ao satisfazer diferentes compreensões da demo-
redor da idéia de democracia participativa e, cracia. São os cinco graus de democracia
nos últimos dez anos, na forma da demo- digital, correspondentes à escala de reivindi-
cracia deliberativa, para a qual a internet é cação dos modelos de democracia
certamente uma inspiração. participativa.
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 69

O grau mais elementar é aquele repre- tica, obtém o feed-back da esfera civil e
sentado pelo acesso do cidadão aos serviços retorna como informação para os agentes da
públicos através da rede (a cidadania- esfera política. São as formas típicas sinte-
delivery). No mesmo nível está a prestação tizadas na fórmula G2C, ou from government
de informação por parte do Estado, os to citizen, que vem se popularizando nos
partidos ou os representantes que integram últimos anos. O vetor vai, naturalmente, do
os colegiados políticos formais. A rigor, a governo para o cidadão. Os graus superiores,
democracia digital de primeiro grau implan- entretanto, supõem um fluxo de comunica-
ta-se de forma acelerada em toda a parte e ção cuja iniciativa está na esfera civil ou que
neste momento está mais ou menos estabe- produz efeito direto na esfera política, en-
lecida, em suas dimensões essenciais, na tendida como esfera da efetivação da decisão
maior parte dos Estados liberais contempo- política.
râneos. Servem até mesmo como plataformas O terceiro grau de democracia digital é
de autopromoção dos governos, que facilmen- representado por um Estado com tal volume
te designam estruturas tecnológicas destina- e intensidade na sua prestação de informação
das ao provimento de serviços e informações e prestação de contas que, de algum modo,
públicas on-line de democracia eletrônica, adquira um alto nível de transparência para
cidade-digital, desfrutando ao mesmo tempo o cidadão comum. Um Estado cuja esfera
da aura de modernidade e de democracia. Não política se oriente por um princípio de
faltam, naturalmente, iniciativas sérias que publicidade política esclarecida. Neste caso,
tendem a facilitar a vida do cidadão no que porém, o estado presta serviços, informações
respeita àquelas iniciativas em que ele era, e contas à cidadania, mas não conta com ela
a princípio de maneira penosa, forçado a lidar para a produção da decisão política. Neste
com a burocracia do Estado. Eficiência da modelo há um encaixe mais ou menos
gestão, diminuição de custos da administra- adequado entre os fluxos de demanda de
ção pública, substituição da terrível burocra- explicações cuja origem é, evidentemente, a
cia estatal pela nova burocracia digital, torna esfera civil e a prestação de contas de um
a democracia digital de primeiro grau van- Estado, em todos os seus poderes, que se
tajosa para os governos e confortável para explica aos seus cidadãos.
o cidadão, na verdade, um cliente ou usu- O quinto grau, evidentemente, é repre-
ário. sentado pelos modelos de democracia direta,
O segundo grau é constituído por um onde a esfera política profissional se extin-
Estado que consulta os cidadãos pela rede guiria porque o público mesmo controlaria
para averiguar a sua opinião a respeito de a decisão política válida e legítima no in-
temas da agenda pública e até, eventualmen- terior do Estado. Trata-se do modelo de
te, para a formação da agenda pública. Numa democracy plug´n play, do voto eletrônico,
democracia digital de segundo grau, a esfera preferencialmente on-line, da conversão do
política possui algum nível de porosidade à cidadão não apenas em controlador da esfera
opinião pública e considera o contato direto política mas em produtor de decisão política
com o público uma alternativa às sondagens sobre os negócios públicos. O resultado da
de opinião. Estados ou administradores implementação de uma democracia digital de
públicos mais sensíveis à opinião e à von- quinto grau seria uma Estado governado por
tade populares organizam ferramentas plebiscito em que à esfera política não restaria
eletrônicas para a discussão pública de que as funções de administração pública.
projetos importantes, freqüentemente prove- Uma democracia digital de quarto grau
nientes do Executivo, e a extensão, inclusão corresponderia a determinados modelos de
e consistência do exame e debate pública vai democracia deliberativa. À diferença da
depender da sinceridade deliberacionista do democracia de quinto grau, a democracia
agente público, materializada no formato do deliberativa combina o modelo de democra-
dispositivo tecnológico empregado. cia participativa com o modelo de democra-
Nestes dois graus mais elementares, o cia representativa. A esfera política se man-
fluxo de comunicação parte da esfera polí- tém, mas o Estado se torna mais poroso à
70 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

participação popular, permitindo que o pú- da. É mais fácil identificar deliberação na
blico não apenas se mantenha informado comunicação mediada por computadores,
sobre a condução dos negócios públicos, mais entendendo-a como debate ou entendendo-
ainda, permite que possa intervir -a como produção de decisão argumentada
deliberativamente na produção da decisão e discutida, do que indicar como tal delibe-
política. A esfera civil, neste caso, não cessa ração precisamente produza algum efeito na
as suas funções na formação eleitoral da produção da decisão política que conta no
esfera política (única função que lhe atribu- interior do Estado. A rigor, em parte con-
em as constituições liberais contemporâne- siderável dos casos trata-se de uma esfera
as), mas de algum modo teria intervenção pública não-deliberativa ou simplesmente
na esfera da decisão política, fazendo valer daquilo que podemos chamar de conversa-
nela o resultado da deliberação pública. Uma ção civil, quando a reivindicação da demo-
deliberação pública que, dentre outras coi- cracia forte seria uma esfera pública
sas, serve-se dos meios eletrônicos de deliberativa civil.
interação argumentativa. A democracia digi- Outros autores se ocupam basicamente da
tal deliberativa teria que ser uma democracia deliberação, mas não se preocupam em
participativa apoiada em dispositivos mostrar com a deliberação popular na internet
eletrônicos que conectam entre si os cida- poderia gerar efeitos sobre a esfera dos
dãos e que lhes faculta a possibilidade de decisores políticos. Chegam mesmo a mos-
intervir na decisão dos negócios públicos. trar, com muita capacidade, as características
Como não se conhece nenhum Estado de uma deliberação adequada, mas não se
com níveis eficientes de implementação dos preocupam em mostrar se tais características
graus quatro, cinco e seis, tampouco parece se realizariam, por exemplo, nas deliberações
plausível se detalhar os aspectos e dimen- off-line. Dá mesmo a impressão que alguns
sões envolvidos na produção da decisão trabalham com o modelo de uma espécie de
política por parte do público. Sabe-se que sociedade civil organizada e hiper-engajada
as possibilidades plebiscitárias da internet já em deliberações, quando talvez esta demo-
se provaram eficazes, assim como as ferra- cracia confortável da internet seja mais
mentas fundamentais para os fóruns públicos apropriada para uma esfera civil desengajada
de toda a natureza. Não se sabe, todavia, que e desorganizada.
efeitos uma taxa muito intensa de transfe-
rência da decisão política para a esfera civil Das possibilidades e limites da democracia
por meios eletrônicos produziria sobre a digital
sociedade política no seu formato atual. Nem
como conciliar a decisão civil com uma O que dizer disto tudo? Bem, os graus
gestão do Estado formada por representantes mais elementares de democracia digital não
eleitos. Trata-se, na verdade, de modelos causam problemas teóricos, pois mantêm as
absolutamente teóricos, mas com grande estruturas atuais e adicionam algumas van-
efeito prático, sustentando a imaginação de tagens da internet às práticas políticas de-
formas de participação popular na política mocráticas contemporâneas. Tampouco o grau
contemporânea e a implementação de projetos mais extremo causa um autêntico problema,
destinados a reformar a qualidade democrá- haja vista que o modelo de democracia direta
tica das nossas sociedades. é dificilmente sustentável em sede teórica,
exceto para os mais radicais libertários e para
4. A forma mais democrática de assegurar os gurus da internet. Resta examinar os graus
participação na decisão política se dá atra- intermediários inspirados nas idéias de es-
vés de debate e deliberação. fera pública e democracia deliberativa, na
tentativa de evidenciar suas virtudes e seus
O princípio de soberania popular parece limites.
requerer que o povo participe de processos Antes de tudo as virtudes, a começar pelo
abertos e justos de debate e deliberação sobre fato real de que para quem tem acesso a um
os negócios públicos. O que quer dizer, na computador e capital cultural para empregá-
verdade, deliberação, é matéria mais delica- lo no interior do jogo democrático a internet
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 71

é um recurso valioso para a participação mulheres e diferentes classes sociais. Toda-


política. Nesse sentido, é igualmente um fato via mesmo nas democracias liberais mais
que a internet oferece numerosos meios para arraigadas temos um sistema social onde o
a expressão política e um determinado nú- público não importa ou importa muito pouco
mero de alternativas que podem influenciar na produção da decisão política (Papacharissi,
os agentes da esfera política. Por isso mesmo, p. 18). Em suma, apesar do fato de a internet
tem nos seus dispositivos um repertório de prover espaço adicional para a discussão
instrumentos para que os cidadãos se tornem política, ela também é atingida pelas blin-
politicamente ativos. dagens anti-público do nosso sistema polí-
No rol das vantagens políticas da internet tico, o que diminui consideravelmente a real
insiste-se com freqüência nas novas possibi- dimensão e o real impacto das suas opiniões
lidades de expressão de forma que um cida- on-line ou off-line que sejam.
dão ou um grupo da sociedade civil pode por Não resta dúvida quanto ao fato de a
este meio alcançar outros cidadãos diretamente. internet proporcionar instrumentos e alterna-
O que promoveria uma reestruturação, em tivas de participação política civil. Por outro
larga escala, dos negócios públicos e conectaria lado, apenas o acesso à internet não garante
governos e cidadãos. Nesse sentido, a internet e não é capaz de assegurar o incremento da
pode desempenhar um papel importante na atividade política, menos ainda da atividade
realização da democracia deliberativa, porque política argumentativa. Flaming, conflitos,
pode assegurar aos interessados em participar fragmentação, inconclusão, além de qualquer
do jogo democrático dois dos seus requisitos limite racional aparecem como constituindo
fundamentais: informação política atualizada a natureza da discussão on-line em qualquer
e oportunidade de interação. Além disso, a pesquisa empírica sobre comunicação política
interatividade promoveria o uso de plebiscitos por meio da internet. Pesquisas empíricas
eletrônicos, permitindo sondagens e referen- demonstram ademais que as discussões po-
dos instantâneos e o voto realizado na casa líticas on-line, embora permitam ampla par-
do eleitor. ticipação, são dominadas por uns poucos, do
Dá-se também o fato de que, com a mesmo modo que as discussões políticas em
internet, adquirir e disseminar informação geral. Em suma, apesar das enormes vanta-
política on-line tornou-se hoje algo rápido, gens aí contidas, a comunicação on-line não
fácil, barato e conveniente. Por fim, a in- garante instantaneamente uma esfera de dis-
formação disponível na internet é cussão pública justa, representativa, relevante,
freqüentemente desprovida das coações dos efetiva e igualitária. Na internet ou “fora” dela,
meios industriais de comunicação, o que livre opinar é só opinar. Além disso, com o
significa que em geral não é torcida ou predomínio de democracias digitais de primei-
alterada para servir a interesses particulares, ro grau, os sites partidários são em geral meios
nem a forças do campo político nem à de expressão de mão única e os sites gover-
indústria da informação. namentais se constituem como meios de
Num passo adiante, as perspectivas mais delivery dos serviços públicos mais do que
utópicas, por fim, freqüentemente especulam formas de acolhimento da opinião do público
que uma comunicação política mediada pela com efeito sobre os produtores de decisão
internet deverá facilitar uma democracia de política. Assim, se por um lado, a internet
base (grassroots) e reunir os povos do mundo permite que eleitores forneçam aos políticos
numa comunidade política sem fronteiras. feed-back diretos a questões que eles apre-
Passada, entretanto, a fase entusiasmada sentam, independentemente dos meios indus-
onde facilmente se deixava passar a idéia de triais de comunicação, por outro lado, não
que a internet resolveria todos os problemas garantem que este retorno possa eventualmen-
da comunicação política, começa-se a des- te influenciar a decisão política.
tacar as insuficiências dessa infra-estrutura. Na verdade, pesquisas sugerem que a
Antes de mais nada, porque os públicos esfera política virtual de alguma maneira
da idade da internet foram em geral expan- reflete a política tradicional, servindo sim-
didos de forma a incluir, por exemplo, plesmente como um espaço adicional para
72 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

a expressão da política mais do que como ver uma cultura e um sistema políticos dis-
um reformador radical do pensamento e das postos (ou forçados) a acolhê-los. Contudo,
estruturas políticas. as circunstâncias históricas em que se encon-
Além disso, nem toda informação polí- tram as democracias liberais contemporâneas,
tica na internet é democrática, liberal ou umas menos outras mais, parecem menos
promove democracia. A mesma possibilida- disponíveis à participação dos cidadãos nas
de de anonimato que protege a liberdade suas instâncias de produção da decisão po-
política contra o controle de governos tirâ- lítica do que as nossas convicções republica-
nicos e o controle das corporações, é reforço nas recomendariam. Por outro lado, as pró-
considerável para conteúdos e práticas tirâ- prias características da cultura política com-
nicas, racistas, discriminatórias e anti-demo- partilhada pelos nossos contemporâneas, pa-
cráticas na internet. Por fim, a informação recem indicar tudo menos hiper-engajamentos
on-line é em princípio disponível para todos dos indivíduos em programas e posições
aparelhados para tanto, mas não é fácil ter políticas, disposição a integrar de modo durável
acesso e gerenciar vastos volumes de infor- formas organizadas da assim chamada soci-
mação. Organizar, identificar e encontrar edade civil, interesse em grandes e constantes
informação é uma tarefa que requer habi- participação em debates sisudos sobre temas
lidades e tempo, que muitos não possuem. severos. Nesse sentido, talvez nem toda a
Em suma, acesso à informação política não debilidade de participação política contempo-
nos torna automaticamente cidadãos mais rânea se explique em termos de dificuldade
informados e mais ativos. de acesso, raridade de meios e escassez de
Em outros termos, quem pode ter acesso oportunidades. A abundância de meios e
a informação on-line, pode gerenciá-la e, chances não formará, per se, uma cultura da
eventualmente, pode produzi-la está equipado participação política. Isso não quer dizer, por
outro lado, que não se deva explorar ao
com ferramentas adicionais para ser um cida-
extremo todas as possibilidades democráticas
dão mais ativo e um participante da esfera
que a internet comporta.
pública. Por outro lado, tecnologias tornam a
participação na esfera política mais confortável
e acessível, mas não a garantem. Seja porque
_______________________________
a discussão política on-line está limitada para 1
Conferência proferida na Abertura do II
aqueles com acesso a computadores e à internet, Ibérico, em 23 de Abril de 2004, subordinada
seja porque aqueles com acesso à internet não ao tema “Comunicação e Cidadania”.
necessariamente buscam discussões políticas, 2
Faculdade de Comunicação, Universidade
seja, enfim, porque discussões políticas são Federal da Bahia.
3
freqüentemente dominadas por poucos. Na verdade, três modelos de democracia
Na verdade, isso só surpreende quem disputam neste momento as alternativas de de-
partilha da crença de que o meio é a men- mocracia representativa: o modelo liberal-indivi-
dualista, que é importante para a ideologia-internet
sagem e de que um conjunto de dispositivos
na forma do ciber-libertarianismo; o modelo
e oportunidades, per se, transformam men-
comunitarista, que disputava com o modelo libe-
talidades e práticas. Os meios, recursos, ral clássico o predomínio no ambiente anglossaxão;
ferramentas que constituem a internet são o modelo deliberacionista, de origem
apenas mais um dos dispositivos sociais da habermasiana, que se tornou predominante na
prática política, ainda novo, ainda pouco década de 90 em ambientes de língua inglesa.
4
experimentado, ainda em teste. Situa-se num Tome-se com cautela o termo “moderado”.
conjunto já estruturado ao redor de outros A rigor, trata-se do grau menos radical de uma
dispositivos instituídos e consolidados. O seu escala superior. A escala anterior, que aqui se
lugar se constituirá na tensão com tais dis- pretende superar, é representado pelos padrões
adotados pela democracia representativa liberal,
positivos, mas também com as formas já
que faz com que a sociedade política detenha o
estabelecidas no conjunto deles, isto é, com monopólio da decisão dos negócios públicos, e
o sistema e a cultura política. Assim, por mais restringe o papel eficaz da sociedade civil à sua
que a internet ofereça inéditas oportunidades dimensão eleitoral. O grau mais moderado nesta
de participação na esfera política, tais opor- segunda escala, portanto, é mais radical que o mais
tunidades serão aproveitadas apenas se hou- radical dos padrões da escala anterior.
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 73

A cidadania como problema1


José A. Bragança de Miranda2

A cidadania é um daqueles conceitos positividade do «conteúdo». Desde Marx que


altamente ambíguos, simultaneamente inte- está claro que a pura formalidade convive
grando e excedendo a ordem política. Como demasiado bem com a aceitação do pior, da
se entre cidadania e Estado existisse um injustiça ou da violência. Sabe-se como essa
conflito, ou então como se não existissem solução, dentro do quadro existente, se re-
cidadãos à altura de uma cidadania radical. sume em aperfeiçoá-lo, à busca dos melho-
O que implicaria, no mínimo, uma insufi- res arranjos possíveis, ou então, para outros,
ciência na sua fundamentação formal, basi- à destruição pura e simples do quadro formal
camente jurídica. Aqueles que mais falam de onde decorre a modernidade política, de que
cidadania são os mesmos que criticam uma uma revolução sempre futura seria o opera-
e outra vez a sua definição formal, como dor.
pertença a um Estado. Talvez se explique essa Mas a modernidade política é pura re-
ambiguidade pelo facto, como apontou Judith volução contínua, não estando nem no pas-
Skhlar de que «a cidadania tem a sua origem sado, nem no futuro. Ela incide sobre o
numa reacção muito específica contra a presente, afectando cada um dos actos, por
exclusão da existência política. Isso cria uma mínimos que sejam. É essa revolução em per-
tensão endémica entre o sujeito e o cida- manente movimento que alimenta a «liber-
dão». Historicamente a reivindicação de dade livre» de que falava Rimbaud, que não
cidadania era uma forma de lutar contra a se confunde com a escolha entre opções
exclusão política, e as revoluções modernas armadilhadas, mas pela possibilidade de
mais não fizeram do que dar resposta a esta escolher dentro das escolhas já feitas, contra
injunção. Aquilo que alimentava em profun- elas. Se a cidadania excede a política real-
didade a reivindicação de cidadania não mente existente, é porque não cabe nos limites
desaparece quando todos são incluídos no do Estado, por mais democrático que seja.
espaço política estruturado em torno do Talvez porque apele a uma política que só
Estado. É que nunca são «todos», os de outros existirá no momento em que o Estado seja
países, os exilados, os emigrantes, não ca- desnecessário, senão mesmo nos momentos
bem. Mais ainda, como defendia Heiner terminais em que possa ser abolido, ou esteja
Mueller «a democracia bem pensada deve- a ser abolido. Aqui e agora, a política que
ria incluir os já mortos e os ainda não é propulsada pela revolução e por esse acto
nascidos, e não apenas aqueles que existem». terminal de abolição do Estado, afecta im-
Frase aparentemente provocatória e quase perceptivelmente os actos que se deixam
incompreensível, mas que tem um sentido iluminar por ela. Mas também emana do
preciso, que não há muito tempo era ainda desassossego e da revolta que não podemos
legível. deixar de sentir, uma ou outra vez, num ou
Permanece essa tensão, numa certa noutro caso. Se existisse sempre, vigoraria
invisibilidade. Quer-se outra cidadania para o puro nihilismo. A mesma Shklar afirmou
poder ter aquela por que se lutou historica- algures que tudo começa no sentimento de
mente, que se consubstancia na formalidade injustiça, na sensação de desagrado e de
jurídica de pertença a um dado Estado. tristeza, que repentinamente nos avassala.
Criticando erroneamente o formalismo polí- Bastaria mudar de atitude, dar um passo e
tico, tudo se resumiria em dar-lhe conteúdo, entrar noutro espaço da política, mas tam-
social, assistencial, etc. São aqueles que bém aqui ocorre como na parábola de Kafka,
pretendem levianamente dispensar o direito em que o suspirante fica à porta da Lei, vai
que defendem que tudo se resume à envelhecendo, sem nunca a franquear, à
74 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

espera de autorização, descobrindo-se final- «transparente», semelhante a um vidro que


mente, para nosso desalento, que a porta está aí materialmente, mas invisível.
esteva sempre aberta e que bastava ter dado Para o poeta trata-se não do real, mas
um passo em frente, e entrado. de uma diminuição deste, pois o «real» é a
Também o espaço expandido da política matéria mais todas as imagens, enquanto que
está por todo o lado, correspondendo à cidade a «realidade» deve a sua formatação à sub-
dos homens, onde todos têm lugar, mas em tracção dessas imagens ocultas, criadas na
relação à qual a maioria está em exílio. As história. Trata-se, na verdade, de uma sub-
nossas cidades são simples arremedos dessa tracção e não da plenitude da positividade:
cidade dos homens, base de toda a cidadania. «Minez ces substractions, quand l’obscurité
Onde encontrá-la, se está por todo o lado en offense la perspective, non — alignez-y
e em lugar nenhum? Saiamos de apuros, des lampions, pour voir: il s’agit que vos
dando um passo ao lado, para a literatura. pensées exigent du sol un simulacre». O
De Mallarmé, por exemplo, vem-nos uma in- presente é obscuro mas não por falta de «luz»,
dicação. É nas nossas tristes cidades que mas por excesso de visibilidade das formas
está essa outra: « La Cité, si je ne m’abuse que absorvem o olhar, ocupando-o inteira-
en mon sens de citoyen, reconstruit un lieu mente. Sendo o contrário da «transparência»,
abstrait, supérieur, nulle part situé, ici séjour aparece como solo, falso fundamento, e como
pour l’homme». Como nas estrelas, onde se terra, aonde a vida sempre retorna, mas que
podem ler inúmeras constelações, onde uns tem de ser «maravilhada» para se tornar
vêem deuses e outros nada. Mas não se trata aceitável. Remontando aos físicos gregos, a
de utopias, tudo se joga na absoluta Lucrécio, trata-se para Mallarmé de mudar
materialidade da existência, enquanto que as o aspecto do real, o que se faz propondo-
utopias vivem na imaginação e no desejo de lhe outros simulacros. Também Rothko re-
fere que «o propósito da arte em geral é
realizá-las. Guiando-nos por Mallarmé vemos
revelar a verdade... criar novos valores para
a cidade dos homens como uma «imagem»
pôr a humanidade frente a frente com um
outra, um outro aspecto do real. A realidade
novo acontecimento, uma nova maravilha».
mais não é do que a «fixação» de uma
É essa a enorme responsabilidade da arte,
«imagem» que ocupa todo o olhar, sendo
cuja mola oculta acaba por ser a política que
certo que se olha através do que vemos e
rege a cidade dos homens.
que serve de ponte para outra coisa, dife-
Na cidade em que habitamos, nas casas
rente e a mesma. Na explicação de Mallarmé:
que a constituem, persiste uma outra. Tam-
«Un grand dommage a été causé à
bém cada casa é, ao mesmo tempo, a casa
l’association terrestre, séculairement, de lui dos humanos e aquela onde vive cada um
indiquer le mirage brutal, la cité, ses de nós, e que pode ser bem desumana. Como
gouvernements, le code autrement que comme as duas podem ser antitéticas! As feministas
emblèmes ou, quant à notre état, ce que des actuais mostraram bem que na casa real se
nécropoles sont au paradis qu’elles lesa a casa dos humanos e fizeram do tálamo
évaporent: un terre-plein, presque pas vil. um palco de guerra. Deve-se à tensão que
Péage, élections, ce n’est ici-bas, où semble a política introduz nas coisas, e na própria
s’en résumer l’application que se passent, existência, que tudo venha duplamente, que
augustement, les formalités édictant un culte tudo seja dois. Lemos, deste modo a seguinte
populaire, comme représentatives—de la Loi, tese de Walter Benjamin: «Todos os que até
sise en toute transparence, nudité et hoje venceram participam do cortejo triun-
merveille». A estância do humano exige que fal, em que os dominadores de hoje
se descubra nas formas construídas do real espezinham os corpos dos que estão pros-
a sua natureza alucinatória, simples «mira- trados no chão. Os despojos são carregados
gem», no sentido de que são o ponto de mira no cortejo, como de praxe. Esses despojos
do olhar que medusam, de forma a encontrar são o que chamamos bens culturais. O
outra imagem para a «associação dos ho- materialista histórico os contempla com
mens», a política em suma. A sua presença distanciamento. Pois todos os bens culturais
é tanto mais forte quanto tal imagem é que ele vê têm uma origem sobre a qual ele
ABERTURA E SESSÕES PLENÁRIAS 75

não pode reflectir sem horror. Devem sua e duplicação, só se funda politicamente, como
existência não somente ao esforço dos gran- interpretação histórica de todo o sofrimento
des génios que os criaram, como à servidão e das possibilidades de acabar com ele.
anónima dos seus contemporâneos. Nunca Todas as imagens, memórias de luta,
houve um monumento da cultura que não sonhos e ilusões de perfeição, são, não
fosse também um monumento da barbárie». políticos, mas efeitos da arte, onde exclu-
Parecerá inutilmente dramática esta visão da sivamente podem ser apresentados. Daí a
história, como se tudo se resumisse à vio- necessidade sentida por muitos de fazer a
lência e à derrota. De facto, também em cada crítica da estética, pois se apresenta o espaço
coisa temos a memória da luta, o lutar antes outro dos humanos, o faz sempre na parci-
de ter perdido e apesar de se saber que ia alidade de uma imagem que tende a realizar-
ser perdido, mas também a promessa de se. A cidadania é marca característica daque-
felicidade que animava essa luta. A moder- les que actualizam essa divisão, criando esse
nidade política instaura-se positivamente na duplo espaço universal, cuja podemos retraçar
ideia de que é possível começar tudo de zero, desde os tempos míticos, e que está consig-
que os actos passados são isso mesmo, nada na origem da metafísica, com a divisão
passados, e que os actos futuros serão de- platónica entre fenómenos e ideias eternas,
terminados a partir dos interesses de agora. ou na maneira como o cristianismo medieval
Daí a sensação de frieza e de indiferença de divide o espaço mundano do «além». Como
todos os actos políticos, rigidamente inscri- com toda a imagem, sonha-se com a cidade
tos num quadro político que garante esse de Deus na terra e começa-se a construí-la.
permanente recomeço e a neutralidade da Maravilha e horror ao mesmo tempo pois
existência perante as funestas paixões pas- nada separa radicalmente as catedrais góticas
sadas ou futuras. A ideia de que cada da inquisição. Seria banal sustentar que a
«monumento» é um sinal de barbárie con- modernidade, com o seu imanentismo, que-
traria a positividade das coisas, a sua dis- ria expurgar a existência das suas
ponibilidade para a acção, e isso é essencial. duplicidades, tudo reduzindo à pura presen-
Aliás, já a encontrávamos em Helvetius: «On ça. No livro sobre a comuna de Paris Marx
conviendra qu’il n’arrive point de barrique afirmara que os “operários se tinham lança-
de sucre en Europe qui ne soit teinte de sang do à conquista dos céus”, fundindo-o com
humain. Or quel homme à la vue des a terra. Mas a terra desolada, entregue à sua
malheurs qu’occasionnent la culture et massiva evidência, fica às mãos dos gestores,
l’exportation de cette denrée refuserait de dos normalizadores, dos capitalistas, o seu
s’en priver, et ne renoncerait pas à un plaisir sonho passa a ser o pesadelo da eficiência,
acheté par les larmes et la mort de tant de a administração do pouco mais e do pouco
malheureux ? Détournons nos regards d’un menos. Ser cidadão deste mundo imanente
spectacle si funeste et qui fait tant de honte é perder-se em torno dos zeros e das vírgulas
et d’horreur à l’humanité». Cada coisa, por do aumento de ordenado. É aceitar conviver
inerte que pareça está, para quem saiba ver, com o pior, ficar sozinho com gente ao lado.
pejada de violência e de sofrimento. Mas Ao ficar-se acachapado sobre o real a cida-
levado ao extremo este argumento, seríamos dania confunde-se com o desprezo pelo que
obrigados a recusar a totalidade da existên- existe ou pela cinismo com que é aceite e
cia. Em última instância esta posição só se «melhorado».
sustenta através da recusa da modernidade
política. Na verdade, seria necessário redividir
esta duplicidade sangrenta, para dar lugar à _______________________________
divisão pura e absoluta que desassossega a 1
Conferência proferida na Sessão Plenária
própria modernidade política, e que obriga inaugural do II Ibérico, em 23 de Abril de 2004,
à alternância democrática, à tripartição dos subordinada ao tema “Cultura e Cidadania”.
2
poderes, etc. Podemos dizer, assim, que a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
divisão do espaço existente, a sua duplicidade da Universidade Nova de Lisboa.
76 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 77

Capítulo II

FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA


78 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 79

Apresentação
Paulo Filipe Monteiro1

Metamorfoses da imagem, que, desde a outro lado, por ser fundamental que a fo-
invenção da fotografia, nunca mais foi a tografia, o cinema e o vídeo não vivam
mesma: primeiro imobilizando um símile do exclusivamente entregues aos respectivos
real, depois registando o movimento; de início fazedores, mas que possam ser pensados no
orgulhosa de uma ontologia, de um “ter lá contexto maior da cultura e da comunicação,
estado”, que a actual digitalização descara- que lhes dá sentido e ao qual, como agentes
damente subverte quando quer. activíssimos, eficazes e respeitados por elites
Fotografia, cinema e vídeo são áreas que e massas, dão novos sentidos.
as ciências da comunicação devem estudar,
com duplo ganho. Por um lado, porque
afectam o nosso quotidiano de um modo, _______________________________
talvez mais do que central, omnipresente e 1
Universidade Nova de Lisboa. Coordenador
do qual sabemos menos do que muitas vezes da Sessão Temática de Fotografia, Vídeo e Ci-
julgamos que sabemos. Mas também, por nema do VI Lusocom.
80 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 81

Apresentação
Eduardo Jorge Esperança1

Gostaria de fazer a introdução a esta oferecerem uma nova significância estética


temática com aquilo que encontro de mais por, com ele, poderem aparecer novos
comum e fértil de entre os objectos que aqui interesses estéticos. Mas o que é isto a que
se abordam, isto é, imagem e representação. chamamos novo interesse estético?
Nesta contemporaneidade de excessos e Jonathan Friday, no seguimento de Roger
também de excessos de imagens, elas estão Scruton e William King, explica-nos que, para
por aí, por todo o lado, e servem para tudo. algo adquirir significância estética, é
Isto não nos deve impedir ou toldar a reflexão necessário ser possível encontrar-lhe um
acerca da sua presença pesada, dos seus usos, interesse estético específico e distinto. “Este
do seu estatuto representacional. interesse é tradicionalmente encontrado no
Na era da imagem digital, este estatuto objecto ou imagem pelo modo como são
da imagem que, durante século e meio de representados por si sós –– “for it’s own
existência da fotografia química veio a ser sake”, como um fim em si. Assim, para a
discutido, está cada vez mais problemático. fotografia mostrar uma significância estética,
A nova tecnologia roubou à imagem é necessário que seja possível apresentar um
maquínica os últimos indícios de prova e de interesse estético característico das
representação do objecto representado. Mas propriedades representacionais da fotografia.
trouxe outras coisas. Trouxe uma infinita Tal interesse na fotografia implica uma
capacidade de criação e uma perenidade atenção orientada para as próprias
nunca antes conseguida. propriedades representacionais e não apenas
O fantasma da representação do real ou como o melhor meio disponível para
do modo de representar a verdade, como se satisfazer o desejo de ver os objectos
poderá exprimir pelo senso comum, é um reproduzidos pela fotografia.. Quando o
fantasma que nunca afectou sobremaneira interesse de alguém numa fotografia passa
fotógrafos ou criadores de imagens. Afectou apenas pelos objectos nela reproduzidos,
sim, homens de ciência e de Direito, então o valor da fotografia é apenas
preocupados com a prova e a representação funcional.” (http://construct.haifa.ac.il/
fidedigna. A este nível, a capacidade ~ttkach/art2000/articles/as1.htm).
representacional da fotografia e do filme fica A capacidade inédita de controlo sobre
reduzida à possível plausibilidade do que é a imagem neste novo mundo da
representado e a evidência torna-se representação, deve fazer-nos pensar acerca
impossível. dos actuais operadores da era virtual e das
No entanto, estas novas implicações, múltiplas vias de percepção do real que nos
oferecem ao criador da imagem uma tal são oferecidas ou impostas. Até certo ponto,
plasticidade que é todo um novo quadro de a conclusão a que podemos chegar é que,
considerações estéticas a ser chamado à cada vez mais, a imagem construída, constitui
presença desta nova imagem. Este controlo cada vez menos evidência cartesiana de seja
sobre a totalidade do conteúdo representa- o que for que ela reproduza, mas sim dos
cional da nova imagem impõe à fotografia padrões e standards da cultura em que foi
como a todas as artes dela derivadas, concebida.
necessariamente um novo estatuto de arte
representacional. _______________________________
Mais interessante, igualmente é o facto 1
Universidade de Évora. Coordenador da
de este novo controlo sobre o conteúdo Sessão Temática de Fotografia, Vídeo e Cinema
representacional da imagem e a sua aparência, do II Ibérico.
82 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 83

O real quando menos se espera


Anabela Moutinho1

O pretexto para esta minha reflexão são exponenciam é o jogo entre ilusão e reali-
certos filmes actuais que, como refiro na dade no seio da ilusão de realidade que o
síntese enviada para o Congresso, constitu- cinema é e provoca: seja, no caso do pri-
em uma espécie de limbo entre “ficções meiro, fazendo-nos crer objectivas e, nesse
realistas” e “documentários ficcionados” e, sentido, documentais, imagens que foram
nesse sentido, nos forçam a colocar deter- manipuladas com a presença de figurantes
minadas questões sobre eles, esses filmes, e ou encenadas pelo operador, seja, no caso
sobre o cinema, enquanto tal. A primeira das do segundo, fazendo coincidir o máximo de
quais será, para mim, se esse limbo de hoje verosimilhança com o máximo de maravilho-
será novo e, se não o for, se será diferente so num único plano, concedendo assim re-
do de outras épocas. alidade exterior a algo que só foi real através
Historicamente o cinema foi considerado do artifcio cinematográfico.
como não se inscrevendo numa única matriz, O que julgo bastante evidente é que
mas em duas, aquelas que Georges Sadoul ambos – supostamente padrinhos de dois
enunciou na sua monumental Histoire de l’art caminhos tão diferentes que quase se diriam
du cinéma2, a do realismo documentarista dos paralelos – compreenderam e colocaram em
irmãos Lumière e a da ficção fantasista e prática o único realismo possível em cinema:
mágica de Georges Méliès. Entre “cinema- o realismo de cinema, isto é, o realismo ci-
captação” (da realidade externa) e “cinema- nematográfico. Nem de outra maneira seria
intervenção” (sobre a realidade “interna”, isto, possível ele ser. Qualquer realismo não é
é fílmica), o cinema teria vivido desde o início adequação plena à realidade; é outrossim, ou
uma dualidade, profícua pelas hesitações e meramente do ponto de vista tecnológico ou
indefinições que provocava, mas que obri- do especialmente artístico, produção de
gava a trilhar dois diferentes caminhos. Ora, realidade. Assim, o “facto fílmico” (apelan-
o que é útil realçar é que nessa suposta do à célebre expressão de Metz), mais do
dualidade – nesses mesmos Lumière e Méliès que cada filme enquanto obra/texto de sig-
como exemplos – as questões foram, pelo nos/cdigos documentais ou ficcionais feita,
contrário, colocadas por eles nos seus rigo- é a indefinição mesma, a transgressão das
rosos termos: seja na Chegada do Comboio fronteiras, a diluição das diferenças presen-
la Ciotat ou na Viagem à Lua3, documentário tes no filme. Objectar-me-ão que, por estra-
e ficção foram (e são) extremos em tensão tégia comercial mas igualmente algumas
e contaminação perpétuas, pois não há re- vezes por limitação propriamente artística, o
gisto que elida a representação dos “actores” cinema desde cedo criou – ou prolongou –
presentes na imagem e a criação de reali- tipos e géneros, a um tempo para ir ao
dade, por parte do realizador/autor, através encontro de públicos especficos e para ir
da selecção do ponto de vista e, posterior- contra veleidades criativas ou experimentais
mente aos Lumire, da montagem, nem há que, baralhando e tornando a dar, dificulta-
fantasia que possa operar sem o objectificável vam a tarefa da catalogação, tão cara a mentes
inerente à realidade na qual se intervém, pelo preguiçosas ou indulgentes, e que nesse
que ambos são captação e intervenção. sentido há efectivamente obras vincadamente
Assim, cabe perguntar que realidade é ficcionais ou documentais. Mas se não me
permissvel no real cinematográfico, bem cabe aqui questionar se e quando ou quanto
como se impõe questionar que realismo é um filme é só pertença a um certo tipo ou
admissível na realidade cinematográfica. Pois género, devo salientar que há uma primor-
bem, o que tanto Lumière como Méliès dial análise ontológica na qual todo e qual-
84 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

quer filme se integra, por mais ou menos A oposição fundada no que a realidade faz
arredio que seja a classificações: “realidade” com o cinema ou no que o cinema faz com
e “cinema”, quando postos em relação, são a realidade não encontra, verdadeiramente,
necessariamente comutáveis. Ambos são ilu- grandes possibilidades nem de justificação
são e ambos são reais. Ambos são constru- nem de legitimação no cinema nem na
ção e ambos são factuais. Ambos são etéreos História dele, exceptuando quando a discus-
e ambos são concretos. A dualidade são teórica se centra nas opções políticas ou
ontológica entre “realidade” e “cinema” na nos panoramas ideológicos de filmes concre-
qual se quis inscrever a tal matriz dicotómica tos, isto é, quando a discussão deixa de ser
“cinema-captação” / “cinema-intervenção”, fílmica para passar a ser cinematográfica. E
“documentário” / “ficção”, uma dizendo aí torna-se claro que o que as correntes
respeito ao que a realidade faz com o cinema teóricas realistas combatem é uma prática
e a outra ao que o cinema faz com a re- alienatória dos filmes-fábrica-de-sonhos para
alidade, pode ser afinal uma relação lhes opôr um cinema-verdade que todavia,
ontológica, reposta agora em mais precisos como sabemos, pode ser – é necessariamen-
termos: a realidade do cinema enquanto te?... - igualmente tão manipulador e, nesse
representação é real (o objecto representado sentido, fonte de quimeras, quanto o outro.
real porque era real no momento em que foi Todas as maneiras que possamos usar para
captado) e enquanto reprodução é ilusória caracterizar o filme realista são igualmente
(aquilo que se projecta resulta de uma ilusão válidas para caracterizar o filme, digamos,
óptica e configura em si a ilusão presente fantasista: em todos os filmes encontramos
na imaterialidade da imagem); a realidade no o real, ou certos aspectos dele, ou nos nesses
cinema enquanto representada é ilusória (pe- aspectos do real (como vimos há pouco), em
las razões inversas, isto é, a realidade está todos os filmes podemos encontrar o projec-
to do realizador em recolher o máximo
na imagem que a representa mas não é a
possível de realidade (qual a diferença a esse
imagem que a representa) e enquanto
nível entre– The Blair Witch Project de
reproduzida é real (pelas razões inversas
Miryck e Sanchez e Stromboli, de Rosselini?),
também, isto é, torna-se real ao ser projec-
para todos os filmes devemos argumentar com
tada, no duplo sentido de pertencer duplamen-
o realismo ontológico da fotografia cujas
te realidade do cinema e à realidade no
consequências a actual imagem digital ainda
cinema). Por outras palavras, esta
não destronou (qualquer filme de Keaton é
reformulação, ao conferir estatuto ontológico
a esse título tão real quanto os Drifters de
tanto à reprodução e representação da reali-
John Grierson)5. O realismo – e convém
dade como à reprodução e representação da sublinhar que em História do Cinema não
ilusão, o que é dizer, tanto à realidade quanto há o realismo, há sim realismos – parece ser,
à ilusão enquanto tais, sublinha o facto de que antes de mais, algo que nega, mais do que
em cinema elas não podem ser entendidas algo que afirma e que se afirma nessa afir-
enquanto entidades independentes mas, pelo mação. Nesta definição negativa e neste
contrário, enquanto entidades inter-dependen- impulso negativo que é a sua causa (diria
tes. Realidade do e no cinema são bi-unívocas Yuri Lotman, nesta–“poética da rejeição”6)
e não mera e dualisticamente unívocas4. - o filme realista contesta e subverte os filmes
É curioso notar que uma leitura, mesmo que se assumem como ficcionados, distantes,
que apressada, da historiografia das teorias enredos fabulatórios, dispositivos inverosí-
do cinema faz ressaltar que muitas delas meis, modelos de vida ideal que, por isso
sustentaram e vincaram um dualismo que, mesmo, se compreende terem mera utilidade
assim sendo, na verdade nunca existiu. Como de divertimento e evasão, ainda hoje tão
se o ser de cada um – realidade e cinema premente e dominante. Então a questão, sendo
- se espelhasse no seu pensar, mas esse do foro psicológico, sociológico e político,
reflexo não fosse mais do que a perpetuação radica numa outra dimensão que o filme
até ao infinito de uma falácia inicial, a que realista a um tempo pressupõe e persegue:
procura defender para o cinema o que se a de que o cinema seja a oportunidade de
pensa previamente a ele sobre práticas dele. dar a ver e não só de ver. E porventura reside
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 85

aí a sua singularidade: nesta oferta, tantas particular, do realismo enquanto tal conso-
vezes crua, de realidade que se oferece e sobre ante as fases históricas consideradas e, ainda
a qual nada ou muito se manipula (as di- mais em particular, do realismo enquanto tal
ferenças cinematográficas, estéticas e fílmicas consoante as fases históricas consideradas
entre realismos obrigam-nos a contemplar quando estas foram ultrapassadas); toda-
ambas as hipteses porque ambas foram efec- via, tal não inibe o carácter transformador
tivamente praticadas, vide Rosselini face a que o motiva, transformação não tanto sobre
Bresson ou Bresson face a Loach, isto para a realidade representada, mas sim sobre o
não recuar a Stroheim de Greed ou mesmo espectador que a acolhe. Quando acolhe.
a Griffith de The Broken Blossom, que me Donde, resta-me perguntar o que acolhe,
perdoem os puristas por incluir estes últimos), ou não, o espectador de hoje, nos filmes
radica o compromisso ético que é a base realistas que um pouco por todo o mundo
de todo o filme realista. Compromisso do re- se vão fazendo em tempo de globalização,
alizador com a realidade que dá a ver, desta convulsão maior porque diferente, com novos
com o filme e deste com o público. À dados e imensos desafios. Isto é: se até aqui
reprodução e representação que acima estive a pensar na História que já foi, é agora
foram apresentadas como harmonia bi- o momento de me debruçar um pouco sobre
unívoca entre real e ilusório, o filme realista a história que está a ser.
acrescenta um gesto que está para além dela, Se me for permitido generalizar, creio que
o que é dizer, acrescenta fazer ao ser. há uma diferença, que me parece interessan-
Isso foi constante em toda a História do te, entre o realismo de hoje e o de ontem:
Século XX como parece estar a ser na deste a que existe entre o colectivo e o individual,
início de Século XXI: sempre que há con- entre o público e o privado. Tal diferença
vulsão “lá fora”, apetece realismo no cine- encontra-se tanto no realizador que expõe
ma, e eis-los que surgem, nas vanguardas de como no filme exposto como, por último, no
início de sec. XX (e não só pela mão de espectador que fica exposto. A períodos
Eisenstein ou, especialmente, Vertov, históricos em que as motivações e os pro-
manipuladores máximos de realidades – pósitos eram públicos e colectivos (às vezes,
ideológicas, em primeira instância – míni- até, colectivistas), parece suceder-se uma
mas, mas, num mais revolucionrio sentido, época que, na ausência (que pessoalmente
pelos objectivos surrealistas de abraçar re- creio temporária) de ideologias unificadoras,
alidades – ideológicas, em última instância está centrada no indivíduo.
– máximas), ou mesmo nos filmes de Não que os anteriores momentos colec-
gansgters ou nas obras liberais dos anos 30/ tivos não tivessem sido somas de indivíduos
40 em Hollywood (os maus-da-fita e os bons- particulares, não que a noção de compromis-
da-fita, todos a apelar ao empenhamento so ético não implique sempre a existência
cívico de um espectador brutalizado por de 1 + 1, não que os filmes de hoje, como
James Cagney morrendo a gritar “Made it, os de ontem, não se dirijam antes de mais
Ma! Top of the world!” ou por James Stewart à consciência individual do espectador sin-
desmaiando de exaustão no Senado7), para gular; mas ao nível da recepção - dada a
não referir os mais óbvios exemplos do multiplicação dos suportes ou meios alter-
realismo italiano do pós-guerra ou, mais tarde, nativos de visionar filmes, seja em vídeo ou
do free-cinema e do cinéma-vérité e do seu dvd ou através da internet – como ao nível
equivalente além-atlântico americano nos da criação - muitas (não todas) das “novas
anos 60 (pelo menos algumas obras de imagens” que por aí circulam transmitem e
Cassavetes permitem essa associação, na do são transmitidas por uma espécie de clausura
Norte, e todas as de Glauber Rocha, na do viciosa, ou porque se comprazem meramente
Sul), para rematar com alguns autores que em exercitar tecnologias (e nunca a tecnologia
ainda hoje insistem em engager as suas obras. foi de per si alavanca para avanços artísti-
Sim, ao “dar a ver” o filme realista faz cos, o inverso é que é verdadeiro) ou porque
para que outros façam. Pode não o conseguir se julgam inovadoras quando afinal só o
(e talvez a resida a razão do maior ou menor suporte em que se exercitam é novo, não os
sucesso de filmes e/ou autores realistas e, em esquemas estéticos, culturais e políticos dos
86 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

seus (solitários, pelo menos ao nível dos seus à diluição do indivíduo no mundo global
efeitos) exercícios -, dizia, ao nível da re- correspondesse, em gesto político a um tempo
cepção como do da criação, o que falta hoje subversivo e utópico, a afirmação do indi-
é a noção de partilha ou pertença a um víduo como mundo globalizável.
movimento maior. O Muro caiu e cada um Tenho que confessar que estas minhas
ficou com o seu tijolo. últimas reflexões têm por pano de fundo casos
Por outro lado, acompanhando e agravan- actuais de realismo – José Luis Guérin em
do este fenómeno, a globalização operada Espanha, Abbas Kiarostami no Irão e Pedro
pelos antigos e novos meios de comunicação Costa em Portugal – que não obviam, na-
ao invés de aumentar a liberdade de pensa- turalmente, a existência de outras práticas ou
mento, de escolha e de acção do indivíduo, outras propostas actuais igualmente “realis-
estreitou-a. Penso no caudal ininterrupto de tas” dados os seus objectivos éticos, mas que
informação – filtrada, note-se bem – que é pessoalmente me interessam menos em ter-
humanamente impossível assimilar no seu mos estéticos. É a atitude destes realizado-
conjunto, mas penso igualmente nos meca- res, concretizada em pelo menos alguns dos
nismos de poder e controlo sobre essa in- seus filmes, tanto nos retratos executados
formação e sobre os produtos culturais, latu como nas opções cinematográficas feitas, que
sensu, que equivalem, no caso do cinema, me interessa agora realçar brevemente.
a que a apetência esteja criada mais para Têm algo de comum: seja Guérin e a sua
assistir à estreia de uma obra norte-ameri- invenção da narrativa numa realidade forjada
cana cuja identidade, pelo menos cinemato- como acontece em Tren de Sombras ou a sua
gráfica, pouco poder ter a ver com a nossa, exposição de narrativas em realidades em
do que para dispender algum tempo a de- convulsão como é o caso de En Construcción,
dicar a nossa atenção e estima às obras que seja Kiarostami e o falso documentário em
no nosso e em outros países se produzam. Dez ou a falsa ficção em Através das Oli-
Matrix em estreia mundial. O Muro caiu e veiras, seja Costa e a sua imersão em corpos
cada um ficou sem o seu tijolo. de um bairro em Ossos ou a sua implosão
É num panorama destes em que o em grandes planos de rostos em No Quarto
indivíduo está paradoxalmente isolado num da Vanda, há uma convicção partilhada de
mundo em que tudo pode ser vivido em que “todos os planos devem ter gente lá
simultâneo, em que o indivíduo perde co- dentro”8, no duplo sentido de serem habita-
ordenadas com o excesso delas, em que o dos por gente (e não só por personagens) e
indivíduo se encontra entregue a uma sorte de serem habitados por eles, realizadores, que
destinada por um poder a maior parte das impõem um ponto de vista sem artifícios. Sem
vezes invisível ou, pelo menos, tão gigan- artifícios, repito: de raiz, pela colocação da
tesco que surge como imbatível, em que, em câmara, para observar e assim poder ser
suma, o indivíduo observa no tijolo as suas observado; de forma, pela duração dos pla-
potencialidades de construção ou de destrui- nos, para deixar viver e assim ser vivido; de
ção sem ainda ter a certeza quais delas prefira, resultado, pela montagem que privilegia o
num panorama destes que o realismo em corte, fazendo da elipse não uma mera figura
cinema, hoje, me parece privilegiar os re- de estilo mas um estilo de vida, carregando
tratos às descrições. Como se nessa parti- de significado o que não se vê por forma a
cularização da realidade que se dá a ver se que o visto ganhe mais sentido. Isto: não há
unissem três vértices – o retratado, quem artifício no ponto de vista porque ele despo-
retratou e quem vê o retrato – promovendo jado, aberto, dado e tão carente quanto o
uma construção triangular, mais ou menos da realidade que se filma, e por isso respeita
equilátera mas ao menos comum, que, ao o ritmo e a pulsação da matéria humana de
manter a individualidade de todos estabelece quem filma e de quem é filmado.
- por isso mesmo e mesmo assim - pontes Realidade do e no cinema. Bi-unívocas.
de contacto. Como se, ainda, a única ma- Descobrimos agora uma maneira de um certo
neira de estabelecer tal contacto fosse atra- realismo actual operar nesta bi-univocidade:
vés do indivíduo e da carga universalizante mais do que assumindo-a (o que já é de
que ele tem ou pode ter. Como se, afinal, monta, muitos nem dela se apercebem por
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 87

mais que inevitavelmente a pratiquem), di- nesse seu fazer, em que, portanto, o ritmo
zia, mais do que assumindo-a, vivendo-a. da vida nos é oferecido na sua duração
Sendo vida através da utilização da matéria específica, na sua duração lenta, na sua
humana – do retratado como do retratista – duração sofrida, na sua duração enigmática.
como matéria fílmica. E nós com ela. O além definitivamente aqui.
Outro tipo de objecção pressinto em vós Não é por acaso que o tipo de plano pri-
agora: que em qualquer filme a vida está vilegiado por estes autores (pelo menos em
presente, pelo menos nessa presença ausente En Construcción, Dez e No Quarto da Vanda)
ou ausência presente a que Christian Metz seja o plano fixo, como se nessa imobilidade
já havia feito referência há tanto tempo, isto da câmara a vida discorresse melhor, e o
é, que tudo num filme respira e pulsa vida, realizador com ela, naquilo que a sua atitude
seja ele qual for e seja ela qual for. é receptiva ao pulsar que vem de lá; e muito
Contudo, o que torna especial este novo menos é por acaso que o tempo dos planos
realismo é quanto faz repousar no retrato a seja habitualmente longo ou mesmo em
sua função, a sua estratégia e a sua força. sequência, retomando o gesto rosselliano de
Função, estratégia e força que, paradoxalmen- deixar a vida acontecer na sua duração
te, não são só individuais mas tambm uni- contínua. Uma luta contra a descontinuidade
versais. Como se estes retratos fossem o sinal espacial e temporal, que, afinal, são apanágio
destes tempos de isolamento do eu; como se do específico cinematográfico? Não, mais do
só a partir da aceitação desse isolamento o que isso: uma luta pelo contínuo espacial e
seu estilhaçamento fosse desejável; como se temporal que podem ser apanágio de certos
só com esse isolamento nos percebêssemos factos fílmicos contra outros menos submer-
como membros, não de um movimento gidos por preocupações de construir a favor
colectivo maior, mas de um colectivo que das pessoas. Isto é: a “poética da rejeição”
pode ser posto em movimento. Não há pontes,
continua, sobrevivência como sempre foi
há túneis. Cabe às vidas individuais escavá-
face a modelos gastos ou nem por isso tão
los por entre os subterrâneos do que teima-
novos assim, mas agora sulcada nos rostos
mos em ter em comum. Ir ao encontro das
individuais. Este cinema, dos poros e das
pessoas, cada uma delas portadora de uma
rugas, é o dos poros e das rugas de pessoas
unidade que é transmissível, cada uma delas
que são ou não são como nós, e nesse ser
personificação de uma identidade que impor-
ou não ser como nós nos sentimos a nós,
ta conhecer, cada uma delas em diálogo
enquanto seres verdadeiramente humanos,
consigo, com o realizador e connosco atra-
acometidos por angústias políticas e assom-
vés de um filme e para além dele. Por mais
que esses retratos possam ser, por brados por alternativas cívicas, mas final-
inevitabilidade mesma ou por opção (do mente tranquilos por saber que a nossa
retratado ou do retratista) tão ficcionados solidão, que toda a solidão, é partilhável.
quanto reais, tão captados na sua sinceridade Que a identidade resiste ao anonimato da
como interventivos na sua complexidade, os globalização. Que a comunicação é possível
filmes em causa são construídos respeitando entre línguas que não se dominam. Que
um compromisso com o objecto do olhar e aquele retrato me ajudou a completar o meu.
o sujeito do olhar (autor ou espectador) que Que o meu retrato pode ajudar a completar
passa pela oferta de uma manipulação mí- o de todos. Que, no fundo, são esses os
nima para que assim possa ser intervenção tijolos que nos restam. Que, afinal, são eles
máxima: cinema que se faz para nos pro- que nos facultam a realidade: aí, quando
vocar um fazer, que se faz para nos fazer menos se espera.
88 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

3
Bibliografia Para além de tudo o resto, porque ambos
foram protagonizados por actores ou quem a sua
Cabrita, António, “O trabalho da soli- vez quis fazer.
4
O mesmo raciocínio é aplicável ao interior
dão”, in “Cartaz”, Jornal Expresso, 08.11.97.
do próprio filme quando pensamos no recurso às
Liandrat-Guigues, Suzanne (antol.). trucagens e aos efeitos especiais, que, no caso,
Barthélemy Amengual – du Réalisme au são unicamente outros campos onde esta bi-
Cinéma, Paris, Nathan, Col. Réf, s/nº, 1997. univocidade entre real e ilusório se joga.
Lotman, Yuri, Estética e Semiótica do 5
V. a propósito Suzanne Liandrat-Guigues (antol.).
Cinema, Lisboa, Editorial Estampa, Col. Barthlemy Amengual – du Réalisme au Cinéma, Paris,
Imprensa Universitária, s/nº, 1978. Nathan, Col. Réf, s/nº, 1997, pp 24-26.
6
Sadoul, Georges. Histoire de l’Art du Yuri Lotman, Estética e Semiótica do Ci-
Cinéma - des origines à nos jours, Paris, nema, Lisboa, Editorial Estampa, Col. Imprensa
Universitária, s/nº, 1978, p. 41.
Flammarion, 4ª edição revista e aumentada, 7
Respectivamente, em White Heat de Raoul
1955 [1949]. Walsh (1949) e Mr Smith goes to Washington,
de Frank Capra (1939).
8
Ideia reformulada a partir da seguinte citação
_______________________________ de Pedro Costa a propósito do seu filme Ossos: “Para
1
Universidade do Algarve. mim é uma questão de princípio, neste filme não
2
Georges Sadou, Histoire de l’Art du Cinéma há um “plano vazio”, isto é, um plano sem a presença
- des origines à nos jours, Paris, Flammarion, 4ª humana.”, in António Cabrita, “O trabalho da
edição revista e aumentada, 1955 [1949], pp 19- solidão”, “Cartaz”, Jornal Expresso, 08.11.97, p. 9.
31.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 89

La identidad de género:
aproximación desde el consumo cinematográfico
entre los estudiantes de la Universidad del Pais Vasco1
Casilda de Miguel, Elena Olabarri, Leire Ituarte2

Décadas después de que las teóricas Resultados


fílmicas feministas3 pusieran sobre el ta-
pete la mediatización patriarcal que el cine 1. Consumo cinematográfico
ofrecía de la mujer y, ante la posibilidad
de que el panorama cinematográfico haya El primer dato que nos interesa conocer
podido sufrir notables cambios en relación es el comportamiento de los estudiantes con
con su consumo y sus estrategias de respecto a una de las actividades de ocio:
representación, buscamos recabar el consumo cinematográfico.
información sobre el valor del cine para
En función de la frecuencia de asistencia
una audiencia joven en una época en la que
al cine, este colectivo se distribuye del
nuestra relación con la imagen ha variado
siguiente modo:
tan sustancialmente. Tratamos de explorar,
así mismo, hasta que punto la supuesta Frecuencia %
transformación de los roles de género ha
Nunva va al cine 0,8%
sido asimilada por el discurso cinemato-
Devez en cuando 43,3%
gráfico que consume esta generación que
ha crecido con la institucionalización ya Al menos una vez al mes 20,4%

consolidada de las proclamas feministas. Más de una vez al mes 24,3%


Una o más veces a la semana 11,2%
Metodología y descripción de la muestra
De acuerdo con estos resultados pode-
La técnica de investigación seleccionada mos afirmar que el 55.9% acuden al cine
ha sido la encuesta. Un total de 405 alumnos como mínimo una vez al mes lo que sig-
de la Universidad del País Vasco la nifica que, en mayor o menor medida,
contestaron durante el mes de Mayo de 2001, forman parte del público de cine.
siguiendo el método de muestreo por con- Comprobamos además que los espectadores
glomerados mediante una estratificación pro- que acuden con una alta frecuencia al cine
porcional por licenciaturas. El número de – léase, el núcleo cinéfilo – (11.2%) es
cuestionarios utilizados, tras un proceso de
considerablemente mayor que el que no
depuración y revisión de su consistencia se
acude nunca (0.8%). Ni la variable género,
redujo a 379. El error muestral tolerado fue
ni el presupuesto real del que disponen están
+ 5,9% con un nivel de confianza del 95.5%
relacionados con su nivel de asistencia al
para p= q = 50.
cine.
Atendiendo a la variable edad, se trata
de un grupo bastante homogéneo: el 86.6% Considerando la evolución que, en
de los encuestados oscila entre los veinte y relación con la asistencia al cine, se ha
los veinticuatro años. La presencia por género podido producir en nuestros alumnos a lo
de alumnos en el aula, en el momento de largo de su vida, se observa – en la tabla
realizar la encuesta, fue de un 36.51% chicos 1- que el interés por el cine parece
frente a un 64.49% chicas desarrollarse en la época universitaria. Un
Con respecto a la disponibilidad eco- periodo marcado no sólo por una mayor
nómica no se observan diferencias libertad en el uso y disfrute del tiempo para
reseñables por género salvo una muy sutil el ocio, sino también, por una mayor
mayor solvencia en los chicos que en las inquietud cultural que tiene su reflejo ló-
chicas. gico en el terreno audiovisual.
90 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Tabla 1
Epoca de ir más al cine

Frecuencia en el Nunca o de Una o más Una o más


momento actual vez en cuando veces al mes veces a la semana
Infancia 7,3% 2,4% 0,0%
Instituto 27,4% 15,3% 2,4%
Universidad 35,4% 68,8% 87,8%
No hay diferencia 29,9% 13,5% 9,8%
Totales 100,0% 100,0% 100,0%

Resulta también relevante comprobar que No existen diferencias sustanciales en los


sólo un 19.2% de los encuestados reconoce hábitos de ocio, en función del género. Tanto
la época de instituto como el periodo en el los chicos como las chicas comparten como
que más iban al cine. Este dato cuestiona actividad prioritaria salir con los amigos.
la tesis de aquellos que consideran que son Tampoco existen diferencias en el tiempo que
los más jóvenes los que de forma abrumadora dedican a estar conectados a la red. Como
acuden a las salas4. El resultado de nuestra anécdota cabe observarse que existe una muy
encuesta coincide, en este sentido, con el ligera diferencia que afecta al tiempo que
informe de la SGAE (2000)5. dedican las chicas a las actividades de ir al
cine, ver televisión, leer, oir música, frente
2. Factores de influencia al tiempo que los chicos dedican al deporte.

2.1. Actividades de ocio 3. Criterios de elección de las películas

Ir al cine no parece una actividad prioritaria Cuando nuestros estudiantes deciden ir al


en los hábitos de ocio de este sector. cine. ¿Cuáles son los factores y criterios que
Considerando los resultados de esta condicionan la elección de la película que
pregunta de respuestas múltiples – ver tabla van a ver?
2 –, y en relación con la frecuencia de Las tres primeras razones que más
asistencia al cine se observa que la actividad influyen en la decisión de ver una película
prioritaria es salir con los amigos. El contacto son coincidentes (ver gráfico 1). En primer
con los medios de comunicación, – léase oír lugar la opinión de los amigos, seguida del
música, ver televisión o vídeos, ir al cine- género cinematográfico y la crítica especi-
ocupa un segundo lugar dentro de sus alizada. Se observa una relación proporcio-
preferencias. La actividad más minoritaria es, nal inversa entre la publicidad y la cinefilia.
sorpresivamente, la de conectarse a la red. El gráfico muestra que, también en el terreno
Otro dato llamativo es la distancia que marcan del consumo cinematográfico, la publicidad
los gráficos entre la práctica del deporte y parece un reclamo bastante efectivo de
la asistencia al cine. persuasión para el público indeciso o no fiel.
La incidencia de los premios cinematográ-
Tabla 2 ficos muestra ser, a su vez, un reclamo
Actividades de tiempo libre por género proporcional al incremento en la asistencia.
Lo mismo sucede con el director, que parece
Actividad Chicas Chicos
recabar más la atención de los cinéfilos que
Salir con amigos 32,7% 32,9% la de aquellos que van poco al cine.
Ver televisión 18,4% 17,4% Resulta llamativo, a primera vista, el
Conectarse a la red 3,9% 3,9% distinto poder de reclamo que tienen el actor
Leer y oir música 22,6% 18,7% y la actriz protagonistas como criterio de
elección. La mayor atención al reparto
Ir al cine 12,9% 9,6%
masculino podría deberse a que el 63% de
Hacer deporte 9,4% 17,6%
las personas que han contestado a la encuesta
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 91

Gráfico 1
Criterios de elección de las películas

son mujeres, pero también podríamos encon- situándose en la cima de la popularidad actores
trar otras razones tales como el tradicional que ya han cumplido los sesenta.
monopolio del protagonismo masculino en la
historia cinematográfica. Tabla 4
La compañía como factor influyente es, Los actores favoritos
lógicamente, más importante en aquellos
Chicos
sectores que menos asisten al cine.
De Niro Robert 41,2
En lo que a la variante género se refiere
– tabla 3 – las diferencias más significativas, Pacino Al 14,9

aún siendo bajas, afectan al director que Ford Harrison 12,3


parece ser un criterio de elección de más peso Connery Sean 8,8
en los chicos frente a la publicidad que Bardem Javier 7,9
adquiere más importancia en el caso de las Hanks Tom 7,9
chicas.
Noriega Eduardo 7,9
Gibson Mel 6,1
Tabla 3
Criterios de elección de las Nocholson Jack 6,1

películas por género Eastwood Clint 5,3


Hopkins Anthony 5,3
Criterios Chicas Chicos Norton Edward 5,3
Director 6,2% 11,0% Pitt Brad 5,3
Compañia con la que ir 6,2% 9,5%
Chicas
Actriz 4,0% 6,4%
De Niro Robert 27,0
Actor 5,9% 7,5%
Gere Richard 14,5
Publicidad 12,8% 7,9%
Pitt Brad 13,0
Premios 8,8% 6,1%
Connery Sean 12,0
Ford Harrison 11,0
4. Actores y actrices favoritos
Bardem Javier 10,0
Noriega Eduardo 9,0
La diversidad de gustos en cuanto a la
preferencia de actores y actrices es notable. Un Hopkins Anthony 8,0
total de 130 actores frente a 106 actrices. A la Gibson Mel 7,5
luz de la tabla 4 resulta significativa la dife- Hanks Tom 7,5
rencia porcentual entre el actor y la actriz más Cruise Tom 7,0
citados y el resto. Otro dato curioso es comprobar
Cage Nicholas 6,0
la sustancial diferencia de edad entre los actores
Cloonie Geroge 6,0
y actrices favoritos y la de los encuestados,
92 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Se puede señalar, en primer lugar, el alto vo, belleza, capacidad, humor, sinceridad,
grado de coincidencia en la elección aunque versatilidad. El orden de preferencias de las
el orden porcentual varíe. Como caracterís- chicas muestra una combinación entre el
ticas de los actores destacan su modelo idílico de una feminidad como la de
profesionalidad, la versatilidad, el estilo, el Julia Roberts o Sandra Bullock y el carisma
carácter, el atractivo físico y la credibilidad. y la fuerza de una Susan Sarandon o una
Si el modelo de referencia para los chicos Jodie Foster. Parece que Julia Roberts para
es el prototipo de hombre varonil, duro, las chicas y Robert de Niro para los chicos
activo, con poder, en el caso de las chicas, se erigen como los modelos actuales de
se suma a este prototipo, el del hombre más identificación de la feminidad y la
sensible ( Richard Gere), vulnerable (Harrison masculinidad respectivamente.
Ford) y el añadido del atractivo físico. La percepción del grado de erotización
en la construcción del cuerpo responde a
Tabla 5 la idea de que en el cine actual sigue siendo
Actrices Favoritas general una mayor erotización del cuerpo
femenino. No se aprecia el cambio que se
Chicos va produciendo en la publicidad, las teleseries
Roberts Julia 26,2 o los filmes para adolescentes donde se puede
Cruz Penélope 12,6 observar una erotización cada vez mayor del
Sarandon Susan 10,7 cuerpo masculino. Quienes consideran que
Pfeiffer Michelle 10,7
existe una mayor erotización del cuerpo
femenino comparten la idea del mayor
Bullock Sandra 9,7
protagonismo del hombre sobre la mujer. Lo
Foster Jodie 7,8 que nos permite observar que se mantiene
Raider Winnona 6,8 el estereotipo clásico: hombre, protagonista,
Sánchez Gijón Aitana 6,8 activo frente a la mujer, secundaria, pasiva,
Maura Carmen 5,8 objeto de deseo. Y quienes consideran que
Binoche Juliet 5,8
la erotización del cuerpo es la misma, también
consideran que tanto unos como otras gozan
Bacall Lauren 4,9
del mismo protagonismo.

Chicas 5. Cine e identidad de género


Roberts Julia 51,4
Bullock Sandra 11,0 Otra cuestión sin duda significativa para
Sarandon Susan 10,5 nuestro análisis fue la de saber qué es lo que
Ryan Meg 8,8
los encuestados entienden por la denominación
“cine de mujeres”.
Foster Jodie 8,3
Observando el gráfico 2 no aparecen
Streep Meryl 8,3
diferencias significativas aunque los dos
Maura Carmen 8,3 primeros grupos – usuarios ocasionales y
Raider Winnona 7,7 usuarios habituales – entienden en mayor
Cruz Penélope 7,2 proporción que el cine de mujer es sinónimo
Pfeiffer Michelle 6,1 de cine de amor frente al grupo de los mas
cinéfilos que definen el cine de mujeres como
Binoche Juliet 5,5
aquel protagonizado por una mujer. Desde
el punto de vista de la construcción de la
Con respecto a las actrices – tal como identidad sorprende lo conservador de la
se muestra en la tabla 5 – considerando las respuesta en referencia a su propia realidad
diferencias por género, observamos que los de vida, manteniéndose el planteamiento de
chicos citan a un total de 75 actrices frente los roles convencionales.
a las 77 que citan las chicas. De las actrices Es importante contrastar estos datos con el
favoritas destacan su profesionalidad, físico, resultado de la siguiente pregunta que les for-
simpatía, personalidad, sensualidad, atracti- mulamos. ¿Qué entiendes por cine de hombres?
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 93

Gráfico 2
Definición de “cine de mujeres”

Gráfico 3
Definición de “cine de hombres”

Por medio del gráfico 3, vemos que la lino y la denominación de “cine de hombres”
definición de cine de hombres no está di- parece tener menos adeptos. En general que
rectamente relacionada con la frecuencia de el protagonista sea un hombre parece lo
asistencia al cine. Las dos respuestas natural y no resulta reseñable. Una vez más
mayoritarias a esta cuestión son, en primer la norma social determina los indicadores de
lugar, definir el cine de hombres como un género.
cine de acción. Llama la atención el alto El apartado otros, recoge respuestas
porcentaje de alumnos que responden con un marginales y variadas. Fórmulas combina-
No saben / No contestan. Conviene señalar das de algunas de las propuestas lanzadas
también como dato de interés que el por nosotros, tales como “un cine hecho por
porcentaje de quienes consideran el cine de mujeres que cuenta historias de mujeres
mujeres como aquel dirigido por una mujer protagonizadas por una mujer”, hasta otras
supera al de quienes consideran que el cine que recogen la opinión tanto de que no hay
de hombres es el dirigido por un hombre. diferencias reseñables como de que se trataría
El motivo de este contraste puede residir bien de un cine que interesa a las mujeres.
en que socialmente sigue considerándose que Si la realidad es producto de las
el hombre es la norma a partir de la cual interpretaciones que hacemos del
se construyen los roles de genero y no se conocimiento diario, podríamos pensar, con
cuestiona, bien en que la dirección femenina respecto al tema de la identidad, que o bien
es, todavía hoy, excepcional. se desconoce o bien no interesa. La
Lo mismo sucede con el protagonismo. concepción que las personas encuestadas
El cine de mujeres se identifica más como tienen del cine de género es muy tipificada
el protagonizado por una mujer mientras que y sin duda indicativa de una escasa conciencia
la asociación entre el protagonismo mascu- de los debates actuales de género.
94 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Conclusiones chicas demuestran por el drama y el cine de


terror.
Los datos más significativos que se • Las preferencias en cuanto a actores y
pueden extraer de esta encuesta, a tenor de actrices es también indicativa de una
lo ya expuesto, son: diversidad de gustos notable. Resulta curioso
• Los estudiantes de la U.P.V. son con- comprobar la sustancial diferencia de edad
sumidores habituales de cine. Ni la diferen- entre los actores y actrices favoritos y la de
cia de género ni el presupuesto mensual del los encuestados.
que disponen están relacionados • La percepción del grado de erotización
objetivamente con el mayor o menor con- en la construcción del cuerpo responde a la
sumo cinematográfico. idea de que en el cine actual sigue siendo
• La cinefilia se desarrolla en la época general una mayor erotización del cuerpo
universitaria. femenino.
• No existen diferencias sustanciales en • Quienes consideran que existe una
los hábitos de ocio. Tanto los chicos como mayor erotización del cuerpo femenino
las chicas comparten como actividad comparten la idea del mayor protagonismo
prioritaria salir con los amigos. No se aprecian del hombre sobre la mujer. Quienes estiman
diferencias en el tiempo que dedican a estar que la erotización del cuerpo es la misma,
conectados a la red pero sí un ligera variable también opinan que tanto unos como otras
que afecta al tiempo que dedican las chicas gozan del mismo protagonismo.
a actividades tales como ir al cine, ver • Se manifiesta una actitud conservadora
televisión, leer u oír música frente al que los en relación con la identidad de género. La
chicos emplean en practicar deporte. Estos identificación del cine de mujeres con el cine
resultados parecen evidenciar que el cine no de amor y del cine de hombres con el cine
es la fuente de autoridad dominante en la de acción, refleja un modelo de identidad
construcción de modelos de referencia. definido previamente en la construcción de
• En la decisión de la elección de una género.
película es prioritaria la opinión de los • Conviene señalar que el porcentaje de
amigos. Considerar la crítica especializada quienes identifican el “cine de mujeres”
como referente no se ajusta a la realidad. El como aquel dirigido por una mujer supera
director parece ser un criterio de elección de al de quienes estiman que “el cine de
más peso en los chicos frente a la publicidad hombres” es el dirigido por un varón. El mo-
que adquiere más importancia en el caso de tivo de este contraste puede residir bien en
las chicas, aunque la diferencia no es muy que socialmente sigue considerándose que el
significativa. hombre es la norma a partir de la cual se
• La totalidad de los estudiantes construyen los roles de género y no se
encuestados afirma que lo que busca, cuando cuestiona, bien en que la dirección femenina
va al cine, es en primer lugar entretenimiento es todavía hoy, excepcional.
y en segundo lugar emoción. Con una ligera • Se advierte una despreocupación tanto
diferencia se observa que nuestras estudiantes por los debates como por las propuestas
se interesan más por los valores humanos, alternativas de creación en torno a la
la cultura y el conocimiento frente a los representación de la identidad de género.
estudiantes que parecen preferir los efectos En definitiva, ni el panorama cinemato-
especiales y los planteamientos estéticos. gráfico ni su consumo parecen reflejar al
• En lo que a las preferencias de los mismo ritmo los cambios que se han venido
géneros cinematográficos se refiere no se produciendo tanto en la realidad social como
detectan diferencias sustanciales entre los en los debates de género. Consideramos una
chicos y las chicas. La comedia es el género tarea urgente que la progresiva
más valorado. Sólo como anécdota, ya que institucionalización de las proclamas de la
la divergencia es mínima se podría señalar igualdad sean parejas a la introducción de
el interés que los chicos muestran por la los debates de género en las propuestas
ciencia ficción, el cine de acción y en menor educativas, políticas y socioculturales que
medida por el cine negro frente al que las modelan nuestro imaginario colectivo.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 95

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96 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 97

“Linhas de fuga” na cinematografia brasileira contemporânea


Denize Correa Araujo1

“Eu percebia maneiras de ver cuja diver- te bem finalizados, reforçam os estereótipos
sidade me interessava muito mais que os da violência, pobreza e subdesenvolvimento,
próprios objetos.” (Paul Valéry) que já fazem parte do imaginário estrangei-
ro, que assim identifica nosso cinema. Os
Este ensaio pretende, em primeiro lugar, filmes em amarelo trazem novas leituras, mas
contextualizar a produção cinematográfica ainda não fazem parte de linhas de fuga no
contemporânea brasileira dentro da estrutura rizoma. Estão de alguma maneira linkados
do “rizoma”, assim definida por Gilles às tendências atuais. “Amarelo Manga” por
Deleuze e Félix Guattari como não arbórea exemplo, retrata e maximiza o submundo,
com raiz unívoca, mas sim múltipla, com criando uma estética do kitsch, que remete
linhas não só de segmentaridade como tam- aos filmes de Lina Wertmuller, mas é tam-
bém de desterritorialização e fuga. Para maior bém bastante violento. “Lisbela e o Prisio-
clareza, preparei uma imagem-mapa neiro” segue a linha da “Rosa Púrpura do
cartográfico do contexto atual. As cores Cairo”, mas por vezes se torna um pouco
servem para melhor visualização. Em verme- melodramático e romantizado. “O Homem
lho citei alguns filmes que seguem a tendên- que Copiava” é bem feito e traz novo enfoque,
cia do momento, ou seja, uma leitura da mas apresenta soluções simplistas, embora as
problemática social. Em verde estão as li- mesmas possam ser lidas obliquamente, de
nhas de fuga que, neste momento, apesar de maneira irônica.
não tão valorizadas, representam uma ten- Não obstante o cinema brasileiro atual
tativa de produzir textos mais poéticos ou tenha seguido rumos mais definidos dentro
mesmo mais reflexivos. Em amarelo estão de uma estética de exportação, outros segmen-
alguns filmes que não podem ser conside- tos, mesmo obscuros e aparentemente sem
rados em nenhuma das duas tendências grande importância, subsistem e se alimen-
anteriores, mas têm algumas características tam de poucas fontes. São os filmes-arte,
de uma ou outra. oferecendo seus textos reflexivos à contem-
plação e seguindo teimosamente “linhas de
fuga” como se quisessem pertencer
despertencendo. Dentre estes, selecionei dois
longa-metragens, “Durval Discos” (Anna
Muylaert, 2002) e “Janela da Alma” (João
Jardim e Walter Carvalho, 2001), que, em
seus caminhos diferenciados, oferecem
momentos de sensibilidade, destinados a um
público mais reflexivo e menos comercial.
Sem pretender condenar o cinema mais
comercial brasileiro, que é importante e
A escolha do rizoma surgiu do próprio trouxe o público de volta ao produto naci-
conceito do termo, enquanto representativo onal, nesse ensaio minha intenção é enfatizar
do ecletismo da cinematografia brasileira e, o outro lado, que é também parte dos tantos
ao mesmo tempo, da estrutura sólida de brasis que coexistem no imenso cenário do
linearidades entremeadas por estruturas mais país.
frágeis, dóceis, mas persistentes. Filmes em Quando Mikhail Bakhtin descreve um
vermelho, tais como “Cidade de Deus”, “O dialogismo, uma polifonia de vozes dentro
Invasor” e “Carandiru”, mesmo tecnicamen- do texto dostoyevskiano, a idéia que sempre
98 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

me vem em mente é a de um rizoma, não


só pela sua fisicalidade mas por sua filo-
sofia digressiva, sempre escapando ao es-
tanque, ao tradicional, ao monocórdio. Mas
me parece que o rizoma contém mais do
que apenas o lado de fuga, pois oferece
simultaneamente as linearidades, os platôs,
evitando maniqueísmos e dicotomias ultra-
passadas. Como dizem Deleuze-Guattari, “há
o melhor e o pior no rizoma: a batata e a
grama, a erva daninha” (Deleuze-Guattari,
O que aproxima os dois filmes, aparen-
2000: 15).
temente tão diversos, é a surpresa que ofe-
Em “Janela da Alma”, Wim Wenders diz
recem ao espectador, já tão condicionado às
que atualmente poucos filmes deixam es-
fórmulas hollywoodianas, onde o inusitado
paço para a imaginação. Parece que a
parece ser proibido. Ambos os filmes seguem
sucessão verbal e não-verbal deve ser in-
caminhos rizomáticos, passando por
tensa, propositalmente evitando algum tem-
linearidades e linhas de fuga, mas enquanto
po para a imaginação. Os dois filmes es-
“Durval Discos” nos conduz a um espaço
colhidos, por outro lado, nos recompensam
quase surreal, “Janela da Alma” nos leva a
com visuais e diálogos que fazem pensar:
amplas estradas digressivas, entremeadas por
pensar com imagens desfocadas, em “Jane-
visuais desfocados e relaxantes, por espaços
la da Alma”, e pensar com imagens sim-
em branco, como entrelinhas relevantes, que
bólicas em “Durval Discos”, sendo que estas
constroem uma narrativa paralela, de entra-
levam a um segundo lado, que é, na ver-
das e saídas, e que denominei de “poética
dade, a proposta da diretora Anna Muylaert,
do desfocamento” em artigo recentemente
quando explica seu filme, dizendo que é
como um dos antigos longplays: tem o lado escrito (Araujo, 2004: 6).
A e o B. Enquanto no lado A o roteiro segue
um rumo até bastante previsível, no lado
B transmite as conseqüências da solidão, da
falta de perspectiva e da esperança de uma
nova vida, representada por Kiki, a menina
que surge inesperadamente na vida de
Carmita, a mãe idosa e Durval, seu filho
solteiro. Simbolicamente podendo se referir
ao pós-modernismo e sua libertação de um O tema do “olhar” parece ser conduzido
passado incômodo ou à própria existência aleatoriamente, sem roteiro definido, ora se
humana, filosoficamente questionada, fazen- referindo à deficiência física, ora à mental,
do entrever seus vazios, seus vácuos e seus e por vezes sugerindo que a falta de visão
temores, “Durval Discos” vai literalmente seria benéfica ao forçar espaço para uma visão
desenhando um quadro patético e assusta- interna, na mente. Saramago comenta que se
dor que termina por revelar as angústias e Romeu tivesse a acuidade dos olhos do falcão,
fragilidades do ser humano e, especialmen- provavelmente nunca teria se apaixonado por
te, da velhice e de seu companheiro, um Julieta, ao ver nela os pequenos detalhes da
desconforto pelo que poderia ter sido, pelo pele ou as imperfeições das feições. Wim
que o futuro reserva, pela insegurança do Wenders menciona que só com óculos con-
presente. Os espaços tão confortáveis e segue enquadrar melhor a cena.
esperançosos do lado A se transformam em
pesadelos no lado B. Apesar de prenunci-
ados sutilmente, surpreendem o espectador
com sua força intensa, exigindo uma toma-
da de posição frente ao questionamento
premente.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 99

Para Bakhtin, a alteridade é a condição “Janela da Alma” dialoga com as cenas da


da identidade: os outros constituem loja de Durval, com seus longplays repletos
dialogicamente o eu que se transforma de memória, de um imaginário que está se
dialogicamente num outro de novos eus. diluindo frente à invasão de CDs. Quando
(Faraco, 1996: 125). Maria Teresa de Assun- Rita Lee visita a loja, a emoção redobra e
ção Freitas complementa: “o eu para Bakhtin remete o espectador aos shows da MPB, à
só existe a partir do diálogo com outros eus. era de ouro da música brasileira. Por atalhos,
O eu precisa de colaboração dos outros para pode-se ainda dizer que os ecos desse pas-
poder definir-se e ser autor de si mesmo. Uma sado glorioso convergem também nas figu-
única consciência não pode dar sentido ao ras emblemáticas de um Saramago, de um
seu eu” (Freitas, 1996: 175). Bakhtin define Manoel de Barros, de um Hermeto Pascoal,
três categorias: o eu para mim (auto-percep- ou de um Wim Wenders que, com seu “Paris
ção), o eu para os outros (como pareço aos Texas” levou o cinema alemão a uma
olhos dos outros) e o outro para mim (como transcendência filosófica, questionando a
percebo o outro). Além disso, observa que existência, o relacionamento, a sobrevivên-
posso ver o que o outro não pode (sua própria cia, temas também evocados em “Durval
imagem e expressão) e o outro pode ver o Discos”.
que eu não posso, favorecendo assim uma
complementaridade de visões (Freitas, 1996:
175).
Evgen Bavcar, ao comentar sobre sua
cegueira, lembra que a fotografia é sempre
construída com o olhar do outro e é muitas
vezes na mente que a imagem se forma.
Agnès Varda, por outro lado, dá um depo-
imento emocionado sobre as imagens que fez
de seu marido para tê-lo mais perto dela após
a morte, imagens tão próximas que nos fazem Tanto a teoria do dialogismo de Bakhtin
sentir o pulsar das veias, os poros se dila- quanto a do rizoma de Deleuze e Guattari
tando, a tez já marcada pela idade. Ao lado se referem a textos polifônicos e complexos,
de depoimentos tão reflexivos há outros com estruturas dinâmicas e roteiros inusita-
irrelevantes, mas que mais uma vez carac- dos. A diversidade de opiniões e enfoques
terizam a estrutura rizomática, onde a erva em “Janela da Alma” sugere o “mosaico de
daninha também tem seu lugar. citações” de Julia Kristeva, quando esta
discorre sobre a intertextualidade em textos
que não se limitam a descrever o óbvio, e
onde as interfaces verbais e não-verbais
trabalham em complementaridade, evitando
redundâncias, textos onde outras vozes
interagem, concordando, discordando ou
Enquanto “Janela da Alma” traz imagens apresentando uma nova versão. Os depo-
desfocadas que remetem a lugares distantes imentos do vereador cego Arnaldo Godoy,
e a outras paisagens mentais, “Durval Dis- apesar de convergir com os do fotógrafo cego
cos”, com suas cores vibrantes e elementos em certos pontos, diferem radicalmente em
distintos, produz o mesmo efeito, conduzin- outros. Como Bakhtin comenta: “Sem enten-
do o espectador para fora da cena, ajudando- der a nova forma de visão, é impossível
o a transcender a tela, a criar espaços para entender corretamente aquilo que pela pri-
reflexões filosóficas, voltando ao filme sem- meira vez foi percebido e descoberto na vida
pre que não mais conseguir suportar a pres- com o auxílio dessa forma” (Bakhtin, 1981:
são do exterior e saindo do filme também 36). Ao contrário disso, a timidez da menina
quando este se torna absurdamente pesado. ao ter que usar óculos também denota certos
O tom nostálgico em alguns depoimentos em pontos de convergência com o que Hermeto
100 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Pascoal diz sobre sua deficiência, mas diverge


na maneira de encarar os fatos. Marjit
Rimminen, a cineasta finlandesa de animação,
se surpreendeu quando seus amigos não
notaram sua cirurgia para corrigir sua visão,
provando assim que o problema havia sido
superado e que sua percepção era mais “Janela da Alma” também
emocional do que real. Enquanto em sua desterritorializa os espectadores, à maneira
infância havia sido tolhida em seus desejos, em que insere visuais inesperados,
agora pode ser o que quiser, até princesa. “Os desfocados, e depoimentos sem coesão, com
fios da marionete, consideramos como rizoma enfoques que levam a uma cartografia
ou multiplicidade, não remetem à vontade errática, tal qual um “easy rider”, incitando
suposta una de um artista ou de um operador, a imaginação, provocando vazios como
mas à multiplicidade das fibras nervosas que estradas sem saída, para logo achar um
formam por sua vez uma outra marionete atalho, ou outra “linha de fuga”.
seguindo outras dimensões conectadas às
primeiras” (Deleuze-Guattari: 2000, 16).
Quanto à estrutura do rizoma, os dois
textos seguem caminhos diversos. Enquanto
“Janela da Alma” parece não ter começo nem
fim, é uma sucessão de platôs com algumas
linhas de fuga, “Durval Discos” parece A escolha do corpus a ser analisado nesse
seguir um grande platô no lado A e uma ensaio não privilegiou o gênero
imensa linha de fuga no lado B. documentário ou o gênero ficção, insinuan-
do que um seja mais poético que outro.
Todo rizoma compreende linhas de Sendo assim, “Janela da Alma” é um
segmentaridade segundo as quais ele documentário e “Durval Discos”, um filme
é estratificado, territorializado, orga-
de ficção. Este é mais um ponto de con-
nizado, significado, atribuído, etc.;
vergência para esclarecer que ambos os
mas compreende também linhas de
gêneros possuem possibilidades de
desterritorialização pelas quais ele
transcendência e reflexão. O que ambos têm
foge sem parar. Há ruptura no rizoma
em comum é a trajetória inesperada, a sur-
cada vez que linhas segmentares
presa ao espectador, a estrutura diferenci-
explodem numa linha de fuga, mas
a linha de fuga faz parte do rizoma. ada. As divergências se fazem sentir no
(Deleuze-Guattari, 2000: 18) decorrer da edição: enquanto “Janela da
Alma” incita a imaginação ao apresentar
Ambos os textos desterritorializam os seus vazios, espaço em branco para a ação
espectadores em algum ponto de sua do espectador, “Durval Discos” conduz
trajetória. Em “Durval Discos”, a suavemente para um final feliz, mas muda
desterritorialização ocorre a partir do momen- de lado antes desse chegar, para adotar outra
to em que a imprevisibilidade começa a estrada, que choca e agride, dividindo
ganhar espaço, desconstruindo imaginários, opiniões.
escapando do esperado, levando para um Enquanto filmes como “Carandiru”, “Ôni-
caminho sem volta. Parece que estamos à bus 174” e “Cidade de Deus” se mantêm
beira de um precipício, com um veículo sem limitados a problemas sociais brasileiros,
freio. As cenas se aceleram, os universos reforçando estereótipos, e chegando quase a
convergem, Kiki em sua inocência desenha ser filmes-denúncia, os dois textos escolhidos
com sangue, a mãe de Durval, em sua evitam esse caminho, escolhendo elementos
insanidade, se recusa a agir racionalmente. estéticos e questionamentos filosóficos para
Durval é forçado a se posicionar, nada mais transcender o cotidiano violento, a mimética
será como antes. O longplay finalmente se transcrição da violência e a espetacularização
quebra, após tantos anos resistindo aos fatos. do horror.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 101

Filmografia Bibliografia

Ficha Técnica do filme “Janela da Alma”: Araujo, Denize C. Janela da Alma”: por
documentário, 73 minutos, Brasil, 2001. uma poética do desfocamento. Congresso da
Direção: João Jardim e Walter Carvalho Compós, UMESP, junho de 2004.
Roteiro: João Jardim Bakhtin, Mikhail. Problemas da poética
Direção de fotografia: Walter Carvalho de Dostoyevski. Rio de Janeiro, Forense
Montagem: Karen Harley e João Jardim Universitária, 1981.
Distribuição: Copacabana Filmes Deleuze, Gilles e Félix Guattari. Mil
Platôs: capitalismo e esquizofrenia. São
Ficha Técnica do filme “Durval Discos”: Paulo, Editora 34, 2000.
ficção, 96 minutos, 2002 Faraco, Carlos Alberto. “O dialogismo
Roteiro: Anna Muylaert como chave de uma antropologia filosófica”.
Direção de fotografia: Jacob Solitrenick In Diálogos com Bakhtin, org. Castro, Faraco
Direção de arte: Ana Maria Abreu e Tezza. Curitiba, Editora UFPR, 1996, 113-
Trilha sonora original: André Abujamra 126.
Freitas, Maria Teresa de Assunção.
Montagem: Vânia Debs
“Bakhtin e a psicologia”. In Diálogos com
Bakhtin, org. Castro, Faraco e Tezza. Curitiba,
Elenco:
Editora UFPR.
Ary França
Stam, Robert. Bakhtin: da teoria literá-
Etty Fraser
ria à cultura de massa. São Paulo, Ática,
Marisa Orth
1992.
Isabela Guasco
Letícia Sabatella _______________________________
Rita Lee (participação especial) 1
Universidade Tuiuti do Paraná, Brasil.
102 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 103

Formas documentárias da representação do real na fotografia,


no filme documentário e no reality show televisivo atuais
Fernando Andacht1

Introdução: o movimento indicial na mídia binam em distinto grau os três tipos de signo
contemporânea para gerar o significado. Porém, postulo que
o índice é o signo predominante nesses
O texto procura caracterizar um gênero formatos, o que determina seu efeito de
que abrange diversos formatos muito popu- sentido específico, de gênero, no público.
lares no mundo, quais sejam: o reality show Mas, como ter certeza de que o gênero
televisivo, o documentário cinematográfico indicial representa o real e, portanto, esta-
e a fotografia jornalística. Todos se dedicam belece uma diferença com a ficção e com
à representação do real, o que faz pensar os outros gêneros? Para responder à questão
num verdadeiro movimento indicial na mídia. recorro ao dispositivo pragmático de análise
Penafria (2003a) propõe o termo do sentido criado por Peirce em 1878.
“documentarismo” para analisar todo e qual- A máxima pragmática de Peirce (CP
quer filme a partir dos componentes do gênero 5.403)3 define o significado de um conceito
documentário clássico (ex. a filmografia de (p. ex. “documentário fílmico”) como o
Grierson). Proponho descrever estes forma- conjunto de suas “conseqüências práticas”.
tos como casos concretos do gênero indicial: Por sua vez, elas são as “consequências
o resultado da hegemonia ou do predomínio experienciáveis” dos conceitos (Ibri 2000:33),
neles da classe de signo que possui um laço que apresentarei aqui como todo aquilo que
existencial, factual com seu objeto dinâmico decorre fenomênicamente dos conceitos, isto
– o real considerado fora da relação de é, aquilo que pode ser observado na expe-
representação. O motivo para introduzir o riência (do público, do crítico, etc). O acir-
termo “indicial” não é uma simples mudança rado debate sobre a autenticidade do
de uma palavra por outra, mas é uma de- registrado no reality show e no documentário,
corrência do uso da semiótica triádica e assim como uma forte resistência social a
pragmática de C. S. Peirce (1839-1914) para olhar um documento fotográfico que fornece
a análise da representação do real na mídia. uma evidência insuportável da fragilidade
Graças às contribuições recentes de pesqui- coletiva, logo após de um ataque terrorista,
sadores do universo lusófono à análise do são alguns exemplos de tais experiências. A
registro documentário no cinema e na tele- pragmática concebe o significado como “o
visão, é possível avançar na discussão sobre lado exterior que gera o próprio conceito”
uma oposição ontológica fundamental na (Ibri 2000:34). Tal análise permite explicar
reflexão sobre a mídia hoje: a problemática o vínculo dos formatos da mídia com o real.
fronteira entre o real e a ficção.2 Embora existam manipulações, mentiras e
Na semiótica triádica, o termo “indicial”, interferências de toda classe (montagem,
que caracteriza as três formas de realismo efeitos especiais, etc), isso não altera o
documentário no texto, deve ser compreen- estatuto indicial do gênero dos formatos
dido como uma das três classes sígnicas que midiáticos considerados. No limite, tais al-
resultam da relação entre o signo e o real terações determinam a existência de alguma
a ser representado ou objeto dinâmico. Assim, falta ética ou estética no gênero.
índice, ícone e símbolo se alicerçam nas
relações de contigüidade existencial, de Alguns antecedentes analíticos recentes
semelhança e de interpretabilidade geral, res- sobre o gênero documentário
pectivamente. No texto, vou me concentrar
no segundo tipo, o índice, com a ressalva Os trabalhos de Godoy (1999), Penafria
de que nos formatos considerados se com- (2003, 2004) e Rial (2003) analisam do ponto
104 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

de vista tecnológico e semiótico o e falível do real. Sob este prisma, cada signo
documentário, e sua conflituosa relação com é uma promessa não totalmente cumprida,
seu assunto distintivo, o real extra-midiático. ou uma que não pode não fazer novas
Para me posicionar no que diz respeito às promessas. Só no longo prazo, postula-se uma
propostas teóricas destes autores, apresento convergência tendencial entre o objeto dinâ-
abaixo um resumo de seus argumentos. mico (o real fora de toda representação) e
Conforme os pesquisadores citados, o a interpretação chamada final. Nem o filme-
documentário Zapruder, que é o exemplo considerado pela
a. não consegue transpor o real (Rial 2003); autora, nem os inúmeros livros escritos nos
b. não é uma representação conclusiva do últimos quarenta anos sobre o célebre assas-
real (Penafria 2003); sinato de Dallas exaurem a interpretação
c. tem uma diferença de grau e não de desse acontecido. Mas os signos procuram
natureza com respeito à ficção (Penafria 2003) e, de fato, conseguem revelar aspectos su-
d. serve para caracterizar todo filme, e mais cessivos do real a uma criatura falível como
ainda no caso dos filmes de autor (p. ex. uma o ser humano, e assim a aproximam à
obra típica de Almodóvar) (Penafria 2004); verdade. Postular uma tendência aproxima-
e. não cria a realidade mas a descobre tiva em direção à verdade não é o mesmo
e exibe seus aspectos existenciais, menos do que negar absolutamente tal possibilidade.
que sua generalidade (Godoy 1999). O terceiro ponto refere-se ao postulado
Coincido com o primeiro ponto, que Rial de Penafria (2003a) sobre a diferença de grau
(2003) postula com respeito à transmissão entre o documentário e a ficção. Há aqui uma
televisiva do futebol. O dicionário Aurélio afinidade com o ponto de vista semiótico.
define o verbo TRANSPOR como o ato de “pôr No mundo real não há ícones, índices ou
(algo) em lugar diverso daquele em que estava símbolos puros. Para se manifestar, o índice
ou devia estar”. Embora seja verdade que não deve incorporar alguma qualidade, i.e., um
há tal transposição no gênero indicial, isso ícone, e no seu funcionamento, o símbolo
também é válido para todos os outros gê- necessita incorporar os outros dois tipos de
neros. Não é possível colocar o mundo tal signo. No clássico romance de Daniel Defoe,
qual é num filme, num vídeo, nem no papel a pegada de Sexta-feira na areia apresenta
Kodak. Todo formato da mídia é uma re- ao náufrago a indicação palpável da existên-
presentação ou signo do real e não uma cia de outra pessoa, junto com a forma de
transposição. Peirce (CP 5.283) postula que seu pé.4 Claro que poderia ter sido uma falsa
a percepção é direta e mediada a um mesmo pista, uma forma natural feita pelo vento na
tempo. Como o arco íris, que é a manifes- ilha. Porém, o decisivo neste contexto, con-
tação do sol e da água, toda representação forme o propósito de Robinson, é o valor
consiste na convergência de um sistema indicial da representação, isso é o dominante.
representacional e do real. Portanto, o que Em 1935, Jakobson propôs o conceito
seria, segundo Rial (2003), uma carência do formalista de “dominante”, que definiu como
documentário constitui, a priori, a condição “um dispositivo na hierarquia interna do signo
essencial de toda ação sígnica ou semiose. global constituído pela obra literária, (e que)
O signo é a manifestação interpretativa de sempre é levado ao primeiro plano
alguém e também de algo independente dos (foregrounded)”.5 Tal como o elemento focado
intérpretes, e dos próprios signos. da obra de arte “assegura sua gestalt ou ordem
Vamos agora ao segundo argumento. As total”,6 no que diz respeito ao propósito
três relações do signo com o representado sistêmico que regula seu uso, cada signo
acima mencionadas são os três modos bá- manifesta a primazia de uma relação sígnica,
sicos de conhecer o mundo. Penafria (2003) conforme Peirce. É seu aspecto indicial o que
admite a natureza representacional do gera a expectativa do público do
documentário, mas ela objeta que tal repre- documentário Edifício Máster (Brasil, 2002,
sentação “é inconclusiva”, porque sua reve- EM de aqui por diante), que, naturalmente,
lação é parcial. Concordo com tal postulado, inclui na sua complexa gestalt símbolos,
mas trata-se de uma condição de todo signo, índices e ícones. Se apagássemos a relação
que pela sua natureza é uma revelação parcial de contiguidade existencial entre as imagens
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 105

e sons do filme e isso que de fato existe, do índice, do ícone ou do símbolo num
além da filmagem, naquele prédio verdadei- contexto determinado. O documentário EM
ro e não cinematográfico de Copacabana no tem como seu objeto semiótico o fato sin-
Rio de Janeiro, onde a ação acontece, essa gular de um encontro concreto com as pessoas
obra cinematográfica mudaria completamen- e lugares registrados, segundo as palavras do
te. EM seria mais uma ficção encenada na realizador Coutinho.13 O filme é a crônica
bela cidade carioca.7 É verdade que tanto na do aqui e agora, a evidência audiovisual de
ficção quanto no documentário há “um olhar, uma resistência diádica entre quem filma e
uma visão sobre determinado assunto”, se- quem é filmado. Isso constitui o aspecto
gundo Penafria.8 Mas é o dominante indicial documental do documentário, seu sentido
o que determina logicamente o efeito de oficial e público, o chamado “indexing” do
sentido primordial do formato considerado, filme.14
sem ignorar a influência dos outros elemen- Embora seja verdadeiro, o resultado
tos presentes no filme. apontado pela proposta que faz Penafria
É preciso introduzir, porém, uma cautela (2004) da existência de um documentarismo
analítica na proposta gradualista desta pes- generalizado não parece ser produtivo. Em
quisadora na sua versão extrema, qual seja: princípio, não haveria coisa nenhuma no
“todo filme é documental”.9 Em princípio, mundo que não possa incluir-se nesta ca-
não há coisa nenhuma que não possua as três tegoria fílmica, o qual esvaziaria este con-
propriedades categoriais que analisam a ceito de seu valor heurístico. Se tudo fosse
experiência da realidade no modelo semiótico documental, nada poderia ser definido assim
triádico – Primeiridade, Segundidade e informativamente. Uma ilustração da utilida-
Terceiridade (CP 1.525). Baseadas nestas de da distinção documental/ficção encontra-
categorias, as coisas representadas desenvol- se num clássico da cinematografia mundial:
vem relações icônicas, indiciais e simbóli- o backstage do filme Fanny e Alexander
cas.10 Um típico filme de Almodóvar pode (Suécia, 1982), de Ingmar Bergman. Não é
sim documentar, como afirma Penafria, problemático afirmar que aquele filme, do
enquanto ele é um índice do realizador, de qual o documentário ulterior exibe os bas-
seu estilo. Mas isso não funciona, ipso facto, tidores, é uma típica obra do mestre sueco.
como critério para classificá-lo no gênero Mas isso não converte o filme ficcional num
documental (ou indicial). Conforme Lefevbre, documentário do estilo de Bergman. Se fosse
“seria impossível fazer o inventário de todos assim, como definir-se-ia o making up de
os objetos que uma coisa, uma vez Bergman, o qual foi exibido quatro anos após
semiotizada, pode chegar a representar”.11 Fanny e Alexander, com o título Diário de
Nesse texto dedicado a analisar uma célebre uma filmagem (Suécia, 1986)?
pintura de Magritte, Lefebvre propõe uma O último dos cinco argumentos é extra-
longa lista de possíveis referências dessa obra ído da crítica semiótica das posições anti-
pictórica. Dentre elas só mencionarei duas: realistas, “deconstrutivistas e nominalistas”
a Bélgica e o lugar específico onde um que desenvolve Godoy. Estas concebem “a
visitante encontra-se, num momento dado, no realidade de um universal apenas como um
museu. Mas estes não são índices signo mental”.15 Do ponto de vista criticado,
constitutivos daquela obra de arte de Magritte o signo fílmico é uma ilusão manipuladora,
como obra de arte, porque tais índices não “um instrumento de dominação burguesa”.16
revelam seu significado estético. A falácia da Concordo com a afirmação de Godoy de que
proposta de considerar documental todo fil- há uma “potencialidade epistemológica do
me, e alguns deles ainda ‘mais documentais documentário” de revelar o real.17 Claro que
(porque) nos mostram que estamos perante isso não garante que o gênero todo repre-
um filme de um e não de outro autor”,12 sente de modo fidedigno os fatos do mundo
decorre de não fazer a distinção entre o e que seja uma ajuda eficaz para compreendê-
suporte material através do qual se manifesta los. Mas tal cautela é válida para qualquer
uma representação e seu objeto semiótico. signo, em qualquer meio de expressão. Só
Somente o objeto representado é teoricamen- tenho uma pequena divergência com respeito
te relevante para decidir se há uma primazia às conclusões de Godoy. Além da presença
106 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

dominante dos fatos representados chamamento indicial para descrever a signi-


indicialmente, que pertencem à categoria do ficação do reality show Big Brother Brasil
que existe, seja ou não interpretado (BBB, de aqui por diante). A imagem en-
(Segundidade), também a representação sim- cantadora e irreal das divas, seu irresistível
bólica do geral faz parte do gênero indicial. sex-appeal, constituiu a principal fonte de
O aspecto geral e simbólico do documentário sedução da época de ouro de Hollywood, um
baseia-se especificamente nos índices. efeito de tipo icônico, isto é, baseado na
No caso do EM, os fatos representados relação qualitativa entre o signo e o real. Hoje,
como rastos do encontro constituem sua trama na era da televisão aberta e a cabo,
indicial, mas isso não exclui sua integração
triádica na representação simbólica, o hori- o prato de resistência de BBB é seu
zonte natural de toda ação sígnica. Uma forma index-appeal, que se baseia na gera-
adequada de exprimir essa noção teórica é ção continua de signos cujo propósito
a que propõe o crítico Pereira da Silva, sistêmico não é o de ser interpreta-
quando ele aponta que EM “tem, de forma dos, mas o de apontar de modo
inequívoca, um caráter moral”, e o define compulsivo a seu objeto dinâmico.
como um “documental com feição de fábula (Fernando Andacht, “Uma aproxima-
moral”.18 O efeito de sentido geral é com- ção analítica do formato televisual do
patível, portanto, com o gênero indicial. O reality show Big Brother”, Galáxia,
“mapeamento” do geral (Terceiridade) é 2003, p.150)
procurado pela ciência como seu interesse
específico, segundo assinala Godoy (1999). Peirce compara o efeito específico do
Contudo, o que o documentário descobre índice com a hipnose, por causa do poder
através do predomínio da representação dos físico mais do que intelectual que este signo
fatos também pode contribuir para refletir possui e com o qual afeta nosso corpo:
sobre eles, como no já referido exemplo do
EM. Achamos agora que, além dos con-
O gênero aqui chamado ‘indicial’, que ceitos gerais (símbolos), duas outras
inclui mas não se reduz ao documentário, classes de signos são totalmente in-
exibe as seguintes características: dispensáveis em todo raciocínio. Uma
• a representação dos fatos da realidade, dessas classes é o índice [index] que,
que nunca é sua transposição literal, porque como um dedo que aponta, exerce
aquela não é completa, mas se aproxima gra- uma real força sobre a atenção, como
dualmente à verdade; o poder de um mesmerizador, e a
• a conjunção da determinação dos sig- dirige para um objeto específico do
nos indiciais e a determinação do mundo sentido. (CP 8.41)
exterior que acontece de modo falível;
• uma diferença de grau ou de dominante A fotografia de uma casa é usada por
que permite distinguir o gênero indicial da Peirce como exemplo de índice, mas não
ficção; “pela semelhança na sua aparência, [porque]
• a especificidade do efeito de sentido há dez mil outras no campo que são iguais
indicial, observável nas conseqüências a esta” (CP 5.554). A única justificação para
experienciáveis dos formatos midiáticos e afirmar que essa foto é um índice dessa casa,
baseada no objeto semiótico; é que “o fotógrafo dispôs o filme de tal modo
• o poder de descobrir ou revelar o real, que, segundo as leis da óptica, o filme foi
principalmente mas não de modo exclusivo forçado a receber uma imagem da casa”
nos seus aspectos existenciais. (ibid.) Para analizar as representações do real
aqui consideradas, adoto o pressuposto de que
O index appeal em três formatos midiáticos todo “fato luta por abrir-se caminho para sua
diferentes existência” (CP 1.432). Portanto, o que o
índice “tem virtualmente que fazer para
Numa pesquisa anterior (Andacht 2002, indicar seu objeto ... é capturar os olhos de
2003), propus o termo index appeal ou seu intérprete e com força os levar para o
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 107

objeto significado”, tal como acontece no caso uma experiência reflexiva, conceitual, tal
de “um golpe na porta, um alarme, um silvo, como acontece em outros gêneros. A passa-
um tiro de canhão” (CP 5.554). gem do efeito hipnótico e compulsivo do
Minha hipótese é que nos três exemplos índice para o efeito convencional daquilo que
escolhidos – BBB, EM e a foto do Homem exige ser interpretado, seria o intuito de um
que Cai – os índices geram um tipo de gênero televisivo popular como Big Brother.
conhecimento carnal no espectador como A morte ou limite natural do reality show
sua conseqüência prática, experienciável. O seria sua completa convencionalização. Nis-
consumo estético desses três formatos do so consiste a suspeita de que haja uma atuação
gênero indicial envolve um efeito de resis- amadora mas que esta seja guiada por um
tência que nos faz cientes de nosso próprio roteiro segredo. Como uma sombra, tal
self. O específico dessas representações do suspeita do público acompanha o formato da
real é que a experiência baseia-se no efeito Endemol desde sua origem.
quase táctil gerado pela transpiração No caso do documentário, a desconfian-
semiótica, pelos inúmeros rastos dos corpos ça é mais o resultado de um ceticismo
filmados e exibidos, ao vivo, em vídeo, em intelectual e profissional que uma reação dos
um documentário, ou captados numa foto espectadores. Trata-se de uma herança lon-
digital. Nisso precisamente consiste o cha- gínqua do modo nominalista de pensar, o qual
mamento indicial. Mesmo que pareça con- não aceita a manifestação do real através de
tra-intuitivo reunir numa comparação elemen- signos de tipo universal, seja na natureza ou
tos tão diferentes, há uma vantagem teórica na vida social. Porém, sem a tendência que
em fazê-lo. É possível contribuir desse modo têm todas as coisas a serem representadas
à compreensão de uma tendência cultural de algum modo (icônico, indicial ou simbó-
manifestada através do consumo de diversos lico), a vida na terra não seria possível. Para
formatos da mídia com um único intuito, qual concluir, vou apresentar um interpretante ou
seja: a procura do contato com o autêntico, efeito de sentido público de cada um dos três
com o real associado à atualidade máxima. formatos mencionados.
No chamamento indicial, o real encarna-se
em corpos anônimos que agem sem roteiro A rarefação de uma imagem fotográfica:
frente a câmaras e microfones, ou que passam a insuportável visão do Homem que Cai
impensadamente perante a lente de objetiva
de um jornalista bem situado. Essa presença A câmera digital de Richard Drew cap-
se encontra ali para fornecer uma evidência turou às 9hs 42’ 15’’ a.m., horário da costa
existencial, mais do que para falar ou refletir leste dos EUA, um indício que seria pronta
sobre ela. Proponho considerar que essa classe e inexoravelmente banido da mídia de seu
de revelação indicial tem se transformado no país. A foto do Homem que Cai virou um
Grial da cultura midiática do século XXI. testemunho intolerável pela sua capacidade
O mais característico do movimento de revelar indicialmente a máxima fraqueza
indicial é a saliência de signos que são fatos da nação mais poderosa da terra. Logo após
e que fornecem um testemunho do mundo, de ter aparecido na capa de vários jornais,
quer corriqueiro, quer sublime. Na perspec- no dia 12 de setembro de 2001, a figura
tiva evolucionista de Peirce, a ação dos signos improvável pela impactante graça e levian-
envolve seu contínuo crescimento, a integra- dade do anônimo homem-pássaro do World
ção do ícone e do índice no símbolo, cons- Trade Center sofreu um processo de rarefação
tituindo-se então uma forma mais complexa indicial semelhante às imagens invisíveis das
potencialmente submetida à interpretação. O vítimas norte-americanas da invasão de Iraque
símbolo é uma lei ou conceito geral através em 2003. Estes corpos retornaram sem glo-
do qual compreendemos e ordenamos nosso ria, nos ataúdes cobertos pela bandeira e pela
entorno, para nos adaptar melhor a ele, e censura oficial.
poder transmitir esse saber convencional. Ao A silhueta estranha desse homem sem
longo do tempo, os encontros corporais que nome, um dos muitos que pularam ao vazio
constituem o cerne do gênero indicial ten- do alto da Torre norte do World Trade Center,
dem a evoluir do conhecimento carnal para na manhã do 11 de setembro de 2001, virou
108 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

o signo icônico-indicial de uma vulnerabilidade do outro filmado, como o fez o cineasta


extrema que não se queria aceitar, nem sequer brasileiro Eduardo Coutinho, descreva o
considerar como fazendo parte do real. Jamais documentário, gênero no qual ele é mestre
imaginou Richard Drew, o fotógrafo levado pelo reconhecido, como um “questionamento dessa
seu olfato profissional bem perto do desastre objetividade, dessa possibilidade de dar conta
daquele dia, que o destino lhe daria uma glória do real”. 20 Mas cabe perguntar, se não
opaca nessa ocasião. Foi ele mesmo quem, em houvesse a possibilidade da presença real,
1968, focou sua máquina no corpo agônico, objetiva e incontestável, do outro filmado,
ainda quente do senador Bob Kennedy e nesse “milagre” (218) do encontro que está
capturou também a visão da recém viúva lhe no cerne de seus filmes, e se não fosse “a
implorando que não pegasse essas fotos. Esta própria pessoa” filmada quem constrói “o seu
vez seria a comunidade toda que rejeitaria o retrato” (218), seria verdadeiramente Edifí-
testemunho do horror fornecido pela sua foto- cio Máster (EM) um documentário? Propo-
grafia digital. Quando um jornalista lhe per- nho que a resposta correta seja uma nega-
guntou à presumida filha do Homem que Cai, tiva. Procurarei justificá-la através de três
se ela reconhecia seu pai nesse pequeno exemplos extraídos do filme.21
retângulo de luz e de uma eloqüente realidade, Dois dos encontros filmados neste
a moça não duvidou: “Esse troço de merda lá documentário incluem a menção de uma
não é meu pai!”.19 Nem ela nem a opinião preciosa evidência visual que nunca, porém,
pública da maior potência mundial quiseram poderá ser vista pelo espectador. Num caso,
cair sob a influência hipnótica do indicial. Um uma mulher fala perante a câmera, em tom
bom modo de evitar esse efeito “mesmerizador” confessional, sobre sua paixão por si mesma,
(Peirce) é a pura e simples negação. Porém, por seu aspecto físico, a qual se manifesta
o índice representa algo que resiste à interpre- nos seus retratos espalhados pelas paredes
tação arbitrária e ao voluntário esquecimento; de sua morada. Noutra conversa filmada, uma
ele simplesmente fica e perdura lá, como as ex-sambista e cantante mulata conta sobre sua
coisas do mundo. A única saída para fugir do singular experiência profissional no Japão,
chamamento indicial é evitar o brutal e cego quando ela era jovem. Neste caso, uma vez
encontro físico com ele. terminada a filmagem do encontro com ela,
A incompletude do gênero documentário Coutinho descobriu no apartamento “uma foto
apontado por Penafria (2003) coincide com fantástica na qual ela aparece jovem, gran-
uma constatação do citado escritor Junod dona, exuberante ao lado de dois japoneses”
(2003) sobre a mágica e sinistra imagem (219). Porém, ele recusou-se a filmá-la
digital do “suicida assassinado”: a elegância depois, simplesmente porque isso teria sido
admirável do fotografado só existiu naquele um ato de interferência com o registro ori-
preciso instante das 9hs 42’ 15’’ a.m, nos ginal do encontro, que não conseguiu filmar
seguintes momentos, como testemunha o aquela eloquente imagem fotográfica. Essa
artigo da revista Esquire, ele perdeu a ele- rigorosa economia documental só lhe permi-
gância plástica, e depois sua vida. Mas não te a Coutinho deixar entrar no quadro do filme
se pode negar que no encontro singular e a muda e poderosa eloqüência do indicial,
irrepetível entre o dispositivo óptico que da reação corporal entre o realizador e o outro
Richard Drew colocou lá, e a viagem filmado, num encontro irrepetível e
mortífera empreendida por uma das tantas imodificável. Esse chamamento indicial
vítimas desse dia de 2001, o corpo do Homem circunspeto é a homenagem ao outro docu-
que Cai teve, de fato, essa posição espacial, mentado, é ao testemunho forçoso do real
essa atitude corporal de máximo desafio e que está na base do gênero, segundo ele é
liberdade, antes de seu terrível fim. praticado por Eduardo Coutinho.
Às duas ausências éticas no EM, soma-
A economia dos índices: o cuidado do se uma presença desconfortável mas neces-
Outro nas ausências do encontro sária à circunspeção deste formato indicial:
a fala dura e muito conservadora da empre-
Parece estranho que, numa entrevista, gada espanhola Maria Pia sobre o que ela
alguém que dedicou sua vida inteira a cuidar acredita que sejam as verdadeiras causas da
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 109

pobreza no Brasil. Na referida entrevista, uma da Rede Globo, que deu uma entrevista após
espécie de backstage verbal do filme, do fim da primeira edição deste reality show:
Coutinho se sente na obrigação de afastar-
se daquela ideologia tão oposta à sua. Sem Playboy: Você pretende detonar al-
se propor fazê-lo, claro, o realizador do EM guém na edição, como no caso do
vai explicar como o poder mesmerizador do videoclipe da Stella enfiando várias
índice define este gênero fílmico: “é preciso vezes o dedo no nariz...
se colocar no lugar do outro e, mais que isso, Boninho: Mas a Stella tinha mesmo
é preciso mostrar o lugar de onde o outro a mania do nariz e era impossível não
está falando” (225). Eis o paradoxo do gênero brincar com aquilo. ... Se a pessoa
indicial: a subjetividade do criador só pode tiver uma mania semelhante e
servir para preservar e não interferir com a entrar na casa do BBB, vou deto-
objetividade da presença do outro, de sua nar, sim. O cara sabe que, se está
subjetividade. O documentário é uma rede lá dentro, é para isso mesmo.
que traz de regresso de sua passagem pelas (Fernando Valeika de Barros, “Entre-
águas turbulentas do mundo o bom, o ruim, vista a José Bonifácio de Oliveira,
o admirável e o duvidoso, tudo o que acon- Boninho”, Playboy, 2003, p. 75, grifo
teceu no momento do encontro fílmico, e que meu, F.A.)
vai servir para se reconhecer a si próprio no
confronto com o outro. Não poderíamos achar uma mais perfeita
Se, como afirma Coutinho, “frente a esse antítese ética e estética do laconismo indicial
real, todo documentário, no fundo, é precá- do documentário de Coutinho, que esta
rio, incompleto, imperfeito” (215), pergunto descrição brutalmente sincera do efeito de
qual seria então a necessidade de se preser- sentido básico do reality show mais conhe-
var do eventual contágio com uma concep- cido do mundo. À circunspeção do EM se
ção do mundo antagônica, com a fala de quem contrapõe o excesso do indicial do BBB. Cada
encarna uma irreconciliável diferença? Po- uma das quatro edições produzidas no Brasil
rém este é o sentido das palavras do rea- a partir de 2002 e até 2004, é pródiga na
lizador, quando ele comenta sobre essa ide- multiplicação de rastos da transpiração
ologia tão oposta à sua: semiótica dos participantes deste programa
televisivo. Se o cuidado do outro leva o
Não estou ali para dar razão a nin- realizador de documentários Eduardo
guém. Nesse caso, é claro que não Coutinho a administrar com extrema prudên-
estou dizendo que a Maria aí esteja, cia o espaço e o tempo de quem é filmado,
mas não me cabe julgá-la. O que me no caso do BBB trata-se de dilapidar seu
cabe é, nessa conversa, tentar eviden- corpo, sua presença, através da fragmentação
ciar o lugar de onde nasce essa pos- e da multiplicação infinita de imagens e sons,
tura, essa posição do discurso do até configurar com os índices assim coletados
outro. (226) uma colagem grotesca, no estilo do pintor
manierista italiano Arcimboldo (1527-1593).
Mais do que um índice do estilo do autor, A seleção sígnica e sua montagem procuram
fica evidente que o essencial no atingir a audiência através de uma acumu-
documentário, seu objeto semiótico, são os lação de fatos representados, para que estes
índices do real, disso que o filme conseguiu produzam uma experiência carnal mais do
representar de modo limitado, como qualquer que uma reflexão moral, embora isso tam-
outro tipo de signo. bém possa acontecer, e de fato aconteça no
público fiel de BBB (Andacht 2002).
A sobreabundância indicial do Big Brother Uma dúvida inevitável surge neste ponto
Brasil: a arcimboldiana reiteração do real da argumentação: será admissível incluir no
gênero indicial um formato cujo nome ofi-
Para analisar o indicial no polêmico cial contém a idéia do espetáculo (‘show’),
formato televisivo do BBB, vamos a deixar numa desconfortável e promiscua proximi-
falar a seu produtor no Brasil, o Boninho dade da noção de ‘real(ity)’ que fornece a
110 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

especificidade do gênero? A resposta, po- Conclusão: a arte de atingir o sublime


rém, deve ser afirmativa. O objeto semiótico através dos signos mais próximos do
do reality show está constituído por aquilo cotidiano
que, de fato, está mais próximo do corpo
humano e mais longe da fala: os gestos, os Que significa então o movimento indicial
sorrisos, a raiva, o choro, o suor e a se- na mídia? A análise pragmática do significado
xualidade, todos estes humores e secreções dos formatos indiciais considerados mostra que
orgânicos fornecem o material indicial do não é uma fabricação industrial de ilusões na
BBB. Porque eles moram numa casa dese- mídia contemporânea o que leva tantas pessoas
nhada e construída para não perder nem um a assistir incansavelmente aos índices da vida.
índice dos inúmeros gerados nesse estúdio- O gênero indicial dos médios audiovisuais é
morada, ainda que os participantes tentem composto pela testemunha viva que emana
produzir a melhor imagem de si próprios como uma transpiração semiótica dos corpos
para ganhar a recompensa oferecida, estas dos outros. No mundo inteiro, o público pro-
pessoas não dispõem do espaço nem do cura uma experiência comunicacional quase
tempo mínimo necessários para ensaiar e religiosa através dos rastos do mais íntimo,
aperfeiçoar um self convincente, na área através da observação atenta de uma testemu-
restrita dos bastidores da interação face a nha física e emocional mais do que intelectual.
face, por ex. o dormitório. Algumas das grandes mensagens do mundo,
Através desse preparo cotidiano, o ser portanto, se manifestam hoje na mídia não em
humano faz de sua humanidade um tranqüilo palavras, nem em ideologias, mas na represen-
espetáculo, mais persuasivo e admirável tação das pequenas situações cotidianas, do
quanto mais seus aspectos indiciais são encontro face a face com a vida e com a morte.
cuidadosamente controlados e selecionados, No pólo oposto, a ficção midiática envolve cen-
até que surja a melhor imagem de si próprio. tralmente a invenção de ícones para produzi-
Sem dispor dos bastidores da interação social, rem símbolos que nos levem de retorno ao
do vital backstage no qual arrumar o suor mundo, ao universo indicial, com mais sabe-
semiótico até que vire invisível, torna-se doria ou menos amargura. O progressivo cres-
impossível dissimular as expressões potentes cimento dos índices midiáticos no gênero aqui
do corpo. A recompensa que recebe cada noite analisado fornece os elementos necessários para
o público de BBB é a visão interminável do encenar uma odisséia cognitiva da sociedade.
self supostamente autêntico, da versão mo- As pessoas procurariam no chamamento
derna, tecnológica da alma. Esta seria aces- indicial, no contato com os signos de existên-
sível através dos signos corporais que as cia, a descoberta da face externa e real do
pessoas não conseguem controlar, em circuns- sentido de suas próprias vidas. Esse conheci-
tâncias tão adversas para a sobrevivência do mento carnal é um signo inconfundível desta
respeito a si próprio. época.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 111

Bibliografia online) www.uol.com.br/revistadecinema/


ediçao31/em_cartaz/critica.shtml, Retirado no
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cidadania e imprensa, Rio de Janeiro: Mauad, copas do mundo”. Em Anais do 12º Encon-
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Andacht, Fernando, “Uma aproximação gramas de Pós-Graduação em Comunicação
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Anual da Associação Nacional de Progra- 2
Manuela Penafria 2003, 2003a; Rial 2003
mas de Pós-Graduação em Comunicação, e Godoy 1999.
3
UFMG, Belo Horizonte, 1999. Cito a Peirce conforme à prática habitual:
Ibri, Ivo Assa, “As conseqüências de “x.xxx” remete aos Collected Papers mediante o
conseqüências práticas no pragmatismo de volume e o parágrafo dessa edição. Todas as
traduções do texto inglês são de minha autoria.
Peirce”, Cognitio. No.1, pp. 30-37, 2000. 4
Trata-se de um aspecto qualitativo que lhe
Junod, Tom, “The falling man”. Esquire, permite imaginá-lo, ou seja mais um ícone.
Vol. 140, Issue 3, September, 2003, pp. 277- 5
Radu Surdulescu, “Form, structure and
280. structurality in critical theory”. Retirado de http:/
Lefebvre, Martin, “Ceci n’ est pas une / www. unibuc.ro/ eBooks/ lls/RaduSurdulescu-
pipe(rie): bref propôs sur la sémiotique et FormStructuality/Capitolul%20I.htm em 15/02/
l’art de magritte”, Trabalho apresentado no 2004
6
7º. Congresso Internacional AISV, México, Ibidem.
7
2003. Esse é o caso, por exemplo, do notório filme
de Meirelles Cidade de Deus (Brasil, 2002).
Peirce, Charles Sanders, Collected Papers 8
Manuela, Penafria, “O documentarismo do
of C. S. Peirce. C. Hartshorne, P. Weiss, A.
cinema”. Retirado de”http://bocc.ubi.pt/_listas/
Burks (orgs.), Cambridge, MA: Harvard tematica. php3? codt=42 em 02/01/2004.
University Press, (1931-1958). 9
Manuela, Penafria, “O documentarismo do
Penafria, Manuela, “O plano-seqûencia cinema”. Retirado de”http://bocc.ubi.pt/_listas/
é a utopia. O paradigma do filme-Zapruder”, tematica. php3? codt=42 em 02/01/2004.
10
Em Anais do 12º Encontro Anual da Asso- As propriedades possíveis de toda experi-
ciação Nacional de Programas de Pós- ência são: monádica, quando algo é considerado
Graduação em Comunicação (Compós), em si próprio; diádica quando se considera uma
UFPE, Recife, 2003. oposição de só dois elementos, e triádica, quando
há uma mediação como acontece na representa-
Penafria, Manuela, “O documentarismo
ção, i.e., a combinação de duas coisas numa síntese
do cinema” Retirado de http://bocc.ubi.pt/ mais complexa do que elas.
_listas/tematica. php3?codt=42 em 02/01/ 11
Lefebvre, Martin, “Ceci n’ est pas une
2004. pipe(rie): bref propôs sur la sémiotique et l’art
Pereira da Silva, Humberto, “O Edifício de magritte”, Trabalho apresentado no 7º. Con-
Master”. Revista de Cinema. No. 31 (versão gresso Internacional AISV, México, 2003.
112 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

12 18
Manuela, Penafria, “O documentarismo do Pereira da Silva, Humberto, “O Edifício
cinema”. Retirado de http://bocc.ubi.pt/_listas/ Master”. Revista de Cinema. No. 31 (versão
tematica. php3? codt=42 em 02/01/2004. online) www.uol. com.br/revistadecinema/
13
Alexandre, Figuerõa et al.,“O documentário ediçao31/em_cartaz/critica.shtml, Retirado no 19/
como encontro. Entrevista com o cineasta Eduardo 09/2003.
19
Coutinho”, Galáxia. Revista transdisciplinar de Tom, Junod, “The falling man”. Esquire,
Comunicação, Semiótica, Cultura. No. 6, 2003, p.217. Vol. 140, Issue 3, September, 2003, p 277.
14 20
Noel, Carroll, “From reel to real” Alexandre, Figueroa et al., “O documentário
In:”Theorizing the moving image. Cambridge: como encontro. Entrevista com o cineasta Eduar-
Cambridge University Press, 1996, p. 238. do Coutinho”, Galáxia. Revista transdisciplinar
15
Hélio, Godoy, “Paradigma para Fundamen- de Comunicação, Semiótica, Cultura. No. 6, 2003,
tação de uma Teoria Realista do Documentário”. p.215. Todas as citações seguintes de E. Coutinho
Em Anais do 8º Encontro Anual da Associação provêm desta entrevista sobre o EM, e por isso
Nacional de Programas de Pós-Graduação em só será indicada a página.
21
Comunicação, UFMG, Belo Horizonte, 1999. Quero expresar meu agradecimento à dis-
16
Ibid. tribuidora Riofilme e ao diretor E. Coutinho por
17
Ibid. ter me facilitado uma cópia do EM.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 113

El registro cinematográfico: nuevas señales de vida.


Restaurar el silencio es la función del objeto
Francisca Bermejo1

“Todo buen relato es, por supuesto, Tras este párrafo inicial denotativo de la
a la vez un cuadro y una idea; y importancia de las imágenes en nuestra
mientras más se funden ambas cosas, cultura, nuestro planteamiento pretende
mejor se resuelve el problema”. abordar una de las funciones que a lo largo
(Henry James, Guy de Maupassant) del pasado siglo, y en el presente, desempeña
el cine, a saber, complementar la función
Las imágenes que el mundo nos ofrece informativa a través del rescate y recuperación
estaban guardadas ya en nuestra memoria de las imágenes y palabras que no tienen
desde el día de nuestro nacimiento, era la cabida en el resto de los medios
premisa que mantenían los antiguos. “Así comunicativos contemporáneos. Cierto es, el
como Platón tenía la idea de que todo posmodernismo actual, caracterizado por un
conocimiento era sólo recuerdo, Salomón proceso de proliferación de imágenes y
emitió su concepto de que toda novedad es símbolos en el seno de todo tipo de medios
sólo olvido”.2 De ser esto cierto, entonces electrónicos, cuyo consumo adopta una
podríamos todos reflejarnos de modo alguno variedad de formas, determina cuanto menos
en las multiplicidad de imágenes que nos reflexionar a propósito de la relación que se
produce entre el cine, la realidad y la ficción.
rodean, puesto que forman ya parte de quienes
Nos encontramos en una nueva etapa,
somos: las imágenes que creamos y las que
propiciada por la transformación profunda en
componemos materialmente, e imágenes de
la textura de los medios, como reconoce J.
esas imágenes, esculpidas, en acción,
M. Catalá, “La creciente presencia, por un
fotografiadas, impresas, filmadas. Bien por
lado del vídeo y de la imagen digital, sin
que descubramos en esas imágenes
olvidar la televisión, en el ámbito
circundantes los recuerdos, los momentos de cinematográfico (…) hace que nos
algún acontecimiento que alguna vez fue enfrentemos a una auténtica revolución
nuestro, o bien por que nos exijan una mediática que afecta de forma muy directa
reflexión novedosa a través de las tanto a la producción como a la estética del
posibilidades que el lenguaje ofrece, somos documental”4. Hoy en día el cine ya no puede
en lo esencial, por tanto, seres hechos de descubrirnos el mundo, con el desarrollo de
imágenes, de representaciones. De ahí que la televisión ha perdido el poder de las
las imágenes, como los relatos, nos brindan imágenes y la primacía de la información.
información. La existencia transcurre en un Estamos bien o mal informados antes que
continuo despliegue de imágenes captadas por él, y lo que nos muestra lo hemos visito ya.
la vista y que los otros sentidos realzan o Por otro lado, hemos de considerar que la
atenúan, imágenes cuyo significado, o televisión desafía al cine, invitándole a
presunto significado, varía continuamente, replantearse su relación con el mundo y sus
con lo que se construye un lenguaje hecho espectadores. De ahí que el lugar del cine,
de imágenes traducidas a palabras y de al contemplar la realidad signifique hoy
palabras traducidas a imágenes, a través del encontrar el ángulo exacto que le permite fijar
cual tratamos de captar y comprender nuestra una mirada necesaria, no una mirada más,
propia existencia. Las imágenes que sino una mirada diferente. Es exactamente
componen nuestro mundo son símbolos, en este planteamiento donde surgen los filmes
signos, mensajes, alegorías. Las imágenes, objetos de esta reflexión.
como las palabras, son la materia de las que Por tanto, la propuesta de esta
estamos hechos3. comunicación pretende ser una reflexión
114 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

sobre la pertinencia en los filmes objeto de discriminación del contenido y los personajes,
estudio, abordados a través de la función de la selección de imágenes, la elección de la
registro en ellos inscritos, es decir, en la bando sonora y, sobre todo, la predisposición
función del realismo en el cine, de la del realizador adulteran la objetividad. Aún
representación fílmica del cine documental intentando aproximarse a la verdad el director
y del realismo cinematográfico5 a través de no puede atribuirse una mirada imparcial. El
una triple vertiente. En primer lugar, como caso más reciente lo tenemos en La Pelota
una actitud de realizador frente a lo que filma, Vasca (España, 2003). El realizador relega,
de ahí que el realismo cinematográfico sea intencionadamente, las posibilidades estéticas
contemplado más por la temática que plantea del film para potenciar, deliberadamente, todo
– de carácter social – que por el estilo con el protagonismo a la palabra y, por tanto, a
que los aborda. En segundo lugar, el cine la temática abordada.8 Meden cede, está claro,
como un medio de conocimiento, como haciendo uso de la libertad temática y
instrumento de reflexión, en tanto en cuanto, artística, todo su afán de mostrarse a la
se dedica a diseccionar la realidad en lugar palabra, sin que nadie distraiga al espectador
de copiar lo real, a analizarlo para desentrañar de lo que se está diciendo en la pantalla. Esta
sus secretos y mostrar lo que hasta entonces es la razón, desde el punto de vista
era invisible. Y, en último lugar, considera estrictamente cinematográfico, determinante
el espacio-lugar asignado al espectador. Éste de la extremada humildad estética del
es, pues, el tercer elemento cuya presencia documental, chocante y extraño, en la obra
indispensable es requerida para que las de un realizador cuya característica está en
películas encuentren y adquieran su sentido: la búsqueda de la belleza plástica. Pero en
restaurar el silencio. Es una situación este documental, la filmación es quizás como
incómoda, esa coacción que experimenta la de un videoaficionado, plano medio del
como espectador le obliga a preguntarse por entrevistado, cámara prácticamente fija y
la actitud que adoptaría en la vida real frente algunos paisajes al fondo. Quizás, en algunas
a situaciones cómo ésas. Las películas localizaciones, parajes naturales del País
constituyen en sí mismas espacios cerrados, Vasco, escenarios donde el realizador sitúa
inquietantes, que provocan en éste una a las personas, está el extraño privilegio con
situación comunicativa de “alter- ego”. el que el propio realizador pretendía atraerlas,
Tras esas premisas generales del realismo, una a una, hacía él. Tal vez, en la
añade Monterde, “se apunta una actitud que intencionalidad de las localizaciones, esté la
va mucho más allá de la mera restitución premisa de no querer registrar los problemas
visual de la realidad contextualizada, para en los escenarios reales donde se producen,
introducir aspectos éticos e ideológicos a los con su marca de sufrimiento y espanto, sino
que tampoco será ajeno el realismo desplazando al entrevistado a los entornos
cinematográfico. Y con relación a este último naturales buscando el efecto contrario: que
reflexionaremos sobre el papel que puede toda la tensión humana quede fuera de lugar,
ocupar las propuestas documentales o, en “La suma aleatoria de fondos – en bosques,
sentido más amplio, el cine que podemos campos, montes y acantilados – que ayudan
denominar no-ficcional”6. El propio autor a retratar la geografía vasca más primigenia,
mantiene que el documental aparece como calada de sentimientos tan antiguos como
la muestra más acabada del cine noficcional inamovibles, me vino bien para mantener el
por una doble razón: por su capacidad de ojo de pájaro y así persuadirme de que puedo
desarrollar con mayor libertad el tema, como ver el odio sin odiarlo”.9
por las posibilidades estéticas que alcanza y La actitud del realizador frente a lo que
explicitan su dimensión discursiva. filma, constata otra de las vertientes en las
Evidentemente estas películas quedan que se inscribe el realismo de este
subscritas en dichas premisas, más en la documental, es decir, a través de la temática
primera que en la segunda.7 que plantea, de carácter eminentemente social
El condicionamiento que implica la y, el lugar en el que se sitúa el mismo.10 El
presencia de una cámara, la colocación – predominio del carácter informativo, tal vez
estratégica o no – de ésta, el lenguaje, la sería más apropiado decir didáctico,
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 115

testimonia, evidentemente, la primacía que balbuceada e inarticulada, mostrada a través


el realizador otorga a declaraciones de los de una rápida fragmentación unívoca,
entrevistados y, a través de ellas, a los presentada como testimonio de una supuesta
aspectos que conforman el organigrama opinión pública que acaba convirtiéndose,
político social y humano, de quienes justifican actuando por contexto político que en los
las razones de lo que están viviendo. En el últimos años ha desembocado en el actual
caso de este film, la analogía con la realidad enfrentamiento entre el Gobierno español y
viene articulada entre las visiones perceptivas la sociedad, intencionadamente contraria a
de unos y otros, es decir, el realismo quien la expresa, las palabras que surgen en
perceptual.11 De hecho, el realizador no sólo el documental de Meden, resultan quizás más
da más importancia a las opiniones que a útiles. Y ésta es la función del objeto que
los acontecimientos en sí mismos, sino que tiene el novedoso documental Hay motivo13
es la pretensión específica de la película – (España, 2004). Formada por 32 cortometrajes
identificar las bases del conflicto vasco a de unos tres minutos cada uno, la película
través de la diversidad de opiniones y hace un recorrido exhaustivo y muy crítico
sentimientos de unos y otros. Y, a partir de por diferentes aspectos de la realidad
esa comprensión perceptual, a través del española. La sanidad, la educación, el precio
diálogo sostenido en una doble vertiente: por de la vivienda, la guerra de Irak, el accidente
un lado, a través de una intencionada del Yak-42, la muerte del reportero José
simulación fílmica de éste entre las personas Couso, la soledad de los ancianos, la
que se citan frente a la cámara y, por otro, inmigración son alguno de los aspectos sobre
con el espectador para favorecer la aparente los que se detienen los cortometrajes. Hay
inmediatez cognoscitiva de éste. unos, la mayoría, que utilizan imágenes de
Aborda la película las palabras medidas de la realidad, otros realizan relatos de ficción
quienes son entrevistados, situándose en escena con actores conocidos, y otros que van a la
cómo especialistas y específicamente activos búsqueda de la gente de la calle, miembros
en el mundo de la política, de la sociedad civil de la sociedad civil, que cuentan frente a la
y la opinión pública.12 Nótese que sobre alguno cámara terribles experiencias. A tal fin, Pedro
de ellos, el transcurso del tiempo ideológico Almodóvar, realizador de cine que no
acerca del conflicto vasco presenta una participa en la película, manifestó,
evolución a tenor de sus declaraciones y, en refiriéndose a los cineastas participantes:
función de lo que han vivido en primera persona “Estoy orgulloso de ellos, estoy orgulloso de
y afrontan lo que siente. ser un director español. Esta película es un
El film de Meden es subjetivo, gesto, una patada a los genitales del partido
intencionadamente subjetivo, el mismo busca que está en el poder. Es una iniciativa
situarse en el documental – aunque se esconda maravillosa, absolutamente necesaria y
– entre las declaraciones de unos y otros, legítima. Lo que más me ha gustado es que
pero su punto de vista es perfectamente los directores han cogido la realidad y la han
admisible, ejerciendo su derecho a la libertad puesto tal cual, mostrando la fuerza
de expresión y artística. De hecho, el espíritu demoledora de imágenes que hemos visto”.14
que reclama el documental, quizás la Con un montaje en el que se proyectan
pretensión real del realizador, es la búsqueda los cortos uno detrás de otro con el título,
del diálogo para acabar con la tragedia, la el nombre del realizador y un mismo motivo
comunicación para la comprensión. Diálogo – un ovillo que se va enredando, la
en el que también participa el espectador con distribución de la película se ha realizado
su toma de conciencia. también a través de internet.15 Aunque resulta
casi imposible evaluar la verdadera
Restaurar el silencio es la función de “Hay efectividad de la película, lo cierto es que
motivo” se ha convertido en todo un fenómeno social,
al margen de su calidad. No sólo en la
Frente a la falta de luz en la utilización televisión, especialmente aquellas empresas
actual promovida desde los medios de televisivas españolas afines a la oposición del
comunicación, de esa palabra oculta, antiguo partido en el gobierno, se ha hecho
116 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

eco del manifiesto contra la gestión del conozcamos a una persona nunca llegaremos
Gobierno. Distintas asociaciones, a saberlo todo sobre ella. Por eso prefería
universidades y cines españoles han querido que fueran los espectadores quienes sacaran
proyectarlo. Sin embargo, hay motivo para sus propias conclusiones”.19 Su dirección es
creer que tiene cierta base documental. precisa y aunque nos introduce en las fauces
Predomina la opinión sobre la descripción de mismas del horror nunca pierde el respeto
hechos y una porcentaje de ellos – un 25% por nadie: victimas, policías y sobre todo la
– de ellos son, simplemente cortos de ficción propia familia tiene su tribuna para explicar
con un fondo de mofa o crítica. Pero también su punto de vista. Es un film cargado de
hay algo de reflejo sesgado o reverberación emociones muy fuertes. La pederastia es
de la historia reciente del país en Hay material muy sensible y es muy difícil no
motivo.16 De hecho, la finalidad de la película caer en el tremendismo barato. Sin duda muy
es llegar al mayor público posible, por ello, pocas veces hemos podido asistir tan de cerca
además de las televisiones, los responsables al ocaso de unos seres humanos a los que
de este proyecto se centrarán también en nadie jamás quiso darles el beneficio de la
canales alternativos. En el planteamiento a duda.
propósito de la reflexión sobre la pertinencia Sin embargo, en las distintas
o no de estas películas, debemos hacer documentales objetos de este estudio, los
obligada referencia a la pretensión de espacios que construyen sus realizadores al
participación – o, no – del público sobre las espectador son espacios cerrados que
temáticas que en ellos se abordan y que están contrastan, intencionadamente, frente a los
inscritas tanto en el tratamiento de la acción espacios abiertos en el que se registran a los
enunciativa de la propuesta cinematográfica entrevistados, son espacios cerrados por la
de los documentales,17 cuyas pretensiones son confrontación perceptiva entre unos y otros
promover una proximidad del espectador con y, a su vez, por la propia percepción
las películas, bases de sus dimensiones ideológica del espectador, espacios
discursivas; junto a las propuestas de registros inquietantes que provocan en éste situaciones
visuales mediante la introducción, en las comunicativas de “alter-ego” permanente. Es
cintas, de las imágenes reales de los una situación incómoda, esa coacción que
acontecimientos a propósito de los cuales se experimenta el público le obliga a preguntarse
abordan las temáticas. Por tanto, una vez por la actitud que adoptaría en su vida real
registrada o construida la representación de frente a situaciones como las testimoniadas
la realidad – evidentemente subjetivas a través en los filmes. El espectador, en su toma de
de las opiniones de los entrevistados y de conciencia, actúa como sujeto integrador de
los específicos montajes de los realizadores conocimiento, donde se une a él o, se
–, facilitándonos creer haber accedido a un distancia. Por tanto, su exterioridad es
cierto conocimiento de las “verdades imposible. Como reclama Monterde, “Esa
expuestas”, éstas sólo adquieren sentido toma de conciencia ya sugiere entender la
cuando el espectador está en situación de pre- práctica realista desde una perspectiva ética,
conocimiento de la temática en ellas social o política y conduce a un compromiso
abordada. Por tanto, en la función de dar con esa realidad (…), abocado desde ahí hacia
sentido a la realidad se configura el “espacio- un eventual deseo de transformación de la
lugar” que los realizadores atribuyen al realidad, resuelta eso sí en el imaginario, y
público. Y, a su vez, es el elemento necesario, sólo operativa desde ahí”.20
cuya presencia indispensable es requerida Quizás los distintos filmes no tienen la
para que las películas encuentren equilibrio voluntad de convertirse en el retrato de la
y adquieran su sentido. sociedad a la que se dirigen con sus
Este es el planteamiento que maneja dispositivos cinematográficos, sino a través
Andrew Jarecki, director de Capturing the de las palabras que se hacen oír en ellos.
friedman´s (USA, 2003),18 para quien la La diversidad de las razones y afectos
verdad siempre permanece oculta: “Siempre registrados, de las situaciones colectivas y,
vi como uno de los temas fundamentales de personales, de alguno de ellos, de la
este film el hecho de que por mucho que representatividad de los acontecimientos
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 117

históricos a los que se hace expresa referencia la pantalla, no están en un estado inmutable. Lo
y, de las imágenes simbólicas insertadas en que vemos en pantalla, son imágenes traducidas
ellos, nos permite aproximarnos a las en nuestra propia experiencia. Desgraciadamente,
películas como si se tratara de una o por suerte, sólo podemos ver aquello para lo
cual contamos ya con imágenes identificables.
composición cinematográfica de lo que sólo
Misteriosamente, o bien por ello, ahí resida uno
los espectadores podemos, y quizás debamos, de los elementos prioritarios en la imagen
extraer finalmente su significado. cinematográfica como registro, como documento.
Tal vez estos filmes se presenten bajo el 4
Véase J. M. Catalá y Otros, Imagen, memoria
slogan de hay que recuperar todo lo que nos y fascinación. Notas sobre el documental en
es útil. En si mismas son una cuestión de España. Madrid, Ocho y Medio, 2001, p. 8.
5
ética. Los realizadores con sus cámara, a Tomamos las consideraciones elaboradas por
través de ellas se convierten en recolectores Monterde al manifestar, “Clarificando el hecho de
en busca de personajes, en busca de los que la representación fílmica deriva de ciertas
huecos y los surcos, de lo útil de la vida; estrategias semióticas y pragmáticas, (…) que se
centran en tres grandes líneas de acción: efectos
buscan entre la vida cosas que aún tengan
de acción, los efectos de contigüidad, de
vida más allá de la vida. Películas acerca implicación y de rechazo”. Véase E. Monterde,
de encontrar valor allí donde otros no ven Realidad, realismo y documental en el cine
nada. Ahí está la vida, parecen decir estos español, en José Mª Catalá y Otros, Imagen,
documentales. Recuerdan todos ellos la memoria y fascinación. Notas sobre el documental
urgencia cotidiana por mirar lo que sucede, en España. Madrid, Ocho y Medios, 2001, p. 17.
6
por dar sentido a lo que pasa, por tratar de Idem, cit. ant., p.17.
7
conectar los hechos entre sí buscando darles Nótese que el documental no puede
sentido; buscando ese otro lado del mundo disociarse de la manipulación. La distorsión de
que ya no es sino el lado invisible de la la realidad es evidente, por ejemplo, en las
películas de la directora nazi Leni Riefenstahl,
memoria. Al hacer sus películas, ellos espigan
precursora de la manipulación política en el género
aquellas imágenes que otros cineastas nunca
documental, pura propaganda. Diferente e incluso
recogieron con sus cámaras. Sin embargo, válida es la manipulación de Flaherty en “Nanuk,
quien la mira sabe que tan sólo son reflejo el esquimal” 1920-1922; la primera película del
de un misterio que siempre se escapa de los llamado género documental narra la vida diaria
bordes de la imagen para esconderse en algún de una familia de esquimales. Para rodarla, el
refugio fuera de los encuadres. Entonces director tuvo que construir un iglú más grande
sabemos que su mirada está determinada para de lo normal y pedir a los esquimales que
que podamos reconocer que en realidad cambiaran su horario para adaptarse a las
filman para atrapar el tiempo del juego, que condiciones del cinematógrafo. En esencia no se
transformó la realidad, sin embargo, es permisible
no es otro que el tiempo de la vida.
plantearse sí grabó la cámara al verdadero Nanuk.
Una duda similar despierta la película “En
Construcción” al cuestionarnos la actitud de los
_______________________________ obreros que aparecen en la película. De hecho,
1
Universidad Europea de Madrid. Guerin, el realizador, reconoce haber acudido a
2
Bacon, Francis, The Essays, ed. John Pitcher, los trucos de la creación cinematográfica para
Harmondsworth, Penguim Books, 1986, p. 25. grabar esas escenas del barrio chino barcelonés,
3
Nótese, sin embargo, que los relatos existen que se disfrutan en la pantalla. El director entiende
en el tiempo y las imágenes en el espacio. A el documental como un género cinematográfico
diferencia de las imágenes, las palabras, los textos a medio camino entre la ficción y la realidad.
escritos fluyen continuamente más allá del 8
La propuesta cinematográfica que este
encuadre de la página, los libros no delimitan las documental atribuye a las diversas opiniones que
fronteras del texto, el cual nunca llegan a registra, describe un tratamiento de la acción
constituirse por completo como un todo material, enunciativa verdaderamente sorprendente. La
sino sólo en compendios; la existencia de éstos proximidad y la distancia ideológicas de quienes
reside en su continua corriente de palabras que son citados frente a la cámara y ante el micrófono,
les da su unidad y que fluye de principio a fin, junto al rechazo deliberado de una proximidad tal
durante el tiempo que dedicamos a su lectura. Las del público con ellas, facilitando el conocimiento
imágenes, contrariamente, se nos presentan de – o intentándolo al menos – de la razón de unos
manera instantánea, contenidas en su encuadre. y otros, permite advertir pequeños aspectos del
Lo que vemos cuando seguimos las imágenes en tejido político, social y humano en las voces de
118 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

16
quienes quieren explicar su visión de lo que están Realizando una selección subjetiva de los
viviendo, y afrontan lo que sienten, más que el cortometrajes que mayor consistencia o
análisis de lo que está sucediendo. credibilidad documental ofrecen obtendríamos que
9
Declaraciones del realizador recogidas en el el del realizador Manuel Gómez Pereira y su
Press Book de la película, San Sebastián, 2003. minireportaje sobre el Yak 42; de Fernando
10
El lugar que ocupa Meden, Colomo y la tragicomedia real de un trabajador
intencionadamente en el documental, camuflado que pierde un valioso día de sueldo por la
en el “bosque de las razones de unos y otros” inauguración anticipada de un nuevo aeropuerto;
y, el espectador, para registrar, visual y V. García León y su trabajo de la drogadicción,
enunciativamente, la rivalidad entre ellos. un problema social que compete a los gobernantes.
11
La función perceptiva del film está inscrita En cualquier caso, hay de todo, hasta el juego
en la metáfora construida a lo largo de éste, y inteligente de José Luis Cuerda, que nos devuelve
en su título: La pelota vasca. La piel contra la al personaje de Aznar, presidente actual en
piedra. Ese golpe de pelota – razones – sin funciones, cuando estaba en la oposición y de las
razones- contra el frontón – la rabia, la ira, el promesas que no ha cumplido.
17
odio, la incomprensión, la incomunicación-, y a Específicamente en La Pelota Vasca. La piel
su vez, el juego que representa la tradición contra la piedra, de Julio Meden o, en el ganador
ancestral vasca; frente a lo que sienten, a las del oscar al mejor documental norteamericana
formas de afrontar lo que sienten, más que a lo Bowling for Columbine, de Michael Moore. El
que se vive: “ la piel contra la piedra”… y, realizador plantea una reflexión sobre la cultura
traspasarlo, superarlo a través de la toma de estadounidense de las armas de fuego y sus efectos.
conciencia, de la evolución de las creencias… del Una apasionante radiografía de ambiente social,
diálogo y la educación de las nuevas generaciones. motivos políticos e intereses empresariales. Su
12
Nótese que sobre alguno de ellos, el punto de partida: la famosa tragedia de instituto
transcurso del tiempo ideológico acerca del Columbine, donde le 20 de abril de 1999, 12
conflicto vasco presenta una evolución a tenor de alumnos fueron asesinados a sangre fría por dos
sus declaraciones y, en función de lo que han de sus compañeros. La técnica utilizada, la
vivido en primera persona y afrontan lo que siente. encuesta sobre el terreno a través de la
13
Un colectivo de 32 personajes de la vida confrontación directa de testigos y víctimas; su
pública española, directores de cine en su mayoría- fuerza, un método de entrevistas infalibles, con
han participado en la reciente campaña electoral aires de inocencia ero sutilmente inquisidor.
18
con una película que ataca frontalmente al Partido Nominada al Oscar en el 2004, ganadora
Pupular; y lo han hecho en un tiempo récord, con del Premio del Gran Jurado de Sundance y
sólo tres semanas de preparación, lo justo para aclamada por la crítica internacional, Capturing
llegar a la semana clave a las elecciones e inclinar the friedman´s, es una odisea que está conectada
el voto de los indecisos hacia el lado opuesto de con la tradición de la épica americana. Aunque
la candidatura de dicho partido político, que es describe básicamente hechos que ocurrieron
la diana de buena parte de los dardos lanzados durante el último cuarto de siglo pasado, su éxito
por los realizadores del film. y posterior declive deja al descubierto las
14
Declaraciones ralizadas por Pedro excelencias y miserias de nuestro propio sistema,
Almodovar, El País, sábado 6 de marzo de 2004. que permitió ambas cosas, al destripar las
15
Se puede encontrar la película en las redes manipulaciones y mentiras de un sonado caso de
de información compartida (P2P) o, de forma más pederastia en Estados Unidos.
19
sencilla en las páginas web de los periódicos El Declaraciones del director en la rueda de
Mundo y El País. También está colgada en la red prensa presentación de la película.
20
en la dirección www.haymotivo.com. Monterde, J.E., obra cit., p. 21.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 119

Comic e cinema, uma relação entre iguais?


Gêisa Fernandes D´Oliveira1

Em janeiro passado, o trabalho final para 2. Cinema arte coletiva x comics arte
a disciplina Limites da Representação da individual e o peso da indústria cultural em
Imagem deveria ser apresentado na forma de cada uma das linguagens.
um seminário, aberto ao público. A cada dia 3. Filme - vira comic - vira filme. Faz
dois alunos abordariam seus temas de pes- diferença?
quisa, sob a luz da argumentação proposta 4. Afinal, quem representa melhor a
pelo filósofo francês Michel Foucault em seu realidade: os comics ou o cinema?
livro As palavras e as Coisas,2 segundo a
qual a relação entre as representações e o 1. Como se formam as imagens numa folha
que se representa, transforma-se conforme a ou numa tela?
configuração do saber em determinada épo-
ca. O segundo dia seria reservado ao cinema Como dissemos anteriormente, o ponto
e aos comics (nessa ordem). Nos dias an- de partida para uma discussão que envolva
teriores à apresentação vários colegas vieram comics e cinema é a maneira como cada uma
saber mais detalhes e confirmar presença. dessas linguagens se utiliza deste denomi-
Porém, o que no princípio havia sido motivo nador comum, a imagem. Enquanto o cine-
de grande satisfação para mim não passava, ma aprisiona uma imagem em movimento,
na verdade, de um mal entendido. As pes- congelando-a, para depois, via reprodução
soas queriam sim, assistir ao segundo dia de (projeção de um determinado número de
seminários, mas queriam fazê-lo por pensa- fotogramas por minuto) restituir-lhe a dinâ-
rem se tratar de um dia dedicado ao cinema. mica, os comics criam imagens que buscam,
Exclusivamente ao cinema. Este pequeno via recursos gráficos, dar a impressão de
episódio confirmou uma suspeita surgida logo movimento. Sobre esta possibilidade de
no início da pesquisa: falar de comics é lidar imprimir movimento a imagens estáticas, sem
com uma espécie de “patinho-feio”, uma a interferência de nenhum recurso externo,
linguagem que apesar de não ser descartada discorre Umberto Eco, a partir da pesquisa
e nem de ter sua existência ignorada, per- da socióloga francesa Evelin Sullerot com
manece sempre numa posição menos favo- fotonovelas (dispostas graficamente segundo
rável, um pouco “de lado”, um tanto quanto o mesmo esquema dos comics, a saber, a
negligenciada por outras linguagens com partir de quadros justapostos que observados
características bastante próximas às suas. seguindo-se uma direção pré-determinada
Dentre elas, o cinema. A primeira aproxima- contam uma história):
ção que se faz entre cinema e comics é a
de que ambas as linguagens trabalham com (...) numa pesquisa de opinião feita
imagens, o que implica numa primeira re- sobre a capacidade de memorização
flexão: trabalham da mesma forma? Esta de uma fotonovela, tornou-se patente
pergunta, embora aparentemente possa ser que as leitoras submetidas ao teste re-
respondida de maneira óbvia (as formas são cordavam cenas que de fato não
diferentes uma vez que o cinema lida com existiam na página, mas resultavam
imagens em movimento e os comics com subentendidas pela justaposição de
imagens estáticas), será o ponto de partida duas fotografias. Sullerot examina
para nossa discussão, dividida para os fins uma seqüência composta de dois
desta apresentação, em quatro pontos: quadros (pelotão de execução dispa-
1. Como se formam as imagens numa rando, condenado caído no chão),
folha ou numa tela? referindo-se aos quais, os sujeitos
120 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

falavam longamente de uma terceira preensão da narrativa pode ser prejudicada,


imagem (condenado enquanto caía).3 pois, ao ler um comic, se tenho interesse em
compreender a história e não apenas admirar
Ou seja, o observador, gera uma imagem cada quadro, há um certo limite de tempo
virtual a partir de uma imagem real, con- de observação a ser respeitado. Não posso
ferindo movimento ao todo. A esta capaci- demorar-me, digamos, um dia inteiro apre-
dade dá-se o nome de continuum virtual. ciando um só enquadramento, sob pena de
Note-se que a imagem gerada via continuum, não mais entender a história (a lacuna a ser
apesar de ser criada no interior da minha preenchida entre o último quadro desta página
mente (fenômeno individual), será também e o primeiro da próxima vai se tornar cada
coletiva, pois vários observadores gerarão vez maior e mais dificultoso seu preenchi-
imagens de igual conteúdo. Exemplificando mento). Esse tempo de leitura é o tempo
com as imagens citadas por Sullerot: ao extrínseco do quadrinho, que não pode ser
observar a primeira imagem (pelotão) e a definido precisamente, não é marcado pelo
terceira (homem caído no chão), nenhum es- tempo da projeção, como é o caso do filme
pectador se recordará de uma figura de um no cinema, porém faz-se sentir perfeitamen-
homem comendo, ou dançando. O continuum te, de maneira tão concreta quanto o tempo
que cabe, que se encaixa nestas imagens, tem de projeção de um filme.
de ser o do homem enquanto cai. Esta imagem Pois bem, até aqui, as diferenças indicam
que não está em lugar nenhum, no entanto, um caminho comum: ambas trabalham com
está em todos que observam a série. Eco imagens que, através de estratégias diversas,
entenderá essa previsibilidade como uma passam ao observador, em maior ou menor
“falha” comunicativa, uma supressão de grau, a impressão de movimento, mas este
redundância que em nada altera ou melhora é apenas o primeiro passo rumo ao objetivo
a capacidade informativa do conjunto. “É, em maior almejado por ambas as linguagens:
suma, como um telegrama que comunique narrar, contar uma história. Para tanto, o filme
(eliminando toda a redundância) que o Natal assim como os comics precisam ordenar suas
cairá no dia 25 de dezembro.”4 imagens de um modo bastante específico. Ve-
Apesar de ter a sua graça, a afirmação jamos primeiramente como isto acontece nos
de Eco é um tanto quanto injusta, pois reduz comics.
o continuum a uma informação desnecessá- Via de regra a leitura da página de um
ria (mesmo sem o telegrama, saberíamos que comic acontece segundo os padrões ociden-
o Natal não cai em outra data, senão no dia tais, começando pela primeira linha no alto
25 de dezembro). O continuum não nos ofe- da página, da esquerda para a direita. Os seja,
rece algo que já sabemos, ao contrário como faríamos com qualquer texto escrito em
possibilita que o sabido, o que se vê, gere prosa. Alguns desenhistas, como o recente-
uma informação nova, previsível, sim, mas mente falecido italiano Guido Crepax, sobre-
não banal nem desprezível. O continuum em tudo em sua Valentina buscam romper com
si não é, de fato, responsável pelo ato essa leitura guiada ao explorarem ao máxi-
comunicacional completo, mas é ele que mo o uso não-linear do que Cirne (1975,
permite que esse ato se processe. Em outras 2000) chama de blocos significacionais: “uma
palavras, é através do continuum que a área da página onde a relação entre os quadros
história flui, é ele que introjeta movimento fosse de tal modo expressiva que ela passaria
numa série de imagens estáticas. a determinar a ação significante da narrativa
Enquanto no cinema o continuum é dado e, em conseqüência, a da leitura.”5
por um elemento externo, um projetor, que No entanto, mesmo trabalhos como os de
pode inclusive alterar a velocidade dos Crepax, tendem a guiar o olhar numa direção
quadros e que delimita, em última instância, tradicional. Outras leituras permanecem como
o tempo da narrativa, nos comics esse possibilidades em aberto, caminhos alterna-
continnum está relacionado ao tempo de tivos que o olhar poderá traçar como num
leitura da história. Um tempo que, embora exercício complementar.
aparentemente determinado pelo leitor, pre- No cinema, curiosamente, esse ordena-
cisa seguir um ritmo, caso contrário a com- mento das imagens remete-nos, num primei-
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 121

ro momento, aos comics, uma vez que o vendidos e, conseqüentemente mais patroci-
roteiro, antes de ser filmado, será nadores e mais lucros. Na esteira do King
esquematizado, representado graficamente por Feature surgiram, majoritariamente nos
um story board, no qual cada cena é dese- Estados Unidos da América, muitas outras
nhada quadro a quadro, da maneira que destas agências distribuidoras de comics para
deverá aparecer na tela, com os jornais e revistas. A partir de uma fórmula
enquadramentos e movimentos de câmeras simples - a de vender barato para lucrar no
desejados, ou seja, já com a sugestão de como atacado, possível devido à grande quantida-
a leitura dessas imagens deverá ser feita. Após de da oferta, os syndicates foram, em grande
este estágio embrionário, durante o qual o parte, os responsáveis pela ruína de vários
futuro filme já existe, mas apenas enquanto mercados locais. Incapazes de venderem seus
comic, as cenas do story board, uma vez trabalhos para os jornais (uma vez que estes
filmadas organizam-se em um plano- podiam adquirir comics norte-americanos por
seqüência, a unidade “mínima significante da preços consideravelmente mais baixos),
linguagem cinematográfica”· muitos desenhistas abandonaram o ofício ou
E se o bloco significacional apontava optaram por linhas menos convencionais, que
quase sempre numa direção linear, o plano- levariam aos chamados comics alternativos,
seqüência, por outro lado, pode ser longo, nos quais é possível encontrar temas como
curto, cheio de cortes, avançar no tempo sexo, drogas e violência, tratados com apuro
cronológico ou nele retroceder, enfim, uma gráfico-visual. Ironicamente, seriam estes
infinidade de recursos que desvendam, por mesmos autores até então alternativos que
sua vez, uma série de possibilidades narra- salvariam os syndicates da grande crise na
tivas. qual estes se encontravam devido ao desgas-
te do modelo tradicional dos comics. Pode-
2. Cinema arte coletiva x comics arte mos afirmar, portanto, que desde sua afir-
individual mação enquanto linguagem os comics esti-
veram ligados à idéia de uma diversão
Também neste ponto poderemos traçar popular, de massas. Outra foi a origem do
alguns paralelos entre os comics e o cinema. cinema, como bem podemos perceber no
O processo de construção de um filme, episódio ocorrido em 1896 - equivale a dizer
da concepção à distribuição, envolve quase apenas um ano após a primeira apresentação
que necessariamente6 a participação de vá- pública do cinematógrafo no Grand Café de
rias pessoas. Os comics, por sua vez, neces- Paris -, quando um funcionário da Lumière,
sitam, basicamente, de um desenhista e lápis ao presenciar um acidente em São
e umas tantas folhas de papel. Desse caráter Petersburgo, durante a coroação de Nicolau
coletivo do cinema decorre uma II, registra o ocorrido em sua câmera, inau-
vulnerabilidade muito maior do cinema às leis gurando uma nova forma de jornalismo.7 A
da indústria cultural. Que história será con- febre de aventureiros dispostos a registrar
tada e como e onde, tudo depende muito mais tudo o que pudessem captar em suas câmeras,
de recursos e aprovações de terceiros do que carregadas em trens, balões, em viagens pela
no caso dos comics, mas estes, apesar de Europa e pela América, aponta igualmente
gozarem de uma maior liberdade, especial- na direção de uma busca de outras funções
mente no que diz respeito à fase de confec- para o cinema, que não apenas o entreteni-
ção estão igualmente sujeitos a duras regras mento. Vale repetir que estamos tratando aqui
de mercado quando se trata da distribuição. dos comics enquanto linguagem estabelecida
Durante a década de 1910 o crescente su- e daí ser possível tratar este paralelo com
cesso dos comics junto ao público levou à o cinema, visto que ambos, a partir desta
criação, por parte de um executivo do ramo perspectiva, seriam inventos do final do
jornalístico - William Hearst, proprietário do século XIX. Partindo sempre desta
New York Journal - do King Feature contemporaneidade, podemos ainda afirmar
Syndicate, que passou a centralizar e con- que o suporte de cada uma dessas lingua-
trolar a distribuição das histórias. Publicar gens, ao mesmo tempo em que lhes apro-
tiras significava um número maior de jornais xima, uma vez que ambas utilizam-se de
122 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Blocos significacionais (Valentina - G. Crepax)


FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 123

inovações técnicas típicas das modernas um lançamento é ansiosamente aguardado,


sociedades industrias; lhes confere certa comentários ácidos costumam suplantar os
distância, pois se um comic book, depois de elogios. O contrário, a quadrinização de um
pronto, já pode ser fruído, um filme precisa herói do cinema, acontece de forma muito
ainda de um tipo de projetor, de um aparato discreta. Trata-se, na verdade, quase sempre
técnico que permita a sua reprodução e, de uma personagem de filme de animação,
somente então, sua fruição. ou seja, um desenho animado que vira
desenho “estático” e segue vivendo suas
3. Filme - vira comic - vira filme. Faz aventuras nos comics. É possível ainda que
diferença? um personagem de carne e osso torne-se, pri-
meiramente, um desenho para tevê e só então
O que sentimos diante de uma imagem? apareça através de outros produtos licenci-
Susan Sontag (2003) tenta responder a esta ados, como comics ou álbuns de figurinhas.
pergunta, centrando o foco de sua análise nas Não raro acontece um ciclo completo: um
imagens de guerra e atrocidades em geral. personagem de comics é transformado em
Pelo menos do ponto de vista do que se filme e, posteriormente, relançado no forma-
admite em público, imagens de extermínio to de comics. De qualquer modo, a trans-
suscitam dor, medo, vergonha, pavor, pâni- posição de um herói do cinema para o papel
co. Sontag vai além desta primeira impres- dá-se de forma tranqüila, sem grandes inter-
são e, considerando desde pinturas sobre ferências da mídia, nem posteriores críticas.
invasões e batalhas até recentes filmes de A questão é: por que esta diferença? Cer-
guerra, afirma que talvez também haja um tamente estudos de recepção podem indicar
tanto de prazer mórbido, êxtase, catarse respostas, mas o que podemos inferir através
pessoal envolvida no voyeurismo que exer- da própria linguagem? Por exemplo: uma vez
cemos como observadores de uma foto de que se trata de um mesmo enredo, seriam
guerra. Apesar de sermos permanentemente os personagens dos comics e os personagens
bombardeados por elas, desde o despertar até criados para cinema os responsáveis por esta
o final do dia, mesmo sendo impossível diferente recepção?
escapar delas, as imagens ainda nos pren- Sobre a estrutura dos personagens, veja-
dem, nos enlaçam e basta pararmos diante mos o que nos diz Umberto Eco. Discorren-
de uma delas, saltando do rápido exercício do a respeito dos personagens presentes nos
inscrito no verbo olhar, para a contemplação comics, o autor diferencia as estruturas nar-
exigida pelo verbo ver para que minha ação rativas dos heróis gráficos, das que são
passiva se desdobre num leque de possibi- próprias dos mitos clássicos e das figuras
lidades ativas, interpretações, sensações que religiosas. Um personagem mítico ou reli-
não são somente geradas pela imagem que gioso estava ligado a uma narrativa, a qual
observo, mas através da interação entre mim descrevia relatos passados, conhecidos de
e a imagem. Voltando ao nosso tema, o que todos. Ouvir uma narrativa mítica não era
se constata é que essa interação entre ob- um meio de conhecer novos fatos a respeito
servador e imagem será, em grande parte, do herói em questão, mais sim de reconhecê-
determinada pelo tipo de imagem que se los, de desfrutar mais uma vez daquelas
observa: se desenhada ou projetada, se a cores aventuras. Certamente o sucesso da narração
ou em preto-e-branco. dependia em boa parte da capacidade de cada
Tomemos como exemplo o que poderí- narrador enriquecer a história com um nú-
amos chamar de “vai-e-vem” entre as lin- mero maior ou menor de detalhes, mais ou
guagens dos comics: filmes baseados em menos atraentes, mas estes complementos não
personagens de comics e, inversamente, modificavam a espinha dorsal da história,
comics que surgem após um grande sucesso preservando-a em sua estrutura fixa, a qual
cinematográfico. Pois bem, o primeiro caso não poderia mais ser alterada, nem negada.
gera, via de regra, uma certa polêmica. Os Já o personagem de histórias em comics, por
fãs dos personagens gráficos muitas vezes sua vez, pertence à civilização do romance
não aceitam a transposição de seus heróis e a uma estrutura narrativa sustentada, não
para seres de carne e osso e, mesmo quando pela repetição e pelo reconhecimento de fatos
124 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

passados, mas pela busca da novidade, do instâncias de tempo: o tempo extrínseco, o


que ainda não ocorreu, ou seja, do futuro. tempo de fora da narrativa, o tempo de fruição
da história, sobre o qual já falamos e o tempo
A personagem do mito encarna uma intrínseco, o tempo de dentro da narrativa,
lei, uma exigência universal, e deve, o tempo durante o qual se passa a história.
numa certa medida, ser, portanto, Dessa forma, um personagem dos comics
previsível, não pode reservar-nos pode mesmo envelhecer (equivale a dizer:
surpresas; a personagem do romance, viver aventuras, inserir-se na civilização da
pelo contrário, quer ser gente como informação) dentro de uma história, mas na
todos nós, e o que lhe poderá acon- página seguinte ressurgirá novamente jovem,
tecer é tão imprevisível quanto o que ou criança, de acordo com o que demandar
nos poderia acontecer.8 a sua caracterização. E o que acontece com
a personagem do cinema?
Walter Benjamin vê nessa forma de contar Por sua própria configuração, ou seja, uma
uma história, advinda com o romance do personagem não seriada, cuja história nos será
início da Era Moderna, na verdade o declínio apresentada, desenvolvida e encontrará um
da narrativa: desfecho num período pré-determinado de
horas, a personagem do cinema aproxima-
(...) o narrador é um homem que dá se do personagem clássico, mítico, cuja saga
conselhos ao ouvinte. Mas se hoje está traçada e não comporta alterações. E,
“dar conselhos” começa a soar nos no entanto, existem continuações de filmes,
ouvidos como algo fora de moda, a histórias contadas em várias partes, perso-
culpa é da circunstância de estar di- nagens que, primeiramente concebidas como
minuindo a imediatez da experiência. coadjuvantes, roubam a cena e ganham um
Por causa disso não sabemos dar filme inteiro para si10, enfim, toda uma gama
conselhos nem a nós, nem aos outros. de exemplos que se afastam da narrativa
O conselho é de fato menos resposta clássica, mítica e se aproximam da narrativa
a uma pergunta do que uma proposta do romance. Pois bem, isso acontece porque
que diz respeito a uma continuidade as personagens de cinema, assim como as
de uma história que se desenvolve dos comics, transitam por estas duas zonas
agora.(...) O conselho, entretecido na de tempo, o que lhes permite uma apropri-
matéria da vida vivida, é sabedoria. ação de características narrativas tanto clás-
A arte de narrar tende para o fim sicas, quanto próprias da civilização do
porque o lado épico da verdade, a romance, descrita por Eco.
sabedoria, está agonizando.9 Do que foi dito podemos observar o
trânsito entre as linguagens. Não podemos,
A narrativa, segundo Benjamin, passa a contudo, ignorar as diferenças que
submeter-se à informação, uma nova forma efetivamente se manifestam na maneira como
de comunicação cujo maior valor é a novi- as narrativas se desenvolvem. Ou seja, a
dade e, como o que num momento era pergunta que figura no título desse tópico só
novidade logo se torna ultrapassado, este tipo pode ser respondida da seguinte forma: sim,
de narrativa, ao contrário do que acontecia faz muita diferença se uma história é contada
com as narrativas míticas, é incapaz de se via comics ou no cinema. E se a transposição
desdobrar, de se multiplicar e está fadado a para a tela grande de aventuras surgidas
se esgotar, a se exaurir, a envelhecer. No primeiramente nos comics não costuma
entanto, o personagem de comics não pode agradar aos fãs mais puristas, isto se deve
ficar mais velho, pelo menos não na velo- em grande parte pelo mal-entendido que
cidade que seus leitores, sob pena de se consiste em se esperar ver a mesma coisa
descaracterizar e, em última análise, de se num suporte diferente. Pois a diferença de
consumir, morrer. Afinal, o que é agir, suporte, a intermediação de atores, a maneira
acumular experiências, colecionar aventuras, como a imagem se forma e se ordena, enfim,
senão sentir a passagem do tempo? A saída todas as características aqui descritas nos
para este impasse é trabalhar com duas levam à conclusão de que se tratam de dois
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 125

produtos diferentes que, em comum, possu- senta limites que dizem respeito a sua
em apenas o fato de vislumbrarem o poten- própria historicidade ou, parafraseando
cial comunicativo de ambas as linguagens. Foucault, à episteme dentro da qual esta
representação se insere. Assim sendo, os
4. Afinal, quem representa melhor a re- “espelhos” do real perdem sua aura de
alidade: os comics ou o cinema? infabilidade, diafanamente pairando acima
de qualquer suspeita quando se trata de re-
Convivemos aparentemente de maneira tratar o real, e ganham um caráter concreto,
muito confortável com a idéia de que as de algo que pode ser construído, negociado,
diferentes linguagens visuais são como que historicizado.
espelhos do real, anteparos nos quais as coisas A relação entre os comics e o cinema
do mundo podem projetar-se fidedignamen- não é, portanto, uma relação entre iguais,
te, oferecendo-se à contemplação. Justamen- do ponto de vista semiótico, no que diz
te por esse atestado de veracidade conferido respeito às características específicas de cada
pelo senso-comum às linguagens visuais, linguagem, porém, se pensarmos em ambas
torna-se este um campo fértil e instigante para as linguagens como maneiras de se repre-
aplicarmos a teoria desenvolvida por Michel sentar o real, encontraremos um ponto de
Foucault em As Palavras e as Coisas.11 Como encontro, uma esfera dentro da qual ocorre
foi dito, nesta obra o filósofo francês afirma uma relação entre iguais. Ao criarem um
que a relação entre as representações e o que espaço próprio, externo ao real, que são
é representado, transforma-se conforme a justamente as representações do real, nem
configuração do saber em determinada época os comics, nem o cinema nos brindarão com
(configuração esta denominada pelo autor a totalidade deste. As partes do todo, isto
episteme). Sendo, pois, uma relação histó- é, as representações do real que as lingua-
rica, passível de sofrer alterações com a gens desvendam, mesmo se somadas, não
passagem do tempo, não poderá, por defi- representam o todo. Sempre haverá algo que
nição, constituir uma verdade absoluta. Somos lhes escapa, um lado de fora, algo que está
levamos a concluir que qualquer represen- além dos limites da representação. Ainda
tação, em qualquer linguagem, seja ela vi- assim, são maneiras de nos aproximarmos
sual, verbal, sonora ou híbrida, como é o caso desta realidade, lidarmos com ela, tratá-la,
tanto do cinema quanto dos comics, apre- reinventá-la.
126 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia _______________________________
1
Mestranda em Comunicação Social pela
Aumont, Jacques. A Imagem. Campi- Universidade Federal de Pernambuco.
2
Michel Foucault. As Palavras e as Coisas.
nas: Papirus, 1993.
São Paulo: Martins Fontes, 1999.
Benjamin, Walter et alli. O Narrador, 3
Umberto Eco. Apocalípticos e Integrados.
in Os Pensadores. São Paulo: Abril Cul- São Paulo: Perspectiva, 2000, p.147.
tural, 1980. 4
Idem.
Cirne, Moacy. A Explosão Criativa dos 5
Moacy Cirne. Para Ler os Quadrinhos: Da
Quadrinhos. Petrópolis: Editora Vozes, Narrativa Cinematográfica à Narrativa Quadrinizada.
1970. Petrópolis: Editora Vozes, 1975, pp. 61-62.
6
_____________. Para Ler os Quadri- Aqui compreendida a grande maioria das
nhos: Da Narrativa Cinematográfica à produções de cinema, salvo exceções sobretudo
na área de vídeo, que, eventualmente podem ser
Narrativa Quadrinizada. Petrópolis: Editora
criadas e executadas por um único artista.
Vozes, 1975. 7
Fato registrado no livro O Cinema, de
_____________. História e Crítica dos Emmanuelle Toulet (Rio de Janeiro: Objetiva,
Quadrinhos Brasileiros. Rio de Janeiro: 2000). Extrato disponível no sítio eletrônico: http:/
Editora Europa/FUNARTE, 1990. /objetiva.com/releases/218-3.htm.
8
_____________. Quadrinhos, Sedução Umberto Eco. Op. cit., p. 250, grifo no original.
9
e Paixão. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. Walter Benjamin. O Narrador, in Os Pen-
Eco, Umberto. Apocalípticos e Integra- sadores. São Paulo: Abril Cultural, 1980, p. 59.
10
A ingênua Cabiria, personagem interpretada
dos. São Paulo: Perspectiva, 2000.
por Giulietta Masina, surge em 1952 no filme Lo
Foucault, Michel. As Palavras e as Sceicco Bianco numa única cena para retornar
Coisas. São Paulo: Martins Fontes, 1999. como protagonista em 1957, em Le Notti di
Sontag, Susan. Diante da Dor dos Ou- Cabiria, ambos dirigidos por Frederico Fellini.
tros. São Paulo: Cia das Letras, 2003. 11
Michel Foucault. Op. cit.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 127

Imagens de som / Sons de Imagem:


Philip Glass versus Godfrey Reggio
Helena Santana1 e Rosário Santana2

I. Introdução formas de arte que combinam vários elemen-


tos de texto, imagem, movimento e som,
Musicalmente Philip Glass recebe várias elementos presentes em todas as artes
influências, nomeadamente da música popu- performativas. Realizar uma música para
lar americana, das músicas extraeuropeias, do filme revela-se, no entanto, diferente da
Jazz e do Rock-and-Roll. Vivendo a uma dada concepção de uma obra para dança, teatro
altura da sua vida na baixa nova-iorquina, ou mesmo da concepção de uma ópera. O
convive com a marginalidade criativa da filme, fixo, representa uma realidade que
época, recebendo igualmente as suas influ- depois de produzida não sofre qualquer
ências. Paris e Nadia Boulanger revelam-se alteração ou variação. As outras artes
essenciais na caracterização e definição da performativas, entre as quais a dança, o teatro
sua linguagem musical e do seu estilo. É com ou a ópera, não sendo fixas, possuem um
ela que adquire uma base técnica sólida que certo grau de variabilidade, presente no
se revelará essencial na definição e quali- momento da sua criação/interpretação.
ficação da sua futura produção musical. Glass Depois de uma passagem pelo mundo da
estuda ainda com Allá Rakha e Ravi Shankar ópera e do teatro musical com as obras
verificando que a música indiana se baseia Einstein on the Beach (1975)7, Styagraha
em princípios radicalmente diferentes dos da (1979)8 e Akhnaten (1983)9, Glass concebe
música ocidental3. A partir de 1967, e aquando vários projectos nomeadamente de música
do seu regresso aos Estados Unidos, simpli- para teatro, dança e filme10. Focando a nossa
fica radicalmente a sua escrita, tanto a nível atenção na música para filme, e a partir dos
melódico, como rítmico, harmónico e tem- anos 80, verificamos que trabalha com vários
poral. As grandes e elaboradas texturas realizadores entre os quais Godfrey Reggio,
contrapontísticas são substituídas por textu- Paul Schrader, Errol Morris, Tod Browning,
ras mais simples onde predominam o unís- Joseph Conrad, Peter Greenway ou Martin
sono, o paralelismo e a repetição, que se realiza Scorcesse. Desta colaboração surge um vasto
(ou não) por desfasamento e utilizando as téc- conjunto de obras entre as quais:
nicas da construção (ou desconstrução) Koyaanisqatsi (1982; Godfrey Reggio),
motivica pela adição (ou subtracção) dos Mishima: A life in four chapters (1987; Paul
constituintes do objecto sonoro base4. Schrader) Powaqqatsi (1987; Godfrey
Devido à natureza do material sonoro, da Reggio), The Thin Blue Line (1988; Errol
dinâmica e do tempo, as obras que têm por Morris), Anima Mundi (1992; Godfrey
base este processo, resultam num longo Reggio), Evidence (1995; Godfrey Reggio),
uníssono que se desenvolve indefinidamente The Secret Agent (1996; Christopher
no tempo e no espaço. Estáticas adquirem Hampton), Kundun (1997; Martin Scorcesse);
uma nova forma de estar e de se desenvolver Drácula (1999; Tod Browning) ou Kaqoyqatsi
constituindo exemplos de um Minimalismo5 (2002; Godfrey Reggio)11.
que se revelará, conforme os casos, mais ou Da sua colaboração com Godfrey Reggio,
menos radicalista6. surge um conjunto de cinco filmes:
Koyaanisqatsi, Powaqqatsi, Anima Mundi,
II. Música versus imagem Evidence e Naqoyqatsi12, um conjunto de
filmes que prima pela originalidade e qua-
Segundo afirmações suas, Philip Glass lidade da sua concepção, tanto sonora, como
compõe música para “imagens em movimen- visual. Analisando os filmes que compõem
to”. Para ele, teatro, dança, ópera e filme são a trilogia Qatsi concebida ao longo de duas
128 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

décadas – Koyaanisqatsi, Powaqqatsi e so transforma-se tornando-se violento, des-


Naqoyqatsi, deparamo-nos com momentos de truidor. Esta metamorfose faz-se com, e pelo
grande beleza, tanto pictural, como sonora; homem, seu elemento danificador. Assim, a
a narrativa visual encontrando o seu paralelo beleza de um mundo virgem metamorfoseia-
na sonora. Esta trilogia é uma das mais belas se numa “beleza frenética” fruto de uma
e singulares da história do cinema de van- sociedade industrializada que se auto-mutila
guarda. Sem conter na sua realização qual- e auto-destrói consumindo a energia, a vi-
quer diálogo, ou personagem, possui duas talidade, a força de quem lhe pertence.
narrativas, uma visual e outra sonora, que Significando na língua dos índios Hopi
se complementam interagindo na realização “vida em desequilíbrio”, Koyaanisqatsi foge
de um discurso novo e original. Represen- dos cânones mais convencionais sendo um
tando cada um dos filmes faces de uma filme sem discurso verbal, contrapondo cenas,
mesma realidade – a vida nas suas diversas imagens, sonoridades, ideias e ideais por
formas e a sua destruição por parte do ser vezes díspares. Através delas o público é
humano, o ser mais destrutivo e violento à convidado a reflectir sobre as várias imagens
face da terra – esta trilogia representa um que lhe são propostas. O filme torna-se o
marco na criação cinematográfica contempo- relato da colisão entre dois mundos diferen-
rânea. Concebida ao longo de vinte anos, tes.
contém aspectos, e discursos, que reflectem As diferentes sequências musicais, uma
princípios de auto-semelhança, elementos série de variações sobre um único tema,
discursivos e técnicos que se repetem ao revelam-se sombrias e de uma expressividade
longo das três obras, dando continuidade a quase romântica que se manifesta na forma
um discurso que embora diversificado na sua como o compositor descreve os vários qua-
abordagem, demonstra uma semelhança de dros cinematográficos. O tipo de instrumen-
temáticas marcada13. tação reflecte o ambiente das cenas descritas.
Reflectindo sobre a condição do ser Percebendo o mundo, a nossa forma de viver,
humano e da sua acção no (e sobre o) mundo como bela e autêntica, o homem vive num
que o rodeia, nesta trilogia sons e imagens, mundo artificial criado à custa da natureza
imagens e sons, convergem na realização de que o alimenta, e que se destrói a, pouco,
três objectos artísticos de uma elevada be- e pouco14.
leza plástica e sonora, contendo em si uma Mostrando que o homem se encarcerou
dimensão artística raramente conseguida. num mundo artificial que substitui a natu-
O primeiro filme, Koyaanisqatsi, intro- reza da qual nos distanciamos cada vez mais,
duz na história do cinema uma nova con- e com a qual devíamos viver em equilíbrio.
cepção visual e sonora. O filme apresenta Koyaanisqatsi, um objecto que se revela no
duas narrativas fruto de diversos planos, tempo e no espaço, provoca, assumindo assim
texturas, ritmos e estratos que se revelam no o seu papel enquanto obra de arte. A sua
som e na imagem. Os movimentos de câ- forma enfatiza a problemática. Os crescendos
mara, e os ângulos de filmagem que o e decrescendos de intensidade contribuindo
percebem, encontram o seu paralelo na forma na projecção da poética e da poiética fruída.
como Glass aborda o material sonoro. A Powaqqatsi, o segundo filme desta trilogia
estratificação do som, e da textura, os pla- compõe-se de imagens que reflectem a vida
nos, os timbres, os objectos sonoros, con- em contínua transformação. Rodado em
tribuindo para um discurso e uma textura de diferentes países reflecte a vida dos seus
rara beleza e densidade dramática, ilustram povos, a sua beleza, os seus estilos de vida,
e enfatizam o discurso das imagens. A música, as suas culturas. A transformação dos seus
Minimalista, contribui ainda para a realiza- planos, a estratificação das suas linguagens
ção de uma obra de excelência. Neste filme, dá-se mostrando a natureza e a violência da
temas e elementos constituintes, surgem em vida e da existência das sociedades não
imagens de rara beleza e sensualidade. Os industrializadas. O preço da industrialização
espaços fruem-se de forma contínua e diver- (ou o preço da não industrialização neste
sa mostrando a beleza natural da terra e dos caso), reflecte-se na existência dos habitan-
seus elementos. Progressivamente, o discur- tes deste mundo em contínua transformação.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 129

O contraponto com as sociedades modernas Saliente-se a elevada concepção estética


e industrializadas faz-se mostrando uma outra das obras fruídas. Universos de som e imagem
face de uma mesma realidade – a vida constroem-se num discurso que celebra a vida
humana nas suas diferentes formas; a vida nas suas diversas formas. O homem enquan-
que se alimenta da própria vida. O musical to ser vivo, e o homem enquanto ser de uma
alia-se ao visual, compondo um discurso de sociedade reflexo do seu imaginário, tradu-
uma elevada beleza artística. zem-se em três objectos artísticos, três olha-
Powaqqatsi, uma sensação, uma obser- res do mundo em que existimos. As técnicas
vação da vida enquanto se transforma, de estratificação, de rodagem em câmara lenta
enfatiza a nossa unidade como comunidade (ou rápida), aplicadas tanto à imagem, pela
global pois fixa a diversidade, e a transfor- utilização de dois estratos, de dois elementos
mação de diferentes culturas através da discursivos, como pela modificação da per-
introdução progressiva de uma tecnologia que cepção do visual originando uma nova re-
progride à custa do trabalho individual, e alidade, encontram o seu paralelo no mundo
cujos frutos desencadeiam agressões constan- sonoro através da estratificação e densificação
tes e irreversíveis ao mundo ambiente, e à (ou não), do discurso, da aceleração ou
originalidade cultural que tende cada vez mais desaceleração discursiva. A sequenciação de
para a uniformização. elementos rápidos e lentos, mais ou menos
Produzido em países como a Índia, o Egipto, densos, cria um ritmo visual. Estes ritmos,
o Nepal, o Quénia, o Brasil ou o Peru, reflecte repetidos, variados, transformados, provocam
os seus modos de vida, sendo o tema deste um discurso que reflecte a dinâmica
filme, o trabalho. Depois de mostrar algumas discursiva da obra. As imagens, repetitivas,
cenas de trabalho manual, Reggio mostra o lado hipnóticas, reflectem-se em universos sono-
sujo das cidades habitadas por populações ros também eles repetitivos e hipnóticos.
desencantadas e inebriadas. O filme, composto Os elementos recorrentes, surgindo
por uma série de quadros que revelam as formas metamorfoseados num momento posterior,
de trabalhar, a originalidade das tradições, a reflectem a sua origem dando continuidade.
forma como os vários povos pensam, se re- As técnicas de transformação e desfiguração
lacionam e a sua espiritualidade, revela-se a dos elementos visuais conduzem a novos
celebração de cada uma das civilizações que elementos visuais que, no entanto, não per-
personifica. Mostra ainda como as diferentes dem a sua identidade. Musicalmente assis-
formas de vida do mundo dito civilizado das timos ao mesmo fenómeno, à mesma rea-
sociedades altamente industrializadas influi lidade. Nestas obras, sonoro e visual con-
negativamente na sua evolução. fluem para o objecto artístico, não existem
Em Naqoyqatsi Reggio utiliza a transfor- um sem o outro, pois a sua existência em
mação, com a ajuda das novas tecnologias separado, mutila-se.
de suporte à criação, de um conjunto de
imagens preexistentes construindo um discur- III. Conclusão
so claro e pleno de significado. A transfor-
mação do modo vivendis e do modo operandis Embora alguns autores sejam da opinião
do ser humano face à realidade transpõe-se que a componente musical não enfatiza os
na forma como o criador concebe a obra de climas dramáticos propostos na obra, somos
arte. A música enfatiza a imagem. Técnicas da opinião que para além de os enfatizar está
de composição, transformação, variação e concebida segundo os mesmos princípios,
sequenciação do discurso visual reflectem- técnicas e ideais criativos. Fruindo o objecto
se igualmente na concepção do discurso artístico que se nos apresenta claro e inci-
sonoro. As massas, de maior ou menor sivo, verificamos que os excertos que com-
densidade, construídas por espaços de tim- põem a narrativa musical, encerrando todas
bres específicos revelam um discurso pictural as características técnicas e estilísticas do
reflexo de uma realidade mutante. A meta- compositor, se revelam de uma intensidade
morfose espelha-se na metamorfose da obra dramática bastante elevada, necessitando de
de arte. Imagens, espelho de realidades; sons, longos espaços de tempo para se desenvol-
reflexos de uma existência. ver e fruir.
130 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Visualizando, e analisando, estes filmes, por vezes uma modificação profunda na


constatamos que a música de Glass se revela textura que se realiza de forma, no entanto,
contra as correntes dominantes. Diferente, não quase imperceptível a cada novo momento
enfatiza os climas dramáticos propostos pela e quadro narrativo.
narrativa do filme. De curta duração, os A metamorfose lenta das texturas contri-
excertos que compõem a narrativa musical, bui para a alienação e o transe, verificando-
encerram todas as suas características enquan- se um nítido paralelismo entre o visual e o
to compositor. A repetição continuada de sonoro. Música e imagem, interagindo de
breves elementos rítmicos, melódicos e forma a criar um objecto artístico de um forte
harmónicos, que se desenvolvem lenta e impacto e originalidade, de uma intensa
gradualmente, através de minúsculas varia- beleza sonora e visual, transforma universos
ções dos seus constituintes, faz progredir o de sons em universos de imagens, imagens
discurso numa ou outra direcção infligindo de som em sons de imagem.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 131

Bibliografia se revele de difícil percepção. Sendo sempre


diferentes, obtemos uma diferenciação da textura
Burton, W. H., Winball, R., Wing, R. que não é, no entanto, aquela a que estamos
habituados. A variação dá-se a níveis mais pro-
L., Anatomia do Pensamento, s.l., Civiliza-
fundos e subtis do complexo sonoro, como é o
ção Editora, sd. caso do dos formantes do som.
Oriol, N., Parra, J. M., La expresión 7
A obra, com uma duração de cinco horas,
musical en la educación básica, Madrid, possui uma estrutura em quatro actos. O público
Editorial Al puerto, 1979. é livre de entrar e sair da sala ao longo da sua
Piaget, J., Psicologia e Epistemologia, execução; o seu colaborador, Robert Wilson. O
Lisboa, Publicações Dom Quixote 1984. libreto consiste num texto contendo um conjunto
Porcher, L. (dir.), Vers une pédagogie de de fonemas vários (nomeadamente números e
l’audio-visuelle, Paris, Bordas Ed., 1975. silabas), poemas de Knowles, Lucinda Childs e
Samuel Johnson.
8
Nesta obra Glass focaliza a sua atenção na
figura de Gandi. De acordo com a libretista
_______________________________ Constance De Jong, Glass foca o libreto de
1
Departamento de Comunicação e Arte, Styagraha nos textos de Bhagavad – Gita, os
Universidade de Aveiro. textos clássicos da religião hindu. O libreto re-
2
Escola Superior de Educação, Instituto sume-se a alguns excertos destes textos, os mais
Politécnico da Guarda. significativos para o tema e para os autores. Esta
3
Glass encontra Ravi Shankar quando trans- obra revela-se decisiva na mudança de mentali-
creve, para notação musical tradicional, algumas dade face à ópera americana. Devido à sua natureza
secções musicais do filme Chappaqua de Conrad e tema foi precusora das óperas X: The Life and
Rooks. Este encontro será decisivo na definição Times of Malcolm X (1986) de Anthony Davis
de uma nova linguagem. e de Nixon in China (1987) de John Adams.
4
O processo de adição, ou subtracção, con- 9
Nesta obra Glass focaliza a sua atenção na
siste na repetição indefinida de um determinado figura de um antigo faraó egípcio. O seu libreto
elemento musical. Quando o elemento alvo de comporta vários excertos de textos originais da
repetição sofre uma variação através da adição, época em que este viveu. No trabalho de pesquisa
ou subtracção, de uma altura sonora, é este novo e seleção de textos, Glass teve a ajuda e orien-
elemento que é repetido indefinidamente, e assim tação de Shalom Goldman, historiador da univer-
sucessivamente até ao final da obra. A técnica da sidade de Nova Iorque.
adição é empregue pelo compositor em várias 10
Assim, compõe The Photografer (1982)
obras, nomeadamente Strung Out (1967) para inspirado no trabalho do fotógrafo Eadweard
violino solo amplificado, 1+1 (1968), Two Pages Muybridge, The CIVIL warS (1983) em conjunto
(1968) e Two Pages for Steve Reich (1969) ou com Robert Wilson, The Juniper Tree (1984) em
Music with Changing Parts (1970), onde esta colaboração com Robert Moran, Dance (1979)
técnica expande a obra a dimensões inimagináveis, conjuntamente com Lucinda Childs e Sol LeWitt,
pois o número de repetições efectuadas de cada Glass Pieces (1983) com Jerome Robbins, A
um dos elementos não se encontra especificado. Descente into the Maelstrom (1985) em colabo-
Por consequência, a duração da obra não é ração com Molissa Fenley, e In The Upper Room
determinada variando entre uma e duas horas. O (1986) para Twlya Tharp.
acaso presente na sua elaboração não é, contudo, 11
Philip Glass trabalhará ainda, e de forma
do agrado do compositor que não controla nem bastante profunda, uma trilogia baseada nos fil-
domina totalmente o resultado sonoro. mes de Jean Cocteau: Orphée (1949), La belle
5
Na Música Minimal, as estruturas e o et la Bête (1946) e Les enfants terribles (1950).
processo de construção da obra deverão ser com- A obra Orphée (1992), para doze instrumentistas
preendidos e assimilados pelo público, sendo o e quatro solistas, é bastante clara e transparente.
estatismo, a repetição, a contemplação, a suspen- Musical e textualmente, revela-se bastante subtil,
são temporal, a meditação e a transformação lenta tanto ao nível dos coloridos, como dos timbres.
dessas mesmas estruturas, o método adoptado na Glass utiliza uma nova concepção de escrita a nível
criação e elaboração da obra musical. Estes vocal que se revela portadora de uma
processos encontram-se na base de algumas obras, expressividade rara. Em La Belle et la Bête (1993),
as mais significativas, de alguns compositores combina a interpretação de música ao vivo com
minimalistas, tanto americanos, como europeus. a difusão do filme original de Jean Cocteau (depois
6
A repetição de elementos resulta sempre de despido dos diálogos e da música original de
diferente embora inicialmente, e se não detiver- Georges Auric). Glass realizará algumas interpre-
mos a nossa atenção no processo proposto, isso tações ao vivo desta obra, assim como de
132 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Koyaanisqatsi de Godfrey Reggio e Drácula de facto. Evidence retrata em poucos minutos o efeito
Tod Browning. provocado pela alta tecnologia, e a aceitação
12
Anima Mundi resulta numa combinatória de passiva, por parte do ser humano, de uma situ-
som e imagem elaborada a partir de várias fo- ação que o enfraquece e domina de forma lenta
tografias do mundo animal e de imagens origi- mas eficaz.
nais. A parte musical, concebida por Philip Glass, 13
Existem elementos visuais e sonoros que
baseia-se em ritmos e música étnicos pouco se manifestam nas três obras embora adquiram
explorados e difundidos. Imagem e som preten- rostos, configurações e relevos diferentes nos três
dem refletir a harmonia e diversidade do mundo
casos. O princípio de auto-semelhança prevalece
animal na sua variedade de espécies, elementos
associado ao elemento variação, metamorfose.
e sistemas constituintes. Evidence mostra a ali-
Estes factos são notórios, tanto a nível visual, como
enação do ser humano, face ao mundo, provocada
sonoro.
pela visualização constante, e exaustiva, da te- 14
levisão e os aspectos psicológicos deste tipo de O mundo globalizante e globalizado em que
acção. O autor focando a sua atenção no olhar vivemos, o mundo da alta tecnologia, impõe
de uma criança que visualiza o filme Dumbo da cânones de conduta bastante rígidos e estritos que
Walt Disney, revela um estado de paralisia mental são seguidos pela maior parte de nós sendo que
tornando-se aos poucos semelhante a um paciente o que é considerado como original muitas das
de um hospital psiquiátrico, a um deficiente mental vezes não é mais do que a proliferação do
ou mesmo a um drogado. Reggio pretende mostrar standartizado. Criam-se ambientes uniformizados
de que forma a televisão e os meios audiovisuais e artificiais que se encontram em conflito com
manipulam e controlam o ser humano e as con- o ambiente com o qual devíamos viver em perfeita
sequências físicas, psicológicas e sociais de tal harmonia.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 133

Documentário e a produção da imagem estereoscópica digital


Hélio Augusto Godoy-de-Souza1

Introdução década de 50, as produtoras cinematográfi-


cas norte-americanas usaram o cinema em
O desenvolvimento da atividade terceira dimensão (3D), durante um curto
documentária no século XX, e sua ampliação período, na reconquista do público perdido
neste início do século XXI, nos apontam para a TV. Foram produzidos vários filmes
algumas questões referentes aos métodos de tais como “House of Wax” dirigido por Andre
representação do espaço tridimensional que de Toth em 1953, “Creature from the Black
vêm sendo observados nos diferentes tipos Lagoon” dirigido por Jack Arnold em 1954
de obras produzidas nestes últimos 85 anos, e “Disque M para Matar” dirigido por Alfred
desde a realização do filme documentário Hitchcock em 1954. Outras tentativas sur-
“Nanook do Norte” (Flaherty – 1922). Par- giram posteriormente, tais como o “Flesh for
ticularmente instigante é o fato da profusão Frankenstein” (1973) dirigido por Paul
das obras fotográficas estereoscópicas pro- Morrissey. Deve ser lembrado que atualmente
duzidas no final do século XIX, que bus- os cinemas I-Max também têm sua versão
cavam retratar espaços exóticos à visualidade 3-D, baseada na tecnologia de óculos obtu-
européia daquele período. Instigante pois, radores de cristal líquido.
apesar de sua disseminação, não foi ainda É bom considerar-se que a televisão
considerada como forma pertinente para a estereoscópica, nunca se estruturou economi-
construção de uma visualidade documentária. camente, apesar de algumas iniciativas nesse
Este pretende ser o objetivo último desta sentido. Motivos de ordem técnica devem ser
investigação. considerados: a degradação do sinal de vídeo
analógico prejudica a qualidade da imagem,
Aspectos históricos essencial para uma boa visualização tridimen-
sional. Havia uma limitação de ordem
Ao final do século XIX, houve uma tecnológica que atualmente pode ser supe-
disseminação das fotografias tridimensionais. rada.
Essas fotografias valeram-se da descoberta Com o desenvolvimento da tecnologia de
de Charles Wheatstone, que em 1838, cons- vídeo digital, as possibilidades de preserva-
truiu um aparato denominado “estereoscópio” ção das informações do sinal de vídeo e as
que permitia reproduzir desenhos tridimen- facilidades de manipulação das imagens,
sionais de figuras geométricas e de objetos. permitem melhores condições de obtenção da
Assim as fotografias eram comercializadas imagem estereoscópica. O desenvolvimento
em jogos que incluiam aparelhos para sua da tecnologia dos óculos e de filtros obtu-
visualização. De acordo com Adams (2001), radores de cristal líquido, vem permitir o
o processo de visualização estereoscópica surgimento de um novo método de visuali-
constituiu-se em verdadeiro hábito das famí- zação estereoscópica. Esses óculos já são itens
lias de classe média alta, que se reuniam em de consumo entre aficcionados e usuários de
torno da visualização de fotografias de lu- computação, envolvidos com desenvolvimen-
gares exóticos. Boa parte das fotografias to de projetos científicos e tecnológicos que
conhecidas daquele período são necessitam de visualização 3D, como é o caso
estereoscópicas. da engenharia aeronáutica, automobilística,
Essas fotografias estereoscópicas entraram naval e de extração de petróleo. Mesmo ao
em declínio comercial, mas encontraram se considerar o método mais simplificado de
aplicações científicas na fotogrametria aérea visualização estereoscópica, o anaglífico, é
e fotointerpretação de imagens de satélite. Na possível afirmar-se que hoje as condições
134 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

técnicas são muito mais propícias para uma produz imagens coloridas na freqüência de
nova disseminação da estereoscopia. aproximadamente 30 quadros (frames) por
segundo (fps), com uma resolução aproxi-
Cinematografia estereoscópica mada de 480 linhas horizontais. Em reali-
dade a frequência é de 29,97 fps e além disso
Uma análise das condições da os quadros não são gravados inteiros sobre
estereoscopia nos dias de hoje deve iniciar- a fita magnética, todavia para fins didáticos
se pelo conhecimento prévio das tecnologias utilizaremos a frequência de 30fps como
utilizadas para a produção de estereoscopia sendo o parâmetro de uma imagem NTSC
cinematográfica. Um dos métodos, o mais (apenas para facilitar a compreensão). Os
antigo deles, é o método anaglífico. Esta quadros são divididos em dois campos
técnica caracteriza-se por colorizar com uma (fields) de 240 linhas com uma duração de
cor física primária ou complementar, diferen- metade da duração do quadro, aproximada-
te, cada uma das imagens foto-cinematográ- mente 1/60s. No processo de exibição da
ficas referentes a cada olho (azul e vermelho, imagem, o monitor de vídeo apresenta ini-
ou verde e vermelho, ou ainda as complemen- cialmente as 240 linhas ímpares (campo 1)
tares tais como vermelho e ciano, ou amarelo e posteriormente as 240 linhas pares (campo
e azul). Dependendo do método, o espectador, 2). Este processo de formação de imagem
ao utilizar óculos com as lentes coloridas res- videográfica é conhecido como vídeo entre-
pectivamente pelas cores usadas no processo, laçado (interlaced vídeo). É interessante
pode separar cada uma das imagens que se salientar que as novas tecnologias digitais
encontram misturadas na imagem projetada na utilizam outros métodos de produção de
tela. O método mais moderno é o da imagens, baseadas no que se convencionou
estereoscopia por filtragem de luz polari- chamar de vídeo de varredura progressiva
zada, também conhecido como método de (progressive scan video). Neste caso os
estereoscopia passiva, que é descrito a se- quadros são apresentados inteiros sem a
guir: duas câmeras cinematográficas sincro- formação de artefatos de imagem resultantes
nizadas montadas o mais proximamente pos- do entrelaçamento. Esta é a forma como
sível2, produzem dois filmes referentes respec- podem ser exibidos filmes na tela do com-
tivamente, à visão do olho esquerdo e do olho putador, projetores de imagens compu-
direito. Em uma tela metalizada é feita projeção tacionais, ou ainda, monitores de televisão
sincronizada das duas películas, usando-se digital.
filtros polarizadores à saída das objetivas dos No que se refere ao vídeo estereoscópico
dois projetores. O espectador assiste ao filme (Evans, Robinson, Godber & Petty, 1995:
de óculos, com filtros polarizadores iguais aos 505), um dos métodos é constituido pelo que
daqueles instalados nos projetores. Dessa for- se segue: as imagens são produzidas por duas
ma as imagens referentes a cada um dos olhos câmeras de vídeo, os dois sinais de vídeo
são filtradas de modo que cada olho perceba são gravados em fitas magnéticas diferentes.
somente a imagem referente à sua lateralidade Os sinais de vídeo são reproduzidos em
específica. Em sistemas mais aprimorados, um gravadores independentes, ou aparelhos de
único projetor, através de uma objetiva espe- DVD (digital video disk), sincronizados, cujas
cial anamórfica, projeta uma única película com imagens são exibidas em dois monitores
duas imagens lado-a-lado; gerando duas ima- posicionados obedecendo um ângulo de 90o,
gens polarizadas sobre tela metalizada (Lipton, equipados com filtros polarizadores. Um
1982: 47). Da mesma forma, óculos polariza- espelho especial, localizado no caminho da
dores são necessários para a separação de cada luz emitida pelos monitores, funde as duas
imagem. A metalização da tela garante a imagens e o espectador assiste ao vídeo com
manutenção do padrão de polarização. óculos semelhantes aos do cinema
estereoscópico. Os monitores podem ser
Videografia estereoscópica substituídos por dois projetores de vídeo
também equipados com filtros polarizadores,
O sistema de imagem eletrônica NTSC e exibidos em uma tela metalizada. Trata-
(National Television Standard Committee) se apenas da aplicação da esteroscopia
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 135

passiva para o caso do vídeo. É possível ainda de óculos obturadores de cristal líquido
encontrar uma outra variação desse sistema (LCD shutter glasses) que são capazes de
a partir de um único projetor ou monitor. permitir a passagem da luz somente das
Neste caso as duas imagens são colocadas imagens referentes a cada olho, numa fre-
juntas em um mesmo quadro, seja na po- quência de 60Hz. Desse modo, o sistema
sição acima-abaixo com achatamento das duas eletrônico que comanda a obturação da
imagens para que possam ocupar a mesma passagem de luz de cada um dos lados dos
proporção do quadro de vídeo, ou ainda as óculos abre-se e fecha-se a cada 1/60s,
imagens são dispostas lado-a-lado sincronizando-se com o vídeo que está sendo
rotacionadas em 90 graus para que possam exibido, de tal forma que, à abertura do lado
também ocupar a proporção do quadro de esquerdo dos óculos corresponda a projeção
vídeo. A projeção é feita através de jogos do campo referente ao olho esquerdo, e vice-
de espelhos ou semi-espelhos, com filtros versa. Este sistema só funciona em monitores
polarizadores que redirecionam as imagens e projetores do tipo CRT.
sobrepondo-as uma sobre a outra sobre uma A tecnologia dos óculos obturadores já
tela metalizada ou através de retroprojeção. é utilizada largamente, existindo no mercado
Nestes casos, projetores DLP (digital lighting audiovisual/computacional inúmeras empre-
processing) ou CRT (cathode ray tube) são sas que os comercializam, tanto conectados
preferíveis aos LCD (liquid cristal display) através de cabos às placas gráficas de vídeo
em função da própria construção dos LCDs, dos computadores, como avulsos, sincroni-
que, em si mesmos, já contêm filtros zados apenas através de pulsos de luz
polarizadores. infravermelha, produzida por emissores
No método denominado esteroscopia conectados entre a placa gráfica de vídeo e
ativa, a imagem é obtida por sequenciali- o monitor de computadores. Também é
zação dos campos do sinal de vídeo gerado possível encontrar-se sistemas semelhantes
por duas câmeras, assim, o projetor ou que são conectados a aparelhos de DVD.
monitor de vídeo mostra um único sinal de Além disso, determinadas salas de exibição
vídeo que apresenta, a cada 1/60s (no sis- cinematográfica do formato I-Max, utilizam-
tema NTSC), um campo com a imagem se desses tipos de óculos obturadores sin-
referente à visão de cada olho. Como se sabe, cronizados ao projetor cinematográfico.
o olho humano não tem capacidade de É possível considerar-se também o mé-
discernir dois eventos luminosos consecuti- todo anaglífico como uma possibilidade de
vos, ocorridos a intervalos menores que 1/ produção de imagens videográficas
10 de segundo. É por este motivo, que no estereoscópicas. Para isso, procede-se da
cinema, imagens projetadas com duração de mesma forma descrita acima até a criação
1/24s (menores que 1/10s), são entendidas de um Video Estereoscópico Campo-
como contínuas; ou ainda na televisão, Sequencial. A única diferença é que são
quadros com a duração de aproximadamente aplicados filtros digitais de cores para cada
1/30s são interpretadas como contínuos. lado. Na imagem do lado esquerdo descar-
Todavia cada um desses quadros é composto tam-se os canais Verde e Vermelho da com-
por dois subquadros denominados campos, posição do arquivo digital RGB (Vermelho,
com a duração de 1/60s. Desta forma, é Azul e Verde), de modo que reste apenas o
possível simular-se a visão estereoscópica canal vermelho. Da imagem do lado direito
através da exibição para cada olho, de é excluído apenas o canal vermelho de modo
subquadros/campos com a duração de 1/60s. que a cor ciano (verde e azul) permaneça.
Ou seja, a cada 1/30s projetam-se duas O monitor exibirá assim um sinal de vídeo
imagens com a duração de 1/60s, uma para campo-sequencial cujo campo referente ao
cada olho, referentes à sua lateralidade es- lado esquerdo tenha somente vermelho en-
pecífica. Este método de sequencialização quanto que o campo referente ao lado direito
produz um tipo de vídeo estereoscópico que tenha somente a cor ciano. A visualização
é conhecido por Vídeo Estereoscópico do é feita utilizando-se um óculos anaglífico com
tipo Campo-Sequencial. Para sua visualiza- as respectivas cores em cada olho. Este
ção é necessária a utilização pelo espectador método pode ser denominado como Vídeo
136 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Estereoscópico Anaglífico Campo- Deve ser considerada ainda a possibili-


Sequencial. É possível ainda a configuração dade de utilização de softwares específicos
de uma imagem videográfica anaglífica sem para a exibição de vídeos 3D, tais como o
a intermediação do processo campo- Stereoscopic Player, desenvolvido por Peter
sequencial. Neste caso é produzida uma Winner, de modo que a escolha do modo de
imagem na qual são misturados os dois canais visualização seja feito “on-the-fly”, ou seja,
de cores: este método é denominado como a partir de um formato padronizado, como
Vídeo Estereoscópico Anaglífico Progres- o lado-a-lado (“side-by-side”), através do
sivo. Este último processo enfrenta proble- próprio programa pode-se escolher qual a
mas de ordem técnica em função dos mé- melhor forma de exibição do material3. A
todos de compressão de dados utilizados na capacidade do sistema computacional respon-
codificação dos arquivos de vídeo nos sis- der positivamente, dependerá de sua capa-
temas digitais. O problema que se coloca é cidade de processamento.
o fato de que os processos de compressão
de dados para as imagens progressivas podem Aspectos psico-fisiológicos da estereoscopia
degradar as relações de cores existentes nas
imagens anaglíficas o que destrói a A Teoria do Umwelt proposta por Jacob
estereoscopia dessas imagens, isso ocorre von Uexküll, apresenta-se como ferramenta
tanto no formato de vídeo “AVI ” (arquivo fundamental para a compreensão do processo
de vídeo do sistema Microsoft) como no de representação do espaço observado nas
formato “MPEG” (Motion Picture Expert imagens estereoscópicas. O Umwelt é uma
Group), amplamente utilizados nos DVDs. espécie de mapeamento da realidade que a
Assim, o método de produção do Vídeo Natureza, durante o processo evolutivo, per-
Anaglífico Campo-Sequencial parece ser, até mitiu ao ser vivo construir interiormente. A
agora, a melhor forma de se tratar o vídeo espécie humana também representa a Reali-
estereoscópico para exibição em aparelhos de dade em seu Umwelt. Os sistemas audiovisuais
TV do tipo CRT. É importante ressaltar que podem e devem ser considerados como ex-
novos aparelhos de vídeo com imagem pro- pansões ou próteses, de seus orgãos dos
gressiva, podem destruir a estereoscopia, sentidos, cujas elaborações sígnicas vêm
inclusive dos vídeos com imagens campo- colaborando para a Dilatação de seu Umwelt4.
sequenciais. Percebe-se portanto que o de- Desta forma, não é de causar estranheza
senvolvimento tecnológico pode não contri- que a bibliografia técnica a respeito da
buir totalmente para o desenvolvimento de estereoscopia, consultada (Okoshi, 1976;
uma TV estereoscópica. Lipton, 1982), dedique várias páginas aos
Todavia é interessante considerar-se a aspectos referentes à percepção da profun-
contemporaneidade do método anaglífico didade espacial em humanos. De acordo com
tendo em vista o recente lançamento cine- os autores citados, os indutores de percepção
matográfico dos estúdios Disney: “Pequenos de profundidade podem ser classificados em
Espiões 3D” (Spy Kids 3D) que deverá ser duas categorias: os fisiológicos e os psico-
brevemente lançado em DVD no Brasil. As lógicos.
informações disponíveis no “Grupo Interna- Inicialmente, como aspectos indutores
cional de Discussões sobre Televisão pertencentes à categoria psicológica, devem
Estereoscópica” (YahooGroups – 3DTV), dão ser considerados:
conta de que o filme foi produzido eletro- 1) O tamanho relativo das imagens dos
nicamente para depois ser transferido para objetos, de modo que os maiores pareçam
película. Assim considera-se objetivamente estar mais próximos que os menores;
como viável a utilização da tecnologia Vídeo 2) A perspectiva linear, enquanto forma
Estereoscópico Anaglífico Campo- de representação que ocorre na superfície da
Sequencial, sua adaptação, e a criação de um retina e que em certa medida guarda relação
conjunto de normas que possam presidir apropriada com as técnicas de desenho ar-
projetos audiovisuais de baixo custo para a tístico, desenvolvidas no quattrocento5;
produção de imagens tridimensionais em 3) A perspectiva aérea, as imagens dos
vídeo digital para a produção documentária. objetos tornam-se mais enevoadas com o
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 137

aumento da distância por causa da difusão 4) A paralaxe ou disparidade binocular,


dos raios luminosos; trata-se do principal indutor utilizado pela
4) A sobreposição dos objetos, os objetos imagem estereoscópica; quando os olhos
opacos mais próximos ocultam os objetos fixam um ponto de um objeto M, os raios
mais distantes; de luz que partem desse ponto, atingem a
5) O sombreamento e as sombras, a retina na fóvea central (uma região da retina
incidência da luz ao provocar o aparecimen- com grande quantidade de células
to das sombras provoca a evidenciação dos fotosensíveis); os dois pontos (m1 e m2) das
formatos e dos relevos dos objetos; fóveas centrais das retinas de cada um dos
6) O gradiente de texturas, trata-se de um olhos são correspondentes e a focalização
aspecto da perspectiva relacionado aos pa- daquele ponto projetado pelo objeto sobre a
drões de textura que tornam-se aparentemen- fóvea dá indicações a respeito da convergên-
te maiores quanto mais próximos; como cia dos olhos; sempre haverá correspondên-
exemplo pode ser citada a imagem de uma cia entre a projeção de pontos sobre a retina,
parede com tijojos expostos, ou uma rua de daqueles objetos (M e P) que estiverem si-
pedras, que se tornam menores, quase im- tuados em uma circunferência determinada
perceptíveis à medida que ficam mais dis- pelo ponto do objeto, e os pontos médios
tantes do observador. das duas pupilas dos olhos observadores (O1
Estes indutores são largamente utilizados, e O2); essa circunferência é denominada de
como forma de representação da profundidade holóptero; as disparidades entre o
espacial nas expressões pictóricas presentes no posicionamento de pontos projetados sobre
desenho, na pintura, na fotografia, no cinema a retina, projetados por objetos situados sobre
e no vídeo. É interessante citar que Leonardo (M e P), dentro, e fora (Q) do holóptero serão
Da Vinci (1982: 257), inclui em seu tratado as indutoras da percepção de profundidade.
de pintura a questão da modificação das cores No esquema abaixo, a circunferência S-M-
dos objetos como mais um indutor da relação P-T representa o holóptero.
de distância entre eles e o observador.
Em relação aos indutores da categoria
Fisiológica, devem ser considerados:
1) A acomodação visual monocular: tra-
ta-se da própriocepção da tensão muscular
exercida pelo corpo ciliado do globo ocular,
que controla o ajuste da distância focal do
cristalino através da mudança de sua curva-
tura; essa percepção adequa-se apenas para
distâncias inferiores a 2 metros de distância;
2) A paralaxe de movimento monocular,
trata-se da percepção de profundidade quan-
do ocorre deslocamento da posição de ob-
servação dos objetos, permitindo sua visu-
alização de vários pontos de vistas; com o
observador em movimento, os objetos mais Figura 1 – Representação gráfica do
próximos parecem mover-se em maior ve- holóptero (modificada de Okoshi, 1976: 51)
locidade que os objetos mais distantes; este
indutor é amplamente utilizado na cinema- Isto posto, cabe considerar ainda que as
tografia, através dos movimentos de câmera distorções relativas da imagem de cada objeto
conhecidos como “travelling” e “grua”6; representado sobre a retina parecem contri-
3) A convergência ocular, trata-se do buir na percepção da profundidade espacial.
ângulo formado pelos eixos de visão ao se Retoma-se aqui a Teoria do Umwelt para a
olhar com os dois olhos para um certo ponto justificativa do uso da imagem estereoscópica
sobre um objeto, são as tensões dos mús- como forma de representação do espaço tri-
culos que rotacionam os globos oculares que dimensional. Ao que tudo indica, essa forma
enviam essa informação para o cérebro; de representação pictórica, apresenta-se em
138 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

um grau elevado de coerência com a repre- No âmbito da especificidade das Práticas


sentação do espaço no Umwelt humano. É Audiovisuais, podemos citar que seria de
possível afirmar-se que o aprimoramento grande importância a investigação de aspec-
dessa forma de representação permitiria o de- tos como Iluminação, Fotografia e Monta-
senvolvimento de atividades de produção de gem. Há que se considerar ainda que este
conhecimento e Dilatação do Umwelt, mais programa, a exemplo da “Revue
sofisticadas que as atuais permitidas pelas Internationale de Filmologie”, na França na
imagens bidimensionais. década de 50, poderia estar contribuindo com
É possível destacar-se um caso de expe- informações reunidas em torno de alguma
rimento publicado a respeito de utilização de publicação que acolhesse os temas investi-
imagens fotográficas estereoscópicas para o gados. No fundamental, a questão que se
ensino de neuroanatomia (Menezes, Cruz, coloca para a área específica do audiovisual
Castro, Almeida et al, 2002). As técnicas de neste programa de investigações é: as pre-
neuroimagem tridimensionais têm sido utili- missas da linguagem audiovisual, definidas
zadas como facilitadoras de diagnóstico to- para a representação bidimensional deverão
pográfico, gerando dificuldades para o ensino funcionar para a representação estereoscópica
de neuroanatomia já que há limitação de acesso ? Considerando-se ainda que as mudanças de
dos estudantes àqueles equipamentos. As ordem tecnológica que se desenvolveram
imagens estereoscópicas, neste caso permitem atualmente possibilitam maiores experimen-
um compartilhamento de uma visualização tações em torno do tema, é de se supor que
tridimensional proporcionada por aqueles atualmente as investigações em torno do
instrumentos, preparando o futuro cirurgião audiovisual estereoscópico seriam muito mais
para a utilização das imagens em situações intensas e desenvolvidas a um custo muito
reais de diagnóstico, caracterizando-se portanto mais baixo do que há cerca de dez ou vinte
como um compartilhamento de consciência7. anos atrás.
Outros exemplos podem ser citados a Naquilo que diz respeito ao documentário,
respeito da utilização das imagens questões de ordem temática colocam-se como
tridimensionais como forma de compartilha- prioritárias. Quais as utilizações mais ade-
mento de consciência em situações reais, tais quadas ao documentário audiovisual que
como visualizações submarinas em casos de poderiam ser traduzidas à linguagem
prospecção petrolífera, de preparação de audiovisual estereoscópica? Isto possibilita-
projetos em aviação, indústria naval e auto- ria uma atividade experimental de realização
mobilística. A menção da utilização desse tipo audiovisual que permitiria a investigação a
de imagem em sistemas de sensoriamento respeito dos condicionantes de linguagem que
remoto a partir de fotos de satélite ou aéreas se manifestariam nestas realizações. São
é quase desnecessária para comprovar seu uso consideradas como campos preferenciais
como fonte produtora de conhecimento mais desta produção documentária as áreas de co-
elaborado a respeito da espacialidade. nhecimento nas quais os aspectos físicos
espaciais colocam-se como fatores limitantes,
Questões audiovisuais: um programa de tais como: arquitetura, geografia física, meio
investigações ambiente, morfologia, anatomia, etc. Ainda
no campo do documentário, como muito bem
As questões levantadas apontam para uma demonstra sua tradição histórica (Winston,
utilização mais efetiva de imagens 1996:80), este programa poderia fomentar o
estereoscópicas em atividades de realização aprimoramento tecnológico na direção da
audiovisual documentária. Para isso faz-se portabilidade tão necessária à atividade
necessário um programa para investigação da documentarista.
representação estereoscópica no documen- Este artigo, encerra-se portanto, com o
tário. Tal programa caracterizar-se-ia por uma sentido claro de apontar rumos para uma
abordagem transdisciplinar na qual existe a atividade de pesquisa que seja ao mesmo
necessidade de participação de áreas como tempo Prática e Teórica, e que permita o
Física, Engenharia, Computação, Psicologia, vislumbramento de novas aplicações para a
Neurociências, Semiótica, Teoria e Práticas estereoscopia nas atividades audiovisuais
Audiovisuais, dentre outras. documentárias.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 139

Bibliografia Uexküll, Jacob von. A stroll through the


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Adams, G. O passe de mágica do turis- of invisible worlds. Semiotica 89-4 (1992).
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Godoy-de-Souza, H. A., Documen-tário, – Blue, True Anaglyph Red – Green, Gray
Realidade e Semiose: os sistemas Anaglyph Red – Cyan, Gray Anaglyph Yellow –
audiovisuais como fontes de conhecimento. Blue, Half Color Anaglyph Red – Cyan, Half Color
Anaglyph Yellow – Blue, Color Anaglyph Red
São Paulo, AnnaBlume, 2002.
– Cyan, Color Anaglyph Yellow–– Blue. Em http:/
Leakey, Richard E. A Evolução da Hu- /mitglied.lycos.de/stereo3d/ , consultado em 28/
manidade. Tradução Norma Telles. 2ª ed. São 03/2004.
Paulo, Melhoramentos, 1982. 4
A Dilatação do Umwelt humano (uma
Mathias, Harry & Patterson, Richard. característica evolutiva da espécie) se dá através
Electronic Cinematography, achieving de elaboração sígnica. Os sígnos indiciáticos que
photographic control over the video image. mostram diferentes aspectos da realidade, não
observáveis pelos transdutores orgânicos que a
Belmont, Wadsworth, 1985.
espécie humana possui, são por si só insuficientes
Mckay, Herbert. Three-Dimensional para transcender os limites da bolha de universo
Photography, principles of stereoscopy. New subjetivo (Umwelt). Torna-se necessário o desen-
York, American Photographic Publishing volvimento de signos muito mais complexos, que
Company, 1953. dão coerência aos aspectos da realidade que se
Meneses Murilo Sousa de, CRUZ, André encontram ocultos na forma de dados indiciais do
Vieira da, CASTRO, Izara de Almeida et al. mundo. Conforme foi discutido em “Documen-
tário, Realidade e Semiose” (Godoy-de-Souza,
Stereoscopic neuroanatomy: comparative
2001: 130), um documentário é uma dessas formas
study between anaglyphic and light de complexificação sígnica que pode garantir a
polarization techniques. Arq. Neuro-Psiquiatr., Dilatação do Umwelt.
Sept. 2002, vol.60, no.3B, p.769-774. ISSN 5
Como já foi destacado em “Documentário,
0004-282X. Realidade e Semiose” (Godoy-de-Souza, 2001:
Metz, C. A Significação no Cinema. São 43), a perspectiva central foi um ganho nas formas
Paulo, Editora Perspectiva, 1972. de representação espacial; foi a forma que se dis-
seminou pelo planeta (fotografia, cinema e tele-
Okoshi, T. Three-Dimensional Imaging
visão). A representação espacial pela perspectiva
Techniques. Academic Press, 1976. central, simula o espaço, não porque mimetiza o
Parente, J.I. A Estereoscopia no Bra- espaço, mas sim porque é um modelo coerente
sil 1850-1930. Rio de janeiro, Sextante, com a forma pela qual o Homo sapiens mapeia
1999. o espaço em seu Umwelt.
140 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

6
De acordo com Christian Metz, um “efeito tante função de construção do conhecimento na
estereocinético, cuja importância para o cinema sociedade humana, que anteriormente seria desem-
foi salientada por Cesare L. Musatti no seu artigo penhada apenas pela linguagem verbal, de acordo
intitulado “Os fenômenos estereocinéticos e os com Leakey: “Talvez o mais penetrante elemento
efeitos estereoscópicos do cinema normal”, artigo da linguagem seja que, através da comunicação
da Revue International de Filmologie, n29 de com os outros, não só a respeito de questões
janeiro/março de 1957. (Metz, 1972: 20). práticas, mas também de sentimentos, desejos e
7
Os sistemas audiovisuais, em particular o receios, é criada uma “consciência compartilha-
documentário, vêm desempenhando uma impor- da”. (Leakey, 1982: 141).
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 141

A atmosfera como figura fílmica


Inês Gil1

A atmosfera é um conceito muitas vezes fílmica. Entende-se por “figura fílmica” uma
utilizado no cinema para definir uma impres- forma particular de expressão, neste caso
são específica que foi expressa durante um originada pela própria representação e criada
plano ou uma sequência fílmica. O objectivo por determinados princípios específicos ao
aqui é defini-la para que funcione como um cinema (por exemplo, uma figura fílmica
conceito operatório para a análise fílmica. básica é o grande plano). A atmosfera seria
Depois de determinar o conceito de um elemento fílmico de corpo inteiro,
“atmosfera” de uma maneira geral, é neces- identificável e possível de analisar.
sário estudar como é que ela funciona no O que é a atmosfera? É um sistema de
espaço cinematográfico, isto é, qual é a sua forças que permite aos elementos do mundo
dinâmica dentro da própria imagem (muda de se conhecer e de reconhecer a natureza
e sonora), e como se elabora entre o espec- do seu estado. A atmosfera manifesta-se como
tador e o filme. A proposta é considerar a um fenómeno sensível ou afectivo e rege as
noção de “atmosfera” como sendo uma relações do homem com o seu meio. Não
possível figura fílmica. Entende-se por “fi- é por acaso que os expressionistas alemães
gura fílmica” uma forma particular de ex- associavam-na à noção de Stimmung, que é
pressão, neste caso originada não só pela um tipo de disposição de espírito e de alma
própria representação mas sobretudo por emanante das “coisas” do mundo. Daí tam-
determinados princípios específicos ao cine- bém ser muitas vezes assemelhada às noções
ma (um deles é, por exemplo, a complexa de clima, ou de ambiente. Existem diferen-
temporalidade da imagem fílmica). Neste ças, por vezes bastantes subtis, que permi-
sentido, olhar para a atmosfera como sendo tem diferenciá-las: o clima é mais geral que
um elemento fílmico parece legítimo na a atmosfera, ou que o ambiente, e também
medida em que a sua presença pode enri- mais estável. Fala-se de um clima de terror,
quecer a análise cinematográfica. Propõe-se, por exemplo, para caracterizar um espaço-
por último, depois de identificar e perceber tempo determinado. Além disso, o clima está
o papel da atmosfera, aplicar os seus prin- em primeiro plano, quer dizer que a sua
cípios a vários filmes da história do cinema. presença é sempre explícita e fundamental.
Quando se vai ao cinema, fala-se frequen- O ambiente, também é geral mas é secun-
temente da”“atmosfera” do filme, sem se dário; é como um elemento de cenário porque
saber precisamente o que é, uma componen- não é indispensável para o espaço dramático.
te da imagem fílmica ou unicamente uma Por exemplo, o som ambiente serve para
sensação percebida pelo espectador. Isso preencher o espaço da imagem fílmica,
deve-se à indeterminação da própria noção oferecendo informações sobre o espaço
de “atmosfera” que quer dizer ao mesmo sonoro geral da acção, sendo perfeitamente
tempo tudo e nada e que, no fundo, não dispensáveis, se fosse necessário. A atmos-
esclarece nada sobre a natureza do filme. No fera está sempre no primeiro plano, mesmo
entanto, uma coisa é certa: o cinema cria um quando está pontualmente localizada no
certo de tipo de atmosfera. A questão é de espaço. Por exemplo, quando uma pessoa com
saber o que é este espaço atmosférico e quais imenso charme se exprime no meio de uma
são os meios que permitem a sua expressão sala cheia de gente sisuda, a atmosfera li-
num filme. berta será logo tão forte como o clima geral.
O objectivo é considerar a noção de A atmosfera assemelha-se a um sistema
“atmosfera” como sendo um possível elemen- de forças, sensíveis ou afectivas, resultando
to fílmico, e mais precisamente, uma figura de um campo energético, que circula num
142 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

contexto determinado a partir de um corpo conceitos tem um ponto comum: a capaci-


ou de uma situação precisa. Neste sentido, dade de exprimir o “não figurável”, este algo
a atmosfera tem intensidades variadas e tende intangível e abstracto que no entanto pode
em formar-se sem produzir necessariamente ter uma presença fundamental no espaço
representações. Sendo um sistema energético, representativo de uma imagem. É também
ela tem densidades diversas e um dinamis- o que se passa com o espectador de cinema
mo, mais ou menos, acentuado. Também os que irá mergulhar na atmosfera de um filme
animais podem ter uma percepção particular durante a sua projecção.
da atmosfera: quando “sentem” a morte a Como funciona a atmosfera? A partir da
chegar, mostram um sentido desenvolvido metodologia adoptada para perceber melhor
para além da percepção comum, que na maior a sua natureza e o seu papel, propõe-se
parte das vezes, escapa ao ser humano. determinar uma pequena taxinomia da atmos-
“Sentir” a morte, tal como “sentir” o medo, fera no cinema. Parte-se do princípio que a
é perceber forças que, neste caso, o animal atmosfera cinematográfica divide-se em duas
associa a um fenómeno determinado categorias gerais: a atmosfera espectatorial que
Se o conceito de atmosfera é ao mesmo estuda o fenómeno que existe entre o espec-
tempo tão explícito mas tão difícil de ca- tador e o filme (que não se limita à projecção
racterizar, é porque a própria noção tem algo mas também à sua visualização no ecrã de
de fugidio, embora seja muito utilizado na televisão ou de computador), e a atmosfera
escrita e na linguagem. Por isso, merece ser fílmica que diz respeito à relação entre os
aprofundada. Ludwig Binswanger, na sua próprios elementos fílmicos visuais e sonoros.
qualidade de psiquiatra, foi um dos primei- A ideia de uma possível atmosfera espectatorial
ros a debruçar-se sobre a questão, e consi- baseia-se, em parte, na filmologia que propôs
derou a atmosfera como um espaço, essen- analisar os fenómenos psíquicos e psicológi-
cialmente subjectivo. De facto, para ele a cos que acontecem entre o espectador e o filme
atmosfera nasce a partir da realidade afectiva projectado e estende-se até ao olhar escópico.
dos indivíduos que a projectam no seu espaço, No entanto, o que interessa destacar aqui, é
acabando por caracterizar a sua relação com a atmosfera que se exprime, ou que se en-
o mundo. Mais perto de nós, um outro contra, na representação fílmica. É óbvio que,
psiquiatra, Hubertus Tellenbach, associou a para se revelar, esta atmosfera precisa de ser
noção de “atmosfera” ao gosto (no sentido percebida, mas a sua presença no som e nas
da oralidade) que se prolonga ao gosto do imagens em movimento tem uma certa ex-
mundo. Os dois autores introduziram uma pressão que não se limita a ser simplesmente
série de propriedades na sua definição da recebida pelo espectador.
atmosfera, que permite determinar a noção Na atmosfera fílmica, parte-se do prin-
com mais rigor e precisão. Por exemplo, o cípio que existem dois tipos de atmosferas:
espaço atmosférico é um espaço que se a primeira chama-se plástica porque diz
contraí ou se dilata segundo as circunstân- respeito à forma da imagem fílmica, e aos
cias. A atmosfera manifesta-se sempre no elementos que constituem o seu espaço
exterior, mesmo quando se trata de um plástico. A segunda, é a atmosfera dramá-
espaço-estado interior, como a alegria ou a tica, porque é expressa essencialmente a partir
morbidez, por exemplo. O espaço interior da diegese. Por exemplo, os filmes do
manifesta-se sempre através de uma relação impressionismo francês têm uma atmosfera
particular ao mundo exterior. plástica muito mais forte do que a atmosfera
No que diz respeito à arte, a noção de dramática, porque a forma fílmica é clara-
atmosfera é fortíssima e embora raramente mente valorizada em relação à própria his-
identificada e analisada como elemento de tória. Os filmes ditos “realistas” terão ten-
corpo inteiro, a sua presença que se encontra dência em ter uma atmosfera dramática mais
na maior parte das vezes muda, contagia e importante do que a atmosfera plástica. No
envolve o espectador. Nas “pequenas percep- entanto, as duas estão sempre interligadas.
ções” de Leibniz ou no “visual” de George Existem depois outros tipos de atmosferas
Didi-Huberman2, não se poderia descobrir um que podem ser identificadas num filme: a
certo tipo de atmosfera? Qualquer um desses atmosfera é concreta quando ela é material
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 143

(como o nevoeiro, por exemplo) ou criada o da superfície que preenche o espaço da


pela técnica para criar efeitos estilísticos ou imagem. O volume das formas tendo sido
dramáticos óbvios. Por exemplo, a atmosfera suprimido, o assunto parece querer apropri-
expressionista de O Gabinete do Dr. Caligari ar-se do olhar do espectador (é por isso que
realizado em 1919 por Robert Wiene, é se fala de visão háptica ou táctil na percep-
claramente criada pelas linhas oblíquas e ção do grande plano). Por outro lado, e quase
deformadas da arquitectura dos cenários, bem paradoxalmente, esta superfície achatada
como os claros-escuros das formas que permite a penetração do espectador no es-
produzem uma sensação de Unheimlichkeit paço imaterial da imagem através da atmos-
ou de estranheza inquietante na imagem fera que se liberta dela.
fílmica. Mas no caso de O Vento realizado Basta lembrar-mo-nos do magnífico fil-
por Victor Sjöström em 1928, é a areia e me que Carl Dreyer realizou em 1928, A
o vento que são os verdadeiros protagonistas Paixão de Joana d’Arc, em que os grandes
da atmosfera concreta. É a atmosfera exte- planos dos rostos das personagens exprimem
rior constituída de pó e de vento que provoca o seu mundo interior, seja de extrema tris-
e acompanha a brutalidade da história. As teza ou de profunda perversidade. Os gran-
forças da natureza conseguem penetrar no des planos de Dreyer acabam por isolar
interior de uma casa, e ao espalhar um caos totalmente o assunto de todo o resto e
material e afectivo, elas provocam a erosão parecem extrair a essência de cada persona-
gradual da consciência dos seus habitantes. gem para espalhá-la através da imagem muda
A atmosfera criada pelo vento é claramente e em movimento.
concreta e activa: ela apaga a nitidez dos O movimento da imagem cinematográfica
contornos e provoca a perda de si próprio. é um elemento essencial na expressão de
A segunda atmosfera é a atmosfera atmosfera fílmica. De facto, como todos sabem
abstracta, que também se exprime através é o dinamismo das imagens que faz a
de um plano ou de uma cena, mas esta at- especificidade do cinema, no seu dispositivo
mosfera não é directemente visível porque técnico, mas também na sua representação. É
não está concretamente representada. Por também graças ao movimento que as imagens
exemplo, o grande plano é uma figura fílmica podem manter uma relação rica e complexa
que transmite uma certa qualidade de sen- com o som e criar uma atmosfera particular,
sações e de afectos porque as suas propri- a maior parte das vezes abstracta. Um bom
edades de extrema aproximação do assunto exemplo de atmosfera abstrata, criada ao
transformam não só a relação entre os ele- mesmo tempo pelo som e pela imagem, é o
mentos da própria imagem, mas vão também filme Mãe e Filho que Alexander Sokurov
permitir ao espectador ter um olhar mais realizou em 1997. A música extradiegética
elaborado sobre as coisas, porque muito perto funde-se com a imagem anamorfosada e
delas. Jean Epstein disse que o grande plano exprime o alvoroço interior que o filho sente
era “a alma do cinema” e talvez se tenha perante a iminência da morte da sua mãe. A
referido à atmosfera misteriosa e envolvente música prolonga directamente o transtorno
que dele se liberta. formal da imagem (que pode ser o transtorno
Epstein admite também que a montagem interior do filho), e esta deixa quase de ser
faz parte da fotogenia porque é uma figura uma imagem figurativa para se tornar abstrata.
fílmica criada pelas imagens em movimento. É uma maneira de mostrar a ductilidade da
À fotogenia cinematográfica, Epstein associa atmosfera quando ela exprime o sentido das
a noção de “animismo”; ele utiliza a frag- coisas.
mentação espacial do enquadramento e, como O que é relevante aqui, é o facto do
foi dito mais acima, em particular, o grande cinema ter os seus próprios meios técnicos
plano, para mostrar que a imagem fílmica de expressão de espaço e de tempo, que
tem as suas próprias forças essenciais, o que permitem uma produção de atmosfera espe-
a afasta de uma mera representação espelhada cífica. Ao transformar a representação rea-
do mundo (Epstein, 1946). Além de perder lista, Epstein afirmou que a essência do
a referência espacial do assunto, o grande cinema era o seu poder de exprimir algo que
plano joga sobre dois planos: o primeiro é transgride a percepção comum do mundo. A
144 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

câmara mostra algo que o olho não vê. É as imagens em movimento prolongam as
neste sentido que a noção de fotogenia se imagens fixas. A mesma atmosfera atravessa
entrecruza com a de atmosfera. Por isso, a os vários espaços e tempos como se fossem
sua posição parece particularmente pertinen- falsos-raccords. Aqui, o cinema exprime uma
te porque está actualizada, mesmo no que atmosfera similar aos rastos diurnos de um
diz respeito à nova imagem digital ou vir- terrível pesadelo. É por isso que Serge Daney
tual. Hoje, continua a ser o movimento da disse, utilizando um conceito de Jean-Louis
imagem o primeiro factor de criação de Schaeffer, que Noite e Nevoeiro é um filme
atmosfera fílmica. Depois, esta propriedade que olha o espectador3, olha porque a atmos-
terá características e intensidades diversas, fera liberta das imagens toca-o na sua mais
segundo o próprio filme. Por exemplo, as at- profunda intimidade (neste caso, o assunto é
mosferas de Matrix são artificiais, geralmen- universal, não se trata de uma “pequena
te concretas porque resultam de efeitos história pessoal” como diria Deleuze).
especiais fáceis e espectaculares. Quase que É também o que acontece em A Sombra
se podia falar de atmosfera sensacional, do Caçador realizado por Charles Laughton
atmosfera rapidamente percebida, consumida em 1955. Se a atmosfera do filme tem um
e desvanecida porque não procura exprimir lugar tão importante na história do cinema é
este algo que a fotogenia traz ao cinema e por causa do seu carácter enigmático que
que pode tocar profundamente o espectador, acompanha a narrativa alegórica da
porque mostra algo que ultrapassa o seu intemporalidade do espaço interior4. De facto,
espaço empírico e racional. a atmosfera plástica do filme é tão forte que
Portanto, o que se entende por atmosfera a sua presença tem a mesma importância do
como figura fílmica é a atmosfera que se que a diegese. O trabalho de fotografia a preto
exprime através de uma imagem fílmica. É e branco cuja luz alterna entre um claro-escuro
óvio que quando se trata de atmosfera abs- apurado e uma luminosidade bucólica, a
tracta, é muito difícil e complexo identificá- montagem atípica de um tempo-sequência5
la, para defini-la minuciosamente. Por exem- entre duas sequência narrativas clássicas, o
plo, a atmosfera que se liberta de Noite e formalismo estetizante que impede o natura-
Nevoeiro que Alain Resnais realizou em 1955, lismo de desabrochar sempre que este parece
é notável. Este exemplo afasta-nos da teoria instalar-se, são factores importantes que con-
de Jean Epstein que rejeita uma representa- tribuem para criar uma atmosfera que “pene-
ção realista do mundo, sendo a seu ver tra” no espectador, deixando vestígios de uma
limitativa. No entanto não existem dúvidas impressão que ultrapassa o exprimível.
que o animismo do cinema está presente e Dizer que o movimento é a natureza da
activo em Noite e Nevoeiro. A criação da sua imagem fílmica implica necessariamente
atmosfera é originada pelo “realismo pensar a sua temporalidade. O sentido ex-
ontológico” da representação fílmica, impli- presso por um plano, uma sequência ou
cando uma continuidade espacio-temporal es- mesmo pela integralidade de um filme pode
tabelecida pela própria realidade. É preciso criar uma atmosfera específica. Por exemplo,
não esquecer que Noite e Nevoeiro é um filme a reflexão de Deleuze sobre a imagem-tempo
sobre o campo de concentração de Auschwitz, podia servir de base, porque é óbvio que a
que alterna as imagens a cores contempo- duração mais ou menos longa de um plano
râneas da filmagem com as imagens de permite ao espectador ficar impregnado, ou
arquivo a preto e branco. O que faz deste não, pela sua atmosfera. No entanto, existe
filme um filme justo como disse Serge Daney, uma atmosfera própria ao tempo, indepen-
em parte, é a sua atmosfera insuportável do dentemente do tempo diegético. Trata-se
horror inumano que permanece no mesmo então de descobrir de que maneira a cons-
espaço em vários tempos e circunstâncias. trução do tempo fílmico consegue produzir
Com longos travellings, Alain Resnais arras- um certo tipo de atmosfera. Sabendo que a
ta a atmosfera de terror, que perdurou e técnica cinematográfica permite uma fácil
impregnou o campo de concentração, de um manipulação temporal (através da montagem,
plano para outro. O preto-e-branco prolonga- do acelerado ou da câmara lenta, por exem-
se na cor e a cor prolonga-se no preto e branco; plo), é fácil identificar os lugares de expres-
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 145

são de atmosfera temporal. Mais difícil é ela está implicitamente presente. O cineasta
analisar a natureza desta mesma atmosfera refere uma série de propriedades que podem
porque, segundo Didi-Huberman, a imagem definir uma figura fílmica, e duas delas apli-
é um objecto complexo de tempo impuro: cam-se perfeitamente à atmosfera. Primeiro, a
uma extraordinária montagem de tempos atmosfera permite uma relação com o infinito.
hetereógeneos formando anacronismos6. De facto, a sua manifestação contenta-se em
E porque se trata de uma imagem fílmica, ser uma “impressão”: não tem contornos nem
estes anacronismos temporais inerentes à configuração. É por isso mesmo que ela pro-
imagem tornam-se ainda mais complexos. voca uma sensação de infinito no espaço interior
Antes de tudo, a imagem fílmica, na sua do espectador, por sair dos limites do plano
imaterialidade, funciona como um presente e por ser intemporal. A segunda propriedade
em constante devir, para utilizar o conceito é a indivisibilidade da atmosfera. Ela funciona
deleuziano, como se a imagem fosse uma como um todo, um sistema de forças sensíveis
imagem-potencial — e não auto-suficiente, ou afectivas que é percebido como um con-
porque sempre associada às anteriores e/ou junto de corpo inteiro; a atmosfera também não
às seguintes para poder exprimir a sua ver- é um processo mental.
dadeira essência (o movimento). A atmosfera Por último, um exemplo de atmosfera
temporal da imagem fílmica torna-se ainda concreta, e outro de atmosfera passiva. No
mais complexa quando o som é um elemento filme O Labirinto dos Sonhos que Sogo Ishii
criador de atmosfera. Por exemplo, em realizou em 1997, a noite e a chuva expri-
Eraserhead de David Lynch, o barulho es- mem um espaço inseguro. No entanto, ape-
tridente que a personagem ouve no espaço sar de ter uma origem figurativa (a chuva
da sua cabeça não tem nenhuma fonte es- desenha sombras líquidas nos rostos das
pecífica, a não ser o seu próprio cérebro; por personagens), a própria atmosfera parece
isso mesmo, estamos em presença de uma intangível. Em Elephant de Gus Van Sant,
atmosfera abstrata que ultrapassa as referên- a atmosfera é abstrata; ela circula de plano
cias espacio-temporais convencionais. A para plano, tal como os estudantes deambulam
atmosfera desta cena torna-se intemporal pelos corredores do liceu. A sua origem não
porque não só exprime aleatoriamente um tem uma forma específica porque ela é
lugar do espaço interior da personagem, como constituída por todos os elementos da ima-
a duração da sua manifestação cria uma gem fílmica. Nos dois casos, a atmosfera está
espécie de suspensão temporal da narrativa. claramente presente e a sua presença é activa,
A atmosfera temporal de um plano, de quer dizer que o seu sentido tem um valor
uma cena ou de um filme está ligada ao ritmo fundamental na narrativa.
de cada um e da sua própria montagem. Os Para sintetizar este primeiro esboço na
ritmos das formas, dos movimentos e dos sons definição de atmosfera fílmica, é importante
relacionam-se entre si e criam sentidos. Neste referir que tentar reduzir a atmosfera a um
sentido, o ritmo assemelha-se ao “conflito” sistema estável e fechado seria desnaturar a
eisensteiniano que reconhecia um sentido a sua própria essência fugidia. Aplicar a noção
partir dos conflitos representativos. de “figura fílmica” é como se, ao serem
Em que sentido é possível caracterizar a sublimadas, as figuras adquirissem um novo
atmosfera como sendo uma figura fílmica se valor expressivo, afastado do seu, original.
ela é por natureza abstracta (mesmo quando Por isso, a noção fica por apurar porque, por
a sua origem é material) e recusa qualquer exemplo, ela tem uma manifestação tempo-
tentativa de figuração? Como foi menciona- ral muito complexa e muito rica, como já
do mais acima, uma figura fílmica é uma se viu. Também é preciso ter cuidado em não
forma particular de expressão, específica ao confundir “atmosfera” com “efeitos”, o que
cinema. A atmosfera fílmica é uma figura às vezes não é tão óbvio. No expressionismo
fílmica porque ela é criada a partir de outros alemão, por exemplo, os dois justapõem-se.
elementos fílmicos e porque tem um sentido O que é importante, é reconhecer a atmos-
específico. No seu artigo “De la figure fera como sendo um elemento fílmico de corpo
cinématographique”, Andréï Tarkovski nunca inteiro, e ao torná-la inteligível, dar-lhe um
menciona a palavra “atmosfera”, e no entanto, espaço analítico na teoria cinematográfica.
146 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia _______________________________
1
Universidade Lusófona de Humanidades e
Binswanger, Ludwig, “Das Raumproblem Tecnologias.
2
in der Psychopathologie”, Ausgewählte Cf. George Didi-Huberman, Devant l’image,
Paris Editions de Minuit, 1990.
Werke, Heidelberg, Band III, 1994. 3
Cf, Serge Daney, “O travelling de Kapo”,
Daney, Serge, “O travelling de Kapo”, in in Revista de Comunicação e Linguagens, nº23,
Revista de Comunicação e Linguagens, nº23, Lisboa, Edições Cosmos, 1996, pp. 205-221.
Lisboa, Edições Cosmos, 1996, pp. 205-221. 4
Cf. Inês Gil, A Sombra do Caçador. Do
Daney, Serge, Devant la recrudescence Stroryboard à Direcção de Actores, Lisboa,
des vols de sacs à main, Lyon, Aléas, 1997. Edições Universitárias Lusófonas, 2002.
5
Didi-Huberman, Georges, Devant O tempo-sequência baseia-se no conceito de
l’image, Paris Editions de Minuit, 1990. “imagem-tempo” deleuziano e define uma sequência
Didi-Huberman, Georges, Devant le narrativa cuja situação óptica e sonora substitui as
situações sensori-motores enfraquecidas. Num tem-
temps, Paris, Editions de Minuit, 2000.
po-sequência, a narrativa tem um lugar muito redu-
Epstein, Jean, L’Intelligence d’une zido em relação à própria temporalidade da imagem
machine, Paris, Editions Jacques Melot, 1946. fílmica que vale por si só e que permite, segundo
Tarkovski, Andréï, “De la figure Deleuze, uma situação óptica pura (e/ou uma situação
cinematographique”, Positif, nº 249, 1981. sonora pura). Cf. Gilles Deleuze, L’Image-Temps,
Tellenbach, Hubertus, Geschmack und Paris, Editions de Minuit, 1985, p. 10.
6
Atmosphäre, Salzburg, Otto Müller Verlag, Cf. George Didi-Huberman, Devant le temps,
1968. Paris, Editions de Minuit, 2000, p. 16.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 147

Generación y utilización de tecnologías digitales


e informacionales para el análisis de la imagen fotográfica
José Aguilar García, Fco. Javier Gómez Tarín,
Javier Marzal Felici e Emilio Sáez Soro1

1. Introducción torno. Más allá del uso del lenguaje


hipermedia como mero receptáculo en el que
La presente comunicación tiene por objeto depositar una amalgama de objetos diversos,
dar a conocer una línea de investigación, en creemos que este marco de representación
fase de desarrollo, en la que actualmente ofrece dos elementos que revolucionan la
estamos trabajando, con el título “Nuevas relación con los objetos (los textos fotográ-
tecnologías de la comunicación, lenguaje ficos) que hasta el momento manejábamos:
hipermedia y alfabetización audiovisual. Una la interactividad y la evolución. Se trata, por
propuesta metodológica para la producción tanto de una base de datos relacional que
de recursos educativos”, implementada por permite una permanente actualización de
un grupo de investigadores del Área de contenidos que, además, podrá consultarse a
Comunicación Audiovisual y Publicidad de través de Internet a partir de octubre de 2004.
la Universidad Jaume I de Castellón2. En nuestro criterio, se trata de un interesante
La propuesta inicial pretendía generar una recurso que podrá ser empleado en diferen-
serie de materiales didácticos sobre los tes niveles educativos, desde la enseñanza
recursos expresivos y narrativos en tres tipos primaria hasta la universitaria.
de soportes y lenguajes audiovisuales: la Pero un trabajo de estas características
fotografía, la imagen cinematográfica y el que, en apariencia, podría parecer orientado
lenguaje publicitario. La magnitud del hacia la recogida y acumulación de
proyecto nos hizo reformular la acotación del información gráfica y escrita, implica una
objeto de estudio que, en una primera fase, reflexión rigurosa acerca de la naturaleza
se circunscribe únicamente al estudio de la de la fotografía y, asimismo, sobre la propia
imagen fotográfica y a la generación de actividad de análisis de la imagen.
recursos educativos, centrados de forma
exclusiva en este soporte comunicativo. 2. El análisis histórico de la fotografía
Entre los objetivos que plantea la
investigación, podemos destacar los A poco que se profundice en el estudio
siguientes: de la imagen fotográfica puede descubrirse
• Desarrollar un catálogo de recursos que, a pesar de la escasa bibliografía exis-
expresivos y narrativos en el ámbito del tente3, no hay un acuerdo entre las diferentes
lenguaje fotográfico. metodologías de trabajo históricas y teóricas.
• Elaborar una base de datos relacional En este sentido, creemos necesaria una
de conceptos teóricos, nociones técnicas, revisión con profundidad de las
fichas técnicas y artísticas de los diferentes aproximaciones historiográficas en el estudio
textos fotográficos seleccionados, etc. de la fotografía.
• Digitalización de textos fotográficos, Nuestra propuesta metodológica no con-
gráficos, etc., susceptibles de formar parte siste en la defensa de una historia de la
de las bases de datos relacionales, mediante fotografía, planteada de una forma autónoma
su publicación en una página web de la respecto a la historia del arte. En nuestro caso,
Universidad Jaume I. parece necesario que el estudio de la
Pero la principal novedad de la propuesta fotografía se despliegue a través del examen
consiste en presentar los resultados de la riguroso de las condiciones de producción,
investigación en formato hipermedia, con lo de recepción y del propio estudio de la
que se consigue integrar diferentes media materialidad de la obra fotográfica, una
(fotografía, texto, sonido) en un único en- propuesta que está en el marco de una
148 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

concepción general de la historia de la imagen. de consolidar una tradición historiográfica


Esto significa reconocer que el texto fotográ- que, desde el primer momento, seguiría dicho
fico es una práctica significante, por utilizar tecnologismo, dejando de lado las
la expresión de Bettetini4, en la que confluyen dimensiones sociológicas y/o estéticas
una serie de estrategias discursivas, una (Lacan; Eder; Stenger; Potonniée6).
intencionalidad del autor, un horizonte cultu- Frente a las posiciones historiográficas de
ral de recepción, unos medios de difusión de “fotohistoriadores”, es necesario destacar la
la obra, etc., así como un contexto obra de otros historiadores de la fotografía
socioeconómico y político. Esta orientación cuya perspectiva trasciende los límites de lo
metodológica, muy extendida hoy en día entre “estrictamente fotográfico” como sucede con
los historiadores de la imagen desde la pers- los estudios de Gisèle Freund7, Petr Tausk8
pectiva de la comunicación, es muy diferente o André Rouillé9.
a los estudios existentes sobre historia de la El análisis de Freund, que data de
fotografía que más bien se preocupan por principios de los setenta, trata de establecer
acumular mucha información empírica sobre conexiones entre el medio fotográfico y el
los autores y el desarrollo de la tecnología contexto sociólogico y político, empezando
fotográfica, y por establecer nexos genéricos su obra con una declaración de intenciones
y estilísticos con otras obras fotográficas, sin en lo que respecta a las relaciones entre las
salirse estrictamente del medio. formas artísticas y la sociedad:
En este sentido, podemos afirmar que
existe una manifiesta incompatibilidad “Cada momento histórico presencia el
metodológica entre la historiografía fotográ- nacimiento de unos particulares modos
fica y el marco general de la historia y teoría de expresión artística, que
de la imagen. Nuestra propuesta metodológica corresponden al carácter político, a las
consiste, por tanto, no en hacer pura maneras de pensar y a los gustos de
cronología (acumulación más o menos orde- la época. El gusto no es una
nada de acontecimientos) o glosa de manifestación inexplicable de la
descubrimientos, es decir, de las invenciones naturaleza humana, sino que se forma
técnicas y sus protagonistas, sino en exami- en función de unas condiciones de
nar los modos de representación que vida muy definidas que caracterizan
articulan las diferentes prácticas significantes la estructura social en cada etapa de
que, sin dejar de estar relacionadas con el su evolución”10.
acontecimiento y la técnica, ofrecen un
panorama rico y complejo de la historia de Por otra parte, Petr Tausk construye una
la fotografía en el marco de una historia historia de la fotografía en el siglo XX,
contemporánea de las artes visuales, no exenta entendiendo que sólo a partir de la última
de numerosas contradicciones latentes. década comenzó a “emanciparse” del medio
Resulta cuanto menos llamativo el hecho pictórico. Esta obra centra su atención en la
que el primer texto sobre fotografía, escrito fotografía como vehículo de creación artís-
por Daguerre, llevara por título Historique tica, que para Tausk corresponde a un “uso”
et description des procédés du daguerrotipe; muy restringido del medio. Su análisis de la
un texto en el que se exponía la técnica relación de la fotografía y el arte no está
desarrollada por su inventor, remontándose circunscrito al campo de la pintura, tratando
a los antecedentes de la fotografía, aunque de establecer relaciones entre el medio fo-
desde un punto de vista muy restringido al tográfico y las diferentes corrientes artísticas
lado técnico que revela una conciencia acer- del arte contemporáneo, desde el punto de
ca de la importancia histórica de la fotografía vista de la”historia de las ideas estéticas,
por parte de sus protagonistas, a quienes no intenta ir más allá de la simple relación
se les escapaba que esta invención constituía simbiótica pintura-fotografía que Stelzer y
un hito en la historia de las representaciones Scharf han estudiado monográficamente.
(Lemagny-Rouillé 5 ). Esta tendencia de Finalmente, las aportaciones de André
Daguerre a historiar la fotografía desde una Rouillé han tratado de abordar el estudio del
perspectiva técnica fue determinante a la hora fenómeno o “hecho” fotográfico examinando
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 149

su interacción con el medio socioeconómico 3. El análisis de la imagen fotográfica


y político en la historia contemporánea. El
desarrollo de la técnica fotográfica, que en En efecto, uno de los problemas más
el caso de Tausk es relacionado con la llamativos de las tradicionales historias de
aparición de los diferentes estilos fotográfi- la fotografía es que se pretende historiar un
cos, aquí es contemplado como consecuencia objeto - el arte, los medios de masas, la
de un estado de cosas sociopolítico cuya fotografía, etc.- sobre el que no se ha
ideología determina el avance humanístico y reflexionado suficientemente. En este senti-
también científico-técnico. La historia de las do, es necesario realizar una aproximación
ideas y de los hechos sociales y económicos a la naturaleza de la imagen fotográfica,
no permanece, pues, al margen de la historia un enfoque sincrónico que no es excluyente
de las formas visuales, y de la fotografía. del discurso histórico – diacrónico – que, en
La imagen fotográfica no es analizada como realidad, lo presupone.
un simple objeto artístico sino como un hecho Es obvio que, por la limitación de espacio,
social: no podemos aquí dar cuenta de la complejidad
de posiciones enfrentadas. Baste señalar la
“Es importante tomar en serio a la existencia de dos líneas principales de trabajo
imagen fotográfica como un “hecho en los intentos por dilucidar el concepto de
social” y analizar a partir de dos fotografía: por un lado, lo que denominamos
categorías diferentes pero “la definición ontológica”, una primera línea
complementarias de estudio: por una de estudios que centra buen número de
parte «sintácticas», «semánticas» y trabajos críticos en los que se analiza la
«temáticas» sobre la propia imagen y relación realidad-reproducción de la
alimentadas por la semiótica, por otra
realidad, un debate que llega hasta nuestros
parte sobre las instituciones y las
días desde la misma aparición de la fotografía;
estructuras socioeconómicas de la
por otra parte, de una segunda orientación
formación social de la fotografía. El
de estudios sobre fotografía - que ha
objetivo será entonces pensar las par-
caminado paralelamente a la anterior - y que
ticularidades de una escritura fotográ-
gira en torno a su carácter de experiencia
fica determinada como “hechos
fenomenológica, dando lugar al intento de
sociales”, es decir, descubrir valores
construir metalenguajes descriptivos que han
e intereses sociales en el plano de esta
pretendido agotar o prever la significación
escritura”11.
fotográfica - como ocurre con la perspectiva
semiótica -, hasta aproximaciones casi
La propuesta de trabajo de Rouillé marca,
de este modo, dos direcciones diferenciadas, deconstructivas que han subrayado la
pero convergentes, en el estudio histórico de “precariedad del arte fotográfico” y los límites
la fotografía: por una parte, una línea de de una posible definición.
investigación que se centra en el análisis de En la primera línea de estudios podemos
las condiciones de producción y recepción, situar las obras de Bazin, Ledo, Dubois,
que implica el examen de las condiciones eco- Laguillo, Damisch, Bourdieu, Sontag o
nómicas, sociales, técnicas y políticas del Schaeffer 12 . En la segunda orientación
contexto histórico en el que cabe situar dichas metodológica, de corte más analítico, pode-
imágenes; por otro lado, este estudio debe mos ubicar los estudios de Barthes, Costa,
ser completado a través de un análisis tex- Villafañe o Zunzunegui13. Si bien es cierto
tual, inmanente, del “hecho fotográfico”. que la mayoría de los autores citados se
Creemos que la postura metodológica de mueven entre ambas perspectivas de trabajo.
Rouillé es muy valiosa para nosotros en la Como señaló en su momento Roland
medida en que se trata de una perspectiva Barthes, la fotografía mantiene una relación
de estudio de la fotografía muy abierta y de analogía con la realidad lo que revela su
flexible, en definitiva, decididamente especial estatuto: la imagen fotográfica “es
interdisciplinar. un mensaje sin código”:
150 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

“En suma, la fotografía [de prensa] significación en sí misma es siempre


sería la única estructura de la el resultado de la elaboración de una
información que estaría exclusivamen- sociedad y una historia determinadas;
te constituida y colmada por un en suma, la significación es el
mensaje «denotado», que la llenaría movimiento dialéctico que resuelve la
por completo; ante una fotografía, el contradicción entre hombre cultural y
sentimiento de «denotación» o, si se hombre natural”15.
prefiere, de plenitud analógica, es tan
intenso que la descripción de una foto El fuerte desarrollo experimentado por la
de forma literal es imposible, pues investigación semiótica que se proponía el
«describir» consiste precisamente en estudio de “todos los procesos culturales como
añadir al mensaje denotado un hechos comunicativos” (Eco16) contagió a
sustituto o segundo mensaje, extraído muchos investigadores de un fuerte optimis-
de un código que es la lengua y que mo en el análisis del mensaje fotográfico. Joan
(...) constituye fatalmente una Costa, en un antiguo trabajo17 que él mismo
connotación respecto al mensaje criticaría con rotundidad tiempo después18, se
analógico de la fotografía...”14. propuso hacer una clasificación exhaustiva de
los signos fotográficos. Su objetivo era
El análisis barthesiano pone de relieve la estudiar la fotografía como proceso de
imposibilidad de efectuar un estudio de las comunicación, los elementos que intervienen
unidades significantes del primer mensaje y las interrelaciones de estos elementos en la
fotográfico - nivel denotativo -, ya que esta configuración del mensaje fotográfico. Para
denotación es puramente analógica. Sin Costa, la particularidad de la fotografía no
embargo, esto no significa que no pueda reside en ser un mecanismo apto para
hacerse un análisis del mensaje connotado, reproducir la realidad, sino en su capacidad
donde llega a distinguir un plano de la de producir imágenes icónicas a partir de la
expresión y un plano del contenido, siguiendo luz y por medios técnicos sobre un soporte
el planteamiento estructuralista (según la sensible. Costa llega a inventariar una serie
formulación de Hjelmslev que tan buenos de signos fotográficos que engloba en dos
frutos ha dado en el terreno del análisis categorías principales: por una parte, los signos
iconográfico, esencialmente de la imagen literales (de semejanza con el referente); por
cinematográfica). De este modo, Barthes otra, los signos abstractos (no analógicos).
propone los principales planos de análisis Los signos fotográficos proceden de la
de la connotación fotográfica que se interrelación de distintos elementos físicos y
resumen en seis: trucaje, pose, objetos, técnicos como la luz, el movimiento, la óptica
fotogenia, esteticismo y sintaxis. Para y el tratamiento en el laboratorio. De este
Barthes el código de la connotación es his- modo, Costa llega a relacionar un auténtico
tórico, es decir, cultural. catálogo de signos abstractos: en primer lugar,
los signos ópticos (ejemplos: flou,
“...sus signos son gestos, actitudes, desenfoque, fotomontaje, sobreimpresiones,
expresiones, colores o efectos dota- deformaciones de objetos, repeticiones de
dos de ciertos sentidos en virtud de imágenes, etc.); en segundo lugar, los signos
los usos de una determinada sociedad: lumínicos (estrellas y formas producidas por
la relación entre el significante y el la entrada de luz en el objetivo); en tercer
significado, es decir, la significación lugar, los signos cinéticos (estelas, barridos,
propiamente dicha, sigue siendo, si no descomposición del movimiento, congelados,
inmotivada, al menos histórica por oposición estático-dinámico, ritmos de líneas,
entero. Así pues, no se puede decir etc.); finalmente, los signos químicos
que el hombre moderno proyecte al (solarizaciones, imagen negativa, grano,
leer la fotografía sentimientos y va- exclusión de tonos intermedios, modificación
lores caracterizables o «eternos», es del color, virados, etc.).
decir, infra- o trans-históricos, a El problema de la propuesta de Joan Costa
menos que se deje bien claro que la es que su clasificación de los signos foto-
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 151

gráficos descansa sobre la idea de la instancia nuestra propia perspectiva de


existencia de un lenguaje fotográfico espe- trabajo. Como hemos señalado, nuestra
cífico, desvinculado de lo icónico como aproximación se basa en el análisis textual
concepto general (es notoria la estrecha de la fotografía, sin dejar de lado las va-
relación de la fotografía con la pintura, con liosas informaciones que nos ofrece el
la imagen cinematográfica, sus puntos de conocimiento del autor (datos biográficos),
contacto con la imagen electrónica en el del contexto político, social y económico
campo de la fotografía digital, etc.). Costa (enfoque histórico, sociológico y económi-
trata de afirmar radicalmente la especificidad co), del estudio de la evolución de la
del lenguaje fotográfico, utilizando el térmi- tecnología (perspectiva tecnológica) o de las
no “lenguaje” no metafóricamente sino li- condiciones de producción, distribución y
teralmente, con lo que termina construyendo recepción de la obra fotográfica. Este
una nueva ontología. Su perspectiva semiótica planteamiento interdisciplinar sirve de
deja de lado, además, las consideraciones inspiración para la elaboración de la base de
históricas sobre la imagen que le podrían datos en la que estamos trabajando.
servir para fundamentar su discurso, desde
nuestro punto de vista. Finalmente, creemos 4. Estructura de la base de datos
que uno de los problemas principales del
estudio de Costa es que su catálogo de signos Somos conscientes, en primer lugar, de que
abstractos se sirve de criterios a la vez la elaboración de esta base de datos no es más
técnicos (de producción) y estéticos (de que una herramienta de trabajo que puede servir
recepción), sin llegar a establecer un límite de ayuda en el campo del análisis del texto
entre la materialidad fotográfica y el carácter fotográfico. Se trata, pues, de un “asistente”
experiencial que implica el hecho fotográ- que no pretende reemplazar la propia actividad
fico. analítica que, por otra parte, no puede consistir
Cabe reconocer el valor de estas nunca en una serie de fichas e informaciones,
propuestas de trabajo, que inspiran en última por muy completas que estas sean.

La base de datos ofrece una información • En primer lugar, se ofrecen los datos
detallada de una selección de imágenes contextuales sobre la imagen fotográfica
fotográficas (alrededor de 30, en una primera como “autor”, “título”, “nacionalidad del
fase), de las cuales se proporciona las autor”, “fecha de realización de la fotografía”,
siguientes informaciones, que van desde lo “género”, e incluso otros datos sobre la
particular o concreto a niveles más trayectoria del autor, el momento histórico,
conceptuales y abstractos: el lugar, el movimiento artístico o fotográfi-
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co o las condiciones técnicas en la producción subjetivo y secuencialidad / narratividad de


fotográfica, una serie de datos que aportan la imagen.
informaciones útiles para el análisis poste- • Finalmente, la ficha analítica sobre la
rior. imagen fotográfica estudiada se cierra con
• La segunda pantalla ofrece información el nivel interpretativo, en el que dirigimos
sobre el análisis del nivel morfólogico de la nuestra atención hacia aspectos como la
imagen. Se trata de comenzar con una articulación del punto de vista, las relaciones
descripción formal de la imagen, tratando de intertextuales y la valoración crítica que
deducir cual(es) ha sido la(s) Técnica(s) suscita esta imagen.
empleada(s): parámetros como punto (presen- La articulación del punto de vista se
cia mayor o menor del grano fotográfico, refiere a cuestiones como punto de vista físico
puntos o centros de interés), línea (rectas, (punto del espacio desde donde se fotografía
curvas, oblicuas, etc.), plano (distinción de – altura de la vista: picado, contrapicado,
planos en la imagen), espacio, escala (tamaño etc.), actitud de los personajes (modelos, mo-
de los personajes PP, PM, PA, PE, etc.), forma tivos, etc.), calificadores (ironía, sarcasmo,
(geometría de las formas en la imagen), exaltación, emociones, etc.), transparencia /
textura, nitidez de la imagen, contraste, sutura / verosimilitud de la puesta en escena,
tonalidad (en B/N o Color), características marcas textuales (enunciador / enunciatario,
de la iluminación (direcciones de la luz, presencia del autor y del espectador en la
natural/artificial, dura/suave, etc.). El conjunto imagen), miradas de los personajes, etc. La
de aspectos tratados nos permitirá señalar si valoración crítica de la imagen, de carácter
la imagen es figurativa/abstracta, simple/ fundamentalmente subjetiva, contempla la
compleja, monosémica/polisémica, original/ posibilidad de reconocer la presencia de
redundante, etc. oposiciones que se establecen en el interior
• La tercera pantalla propone un análisis del encuadre, la existencia de significados a
de los principales parámetros que se pueden los que pueden remitir las formas, colores,
seguir en el análisis del nivel compositivo texturas, iluminación, etc.; las relaciones y
o sintáctico de la imagen. Entre los elemen- oposiciones intertextuales (relaciones con
tos a tratar podemos destacar: perspectiva otros textos audiovisuales), así como una
(profundidad de campo; en relación con interpretación global del texto fotográfico, y
nitidez de la imagen; gradientes espaciales), una valoración crítica de la imagen (cuando
ritmo (repetición de elementos morfológicos, proceda).
motivos fotográficos, etc.), tensión (entre Debemos insistir en el carácter orientativo
elementos morfológicos – línea, planos, co- de la propuesta, ya que la cumplimentación
lores, texturas, etc.), proporción (rel. con de los datos de las distintas pantallas depen-
escala / formato-encuadre), distribución de de, en gran medida, del posicionamiento
pesos en la imagen, simetría/asimetría, metodológico desde el que realizamos la
centrado/descentrado, equilibrio, orden aproximación al análisis de la imagen foto-
icónico, estaticidad/dinamicidad de la imagen, gráfica. Sería ingenuo por nuestra parte no
ley de tercios, recorrido visual. En este punto reconocer que el investigador siempre
de la propuesta, también se toma en proyecta sobre la imagen una carga impor-
consideración la posibilidad de reflexionar en tante de prejuicios y sus propias convicciones,
torno a la representación del espacio y el gustos y preferencias. En este sentido, como
tiempo fotográficos. Por lo que respecta al ya lo hemos expresado anteriormente, nos
espacio de la representación, se contemplan sentimos en deuda con los planteamientos de
las nociones de campo/fuera de campo, la semiótica textual, que tratamos de com-
abierto/cerrado, interior/exterior, concreto/ plementar con la consideración de otros
abstracto, profundo/plano, habitable/no aspectos como el estudio de las condiciones
habitable por el espectador, puesta en escena. de producción (instancia autorial; contexto
En lo que se refiere al tiempo de la social, económico, político, cultural y esté-
representación, la ficha contempla la inclusión tico), la tecnología o las condiciones de
de conceptos como instantaneidad, duración, recepción de la imagen fotográfica (dónde
atemporalidad, tiempo simbólico, tiempo se exhibe la fotografía, a qué público estaba
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 153

dirigida, etc.). En la base de esta tenido lugar los días 13, 14 y 15 de octubre
aproximación se sitúa la consideración de la de este mismo año 2004 en la Facultad de
fotografía como lenguaje, desde un punto de Ciencias Humanas y Sociales de la
vista más operativo que ontológico, claro está Universidad Jaume I de Castellón19. Desde
(Eco; Zunzunegui). No podemos olvidar, sin entonces ya está operativo el sitio web con
embargo, que la actividad analítica es la base de datos en soporte hipermedia
también, en ocasiones, una oportunidad para (www.analisisfotografia.uji.es) que, espera-
desplegar la creatividad de un análisis, para mos, sea examinada (y criticada) con
aprender a sentir y comprender dónde radica atención por los especialistas en la materia.
la fuerza y la capacidad de comunicación (de Hasta este momento han hecho uso de la
fruición con el espectador) de la fotografía. página (entre el 18 de octubre y el 22 de
En suma, el análisis de una imagen fotográ- noviembre de 2004, unos 50.000
fica puede ser asimismo una fuente de placer. internautas). El sitio web ofrece además 900
Como investigadores de la comunicación fotografías con su ficha técnica cada una,
con un afán por aplicar el máximo rigor y que sirven de ejemplos, además de 30
honestidad posible a nuestra investigación fotografías analizadas siguiendo los 61 items
(rigor científico, no “rigor mortis”), será que propone la metodología de análisis.
necesario explicitar los presupuestos Queremos finalizar nuestra exposición
epistemológicos de partida en nuestra haciendo una constatación que, a estas al-
propuesta analítica. Es por ello que la base turas, puede parecer una obviedad. El intento
de datos, en formato de sitio web, debe de justificación de la propuesta de trabajo
incluir un glosario completo en el que se ha exigido por nuestra parte una revisión de
expliquen cada uno de los conceptos que las diferentes perspectivas de trabajo en la
aparecen en los diferentes niveles propuestos aproximación al estudio de la naturaleza de
para el análisis. Este particular diccionario la imagen fotográfica. De alguna manera, la
(o “idiolecto”) que estamos construyendo es, herramienta digital – el soporte hipermedia-
a su vez, un nuevo metalenguaje que dará ha quedado con nuestras palabras bastante
cuenta de las principales fuentes ensombrecido por la complejidad que encierra
documentales y estudios científicos el propio examen del problema conceptual
empleados para el establecimiento de los que supone tratar de dilucidar esta cuestión,
diferentes sentidos de los términos utiliza- así como el de la naturaleza de la actividad
dos. Un glosario que, estamos seguros, no analítica. Y es que tras una época en la que
estará exento de elementos polémicos. En las herramientas de trabajo para el estudio
este sentido, para propiciar el debate y la de la comunicación han sido más protago-
discusión científica, se ha organizado la nistas incluso que los propios discursos
celebración de un congreso monográfico que comunicativos, es momento de comenzar a
lleva por título “Congreso de Teoría y utilizar esas nuevas herramientas y no perder
Técnica de los Medios Audiovisuales”, en de vista adónde debe dirigirse nuestra
cuya primera edición el tema elegido es “El atención: qué, cómo y porqué comunica la
análisis de la imagen fotográfica”, que ha imagen fotográfica.
154 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

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referencialidad” en ¿Por qué fotografiar? 1
Universidad Jaume I. Castellón (España).
Escritos de circunstancias 1982-1994, 2
El presente proyecto de investigación está
Murcia, Ediciones Mestizo, 1995. financiado por la Convocatoria de Proyectos de
Lacan, Ernest, Esquissses Investigación BANCAJA-UJI de la Universidad
photographiques. A propos de l’exposition Jaume I, código I201-2001, dirigido por el Dr.
universelle et de la guerre d’orient, Paris, Rafael López Lita. Los firmantes de la presente
comunicación forman parte del Grupo de
Ed. Jean Michel Place, Colection Investigación “ITACA-UJI” (Investigación en
Resurgences, 1986 (1ª Edición: 1856). Tecnologías Aplicadas a la Comunicación
Ledo Andion, Margarita, Audiovisual), bajo la coordinación del Dr. Javier
Documentalismo fotográfico contemporáneo. Marzal Felici. El resultado de la investigación se
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 155

puede consultar en el sitio web representación a la recepción, Barcelona, Paidós,


www.analisisfotografia.uji.es, donde se presenta la 1986 (1ª Edición: 1983). LAGUILLO, Manolo,
totalidad de la investigación ya concluida. “El problema de la referencialidad” en ¿Por qué
3
No es que existan pocos libros sobre fotografiar? Escritos de circunstancias 1982-
fotografía, ya que si contabilizamos los estudios 1994, Murcia, Ediciones Mestizo, 1995.
históricos y los catálogos que se publican en todo DAMISCH, Hubert, “Cinq notes pour une
el mundo, se trata de un campo muy prolífico. phénoménologie de l’image photographique” en
Sin embargo, el número de ensayos sobre la L’Arc (La Photographie), Aix-en-Provence, 1963.
naturaleza de la imagen fotográfica es bastante BOURDIEU, Pierre, Un art moyen. Essai sur
reducido, sobre todo si lo comparamos con los les usages sociaux de la photographie, Paris,
numerosos estudios que existen en los campos de Minuit, 1965. SONTAG, Susan, Sobre la
la teoría del cine o de la televisión. fotografía, Barcelona, Edhasa, 1981 (1ª Edición:
4
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orientación semiótica, Bettetini se desmarca de la precaria. Del dispositivo fotográfico. Madrid:
semiótica más positivista cuando afirma la Cátedra, 1990 (1ª Edición: 1987).
13
necesidad de compatibilizar esta perspectiva con BARTHES, Roland, “El mensaje fotográ-
el análisis histórico. BETTETINI, Gianfranco, fico” en Lo obvio y lo obtuso. Imágenes, gestos,
Producción significante y puesta en escena, voces, Barcelona, Paidós, 1992 (1ª Edición 1961).
Barcelona, Gustavo Gili, 1977. BARTHES, Roland, La cámara lúcida. Nota sobre
5
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8
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1990 (1ª Edición: 1966). LEDO ANDION, 19
La dirección de la página web del congreso
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Edicións Xerais de Galicia, 1995. DUBOIS, siguiente dirección de correo electrónico:
Philippe, El acto fotográfico. De la congrefoto@uji.es.
156 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 157

La fotografía como interfaz cinematográfico:


importancia de la luz en el discurso cinematográfico
José Manuel Susperregui1

Las investigaciones sobre cine suelen estar mas, que debe poder reconocer el
dirigidos principalmente al análisis del emisor receptor puesto que, de otro modo, el
y del receptor cinematográfico, intercambio comunicativo no se
investigaciones que analizan la obra del realizaría. Así, el sentido es el resul-
director por un lado y por otro las reacciones tado de una cointencionalidad”.
del público, produciéndose un salto para ir
de un extremo al otro de este proceso de Evidentemente el lugar de configuración
comunicación. del discurso cinematográfico es el estudio o
Sin embargo, la pantalla cinematográfica el escenario natural elegido para el rodaje
es el interfaz cinematográfico, el punto de de la escena. Charaudeau también hace una
encuentro a través del cual se comunican los referencia a las formas reconocibles,
extremos antes mencionados, es decir, el condición imprescindible para la
director de la película y su público. La comunicación, en este caso, cinematográfica.
pantalla cinematográfica está plena de luces Y, precisamente, el director de fotografía es
variadas y cambiantes cuya importancia el que va a dar forma a las ideas contenidas
cultural y artística destaca Arneheim (1979: en el guión a través de la cámara cinema-
335): tográfica y de la modelación de la luz,
elemento principal de la configuración de la
“En condiciones culturales especiales imagen.
la luz entra en la escena del arte como Aplicando el análisis de Charaudeau sobre
agente activo, y sólo de nuestra época el lugar de construcción del discurso también
se puede decir que haya engendrado se puede afirmar que el lugar de lectura del
experimentos artísticos dedicados ex- discurso, en este caso cinematográfico, es la
clusivamente al juego de la luz sala cinematográfica a través del espectador,
incorporeizada”. cuyo papel lo define Aumont (1992: 95 : 102),
cuando dice:
Quien llena de contenido la pantalla
cinematográfica es el director de fotografía “El papel del espectador es un papel
que resuelve tanto los problemas técnicos extremadamente activo: construcción
como la interpretación visual, siguiendo las visual del reconocimiento, activación
pautas marcadas por el director cinematográ- de los esquemas de la rememoración
fico. En la pantalla de cine se materializa y ensamblaje de uno y otra con vistas
la transmisión de la luz, que es la materia a la construcción de una visión
prima de la visualización de la película y coherente del conjunto de la imagen:
que requiere de un control de la misma para es él quien hace la imagen. La ilusión
poder cumplir con el proyecto del director, sólo se producirá si produce un efecto
a través del discurso cinematográfico, que de verosimilitud: dicho de otro modo,
como dice Charaudeau (2003: 25) todo si ofrece una interpretación plausible
discurso sirve para el intercambio comuni- (más plausible que otras) de la escena
cativo: vista.”

“El lugar de construcción del discur- La naturaleza de la luz


so es el lugar en el que todo discurso
se configura. El sentido que resulta La luz, generalmente, se suele definir
de dicha configuración depende de la como una energía que tiene una gran
estructuración particular de esas for- velocidad de transmisión y se le considera
158 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

como perteneciente a la física, pero la luz natural que llega al mundo en estado salvaje,
también tiene unas implicaciones culturales que se refleja dando imagen al mundo pero
importantes, sobre todo en el arte. Pero lo de manera ininteligible y cargada de misterio.
que más nos interesa de la luz es, precisa- La segunda, la luz connotada es la luz
mente, el hecho de que puede ser interpretable intervenida y en cierto grado domesticada,
a pesar de que el sol brille por igual. Si la es la luz producida tanto desde el punto de
luz fuera solamente una cuestión física vista tecnológico como cultural y, por lo tanto,
podríamos afirmar que todas las películas es la luz libre que está a disposición de
tienen la misma luz, afirmación falsa porque cualquiera, pero principalmente del artista.
la experiencia nos demuestra que a lo largo En el caso que nos ocupa, la luz connotada
de la historia del cine ha habido una evolución es la luz que puede estar bajo el control del
en el tratamiento de la luz y en el uso que director de fotografía.
se ha hecho de ella para adaptarla a las Llegados a este punto hay que diferen-
exigencias del guión y de los gustos del ciar dos conceptos tal y como lo he mani-
director. festado en otras ocasiones (Susperregui: 2001)
El director austriaco Josef Von Sternberg : la luz y la iluminación. El concepto de la
(1956: 7) que se distinguió por la atmósfera luz se refiere fundamentalmente a la energía
de sus películas como consecuencia de una necesaria para que pueda producirse la
iluminación cuidada, entendió perfectamente imagen cinematográfica, y el concepto de la
la naturaleza de la luz: iluminación está ligado a todas aquellas
intervenciones que se realizan para que la
“Toda luz parte de un punto en el cual luz se ajuste a las necesidades de la película.
está su mayor brillo y se pierde en Esta diferenciación entre luz e iluminación
una dirección hasta que pierde toda puede que no sea necesaria cuando el direc-
su fuerza. El trayecto de los rayos de tor de fotografía hace uso directamente de
este foco central hacia las tinieblas la luz natural. En esta circunstancia el di-
es la dramática aventura de la luz. La rector de fotografía sólo tiene la opción de
oscuridad es misterio y la luz claridad. espera para que en un momento concreto la
La oscuridad tapa, la luz revela (sa- luz natural coincida con la luz deseada para
ber que revelar, que tapar, y en alguna la película.
medida, todo el trabajo del artista Los conceptos de luz denotada y
tiende hacia esta fórmula). Toda luz connotada así como los de luz e iluminación
aporta su sombra, y cuando nosotros explican por qué existen diferencias en los
vemos una sombra, nosotros sabemos resultados visuales obtenidos entre los dis-
que debe haber una luz”. tintos directores de fotografía, diferencias que
pertenecen mayormente a la luz connotada
La luz en cuanto a su capacidad comu- por ser más versátil, más manipulable y, por
nicativa ha sido valorada por varios autores lo tanto, que se presta más a la interpretación.
entre los que cabe destacar Christian Metz
(1973). Este autor diferencia entre la Discurso de la luz
denotación y la connotación de la luz,
atribuyendo el significante de la denotación La imagen visual de toda producción
al tipo de película y a los efectos de la cinematográfica depende fundamentalmente
iluminación, es decir, la mera reproducción de dos elementos: la cámara y la luz. En
mecánica de la realidad que está frente a la cuanto a la importancia de un elemento en
cámara, mientras que el significado de la relación al otro, se puede considerar que la
denotación es la escena representada; en cámara es un elemento que mantiene unas
cuanto a la connotación determina que el constantes que son importantes como, por
estilo del rodaje es su significante. ejemplo, la cadencia de imágenes o velocidad
La valoración que hace Revault (2003) y la entrada de luz en su interior, dependiendo
es la clasificación de la naturaleza de luz: de la mayor o menor intensidad luminosa de
luz denotada y luz connotada. La primera, la escena, y poco más. La luz, sin embargo,
la luz denotada es la luz sin codificar, la luz da más juego y ha conocido más cambios
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 159

durante la historia del cine por lo que el concretos sobre la relación entre el teatro y
desarrollo de la fotografía cinematográfica el cine, las influencias del primero sobre el
está más ligado a las aportaciones segundo son más amplias porque se extienden
tecnológicas de los focos de luz que a la a otros elementos importantes presentes en
cámara cinematográfica en sí. En esta cualquier película, como son la interpretación,
comparación no se ha incluido a las la decoración y la iluminación, por ejemplo.
emulsiones fotográficas que merecen un Para cuando se inventó el cine el teatro
tratamiento aparte. como arte milenario ya tenía bastante
La importancia de la luz es total, hasta experiencia con la luz artificial, es decir, con
el punto de que podemos afirmar que la luz la iluminación. En un principio fueron las
es el comienzo de todo, no solamente cuando velas, las lámparas de aceite y, más tarde,
nos referimos al cine. No en vano el prin- las lámparas de gas las fuentes de luz que
cipio de la creación se explica en la Biblia se utilizaron para los escenarios de los te-
con la creación de la luz el primer día de atros. La luz eléctrica supuso una aportación
los siete que Dios tardó en crear el mundo importante para las escenografías teatrales,
entero. creando otro tipo de relación entre los ac-
Para explicar el cine no podemos tores y los objetos presentes en la decoración,
olvidarnos de otras experiencias anteriores y poniendo en entredicho una serie de
como, por ejemplo, el teatro. Las primeras convenciones. Pero curiosamente algunas de
películas consistían en colocar una cámara las convenciones del teatro fueron adoptadas
delante de un escenario y filmar en un plano por el cine y hoy en día algunas de ellas
fijo y general, cubriendo el marco del se mantienen. En el teatro victoriano, tanto
escenario en su integridad, como describe si la iluminación era de gas o de electricidad,
Gubern ( 1971 : 54) en relación a las primeras las comedias eran brillantes, más luminosas
películas del gran Méliès: que los dramas. El día se escenificaba con
luces cálidas y la noche en azul, siguiendo
“Sus películas suelen estar divididas los parámetros del teatro naturalista, y el
en “cuadros” o “escenas” que, con- romanticismo se recreaba a media luz, como
cebidas de acuerdo con los cánones en el crepúsculo.
del arte teatral, hacen progresar la Estas convenciones teatrales referidas a
narración. De este modo la cámara la diferenciación entre comedia y drama
tomavistas se limita a ser un aparato siguen vigentes en las actuales producciones
inmóvil que reproduce fotográfica- cinematográficas, igualmente la
mente lo que ocurre sobre el representación de la luz en un espacio
escenario”. envuelto por una luz azul se puede seguir
observando en el cine moderno. El director
Como ejemplo de esta relación entre el de fotografía luso Eduardo Serra (Ettedgui:
teatro y el cine valga la producción del propio 1999: 177) así lo manifiesta:
Mèliés sobre el cantante Paulus para la
promoción de un café-concierto parisino. “En el mundo de la cinematografía
Cuando se iba a iniciar el rodaje el cantante hay muchas reglas y conocimientos
se negó a actuar al aire libre y puso como heredados. Por ejemplo, a mí me
condición el escenario de un teatro para rodar enseñaron que si se rueda de noche
su actuación. La elección de Mèliés de un en exteriores, hay que utilizar una luz
espacio abierto para tomar las imágenes del azul desde atrás”.
cantante Paulus estaba condicionada por la
luz, mejor dicho, a la cantidad de luz tan También lo hace el director de fotografía
necesaria para impresionar aquellas primeras italiano Vittorio Storaro (Shaefer: 1990 : 195):
emulsiones tan poco sensibles. Mèliés tuvo
que colocar treinta lámparas de arco en el “Todas las secuencias nocturnas de El
teatro Robert Houdin, convirtiéndose también conformista son azules. Por aquel
en un pionero de la iluminación cinemato- entonces yo no sabía muy bien por
gráfica. Pero además de estos ejemplos qué escogía precisamente el azul;
160 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

simplemente sentía que era lo indi- buenas condiciones climáticas que


cado. Más tarde comprendí el símbo- garantizaban el sol prácticamente durante todo
lo intelectual que implica el azul. el año, además de los recursos paisajísticos.
Cuando estábamos preparando El En la luz está el origen de Hollywood y la
último tango en París, por primera vez luz natural está muy presente en las primeras
fui a París en invierno y vi todas las producciones de Hollywood, donde se
luces encendidas. La luz natural era construyeron los primeros estudios con techo
tan tenue que la ciudad tenía de cristal para obtener la energía luminosa.
encendida la luz artificial. El conflicto Estas construcciones traslúcidas que en un
entre estas dos energías (natural y ar- principio parecían la solución al problema
tificial), me dio la idea de las distin- de la luz no tuvieron en cuenta el movimiento
tas longitudes de onda, las distintas del sol, cuyo efecto inmediato era el cambio
temperaturas de color que pueden de posición de este foco natural y, por lo
representarse, los diferentes colores tanto, la falta de control de la luz. El concepto
que pueden darse”. de raccord también es aplicable a la luz,
porque los planos de una escena tienen que
En realidad esta convención de represen- mantener la direccionalidad de las luces y
tar la noche en clave azul no se sabe muy de las sombras para que el espectador acepte
bien a que obedece. Vittorio Storaro atribuye con naturalidad las imágenes de la pantalla.
al significado que el psicoanálisis atribuye Con estos primeros estudios de techos
al color azul, pero en mi opinión esta traslúcidos resultaba difícil mantener el
convención creo que obedece a razones más raccord de luces por lo que fueron equipa-
relacionadas con la naturaleza, más concre- dos con fuentes de luz artificial, y los techos
tamente con el claro de luna que puede cubiertos o pintados de negro. Fue un cam-
iluminar la noche hasta producir sombras pero bio importante porque supuso volver a
con una luz fría, azul. criterios lumínicos más propios del arte
dramático.
El recorrido de la luz: expresionismo, star En Alemania, donde mayor auge conoció
system, nouvelle vague el movimiento expresionista, tanto los arqui-
tectos, pintores, escritores y dramaturgos se
En el transcurso de la historia del cine sintieron poderosamente atraídos por el cine
se pueden observar los cambios que se han y su importancia social. Con el cine se
producido en la luz de las películas. Estos rompían las distancias entre las elites
cambios han estado motivados tanto por los vanguardistas y la cultura popular. Como un
avances tecnológicos como por motivos clásico de la iluminación cinematográfica se
meramente artísticos, es decir, de considera la luz del cine expresionista que
representación. Las películas actuales nada tiene un objetivo principal, manifestar su
tienen que ver con las primeras experiencias presencia en vez de ocultarla. En comparación
cinematográficas de los pioneros que estaban con otros estilos de iluminación más discre-
muy limitados por las emulsiones poco tos, donde la luz es un complemento de la
sensibles y por la inmovilidad de la cámara. narración, en el expresionismo la presencia
El cine siempre ha dependido de la luz y de la luz es manifiesta y provocadora,
esta dependencia la ha ido superando de recurriendo a su antítesis, a la sombra, y
diversas formas, bien buscándola en la generando un dramatismo fácilmente
naturaleza, bien creándola en el estudio o bien detectable.
mezclando ambas luces. Si bien toda luz puede provocar su
Entre los pioneros norteamericanos caben sombra, en función de su dirección, ésta a
destacar los independientes, que huyendo de su vez provoca el contraste, entendido este
la guerra de patentes de Edison buscaron concepto como la diferencia entre la parte
refugio en California donde Francis Boggs más luminosa y más oscura. En el
había rodado algunos exteriores de su pelí- expresionismo alemán la relación entre som-
cula The Count of Montecristo en 1907. La bra y contraste no es tan directa, en algunos
elección de Boggs se debía sobre todo a las casos más bien provocada, para incluir a la
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 161

sombra directamente en la narración visual. una escena nocturna y en tono cálido cuando
El icono de la fotografía del cine expresionista se trata de un interior. También recurre con
alemán es la sombra de Nosferatu cuando frecuencia al viñeteado de la imagen cuando
sube las escaleras antes de entrar en la casa la cámara toma la perspectiva de alguno de
de Ellen. Esta sombra junto a la de la los actores, es decir, el viñeteado es una
barandilla es claramente una metonimia de alusión directa a la mirada de los actores.
la luz, porque tanto Nosferatu como la Este recurso potencia los centros de interés
barandilla de la escalera se representan con de la imagen en la pantalla.
la proyección de sus sombras sobre la pared Si el concepto de expresionismo se uti-
diáfana de la escalera. liza para denominar aquellas obras artísticas
Este icono simboliza a la fotografía en las que predomina el sentimiento sobre
expresionista pero de manera exagerada, el pensamiento, con el fin de expresar las
porque las sombras tan presentes en estas emociones, Nosferatu entra dentro de los
películas no están tan acentuadas como en cánones del expresionismo. La noche es el
esta escena de Nosferatu, guardando una ambiente natural del vampiro, es la vida, y
relación más directa con el contraste de la la luz, por el contrario, es la muerte para
imagen. Nosferatu.
La primera película alemana que se La última película considerada como
incluye en el movimiento expresionista es El expresionista es Metrópolis del director Fritz
gabinete del Doctor Caligari de Robert Wiene Lang y fotografiada por Karl Freund y
y Willy Hameister como director de Günther Rittau, producida en 1926. Se trata
fotografía, producida en 1919. En esta pe- de la adaptación de la novela de Thea Von
lícula ya se manifiestan algunos rasgos Harbou, esposa del director. Algunos
estéticos del expresionismo, donde la consideran esta película como la primera obra
subjetividad está presente también a través cinematográfica futurista, en tanto que sitúa
de la imagen en su afán de descubrir la parte la acción en el año 2000. Sus exteriores están
oculta a través de la realidad distorsionada inspirados en Nueva York, más concretamente
por medio de efectos ópticos y también en la arquitectura de Manhattan con sus altos
lumínicos. Arquitecturas irregulares, decora- rascacielos. La virtuosidad de la fotografía
dos pintados, rostros caracterizados con un de esta película se debe en muchos casos a
fuerte maquillaje e iluminados sobre fondos los trucos empleados para construir espacios
oscuros. En esta película la estética depende inexistentes. Los exteriores urbanos, es decir,
más de las influencias del teatro, a través metropolitanos, realmente son dibujos con un
de los decorados pintados, que de los efectos gradiente de tonos desde el negro hasta un
producidos por la luz y su sombra. gris medio, adquiriendo una densidad sufi-
Nosferatu, Eine Symphonie des Grauens, ciente para ocultar su textura original. La luz
conocida de forma abreviada como Nosferatu, de los proyectores que iluminan con dina-
película dirigida en 1922 por Firedrich W. mismo las fachadas de los rascacielos, en
Murnau y fotografiada por Fritz Arno Wagner realidad, son efectos de animación realiza-
y Günter Krampf, está basada en la novela dos con las técnicas aprendidas en el viaje
Drácula de Bram Stoker. En esta película que Lang hizo a Hollywood. Una técnica
la luz es un elemento fundamental en la laboriosa pero con unos resultados excelen-
propia historia que narra, por la fotofobia del tes.
vampiro Nosferatu que le impide tener Las sobreimpresiones fotográficas que el
contacto con la luz natural. En el rótulo final, propio Lang hizo sobre unos anuncios de neón
en alusión a la luz, se puede leer lo siguiente: en Manhattan también fueron una referencia
Los rayos victoriosos del sol llenos de vida importante para la estética de esta película.
disiparon las sombras del pájaro de mal Algunas escenas están fotografiadas con esta
agüero. técnica de exposición múltiple, es decir, el
En esta película un color primario, unas mismo trozo de película se exponía varias
veces azul y otras veces en un tono cálido, veces en diferentes tomas, en vez de
trata de situar la escena en relación a la luz, superponer varios negativos en el laboratorio
manifestándose en azul cuando se trata de durante el positivado.
162 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Metrópolis representa una síntesis de la mente al actor o actriz principal, que a su


imagen expresionista con una estética más vez se expone a un contraluz para resaltar
refinada y con una fotografía que reproduce el relieve y despegarlo del fondo. La luz
a los espacios y a los actores con mucho ambiente es la luz genérica que está desti-
detalle. La fotografía de Metrópolis no se nada a iluminar el espacio y los decorados.
limita a registrar la escena sino que, con la La jerarquización se establece en función
ayuda de Günther Rittau, se crearon imágenes de las intensidades de cada luz, es decir, en
inexistentes como el robot mecánico, que fue la iluminación tipo star system los actores
el resultado de treinta exposiciones diferen- reciben el doble de cantidad de luz que los
tes del mismo negativo. En esta película la decorados por lo que sus rostros siguen
luz tiene una doble función, como marcando la atención de los espectadores. La
reproductora de los actores y escenarios y, jerarquización también requiere en algunos
también, como creadora de nuevas imágenes casos una iluminación independiente para el
que se revelan después de una acumulación actor, rompiendo la lógica conjunta de la luz
de luces dentro de la cámara oscura. en ese espacio.
Contrariamente a la luz expresionista que Como respuesta a este tipo de iluminación
iluminaba los espacios y principalmente los condicionada por los intereses productivos más
decorados, es decir, sin privilegiar a los que por los artísticos, el incipiente cine europeo
actores, la industria norteamericana y más de los años cincuenta resuelve la iluminación
concretamente Hollywood desarrolló su con fórmulas sencillas y con equipos ligeros,
propia iluminación en función de los actores más concretamente el movimiento francés
estrella. El star system, concepto por el que denominado Nouvelle Vague. Este método de
la industria hollywoodense magnifica a los trabajo está muy relacionado con los reporteros
actores por encima del director, desarrolla un cinematográficos que utilizan la luz por
sistema de iluminación que establece una necesidad, para poder filmar en lugares con
jerarquía de visualización en la pantalla. La poca luz, y de manera sencilla.
luz marca los centros de atención en cualquier La Nouvelle Vague es un movimiento que
representación, bien sea un cuadro pictórico se posiciona en contra del cinéma de qualité
o una pantalla cinematográfica. Esto quiere basado en el realismo psicológico. François
decir que sobre todo en el cine, debido a Truffaut lidera esta “nueva ola”
la oscuridad de la sala, la atención del posicionándose a favor de la liberación del
espectador se dirige automáticamente hacia cine de la literatura. El cine francés era un
las zonas que tienen más cantidad de luz, cine de guionistas más que de realizadores
por lo que la iluminación puede ser un recurso por lo que la Nouvelle Vague hace suyo el
para potenciar lo que el director quiere manifiesto de Alexander Astruc de la cámera
resaltar. En el star system los actores son el stylo que propone convertir el lenguaje ci-
centro de atención en base a la iluminación nematográfico en un lenguaje tan flexible
como lo manifiesta Revault (2003: 60): como el lenguaje escrito.
La luz de la Nouvelle Vague se ha definido
“La estrella recibe su propia como una luz uniforme, neutra y sin drama,
iluminación, brilla en la cumbre de debido a su aparente sencillez, pero para
la pirámide de actores, a su vez Revault (2003 : 70) la luz de la “nueva ola”
erguida por encima de los cimientos francesa obedece a otros criterios:
de los decorados”.
“Más que a la mera luz de acuario
Es lo que este autor, en otras palabras, a la que se ha querido reducir la luz
llama la jerarquización de la luz de la Nouvelle Vague, lo que la
hollywoodense que resuelve la iluminación caracteriza es el rechazo de la
en función de una fórmula que se repite en multiplicidad clásica y muy poco
la mayoría de sus producciones. Esta realista de los efectos y, por
iluminación está compuesta por tres tipos de consiguiente, de las fuentes, apenas
luces: principal, contraluz y ambiente. La luz legitimables y apenas legitimadas
principal es la que está dirigida principal- frente a la imagen”.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 163

El director de fotografía más represen- ambientaciones en el trabajo de un director


tativo de la “nueva ola” francesa es Raoul de fotografía, requiere de cierta perspectiva
Coutard que estuvo de reportero en la guerra para ir destacando las aportaciones más
de Indochina. Esta experiencia profesional le importantes de los últimos años.
sirvió para liberar la cámara y agilizar sus Cuando se les pide la opinión sobre sus
movimientos llevándola al hombro si fuera trabajos a los directores de fotografía,
necesario, adaptándose con gran naturalidad generalmente, suelen coincidir en la necesidad
a las necesidades del guión. Coutar de adaptación de su trabajo a las necesidades
acostumbra a trabajar estrechamente con el del director. No apuestan por la primacía de
equipo, discutiendo los planos y llegando a sus trabajos en una película porque consideran
un consenso con el director. Para este direc- que están al servicio del director. Sirvan como
tor de fotografía (Ettedgui: 1999: 63) su referencia las siguientes palabras del director
trabajo estaba condicionado por lo siguiente: de fotografía Luis Cuadrado (Cuadrado: 1978:
9):
“Los principales ingredientes del cine
Nouvelle Vague son un trabajo de “Pienso que en el cine la fotografía
cámara fluido, espontáneo y el uso de tiene que ser tan realista que el es-
iluminación rebotada. La movilidad de pectador crea que es real, a fin de
la cámara, el impulso del director, las luego poder deformarla lo suficiente
limitaciones presupuestarias, el poco para que sirva al drama de la película
tiempo y la baja sensibilidad de la sin que el espectador sea consciente
película imponían la iluminación de que está falseada. Se trata de una
ambiental simple y flexible”. fotografía aparentemente realista, pero
expresionizada para darle la mayor
A este director de fotografía se le atribuye eficacia dramática”.
la innovación de la luz rebotada. Este tipo
de luz consiste en proyectar focos de poca Conclusiones
potencia en los techos blancos de los
escenarios naturales, generalmente aparta- Como conclusión principal está la
mentos de paredes blancas, de manera que importancia de la luz en la visualización de
las sombras casi desaparecían de la escena. toda producción cinematográfica. Entre los
Esta técnica, la luz rebotada, no fue dos tipos de luz, denotada y connotada,
consecuencia de una estética determinada sino siguiendo la clasificación de Revault, existe
el resultado de unas condiciones de trabajo una clara diferencia en cuanto a la
que exigía la adaptación a las condiciones importancia de cada una de ellas, ofreciendo
de bajo presupuesto de la producción. la luz connotada una mayor capacidad de
La definición de la fotografía cinemato- intervención y de interpretación por parte del
gráfica moderna es difícil porque las influ- director de fotografía porque puede estar bajo
encias y transversalidades del cine, con la su control. Esta luz, la luz connotada, es la
televisión y la publicidad preferentemente, que mejor marca las diferencias entre los
junto al eclecticismo que imponen los dife- distintos estilos de luz que el cine ha conocido
rentes guiones con sus diferentes a través de su evolución.
164 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

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FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 165

O herói solitário e o herói vilão - Dois paradigmas


de anti-herói, em filmes portugueses de 2003
Leonor Areal1

1. Introdução de Tomaz da Palma Bravo, deste modo


enunciado como figura principal da história.
O herói – figura protagonista de uma Na sua caracterização psicológica e social,
história – é usualmente o pilar principal da este herói representa uma mentalidade - uma
narrativa cinematográfica e é ele que asse- ideologia - dita “marialva”, marcada por uma
gura uma determinada perspectiva sobre o atitude de prepotência a vários níveis: pela
universo diegético - sendo que, frequentemen- arrogância de classe, típica de aristocratas
te, este contexto ficcionado é uma mimesis rurais habituados a uma relação quase
do mundo real e reflecte moral ou ideolo- esclavagista com os seus criados; por um
gicamente a sociedade que retrata. abuso de poder em relação às mulheres,
Ao contrário do modelo de herói clás- particularmente a esposa e as prostitutas; e
sico, que demonstra o seu carácter íntegro pelo uso da força e da violência como modo
e benévolo arrostando as adversidades com de afirmação individual. Estes traços, redun-
que o destino o põe à prova, o herói pós- dantemente expostos no filme, constituem-
romântico e moderno assume as suas fraque- se como uma isotopia clara de um certo
zas e vive em conflito interior e em crise fascismo interiorizado, que, na sua distância
de relação com o meio social, sendo por isso histórica e cultural, se apresenta como um
designado de anti-herói.2 Se o primeiro tende retrato crítico da sociedade daquele época.
para o ideal, o segundo é mais realista e Ou seja, este herói, embora apresentado pela
promove uma reflexão sobre problemas seus voz de um narrador homodiegético, o escri-
contemporâneos. tor seu amigo (circunspecto, no filme, ao
Nos sete filmes portugueses de 2003, que contrário do que acontece no livro, onde a
aqui são comparados, a relação problemática sua voz é dominante), e caracterizado direc-
destes heróis com a sociedade define-se ora tamente através das suas próprias palavras,
por uma reacção ensimesmada ou derrotista, é, apesar deste método de construção da
ora pela adopção de modelos de dominação personagem, visto indirectamente (i.e. atra-
masculina. São estes dois pólos de identi- vés dos seus actos) como um herói negativo
dade que aqui analisamos, partindo da de- – repressivo e violento - que, a uma distância
finição de cada personagem-herói, para, de cerca de 40 anos, é inevitavelmente
através dos pontos de vista que elas demons- julgado à luz de outros conceitos morais.
tram, inferir modelos de comportamento. Como é que se introduz, então, no retrato
do herói, essa cisão, que nos permite compre-
2. O herói vilão ender melhor a sua psicologia, mas rejeitá-
la moral e culturalmente? Ao contrário do
Um primeiro grupo de três filmes - cujos romance, onde a personagem do narrador é
heróis se afirmam dentro de um paradigma de sobressaliente e surge como voz principal,
violência - inclui O Delfim, Os Imortais e O no filme, o narrador-amigo tem como função
Fascínio, filmes cujas épocas ficcionais se ouvir os comentários do mundo exterior
situam, respectivamente, nos anos 60, 80 e 2000. acerca da vida social e familiar do herói,
representando assim o ponto de vista do
2.1. O Delfim, de Fernando Lopes3 observador com alguma distância. Mas não
é com o olhar do narrador que somos le-
O Delfim, título do filme (e do romance vados a identificarmo-nos, nem a estratégia
de José Cardoso Pires em que se baseia), é discursiva usada nos conduz a isso: poucas
também o epíteto que designa a personagem são as situações em que o narrador participa
166 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

do universo íntimo do herói, que nos é dado timento de grupo e para planear e praticar
a conhecer na ausência daquele. assaltos, sem outra motivação que não a de
Da análise do filme, verificamos que a dar corpo a uma necessidade de “acção” que
segunda personagem mais presente ao lado depois de acabada a guerra colonial deixara
do “herói” é sua mulher, Maria das Mercês, de ter razões para existir. Eles representam
que ele trata com desprezo e violência os traumas de uma época e uma geração,
psicológica. E é o olhar dela que acaba por historicamente situada ainda na época a que
se impor como ponto de vista dominante, mas se refere O Delfim, mas arrastada como uma
silencioso quase - porque poucas são as maldição e uma culpa, até duas décadas mais
palavras por ela proferidas que o denunciam tarde. E, embora o tema da guerra apenas
(a confissão ao padre, uma conversa telefó- fosse aflorado em O Delfim, não será errado
nica) - e evidente nas suas acções ‘comple- encontrar neste paradigma de violência uma
mentares’ (quando o marido está ausente) que genealogia directa entre os dois filmes,
um supra-narrador omnisciente nos faz se- confirmada pela prepotência que, em Os
guir, até à intimidade do seu desejo sexual Imortais, é dirigida às figuras femininas,
solitário. É ainda, por contraponto com o nomeadamente: a esposa e as prostitutas.
ponto de vista da mulher rejeitada (até no Apenas não estamos já situados na mesma
anseio de maternidade que a atormenta), que época, mas o retrato destas personagens é
equacionamos as opções do marido, quando semelhante e até mais violento na sua ex-
o acompanhamos em viagens nocturnas a pressão: pela coisificação das mulheres, pela
bares de prostituição, ou mesmo quando ele violência repetidamente exercida sobre elas
descobre morto na sua cama o criado que e associada a uma dominação sexual, e pela
dormira com sua mulher. morte ou assassinato. (Embora a época seja
Em síntese, poderemos dizer que o ponto outra, o que se nota na presença de outras
de vista dominante, inicialmente pertencente tipologias de mulher: as lésbicas e a mulher-
ao herói, sofre uma translação para o da coadjuvante, arquétipo protector do herói
mulher solitária e mal-amada, cuja infideli- Inspector.)
dade o nosso olhar observa e compreende Neste panorama, precisamos indagar qual
com a distância de outra época. a perspectiva do herói sobre o mundo que
o cerca, já que, envolvido involuntariamente
2.2. Os Imortais, de António Pedro Vas- neste caso, é ele que seguimos na sua in-
concelos4 vestigação. Constatando aqui a sua assimi-
lação do arquimodelo (que tantos livros e
O herói deste filme é um inspector de filmes policiais têm alimentado) do detective
polícia que, a poucos dias da reforma, se vê cool habituado à violência e apanhado por
envolvido num caso policial, que ele vai tentar acaso na rede de um crime, apercebemo-nos
solucionar, motivado por uma competição também de que este herói procura para si
silenciosa com o seu detestado sucessor, ou uma vida sossegada (com a sua companhei-
talvez pelo desejo de resolver um último caso, ra) e alheia à violência policial – mas tão
ou ainda compelido pela casualidade de haver absurdamente alheio, que, no fim de contas,
pessoas suas conhecidas envolvidas; mas não fosse ele ter interferido na rede dos
desresponsabilizado das consequências legais criminosos, não se teriam dado
da sua investigação. Este quadro motivacional presumivelmente os crimes que depois su-
oferece-nos uma personagem suficientemen- cedem. Para anti-herói basta, mas é curioso
te complexa para se constituir como herói, que esta personagem nunca formule ou sugira
mas também uma personagem cheia de con- o arrependimento que, no mínimo, uma
tradições, algumas das quais só relevadas após interferência dessas deveria suscitar - que ele
uma análise da estrutura da intriga. saia com ligeireza de uma sequência de
Os Imortais - que dão o nome ao filme crimes que, embora sem intenção, ele desen-
e que, por meio da indagação do Comissário, cadeou... De qualquer modo, é claro que ele
se tornam seu tema principal - são um grupo representa o contraponto (em conjunto com
de antigos combatentes de guerra que peri- três personagens femininas: a namorada, a
odicamente se juntam para reactivar o sen- filha e a sua amante, também esposa do vilão
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 167

da história) a esse universo de violência que acaba por sofrer uma espécie de metamor-
aqui tomamos como paradigmático da nossa fose de carácter que o leva a cometer brutais
análise. assassinatos. Que o ponto de vista dominante
Assim, se, como atrás disse, indagarmos coincide com o desta personagem é evidente,
o ponto de vista do herói e a sua presença no facto de acompanharmos sempre as suas
na história, acabamos por constatar que, não acções e deslocações. (Ainda que em dois
apenas ele chega (obviamente) geralmente ou três momentos, a focalização incida sobre
tarde ao local do crime, como que não é outras personagens, estas paralepses são
através dele que nos é dado desvendar ou excepção.) Sendo assim, será importante, para
perceber os actos cometidos. Ou seja, o nosso percebermos a evolução da personagem-herói,
ponto de vista sobre os acontecimentos analisarmos os seus motivos, expressos ou
narrados acompanha só em parte o conhe- sugeridos.
cimento que ele tem dos factos, e focaliza- Inicialmente, Lino Ferreira é apresentado
se nas acções do grupo dos Imortais, nome- como um empresário em stress e com pro-
adamente através da personagem Vítor Pra- blemas conjugais, que afoga as suas mágoas
tas - que inicia e conclui o relato em narração no uísque, sob o olhar complacente do filho
off, aqui mero dispositivo formal – mas e da mulher. Ao revisitar a quinta que herda
sobretudo na de Roberto Alua, que acom- de seu avô, onde já não ia há muito tempo,
panhamos detalhadamente e que se salienta descobre fotografias e memórias de uma
pela atenção que a narrativa lhe confere. Esta bisavó aí assassinada pelo marido ciumento,
observação leva-nos a identificar nele um que na época da guerra civil de Espanha (cuja
segundo herói desta história – o herói vilão fronteira atravessa a propriedade) mandara
– cujo olhar se torna dominante; e ainda uma executar – melhor, degolara – dezenas de
terceira heroína-mártir, Madeleine Durand, operários republicanos. Este crime em larga
que é assassinada pelos Imortais. escala acaba por intrigá-lo obsessivamente e
A demonstração frequente de actos de leva-o a beber solitariamente, para desanu-
violência reforça a presença do ponto de vista viar do pânico, também estimulado por
deste herói masculino, em relação ao qual intrusos malévolos que fazem passar-se por
não é fácil uma distanciação (fosse ela fantasmas, no intuito de o obrigarem a vender
reflexiva, espacial, temporal ou outra), pois, a quinta. E assim o herói caminha suave-
como testemunhas, somos obrigados a par- mente para a loucura (mesmo quando já conta
ticipar desses actos. com o apoio familiar de filho e mulher, antes
Em síntese, verificamos que a persona- indiferentes.)
gem cujo ponto de vista está mais presente– É então que se desencadeiam uma série
– e que assume, na última parte, uma voz de crimes, cujo móbil nunca chega a ser
de segundo narrador dos factos ocorridos esclarecido. Primeiro, é assassinada, durante
(através da cassete audio que envia ao ins- o sono, a prostituta com quem o herói dormia
pector, explicando o caso que este não soube (e cuja fisionomia é igual à da avó assas-
desvendar) - é a do herói-vilão, agressivo e sinada). Ao acordar e vendo-a degolada, Lino
machista; que, apesar de tudo, tem a opor- perde a cabeça e decide encobrir o crime
tunidade de (nos) explicar que os seus actos que não cometera (atirando o cadáver ao
são consequência do condicionamento que poço). Quem o cometeu, não saberemos, mas
sofreu, como militar, para não sentir com- na lógica do que antecede, parece ser uma
paixão, revelando-se assim como a única manobra de intimidação para o fazer aban-
personagem com o privilégio da expressão donar a quinta. Depois, procurado por um
de pensamentos íntimos. Após o que se amigo da prostituta que está intrigado com
suicida, redimindo-se. o seu desaparecimento, Lino (assumindo
talvez a culpa de ter encoberto o crime) acaba
2.3. O Fascínio, de José Fonseca e Costa5 por assassinar brutalmente o homem – de-
golando-o e atirando de novo ao poço, com
O herói deste filme é um ‘pacato cida- a conivência incondicional de seu filho, que
dão’ que, ao herdar uma quinta e fascinado lemos como uma atitude de solidariedade
pela evocação dos seus fantasmas de família, familiar. Na ausência de qualquer inquirição
168 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

policial (pelo contrário, há a presença vaga- impunidade destes crimes, que espera de nós
mente ameaçadora de um inspector de po- uma aceitação visual e moral do crime,
lícia corrupto, possível cúmplice do primeiro encarado com banalidade e plena auto-jus-
assassinato), o herói safa-se para a Argentina tificação. (O contrário do que acontece nos
(na companhia de uma rapariga da quinta) filmes anteriores, onde os crimes são suge-
depois de ter presumivelmente assassinado ridos, mas não vistos em ferida aberta).
a sua esposa, em circunstâncias a que não
assistimos nem compreendemos. Da Argen- 3. O herói solitário
tina, já não louco, mas apaixonado, escreve
a seu filho (sucessor da empresa paterna), Um segundo grupo de filmes convoca
que também não denuncia qualquer incómo- heróis solitários que, defendendo-se de um
do em relação à morte da mãe – outro mistério mundo exterior inóspito, optam pelo silên-
por resolver. Em suma, vários crimes são cio. Este paradigma de herói passivo é o
cometidos, e não saberemos por que acon- oposto do outro tipo de herói activo, que reage
teceram, quem os executou ou que conse- agressiva e violentamente contra um mundo
quências tiveram, uma vez que o herói e seu de aparência pacífica. Diante desta polarida-
coadjuvante sucessório retomam a vida pacata de, será interessante perceber os motivos
do dia-a-dia como se nada tivesse aconte- conducentes a atitude tão diferente.
cido.
Segundo declarações do autor do filme, 3.1. Xavier, de Manuel Mozos6
está nele contida uma crítica à impunidade
geral dos crimes em Portugal. Mas não é esse Xavier cresceu num orfanato e não voltou
o ponto de vista que ressalta da análise a ver a mãe por impedimento do padrinho,
detalhada da obra, por onde nenhuma forma que mais tarde se mostra arrependido de o
de condenação dos actos criminosos ou da ter feito. Não sabemos bem o que sente
inépcia judicial perpassa. Não se trata de Xavier, pois ele não o verbaliza, mas vemos
exigir ou esperar que seja enunciado algum que se preocupa com a mãe doente e a visita
juízo moral (eventualmente redundante, vis- em hospícios e lares, encontros em que o
to que o crime, por definição, é crime, e por mutismo de ambos parece sinal de grande
isso não precisa de ser moralizado). O que dor calada. A somar ao sustento da mãe, pesa
importa aqui é analisar o discurso fílmico sobre ele uma pena judicial a pagar por um
em termos do ponto de vista da sua assalto (mal sucedido) do qual não parece
enunciação. ter culpa, o que obriga Xavier a procurar
Como vimos, a narração segue de perto, trabalhos diversos. Rodeado de pequeninos
em focalização externa semi-subjectiva, a trapaceiros – o patrão, o melhor amigo, etc.
personagem-herói, e faz-nos participar da sua - o nosso herói sobrevive à corrosão do meio,
vivência (só até ao ponto em que ele desa- mantendo-se sempre honesto, trabalhador e
parece e ficamos sem saber quando ou por gentil. Protectores não lhe faltam – o padri-
que terá matado a esposa). Participamos nho, a sorridente madre-superiora do conven-
também integralmente dos crimes, já que to (onde crescera), os amigos e duas amigas
somos obrigados a ver algumas vezes as que, apesar de terem namorados, lhe dirigem
gargantas das vítimas a serem degoladas, o um afecto especial. Mas a sua grande pre-
sangue a jorrar, os gritos e as pancadas – ocupação é a mãe, cuja indiferença ele
tudo com um hiperrealismo que chega a ser aguenta - até que ela se suicida, despoletando
sádico. Esta violência não é sequer mode- nele uma reacção analogamente desesperada
rada por qualquer atitude de repugnância, (a corrida de automóvel alucinada). Decide
censura, arrependimento ou outra, seja da então desaparecer, mudar de terra, e - como
parte das personagens ou do ponto de vista não consegue alistar-se numa legião estran-
do enunciador. Tudo acontece com a maior geira - arranja trabalho numa bomba de
das simplicidades, como se fosse comum – gasolina, onde, anos mais tarde, é encontra-
e torna-se comum no filme. do pela ex-madre-superiora, entretanto tor-
É assim que podemos afirmar que há uma nada laica, e que, já sem o optimismo de
enunciação conivente com a crueldade e a antigamente, o aconselha a voltar para Lis-
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 169

boa – onde ele vai reencontrar os amigos, namorado possessivo mas infiel, e dirige a
excepto Hipólito, seu melhor amigo, entre- Xavier um afecto constante; a madre-supe-
tanto preso. riora do convento, figura maternal e protec-
A narração da história acompanha, em tora, que, no final, abandona o hábito reli-
todos as cenas do filme, a personagem gioso para começar uma vida conjugal noutra
principal e o seu quotidiano, mas sem que terra. Em suma, personagens em trânsito, sem
esta opção narrativa se cole demasiado in- raízes, sem vínculos e sem futuro definido,
timamente ao herói, já que não existem cenas espelhos do próprio Xavier.
em que o protagonista se encontre sozinho; O filme acaba quase como começara, com
ele está sempre em relação com os outros. Xavier à janela do comboio apanhando vento
Esta estratégia de focalização externa, em- na cara, como um viajante perdido e, no
bora centrada exclusivamente nesta persona- entanto, esperançoso. A apatia, que nos guiou
gem, cria um efeito de identificação com o na viagem deste filme, explicou-se e nada
ponto de vista de Xavier, mas não nos oferece mais haverá a contar, senão que a vida
um olhar subjectivado sobre a personagem prossegue igual, triste mas resignadamente,
nem o acesso à sua psicologia íntima, sendo sem remédio e sem culpa.
poucas as palavras proferidas em que ele diz
o que pensa ou sente – o seu melhor amigo, 3.2. Quaresma, de José Álvaro Morais7
aliás, acusa-o disso; pelo contrário, apenas
conhecemos as suas reacções às circunstân- O herói de Quaresma é tão silencioso
cias exteriores e os diálogos breves que como Xavier, mas não amargurado. O filme
mantém com amigos e conhecidos; ou seja, começa com o funeral do avô de David, que
uma atitude e uma determinada visão do por esta razão retorna à casa de família na
mundo. província, onde vai reencontrar muitos pa-
Desta perspectiva, conhecemos um grupo rentes, de entre os quais surge, como factor
de jovens ocupando o dia-a-dia em activi- de perturbação, a figura da prima Ana, cuja
dades comuns – trabalho, café, festas, pas- personalidade inquieta e sedutora acaba por
seios, aulas, transportes – que se sucedem atrair o herói - e se afirma como condutora
com relativa indiferenciação, como um da narrativa, ocupando um papel de verda-
quotidiano arrastado e povoado de pequenas deira protagonista da história, ao lado da qual
resistências às dificuldades e tristezas da vida David apenas é um apaixonado passivo,
- entre as quais a de Xavier e sua mãe se através de cujos olhos nos interessamos por
destaca como central. A cumplicidade criada esta figura feminina excêntrica e pulsional.
com o herói permite-nos compreender que O olhar silencioso de David – que a
o seu silêncio é uma forma de calar o câmara acompanha preferencialmente – pouco
sofrimento e a injustiça de que foi vítima nos explica da sua relação com o mundo dos
desde criança e que não conseguiu remediar outros – o de Ana, marido, pai e amigos -
pelo reatar da relação com seu padrinho e, cujo clima emocional contrasta com a apa-
depois, com sua mãe, em insucesso total. rente calma e estabilidade da vida familiar
As restantes personagens deambulando na e profissional de David (uma mulher e uma
trama desta história, os amigos de Xavier, filha a quem se mostra dedicado, um curso
são também mais ou menos órfãos: Hipólito, que o leva à Dinamarca). Esse silêncio é uma
amigo desde o orfanato, mas cujas circuns- forma de receptividade e a expressão de uma
tâncias de vida ignoramos, protege genero- paixão subterrânea por Ana, que ele apoia
samente, como quem perfilha, um rapaz incondicionalmente, recebendo-a até, na sua
adolescente fugido de casa; contra o seu casa na Dinamarca, para ajudar a que ela cure
desejo, Rosa, a namorada, opta por fazer um a depressão.
aborto, sem grandes remorsos, mas projec- Mas o silêncio que rodeia David é ainda
tando ao longo do filme uma outra forma o silêncio de Ana e de todas as demais
de abandono, que acaba por a aproximar personagens, que quase nada exprimem do
amorosamente de Xavier; a filha do padri- que sentem, nem mesmo quando se dá um
nho (pai severo), órfã de mãe a custo acei- homicídio (acidental ou não, não o sabere-
tando a madrasta, também é abandonada pelo mos, pois que não será verbalizado por
170 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

nenhuma personagem - senão pelo choro ou lado no largo da aldeia. A população, atónita,
pelo silêncio pesado); silêncio que é preen- tece conjecturas sobre a personagem do herói,
chido pela sugestão da ventania e o som da cuja alma (ainda presa ao corpo) comenta
música. em voz off a situação e nos faz reviver (em
Quando Ana se acolhe em casa de David, flashback) a sua história pessoal. Como a
sua mulher e filha, na Dinamarca, procuran- GNR não aparece para retirar o corpo, a
do saída para a sua angústia crescente, não situação torna-se cada vez mais chocante e
sabemos se isso tem relação directa com o revelam-se os vários conflitos entre os al-
crime referido, ou se é apenas consequência deãos – a discriminação dos ciganos, ou a
de um alheamento do mundo social que a iminência de serem cercados pelas águas da
personagem já trazia, e que a levara a ser barragem em construção, por exemplo –
“internada”, como referem os familiares em dramas colectivos que o herói incorporara
conversa. De tal modo o silêncio e a solidão profundamente como uma desadaptação à
cercam as personagens desta história – como realidade e um alheamento ostensivo dos
uma penitência que justificará o título de demais (usando permanentemente ausculta-
Quaresma – que podemos dizer ser esse o dores, principalmente nas horas de trabalho
seu tema: a expiação resignada dos pecados no café).
(para sermos fiéis à semântica religiosa). Ao revivermos cenas do passado de
Apesar do tom muito emocional que toda a Adriano, ficamos a conhecer o conflito que
acção desenvolve, David mantém-se sereno tinha com o pai, homem autoritário e vio-
e seguro, apenas cedendo na atenção cari- lento, exigindo do filho que o seguisse como
nhosa que dirige a Ana e que sua mulher agricultor, e recusando a evidência de que
ressente, mas ele não confirma. a era da agricultura acabara e que as águas
Na verdade, a única personagem que cobririam a maior parte das terras de cultivo.
consegue quebrar esse silêncio (fúnebre, É o fim de todo este mundo que Adriano
diríamos, já que se arrasta desde o funeral não consegue suportar, refugiando-se junto
da primeira cena) é Ana, com as suas ati- do rio na companhia da namorada cúmplice,
tudes exaltadas que irrompem como um a quem ele diz que “não se pode viver com
desequilíbrio tresloucado no meio das outras um homem que traz o suicídio na lapela”.
personagens, caladas, reprimidas (penitentes) É que já sua mãe se suicidara, e depois o
mas em relação a Ana condescendentes. Mas, pai morrera de colapso, numa encenação de
na segunda parte da história (após a morte teimosia a que assistimos, e culpabilizando
do primo) Ana como que se assume agente Adriano por isso.
de uma expiação que agora é a sua – e não A desgraça familiar, a falta de perspec-
voltará a comunicar com os outros no seu tivas de futuro, o cerco das águas, a difi-
modo exuberante, refugiando-se isolada jun- culdade de fugir dali, o impasse do quoti-
to ao mar, cujas ondas lembram o ruído do diano – todas estas razões o levam ao sui-
vento e adensam a solidão deste filme. cídio. É através das palavras e recordações
Em suma, encontramos uma oposição do herói ou do seu amigo-protector, o dono
entre o universo que David representa (e que do café, ou ainda pelas conversas do povo
é o de toda a família), aparentemente sereno e da família, que vamos conhecendo as
mas reprimido nas suas expressões, e a respostas para este facto – que metaforica-
reacção desmesurada de Ana que surge como mente representa todo o desespero daquela
uma fuga angustiada a esse mundo, e dirigida população, actualizado através da persona-
ao refúgio nas forças da natureza – as gem mais sensível e vulnerável.
paisagens, o vento, o silêncio cósmico. A predominância da narração na primeira
pessoa do herói introduz uma focalização
3.3. O Rapaz do Trapézio Voador, de interior que nos permite descobrir as moti-
Fernando Matos Silva8 vações do seu suicídio. Mas a coexistência
de outros pontos de vista (em focalização
Também aqui a morte é o dispositivo múltipla) – os pensamentos em voz off de
narrativo que enceta o filme: Adriano, 33 Zé Lopes, o amigo, o conhecimento da
anos, enforca-se no trapézio do circo insta- intimidade de Lisete, a namorada, e de
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 171

Conceição, a tia, a verbalização dos proble- ciência de Francisco, que quer encontrar-se
mas colectivos pela população – transformam com ela à noite ou beijá-la ou saber os seus
aquela história individual num drama colec- sentimentos por ele. Combinam uma saída
tivo, que é resposta a uma realidade em nocturna, na qual Ângela, insegura, se faz
mutação, num espaço e tempo actuais acompanhar por Maria, a amiga extrovertida
(Alentejo, início do século XXI), e diagnós- e calorosa, que rapidamente conquista a
tico de uma ruptura com o passado e de uma atenção de Francisco; enquanto estes dançam
ausência de perspectivas para o futuro. divertidos, Ângela, sentindo-se excluída ou
Acaba por ser Lisete, forasteira na aldeia, ultrapassada pela amiga, acaba por ir para
quem tem a coragem de subir ao trapézio a cama com um desconhecido. No dia se-
para tirar Adriano da forca e - num acto de guinte não responde aos telefonemas de
heroísmo - libertar a “alma do morto” e Francisco, nem esclarece a zanga muda com
revelar uma força de espírito e uma vontade a amiga.
de vida que vêm substituir o malogro do Depois do acto impensado daquela noite,
herói. Ângela decide “atrever-se” mais e procura
Maria na tal discoteca onde esta também faz
3.4. Nós, de Cláudia Tomaz9 strip-tease “catártico”. Aí é seduzida a en-
tregar-se ao “prazer dos infernos” e, numa
Nós, como sugere o título, apresenta-nos mutação radical de personalidade, entra
um herói colectivo: um homem e uma mulher, mascarada na “arena” para participar numa
que se encontram para tentar vencer a so- dança sexual violenta, onde Francisco,
lidão enorme que sentem. Francisco, acaba- frequentador habitual, a reconhece, chocado.
do de sair da prisão, arranja trabalho nas obras Ele espera-a à porta e fá-la ceder a ir para
e põe um anúncio na internet, pedindo uma a cama com ele, num encontro forçado em
mulher apenas para conversar. Mas, numa que têm sexo com desprazer. Ângela sairá
contradição aparente, rejeita conversar com triste, depois de dizer que talvez devessem
a rapariga da pensão onde se alojou e que conversar, numa expectativa daquilo que
se mostra muito solícita. nunca conseguiram concretizar e que, se
Ângela tem um quotidiano solitário e presume, não farão nem esclarecerão.
raramente se encontra com o marido que Com poucos diálogos, este filme é um
trabalha de noite e chega a casa pouco antes caso de narrativa construída com base no que
dela se levantar. A única companhia que lhe é visualmente mostrado mais do que pelo que
conhecemos é uma colega de trabalho fala- é dito; o que ainda é reforçado pelo facto
dora e alegre que contrasta com a sua timi- de as verbalizações das personagens não
dez. É esta inibição que ela quer ultrapassar concordarem com os seus próprios actos,
quando decide responder ao anúncio de evidenciando as suas contradições internas.
Francisco, numa longa carta em que verbaliza Essa constatação, que é a nossa de espec-
os seus motivos e personalidade (que já com- tadores, é-nos facilitada por um ponto de vista
preendêramos visualmente). centrado, alternadamente, numa e noutra
Encontram-se então, mas quase nada têm personagem.
para dizer um ao outro. Os seus passeios Neste filme, o silêncio revela-se como
arrastam-se num encanto mudo e expectante, uma espécie de prisão, de onde as persona-
mas cujas motivações não serão as declara- gens não conseguem fugir, porque não sa-
das. É que, do nosso ponto de vista privi- bem ou não conseguem comunicar com os
legiado de espectadores, conhecemos também outros. E a forma que encontram para o fazer
as ânsias da solidão física que ambos sentem é através de um sucedâneo de discoteca
e resolvem de modo diferente: Francisco com urbana, onde se vazam os fantasmas dessa
uma prostituta e frequentando uma discoteca solidão, e onde se acentua e reafirma a mesma
de strip-tease invulgar, e Ângela masturban- solidão. O significado plural de Nós pode
do-se ao lado do marido adormecido. ainda ser ampliado a uma condição social
No entanto, Ângela, presa da sua fide- contemporânea, que a escolha dos cenários
lidade conjugal, surpreende-se com a impa- urbanos põe em evidência.
172 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

4. Conclusão plicitamente o ponto de vista do enunciador12


/ autor – aquele que ele prefere ou com o
As semelhanças, a nível da definição das qual ele se identifica.
personagens protagonistas destes sete filmes, A existência de duas tipologias de pro-
permitem-nos observar uma prevalência de tagonistas - o herói vilão, macho dominador,
dois modelos de comportamento e dois tipos e o herói solitário, ensimesmado e derrotista
de anti-herói: o que entra em conflito com - põe em evidência modelos opostos de
o mundo exterior e o pretende aniquilar; e representação de atitudes e valores. Os pri-
o que entra em conflito consigo mesmo, até meiros heróis estão contra o mundo; nos
à sua própria anulação. segundos é o mundo que está contra eles13.
No primeiro caso, são os fantasmas Uns agridem, violam, matam e esfolam. Os
pessoais (o peso do passado, dos traumas, outros sofrem e calam, geralmente resigna-
etc.) que originam uma resposta de violên- dos. Mas não coexistem os dois modelos, ou
cia, até à morte dos outros e depois de si. seja, não são uns que sofrem porque os outros
Aqui é a vingança que guia a acção. os matam. Estes heróis pertencem a univer-
A solidão, factor primordial no segundo sos totalmente diferentes, que correspondem
caso, tem como consequência o silêncio, a mundos ideológicos muito diferentes.
sintoma da incapacidade para resolver pro- Se além da análise dos pontos de vista
blemas e encarar a vida. Há uma visão (narrador, personagens e enunciador) presen-
derrotista do cerco do mundo. tes, a partir da qual podemos fazer uma
No primeiro grupo de filmes, o herói é interpretação ideológica diferenciada de cada
masculino, e os papéis complementares ten- filme, observarmos os modos/estilos de
dem a ser de mulheres dominadas, não apenas enunciação presentes em cada um destes
na intriga, mas também do ponto de vista filmes, descobrimos ainda quão diferentes são
da enunciação 10. No segundo grupo, ao as opções estéticas dos seus autores/realiza-
contrário, ainda que o protagonista declarado dores, em cada um destes dois paradigmas
seja masculino, há uma translação, em ter- fílmicos.
mos de identificação e conhecimento, para Os filmes com protagonista silencioso
outras personagens – todas elas femininas – apresentam uma narrativa construída de forma
cujo ponto de vista se torna dominante. mais visual e formalmente trabalhada. O
Apenas Nós apresenta um herói duplo, ponto de vista da enunciação opta por uma
homem e mulher, que se equiparam perfei- focalização subjectivada (interna ou externa),
tamente, no sentimento de solidão e no ponto ou seja, centrada na personagem14.
de vista da narração. Nos filmes de herói-vilão, a narrativa
Partindo da análise das personagens sustenta-se mais no diálogo, usa recursos
protagonistas e dos pontos de vista revelados estilísticos mais convencionais, e há a ten-
pelo narrador/enunciador11 em cada história, dência para o apagamento das marcas de
encontrei dois modelos que se revelam como enunciação, coincidindo com um ponto de
representações do mundo real, em termos de vista aparentemente neutro (focalização
atitudes e valores. O primeiro modelo é do zero15), que representa uma estratégia de
herói machão e violento - bastante estere- cinema de massas, traduzida em personagens
otipado, aliás. O segundo, o do herói soli- estereotipados.
tário, aparece-nos com variações, mas apre- Esta coincidência de tipologia de herói,
senta duas características comuns, nestes ponto de vista dominante e opções estéticas,
filmes: o silêncio da personagem e o seu claramente acantonadas em dois campos
desajuste profundo ao mundo. opostos, comprova, assim, uma divisão ide-
É interessante frisar como, em quase todos ológica mais profunda, que, afinal, já era
estes casos, o presumido protagonista nem quase evidente – mas com duas excepções
sempre é o herói, já que o ponto de vista importantes: O Delfim e Nós, que se tornam
predominante ou assumido é o de outra objectos de atenção especial neste conjunto.
personagem – aquela que assim podemos Em O Delfim, o ponto de vista do re-
chamar de autêntico protagonista. Por outro alizador, inicialmente associado ao protago-
lado, essa escolha derivada demonstra im- nista dominador, identifica-se depois com o
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 173

do dominado. Assim, este filme consegue Uma tal análise ideológica, embora pre-
fazer a síntese das duas tendências tenda também relevar (sintomaticamente)
verificadas, e não apenas a nível do conflito aspectos de ideologia subentendidos ou
de personagens e da focalização, mas igual- subconscientes, centra-se na intenção do
mente em termos estéticos. autor, tendo como premissa que o realizador
Em Nós, temos dois heróis, um mascu- se assume como enunciador – o narrador
lino, outro feminino, bastante equivalentes em putativo – e tem uma voz intencional e a
importância e presença, simétricos na sua responsabilidade final sobre os pontos de vista
solidão, que superam, sob forma de outra veiculados no filme, presunção que é típica
síntese, a dicotomia de género e poder que do “cinema de autor”, regime que em Por-
atravessa este conjunto de filmes16. Também tugal (ainda) vigora.
formalmente, este filme anuncia um salto para Assim, afasta-se relativamente dos estu-
outra concepção estética. dos de recepção que fazem uma leitura
Esta correlação, aqui apenas entrevista, ideológica mais ampla, sistemática e alargada
entre personagens e referentes sociais, de um a modelos sociais e processos de identifica-
lado, e aspectos de elaboração estético-formal, ção do público com as personagens. Aqui,
do outro, que se associam entre si ideologi- pelo contrário, interessa-me mais encarar a
camente, abre perspectivas para um campo de personagem como uma imagem de identifi-
análise que me interessa vir a desenvolver. cação do realizador, uma projecção sua.
174 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia André Gaudreault) como formas de mostrar (dar


a ver) a acção - porque esse nível de definição
Gardies, André (1993), Le Récit se aplica a aspectos mais concretos e pormeno-
rizados do que aqueles que neste exercício com-
Filmique. Paris: Hachette.
parativo me propus observar.
Glaudes, Pierre e Reuter, Ives (1998), Le 11
«Enunciador – uma espécie de narrador
Personnage, Paris: PUF. extradiegético e de autor implicado» (Casetti 1986
Reis, Carlos e Lopes, Ana Cristina M. citado por Robert Stam et alli, New Vocabularies
(2000), Dicionário de Narratologia, Coimbra: in Film Semiotics, London/NY, Routledge, 1992,
Almedina. p. 110).
12
Stam, Robert et alli (1992), New O enunciador, o responsável pela
Vocabularies in Film Semiotics, London/NY; enunciação/narração (cf. Genette), é também um
Routledge. “sub-narrador de primeira instância” (André
Gardies, Le Récit Filmique, Paris, Hachette, 1993,
p.21), que não coincide com o narrador diegético
(caso exista), mas com o narrador que dá voz (e
_______________________________ no cinema, imagem e acção também) à narrativa.
1
Doutoranda em Ciências da Comunicação 13
Estes heróis, construídos em cada filme
/ Cinema na FCSH-UNL. através de isotopias (reiteração de elementos se-
2
As designações convencionadas de “herói” mânticos idênticos), formam, curiosamente, uma
e “anti-herói” aplicam-se às personagens prota-
família entre eles (aliás, duas), constituindo-se como
gonistas de uma narrativa, que polarizam em torno
que uma isotopia intertextual – um paradigma, um
das suas acções as restantes personagens. «O
modelo, um estereótipo.
estatuto de anti-herói estabelece-se a partir de uma 14
Outro conceito operativo interessante é o de
desmistificação do herói (...) normalmente
polarização, que se articula com o de monstração
traduzida em termos de desqualificação.» (Carlos
e que abrange o conjunto maior de dados
Reis e Ana Cristina M. Lopes, Dicionário de
informacionais (ruído, música, palavras, texto, etc.)
Narratologia, Coimbra, Almedina, 2000, p. 35).
3 em função de três pólos de conhecimento do filme:
Co-produção Madragoa Filmes, Gemini
personagem, espectador, enunciador. (André
Films, RTP - Radiotelevisão Portuguesa. Portu-
gal, 2001, cor, 35mm, 83'. Gardies, Le Récit Filmique, Paris, Hachette, 1993,
4
Co-Produção Animatógrafo II, Samsa Films p. 107). Também neste aspecto decidi não entrar
(Luxembourg), Dan Films. Portugal, 2003, cor, em pormenores, que levariam a largas compara-
35mm, 112'. ções.
15
5
Co-Produção Madragoa Filmes, Gemini O termo “focalização zero” (Genette)
Films, Tornasol Films. Portugal, 2003, cor, 35mm, equivale a “focalização omnisciente”, designação
107'. que também utilizo. A análise da focalização pode
6
Produção Suma Filmes. Portugal, 2003, cor, ser “microscópica” ou “macroscópica”: «debru-
35mm, 95’. çando-se sobre a narrativa integral, ela preocupar-
7
Co-produção Madragoa Filmes, Gemini se-á sobretudo com as focalizações dominantes
Films, RTP - Radiotelevisão Portuguesa. Portu- (...), susceptíveis de ilustrarem vectores ideoló-
gal, 2003, cor, 35mm, 95'. gicos significativos.» (Carlos Reis e Ana Cristina
8
Co-produção Take 2000, Trafico de Ideas, M. Lopes, Dicionário de Narratologia, Coimbra,
RTP - Radiotelevisão Portuguesa. Portugal/ Almedina, 2000, p. 167).
16
Espanha, 2002, cor, 35mm, 90'. Importa lembrar que este conjunto de fil-
9
Co-produção Madragoa Filmes, Gemini mes surge constituído como uma espécie de estrato
Films, RTP - Radiotelevisão Portuguesa. Portu- cronológico (filmes de 2003), cujas continuidades
gal/França, 2003, cor, 35mm, 99' temporais e espaciais não estão equacionadas, mas
10 permitiriam fazer um bom teste a este exercício
A expressão “ponto de vista” uso-a como
equivalente a “focalização”. Optei, nesta análise, analítico. Quantos mais filmes deste ano (num total
por não aplicar a terminologia desenvolvida espe- de 21) revelam ou não semelhanças com estes?
cificamente para o cinema - que define Que outros filmes antecedentes encaixam temática
“ocularização” ou “monstração” (François Jost, e formalmente nestes paradigmas?
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 175

A percepção cromática na imagem fotográfica em


preto-e branco: uma análise em nove “eventos de cor”
Luciana Martha Silveira1

A cor participa de diversas formas na mos identificar perceptivamente, por exem-


percepção do nosso mundo físico visual. Ao plo, objetos “céu”, “montanhas com neve”,
mesmo tempo, a percepção visual é construída “árvores”, “folhagens” e “lago”, através dos
durante toda a vida de um indivíduo (Gibson, contrastes entre o branco, o preto e os
1974), sendo a cor uma das principais ca- cinzas e suas diferenças de luminosidades,
racterísticas agregadas aos objetos percebi- que possivelmente vão gerar respostas
dos, juntamente com o cheiro, o ruído, a cromáticas para estes mesmos objetos.
forma, o gosto, etc. Outros objetos também podem ser reconhe-
Por outro lado, atribuímos culturalmente cidos, tais como os que remetem a relações
a uma imagem em preto-e-branco (p/b) o temporais ou até áreas extensas uniforme-
sentido de uma imagem incolor, isto é, que mente preenchidas.
não desperta a percepção cromática. Longe As respostas cromáticas a esses estímu-
de serem imagens sem cor, as imagens em los poderão se dar de muitas maneiras. Para
p/b fazem parte do mundo físico visual como que fossem minimamente mensuradas, fo-
“chaves” na construção perceptiva cromática ram tratadas de duas maneiras principais:
de cada indivíduo, fazendo explodir cores considerando o branco, o preto e os cinzas
subjetivas e particulares. da imagem fotográfica tão cores quanto o
As discussões em torno da imagem vermelho, o verde ou o amarelo, e através
fotográfica em p/b, geralmente, se voltam aos da complementação cromática, quando o
impactos tecnológicos na produção da ima- branco, o preto e os cinzas da imagem são
gem, a comparação com a pintura, a inter- “traduções” de outras cores e por isso es-
ferência do fotógrafo e do dispositivo no timulam a produção de um intervalo cro-
processo de captura da imagem, não se mático (paleta).
detendo na sua interpretação visual cromá- Os eventos de cor são subjetivos e
tica. Por outro lado, a teoria da cor é uma abstratos, de difícil acesso objetivo para
teoria interdisciplinar, que pode ser aplicada descrições e análises, porém, eles podem
em inúmeras situações, prevendo os múlti- ser delimitados através de exemplificações
plos aspectos da percepção visual cromática. de estímulos e respostas no âmbito da per-
A correlação entre estes dois arcabouços cepção cromática, tornando-se suficiente-
teóricos proporcionou a formulação de nove mente pontuais.
“eventos de cor”. Cabe destacar que as paletas “percebi-
A partir da complexidade da percepção das” nos eventos são construídas num
visual cromática, podem ser descritas e ana- composto inconsciente, parte coletivo, parte
lisadas situações nas quais a percepção cro- individual, como mostra a teoria perceptiva
mática acontece na imagem fotográfica em de James J. Gibson (1974).
p/b (Silveira, 2002). Essas situações são de- Cada um dos nove eventos de cor é
nominadas eventos de cor, que são aconte- diferenciado através do tipo de estímulo
cimentos perceptivos cromáticos, flagrados no vindo da própria imagem e o tipo de res-
âmbito da percepção visual geral de uma posta simulada. Mesmo separados em es-
imagem fotográfica em p/b. tímulos e respostas diferenciados entre si,
Para que identifiquemos um evento de os eventos de cor não possuem limites
cor, devemos reconhecer um estímulo a visíveis, ou seja, um objeto reconhecido
partir da imagem fotográfica em p/b, capaz numa imagem fotográfica em p/b pode ser
de provocar uma possível resposta estímulo para mais de um evento simul-
perceptiva cromática no observador. Pode- taneamente.
176 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

1. Quando o branco, o preto e os cinzas visão da cor, percebem o branco e o preto


são cores através dos mesmos parâmetros pelos quais
percebem as outras cores. Os outros receptores
Considerando a percepção cromática da visuais chamados bastonetes percebem apenas
imagem fotográfica em p/b em dois momen- a ausência ou a presença da fonte de luz. Isto
tos, neste item trataremos do primeiro deles quer dizer que, fisiologicamente, o branco, o
que está relacionado à sensação cromática, preto e os cinzas são percebidos exatamente
ou seja, às impressões cromáticas físicas da nos mesmos processos pelos quais são perce-
imagem. A primeira impressão ou sensação bidos o vermelho, o azul ou o amarelo.
cromática depende da conceitualização do Outro aspecto da teoria da cor relacio-
branco, do preto e dos cinzas e suas funções nado ao status do branco, preto e cinzas são
na geração de significados, a partir das os sólidos de cor, que mostram o branco e
imagens. o preto como parâmetros importantes em sua
Tradicionalmente, através dos conceitos construção (Caivano, 1995). A maioria das
formadores da teoria da cor, principalmente tentativas de organizar as cores num modelo
em relação aos aspectos físicos, o branco, topológico pela colorimetria, parte de um eixo
o preto e os cinzas não são considerados cores principal, onde se localizam o preto e o
como as outras do espectro [Lozano, 1978], branco.
pois consideram que seja “cor” somente Através da visão dinâmica da cor, pode-
aquela que possui o que se chama matiz2. mos definir o branco, o preto e os cinzas
Por esta definição, todas as cores do espec- como cores, no mesmo status que o verme-
tro, exceto o branco, o preto e os cinzas, lho, o verde ou o azul. Contradizendo a visão
possuem matiz definida, e são por isso padronizada da teoria da cor, consideraremos
denominadas “cores”. a partir de agora que a fotografia em p/b pode
A definição de cor fundamentada na ser analisada nos mesmos parâmetros
presença ou não de um matiz, é estanque e perceptivos da fotografia em cores.
específica, não permitindo a interação com Os três primeiros eventos de cor serão
outras visões como, por exemplo, a dos apresentados a seguir fundamentando-se na
pintores. O branco, neste caso, deve ser visão dinâmica da cor, ou seja, considerando
considerado como uma reunião criativa de o branco, o preto e os cinzas como cores.
vários matizes e não como uma simples No âmbito deste conceito, cada evento de
somatória de partes. O preto, por sua vez, cor apresentará suas peculiaridades.
não é uma simples absorção de todos os
matizes, e sim também uma reunião com- 1.1 Primeiro evento de cor: contrastes e
plexa de partes. Neste contexto, podemos texturas
considerar branco e preto como possuidores
de matizes, inclusive os cinzas intermediá- O primeiro evento de cor é a percepção
rios. Escritos históricos mostram que desde de elementos componentes da imagem foto-
há muitos séculos os pintores e os profis- gráfica em p/b, através do grau de contraste
sionais que lidavam diretamente com a fa- entre o branco, o preto e os cinzas, gerando
bricação e utilização dos pigmentos e tintas a percepção da textura, que por sua vez
já tinham o branco, o preto e os cinzas no colaboram na percepção do material, do
mesmo nível das outras cores distribuídas em tamanho e da estrutura dos objetos retrata-
suas paletas. Leonardo da Vinci por exem- dos, entre outros.
plo, argumentava que o branco, preto e cinzas Algumas cores são construídas além da
também faziam parte da paleta dos pintores. sensibilização fisiológica dos cones (Lozano,
Circulando pelos ateliers, os escritos de 1978). Assim acontece com a percepção da
Leonardo ditavam a metodologia do pintar, cor metálica, da cor transparente, da cor
onde o branco, o preto e os cinzas eram tão translúcida, etc., que são percebidas em
cores como todas as outras (Carreira, 2000). interação com a percepção de texturas, atra-
Por outro lado, pensando sob aspectos vés dos contrastes.
fisiológicos da teoria da cor, segundo Pedrosa A percepção dos contrastes podem levar
(1982), os cones ópticos, responsáveis pela ao reconhecimento de objetos diversos, de
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 177

pessoas, de clima, de texturas, da com uma cor indutora, a sua cor comple-
luminosidade, entre outros componentes. A mentar influencia a percepção de todas as
semântica da cena será associada outras cores para onde se dirige o olhar e
sistemicamente a um certo critério de coe- assim sucessivamente. No caso de uma
rência, determinado a partir da noção das imagem com cores sem a presença de matizes,
diferenças entre os contrastes. mas somente de valores, as cores indutoras
Apenas com os recursos cromáticos do provocam outras cores que também apresen-
branco, do preto e dos cinzas e através dos tam somente variação de valor e não de matiz.
contrastes entre eles, torna-se evidente a A definição do fenômeno da mutação
estrutura da forma, gerando significado ra- cromática passa pela relação entre as cores
pidamente. Podemos, inclusive, perceber e o efeito provocado na percepção visual
diferentes texturas metálicas, onde percebe- humana, principalmente através dos contras-
se o mesmo material (metal) com diferen- tes entre elas. No caso da imagem fotográ-
ciações (mais escuro, mais claro, velho, novo, fica em p/b podemos perceber este fenôme-
desgastado, relevos, opacidade, brilho, etc.) no, principalmente devido aos fortes contras-
detectadas também apenas pelos contrastes tes entre essas cores, provocando o apare-
entre o branco, o preto e os cinzas dessas cimento de uma vasta gama de cinzas.
imagens, ou ainda a transparência, resultan-
do na percepção de objetos transparentes 1.3 Terceiro evento de cor: cor inexistente
como o vidro.
A percepção da textura do objeto de uma O terceiro evento de cor é fundamentado
imagem fotográfica é construída através da na teoria da cor inexistente, a qual trata das
influência mútua entre valores, que temos cores que aparecem fisicamente, baseadas na
denominado aqui de contrastes. Consegue- relatividade de absorção e reflexão, pela
se, então, perceber outras características matéria, dos raios luminosos (Lozano, 1978).
físicas de um objeto, tais como, a fragili- As áreas brancas, pretas e cinzas da
dade, a transparência ou o brilho. imagem fotográfica em p/b servem como
anteparo para a explosão de cores resultantes
1.2 Segundo evento de cor: mutações da reflexão e/ou absorção de parte da luz
cromáticas em preto-e-branco incidente. Isso acontece porque nenhum corpo
absorve ou reflete totalmente os raios lumi-
O segundo evento de cor fundamenta-se nosos. Para percebermos brancos e pretos
no conceito das mutações cromáticas, que perfeitos, os raios da fonte luminosa inciden-
ocorrem na relação entre as cores branco, preto te deveriam ser totalmente refletidos (no caso
e cinzas das imagens fotográficas em p/b. do branco) ou totalmente absorvidos (no caso
Os fenômenos das mutações cromáticas do preto). Porém, no processo de absorção
são manifestações das cores fisiológicas, que ou reflexão, há sempre a perda de raios,
acontecem devido aos contrastes simultâne- alterando o resultado perceptivo do branco,
os, sucessivos ou mistos, isto é, fenômenos do preto e dos cinzas.
onde fisiologicamente há alterações das cores Começamos a entender amplamente o
na presença de outras (Pedrosa, 1982). No fenômeno da cor inexistente com a teoria da
caso do segundo evento de cor, será eviden- visão cromática de Thomas Young, que
ciada a diversidade de cinzas que aparecem descobriu três receptores fisiológicos para o
devido aos contrastes entre o preto, o branco azul, o vermelho e o verde, que quando são
e os outros cinzas fixados na imagem. estimulados ao mesmo tempo provocam a
No segundo evento de cor chamamos as sensação do branco e quando não são esti-
cores preto, branco e cinzas - fixadas fisico- mulados, provocam a sensação do preto
quimicamente na imagem - cores indutoras, (Pedrosa, 1982). Sabemos hoje que estes
e a diversidade dos cinzas que aparecem receptores são chamados cones e que nunca
devido aos contrastes entre as cores indutoras, podem ser estimulados totalmente e ao mesmo
cores induzidas (Bouma, 1971). tempo e nem ser totalmente não estimulados
Segundo a definição de mutação cromá- ao mesmo tempo, pois não há no mundo físico
tica (Pedrosa, 1982), saturando-se a retina brancos e pretos que consigam tal estimulação
178 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

perfeita. Por isso, sempre há resíduos de cor objetos e significados cromáticos, assimila-
neste processo e é extremamente difícil, senão dos como particularidades ou como subje-
impossível, percebermos brancos, pretos ou tividades.
cinzas “perfeitos” no mundo físico real. A cor não pode ser percebida isoladamen-
As imagens fotográficas em p/b são te, de forma desvinculada dos outros parâ-
anteparos perfeitos da cor inexistente e metros perceptivos dos objetos alocados na
conseqüentemente deste terceiro evento de memória (cheiro, tamanho, textura, som,
cor. Plenas de áreas brancas, pretas e cinzas, gosto, etc.). Ela é um elemento apreendido
apresentam uma explosão de cores a partir durante toda a vida de um indivíduo e não
dos resíduos de raios luminosos incidentes, há o caminho de volta. A teoria perceptiva
os quais, por sua vez, provocam reações em de Gibson (1974) explica a percepção como
cadeia, criando ainda mais cores induzidas um composto apreendido, impossibilitando a
por contrastes. percepção das características isoladas dos
objetos. Segundo ele, apreendemos na me-
2. Quando o branco, o preto e os cinzas mória, através da percepção visual, a inter-
são mais do que cores pretação dos objetos que nos rodeiam, sem-
pre num composto de informações integra-
Trataremos aqui de outro momento na das, que são parte do repertório ao mesmo
percepção cromática, onde o branco, o preto tempo individual e coletivo, por ser também
e os cinzas que compõem as cenas, além de dependentes, além disso, de fatores culturais.
serem vistos como cores eles mesmos, tam- Pela teoria perceptiva de Gibson (1974),
bém podem ser vistos como traduções de aprendemos a “ver” os objetos com sua
outras cores. Na imagem fotográfica em p/ respectiva característica cromática, entre
b, as traduções cromáticas são percebidas outras, e por isso fica impossível separá-lo
através do reconhecimento do objeto e da de sua cor. A simples ação física da luz dentro
comparação (em nível inconsciente) da pri- dos olhos pode apenas proporcionar cores,
meira percepção visual com a interpretação mas não os objetos coloridos, que são com-
anterior deste objeto a partir da memória postos de sensações e produtos da capaci-
pessoal. Quando, através da comparação, dade visual e mental chamada percepção.
percebe-se a “falta” da cor, acontece o que A complementação cromática depende da
chamaremos aqui complementação cromática. interação entre a cor e as outras caracterís-
Delimitamos o conceito de complemen- ticas formadoras dos objetos em nossa
tação cromática como o ato perceptivo vi- memória, os chamados significados agrega-
sual individual, subjetivo, parte consciente e dos. Os integrantes do mundo visual, assim
parte inconsciente, de complementar croma- como as cores, as texturas, as formas e bordas
ticamente objetos reconhecidos em quaisquer têm significados que não se separam de suas
imagens fotográficas em p/b. Ele acontece qualidades espaciais concretas, isto é, os
porque no processo de percepção cromática objetos estão agregados a seus atributos.
há a comparação entre os objetos reconhe- No nível da percepção, ao reconhecermos
cidos nos vários tipos de imagens em p/b um objeto, por exemplo, numa imagem
e objetos guardados na memória, a partir do fotográfica em p/b, a falta da característica
vasto conjunto imagético adquirido no ato “cor” é percebida. Embora a cor não esteja
interpretativo de “ver”. Os objetos estão presente fisicamente, a percepção agrega às
alocados na memória juntamente com todos outras características do mesmo objeto seus
os seus parâmetros perceptíveis. Quando a atributos cromáticos. Sendo assim, quando
falta de um deles é detectada (no caso, a cor), reconhecemos um objeto numa imagem
acontece a sua complementação. fotográfica em p/b, este será complementado
O que nos interessa neste trabalho é o cromaticamente, segundo a determinação de
ato da complementação cromática dos objetos um intervalo cromático, a partir da compa-
reconhecidos na imagem em p/b e não a cor ração inconsciente entre objetos.
escolhida (mesmo que inconscientemente) O reconhecimento do objeto e a delimi-
para esta. Sabemos que todos os indivíduos tação de um intervalo de cor correspondente
são diferentes em respeito a correlacionar a ele são elementos obtidos através de “suges-
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 179

tões” que se encontram na própria imagem. chamar objetos fixos certos tipos específicos
Podemos mapear essas sugestões utilizando- de roupas e acessórios, ou ainda os objetos
nos dos parâmetros de análise da cor de construídos cromaticamente pela propagan-
Munsell. De acordo com Munsell (Caivano, da, como as cores agregadas aos produtos
1995), uma cor é constituída por três vari- de grandes marcas. São ainda objetos fixos,
áveis de análise: matiz, valor e croma. Dadas partes do corpo humano, como pele, cabelo,
estas três variáveis de análise, define-se um olhos, sangue, etc. Quando este tipo de objeto
intervalo de cor. Retomando suas definições: é reconhecido numa imagem fotográfica em
Matiz é a característica que diferencia uma p/b, a falta da cor é percebida e o compa-
cor da outra: o azul do amarelo, o azul do ramos inconscientemente à interpretação
vermelho, etc.; Valor é o grau de claridade anterior deste objeto, a partir da memória
ou de obscuridade contido numa cor; Croma pessoal. O matiz sugerido na comparação será
é a qualidade de saturação de cada cor que único e a complementação cromática a partir
indica seu grau de pureza. dele terá variações apenas nos eixos da
As três variáveis de análise de Munsell luminosidade (valor) ou saturação (croma),
estão presentes na própria imagem fotográ- de acordo com o que é sugerido na própria
fica em p/b e, a partir da sua junção, temos imagem.
a indicação de um intervalo cromático de- A paleta para a complementação cromá-
terminado (paleta) para a ocorrência da tica do objeto fixo se dá na junção das
complementação cromática. informações contidas nas variáveis de aná-
A variável matiz é dada pela forma do lise cromática sugeridas na imagem. Para
objeto, sugerida pelos contrastes entre o a definição de cada paleta, são apontados
branco, o preto e os cinzas da imagem. A primeiramente os objetos fixos da imagem
forma determina um tipo específico de objeto, e, posteriormente, as correspondentes vari-
que remete à interpretação a partir da me- áveis de análise cromática de Munsell que
mória e consequentemente ao seu significa- eles sugerem. Identificando estes parâmetros,
do cromático agregado. O matiz está ligado formaliza-se uma paleta para a complemen-
aos objetos na memória de cada indivíduo tação cromática dos objetos fixos.
de forma pessoal e diferenciada.
A qualidade da cor (valor e croma) é dada 2.2 Quinto evento de cor: paleta cénica
pela luminosidade dos cinzas alocados em
cada objeto da imagem, que remetem ao grau O quinto evento de cor fundamenta-se na
de claridade, obscuridade e saturação. complementação cromática de objetos reco-
nhecidos na imagem fotográfica em p/b, com
2.1 Quarto evento de cor: paleta fixa um intervalo cromático finito (paleta), defi-
nido através das variáveis de análise cromá-
Diferenciamos um evento de cor através tica de Munsell, sugeridas pela própria
do tipo de estímulo, do tipo de resposta e imagem. O matiz é dado pelo objeto reco-
a complementação cromática que se forma nhecido na imagem, que no caso da paleta
a partir da junção dos dois anteriores. Es- cênica, chamaremos objeto cênico. Tais
pecificando as variáveis de análise cromática objetos são, por exemplo, céu, mar, folha-
no quarto evento de cor, elas se originam gens, montanhas, nuvens, lagos, rios, cacho-
do reconhecimento de objetos, na imagem, eiras, prédios, monumentos, areia da praia,
que sugerem um matiz único. A paredes, assoalhos, etc.
complementação cromática no âmbito deste Quando o objeto cênico reconhecido na
evento acontecerá dentro do intervalo cro- imagem é uma “folhagem” por exemplo, cujo
mático restrito a um único matiz, variando aspecto formal e a comparação com a in-
porém, apenas na luminosidade (valor) e na terpretação anterior deste objeto, a partir da
saturação (croma). memória pessoal, determinam matizes em
Os objetos fixos são, por exemplo, objetos diferentes tonalidades de verde vizinhas no
institucionais, tais como placas de trânsito, círculo cromático, há a composição de um
semáforos, com os quais temos contato intervalo finito para a sua complementação
exaustivo no cotidiano. Também podemos cromática. Os verdes para uma folhagem
180 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

variam muito em vários aspectos. Os verdes consigo uma paleta de matizes específicas,
da Amazônia são muito diferentes dos ver- guardada na memória juntamente com outras
des da Patagônia, de modo que a percepção características. As variáveis: matiz, valor e
do objeto cênico “folhagem” devolve mati- croma sugeridas na imagem fotográfica em
zes diversos para as diversas culturas. p/b se identificam com as várias tonalidades
Através da localização das três variáveis das paletas representativas de cada época.
de análise cromática no sólido de Munsell,
vemos a formação da paleta para a 2.4. Sétimo evento de cor: paleta move-
complementação cromática do objeto cênico diça
“folhagem”, identificado o valor e o croma
com muita variação, interferindo diretamente A paleta movediça diz respeito ao ato da
na construção da paleta cênica para este percepção cromática a partir do reconheci-
objeto. mento de objetos chamados movediços. Estes
objetos não possuem formas familiares,
2.3 Sexto evento de cor: paleta temporal convencionais e não remetem a algum sig-
nificado cromático guardado na memória. Ao
O objeto que é reconhecido na imagem contrário dos outros eventos, onde o
fotográfica em p/b no sexto evento de cor “disparador” do processo (estímulo) de per-
traz componentes cromáticos temporais agre- cepção cromática é o reconhecimento de um
gados, isto é, a paleta de cores para sua determinado objeto e a comparação com a
complementação cromática é formada a partir imagem guardada anteriormente na memó-
de matizes relacionados à época em que ria, no sétimo evento de cor há o reconhe-
localizamos tal objeto. cimento de um objeto que não possui sig-
Objetos com características cromáticas nificado cromático específico agregado ou
temporais são guardados na memória, jun- ainda não se reconhece um contexto para ele.
tamente com a paleta relacionada à sua época. Haverá então a comparação entre a
Esta paleta é formada perceptivelmente, luminosidade (valor) dada pela imagem e a
através de imagens resgatadas ou forjadas do luminosidade de cada cor alocadas na me-
passado, em filmes, televisão, fotografias, mória.
artes plásticas, cor da moda, maquiagem, etc A paleta movediça é uma espécie de
(Walch & Hope, 1995). “coringa” dos eventos de cor. Todas as vezes
Chamamos o estímulo vindo da imagem que não se consegue encaixar o reconheci-
em p/b no sexto evento de cor de objeto mento de um objeto nas categorias determi-
temporal. Eles apontam para um intervalo nadas para os outros eventos, recorre-se ao
cromático relacionado à paleta de determi- procedimento de complementação cromática
nada época, o que faz o matiz dependente através da comparação entre luminosidades.
da ligação específica a uma característica No sétimo evento de cor, a construção
temporal. São exemplos deste tipo de objeto: da paleta para a complementação cromática
roupas, sapatos, acessórios e maquiagem da do objeto movediço se dará então na asso-
moda, carros, vestimentas de crianças, ciação dos cinzas da imagem, que são, na
eletrodomésticos, talheres, pratos, cafeteiras. verdade, sugestões de luminosidades, com o
O valor, o croma e o matiz estão rela- coeficiente de claridade de cada cor-pigmen-
cionados à paleta da mesma época determi- to. A maior ou menor luminosidade das cores
nada. Sendo assim, a complementação cro- é perceptível pela retina e o coeficiente de
mática no âmbito do sexto evento de cor claridade passa a ser um significado agre-
acontecerá dentro de um intervalo cromático gado. Por isso também estão alocados na
restrito a uma determinada paleta represen- memória juntamente com as cores.
tativa da época pela qual o objeto temporal Numa imagem fotográfica em p/b pode-
esteja ligado. se fazer uma associação de luminosidades
A cor é uma característica marcante de entre a variável de análise cromática “valor”
cada época e, por isso, está guardada na (dada pela imagem) e a luminosidade de cada
memória juntamente com o objeto temporal. cor-pigmento alocada na memória. Essa
O reconhecimento do objeto temporal traz luminosidade corresponde à variável de
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 181

análise cromática de Munsell “valor”. A partir varmos cores diferentes por recíproca influ-
daí, haverá a comparação entre a ência. Mais especificamente, cores comple-
luminosidade dada pelo “valor” sugerido pelo mentares aparecem no entorno da forma que
objeto movediço e a luminosidade das cores guarda a cor pela qual a retina é saturada.
na memória. Desta comparação temos a Este fenômeno acontece também a partir de
segunda e a terceira variáveis de análise cro- estímulo subjetivo. A memória, ao ser
mática, “matiz” e “croma”, possibilitando acionada na construção de paletas para a
assim a formação da paleta para a complementação cromática, estimula a retina
complementação deste objeto movediço. e provoca o fenômeno dos contrastes simul-
tâneos. O oitavo evento de cor é a ocorrência
2.5. Oitavo evento de cor: contraste simul- do fenômeno do contraste simultâneo das
tâneo cores por estímulo subjetivo, a partir dos
objetos reconhecidos e complementados
O oitavo e nono eventos de cor são os cromaticamente nas imagens fotográficas em
efeitos do estímulo fisiológico subjetivo, a p/b.
partir da complementação cromática das
imagens fotográficas em p/b. Este tipo de 3.6. Nono evento de cor: contraste suces-
estímulo é gerado a partir de uma excitação sivo e misto
subjetiva, ou seja, a cor aparece a partir de
processos ocorridos na própria retina ou no O nono evento de cor são os contrastes
cérebro. sucessivos e mistos que ocorrem a partir de
A própria complementação cromática, por uma imagem fotográfica em p/b, onde ocor-
sua vez, pode também ser considerada como reu a formação da paleta para o processo de
uma excitação subjetiva à percepção cromá- complementação cromática do objeto.
tica. O processo de complementar uma Michel-Eugène Chevreul definiu o con-
imagem fotográfica em p/b através do reco- traste sucessivo e misto das cores como sendo
nhecimento de objetos e comparação com as os fenômenos percebidos a partir da satura-
suas respectivas interpretações anteriores é ção dos olhos pela cor de um objeto durante
um tipo de excitação subjetiva à percepção algum tempo e, deslocando-se em seguida
cromática, formando a paleta de cada ima- para um anteparo, no qual aparece então a
gem. Esta paleta é, por sua vez, um tipo de imagem do objeto na sua cor complementar
estímulo fisiológico subjetivo para a ocor- (Pedrosa, 1982).
rência dos contrastes simultâneos, onde Os fenômenos do contraste sucessivo e
fundamentam-se o oitavo e o nono eventos misto acontecem também a partir de estímu-
de cor. O oitavo evento de cor são os lo subjetivo. Como vimos no oitavo evento
contrastes simultâneos que ocorrem numa de cor, a memória, ao ser acionada na
imagem fotográfica em p/b a partir da paleta construção de paletas para a complementação
formada para o processo de complementação cromática, estimula a retina e provoca o
cromática do objeto. fenômeno dos contrastes simultâneos. A partir
Porém, os contrastes simultâneos que daí, onde há o deslocamento do olhar, ocorre
ocorrem neste evento não se dão por estí- o fenômeno do contraste sucessivo. O con-
mulo objetivo, quer dizer, não há a resposta traste misto acontece quando este desvio do
fisiológica da retina em relação a uma sa- olhar se dirige para um anteparo previamen-
turação. No caso do oitavo e nono eventos te colorido.
de cor, os efeitos da saturação da retina O nono evento de cor é a ocorrência dos
também são objetos guardados na memória fenômenos dos contrastes sucessivo e misto
anteriormente, num composto com a cor das cores por estímulo subjetivo, a partir dos
indutora, e aparecem juntamente com a objetos reconhecidos e complementados
complementação cromática do objeto reco- cromaticamente nas imagens fotográficas em
nhecido na imagem. p/b. Este evento depende anteriormente da
Michel-Eugène Chevreul (Pedrosa, 1982) ocorrência do oitavo evento de cor, que por
definiu o contraste simultâneo das cores como sua vez, depende primeiramente da ocorrên-
sendo o fenômeno que se registra ao obser- cia da complementação cromática.
182 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

3. Considerações finais de contraste.


Este trabalho envolveu um estudo sobre
Este trabalho visou demonstrar que exis- a dilatação dos limites da percepção cromá-
te percepção cromática nas imagens fotográ- tica humana, que se dá também no domínio
ficas em preto-e-branco. Utilizamos resulta- do psicológico, do cultural e do social. Neste
dos intermediários vindos da correlação de sentido, os eventos de cor são elementos
conceitos da teoria da cor (branco, preto e fundadores de um novo modo de perceber
cinzas são cores e a existência da as imagens fotográficas em p/b, envolvendo
complementação cromática) para fundamen- mais a complexidade da percepção do que
tarmos a presença de nove fenômenos de a simples sensação cromática. Temos agora
percepção cromática nas imagens em preto- que considerar a imagem fotográfica “atra-
e-branco. vessada” por diversos atos de percepção
A evolução dos estudos no âmbito da cromática (os eventos de cor), que interagem
teoria da cor aponta para uma interação simultaneamente. Por isso, a observação de
perceptiva complexa, considerando a relação uma imagem fotográfica em preto-e-branco
que os indivíduos mantêm com a cor não deve ser considerada como criativa e única.
como pura observação, mas principalmente Através deste trabalho, podemos concluir
como um ato criativo. que a imagem fotográfica em p/b deve ser
O conceito de que a cor não pode ser considerada além do simples rótulo de
percebida de forma isolada do objeto imagem “sem cor”. A complexidade da
(Gibson,1974), nos levou a concluir que percepção visual cromática do ser humano
existe a complementação cromática dos atravessa a simples consideração da falta da
objetos que reconhecemos numa imagem cor numa imagem fotográfica em preto-e-
fotográfica em preto-e-branco, no sentido de, branco e mostra as possibilidades da
perceptivelmente, não conseguirmos isolá-lo complementação cromática dos seus objetos,
da sua cor. quando reconhecidos e comparados às infor-
Quando uma fotografia em p/b é obser- mações anteriormente retidas na memória. A
vada, as texturas e formas dos objetos tor- cor não pertence fisicamente ao objeto, mas
nam-se “chaves” perceptivas para a memória pertence perceptivamente e culturalmente a
da sua cor. Entendendo o processo de este objeto. Por isso, ao reconhecermos um
complementação cromática, podemos concluir objeto numa imagem fotográfica em preto-
também que as cores complementadas na e-branco, vamos complementá-lo com a cor
imagem são mais luminosas do que as cores perceptiva e cultural, a partir da sua presença
do mundo físico real, pois se tratam de cores física.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 183

Bibliografia Silveira, L. M. A Percepção da Cor na


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Pedrosa, I. Da Cor a Cor Inexistente. camente, corresponde ao comprimento de onda
Brasília: UnB, 1982. de cada uma das cores do espectro.
184 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 185

O filme documentário em debate:


John Grierson e o movimento documentarista britânico
Manuela Penafria1

“Documentary is a clumsy description, Na edição de 8 de Fevereiro de 1926 de


but let it stand.” (John Grierson, “First The New York Sun, John Grierson (1898-
Principles of documentary”, 1932-34) 1972), fundador do movimento documen-
tarista britânico dos anos 30, publicou um
Este texto foi construído tendo em conta texto sobre o filme Moana (1926), de Robert
a nossa experiência pessoal enquanto espec- Flaherty intitulado “Flarhety’s Poetic Moana”.
tadores de cinema. Corremos o risco de esta Foi neste texto que, pela primeira vez, usou
ser apenas uma abordagem limitada. Mas, este o termo “documentário”:
risco pode, também, ser uma vantagem, pois
tratando-se de uma experiência pessoal “Of course Moana, being a visual
podemos partilhá-la e discuti-la. account of events in the daily life of
O visionamento de filmes, sejam eles a Polynesian youth and his family, has
documentário, ficção, animação, experimen- documentary value.” (Grierson,
tal ou outra, lançam sobre nós uma pertur- 1926:25)
bação: surpreendem-nos pela sua semelhan-
ça com o mundo em que vivemos e o Esse valor documental resulta da relação
que a imagem estabelece com o que tem
enquadramento, composição e articulação
existência fora dela. “Documentário” é aqui
entre as imagens faz parte de um outro
usado enquanto adjectivo, só mais tarde, foi
mundo, o mundo do cinema. Entendemos pois
utilizado enquanto nome.2 Logo a seguir
que o cinema não é “uma janela aberta” para
Grierson escreve:
o mundo. Esta posição não é tanto um
descrédito sobre as imagens, mas uma sus-
“But that, I believe, is secondary to
peita saudável que não impede as ligações its value as a soft breath from a sunlit
possíveis entre esses dois mundos. island washed by a marvelous sea as
O filme documentário é o objecto de warm as the balmy air.“Moana is first
estudo que nos ocupa. Ao longo deste texto of all beautiful as nature is beautiful.
não pretendemos discutir as suas diferentes (…) And, therefore, I think Moana
definições, nem propor nenhuma nova de- achieves greatness primarily through
finição. Pretendemos provar que propor uma its poetic feeling for natural elements.”
definição para o filme documentário é pensá- (ibid.)
lo enquanto género e esta classificação de
género é uma abordagem que é necessário Para Grierson, Moana não é apenas um
ultrapassar. Assim, a questão essencial que registo ou uma descrição da vida de uma
nos preocupa é o modo como podemos pensar família polinésia. Esse seu “valor documen-
o filme documentário. Que lugar ocupa no tal” ou (dizemos nós) o “valor fotográfico”
cinema? Ou, onde o podemos colocar dentro é secundário em relação à sua poética, à sua
do vasto conjunto de filmes e de diferentes capacidade em transmitir a beleza e harmo-
concepções de cinema? Entendemos que o nia da relação que o homem estabelece com
documentário não é tanto um género, mas a natureza circundante. Essa sua capacidade
mais um projecto de cinema. Os filmes que só é possível pelo manuseamento das téc-
se designam de documentário conterão em nicas cinematográficas:
si um projecto de cinema que permite pensá-
los em relação aos restantes filmes e em “Moana, which was photographed
relação ao mundo em que vivemos. over a period of some twenty months,
186 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

reveals a far greater mastery of ci- certainly lay in sociological rather than
nema technique than Mr. Flaherty’s aesthetic aims.” (Grierson, 1937:207).
previous photoplay, Nanook of the
North. In the first place, it follows Em entrevista a Ian Aitken, Basil Wright
a better natural outline – that of (1907-1987) – um dos realizadores da Es-
Moana’s daily pursuits, which cola de Grierson - deixa clara a ideia de que
culminate in the tattooing episode, estética e educação são partes interligadas nos
and, in the second, its camera angle, filmes que faziam:
its composition, the design of almost
every scene, are superb. The new “... I don’t quite understand the
panchromatic film used gives tonal distinction you are making between
values, lights and shadings that have aesthetics and didactic films. A film
never been equaled.” (ibid.:26) must be made well in order to tell
a story or express a message, and I
Em 1922, data do filme Nanook, o es- think that the aesthetic and educational
quimó, Flaherty tinha já ido muito para além parts of the documentaries are
da mera descrição de modos de vida ou integrated. Some of the documentary
apresentação de hábitos estranhos, que eram films were more aesthetic than others,
as marcas dos “filmes de viagem”. Ao but I don’t accept the distinction you
contrário destes, Flaherty coloca a ênfase em are trying to make.” (Ian
quem é filmado mostrando que o “Eu” não Aitken,1998:246)
é assim tão diferente do “Outro”, ainda que
esse “Outro” viva num local distante e quase Para Grierson, ao contrário de Flaherty,
inacessível. O “Outro” é apresentado na sua o documentário deve abordar os problemas
condição condição humana, condição que é sociais e económicos e a solução para esses
a mesma do “Eu”. mesmos problemas. Embora admirador de
Ainda a propósito de Moana escreve Flaherty, Grierson questiona os seus filmes
Grierson: por não apresentarem soluções para os pro-
blemas dos povos que filma. Grierson en-
“And if we regard the tatooing as a controu no documentário princípios que lhe
cruel procedure to which the permitiram explorá-lo como instrumento de
Polynesians subject their young men utilidade pública.
– before they may take their place No texto “First principles of documentary”,
beside manhood – let us reflect that a partir de onde se tornou famosa a definição
perhaps it summons a bravery that is de documentário como o “tratamento criativo
healthful for the race.” (ibid.:26) da realidade”4 pode ler-se:

A capacidade fotográfica do medium é, “First Principles. (1) We believe that


pois, para Grierson secundária, o que facil- the cinema’s capacity for getting
mente se percebe se tivermos em conta o around, for observing and selecting
trabalho que desenvolveu nas diferentes Film from life itself, can be exploited in
Units.3 Grierson colocou a estética ao ser- a new and vital art form. The studio
viço de uma educação nacional, o seu in- films largely ignore this possibility of
teresse era o papel que o cinema podia de- opening up the screen on the real
sempenhar na sociedade: world. They photograph acted stories
against artificial backgrounds.
“It is worth recalling that the British Documentary would photograph the
documentary group began not so much living scene and the living story. (2)
in affection for film per se as in We believe that the original (or native)
affection for national education. If I actor, and the original (or native)
am to be counted as the founder and scene, are better guides to a screen
leader of the movement, its origins interpretation of the modern world.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 187

They give cinema a greater fund of te ao documentário e ao filme de estúdio:


material. They give it power over a “(…) the young director cannot, in nature,
million and one images. They give it go documentary and go studio both.”
power of interpretation over more (Grierson,1932:147) E, como já vimos acima
complex and astonishing happenings (com Basil Wright), o documentarista tem a
in the real world than the studio mind possibilidade – à semelhança dos filmes de
can conjure or the studio mechanician estúdio (de ficção) – de exercer um trabalho
recreate. (3) We believe that the criativo, ainda que ligado a um tom didác-
materials and the stories thus taken tico.
from the raw can be finer (more real Drifters (1929), que julgamos ser o único
in the philosophic sense) than the filme realizado e montado por Grierson - a
acted article. Spontaneous gesture has partir dessa data foi sempre produtor - tem
a special value on the screen. Cinema como tema a pesca do arenque no Mar do
has a sensational capacity for Norte. Uma pequena vila em Shetlands é o
enhancing the movement which local de onde as suas personagens partem para
tradition has formed or time worn a pesca. Não podemos dizer que se trata de
smooth. Its arbitrary rectangle um filme apenas sobre os pescadores, o seu
specially reveals movement; it gives trabalho é, também, um filme sobre o mar.
it maximum pattern in space and time. Neste filme que podemos dividir em 3 partes
Add to this that documentary can (ou sequências): partida para o mar; pesca
achieve an intimacy of knowledge and e tempestade no mar; regresso e venda do
effect impossible to the shimsham peixe, a maior parte dos seus planos são
mechanics of the studio, and the lily- grandes planos ou planos aproximados, esta
fingered interpretations of the intimididade com o trabalho dos pescadores
metropolitan actors. (…).” (Grierson, (apenas alguns planos de rosto surgem em
1932:146-7). todo o filme, em especial quando se apro-
xima a tempestade e na venda de peixe) não
O documentário assume-se não apenas serve apenas para mostrar as dificuldades e
como uma arte nova, mas, também, vital. A a dureza da pescaria, consegue colocar o
capacidade do cinema em se movimentar e trabalho enquanto valor maior desses homens.
fazer selecções a partir da própria vida tem Depois de lançarem as redes, cai a noite. O
sido esquecida pelos estúdios; interpretar o que em muitos filmes seria a simples pas-
mundo através do ecrã só poderá ser feito sagem da noite para o dia, aqui, enquanto
a partir dos gestos do actor original ou nativo os pescadores descansam, vemos o que se
e, finalmente, as histórias desta arte nova, passa debaixo de água. Os peixes-cão e
denominada documentário, são mais reais que congros rondam as redes para caçar outros
as representadas e criadas em estúdio, pelo peixes. Ao longo desta cena, Grierson dá
que assumem um valor especial e especial destaque às redes, o recurso a um
insubstituível, intimamente ligadas que estão plano anterior é sintomático: à superfície da
com o conhecimento e capazes de provoca- água a rede tem um comprimento que se
rem um efeito que as histórias dos estúdios confunde com o próprio horizonte, as redes
nunca poderão atingir. Em suma, Grierson serão pois quase infinitas, pelo que se ga-
enfatisa a capacidade do documentário em rante boa pescaria, para além disso fomos
captar a vida mas, o que mais ressalta desses informados anteriormente que foram lançadas
seus princípios é a tónica colocada na ca- ao mar 2 milhas de rede. A sobreposição de
pacidade do documentário agir sobre a so- imagens é um recurso que se destaca. Logo
ciedade, de ser um instrumento ao serviço no início, ao sobrepor planos das máquinas
de ideais, no caso, de educação nacional numa do navio com o homem que lança carvão
Grã-Bretanha em recuperação e transforma- na fornalha, interligados com planos do navio
ção. Para que o documentário se assuma a avançar em direcção ao mar alto, fica claro
verdadeiramente como a melhor forma de que o esforço e a determinação (e o uso da
interpelar o mundo, Grierson defende que um maquinaria, da “industrialização”) conseguem
cineasta não pode dedicar-se simultaneamen- romper a força do mar. Num outro momento,
188 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

quase no final do filme é tocante a artística (“a man with artistic conscience”)
sobreposição das ondas do mar com as e intenso sentimento poético (“and an intense
pessoas que circulam no Porto de Yarmouth poetic feeling”) são, de algum modo, as
para comprar peixe. Apesar da força das características que Grierson refere como
ondas, o mercado de venda de peixe faz a necessárias para o documentarista, num dos
sua função enviando a mercadoria para o resto seus textos mais citados: “First principles of
do mundo. Uma montagem a vários ritmos documentary” (Grierson, 1932) O documen-
(planos mais longos no início e planos de tarista não deve limitar-se ao registo da vida
menor duração no momento da tempestade; das pessoas, ele é responsável pela diferença
muito em consonância com o ritmo da entre os “filmes de actualidade” (e outras
montagem soviética dos anos 20) e inter- formas que utilizam o registo in loco), e o
títulos5 que informam sobre a pesca em curso filme documentário, este será um filme
salientando os principais momentos desse superior. Os outros filmes são apenas um
trabalho ou pormenores relacionados com a relato de acontecimentos; ao documentário
pesca (por exemplo, após o inter-título 12 (e documentarista) compete ser mais que isso,
- nota de rodapé 4 - surge um plano em que compete-lhe fazer um “tratamento criativo da
a linha da rede balança à superfície da água realidade”, o que em Grierson é o mesmo
serpenteando o seu caminho em direcção ao que construir um filme apresentando deter-
horizonte), não poderão deixar o espectador minado problema e a solução governamental
indiferente. O espectador é guiado pelas para esse mesmo problema. Se necessário,
imagens e, em especial, pelos inter-títulos, esse “tratamento criativo” inclui a re-cons-
desde uma pequena vila até ao resto do trução7 de determinado acontecimento, uma
mundo. O trabalho de uma pequena vila, a vez que estava em causa um ideal maior de
pesca de arenque, é colocada numa posição educação nacional.
de superioridade ficando implícitos os bene- Em Grierson a preocupação estética ia a
fícios de ser produtora e o resto do mundo par da função social e pedagógica dos fil-
necessitar dessa sua produção. mes. A ênfase colocada na instrumentalidade
A partir desse seu filme, Grierson defendeu dos filmes cujas temáticas são os problemas
duplamente o documentário: enquanto produ- sócio-económicos da Grã-Bretanha dos anos
tor e impulsionador do chamado “movimento 30, assenta numa estética em que predomina
documentarista britânico” e através de textos a voz off e, de um ponto de vista narrativo,
em que proclamava as potencialidades do a estrutura do “problem-moment” (cada um
documentário. Com estas duas frentes, Grierson dos problemas socio-económicos é apresen-
criou um conjunto de pressupostos estáveis. tado como apenas um momento de dificul-
Ainda assim, este movimento teve o mérito de dade que será superado pela intervenção
não ter promovido um certo desleixo estético governamental permitindo que a Grã-
para daí reclamar uma maior proximidade com Bretanha regresse ao seu glorioso caminho
a realidade. em direcção ao pleno desenvolvimento).
O conjunto de normas estéticas (no caso, O movimento documentarista britânico é
nos filmes deste movimento o uso da voz um movimento coerente e consistente nas
off ou voice over é um dos recursos suas propostas onde a ideia de documentário
marcantes) tem uma ligação directa com o é inseparável da de género. A teoria de
modo como cada autor entende a função das géneros inclui nas suas definições aspectos
suas obras6. O movimento documentarista temáticos, narrativos e estéticos. O projecto
britânico pretendia registar o presente e não de Grierson não descurou nenhuma dessas
o passado e dirigir-se directamente ao espec- virtudes. A obrigatoriedade em repetir-se é
tador. A Escola de Grierson sentia que a o garante da sobrevivência de um género.
história estava a acontecer “aqui e agora” e E foi neste ponto que Grierson mais incidiu
os seus filmes faziam parte da situação social, o seu trabalho, promovendo a produção de
económica, cultural e política da época. documentários. E essa produção não podia
Por outro lado, as características que ser feita sem a definição do género que coloca
Grierson exaltou em Flaherty, no seu texto cineastas e espectadores num território di-
“Flaherty’s Poetic’Moana”: a consciência ferente do restante cinema.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 189

Grierson teve a capacidade de estabilizar analisá-lo detalhadamente. Esta últi-


um conjunto de pressupostos de produção, ma é sem dúvida a raiz da maioria
conseguiu financiamento regular para essa das utilizações de genre. É esta uti-
produção o que levou, inevitavelmente, à lização que leva, por exemplo, à noção
constituição de uma comunidade de espec- de convenções num genre. (…) falar
tadores que reconhecem e, ao mesmo tempo, de ‘Westerns’ é (definições arbitrárias
garantem a sobrevivência (a manutenção) dos à parte) apelar a um conjunto comum
filmes. Toda esta organização permite con- de significados na nossa cultura.”
siderar este período como a constituição do (Andrew Tudor, 1973:142/143).
documentário enquanto género e um período
marcante na história do filme documentário. No mínimo, para preservar a sanidade
“Genre”, palavra francesa que significa mental é necessário ultrapassar o “círculo”
“categoria”, é um termo utilizado para uma referido no texto, ou dito de outro modo,
classificação (muito eficaz) que facilita a ultrapassar o ciclo vicioso; ciclo esse que
produção, distribuição e exibição de filmes.8 implica pensar o cinema separado por gé-
Na teoria de géneros, impera mais a perma- neros. Embora os géneros não sejam um
nência de determinados pressupostos que o registo absolutamente estável, se deixarmos
carácter único dos filmes e o estilo exemplar de lado essa concepção podemos encontrar
do seu autor.9 Francesco Casetti refere un para o documentário um outro lugar dentro
“acuerdo de fondo” que une quem realiza um do cinema, liberto das amarras de pressupos-
filme e quem o contempla, o primeiro utiliza tos a seguir e de ideias dependentes de
formas comunicativas estabelecidas e, o se- financiamento. A concepção de género traz
gundo, um sistema próprio de expectativas. consigo exclusões. Uma informação relevan-
(Cf. Casetti,1993: 304). te é-nos dada na entrevista de Ian Aitken a
A constituição de qualquer género é Basil Wright quando este último se refere a
(como em Grierson) mais autoritária que Alberto Cavalcanti (1897-1982) - que rea-
libertadora, pois implica que os filmes par- lizou filmes na GPO Film Unit. Cavalcanti
tilhem características: tinha um entendimento com Grierson, no
mínimo, conturbado, em especial no que dizia
“Pegar num genre com o ‘Western’, respeito ao desenvolvimento do documen-
analisá-lo e listar as suas caracterís- tário:
ticas é supor que temos de isolar o
conjunto de filmes que são ‘Westerns’. “B.W.“– Cavalcanti believed that the
Mas eles só podem ser isolados com documentary should become more
base nas ‘características principais’ integrated into feature film, so that the
que só podem ser descobertas a partir distinction between the two became
dos próprios filmes depois de terem less clear cut. But I don’t think that
sido isolados. Isto é, estamos apanha- Grierson really understood feature
dos num círculo que exige primeiro films, and so he argued the two should
que os filmes sejam isolados, para o remain quite separate.” (Ian Aitken,
que é necessário um critério, mas por 1998:252)
sua vez supõe-se que o critério deve
emergir das características comuns dos A separação que Grierson propõe é
filmes estabelecidos empiricamente. coerente com as suas ideias. Embora reco-
Este ‘dilema empírico’ tem duas nhecesse que o termo documentário pudesse
soluções. Uma é classificar os filmes abarcar diferentes filmes10, Grierson prefere
segundo critérios escolhidos a priori separar, o que implica pensar em termos de
dependendo das finalidades críticas. géneros. Estabilizar uma praxis foi o maior
Isto leva de novo à posição anterior contributo de Grierson com a evidente van-
em que o genre especial é redundan- tagem de, também, estabilizar uma comuni-
te. A segunda é apoiar-se num con- dade de espectadores.11
senso cultural comum sobre aquilo Em Claiming the real (1995) Brian
que constitui um ‘Western’ e depois Winston critica severamente Grierson e a sua
190 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Escola. Entende que é necessário abandonar (que defende a impossibilidade do


de vez a herança griersoniana que apenas documentário ser um instrumento de conhe-
contribuiu para que o documentário fosse con- cimento da realidade) e constrói uma fun-
siderado um filme sério com responsabilida- damentação para uma teoria realista do
des sociais na educação de todos; em resu- documentário. A Semiótica de Peirce, a Teoria
mo, filmes aborrecidos que ninguém está do Umwelt de Jacob von Uexküll e a Teoria
interessado em ver. À data da sua publicação da amostragem, no âmbito da Teoria Mate-
(e talvez ainda hoje) o livro de Winston foi mática da Comunicação de Shannon e Weaver
uma “lufada de ar fresco” no estudo do são a sua base de apoio para defender que
documentário. “o documentário contribui para o conheci-
Da nossa parte, entendemos que a abor- mento da realidade, principalmente por
dagem de Grierson permite-nos concluir que abordar a Realidade através da existência
procurar ou divulgar uma definição para o concreta das coisas no mundo.” Este livro
filme documentário ou estabilizar-lhe pressu- inspira-nos a definir melhor e com clareza
postos implica entendê-lo como um género, a seguinte questão: há a possibilidade de uma
implica que perante a diversidade temática, teoria realista do cinema construída a partir
estética, narrativa (ou não-narrativa) se pro- do filme documentário?13
curem traços comuns que o demarquem da Há cada vez mais produção de filmes
restante produção de imagens em movimento. onde as convenções de género se misturam
Michael Renov (1993) considera a ten- o que remete o trabalho científico sobre o
tativa do documentário em representar a filme documentário, para uma outra questão
realidade altamente improvável, se não que não a sua definição. Definir o objecto
mesmo inviável, Renov entende o de estudo que se está a trabalhar é o primeiro
documentário como uma ficção. Por seu lado, passo de uma investigação14, mas a inves-
a definição griersoniana de documentário tigação também se faz colocando outras
(“tratamento criativo da realidade”) é con- questões. A constante interferência entre
siderada por Carl R. Plantinga (1997) dema- ficção e documentário, contrária ao desen-
siado alargada - Plantinga prefere o termo volvimento pretendido por Grierson, levanta
não-ficção; e considerada por Noël Carroll outra questão, não menos importante que a
(1997) demasiado restrita, por não incluir sua definição, a saber, que lugar ocupa o
registos como, por exemplo, o famoso documentário no cinema? Documentário e
“videotape of the Rodney King beating”12. ficção têm a mesma natureza, ambos são
O trabalho destes autores que aqui não cinema, entre eles poderá haver uma dife-
aprofundamos, mantém a postura de uma rença de grau. O estudo sobre o filme
procura da sua definição, o que implica documentário necessita de uma abordagem
separar, incluir ou excluir registos. que esclareça melhor a posição/lugar que
Em entrevista, no filme Cinema verité, ocupa no cinema, para a partir daí fazermos
Defining the moment, de Peter Wintonick investigação específica sobre determinados
(1999), Jean Rouch (1917-2004), disse ter filmes ou movimentos, que existem um pouco
visto pela primeira vez Nanook, o esquimó por todo o mundo e para os quais o registo
quando tinha 5 ou 6 anos de idade e per- da realidade – o registo in loco – é um
guntou ao seu pai se era verdade, o pai elemento aglutinador e absolutamente essen-
respondeu-lhe que sim, “mas que tinha sido cial.
representado diante de uma câmara”. Desde O que pretendemos é, então, ir além de
esse dia, percebeu a diferença entre uma história do impacto e utilidade social
documentário e ficção. Jean Rouch, entre um do cinema griersoniana; interrogar o cinema
registo e outro escolheu os dois (como já a partir do filme documentário de modo a
firmou em entrevista). Dito de outro modo, procurar se não respostas, indicações que nos
escolheu o cinema. permitam transcender o registo de género.
Hélio Godoy, no seu livro Documentário, Os filmes que ultrapassam o registo de
Realidade e Semiose: os sistemas género são filmes que nos mostram que o
audiovisuais como fontes de conhecimento documentário não é um género, é um pro-
(2002) recusa o discurso “deconstrutivista” jecto de cinema. Entrar no cinema “pela mão”
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 191

do documentário, tendo em conta que este kinok, para usar o termo de Vertov) devia
é tão cinema como a ficção e tendo, também, ter presente a estrutura de todo o filme sempre
em conta que o espectador reserva-se o direito que registava um plano; por outro lado, a
de lhe exigir um compromisso com a rea- relação entre os planos a diversos níveis é
lidade, então poderemos pensar na possibi- absolutamente necessária para que a realida-
lidade de, a partir do filme documentário, de seja revelada. Em O homem da câmara
ser possível uma teoria realista para o ci- de filmar, inspirado no Construtivismo que
nema que seja capaz de dar conta do uni- não separa forma de conteúdo (a forma é
verso fílmico. A primeira ou uma das pri- também conteúdo), a autenticidade ontológica
meiras tarefas para verificar essa hipótese será de cada plano não é comprometida. Como
discutir aprofundadamente e com rigor as consequência, os filmes causam impacto no
ligações entre as teorias realistas do cinema espectador, afectando a percepção convenci-
de Kracauer e Bazin e o documentário. Assim, onal que têm do mundo.16
o tema em questão é a relação mundo-ci- O cinema permite-nos aceder a aspectos
nema. da realidade aos quais não teríamos acesso
O filme que imediatamente chama a sem a câmara de filmar. Um dos últimos
atenção a respeito desta questão e que en- planos de O homem da câmara de filmar
quanto espectadores nos interroga sobre as mostra uma multidão e acima dessa multidão
relações complexas entre o cinema e o nosso encontram-se duas câmaras de filmar, uma
mundo é O homem da câmara de filmar delas com o operador de câmara. Este plano
(1929) de Dziga Vertov: é exemplar por tornar clara a ideia de que
a câmara de filmar faz parte do nosso mundo,
“Man with the movie camera is the mas ao mesmo tempo tem a capacidade de
only documentary film I know that o transcender. Permite-nos ver mais e me-
is an explanation of a theory.” (Jay lhor.
Ruby, 2000:xi) Há uma realidade fílmica e uma reali-
dade mais real, se assim a podemos chamar.
Para Vertov não só o conteúdo, mas a O cinema não tem a capacidade de nos dar
organização e o ritmo das imagens projectadas a ver o nosso mundo “tal qual”, mas de um
no ecrã podem constituir uma genuína visão modo que só o cinema, com a sua capaci-
cinematográfica da realidade15; ou seja, o dade de enquadrar, compor, interligar, o pode
mundo mostrado no ecrã será mais que um fazer.
mero documento fotográfico. Petric diz que Duas alternativas: 1) todo o filme é um
este filme representa uma brilhante transpo- documentário – todo e qualquer filme do-
sição cinematográfica dos “factos da vida” cumenta algo; 2) todo o filme é uma ficção
(“life facts”) por dar prioridade à por ser uma representação e não a própria
expressividade estética sobre o registo foto- realidade, por representar ideias e por todos
gráfico da realidade; ainda que tenha carac- os filmes partilharem dos mesmos recursos
terísticas formais evidentes, cada plano per cinematográficos.
se é visto como “a vida tal qual” (“life-as- Uma posição mais equilibrada e (talvez)
it-is”). Para Vertov, o objectivo mais impor- mais ajustada seria considerar que todo o
tante do filme documentário seria unir o filme é, ao mesmo tempo, ficção e
autêntico com o abstracto. (Cf. Petric, documentário. Mas, isso implicaria ter bem
1996:271/2). Ainda para Vertov, o cineasta claras as definições de ficção e de
tem como função revelar a verdadeira rea- documentário, o que não é possível.
lidade. Essa realidade encontra-se nos planos Definimos assim a nossa posição: ficção
e só através de um uso criativo da linguagem e documentário são formas de documen-
cinematográfica, mesmo no momento de tarismo, um filme não é um documentário,
registar, é possível revelar a verdadeira mas possui um carácter documental. Em
realidade. Por um lado, Vertov não pretendia alguns filmes esse grau de “carácter docu-
interferir na realidade a registar (de prefe- mental” é menos problemáticos que noutros.
rência as pessoas não deviam aperceber-se Deixamos o termo documentário para os
que estavam a ser filmadas) e o cineasta (o movimentos fílmicos que assumem que este
192 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

mesmo termo é o ideal para designá-los, há a partir do filme documentário, dando conta
que compreender o porquê e de que modos da sua natureza cinematográfica e das va-
o utilizam. O carácter documental que en- riações que os espectadores experimentam ao
tendemos que todos os filmes possuem re- visionar filmes como En construcción (2000),
sulta da nossa certeza de que todo o filme do espanhol José Luís Guerín ou, no caso
é uma construção de pessoas cultural, social português, filmes paradigmáticos como Jai-
e politicamente situadas. Por isso, o me (1974) de António Reis e Trás-os-Montes
documentário não ocupa um lugar específico (1976) de António Reis e Margarida Cordei-
dentro do cinema. Está presente, em diferen- ro, ou ainda o filme Histórias selvagens
tes graus, em todo o cinema. (1978) de António Campos.
Um termo que já utilizámos, o de Há filmes que não são problemáticos
“documentarismo”, realça as variações de quanto a designarem-se de documentários,
maior ou menor proximidade, entre o que mas outros, impelem-nos a pensá-los como
vemos no cinema e no mundo. Enquanto mais que um género, são um projecto de
teoria, o documentarismo só poderá afirmar- cinema. O projecto de cinema dos filmes será
se se for capaz de compreender o cinema documentar algo, são modos de ser no mundo.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 193

Bibliografia cinematic analysis, Cambridge University


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Aitken, Ian (ed.) (1990) Film and Reform, ____(1996) “Vertov’s cinematic
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AnnaBlume, FAPESP. 2
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Grierson, John,(1926) “Flarhety’s I used the term “documentary” of Bob Flaherty’s
Poetic’Moana”, The New York Sun, 8 de Fev. Moana, I was merely using it as an adjective.
In Lewis Jacobs (ed.) The documentary Then I got to using it as a noun: “the
tradition, 2nd ed., New York, London, W.W. documentary”; this is documentary”. The word
Norton & Company, 1979, pp.25-6, (1ª ed. “documentary” became associated with my talking
about this kind of film, and with me and a lot
1971).
of people round me.” (in Elisabeth Sussex,
____(1932) “First Principles of
1975:3).
documentary” in Forsyth Hardy (ed.) 3
A EMB-Empire Marketing Board Film Unit,
Grierson on documentary, Revised Edition, de 1927 a 1933; GPO-General Post Office Film
Berkeley and Los Angeles, University of Unit, de 1933 a 1936. Em 1936 Grierson fundou
California Press, (1966), pp.145-156 . o Film Centre que realizava e produzia filmes para
(Nota: Este artigo foi originalmente patrocinadores. A partir de 1939 Grierson foi para
publicado em 3 partes na Revista Cinema o Canadá onde se tornou Film commissioner da
Quarterly, nos números de Winter 1932; recém criada National Film Board of Canada e
Spring 1933 e Spring 1934) a partir de 1946 foi Head of Information na
____(1937) “The course of realism” in UNESCO. (Fonte: Ian Aitken, Film and reform,
Forsyth Hardy (ed.) Grierson on John Grierson and the documentary film
documentary, Revised Edition, Berkeley and movement, Routledge, 1990).
4
Nesse texto, Grierson não diz claramente
Los Angeles, University of California Press,
que o documentário é “o tratamento criativo da
(1966), pp.199-211.
realidade”. O que de mais aproximado encontrá-
Plantinga, Carl R. (1997)Rhetoric and mos foi: “…beyond the newsmen and the ma-
representation in nonficiton film, Cambridge gazine men and the lectures (comic or interesting
University Press. or exciting or only rhetorical) one begins to wander
Petric, Vlada (1987) Constructivism in into the world of documentary proper, into the
film, “The man with the movie camera” a only world in which documentary can hope to
194 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

achieve the ordinary virtues of an art. Here we quando, por qualquer motivo, a câmara de filmar
pass from the plain (or fancy) descriptions of não o captou no momento em que ocorreu.
8
natural material, to arrangements, rearrangements, Estudos sobre géneros: E. Buscombe, “The
and creative shapings of it.”(Grierson, 1932:146). ideia of genre in the american cinema” in Screen,
5 vol. 11, nº2, 1970; C. MacArthur, Underworld
Por não serem demasiado longos, a seguir
transcrevemos todos os inter-títulos do filme USA, London, Secker and Warburg, 1972; Robert
Drifters. Apenas uma nota, entre os dois primei- Altman, Film/Genre, London, BFI, 1999; Barry
ros inter-títulos não existem imagens a separá-los. K. Grant (Ed.), Film genre, Theory and Criticism,
1) “The herring fishing has changed. Its story was Metuchen, Scarecrow Press, 1977; Barry K. Grant
once an idyll of brown sails and village harbours (Ed.), Film genre reader, Austin, Texas, University
– its story is now an epic of steam and steel.”; of Texas University Press, 1896; idem, Film genre
2) “Fishermen still have their houses in the old reader II, 1995; T. Grodal, Moving pictures: a
villages – But they go for each season to the labour new theory of genres, feelings and cognition,
of a modern industry.”; 3) “Out past the head land Oxford, Clarendon Press, 1997; T. Schatz,
– to open water and the North sea”; 4) “The log- Hollywood genres, NY, Random House, 1981;
line tells the miles”; 5) “Far to seaward swim Pam Cook, “Genre” in The cinema book, London,
the herring shoals.”; 6) “The skipper keeps a look- BFI, 1985, Steve Neale, Genre, London, BFI,
out for“‘appearances’.”; 7) “While down below” 1980; idem, “Questions of genre” in Screen vol.31,
(nota: planos de preparação de comida na cave nº1, 1990.
9
do barco); 8) “Forty miles by the log and dark O termo “género” adequa-se, mais facilmen-
patches of water mark the shoals below”; 9) “There te, ao cinema clássico. A indústria cinematográ-
are two miles of nets to cast – and work goes’on fica para ser rentável, necessita de dividir clara-
into evening.”;10) “Then an extra float for the mente as suas fases e especificar tarefas de
end of the line”;11) “And the mizzen is set for produção, distribuição e exibição. Cada uma delas
the night”; 12) “With the ship made fast to the permite a rentabilidade de um conjunto de filmes,
end of the line the nets go drifting through the desde que os mesmos obedeçam a um conjunto
darkness.”; 13) “Dog fish and conger – the de “leis” temáticas e formais. Economizar meios
destroyers of the deep – gather for the killing.”; e tornar a comunicação eficaz pelo recurso aos
14) “One man keeps the watch.”; 15) “In and out clichés são as ideias subjacentes a este modo de
work the dog fish.”; 16) “Dawn breaks with heavy fazer cinema. A repetição dessas “leis” permite
swell over land and sea.” 17) “Out in the waste estabelecer entre a produção e a recepção laços
of waters the men are called to the labour of seguros.
10
hauling.”; 18) “The storm gathers the labour “Documentary is a clumsy description, but
becomes heavier still.”; 19) “Despite the winch’s let it stand. (…) From shimmmying exoticism it
help every foot has to be fought for.”; 20) “More has gone on to include dramatic films like Moana,
steam for the straining winch.”21) “A hundred and Earth and Turksib. And in time it will include
fifty crans – a thousand herring to the cran. After other kinds as different in form and intention from
eight hours’ labour the hauling is done.”; 22) “The Moana, as Moana was from Voyage au
rolling ship turns her head for harbour.” 23) “The Congo.”(Grierson, 1932-34, p.145)
11
full speed through a head-sea for the earliest Em geral, o contributo de Grierson é visto
possible market.”; 24) “One sea in the hold and como uma página negra na história do filme
documentário. (ver, por exemplo, o livro de Brian
a catch is ruined”; 25) “On the quayside the
Winston, 1995) Se Grierson deixou uma pesada
auctioneers’s bell calls the buyers together.”; 26)
herança ao documentário por imediatamente o
“In quick succession the ships ride through”.; 27)
remeter para a confusão entre documentário e
“The heaviest laden come last of all.”;28) “And
reportagem, lançando o documentário para a
the sound of the sea and the people of the sea
televisão e não para as salas de cinema, propostas
are lost in the chatter and chaffer of a market
posteriores, como os movimentos de cinema
for the world.”; 29) “So to the ends of the earth directo, também o colocam numa posição pouco
goes the harvest of the sea.” confortável. O cinema directo prometeu o que é
6
“Não é possível construir um sistema es- impossível cumprir: “apresentar a realidade tal
tético num vazio. No mínimo, um conjunto de qual”. Entendemos que esta abordagem remete
normas estéticas tem uma relação qualquer com para o voyeurismo. O espectador é estimulado a
a forma como o seu autor concebe o seu mundo, olhar o Outro (apresentado no ecrã) como um
a sua vida social e o papel desempenhado pelo agente de acções estranhas que dificilmente
cinema neste contexto mais alargado.” (Andrew compreende. Sem envolvimento não há compre-
Tudor, 1973:66). ensão. A observação que tem como base: “façam
7
Re-construção é um termo utilizado para de conta que não estamos aqui a filmar” é
designar o registo de um acontecimento em estúdio meramente voyeurista.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 195

12
Registo em vídeo de Rodney King a ser Lenine (1934), que representa mais a esperança
violentamente espancado pela polícia de Los do povo por uma vida melhor que Lenine en-
Angeles, Março de 1991. quanto homem ou político. Este filme poético
13
Embora não de modo tão explicíto esta ia contra o Realismo Socialista que defendia a
questão já foi por nós abordada no texto: “O subordinação da forma ao conteúdo. (Cf. Petric,
documentarismo do cinema”. O livro de Hélio 1996).
16
Godoy ajudou-nos a clarificá-la. Da nossa parte “...Vertov strove to observe both the
interessa-nos trabalhar as teorias especificamente ‘Film-Truth’ (the ontological authenticity of
cinematográficas. the shot) and the ‘Film-Eye’ (the montage
14
A questão da definição do filme structure of the associated shots). By
documentário e sua identidade já foi por nós accomplishing this, he made The man with the
trabalhada em O filme documentário. História, movie camera able to function on both levels,
Identidade, Tecnologia, Edições Cosmos, 1999. presenting reality ‘as it is’, and generating,
15
Percebe-se o porquê da constestação aos through the kinesthesia, a new vision of the
filmes de Vertov, em especial Três canções para world.” (Petric, 1996:293).
196 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 197

Fronteiras Imprecisas: o documentário antropológico entre


a exploração do exótico e a representação do outro
Március Freire1

A história do cinema conta que o primei- prima para esses “shows de exotismo”, a tal
ro “filme” antropológico foi realizado antes ponto que nos últimos anos do século XIX
mesmo de o cinematógrafo dos irmãos a profusão de “atualidades” Lumière retra-
Lumière fazer sua primeira projeção pública. tando a vida e os costumes dos povos das
Com efeito, tal “filmagem” ocorreu quando, antigas colônias francesas era tamanha que
na primavera de 1895, Félix-Louis Regnault deu origem a um gênero chamado de exotica.
se serviu de uma câmera cronofotográfica de Tais produções estão na raiz de um outro
E. J. Marey e registrou uma mulher wolof gênero que mais tarde seria denominado de
fabricando objetos em argila na Exposition “documentário”.
Ethnographique de l’Afrique Occidentale em No caso de Edison estava aberta, com as
Paris. Mas, assim como a História reserva duas fitas citadas4, uma vertente bastante
a qualquer evento do passado versões dife- prolífica do filme de não-ficção e que viria
rentes segundo o ponto de vista daquele que a ser aprimorada em algumas de suas rea-
o reconstitui, alguns atribuem a T.A. Edison lizações seguintes: a exploração dos aspectos
o privilégio de ter registrado as primeiras exóticos e pouco familiares de culturas não
imagens em movimento de cunho antropo- ocidentais e das imagens mais mórbidas e
lógico. Trata-se de Indian war council e Sioux mais salazes de qualquer cultura, mesmo a
ghost dance, fitas kinetoscópicas realizadas ocidental. Foi nesse espírito que, em 1901
em 1894, logo, um ano antes da experiência ele realizou Execution of Czolgosz with
de Regnault. Na verdade, tais imagens, que Panorama of Auburn Prison (1901) onde
constituem os primeiros vestígios animados cenas representadas foram misturadas com
dos índios Sioux, foram gravadas em estú- cenas reais, e, em 1903 An execution by
dio, mais precisamente na Black Maria.2 hanging e Electrocuting an elephant, mos-
Trata-se, portanto, de uma reconstituição em trando cenas reais de situações em que a
que os sujeitos observados representam seu morte era a vedete.
próprio papel. Para tanto foi construído um Esses filmes atraíam enormemente o
cenário reproduzindo, de maneira bastante público que não costumava questionar a
tosca, o habitat natural dos Sioux. veracidade daquilo que lhe era mostrado.
Temos então, nas duas experiências ra- Segundo Erick Barnow5,
pidamente aqui expostas, a de Marey e a de
Edison, os dois elementos ou, melhor, os dois “Num período em que as atualidades
procedimentos que vão caracterizar a cons- da semana foram durante muito tem-
trução de um filme documentário: o registro po ilustradas com gravuras em ma-
do real “ao vivo”, e a reconstituição desse deira anunciando ‘a partir de imagens
real de maneira assumida ou dissimulada. No registradas in situ’, não era muito pro-
primeiro caso temos que, imediatamente após vável que houvesse preocupação com
o registro de Marey e a quase simultânea relação ao que realmente significava
apresentação do cinematógrafo ao grande ‘reconstituição’. O público estava
público, os cinegrafistas Lumière esquadri- acostumado que as imagens de notí-
nharam os quatro cantos do mundo com suas cias tivessem uma incerta e remota
câmeras de tal maneira que, na virada do ligação com os acontecimentos e não
século, a maioria dos povos, sobretudo pensava muito a respeito de quão
aqueles sob dominação das potências euro- verdadeira era essa ligação”.
péias, havia sido filmada.3 A África foi, desde Reconstituições e fraudes faziam um
sempre, a grande fornecedora de matéria incrível sucesso. Memoráveis sequên-
198 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

cias autênticas foram feitas do mento da disciplina, o outro, o não ocidental,


terremoto que sacudiu São Francisco o diferente, seu corpo, paramentado ou
em 1906, mas outro tipo de imagens desnudo, sua terra, seu habitat, suas crenças,
do evento, inventadas em table-tops seus hábitos sexuais e gastronômicos... pas-
ou com miniaturas, eram igualmente saram a ser observados e interpretados de
aplaudidas. Diversas erupções vulcâ- forma sistemática. Nunca é demais lembrar
nicas foram fraudadas com enorme que o aparecimento dessa especialidade das
sucesso, como uma produção da ciências do homem se deu numa época –
Biograph de 1905 intitulada Eruption segunda metade do século XIX - que viu
of Mount Vesuvius. As produtoras de nascer, também, o mais efetivo instrumento
cinema não queriam ignorar as catás- de registro visual deste mesmo “outro” na
trofes ou outros acontecimentos dig- plenitude de seus movimentos: o
nos de manchete apenas porque seus cinematógrafo. Em que pese essa feliz co-
cinegrafistas não tinham acesso a eles; incidência e as evidentes potencialidades dela
empresas especializadas resolviam o decorrentes, os caminhos percorridos pelos
problema. Nesse sentido, o produtor dois recém-nascidos nem sempre convergi-
inglês James Williamson realizou ram para o mesmo alvo. Inúmeras vezes eles
Attack on a Chinese Mission Station se cruzaram, um reencontrando o outro ao
no seu próprio quintal, e algumas sabor de suas próprias práticas. O cinema
cenas da guerra dos Boer num campo registrando a aventura humana naquilo que
de golfe. A neve de Long Island e passou a ser chamado de “filme documen-
New Jersey forneceu o cenário para tário”, ou reconstituindo-a no filme de fic-
produções como Battle of the Yalu ção, e a antropologia servindo-se, de quando
(1904), da Biograph, e para um filme em vez, desses registros para ilustrar ou
concorrente de Edison, Skirmish edulcorar a rigidez de suas exposições.6 Isso
Between Russian and Japanese porque muitos dos filmes a que nos referi-
Advance Guards. Neste último, vemos mos acima podem ser considerados como “de
soldados surgirem e desaparecerem valor antropológicos”, mas não efetivamente
diante de uma câmera imóvel, enquan- antropológicos. A indefinição quanto ao que
to muitos caem no combate. Para vem a ser um “filme antropológico” perdu-
ajudar a audiência a identificar os rou até os idos de 1948 quando André Leroi-
contendores, russos eram vestidos de Gourhan,7 considerando, na ocasião, que
branco e japoneses em cores escuras. “...parece haver uma certa confusão entre o
A aceitação desse tipo de produto pro- filme etnológico e o filme de viagem ...”,
vavelmente desencorajou iniciativas sugeriu que
mais autênticas – pelo menos entre
alguns concorrentes”. “Três tipos de filmes podem ser con-
siderados como etnológicos (...): O
A exploração do exótico e do incomum Filme de pesquisa, que é apenas um
faz parte, portanto, da própria história do meio de registro científico entre
cinema e, mais especificamente, da história outros. O Filme documentário públi-
do filme documentário. Mas, e quanto ao co ou ”filme de exotismo”, que é uma
filme antropológico ou documentário antro- forma do filme de viagem, e aquilo
pológico, quais são seus vínculos com o que (chama) de filme de ambiente,
exotismo e sua eventual falsificação? rodado sem intenção científica, mas
É sabido que a antropologia nasceu da que adquire valor etnológico pela
curiosidade dos ocidentais, notadamente dos exportação, como uma intriga senti-
europeus, em relação às culturas diferentes mental em ambiente chinês ou um
das suas. A observação dessas culturas, a bom filme de gangsters nova-
busca de seu deciframento e os relatos a que iorquinos tornam-se pinturas de cos-
davam origem constituíram, desde sempre, tumes curiosos quando se muda de
o procedimento antropológico. Com o nasci- continente”.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 199

Não é difícil perceber que, para Leroi- país não identificado. Mondo Cane 2 vai mais
Gourhan, o caráter etnológico de um filme longe que seu predecessor e acrescenta à
está mais na utilização que dele vai ser feita mostração incessante de animais sendo
que nos propósitos que animaram seu rea- mortos, a imolação de um monge budista que
lizador. Excetuando-se o filme de pesquisa se deixar queimar em sinal de protesto.
que tem como objetivo intrínseco o registro Segundo Vivian Sobchack8 trata-se, na ver-
científico, podemos, a rigor, considerar qual- dade, de uma bem versosímil reconstrução
quer filme como potencialmente etnológico, da real morte do mártir Quang Duc, ocorrida
pois praticamente todos, de alguma maneira, em 1963. Ainda que encenada, a sequência
podem enquadrar-se naquela categoria que ele é considerada a primeira morte de um in-
define como filme de ambiente. divíduo nos documentários de exploração,
Mas, o que nos interessa aqui é a tendo sido difundida na época como um
explicitação, a partir de uma das primeiras genuíno espetáculo de morte. O que em nada
classificações dos filmes sobre o homem, feita invalida, no sentido de que, em sua repre-
por um antropólogo, das relações ambíguas sentação documentária, essa morte é
do filme de viagem, do “filme de exotismo” vivenciada aparentemente como uma visua-
com o filme antropológico. E, como vimos, lização do real.
tais relações fincam suas raízes na origem Em 1966 Jacopetti e Prosperi avançam
mesma do cinema. mais um pouco na exibição de violência e
da crueldade com Africa Addio. Desta vez
Do “exploitation” ao antropológico a África é a única estrela a brilhar diante
das objetivas da dupla de “documentaristas”.
Conforme expusemos no início desta O filme se queria um testemunho das trans-
apresentação, o flerte do cinema com o formações por que passava o continente
bizarro e o exótico já está indiscutivelmente africano no início dos anos sessenta. Dentre
presente nos filmes de Edison e dos Irmãos essas, o processo de libertação do Quênia das
Lumière. Essas experiências são os ances- amarras do colonialismo britânico e os es-
trais de toda uma gama de documentários que tágios finais do terrorismo Mau-Mau, a
ficou conhecida pelo epíteto de “exploitation” sangrenta guerra civil no Congo, o genocídio
ou – termo ainda mais sugestivo –– dos Watusi em Ruanda e a revolta contra os
“shockumentaries”. Dentre esses, a linhagem portugueses em Angola. Apesar de afirmar
de maior sucesso e o verdadeiro ícone do que correu risco de vida e que sua entrada
gênero é, sem sombra de dúvida a série no continente africano tinha como único
Mondo Cane, cuja primeira semente germina objetivo uma expedição fílmica, a dupla
em 1962. Seu sucesso foi tamanho que criou chegou a ser processada, acusada de ter
um epíteto com o qual foram identificadas encorajado morte e fuzilamentos – visto com
todas as suas emulações: “Filmes Mondo”. toda sua crueza no filme – por mercenários.
Dirigido por Gualtiero Jacopeti e Franco Isso nos leva a duvidar da veracidade dos
Prosperi, Mondo Cane é construído na forma fatos apresentados e as circunstâncias em que
de um longo relato de viagem em que os foram filmados. Além do fuzilamento, são
costumes mais bizarros, mais distantes dos incontáveis as sequências de morte de ani-
padrões ocidentais são mostrados sem mais. Desta vez elefantes, hipopótamos,
qualquer tipo de pudor. No primeiro filme antílopes são sacrificados aparentemente
da série a África é, ainda e ainda, o cenário apenas para o prazer de seus algozes.
das maiores atrocidades cometidas contra ani- A estrutura narrativa desses filmes se
mais. Porcos são mortos a pauladas sem aproxima daquela do documentário clássico.
qualquer razão aparente, hipopótamos rece- A sucessão de imagens vai sendo “costura-
bem dezenas e dezenas de lanças atiradas de da” por uma voz fora de campo que interliga
uma pequena distância; mas a Ásia também episódios muitas vezes sem qualquer cone-
tem a oferecer seu quinhão de barbárie. É xão entre si. Essa voz over vai expondo e
chocante a sequência em que, ao sinal de questionando, dentro de uma perspectiva
uma salva de tiros, vacas são decapitadas com ideológica nitidamente reacionária e
um só golpe por um soldado zeloso de um etnocêntrica, uma variedade de eventos
200 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

exóticos e/ou chocantes filmados ao redor do Tomemos como exemplo The Hunters,
mundo. Cria-se uma espécie de relato de realizado em 1958 por John Marshall. O filme
viagem sensacionalista no qual o motivo se propõe mostrar as aventuras de um grupo
principal é enfatizar um comportamento de caçadores bushmen do deserto Kalahari
cultural não familiar ao espectador, eviden- em uma caçada. Segundo John Collier Jr.11,
ciando as diferenças, buscando sempre ul-
trapassar os limites que levam do exótico ao “É de domínio público a querela entre
visualmente insuportável. Podemos, assim, Marshall e Robert Gardner, montador
considerar os filmes mondos como um braço do filme, a respeito do formato que
dos documentários e um cruzamento destes este último imprimiu à montagem
com o show de variedades, por apelarem ao final concedendo demasiada importân-
fascínio pelo incomum inerente ao ser hu- cia a episódios que pudessem chocar
mano.9 a sensibilidade ocidental para efeitos
Assim como os primeiros filmes de dramáticos. Cita, como exemplo, a
Edison e dos irmãos Lumière guardavam cena em que o caçador chefe encon-
similitudes, tanto na sua fatura quanto nos tra um arbusto com ninhos cheios de
seus objetivos, com os documentários antro- filhotes e começa a destruir os ninhos
pológicos, o mesmo se pode dizer da relação e a matar os filhotes. A voz over
destes últimos com documentários realizados explica que ele vai levar os filhotes
para o grande público. Quem afirma isso é para casa e fazer uma sopa para seus
Jean Rouch em seu artigo La caméra et les filhos. Trata-se visualmente de uma
hommes.10 Para esse pioneiro do estudo do longa cena sem qualquer valor
homem através das imagens animadas etnográfico claro, mas ela cria um
choque cultural que pode obscurecer
“a maioria dos filmes antropológicos os olhos ocidentais para outras sen-
realizados nos últimos anos, se apre- sibilidades e refinamentos desse abo-
senta sempre sob a forma de um pro- rígenes caçadores.
duto de difusão normal: créditos, música
de acompanhamento, montagem sofis- O abate da girafa no final do filme não
ticada, comentário tipo grande público, deixa de lembrar algumas cenas de Mondo
duração, etc. Na maior parte das vezes Cane ou de Africa Addio. Sob o efeito do
consegue-se com isso um produto hí- veneno que lhe fora inoculado através de uma
brido que não satisfaz nem ao rigor ci- flechada no dia anterior, o enorme animal,
entífico nem à arte cinematográfica. (...) já enfraquecido, deixa que os caçadores se
O resultado é um aumento considerável aproximem e comecem a desferir mais
do custo de produção desses filmes que flechadas sobre seu imenso corpo. Seus
torna ainda mais amarga a ausência movimentos ao receber cada golpe deixam
quase total de sua veiculação, sobretu- clara sua incapacidade de reagir aos objetos
do quando o mercado cinematográfico que lhe traspassam a pele. Por fim, já sem
permanece bastante aberto a um certo forças, ela cai. Começa então a retirada da
tipo de documentário “sensacionalista” pele, o lento esquartejamento... Isolada do
do estilo Mondo cane. resto do filme essa seqüência poderia fazer
parte de um filme mondo.
Existiriam portanto, segundo Rouch, três The Hunters é um bom exemplo daquilo
tipos de documentários voltados para a que J. Rouch chama de “produto híbrido”.
observação dos homens e de suas peripécias: Fica evidenciada na montagem de R. Gardner
a) o documentário grande público, b) o sua sucumbência à tentação de ressaltar o
documentário sensacionalista ou de “explo- valor estético do filme em detrimento de seu
ração” e, c) o documentário de cunho cien- valor científico.
tífico. O que queremos demonstrar aqui é que, O mesmo Robert Gardner realizou, em
em boa parte dos grandes clássicos do filme 1963, um outro clássico do filme antropo-
antropológico encontramos uma conjunção lógico, Dead Birds. Filmado na Nova Guiné,
desse três estilos. esse filme retrata o dia-a-dia da vida dos Dani
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 201

através do quotidiano de três personagens: montagem paralela, enorme variedade de


um homem, uma mulher e um menino. O ângulos e enquadramentos (manipulados na
homem ocupa uma função das mais impor- montagem) e uma voz over onipresente e
tantes que é a de controlar, a partir de uma onisciente, o espectador é levado pelo braço
torre de vigilância, a fronteira que separa sua ao interior da sociedade Dani. Ele não tem
tribo de uma outra com a qual mantém nem o tempo nem a ocasião de refletir sobre
relações pouco amistosas. Enquanto não está aquilo que lhe é posto diante dos olhos. O
na torre, tece cuidadosamente longas faixas comentário tudo explica, mesmo os pensa-
ornadas de conchas que serão usadas nos mentos dos sujeitos observados. Quando
rituais fúnebres. A mulher trabalha no cam- Laka, a mulher, vai ao campo colher suas
po, arando e colhendo tubérculos. Não pode batatas, a “voz de Deus” explica que o
tecer como o homem, pois não possui al- trabalho é duro, o sol escaldante, mas que
gumas falanges das mãos. Estas são cortadas ela fica feliz em poder encontrar as amigas
quando da morte de um parente próximo. O e conversar um pouco. Quanto o menino
menino pastoreia seus porcos nos campos que observa a faina dos adultos essa mesma voz
circundam a aldeia. As peripécias desses três interpreta seus pensamentos e diz que ele está
indivíduos vão constituir o fio condutor a imaginar que, quando crescer, também
através do qual Gardner penetra a cultura estará se dedicando àquelas tarefas.
Dani. As imagens privilegiam, pelo uso de
Um aspecto dessa cultura, no entanto, é grandes planos e longas seqüências, os tem-
extraído do todo e vai pontuar a narrativa pos fortes da manifestação observada. Tal é
e criar a estrutura dramática do filme: a o caso da morte dos porcos do menino para
relação dos sujeitos observados com a morte. o ritual fúnebre. O porquinho é seguro por
Logo após os créditos somos colocadas diante um dos homens da aldeia enquanto o chefe,
de imagens de pássaros e a voz over explica distante apenas alguns centímetros do ani-
que, de acordo com o mito da criação dos mal, dispara uma flecha em direção ao seu
Dani estes tiveram de escolher entre ser como ventre. O porco é solto no terreiro, corre,
as cobras, trocar de pele e viver para sempre, estrebucha, sangra até perder as forças. A
ou ser como os pássaros e morrer. Eles câmera acompanha tudo com insistência e
escolheram ser como os pássaros e por isso corta apenas para mostrar o menino que chora
devem enfrentar a morte. Todo o filme é a morte de seu animal.
construído como se esta estivesse à espreita, Toda estrutura de Dead Birds está cal-
pronta para assomar na aldeia. cada nesse jogo de momentos de suspense
Sobre isso o diretor declarou: e momentos fortes. O suspense maior diz
respeito à ameaça de invasão da outra tribo.
“Eu vi os Dani, emplumados e vibran- É essa expectativa que, como um leitmotiv,
tes, homens e mulheres, como que permeia a narrativa. Finalmente, depois de
desfrutando o destino de todos os ter preparado longamente o espectador, te-
homens e mulheres. Eles vestiram suas mos a batalha. Mais do que uma ação vi-
vidas com plumagem, mas, como olenta, esta última é quase um jogo, um jogo
todos nós, enfrentam a morte como perigoso em que alguns poucos são
certa. O objetivo do filme é tentar efetivamente feridos. Aqui, mais uma vez os
dizer algo a respeito de como todos grandes planos exploram os ferimentos, a
nós humanos enfrentamos nosso des- retirada das pontas de lança dos corpos, o
tino animal”.12 arfar dos feridos.
O que distingue as cenas acima descritas
Gardner filmou com uma câmera Arriflex daquelas anteriormente expostas dos filmes
a bateria, sem som sincronizado. Assim como considerados de exploração? O que diferen-
havia feito com The Hunters, foi na mon- cia um filme indexado como “antropológi-
tagem que as imagens captadas se transfor- co” de um documentário de viagem ou de
maram em narrativa dramática. Graças à um “drama cultural”. Para o já citado John
estrutura clássica do filme de ficção, com Collier Jr.13
202 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

“Eles (os filmes antropológicos) são exóticos, mas deve ser reiterado que
orientados para a pesquisa autêntica, estas epopéias culturais têm
esta deve ser sua mais importante freqüentemente pouco valor na sala
característica. Podemos definir filme de aula”.
etnográfico a partir dessa descrição,
porque ela separa claramente registros Será que The Hunters ou Dead Birds
culturais de narrativas dramáticas ou preenchem esses requisitos? Não estamos
artísticas. Filmes etnográficos popu- tão seguros! E, pelo que podemos deduzir
lares realizados com todos os refina- de tudo que precede, a fronteira que os separa
mentos da indústria tendem ao entre- dos seus congêneres menos credenciados aca-
tenimento da audiência sobre povos demicamente está bastante desfocada.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 203

Bibliografia foram rodados em 24 de setembro de 1894, dia


de filmagem de um produto particularmente
Barnow, Erik, Documentary. A history of adaptado ao mercado dos Kinetoscópios: o
espetáculo de Buffalo Bill. Desde 1883 essa
non-fiction film, New York, Oxford Press,
distração consistia em uma turnê, com exibições
1993, p. 25. em praças públicas, chamada de “Wild West Rocky
Collier Jr., John. “The future of Mountain and Prairie Exhibition” que se tornou
ethnographic film”, in: Jack R. Rollwagen “Buffalo Bill’s Wild West Show”. Naquele mês
(org), Anthropological filmmaking, de setembro, o celébre William Frederick Cody,
Philadelphia: Harwood Academic Publishers, Buffalo Bill, que se apresentava no Ambrose Park
1988, p. 87. no Brooklyn, foi convidado a West Orange e lá
Gardner, Robert, “On the making compareceu com toda sua trupe a caráter. W.K.L.
of“Death Birds”, in: Karl Heider (Ed.),”The Dickson se serve de um Kinetógrafo para registrar
Bufalo Bill fazendo uma demonstração de tiro e
Dani of West Irian. Andover, Mass., Warner
decidiu aproveitar a presença dos Sioux da trupe
Modular Publications, 1972, p. 35. para filmar ‘Indian War Council’ e ‘Sioux Ghost
Jourdan, Pierre L.-, Cinéma. Premier Dance’! (...) Esses primeiros documentos são
contact-premier regard, Marseille, Musées de portanto uma verdadeira reconstituição feita por
Marseille, 1992, p. 27, 28. índios verdadeiros de ‘falsas-verdadeiras’ danças
Leroi-Gourhan, André, “Cinéma et Sioux... O espetáculo ao ar livre, será filmado
sciences humaines. Le film ethnologique alguns anos depois pelos operadores de Edison
existe-t-til?”, in: Revue de géographie quando estes passam a contar com equipamentos
adequados”.
humaine et d’ethnologie, n. 3, Paris, 1948, 5
Erick Barnow, Documentary. A history of
p. 42-50. non-fiction film, New York, Oxford Press, 1993,
Rouch, Jean, “La caméra et les hommes, p. 25.
in: Claudine de France (org), Pour une 6
Em que pese o fato da primeira experiência
anthropologie visuelle, Paris, Mouton Éditeur, antropológica a efetivamente se servir do
1979, p. 60. cinematógrafo na pesquisa de campo datar de
Sobchack, Vivian. “Inscrevendo o espaço 1898, apenas três anos após a invenção deste
ético : dez proposições sobre morte, represen- último. Trata-se da expedição da Universidade de
tação e documentário”, in: Quaterly Review Cambridge, organizada por Alfred Cort Haddon
ao Estreito de Torres, situado entre a Austrália
of Film Studies, vol. 9, fall/1984, p. 15.
e a Nova Guiné.
7
André Leroi-Gourhan, “Cinéma et sciences
humaines. Le film ethnologique existe-t-til?”, in:
_______________________________ Revue de géographie humaine et d’ethnologie, n.
1
Departamento de Cinema da Universidade 3, Paris, 1948, p. 42-50.
Estadual de Campinas-UNICAMP/São Paulo- 8
Vivian Sobchack, “Inscrevendo o espaço
Brasil. ético : dez proposições sobre morte, representa-
2
A “câmera” de Edison, o Kinetoscópio, só ção e documentário”, in: Quaterly Review of Film
era capaz de captar imagens em condições espe- Studies, vol. 9, fall/1984, p. 15.
ciais de iluminação. Consequentemente, tudo era 9
As considerações aqui expostas sobre os
filmado em estúdio e, para isso, foram construídas filmes Mondo Cane e Affrica Addio são tributá-
em West Orange, um subúrbio nova-iorquino, rias do trabalho não publicado de Lúcio F. R.
instalações apropriadas que receberam o nome de Piedade O estigma da morte no documentário.
Black Maria. 10
Jean Rouch, “La caméra et les hommes,
3
Os operadores Lumière tinham como prin- in: Claudine de France (org), Pour une
cipal palavra de ordem “abrir suas objetivas para anthropologie visuelle, Paris, Mouton Éditeur,
o mundo”. 1979, p. 60.
4
Pierre L.-Jourdan, em seu livro Cinéma. 11
John Collier Jr., “The future of ethnographic
Premier contact-premier regard, Marseille, Musées film”, in: Jack R. Rollwagen (org), Anthropological
de Marseille, 1992, p. 27-28, afirma que “longe filmmaking, Philadelphia, Harwood Academic
de representar uma ‘autêntica-dança-sioux-saída- Publishers, 1988, p. 87.
12
da-noite-dos-tempos’, esse primeiro documento Robert Gardner, "On the making of Death
testemunha um choque de dois universos cultu- Birds", in: Karl Heider (Ed.), The Dani of West
rais e de seus efeitos e, sob esse aspecto, trata- Irian, Andover, Mass., Warner Modular
se realmente de um documento antropológico. Publications, 1972, p. 35.
13
Esses dois documentos, encenados em estúdio, Op. Cit. p. 87.
204 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 205

Entre cine e foto: Un sorriso a cámara


Margarita Ledo Andión1

Dispómomos a tratar un “xesto social”, A imaxe técnica e a expresión do médium


o sorriso, en canto expresión para e cara o representa unha época que forzou, entre outras
outro, como seducción mediada pola cámara escollas, a do cine do real fronte do ficcional,
á que non lle cómpre resposta imediata. Imos a do cinema “de estudo” fronte do esceario
tratar iso que tanto encandilou a Barthes, o natural. Carlos Velo optou polo documental
aceno, ou o que Bresson tanto procurou e dende dentro da tradición realista, dende a
que chamou “modelo”. Ímolo tratar como herdanza da fotografía fronte da herdanza do
parte da cultura da imaxe técnica, máis aló teatro, por mantermos os termos das discusións
da súa hipercodificación na pose, na frase e dos textos do período fundacional.
controlada e sometida a regras. Ímolo tratar A foto e as marcas da cultura da foto
como materia pro-fílmica no cadro dun tipo no cine documental ten que ver coa tradición
de cinema que se constrúe xustos nos inter- realista, si, mais ten que ver de maneira
valos nos que se funden o real, o apparatus, singular co que cada época e os autores en
o autor e un “nós” identitario que nos re- cadansúa época – na mellor das advertencias
presenta e fai que poidamos brechtianas – entenden por realismo. A foto
recoñecérmonos en figura de espectador. e as marcas da foto no cine lévannos polas
Dispómonos a tratar do sorriso nun filme propostas artísticas que parten e van cara
inacabado, con leituras múltiplas, con xente que come – reclamou Jean Vigo –, cara
variacións canto ao nome de seu –– a confrontación dunha sociedade consigo, e
Compostela, Finis Terrae, Galicia...- no que a relación do real, do material pro-fílmico,
adoito se localiza o inicio dun cinema galego coa cámara, co dispositivo. O interese en
e tamén a escolla dun cineasta que tal se poñer dentro do mesmo plano foto e cine
define en tempos da xeración republicana terá que ver, tamén, aquí e agora, coa
(1931-1936): Carlos Velo. reivindicación do cinema como herdeiro da
Coma todo o cinema que leva canda sí foto – na mellor da imprecacións dun Jean
unha marca de orixe, unha sinatura especial, Luc Godard – pero, singularmente, coa ca-
o cinema en Galicia, ou nos oito minutos pacidade seminal desta idea para movementos
recuperados dunha película que se deu en que definiron os cinemas chamados nacio-
chamar Galicia, parte do novo por facer (a nais: fronte do cine comercial, distante da
idea) e do novo como resultado do política de autores, diferente a respeito de
coñecemento (a técnica) para a construción Europa, as posicións de diferentes manifes-
da imaxe de Galiza en tanto suxeito social tos sesentistas – “Cara un Tercer Cine”, “Por
con espectativas, con posibilidades de un cine Imperfecto”, etc.- teñen na base non
mudanza, nunha obra destinada á pantalla, só a identidade co seu próprio tempo como
ao público, á cidadanía e que – tempos a actitude e o legado de determinados au-
anómalos – chega á súa proxección única no tores que os precederon. Os minutos con-
cadro dun evento que se realiza alén, en París, servados do filme ‘Galicia-Finis Terrae’ de
co gallo de reclamar apoios para a Repú- Carlos Velo hannos servir para analisar e
blica española en guerra. avaliar como primeiro acto criativo da visión,
Despois, o filme desaparece. O público en calquera caso e tamén para a imaxe de
de seu, o destinatario no que pensou o seu natureza técnica, a ollada para o exterior.
autor, endexamais o poderá ver. E pasados
os anos recupéranse apenas 8 minutos que De part de le Roi et monsieur le
servirán para transformar a Velo e a este Lieutenant générale de police,
fragmento nun cine con valor patrimonial. messieurs et dames, vous êtes avertis
206 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

qu’il est arrivé depuis peu en cette do discurso realista e dende autores do
ville un animal nommé Rhinocéros. período fundacional, tal e como avantamos
Il fut pris en Afrique dans la province ao inicio do texto.
de la Bénoué en 1741 par un capitaine Porque o documental fotográfico e cine-
marinier, lequel capitaine le fut matográfico, máis aló de ser catalogado -
transporter de Douala par mer en dende a visión dominante – como esa imaxe
Hollande. (...) Ce monstre este de do pobre e para pobres na que aletexa a fin
couleur musc. Il a une corne placée da Modernidade e do Humanismo laico que
sur le nez, laquelle corne lui sert à se desenvolvera dende o Renacemento, tira
se défendre. Il court avec une légèreté do principio reprodutivo un lugar de seu na
étonnante. Il sait nager...2 práctica das Luces a propósito do
coñecemento de nós mesmos, e porque
Poida que calquera de nós, habitante formou parte da posta en imaxe de todo un
dunha das cidades europeas de referencia século, o vinte, abrindo a nosa intelixencia
meiado o setecentos e a partires da descrición para a alteridade e a igualdade, adoito é
exhaustiva dos pasquíns que nos convocan considerado un activo político. E abofé que
para o xamais visto, pasaramos recoñecer o foi aló cando o sorriso a cámara aínda era
unha forma novedosa no noso entorno á que un material pro-fílmico.
se lle apón o nome de Rinoceronte. E deste Na súa Histoire(s) du Cinéma o Jean-Luc
modo entre outros modos, entrementres a Godard vai repeter unha vez tras doutra
mostra pública se vai instalando na cultura ¿herdanza da fotografía ?, si ; ¿herdanza da
cotiá, ímonos preparando para mudar a crenza fotografía ?, si ; ¿herdanza da fotografía ?, si ;
pola proba visíbel e palpábel. Até que a proba unha sobreafirmación que nos advirte dunha
chega a ser reproducíbel e cédenos o paso creba, na práctica e na cultura, entre cine
para que fixemos, harmonicemos, e foto, entre imaxes que se foron isolando
organicemos o real polo medio de unha da outra como signo, como arte, como
procedementos tecnográficos, con obra, como expresión e como comunicación.
procedementos que soerguen o valor da súa Porque ao igual que os pares imaxinario-
aparencia deica situala na categoría de “ver- realidade ou beleza e verdade, cine e
dade” e ate facernos confundir o Rinoceron- fotografía formaron parte do mesmo territorio
te coa foto en calidade de duplo do Rino- de fronteira, o da imaxe analóxica que iden-
ceronte e coa foto en movemento como a tificamos a traverso da cámara; foto e ci-
máis perfecta representación da súa lizgaira nema configuraron unha pasaxe certa que
carreira. entrelaza a técnica co real e mais co autoral;
E se dende o anuncio oral da chegada cine e foto puxeron en relación un obxecto
do xamais visto fómonos achegando á visi- novo, a súa intervención en non poucas
bilidade, e se coa ilusión de movemento, co mudanzas culturais e un suxeito encol do que
enxenio ao servizo de agachar os trucos para se incorpora o tempo e o paso do tempo;
conseguir un efecto coma de verdade nos foto e cine fabricaron o duplo e a súa
fomos situando – en canto a terra pasaba percepción como construción; cine e foto
varias veces – na época do audiovisual, a foron un resultado e un operador da Moder-
comén dos noventa, por razóns tecnolóxicas nidade e do seu canto á transparencia, a ollar.
tanto coma ideolóxicas entramos – poñamos Existen, tamén, dúas figuras que
que coa Primeira Guerra do Golfo –, no manteñen na súa man en vango a memoria
audiovirtual. Ao igual ca o Rinoceronte, a da terra que pasa: a persoa que olla, a
foto e o filme deveñen arqueoloxía e canda espectadora da foto ou do cine do real e a
foto e filme devén arqueoloxía o real. Un que se mantén no fóra de campo para escoller
real que ía ficando á marxe das imaxes que o que vai entrar en campo. Dende aquela
ateigaban as vías de circulación, cando non exhibición de apenas 52 segundos que apre-
esvaíndo tras as convencións do estilo do- senta a empresa familiar Lumière para o
cumental por mor de colaborar na construción público que acude ao Grande Café sabemos
de falsos. Por iso o noso interese en visitar dun “cinema á maneira fotográfica”, tal e
a foto e o cinema documental como parte como o adxetivou Henri Langlois, que entra
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 207

no século coa angueira de definir regras de was the fashion in the film as in the
seu a partires da súa diferencia constitutiva: other arts.
a máquina. Asi, as relacións foto-cinema, que
se manifestan nas primeiras décadas do vinte A mostra na que imos pescudar a
en propostas como a candid camera e en materialización da época que vimos de
autores tan de culto coma Paul Strand ou Jean caracterizar e a súa actualización na posguerra
Vigo, en fendas como a fotomontaxe e en énos próxima por cultura e por pertenza. A
creadores como Rodchenko ou Dziga Vertov, maior abondamento, os estudosos non só
en experiencias como a Nova Obxectividade consideran a Carlos Velo o ‘pai do
e en dinamizadores como Franz Roh ou, documentalismo español’ (Romá Gubern) se
finalmente, na especificidade do non quen fixo o primeiro documental
documentario social como ámeto das polí- galeguista, Galicia-Finis Terrae, no 1936.
ticas públicas progresistas, na Europa da Ollar para o exterior sabéndose, ao tem-
Fronte Popular ou na norteamerica reformis- po, parte dese exterior constitúe a cerna do
ta, á par da actitude autoral a prol da iden- cinematógrafo como arte de masas e como
tidade co seu tempo coma o tempo da cultura activo na construción da cidadanía. O
industrial, da teima en aprofundar na capa- cinematógrafo como cultura republicana e
cidade expresiva do medium, da cinefilia como inclusión na tradición patrimonial das
como misión que conduz a animar cineclubes, sociedades devén unha angueira para aquela
editar, discutir e axitar, a época dá paso ás época na que un galego de Cartelle, no agro
teorías e canda elas ás posicións que parten do sul ourensán, devalando cara a raia, devén
do “carácter e ascensión dunha nova arte”, o grande animador do documental no Estado
o filme, para elaborar un modo de pensar español. O primeiro encárrego, dende o
o cinema en canto produto para as masas, Ministerio de Agricultura, La ciudad y el
para un público en presente, un público que campo, no 1934.
se identifica co cine e que deberá ser edu- Producto da segunda república española,4
cado para ver cine. É a posición de Bela estudante de biolóxicas, activista no cine-
Balázs.3 clube da Federación Universitaria Escolar,
Teoría en desenvolvemento entrementres FUE, o seu perfil vai parello ao de outros
observa e avalía o seu obxecto, Balázs tenta autores que deciden que o cinema expresa
localizar aquelas constantes do que el pró- un modo de creación diferente e
prio alcumara de nova arte arredando o que contemporáneo no que coinciden o disposi-
chama “teatro filmado” ou o simples rexistro tivo, o motivo, o ponto de vista e a posta
de eventos das posibilidades técnicas de en relación da obra final, da “pantalla”, co
fotografar esceas dende diferentes ángulos e público. Da imaxe cun espectador xeral.
escalas, incorporando o traballo expresivo do O real observábel, tanto na ciencia como
cineasta en que se fai visíbel no intre no que nas artes, é o seu territorio de escolla, o
se proxecta para o espectador e mete dentro primeiro chanzo do acto de intervención que
do filme o espectador. Nun dos seus epígrafes dende a súa formación sistémica aplicará a
Bela Balázs fala da realidade no canto da esculcar – fotograma a fotograma – o filme
verdade en el reférese a algo tan que o conduz para a realización: Acorazado
inequívocamente cinematográfico coma o Potemkin. No seu cuarto de estudante Carlos
Close up, apóndolle non só a súa incidencia Velo repasa unha e outra vez a película-
no modo de actuar, simplificándoo, se non insígnia dunha nova cinematografía para
no gusto do público que comeza a preferir descubrir o misterio do seu ritmo, do modo
o obxectivo, as faces e as voces sobrias, a no que os materiais adequiren sentido, a
xente da rúa entroques de actores estratexia Eisenstein amplando as
profesionais: posibilidades de linguaxe do medium mentres
a súa orixe cultural e social o conducen a
After the first world war and the Flaherty ou a Dovjenko coma os seus au-
hysterical emotional fantasies of tores-modelo. Fábula, cámara, montaxe, re-
expressionism, a “documentary”, dry, alismo, é a bagaxe que leva canda sí cara
anti-romantic and anti-emotional style a escolla do social coma o nó organizador
208 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

dos seus filmes na República española (1931- a voz é unha sorte de refrexo condicioado e
1936) e será no marco da mostra realizada automático que non se diferencia da pulsión
en París en solidariedade coa República, que a imaxe vai trasladando tal unha cadea de
cando o público que contempla o Gernika montaxe, e na banda sonora música culta de
acceda á exhibición única dun filme, Galicia- autor local – Sainz de La Maza – e estilo
Finis Terrae, do que anos despois apenas se atemporal: Shumann. No paso que segue dá
recuperarán os poucos minutos que funcionan o chouto para o cine puro, para a abstracción
a xeito de compendio da andaina fundacional sen terra na que fincar, para Infinitos, 1935,
de Carlos Velo. – película da que non se ten topado rasto
Cineasta de vocación didáctica, os seus material – no que a pegada vertoviana non está
filmes acompañan nas sás a proxección de no tema se nón no modo de utilización do
historias populares como Morena Clara, de dispositivo para facer un percurso cara o máis
Florián Rey, mentres a súa cabeza ignoto, as cosmogonías, multiplicando na
construtivista e o seu corazón neorrealista música de Halfter, o seu compositor de cabe-
valeránlle para utilizar os medios a bordo en ceira – na República e tamén no seu período
cada seu entorno e dende o interior de cada mexicano máis fecundo –, o encontro entre
seu entorno, que se pecha con Yebala- imaxe e son como universo dunha nova arte.
Romancero Marroquí, en Marrocos, 1937, E na fin: Galicia, premiada en 1937 na
camuflado como axudante de dirección na Exposición Internacional de París. A cámara
equipa alemana que realiza este filme de como constitutiva e como constatación da súa
propaganda franquista, e que reabre no capacidade para ver máis aló, para traernos
México, cun actor non profesional e cunha a solpresa dende o próximo, dende o xa
historia de vida e de morte, con Luis Procuna, coñecido, como elemento que se transforma
en Torero, 1956. Porque o máis singular de en espectáculo, que devén nese algo que atrae
Carlos Velo tal vez sexa esta capacidade de a nosa atitude contemplativa porque incor-
adaptación biográfica con cada fase históri- pora a incerteza nas nosas espectativas. A súa
ca: cine institucional e didáctico durante a confianza na cámara, en descubrir a ollada
República; preparador de cineastas para o que a cámara, iso que tanto desexaba Vertov; o
será o ICAIC en Cuba co seu cine-camión; seu sentido da posta en escea e da dirección
militante nacionalista no exilio que non arreda das personaxes, personaxes que se representan
pé da súa idea de regresar a Galiza, xa coa a sí próprias para a cámara – as mazadoras
Autonomía, anos oitenta, para aplicar as ideas do liño e as segadoras de Cartelle, por
centrais que defendera en Buenos Aires no exemplo; a gestalt, a forma no espazo como
cincuenta e seis e en calidade de delegado sinécdoque e como harmonizadora do ritmo
do Padroado de Cultura Galega de México e da relación entre planos; o contrapicado
no I Congreso da Emigración. que enfatiza o retrato; o movemento
Pola súa práctica fílmica, Carlos Velo é panorámico do ollo da cámara viaxando pola
o documentalista deses suxeitos colectivos descripción da paisaxe habitada en
nos que o proceso sustitúe ao evento, nos sobreimpresións que fan coexistir a xeografía
que o Close up alén dunha figura fotográfica humana coa voz do narrador; o que se pode
e na procura de sobriedade na interpretación, facer cun suxeito invisíbel, o campesiñado
leva canda sí ao espectador para dentro do galego dos anos trinta, fica nos escasos
cadro. A súa presentación como cineasta é minutos conservados de Galicia, un filme que
o devandito encárrego do Ministerio de ben podería entrar nunha antoloxía desa
Agricultura, La ciudad y el campo, unha relación primixenia do real co cineasta, do
película exemplar a propósito da idea de real metaforizándose nunha imaxe que é,
cidadanía en tanto aprendizaxe dun modo tamén, unha produción, é dicir, un resultado
novo de entender a produción e o reparto diferente dos elementos que participan da súa
de bens, que se continúa no filme composición:
Almadrabas, realizado con financiamento
comercial, e cuxo tema, a pesca e a conserva Cando esa campesiña olla para Velo
do atún, conclúe o ciclo de cinema instru- e sorrí está escrebendo a historia do
tivo. A linguaxe cinematográfica é de Griffith; cinema. Cando Velo é quen de acoller
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 209

o seu riso, a risco de rachar co 1954, as cápsulas de Cine-Verdad, unha sorte


protocolo obxectivista, está facendo de prefabricado de tres minutos, con imaxes
cine. Cando sorrimos diante desa de documentario e publicidade, e que com-
irrupción do imprevisto encol o dis- bina cunha tentativa inacabada de cinema
positivo, como espectadores estamos moderno, México mío, con Cesare Zavattini
entrando no cine.5 no guión.
No 1956 Velo presenta a súa proposta para
O respeto polo medio dende a cultura establecer en Buenos Aires unha base para
fotográfica é, tamén, ontolóxicamente, o un cine galego educativo, documental e
respeto polo seu obxecto, é dicir, pola re- informativo. Tres niveis funcionais coa fina-
alidade e pola relación coa realidade dende lidade de pular por un cinema militante tras
a distancia xusta. Ás veces a traverso de os pasos do de correspondencia que se
convencións coma o retrato que, lonxe de desenvolvera nos anos trinta entre a
estandarizar, van e configuran un modelo emigración e os seus lugares de orixe,
duplo de representación para ese dous, muller/ aqueloutro cinema de encárrego, de particu-
home que en Velo vai ser unha sorte de verso lar a particular, que atravesa o atlántico e
e reverso irreconciliábel. “Faire la photo”, que é pago, por exemplo, pola agrupación
o encadre ascendente e enfático, a imaxe bonaerense “Sociedad progresista Hijos de
estática como para permanecer, como un Fornelos y Anexos” para ver as imaxes da
“souvenir”, é a masculina. A secuencia en inauguración do local do sindicato agrícola.
tempo real, a ollada demorada, o plano xeral Un cinema de encárrego ao que José Gil,
e a figura metida na terra, é fiminina. O Velo o iniciador da industria do filme en Galicia,
reprodutor dos valores antergos está na pose; trata coma obra cinematográfica que arestora
o Velo como artista civil está na fotoxenia. é o único rexistro da bandeira republicana
O Velo da axit-prop, entroques, está nas na Galiza que, como sabemos, nen tivo tempo
esceas, nos “tableaux”. E é nas esceas do para se enfrontar ao golpe fascista, sendo
común, aí onde somos suxeitos colectivos, pasto dunha das razzias represivas máis
ún e múltiplo, onde o virtuosismo do cine- cruentas da Península. Os asasinatos,
asta reaparece guiando cada movemento da violacións e expoliacións; as fuxidas ao
cámara6, establecendo o ritmo interno e o monte; a permanencia do corpo de guerrilla
contrapunto con planos construidos coma galaico-leonesa en toda a década dos
unha gestalt, nos que a fabricación dunha coarenta; a saída de tres mil refuxiados
certa “imaxe” ten o valor dunha icona, dunha galegos cara Francia que non se acolleron
figura fílmica na que o todo tamén se re- á oferta de retorno, ou esa vintena de cativos
presenta e onde conflúe o tempo do filme que se engaden aos nenos de Asturias e de
co vivido polas personaxes, polo autor e polo Euskadi para entrar nos barcos que os liberan
espectador, e dicir, por nós. Se así for, estamos da guerra cara territorios amigos, son parte
no cinema. dos sinais e dos efectos da represión
Na fin, a atmósfera. Construída dende o franquista encol esa Galiza que se expresa
medium, dende a expresividade que permete como personaxe colectiva na derradeira
o medium. A sensación que experimentamos produción de Carlos Velo.7
ao entrañar o riso. O abraio dun obxecto pobre Aos cen anos do “Banquete de Conxo”,
convertido nunha escultura cinética que se o xantar de irmandade que no 1856 xuntara
insere nos ceos. A beleza – a harmonía – a intelectuais e operarios opoñentes para ficar
que vai pousando nesas variacións do pró- na historia como símbolo da anomeada
ximo, nesa verdade de cada material. Que “segunda xeración galeguista”, Buenos Aires
foi un dos eslogans con que se nos anunciou celebra o Primeiro Congreso da Emigración
a boa nova. Galega no que Carlos Velo, vice-presidente
A reaparición de Velo no exilio mexi- do Padroado da Cultura Galega en México,
cano será, outravolta, como cineasta de alento presenta unha ponencia co título “Proposta
didáctico – e soviético – que traballa entre de creación do Centro Cinematográfico
o coarenta e seis e ate o cincoenta e ún no Galego”. Nela revelará a súa crenza no
ámeto dos noticiarios, ou que elabora, no cinema como “el instrumento más poderoso
210 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

de nuestro tiempo para la intercomunicación publica na Universidade Autónoma de Méxi-


entre los hombres y la propaganda del co, encol a “Constitución del Comité de
progreso”. Como programa, a proposta de Cineastas de América Latina”9, cando afirma
Velo artéllase arredor das catro ponlas da que o auténtico cine latinoamericano é e será
industria cinematográfica: Produción, Merca aquel que contribúa ao desenvolvemento e
e Intercambio, Distribución e Exhibición para fortalecemento da cultura nacional e sirva de
os tres xéneros citados – educativo, docu- instrumento de loita e resistencia, ten ancoraxes
mental e informativo – alén de contemplar moito máis atráis e dende diversos territorios
as posibilidades dun–Noticiero Galego políticos e culturais que van puntuando as
mensual “que establezca su propia red de aportacións singulares de cineastas,
exhibiciones en América y España y sus movementos e filmes.
sistemas de intercambios con otros noticieros É así que xunguindo ideación e
mundiales” ao pé da organización de “Gru- realización; promovendo escearios estábeis
pos de Cineacción Rural, que llevarán a las para a formación e mais a divulgación,
aldeas y caseríos de Galicia el mensaje establecendo fórmulas novedosas para facer
cultural del cinematógrafo”.8 Na disposición películas; entrando mal ca ben en canles
Novena (Transitoria) Velo propónlle ao especiais de distribución (por exemplo nas
Congreso “que inmediatamente ordene la redes de ‘Arte y Ensayo’, se referimos o caso
filmación en 35 mm., blanco y negro de los español), nomes coma os de Fernando Birri,
eventos del mismo”. A filmación, hoxe “Cine y subdesarrollo”, ou o texto sempre
depositada no CGAI – Centro Galego das citado de Solanas y Getino “Hacia un Tercer
Artes da Imaxe –, é tamén a derradeira imago Cine”, desde Argentina; “A estética da Fome”
dunha emigración e un exilio militantes. ou “Abaixo co populismo” de Glauber Rocha;
Por vontade e por casualidade Carlos García Espinosa e o seu manifesto “Por un
Velos é un arquetipo republicano, que vive cine imperfecto”; Jorge Sanjinés con “Pro-
o cinema como instrución pública e para quen blemas de fondo y contenido en el cine
a vocación de seu devala para o neorrealismo revolucionario”, foron acompañados por fi-
e para o filme didáctico entrementres tece guras como as de Carlos Velo e foron
unha sorte de simbiose da cámara, a conscentes da importancia de dárense a
personaxe e tamén o espectador. Un dos seus coñecer mundo adiante xusto no seu mo-
documentais do período final, dos setenta, mento. De modo sintomátice estes textos
Universidad Comprometida, coa visita de están, arestora, reaparecendo en todas as
Allende á Universidade de Puebla, podería compilacións sobre Teoría do Filme.10
utilizarse como proba das aplicacións da Cuba e Latinoamérica, nova paisaxe para
montaxe dentro do directo. É a mesma Carlos Velo, traen tamén para dentro do
fórmula que aínda podemos rastrexar nos seus segundo e decisivo período de asentamento
primeiros filmes, cunha persoaxe-modelo, do documental a constatación de que é posíbel
un suxeito colectivo e máis a súa implicación un cinema con recursos escasos, cos medios
ben no sistema produtivo, ben na sociedade, máis a man, dende cineastas de non
e cunha cámara que segue a personaxe. profesionais, e para facer películas que, ao
Realización de honra nos tempos do mesmo tempo, sexan exemplo dun proceso
neorrealismo e prototipo da súa influencia de toma de conciencia e da súa transferencia
na creación de cinematografías nacionais tanto cara a teoría como cara a atitude fílmica.
tamén en Latinoamérica, o seu filme Torero, O retorno da suxetividade para a acción
a película que recebe en Cannes o Premio política faise a traverso da función central
do Xurado, restaura ese dobro rexistro da que se lle apón á cultura, por estaren con-
imaxe como fábula, como documento e como vencidos, como expresaron Birri ou Sanjinés,
historia melodramática. que o imperialismo no só controla as fontes
Se no noso interese está localizarmos os da riqueza se non que trata de enxoitar as
alicerces dunha particular andamiaxe que fontes da imaxinación. A identidade entre
soergue o cinema nacional-popular nos anos cinema e máis nación como dialéctica cri-
sesenta-setenta, un manifesto coma o que se ativa, na procura da súa própria tradición
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 211

expresiva, como programa de cine concreto nado e pola que anceia, algún día, ter todo o
e como decraración de amor entre o binomio que ten o cidadán dos países máis desenro-
cámara-realidade, pobo e autor, ten os ecos lados. Pero o escritor e cineasta cubano foi
daquelas mesmas angueiras que construíu a absolutamente craro: a meirande parte da
xeración do cinema que se define a partires humanidade non imos chegar endexamais a ese
da foto e co realismo como categoría his- nivel de consumo, porén – veleiquí onde radica
tórica: o tempo en presente, o secularismo a súa aportación cualitativa – a cultura dános
como filosofía, a inclusión como cidadanía. novos modos de sentir e de disfrutar, modos
Os efectos máis ca as convencións do re- diferentes dos modos do consumo irracional.
alismo, como pensamento nodal. Bertolt É esta a base do “cine imperfecto”. Non se
Brecht ao fondo. someter aos estándares, nen técnicos sequer,
O termo que unifica o esceario novo da do dito cinema comercial.
representación será, precisamente, o de anti- Zavattini traducido e recibido en Cuba,
imperialismo. O mapa de relacións e as Carlos Velo colaborando co ICAIC, os ci-
experiencias varían de situación a situación, neastas militantes de SLON – a elite da
segundo a árbore xenealógica de candasúa Nouvelle Vague e non só – sostendo proxectos
cinematografía e, sobremaneira, do vai e vén en Cuba, Ivens en Cuba, os americanos
cronolóxico da represión en cada país. A opoñentes en Cuba, os latinoamericanos
ideología pasa a se nutrir, aquén e alén, dos resistentes exilados, como Fernando Birri, en
teóricos da diferencia, de Franz Fanon, de Cuba,
Memmi, amén das decraracións dos co- La Batalla de Chile, editada en Cuba.
mités de cineastas. En calqueira caso, e pola Cuba e a normalización do documentario
primeira vez existen películas de como longametraxe. Cuba e a co-produción:
Latinoamérica que amosan como son os História do Brasil. Cuba, e a produción dun
países latinoamericanos portas adentro, pa- filme no 1948 sobre os dirixentes comunis-
íses nos que por forza se tén que viver, tas galegos Seoane e Gaioso que regresaran
reflexiona Chanan, na presentación do pro- clandestinamente para organizar a guerrilla
grama do oitenta e tres no National Film e que son asasinados en Coruña.12
Theatre londinense, e ao facelo así – continúa Ao longo do século vinte,
– e vir dende o seu próprio país ate nós, sobranceiramente a partires da súa segunda
apréndennos a pensar outravolta sobre os mitade a imaxe é xusto iso do que fico
países de acó, os territorios do capitalismo excluída, reséntese Barthes a traverso das súas
corporativo trasnacional que, por suposto, innúmeras citas de cabeceira, nos beizos e
inclúen as major cinematográficas.11 “Clan- nas verbas de Phèdre (Racine): Víno,
destinos y alternativos”, como proclamará nos púxenme corada, empalidecín ao miralo...
anos de chumbo, 1977, o Comité de Cine- Unha sorte de pretérito perfecto, pola súa vez
astas Latinoamericanos, o referente nacional reconstrución e actualidade, que abstrae e trae
como origo, para autores e espectadores, crea o tempo, que abstrae e trae para sempre a
un ámeto de entendemento que en moi cativas lembranza – por iso a súa comparanza coa
ocasións conseguirá se exteriorizar coma fotografía – e non a representación dun
nest4e momento. acontecemento. Quizais é tamén por iso que
Un esgo unificador é a política, e ben a foto e máis o pretérito perfecto estean tan
ao lonxe é onde a vegadas se albiscan as perto da seducción13. Cecais porque o espec-
custiónss estéticas, ou a pesquisa e o debate tador, o lector, o observante, saiba que o seu
encol definicións, segundo a súa función e papel é o de atopar ese lugar, ese azar, esa
o seu modo de produción, que arredan a arte situación esvaída, ese “determinado xeito de
de masas da arte popular. Outro esgo común sere ese minuto que fai tempo xa que pasou
é o choque frontal cos modelos do cinema [e no que] hoxe se acobilla o futuro”. Con
comercial. Neste senso é xa antolóxica a esta idea seminal do inacabábel Walter
posición de García Espinosa sobre un cine Benjamin rindo homaxe á labrega que lle
“imperfecto” consonte cunha nova orde eco- sorríu ao Carlos Velo cineasta, seductor e
nómica e cultural, ao por en custión aquela militante nos confíns da Terra. Oito minutos
angueira que merodea pola cachola do domi- nos que hoxe se acobilla o futuro.
212 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografía A Nosa Terra, 2000 e Fernando Redondo, Carlos


Velo e o cine didáctico na segunda república, (TD),
Balázs, Bela, Theory of Film, Londres, Facultade de Ciencias da Comunicación, Univer-
Dennis Dobson Ltd, 1952. sidade de Santiago de Compostela, 2001.
5
Véxase Margarita Ledo Andión, Del Cine-
Barthes, Roland, Fragments d’un
Ojo a Dogma95. Paseo por el amor y la muerte
discours amoureux, París, Seuil, 1977. del cinematógrafo documental, Barcelona, Paidós,
Chanan, Michael, Twenty-five Years of 2004.
The New Latin American Cinema, Londres, 6
En Fábulas de lo visible (Acantilado,
BFI, 1983. Barcelona, 2003), Ángel Quintana fai un percor-
Fernández, Miguel Anxo, Carlos Velo, rido magnífico tanto polos aspectos “formativos”
vida e exilio, Vigo, A Nosa Terra, 2000. do rexistro como polos autores que dende os
Ledo Andión, Margarita, Del Cine-Ojo primordios e arestora insisten no cinema como
a Dogma95. Paseo por el amor y la muerte medio materialista e como insignia da cultura laica
del cinematógrafo documental, Barcelona, (Arheim, Cavell, por exemplo).
7
Datos recollidos da intervención do profesor
Paidós, 2004.
Enrique Lister co gallo do I Congreso da
——————————— “Materia de
emigración e o exílio galego en Francia, orga-
Galicia” in La Galicia Moderna, catálogo nizado polo Centre d’Etudes Galiciennes-
exposición, Centro Galego de Arte Université Paris III, París, Instituto Cervantes-
Contemporánea, CGAC, Santiago de Colegio de España, 25-27 de marzo de 2004.
Compostela, 2004. 8
Primeiro Congreso da Emigración Galega,
Miller, Toby e Stam, Robert, Film and documentación, crónicas, Buenos Aires, 1956.
9
Theory, Oxford, Blackwell, 1999. Hojas de Cine: Testimonios y documentos
del Nuevo Cine Latinoamericano, México, UAM,
1988.
10
_______________________________ Véxase Film and Theory, segundo volumen
1
Universidade de Santiago de Compostela, da trilogía de Toby Miller y Robert Stam.
11
USC, Departamento de Ciencias da Comunicación. Michael Chanan, /Twenty five years of
2
Pasquín repartido por Royal de Luxe no latina,merican cinema /, Londres, Channel 4/BFI,
transcurso da súa performance pasa-rúas “Le 1983.
12
Rinhocéros”, Arles, Francia, RIP, 1997. Exhibido por Víctor Santidrián no I
3
Bela Balázs, Theory of the Film, Londres, Congreso sobre a emigración e o exilio galego
Dennis Dobson Ltd., 1952. en Francia, Centre d’Études Galiciennes,
4
Para textos de Velo véxase Actas do I Université Paris III, París, Instituto Cervantes-
Congreso da Emigración Galega, Buenos Aires, Colegio de España, 25-27 de marzo de 2004.
13
1956 e Vieiros, México, 1958. Sobre Velo, Miguel Roland Barthes, Fragments d’un discours
Anxo Fernández, Carlos Velo: vida e exilio, Vigo, amoureux, París, Seuil, 1977.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 213

Lágrimas para o Real – a inscrição da piedade


através de documentários melodramáticos
Mariana Baltar1

Introdução preciso reconhecer, colocando em perspec-


tiva a historicidade dos usos dos elementos
Desde a “invenção” da instância da linguagem, que tal abordagem da com-
documentária como forma narrativa de trans- paixão e do medo foram expressas de maneira
missão de um saber organizador do mundo tão fortemente marcada que acabaram por
que elementos de sedução são amplamente constituir uma gramática do melodrama.
utilizados. Sedução para que o espectador Vinculando, por exemplo, a utilização de
corrobore o argumento transmitido pela obra certos tipos de trilha sonora associada à
como a verdade das coisas do mundo. É, e aproximação do quadro nos rostos dos per-
a teoria cinematográfica já tratou de mostrar, sonagens, como indicativo de inscrição da
esse elemento de sedução que instaura o interioridade e marcando, com isso, uma
estatuto de verdade para a realidade trans- estratégia de identificação sentimental.
mitida pela obra classificada como De maneira análoga, podemos pensar em
documentário. usos de linguagem que estabelecem uma gra-
Partiremos dessa afirmação como fato, mática documentária; tais como o plano médio
bem sabemos que poderíamos ampliar a como marca realista, a locução em voz over,
reflexão, mas aqui, neste artigo, as metas são o uso de entrevistas e o olhar que encara a câmera
outras. A idéia de sedução coloca em questão como as marcas da ‘representação do real’. São
as incorporações das estratégias da ficção no formas de articular o filme que carregam con-
domínio do documentário; algo sem dúvida sigo a’“memória” de seus usos, vinculando-se
presente ao longo da história do gênero. Mas a um modelo de tratamento estético. Uma voz
é preciso ressaltar a incorporação cada vez over, por exemplo, nem sempre é usada no
mais freqüente, pelo menos no universo do domínio do documentário, mas certamente ela
documentário brasileiro, das estratégias me- é, em primeira instância, identificada com um
lodramáticas. Mais que qualquer outro ele- sentido de explicação da realidade próprio a tal
mento da ficção, é o melodrama que vem domínio, numa relação de comprovação com as
conduzindo o nível de identificação entre imagens a ela vinculadas. Essa ordem de iden-
espectador e personagens do documentário. tificação é importante pois demarca, na lingua-
A idéia de Melodrama2, tal como utili- gem, uma historicidade que influencia no pro-
zada aqui, está vinculada ao uso de códigos cesso de significação do filme.
de uma determinada narrativa cinematográ- É sob essa perspectiva da historicidade
fica que inscrevem um diálogo com o pú- que colocamos em correlação Melodrama e
blico na ordem da identificação sentimental, Documentário. À primeira vista, parece in-
pois está relacionado com tratamentos nar- coerente; já que o domínio do documentário
rativos de temas caros ao universo da vida carrega em si o peso de uma “autoridade”
privada, ao mundo das paixões; de um socialmente imputada aos filmes, que tem a
sentimentalismo que se contrapõe ao padrão ver com a expectativa da”‘representação do
racionalista-naturalista. Universo estético e real’; ou seja, o que autoriza os filmes clas-
temático que é enraizada em formas narra- sificados como documentários em ser um
tivas literárias e teatrais – tributárias dos discurso sobre e do real. Nesse sentido, a
folhetins e, no universo teatral, com gestuais conexão melodrama e documentário seria
exagerados e onde a música sublinha, comen- improvável se pensarmos exclusivamente na
ta ou antecipa a ação3. relação de oposição entre o sentimentalismo
Com o rádio e o cinema, o melodrama encampado pelo melodrama e a racionalidade
se fixa a partir de uma estética lacrimosa, abarcada pela “autoridade” do domínio do-
da emoção e da sensação de suspense. É cumental.
214 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Porém, é preciso lembrar que o metade dos anos 80 marca um certo


documentário, embora tenha ligações íntimas desmantelamento da mobilização política
com o mundo do não-ficional como um todo tradicional e uma queda da influência das
(universo da utilização científica das imagens teorias de esquerda no pensamento, e prá-
cinematográficas desde o final do século XIX; tica, intelectual e artística. O vocabulário
esse sim, radicalmente atrelado ao naturalis- sociológico de inspiração marxista, que in-
mo racionalista), como gênero cinematográ- clui termos como “engajamento” e “classe”,
fico é fundado com base na capacidade de parecem, nesse panorama, meio anacrônicos.
estabelecer vínculos de identificação com o No contexto brasileiro é ainda mais
público para fins de mobilização. O tal presente essa alteração, pois cinema no Brasil
elemento da sedução a que me refiro na sempre foi intimamente relacionado à
abertura do artigo. E nesse sentido, é tribu- atividade política. A figura do cineasta era
tário da narrativa clássica ficcional. no contexto de modernização (em especial
Quando o cientista político inglês John a partir dos anos 60) fundida com a figura
Grierson “cunhou” o termo “documentário” do intelectual. Da segunda metade dos anos
e institucionalizou o gênero, o fez para marcar 80 em diante, essa correlação vai
uma contraposição de tratamento da realida- gradativamente se dissolvendo em função de
de frente à racionalidade naturalista do mudanças no panorama político.
domínio não-ficcional vigente então, no final Desmantelamento dos movimentos sociais
dos anos 20. Essa contraposição era justa- depois de anos de ditadura militar e, espe-
mente a junção com o clássico-narrativo (no cialmente, os macabros frutos que a peda-
qual se insere o melodrama) e por isso Robert gogia do autoritarismo deixou como
Flaherty, com seus filmes Nanook e Moana, ensinamento podem ser os responsáveis por
foi o modelo a ser exaltado e seguido. uma certa exaustão do pensamento de esquer-
A idéia de Grierson era propor um tipo da e da arte engajada.
de cinema que carregasse a autoridade A crescente tendência no domínio do
racionalista junto com os efeitos sentimen- documentário da produção de obras que
tais funcionando como um “educador” das queiram se afastar do modelo “sociológico”
massas, eficiente exatamente por seu poten- e de imperativo revolucionário e político dos
cial atrativo. Adjetivos como “didáticos” anos anteriores é um sintoma desse cenário.
passam a fazer sentido para o documentário O nível de identificação será, portanto,
a partir dessa proposta, que será a fundadora conduzido de uma maneira a ser mais “pes-
da uma tradição ainda hoje respaldada. soal” que “coletivo”.
Acreditamos que o uso do melodrama se Nessa perspectiva, sentimentos de como-
faça especialmente em documentários ampa- ção, alegria (a instauração do riso, por
rados na construção de personagens e his- exemplo) e/ou piedade podem vir à tona. Com
tórias de vida individuais, pois torna-se relação os documentários que tematizam a
necessário estabelecer uma relação mais região Nordeste, a inscrição da piedade fi-
intensa entre o público e os indivíduos que gura como o elemento mais comum, recu-
figuram como personagens desses filmes. perando o tratamento tradicional do tema
É preciso, num modelo de documentário pelos discursos que produziram o Nordeste
que se quer afastar da articulação tradicional como unidade reconhecível simbólica e
(amparada em figuras generalizadas, em politicamente. É esse sentimento de piedade
grandes temas explicados numa argumenta- que ajuda a formular a equação simbólica
ção de base sociológica), inscrever este tipo que iguala, e condena, a região e os nordes-
diverso de identificação mais pessoal entre tinos à idéia de atraso e pobreza.
obra e espectador.
Esse tipo de documentário de persona- Nordeste como invenção vinculada à Pi-
gens começa a ter mais relevância a partir edade
dos anos 80, configurando-se como tendên-
cia a partir dos anos 90. E não por acaso, Nordeste não é uma mera delimitação de
mas por mudanças importantes no contexto espaço geográfico. É uma região que vem
político do mundo e do Brasil. A segunda sendo pensada e estruturada a partir de
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 215

delimitações mais simbólicas do que propri- pois, com crise desses paradigmas
amente físicas ou naturais. Há um processo naturalistas, com a emergência de um
dinâmico de embates que reuniu, para o novo olhar em relação ao espaço (...)
Nordeste, uma história comum e o transfor- vai ser possível a invenção do Nor-
mou num objeto, uma unidade organizada em deste como reelaboração das imagens
um contexto sócio-histórico em que figura, e enunciados que construíram o an-
no Brasil, os debates da identidade nacional. tigo Norte.”4
É a partir dos anos 20, e mais precisamente
dos anos 30, que se inicia essa organização É a produção de um novo olhar
do imaginário regional, e conseqüente pro- regionalista no início dos anos 20 que or-
cesso de identificação regional, pois era ganiza o Nordeste como unidade, diferenci-
preciso estabelecer as diferenças para melhor ando-o levemente, enquanto espaço simbó-
amparar, ou para se lutar contra, o projeto lico, do Norte/Sertão, produzido antes a partir
nacional modernizador. de pressupostos naturalistas. O tema do
As lutas políticas no contexto da urba- sofrimento, do sertão símbolo e da questão
nização e industrialização, da oligarquia de uma certa inferioridade em relação ao sul
cafeeira e da decadente oligarquia do açúcar, (que também será, nesse novo contexto,
e de uma incipiente burguesia industrial dividido em regiões, e é onde aparece o
colocaram em cena intelectuais, cronistas, sudeste) permanecem compondo o imaginá-
literatos, políticos e artistas num movimento rio tradicionalista sobre o Nordeste, inclu-
de pensar o Brasil. Todos articulados para sive recuperando as práticas discursivas de
demarcar as forças e os papéis políticos de descrições dos flagelos. É fundamental co-
um país que iniciava a tentativa de deixar locar essa separação em regiões dentro de
para trás a estrutura rural. É nesse contexto uma perspectiva de mudança maior no
que os embates vão se dar em torno de paradigma do pensamento sobre o país.
dicotomias muito importantes na época, tais O antigo regionalismo considerava as
como rural X urbano e arcaico X moderno. diferenças entre os espaços do país como um
Vindos de variadas maneiras (visual, reflexo imediato da natureza, do meio e da
literária, musical, científica, jornalística), tais raça. O “novo” regionalismo verá nas dife-
discursos instituirão certo imaginário que vai renças entre as regiões o somatório do que
sendo (re)trabalhado desde então, mas que compõe a nação. Nesse sentido, será impor-
acabou por fixar para o Nordeste um dado tante realizar todo um inventário (descritivo
sentido de pobreza e sofrimento, porém e explicativo) dos elementos e manifestações
recheado de uma festividade pueril. A forma característicos de cada região o que será
como esse imaginário ganha corpo varia realizado no âmbito das crônicas e da im-
ideologicamente, passando da denúncia po- prensa, dos discursos literários e das artes
lítica das causas da miséria ou chegando ao visuais.
casuísmo personalista, indicando ora Entre os anos 20 e 40, abundantes são
mobilização e questionamento social, ora as notas de viagens desbravadoras ao Nor-
posicionamentos conservadores. deste que alimentam jornais como Estado de
Era disseminada uma prática de descri- São Paulo. Em meio ao furor modernista,
ção das misérias, dos horrores, especialmen- antropofágico e nacional-popular, vai-se
te vinculados à seca. Descrições que dão a organizando uma nação que se constrói a
tônica na composição de um imaginário partir da oposição entre o regionalismo
sofredor para o espaço do sertão e do norte. paulista5 (do cosmopolitismo, da modernida-
Essa mesma tônica – de sofrimento e de de urbana) e um regionalismo nordestino (da
pedinte – vai atravessar, e perdurar, para o valorização do medieval, do rural, do tradi-
imaginário do Nordeste. cional), cada um proclamando sua superio-
ridade em relação ao outro.
“A descrição das ‘misérias e horrores Esta tensão gera uma curiosidade pelo
do flagelo’ tenta compor a imagem pitoresco e o Nordeste configurava-se
de uma região abandonada, margina- exatamente como esse pitoresco. É possível
lizada pelos poderes públicos. (...) Só, atestar tal afirmação com o tremendo suces-
216 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

so de espetáculos como o de Cornélio Pires um verdadeiro mapeamento da tradição. O


no Teatro Fênix em 1926, “Brasil Pitoresco pensamento de Freyre e de outros – “tradi-
– Viagem de Cornélio Pires ao Norte do cionalistas” do movimento regionalista opõe
Brasil”: “feito para que o público risse das o Nordeste ao Sudeste na mesma chave que
coisas pitorescas, exóticas, esquisitas, ridí- opõem o rural ao urbano. O Nordeste é o
culas, dos irmãos do Norte.”6 espaço do arcaico pois esta foi a sociedade
O pitoresco produz os estereótipos do criada pela empresa açucareira e do algodão.
risível ainda hoje presente no imaginário Que fundou também uma tradição de fortes
sobre o nordestino. Nesse contexto, o riso laços familiares e personalistas e que pre-
- sobretudo com relação ao universo de uma cisam ser resgatados, segundo estas formu-
fala e cotidiano rural - virá junto com a lações.
descrição dos flagelos, ligados, ambos, pela Fica perceptível, assim, como o discurso
rede da simplicidade e do atraso. Pelo menos desse movimento pôde ser apropriado para
do ponto de vista de um “regionalismo a defesa das relações paternalistas de uma
paulista”, preocupado em disseminar uma elite temerosa frente às mudanças do projeto
série de discursos sobre a região. modernizador. São essas apropriações que
Por outro lado, aparece uma certa fixam o imaginário tradicionalista sobre o
exaltação às tradições rurais, através de um Nordeste como ligado à tradição rural e
discurso de descoberta e de valorização, que paternalista (a despeito de algumas vozes
estabelece um contraponto à modernização dissonantes no movimento regionalista mais
da vida urbana. Essa exaltação se dá a partir ligadas à denúncia social). O traço paternalista
do movimento chamado de Regionalista, se reflete, até os dias de hoje, numa política
iniciado em Recife, por volta de 1926, que assistencialista, em que o sentimento da
tem no sociólogo Gilberto Freyre o principal piedade será a força motriz (pois irá motivar
a ajuda, e não o direito à cidadania).
expoente. Esse nordeste tradicional que é
A migração também vai surgir como tema
exaltado pelo movimento regionalista nordes-
vinculado ao Nordeste pela relação de opo-
tino acaba por respaldar, também, a união
sição entre rural e urbano, que ganha força
de forças oligárquicas pela reivindicação em
com o crescente fluxo de mudanças de
favor da manutenção de um grupo político
nordestinos para o sudeste a partir da Pri-
em decadência – os representantes da em-
meira Guerra Mundial. Mas sua
presa açucareira.
“tematização”, e a fixação do sentido para
A reflexão e as pesquisas sobre o Nor-
os fluxos migratórios que liga alteridade e
deste de Freyre, desde a colônia até o império,
pobreza, se dará apenas a partir da música
conferiram para o espaço uma história e de Luiz Gonzaga difundida pelas rádios nos
memória comum – o que efetivamente o anos 40. Novamente, a política paternalista,
transformou em região. Por sua já influência a memória dos sofrimentos, a saudade dos
no pensamento intelectual, Freyre agregou valores da tradição familiar serão a tônica
correligionários na causa regional (desde pelo expressa nas letras dessas músicas.
menos 1925, quando publicou no Diário de A imagem do migrante será quase sem-
Pernambuco o Livro do Nordeste) e convo- pre a do rural que se desloca para a cidade,
cou a reunião do Congresso Regionalista do e não se ajusta. Os meios de comunicação,
Recife, em 1926. No manifesto, escrito por mais notadamente o rádio, tiveram papel
Freyre, ficam claras as idéias do movimento: primordial pois eram peça chave dentro do
“Há dois ou três anos que se esboça nesta projeto desenvolvimentista a partir do Esta-
velha metrópole regional que é o Recife um do Novo e dos anos 40. Eram veículos de
movimento de reabilitação de valores regi- integração nacional e até certo ponto, a
onais e tradicionais desta parte do Brasil”.7 própria migração era uma prática estimula-
As pesquisas e práticas discursivas da. Porém, quando se associa migração a
encampadas no contexto do movimento Nordeste (a despeito de outros fluxos migra-
regionalista – seja na literatura (Mário Sette, tórios, internos e externos, importantes),
por exemplo), seja nas artes plásticas (Cícero velhos conceitos vinculados ao imaginário do
Dias ou Lula Cardoso Ayres) – produziram atraso que cerca a região voltam à tona.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 217

É apenas a partir da segunda metade dos sofredor, miserável e pedinte, e do pitoresco


anos 40 que a fixação do espaço da tradição e pueril): “vindo ao encontro, em grande
(e com ele certa nostalgia) vai ser modifi- parte, da imagem de espaço-vítima, esfoliado,
cada. A influência de teorias marxistas no espaço de carência construído pelo discurso
pensamento social e artístico do país – que de suas oligarquias.”9
já se iniciava em meados dos anos 30, mas O discurso revolucionário não foi
que terá força mesmo a partir de 45, com efetivamente capaz de trans-figurar o ima-
o fim do Estado Novo – traz outras pers- ginário tradicionalista porque também não
pectivas para os sentidos conferidos às re- transformou as relações de produção. A
giões e para a construção da identidade revolução não aconteceu e a mudança nos
nacional. sentidos institucionalizados (que remetem a
Os temas do Nordeste tradicionalista segregação e desigualdade) não se confirmou
continuam a vigorar, mas são acrescidos de como rupturas no imaginário.
um cunho de denúncia social, devido ao
imperativo da utopia da revolução. É nesse Melodrama em Passageiros para reafirmar
contexto que aparece a poesia social de João o imaginário nordestino
Cabral de Melo Neto; a pintura de Portinari
e de Di Cavalcante e, no pensamento social, Passageiros foi produzido pela
a obra de Josué de Castro8. VideoFilmes para integrar a série “6 HIS-
Pensar o país passa a ser tarefa da classe TÓRIAS BRASILEIRAS”, veiculada no
média intelectual influenciada pelos discur- canal de TV por assinatura GNT, canal que
sos de esquerda, tentando estabelecer uma faz sua publicidade como um canal quase que
aliança com o povo na luta contra o capi- especializado em documentários. Realizado
talismo e o imperialismo. É imprescindível em vídeo, Passageiros foi dirigido, em 2000,
lembrar o contexto de redefinição das forças, por Izabel Jaguaribe e Dorrit Harazim e além
e modelos ideológicos, internacionais a partir das exibições no canal, integrou também uma
do final da Segunda Guerra. mostra paralela no Festival É Tudo Verdade
A revolução seria, para essa sociedade de 2001.
civil (Partido Comunista, UNE, CPC, Sin- Toda a tentativa de Passageiros é a de
dicatos...) que chamava para si a responsa- colocar os espectadores no lugar dos sujeitos
bilidade pela definição da nação a partir de migrantes, e transpor uma sensação do sa-
uma noção de nacionalismo um pouco di- crifício como sendo o sentimento comum a
ferente daquela dos anos 30 (da formação todos. Para tanto, estratégias melodramáticas
nacional-popular). Uma arte da realidade li- são encampadas ao longo do filme, que acaba
bertaria o povo da opressão. O Nordeste era assim, por inscrever uma “permanência” com
visto como o povo oprimido por excelência relação ao tratamento tradicionalmente esta-
– a marginalização causada pela migração, belecido na ordem do imaginário social, que
o sertão das misérias, e a cultura popular, associa migração ao assistencialismo e a
com suas riquezas como sendo a arma da sentimentos de piedade, escondendo portan-
resistência. Contudo, mesmo atravessados to conflitos e tensões sociais e políticas.
pela visão trans-figuradora da utopia de A migração neste documentário suposta-
revolução, os discursos continuam vincula- mente ganha contornos contemporâneos. A
dos, de alguma maneira, aos temas tradici- figura do migrante não se confunde mais,
onais: o mundo das relações familiares e como há alguns anos, com a figura do
rurais, da devoção e de uma “autêntica” retirante. Os movimentos migratórios são mo-
cultura do povo em oposição ao que é agora vimentos sazonais – como informa, aliás, a
nomeado como o desenvolvimento desmedi- voz over em uma das sequências iniciais do
do do capitalismo cosmopolita. filme. Porém, retirantes como no passado ou
Por um estranho, e inusitado, caminho, “passageiros” como no presente, a figura do
“revolucionários de 60” e “tradicionalistas de migrante será ainda relacionado com a pi-
30” se encontram reforçando, mesmo que por edade, pois é a mesma política
vias diferentes, o imaginário construído a assistencialista que acaba por se interpor na
partir dos anos 20 (vinculado à imagem de narrativa. Nesse sentido, as estratégias
218 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

melodramáticas serão amplamente usadas, de Um plano mais aberto onde se vê um


uma maneira a inscrever o nível de identi- homem e uma bicicleta circulando pela
ficação necessário à instauração da piedade. cidade. A câmera acompanha seu movimento
A inserção do melodrama está dividida até a chegada na porta de uma casa. A trilha
ao longo do filme a partir do que chamei sonora muda radicalmente para algo mais
de digressões sentimentais - sequências que lento, uma composição de violão cello e o
interrompem a narrativa central para fixar, que parece soar como uma flauta doce. É
melodramaticamente, pequenos dramas e importante ressaltar a esse ponto o papel
histórias paralelas; provocando, ainda mais, condutor da trilha musical, inspirando uma
a sensação de identificação com o universo mudança de clima. É a marca da moldura
do migrante. melodramática que já está em uso.
A tônica principal do tratamento da O homem bate palma num portão para
migração em todo o filme é uma ruptura com entregar uma carta. Nesse momento, a câmera
o tratamento do tipo sociológico realizado faz um plano de detalhe na carta e nas mãos
pelos documentários dos anos 60, em filmes da senhora que a recebe. “Oh meu deus”,
como Viramundo (Geraldo Sarno, 1965), por balbucia a personagem. O som do piano entra
exemplo. Se lá, o afeto e o indivíduo eram, na trilha e a câmera faz um ligeiro movi-
de certa maneira, apagados em função de um mento para frente, agora em plano médio,
imperativo político-social por conta das nos colocando dentro da casa. Novamente,
condições históricas de produção, aqui é corte para detalhe da carta e das mãos da
questionamento de ordem mais política que personagem, que já está sentada. Ela abre a
acaba sendo esquecido em função de uma carta num plano que continua muito apro-
identificação sentimental conduzida de ma- ximado acompanhando e ressaltando o
neira tal que se deixa sobressair um tipo muito movimento de suas mãos. Essas inscrições
específico de política: a política de planos de detalhes são recursos que
assistencialista. carregam a memória do clássico-narrativo
Diversos personagens circulam em Pas- ficcional e, mais especificamente, do melo-
sageiros, todos circunscritos por um perso- drama. Pois ressalta o objeto – aqui no caso
nagem central cuja viagem de volta ao Piauí a carta - inscrevendo um sentimento de
será acompanhada pelo filme. Marcelo é expectativa, elevando sua importância. Fica-
natural de Pedro II (não por acaso a mesma mos à espera do que essa carta representa,
cidade que aparece na abertura do filme, mas somos levados a sentir, pela trilha sonora
quando acompanhamos a leitura de uma carta que pontua a ação, que se trata de algo da
de um pai migrante a seus filhos). Essas ordem da emoção.
“coincidências” são estratégias que remon- Corte para plano médio da personagem
tam à narrativa clássica ficcional, onde cada lendo a carta, uma cena muito rápida que
elemento do filme (do roteiro, aos objetos estabelece apenas uma ponte para o quadro
de cena, aos nomes próprios) terá uma seguinte, o seu rosto em detalhe a nos narrar
importância no desenrolar da trama. É im- a situação da prisão do filho. Toda a fala
portante lembrar, então, que o melodrama será pontuada pela trilha instrumental onde
cinematográfico é vinculado à consolidação o som do piano é o mais forte. Ao final da
do clássico-narrativo. narração, ela suspira profundamente. É quan-
A principal inscrição do melodrama se do se dá um corte rápido e seco para um
faz no que chamo de digressão sentimental. primeiríssimo plano do remetente da carta.
São ao todo 5 inserções desse nível espa- Onde lemos: “Vai com deus carta” junto com
lhadas ao longo dos 57 minutos de filme. o endereço da prisão. A câmera ressalta ainda
Aqui exponho, com mais atenção, aquela que mais a informação ao fazer um pequeno
considero exemplar, e acontece por volta dos movimento para frente (um travelling) fechan-
39 minutos, sendo anunciada pelo som ins- do na palavra Penitenciária I.
trumental da música A Vida do Viajante, de A mãe inicia a leitura da carta, uma série
Luiz Gonzaga, em que um dos versos da letra, de “mamãe, eu te amo”, repetidos um a um
bastante conhecida, diz “minha vida é andar pela personagem cujo rosto, que chora, está
por esse país”. enquadrado em primeiro plano. Uma lágrima
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 219

escorre e quando ela desaparece no nosso onais. Essa condução pelo exagero é uma das
campo de visão é o momento para o corte. marcas do melodrama fílmico, bem como a
Plano médio que enquadra a personagem alternância especificamente arquitetada, de
sentada para então fazer um novo corte para planos médios e planos de detalhe.
um plano de detalhe de carta, onde se vê, É um diálogo direto que se estabelece,
dessa vez, o lado do destinatário. Fusão para nessa e em outras sequências que irrompem–
o plano geral da penitenciária em São Paulo, Passageiros sem serem retomadas (que
enquanto ouvimos a personagem ler: “Ma- chamo de digressões sentimentais), com a
mãe, fique com deus...” “memória do melodrama cinematográfico”.
Veremos ainda quatro planos fixos e rápidos Passageiros termina com uma sucessão
da penitenciária – plano médio do corredor, de vários retratos de migrantes, em São Paulo
detalhe da chave fechando a cela e das grades e no Nordeste, que dizem seus nomes e seu
em contra-luz. É o fim da seqüência. A música, estado de origem. Uma estratégia de frag-
que não desapareceu nem por um minuto, faz mentação dos personagens e, ao mesmo
um leve agudo anunciando, e conduzindo, a fusão tempo, de instauração de uma unidade nar-
com cenas de estrada à noite. rativa já utilizada no início do filme. É uma
Voltamos, após essa digressão, para dentro seqüência que reafirma o trecho da narração
do ônibus, onde veremos, novamente, como de uma carta que é lida ao longo da seqüência,
um ciclo que se fecha, pessoas dormindo. A cujas imagens conferem uma autoridade e
música da sequência anterior some dando existência de realidade ao conteúdo dessa
lugar a alguns ruídos ambientes e logo depois carta. São Paulo é muito grande e eu sou
a outro trecho (instrumental) da música de um só. Embora muitos, somos todos, os
Luiz Gonzaga. Toda a atuação da música é migrantes, um só. E São Paulo, esse mundo
muito exuberante, pontuando sempre a se- moderno, pleno de possibilidades, continua
quência, conduzindo as expectativas emoci- muito grande.
220 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia Unesp, 2001.


Xavier, Ismail. O cinema brasileiro
Albuquerque Jr., Durval Muniz. A in- moderno. São Paulo, Paz e Terra, 2001.
venção do Nordeste e outras artes. Recife, __________. O olhar e a cena. Melodra-
FJN/Ed. Massangana, São Paulo, Cortez, ma, Hollywood, Cinema Novo, Nelson
1999. Rodrigues. São Paulo, Cosac e Naify, 2003.
Da-Rin, Silvio. Espelho Partido. Tradi-
ção e Transformação do Documentário
Cinematográfico. Dissertação de Mestrado, _______________________________
1
Escola de Comunicação/UFRJ, 1995. Doutoranda do Programa de Pós-graduação
Freyre, Gilberto. Manifesto Regionalista. em Comunicação/UFF.
2
Reconheço a existência de uma diferença
7ª Edição rev. e aum. Recife, FUNDAJ, Ed.
fundamental de papel político entre o melodrama
Massangana, 1996). de raízes teatrais e literárias e o melodrama tal
Jacobs, Lewis (org.). The Documentary como se configurou no universo do cinema, e ainda
Tradition. Nova Iorque, W. W. Norton, 1979. dentro do cinema, do melodrama familiar para o
Leal, Wills. O Nordeste no cinema. João melodrama latino-americano. Mas aqui, atenho-
Pessoa, Editora Universitária/Funape/UFPb, me ao melodrama fílmico familiar e a seu sentido
1982. de normatização de uma sociabilidade burguesa
Lovell, Alan and Hillier, Jim. Studies in na instituição de um universo privado (indivíduo,
Documentary. London, Secker and Warburg, plano emocional) em oposição ao público.
3
Oroz, 1992.
1972. 4
Albuquerque Jr., 1999:59/62.
Meyer, Marlyse. Folhetim: uma história. 5
Claro que não é apenas São Paulo que
São Paulo, Companhia das Letras, 1996. participa desse regionalismo vinculado aos dis-
Nichols, Bill. Representing Reality. cursos urbanos e de modernização. Mas tal
Bloomington, Indianapolis, Indiana movimento ficou fixado mesmo segundo a no-
University Press, 1991. meação de regionalismo paulista.
__________. Ideology and the Image. 6
Albuquerque Jr., 1999:45.
7
Social representation in the cinema e other Freyre, 1996:47.
8
media. Bloomington, Indianapolis, Indiana Ainda nos anos 30, algumas vozes
University Press, 1981. “dissonantes” realizavam certa denúncia política,
Oroz, Silvia. Melodrama – o cinema de não por acaso, são artistas ligados ao Partido
Comunista, como Graciliano Ramos e Jorge
lágrimas da América Latina. Rio de Janeiro,
Amado. No entanto, são dissonantes porque o
Rio Fundo Editora, 1992. pensamento artístico e intelectual da época era
Renov, Michael (org.). Theorizing marcado pela definição e conhecimento dos sig-
Documentary. Nova Iorque, Routledge, 1993. nos de brasilidade, e não exatamente pela denún-
Tolentino, Célia Aparecida Ferreira. O cia da construção desses elementos.
9
rural no cinema brasileiro. São Paulo: Ed. Albuquerque Jr., 1999:193.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 221

O Picaresco e as Hipóteses de Heteronimia


no Cinema de João César Monteiro
Mário Jorge Torres1

A primeira curta-metragem de João César Ésquilo com um coro popular de mondadeiras


Monteiro, Sophia de Mello Breyner Andresen e a presença teatral e imponente de Manuela
(1969), contém já elementos matriciais de de Freitas, uma deusa com os espigueiros,
toda a sua obra: a clareza e rigor com que ao fundo, por templos do imaginário popu-
se filma o Sul, um Algarve de luz e de ficções lar. A tragédia grega contaminava o olhar
solares, apontam já para a narratividade mítica sobre os campos e sobre os tempos contur-
de À Flor do Mar (1986), em que o cineasta bados de uma questionação da nacionalidade
encena a misteriosa história de um marinhei- e das suas perplexidades.
ro, reminiscente do drama extático de Na banda sonora, aparecia uma mescla
Fernando Pessoa. À Flor do Mar encerra, de cantos tradicionais com a 7ª de Bruckner
aliás, uma importante trilogia de revisita às e a polifonia, também sobre textos belíssimos
raízes de uma portugalidade essencial, que de Maria Velho da Costa, das vozes do
se iniciara com Veredas (1977) e se prolon- próprio autor, de Margarida Gil, a compa-
gara em Silvestre (1981), desdobrando-se nheira e a actriz, condutora da peregrinação,
ainda em três preciosas raridades, as curtas e de Helena Domingos (vinda da primeira
realizadas para a televisão sobre contos ficção, Quem Espera por Sapatos de Defun-
tradicionais (1978), destacando-se pela sua to) com a sua dicção silabada e transparente.
qualidade e interesse contextualizante para Sempre à procura de uma poética própria,
Silvestre, pela violência poética e pelo uso algures entre o irrisório e o sublime, traçava-
da mistura de exteriores com cenários pin- se uma rede de vasos comunicantes, que vai
tados e cavalos de cartão: O Amor das Três estender-se, aliás, a toda a obra do cineasta:
Romãs, A Mãe e Os Soldados, com o pri- os duplos e desdobramentos de personagens
meiro a marcar a estreia de Pedro Hestnes, e de vozes começam a instituir-se em regra
muito jovem, ao lado de Margarida Gil, o de uma ficção única, espraiada por diversas
rosto de Veredas. No último, antecipava-se variações sobre os mesmos temas. A herança
mesmo já um dos gags fulcrais de As Bodas do surrealismo e do abjeccionismo filtrava
de Deus: o aparecimento de uma inusitada uma multiplicidade de discursos coesos, mas
riqueza, um inexplicável tesouro. dispersos, abrangentes, mas interessados
Em Veredas, fabricado (trata-se da ter- numa visão complexa da cultura.
minologia escolhida para o genérico) por João O segundo tomo da trilogia desta
César Monteiro, é com um complexo arti- portugalidade convulsa e ancestral surge com
fício onírico que nos confrontamos: um Silvestre (1981), sofrendo nas condições de
percurso peripatético pelo país real do pós- produção uma alteração que vai depois
25 de Abril, contaminado por uma visão do constituir imagem de marca do cineasta: inicia
sagrado, que encenava uma ideia as filmagens em exteriores, para regressar à
abstractizada do conto oral e cruzava a cultura artificialidade do estúdio (entre a miniatura
popular com a cultura erudita: por um lado, medieval e os cenários de teatro pobre) e das
uma versão, compilada por José Gomes projecções frontais, fantasmagoricamente
Ferreira e Carlos de Oliveira (este último transfiguradas pela câmara mágica de Acácio
sempre uma presença obsessiva no universo de Almeida. A História encena-se com a
cesariano), da História de Branca-Flor, com desvergonha da sua teatralidade exposta,
um visual pseudo-etnográfico, que se socor- nunca aspirando a reconstruir um real de
ria de belas imagens dos caretos contornos naturalistas, facilmente consumível
transmontanos, por exemplo; por outro, uma como representação do mundo: o filme
hierática representação de As Euménides de asume-se como fingimento e desconstrói-se
222 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

perante o espectador. E, no entanto, o es- nização, e fala da personagem como de um


quema ficcional cita, de forma curiosa e duplo de João César), e assumira por diver-
inesperada, um grande filme mal amado da sas vezes a voz-off de narrador ou fora o rei
Hollywood dos tempos áureos, Sylvia Scarlet do banquete final de “Silvestre”.
(1935), de George Cukor, clássico de um E é precisamente a “Quem Espera por
cinema que podia ainda criar um sistema de Sapatos de Defunto Morre Descalço” (1970),
reconhecimento e verosimilhança com um retrato da nossa “apagada e vil tristeza”, com
real a extravasar para fora do ecrã, aquilo uma máxima que poderia antepor-se a toda
que Walter Benjamin designou por ingenui- a filmografia de João César (“Este país,
dade representativa: “O filme só pode asse- senhores, é um poço onde se cai, um cu donde
gurar a ilusão em segundo grau, depois de se não sai.”) que voltamos para esboçar essa
se ter procedido à montagem das sequências. outra rima interna com a obra pessoana, a
[...] Despojada de tudo o que a aparelhagem tal criação de uma primeira hipótese de
lhe acrescentou, a realidade torna-se aqui a heteronimia. Na sua famosa carta a Adolfo
mais artificial de todas, e, no mundo da Casais Monteiro, sobre a génese dos
técnica, a captação da realidade enquanto tal heterónimos, Fernando Pessoa declara: “Des-
não passa de uma ingenuidade”2. de que me conheço como sendo aquilo a que
Maria de Medeiros, na sua fulgurante chamo eu, me lembro de precisar mentalmen-
estreia cinematográfica, dobra o travesti de te, em figura, movimentos, carácter e his-
Katherine Hepburn – de Sílvia para Silvestre tória, várias figuras irreais que eram para mim
– no contexto de um drama medieval, apro- tão visíveis e minhas como as coisas daquilo
veitamento da dimensão fantástica do a que chamamos, porventura abusivamente,
märchen, ou, à falta de melhor designação a vida real”3. Ora, no país onde “caem baratas
genológica portuguesa, do conto de fadas do tecto”, César Monteiro, a braços com os
(sem fadas). Revisitando a beleza de uma seus próprios fantasmas de um Portugal
língua portuguesa arcaizante, do registo salazarento e acabrunhado, começa a criar
medieval ao mais puro da conservação do os seus alter-egos e escreve uma pequena
conto tradicional, Silvestre coloca, entre fábula que ilustra o provérbio do título,
outras, questões interessantes sobre a sua destinada a um filme de sketches (nunca
inscrição na tradição de uma certa moder- concluído), à moda da nouvelle vague, com
nidade, no que concerne o uso do cenário a máxima de Godard (“o cinema é uma vi-
histórico, enquanto óbvio cenário ––“Lancelot garice”), a presidir à função. Tudo a rimar
du Lac” (1974) de Robert Bresson, “Perceval, com tudo.
le Galois” (1978), de Éric Rohmer, ou Lívio tem, pois, o rosto e o corpo de Luís
“Jeanne, la Pucelle” (1994), de Jacques Miguel Cintra e a voz inconfundível do autor
Rivette. apropriando-se parcialmente da personagem
À Flor do Mar (1986), com música de para nela se projectar e desdobrar: se o
Bach em fundo, o filme mais-que-perfeito do documentário sobre Sophia (e bem assim o
cineasta, fecha este ciclo, na medida em que posterior À Flor do Mar) aponta, como vimos,
se insere na visita às luminosidades de um para O Marinheiro de Pessoa, o segundo
Sul geográfico e mítico e lhe adiciona o já filme, Quem Espera por Sapatos de Defunto,
referido marinheiro, de pessoana memória, explora inesperadas representações semi-
que conta a sua história, como o Sindbad autobiográficas.
do imaginário de uma das crianças do filme. De Fragmentos de um Filme-Esmola
E, numa das cenas do filme, numa esplanada, (1972), a segunda ficção, fica a introdução
em que o primeiro plano se ocupa das fi- da figura essencial de Manuela de Freitas (já
guras de ficção, aparece o autor em retrato a recitar Ésquilo, como em Veredas) e uma
de família, com a mulher e o filho, ele que primeira abordagem ao cinema como espaço
já dera voz ao Lívio de “Quem Espera por de invenção cerimonial, “para acabar de vez
Sapatos de Defunto” (Luís Miguel Cintra com a ideia da família”. Arremedo de cine-
recorda em entrevista, agora publicada na ma-verdade, apresenta o Portugal do imedi-
recente edição em DVD, que não pudera, por ato pós-25 de Abril, com montagem de cenas
ter ido para Inglaterra, fazer a pós-sincro- do Nosferatu de Murnau, incluindo a que vai
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 223

ser recriada em Recordações da Casa Ama- de Deus (1998) já funciona num registo
rela. Questiona-se a questão da Democracia, completamente surreal, que, como defende
com a pergunta colocada ao marinheiro Vítor Silva Tavares, se deverá estender a toda
americano (de novo a figuração do marinhei- a sua obra fílmica, e não só. O carácter onírico
ro), e introduzem-se, como motivo, a pros- da visita ao convento ou do achado da
tituta, figura com ecos futuros evidentes na herança remetem-nos para a dimensão ale-
obra de João César. atória que já encontrávamos no tratamento
Estavam, pois, lançados os dados para a do imaginário popular em filmes como
suprema transformação: João César dava Veredas ou Silvestre, sendo na trilogia, apesar
corpo a João de Deus, personagem fora (e de algumas fragilidades, a grande ponte para
dentro) dele, e As Recordações da Casa a desejável leitura de conjunto.
Amarela (1989) entrava no imaginário dos Muito curioso se torna o facto de a trilogia
portugueses, mais por via do publicitário spot de João de Deus, para sempre o seu ex-libris
televisivo (o tantas vezes citado: “adorei, criativo, ter aparecido intercalada de filmes
adorei, adorei”), que por conhecimento, de intervalares, mais frágeis do ponto de vista
facto, de uma das obras mais coerentes e ricas narrativo, como pausas para uma indolência
do Portugal de depois de Pessoa, numa essencial para o avanço: O Último Mergulho
espécie de refracção, encenada para melhor – Esboço de Filme (1992) transforma uma
complexificar o eu. É ainda em Pessoa que encomenda num exercício sobre a liberdade
encontramos, em fragmento, a formulação de filmar, sem programa nem rigor; esta
para tal refracção: “Sinto-me múltiplo. Sou espécie de autocomplacência, de elogio da
como um quarto com inúmeros espelhos preguiça e da loucura, como se a alienação,
fantásticos que torcem para reflexões falsas que espreita toda a obra para se perfilar como
uma única anterior realidade que não está em centro, a partir de Recordações, ganhasse
nenhuma e está em todas.”4 foros de programa. O passeio pela Lisboa
No entanto, em João César, acentuava-se, dos Santos Populares cita, ainda, em filigrana
sobretudo, a grande ruptura a caminho da e em desconstrução, o imaginário das comé-
derisão, do acentuar de um sublime dias populares lisboetas dos anos 30 e 40,
abjeccionismo, que misturava Schubert e Quim num tempo em que os pátios das cantigas
Barreiros; ressuscitava-se, na cena do hospí- já não fariam qualquer sentido. Depois,
cio, o Lívio de Quem Espera por Sapatos... irrompe com violência provocatória em Le
e terminava-se com uma magnífica citação do Bassin de J.W. (1997), o mais indefensável
Nosferatu de Murnau. Comédia urbana do (o mais negro) e o mais inclassificável dos
desencanto de se ser português, negro como retratos da (des)graça de ser português. Visto
Céline, de quem se usam excertos, e sacrílego em contexto, o strindberguiano, Le Bassin,
como Junqueiro de quem se lê o melro de visita aos Infernos do eu descontínuo, ganha
A Velhice do Padre Eterno, rompe com tudo novas linhas de força pela radicalidade de
o que está para trás, mas permite uma ligação, um olhar contraditório, no coração da con-
ainda não explorada (como bem sugere João tradição, exposto com inaudita coragem.
Bénard num dos depoimentos, agora acessí- Mas regressemos a Recordações de uma
veis por via do DVD) com os contos tradi- Casa Amarela, o objecto central deste breve
cionais da primeira trilogia. estudo, apresentado no genérico com o
Visto hoje, avulta como a obra-prima sugestivo subtítulo de “uma comédia lusita-
absoluta, que desencadeia o ímpeto final: os na”: tudo começa desencadeado por uma
dois tomos seguintes da trilogia, cada vez legenda, “Na minha terra, chamavam casa
menos negros, porque mais irrisórios e amarela à casa onde guardavam os presos.
demenciais. A Comédia de Deus (1995), com Por vezes, quando brincávamos na rua, nós,
a colecção de pêlos púbicos e o aparente crianças, lancávamos olhares furtivos para as
aburguesamento da personagem, acentua o grades escuras silenciosas das janelas altas
carácter de divertimento da auto-exposição, e, com o coração apertado, balbuciávamos:
ou auto-imolação, como lhe chama Fernando «Coitadinhos...»”.
Lopes - ainda e sempre a contribuição Depois sempre com o ecrã em negro,
videográfica da integral em DVD. As Bodas aparece a voz off do autor-protagonista (“Aqui
224 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

estamos mais uma vez sozinhos. Tudo isto guiadas por um aleatório fragmentado em
é tão lento. Tão pesado. Tão triste”), esbo- episódios vários, trazendo à liça a proble-
çando o carácter metonímico da ficção, para mática da honra e do estatuto social: “[El]
logo, fazendo raccord com o genérico e com tema del hambre, de la indigencia y la lucha
um longo travelling sobre Lisboa, a partir por la vida, sino alrededor de la respetabilidad
do rio, mencionar o ataque nocturno dos externa, que se funda en el traje, el tren de
percevejos, identificados mais tarde no di- vida y la calidad social heredada, ya que el
cionário e citados de Maïakovski como pícaro es la negación viva de esta honra
punaesis normalis. E, a par com esta des- externa.”6
crição sábia, elementos da irrisão, caracte- Tal noção de honra recuperada explica-
rização da pobreza: “Esforçava-me por não ria, por exemplo a subida na escala social
fazer bulir um pentelho...” ou “O ardor nos operada na passagem para A Comédia de
tomates só começou mais tarde, pela ma- Deus, com João de Deus, agora aburguesado,
nhã...”. gerindo uma gelataria e na descoberta e
A definição da personagem, entre o dissipação de uma fortuna encontrada, por
patético da progressiva depauperação e a via do acaso, em As Bodas de Deus, terceiro
ferida dignidade que o uso da sonata de e último volume da trilogia.
Schubert sublinha, ganha contornos no di- Uma vez instalado nesta dimensão pícara
álogo com a dona da pensão, D. Violeta (a que daria sentido à intervenção satírica, já
emblemática Manuela de Freitas), que fala anteriormente esboçada, João César Monteiro
da casa não como de uma casa velha, in- confere ao seu mundo ficcional uma espes-
festada pelos percevejos, mas de uma casa sura que jamais abandonará. Para além da
barroca, já filmada pela televisão. trilogia de João de Deus, haverá ainda uma
A matriz para este universo picaresco exploração lateral do fenómeno heteronímico
(barroco ou pré-barroco) encontramo-la na no entretanto abandonado e sarcástico, João
literatura espanhola iniciada com Lazarillo Raposão do Audiovisual de Conserva Aca-
de Tormes (1554), alternativa às novelas bada (1989)7, reflexão televisiva sobre a voga
pastoris e aos romances de cavalaria: o seu do audiovisual, como designação, e sobre os
tom realista e satírico, introduzindo um ridículos da indústria pessoana, patente em
imaginário urbano de mendigos e marginais, efígie na estátua sentada do poeta, junto à
como heróis ou anti-heróis da ficção, serve- Brasileira do Chiado.
nos à maravilha para caracterizar a perso- Terminada a segunda trilogia e instituída
nagem de João de Deus. a dimensão picaresca, regressa-se à primeira
Lemos no posfácio de Francisco J. trilogia com outra acutilância: Branca de
Sanchez e Nicholas Spadaccini, a The Neve (2000) constitui o “conto de fadas”
Picaresque Tradition and Displacement, possível, após a “viagem aos infernos e à
intitulado “Revisiting the Picaresque in loucura” de João de Deus e de João César,
Postmodern Times”: “An analysis of apesar de João de Deus, no strindbergiano
picaresque literature cannot be separated from Le Bassin. O equívoco que a obra ao negro
[...] the question of social marginality. [The] gerou numa crítica cega e numa opinião
meaning of this type of literature lies in the pública, que continuava a consumir o mito,
description of the picaro’s interaction with sem lhe conhecer a obra, fez de uma paci-
the urban world […]. It may be said that ficação pelo literário (Walser como alter-ego
the picaro now replaces the Knight errant impossível e matriz para a paixão da escrita)
as a mediator of knowledge as his wanderings a provocação máxima, que nunca pretendeu
in an urban setting give the reader access ser. Não se tratava de uma instalação, como
to a variety of experiences that […] represent se sugeriu, mas da filmagem rigorosa e
differing degrees of social interactions apaixonada da palavra dita. Todos os
undertaken in pursuit of some of the symbols inquisidores deste mundo encontraram pre-
of wealth”.5 texto (errado) para a irradicação do génio.
Assim se poderiam integrar no sub-género Felizmente, não o conseguiram e na obra
picaresco as deambulações de João de Deus, final, Vai e Vem (2003), que o público
por uma velha Lisboa de cheiros e sabores, inacreditavelmente ignorou, temos a noção
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 225

de que, embora estejamos perante a grande semi-heterónimo, o de João Vuvu que


síntese, também o filme-testamento, tudo se revisita e fecha a obra fílmica com remis-
nos revela como uma aparição, um renovado sões para João de Deus (na sua obsessão
gosto de filmar, a procura de outro olhar, de pelas ninfetas, por exemplo), agora inves-
uma alegria de fixar o real (nunca se filmou tido de uma pulsão de morte mais forte do
assim um autocarro como lugar de encontro que as vidas múltiplas em que se desdo-
e de partilha), com a fractura indizível que brara, imperfeitamente, no ecrã. Alcançada
já estava presente em Sophia, o “opus 1”. a honra final do artista, numa dignidade
O paralítico do olho do cineasta propõe, conquistada à custa de todos os irrisórios,
assim, uma derradeira auto-representação, no João Vuvu é e não é João de Deus; é e não
que poderíamos considerar, usando, ainda e é João César Monteiro, figura unificadora
sempre, a obra de Pessoa como modelo, um e fragmentada de toda a sua obra.
226 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia _______________________________
1
Universidade de Lisboa.
2
Bataillon, Marcel, Pícaros y Picaresca: Walter Benjamin, “A Obra de Arte na Era
La Pícara Justina, trad. Francisco R. Vadillo, da sua Reprodução Técnica”, in Estéticas do
Madrid, Taurus, 1969. Cinema, org. e trad. de Eduardo Geada, Lisboa,
Benjamin, Walter, “A Obra de Arte na Publicações Dom Quixote, 1985, p. 31.
3
Era da sua Reprodução Técnica”, in”Estéticas Fernando Pessoa, “Carta sobre a Génese dos
Heterónimos”, in Páginas de Doutrina Estética,
do Cinema, org. e trad. de Eduardo Geada,
org. Jorge de Sena (2ª ed.), Lisboa, Editorial
Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1985, pp.
Inquérito, s.d., p. 199.
15-49. 4
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Pessoa, Fernando, “Carta sobre a Génese
Interpretação, org. Georg Rudolf Lind e Jacinto
dos Heterónimos”, in”Páginas de Doutrina do Prado Coelho, Lisboa, s.d., p. 93.
Estética, org. Jorge de Sena (2ª ed.), Lisboa, 5
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Editorial Inquérito, s.d., pp. 193-206. Tradition and Displacement, Minneapolis, London,
Pessoa, Fernando, Páginas Íntimas e de University of Minnesota Press, 1966, pp.296-297.
Auto-Interpretação, org. Georg Rudolf Lind 6
Marcel Bataillon, Pícaros y Picaresca: La
e Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, s.d.. Pícara Justina, trad. Francisco R. Vadillo, Madrid,
Sanchez, Francisco J. e Nicholas Taurus, 1969, pp. 215-216.
Spadaccini, “Revisiting the Picaresque in 7
Óbvio jogo paródico de palavras e conceitos
Postmodern Times”, in Giancarlo Maiorino, com o filme de João Botelho, Conversa Acabada,
ed., The Picaresque. Tradition and sobre as complexas relações poéticas e
Displacement Minneapolis, London, epistolográficas entre Fernando Pessoa e Mário
University of Minnesota Press, 1966.335. de Sá-Carneiro.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 227

Em defesa de uma “ecologia” para o cinema português


(ou questões levantadas pelo desaparecimento de um ecossistema)
Nuno Aníbal Figueiredo1

“Nós saímos de um país sem imagem. 50, a mais negra do cinema português, da
A imagem do país que temos é muito qual apenas se retém a obra de Manuel de
construída pelo cinema. Há a cons- Guimarães) em detrimento do putrefacto
ciência, em qualquer cineasta portu- “cinema nacional” do Antigo Regime não foi
guês, que o cinema foi uma escola só maior, como bem mais fácil de levar a
para muita gente e foi também uma termo do que a operada em França pela
maneira de fixar um país que estava Nouvelle Vague. Ou seja, independentemen-
a deslocar-se a uma velocidade te da sua consciência plena ou não, desde
inacreditável. Eu acho que isso está essa viragem histórica, a principal preocu-
filmado, acho que o cinema portugu- pação política deste corpus de autores foi a
ês fixou esse deslocamento. E foi da salvaguarda do direito à existência de um
capaz de filmar muita coisa ao mes- cinema de raízes profundamente nacionais,
mo tempo: um país muito longínquo em cujo paradigma encontravam não só a obra
no tempo, na História, etc.. Era tudo singular, até então escassa, de Manoel de
isto e, simultaneamente, um país Oliveira, como a do quase “invisível” António
muito contemporâneo.” Campos. Uns, os seus detractores, denunci-
João Mário Grilo in arão os limites artesanais e a subsidiada
Número Magazine nº 18 situação de dependência; outros, os seus
apologistas, reclamarão por uma autonomia
O ponto de partida para este texto en- artística, afirmando uma identidade própria
cerra uma inquietação prévia ao problema: a defender.
que imagem do país o cinema português nos Toda a produção a partir dos anos 60
deixou? Isto é, saber, ao fim e ao cabo, qual ficará marcada por esta cisão entre a ape-
teria sido a imagem de Portugal sem uma lidada “vertente cinema de autor” do nosso
ideia de uma cinematografia nacional, um melhor cinema e a tímida apetência pela
imaginário comum que coube ao cinema criação de uma indústria cinematográfica
português, depois e a par de outras artes ou nacional, tendo como modelos ou a mítica
expressões, (re)criar ou perpetuar? idade de ouro associada à comédia popular
Dizemos prévia, porque subjacente a esta ou outro qualquer importado. O primeiro é
“ideia” está uma espécie de empenhamento sustentado pelo enorme equívoco (que ainda
político que integrou há pouco menos de meio hoje persiste) de que houve nos idos do
século uma boa parte dos nossos cineastas Estado Novo um cinema de sucesso e de
(e os, de longe, mais bem sucedidos, dentro grande impacto público. Para além da
e fora). Este engagement não foi fruto de teatralidade dos métodos e do profundo
uma mera reacção face à paupérrima produ- desfasamento com o cinema feito lá fora
ção cinematográfica anterior ao advento do (mesmo o de propaganda), esta evidência
Cinema Novo (inaugurada pela geração de assenta, afinal, numa produção escassa em
60 e a que os “anos-Gulbenkian” deram sucessos. Entre o primeiro filme (A Canção
continuidade), nem à situação política e social de Lisboa), de 1933, e o último do género
do país condicionada por décadas de dita- (O Costa de África), de 1954, apenas nove
dura. Aliás, a pugna efectuada por esta comédias ajudam a perpetuar um mito,
terceira geração de realizadores (a seguir à servindo para encobrir tanto o facto de que
dos pioneiros modernistas, com Leitão de nem os filmes citados foram à época grandes
Barros, Brum do Canto, Chianca de Garcia êxitos de bilheteira, ao contrário do que às
ou António Lopes Ribeiro, e à da década de vezes se pretende fazer crer, como a oposi-
228 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

ção de alguns a uma tentativa séria de fazer toda a memória da arte neste “reino do campo
um cinema moderno em Portugal. único”. O resultado que se pretende impor
Quando falamos desta componente polí- é um híbrido, o telefilme, aquilo que o crítico
tica do cinema português, referimo-nos, so- e teórico Serge Daney vaticinou em 1982 para
bretudo, à preocupação e ao ímpeto que soube o cinema e a televisão, “um velho casal” cada
unir sensibilidades tão diversas num mesmo vez mais parecido2.
apelo: o esforço pela afirmação de algo Que risco existe, então, para uma cine-
inexistente até à data e pela manutenção, a matografia tão frágil como a portuguesa e
partir daí, dessa identidade precária, cons- para toda a visão heterogénea do mundo, a
tantemente à mercê de usurpações impostas submissão a modelos reducionistas, sejam
por modelos importados, fossem eles do estes produzidos e distribuídos por uma
cinema norte-americano, primeiro, agora e cinematografia como a norte-americana,
sempre, ou televisivos, mais recentemente. sejam condicionados pela realidade imposta
No que diz respeito à hegemonia do sistema pela televisão? Que espaço haverá, depois da
e da linguagem ditada por Hollywood, que nova lei do cinema, para a pretensa “eco-
perpassa a generalidade das cinematografias, logia” que, no entender de João Mário Grilo,
este modelo tem servido não só para subtrair contribuiu para a especificidade do cinema
ao nosso cinema, como a qualquer outro, o português?
direito a uma paisagem própria e a todos os Numa entrevista concedida à Número
mundos possíveis que se criam à sua ima- Magazine, este cineasta e investigador con-
gem. Ou seja, trata-se da contaminação por sidera que o período que vai desde o advento
parte de um imaginário preciso, delimitado do Cinema Novo até ao final dos anos 80
e modelado de outros que já existiam antes é marcado por uma experiência colectiva
da invenção do cinema e que lutam por singular, que foi capaz de preservar no interior
sobreviver à colonização massiva do cinema do cinema feito em Portugal uma certa
norte-americano. Não se trata, pois, de “ecologia”3. Esse ambiente específico terá
patriotismo ou de proteccionismo cultural, sido determinado mais por condições de
mas de salvaguardar um património que é produção do que por factores culturais. De
o direito a um imaginário identitário. Sobre- facto, o movimento iniciado nos anos 60 foi
tudo quando pensamos nas especificidades não só precursor de uma “ideia” para uma
culturais de que as diversas cinematografias cinematografia de raízes nacionais (sublinhe-
“nacionais” (mesmo que pulverizadas por se, de uma “ideia” primeira de cinema), como
inúmeras e diversas visões pessoais) mais não terá registado o nascimento, em simultâneo,
são do que um ponto numa linha de con- de toda uma geração de realizadores e téc-
tinuidade que engloba outras visões noutras nicos que fará o cinema português nas pró-
artes. ximas décadas, mesmo entre avanços e
Já a invasão televisiva surge, recuos. Os Verdes Anos (1963) é, neste caso,
conjunturalmente, depois do aparecimento, no paradigmático, uma vez que se trata da obra
início dos anos 90, dos canais privados e é, de estreia de um realizador (Paulo Rocha),
desde logo, enquadrada pelas sucessivas leis mas também de um produtor, de novos
que adequaram o cinema a uma lei geral do técnicos e actores. Nos créditos de Os Verdes
audiovisual. A televisão não só tem coloni- Anos, Belarmino (Fernando Lopes, 1964) e
zado toda a paisagem portuguesa, até porque Domingo à Tarde (António de Macedo, 1965),
tem uma velocidade de produção que o vemos os nomes de Fernando Matos Silva,
cinema não consegue acompanhar, como Elso Roque ou Acácio de Almeida, o que
afeiçoou o espectador aos seus modelos demonstra a existência de um “corpo uni-
narrativos, a uma linguagem sem distinção ficado” nos filmes produzidos por António
formal, espécie de estética industrial no seu da Cunha Telles. É, aliás, esse o argumento
“grau zero”, onde estão definidos a priori corolário dos que defendem a tese de que
os conteúdos e as suas aparentes ou supostas é Os Verdes Anos e não Dom Roberto (1962),
diferenças. Na sua aparência inócua, subjaz de Ernesto de Sousa, ou Pássaros de Asas
uma estratégia de dominação que uniformiza Cortadas (1963), de Artur Ramos, o filme
todas as imagens em circulação, reciclando inaugural e fiel depositário do termo novo:
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 229

“Não só o filme se inseria numa es- Rocha (?) como exemplos, um cinema de
tratégia de produção que visava a contornos neo-realistas, à semelhança do
continuidade (um produtor, Cunha italiano do pós-2ª Guerra Mundial, mas menos
Telles, reúne à sua volta os cineastas influenciado por este cinema do que pela
disponíveis – disponibilidade física e corrente literária portuguesa; em segundo,
teórica, entenda-se – e são eles Paulo “um cinema existencialista – mais influen-
Rocha, Fernando Lopes, Fonseca e ciado pela confirmação da Nouvelle Vague
Costa e António Macedo), como e pela evolução estética de cineastas como
igualmente essa produção se dotara Antonioni”, com uma linguagem “mais ela-
previamente de quadros técnicos for- borada, mais simbólica, abrindo-se progres-
mados pelo 1º Curso de Cinema do sivamente à parábola política”, integrando
Estúdio Universitário de Cinema Ex- António Macedo, Cunha Telles, Fonseca e
perimental, onde Cunha Telles era Costa e António-Pedro Vasconcelos; e, final-
também elemento capital e donde, no mente, através de Manoel de Oliveira e
domínio da fotografia, do som e da Fernando Lopes, “um cinema de ruptura“–
montagem sairiam as figuras dominan- projectado já a partir de Belarmino e de O
tes em todo o cinema português que Acto da Primavera (1962), uma linha docu-
se segue a Os Verdes Anos”4. mental que se construía em ficção recusando
a aparência naturalista, evidenciando uma
Para um grupo nascido para o cinema montagem de contrastes”.
sensivelmente na mesma altura, esta coesão Até para quem hoje considere totalmente
e solidariedade eram sentidas e transmitidas descabidos alguns dos exemplos citados,
quer dentro do próprio set, entre cineastas nomeadamente Paulo Rocha, a divisão pro-
e equipas, quer fora (basta verificar o rela- posta permite retirar duas ilações, sem pre-
tório “O Ofício do Cinema em Portugal”, juízo de estas se revelarem anacrónicas.
saído da I Semana do Cinema Novo Portu- Fazendo jus ao esforço também teórico
guês, em 1967, no Porto, assinado por vinte (mesmo que de algum modo inglório) de
cineastas e dirigido à Fundação Calouste ligação do cinema português, pela primeira
Gulbenkian e a cooperativa que daí nasce três vez na sua história, com as tendências
anos depois). Teria sido inevitável que este mundiais, duas das correntes reflectem pelo
corpus a que Paulo Rocha chamou “a escola menos o entrecruzar da produção portuguesa
portuguesa”, designação defendida por tan- com a experiência cinematográfica estrangei-
tos outros depois dele, afirmasse um “novo” ra. Nota-se no discurso à volta de ambas a
cinema ao impor uma ruptura estética-ide- vontade expressa de adquirir, para além da
ológica com o cinema anterior. Esta interna, uma legitimidade que advém das
(re)invenção nasce sem prejuízo do cinema influências de correntes contemporâneas. Esse
tradicional português, “já morto”, como reconhecimento, aliás, começa pelos contac-
afirma António Roma Torres [1972:15], mas tos mantidos por alguns dos cineastas por-
em resposta ao “ridículo cinematográfico” que tugueses com autores estrangeiros (P. Rocha
até então imperava, tanto em termos quali- foi assistente de Jean Renoir em Le Caporal
tativos como quantitativos. É talvez por isso Epinglé e Fonseca e Costa de Antonioni em
que durante uma década surja a indefinição L’Eclisse), mas também com a aceitação e
sobre qual a tendência estética predominante os prémios que os primeiros filmes granje-
do movimento e, consequentemente, qual a aram em festivais um pouco por toda a
fase (e face) inauguradora, fazendo coabitar Europa (A Promessa, de António Macedo,
lado a lado obras, filmes e correntes apa- 1972, foi o primeiro filme português selec-
rentemente contraditórios para o desejo de cionado em Cannes).
um grupo unificado em termos estéticos. O que dizer então do peso da tradição
O mesmo Roma Torres [idem:29-30] nesse esforço de legitimação? Serão herança
avança, em 1971, três tendências como de uma mesma filiação oliveiriana os laivos
hipótese de sistematização: em primeiro lugar, de neo-realismo de E. Sousa ou A. Tropa,
iniciado com Dom Roberto e tendo o próprio sem a toada ruralista de Brum do Canto ou
Ernesto de Sousa, Alfredo Tropa e Paulo Manuel Guimarães, e as primeiras incursões
230 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

“vanguardistas” (o cartaz de Os Verdes Anos cinema), subsistia, pelo menos até há pouco
anunciava “A Nova Vaga chegou a Portu- tempo, o predomínio da figura do realizador
gal”)? Para baralhar, não só Aniki-Bóbó face ao produtor.
(1942) era a única ficção até à data de A década de 90 viu serem produzidas dez
Oliveira, como M. Guimarães tinha sido seu longas metragens de ficção, em média, por
assistente de realização nesse que já foi ano. Esses cerca de 100 filmes reflectem,
considerado o filme precursor do neo-realis- mesmo que alguns irregularmente, a visão
mo. Essa fuga a uma universalidade (tenta- de perto de 60 realizadores diferentes. Só que,
tiva de legitimação a partir de dentro) capaz pese embora os cineastas portugueses se
de perverter a identidade desse corpus é mais mantenham fora do espartilho comercial, as
evidente, por isso, nessa terceira “tendência” condições de produção alteraram-se radical-
avançada por Roma Torres, uma vez que ela mente. As equipas de filmagens são agora
parece escapar melhor a uma qualquer cor- compostas por técnicos que trabalham no
respondência directa com o que influenciaria cinema apenas episodicamente, estando, na
fora (naquela que é a segunda das ilações maior parte do tempo, ocupados a fazer
possíveis) e porque, além do mais, tem televisão, o que acaba por moldá-las a um
Oliveira como garante de autenticidade. É outro modo de produção. A esta erosão
verdade a sua influência ou a possível acei- progressiva daquele que bem podia ser
tação de uma mesma paternidade estética em considerado o âmbito “familiar” do cinema
ambas as tendências anteriores, mas Oliveira feito em Portugal, há que acrescentar a cada
não está, nem nunca esteve, no neo-realismo vez maior contradição entre o modelo e a
e, muito menos, na Nouvelle Vague. A in- realidade nacional, até porque um filme é
venção da tradição operada no cinema sempre fruto de uma colaboração técnica e
moderno português faz-se em torno da obra artística que poucos cineastas controlam
de Oliveira mesmo que a desfiliação se dê cabalmente. Se um filme é também um
em breve e que aquilo que correspondeu ao reflexo directo do seu próprio processo de
forte espírito de solidariedade, digamos ar- produção, essa é uma realidade ainda mais
tística, da geração fundadora dê lugar à “so- premente no caso “singular” (para não dizer
lidão” (sentimento com que o mesmo P. artesanal) português. A experiência que o
Rocha definirá esse estádio) e à sua cisão condiciona define-o em grande medida,
definitiva a partir da polémica em torno de assunto sobre o qual nos debruçaremos mais
Amor de Perdição, em 1978. adiante, em jeito de conclusão, relativamente
No entanto, as condições de produção à experiência de Pedro Costa em No Quarto
mantiveram-se praticamente inalteradas du- da Vanda (2000), mas que serve também para
rante as décadas de 70 e 80. Mesmo quem, aquelas que consideramos serem as razões
em defesa de um “outro” cinema português, para a especificidade do imaginário cinema-
promovia a desvinculação a essa “escola tográfico português consolidado a partir do
portuguesa” do Cinema Novo, não deixava Cinema Novo.
de construir uma “ideia” presa a um conceito Se atentámos nas razões que possibilita-
de identidade “resultado de uma tripla von- ram em termos de condições de produção a
tade (invenção artística, resistência à norma- existência de um habitat preservado para os
lização industrial e interrogação sobre a cineastas portugueses e para a sua “ideia”
questão nacional portuguesa)”5. Se a última de cinema português, não podemos deixar,
é essencial e exclusivamente para debater a ainda, de referir o papel que os factores
nível temático, as duas primeiras foram desde culturais desempenharam nessa preservação
sempre consideradas os factores que mais e quais as suas consequências.
contribuíram para a criação de uma cinema- Primeiro, é necessário verificar que os
tografia justamente considerada uma das mais cineastas portugueses que, mais ou menos
felizes do mundo. Nesta “região demarcada timidamente, tentaram uma aproximação com
de produção cinematográfica”, conforme a o cinema feito fora de portas encontraram-
metáfora de António-Pedro Vasconcelos 6 se, durante décadas, confinados ao género
(curiosamente, uma das vozes que mais vezes documentário, muito por força das circuns-
reclamou por uma indústria nacional de tâncias políticas e económicas. À situação
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 231

precária vivida por Oliveira durante os seus genética para com as convenções próprias de
22 anos de interregno ficcional, entre Aniki- um cinema de cariz naturalista. Uns acusam-
Bóbó e Acto da Primavera (aceitando que no de inabilidade narrativa, outros de uma
se trata de uma ficção), contrapõem-se os propensão cultural para a poesia em detri-
sinais de esperança augurados por uma nova mento da prosa. Em jeito de prova, subli-
geração (F. Lopes, A. Macedo, P. Rocha) nhamos duas constatações que parecem re-
iniciada com trabalhos que de alguma forma ceber unanimidade. Frequentemente tentada,
revelam uma faceta documental, demarcan- a filmagem de histórias muito pouco portu-
do-se claramente do pendor nacionalista do guesas tem dado origem a filmes híbridos,
filme histórico e moralista da comédia po- cujo desconcerto resulta da tentativa de
pular, à época já pouco pródiga na crítica transcrição de um imaginário importado
de costumes e mais glorificadora de vedetas através de um modelo que nunca se destaca
nacionais do desporto, da tourada e do da estética estandardizada para TV. Também
cançonetismo. a escassa ligação do cinema português com
Daí que não haja volta a dar: o melhor a literatura romanesca não pode ser explicada
cinema português até aos anos 60 é nele que apenas pela difícil adaptabilidade da maior
tem o seu terreno, mas não a sua justifica- parte das nossas obras literárias, mas sobre-
ção, encarado essencialmente enquanto pre- tudo pelo pouco interesse que tais sempre
texto para ensaio e a maior parte das vezes suscitaram nos nossos cineastas, sendo Oli-
desabafo perante a conjuntura do país. A veira a enorme e honrosa excepção.
tradição não-realista do (moderno) cinema Cinematografia essencialmente poesia ou
português surge, em primeiro lugar e para- marcadamente pintura8, como sugere João
doxalmente, em virtude da impossibilidade Bénard da Costa em Cinema Português?
de uma ficção assumida, de uma sublimação (documentário-entrevista de Manuel Mozos
do real patente quer no género documentário, ao director da Cinemateca Portuguesa, em
quer na influência neo-realista exercida sobre 1996), nela prevalece um olhar intenso,
a pouca ficção aproveitável anterior aos anos excessivo, sobre a realidade que retrata,
60. Na maioria desses filmes, a procura de revelando a sua dupla natureza. É à volta
uma realidade portuguesa, ora surge subter- dessa metafísica, dessa tentativa de dar uma
raneamente, ora é intencional, mas nunca consciência à realidade e não de subordina-
explícita. A excepção é uma e chama-se ção do real a uma intriga ou conflito dra-
António Campos. Roma Torres refere pre- mático, que se tece o discurso de Bénard da
cisamente esse contraponto, citando o diá- Costa, mas também de José Manuel Costa
logo mantido entre o autor de Vilarinho das ou J. Mário Grilo9. Ao contrário do cinema
Furnas (1971) e Oliveira, a propósito do norte-americano, cinema da “ilusão” por
despojamento de A. Campos nesse filme, ao excelência, o cinema português tem-se per-
contrário do exemplo dado por Acto da filado como um cinema da “não-ilusão”10,
Primavera7. Tudo o resto vive dessa “impu- avesso à habitual caução que a ficção exige,
reza” que uns clamarão como sendo a es- porta aberta a todo e qualquer escapismo.
sência do cinema português, outros a Também no que diz respeito às determi-
consequência exacta de uma verdadeira nações culturais, algo mudou no panorama
primeira articulação com as vanguardas ci- português, pelo menos na última década e
nematográficas mundiais da época (refira-se meia. Por um lado, tem havido uma incor-
a influência de Dreyer, nomeadamente de poração excessiva de outros imaginários
Gertrud, na ficção oliveiriana ou as naquele que está preenchido cinematografi-
desconstruções de Straub, um dos cineastas camente desde os anos 60. A região de Trás-
mais referidos por mais do que uma geração os-Montes, espécie de território mítico para
de realizadores portugueses) e outros, ainda, o cinema português, de A. Campos a António
prova determinística de uma limitação Reis, passando esporadicamente por Olivei-
ficcional: cinematográfica e cultural. ra, já não serve de cenário para o retrato
Essa “impureza” é tanto do documentário, metafórico de um país isolado, encarcerado
como da ficção. Muito do melhor cinema na sua experiência presente, e mitológico,
português revela uma mesma dificuldade enquanto síntese anacrónica das suas raízes
232 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

geográficas e culturais, nem tem tido subs- Paradoxalmente, é mais uma vez no
tituto à altura, agora que a paisagem está interior desta linha de tradição que aqui se
definitivamente filmada pela televisão. Se há expôs, e não de qualquer modelo importado,
um filme que representa o toque de finados que encontraremos a melhor prova de sobre-
é O Movimento das Coisas (1985), de vivência e internacionalização dada pelo
Manuela Serra, documentário acerca de um cinema português nos últimos anos. No
mundo prestes a desaparecer. Por outro lado, Quarto da Vanda é, até por razões
emerge uma nova geração de realizadores cuja profilácticas, um exemplo a reter de resis-
obra, não renegando o cinema passado, tência a essa normalização industrial, impon-
aparenta alguma desfiliação, sobretudo a do uma salutar convivência com as novas
qualquer ideia de escola portuguesa. Portu- tecnologias, ao mesmo tempo que se inscre-
gal pode não constituir aqui uma excepção. ve numa crítica acérrima às actuais condi-
Se têm caído em desuso as teorias cinema- ções de produção em cinema. No debate que
tográficas que dão primazia às questões se seguiu à projecção do filme em Serpa,
nacionais, não é isso também fruto dos em 2000, por ocasião do Seminário Interna-
condicionalismos político-económicos da cional sobre Cinema Documental Doc’s
situação de predomínio da indústria cultural Kingdom, Pedro Costa referiu-se a esse
norte-americana? O facto é que, à falta de mesmo mal estar quando interpelado por
uma preocupação deliberada (mais ou menos Thierry Lounas acerca da hipótese sugerida
evidente) de dizer algo sobre o país ou acerca pelo crítico do Cahiers du Cinéma de que
do seu imaginário mítico, social ou até o realizador estaria a reagir contra as coisas
político, tem sido o documentário e não a que são do funcionamento básico da ficção
ficção a dar os melhores exemplos de toma- e da produção de ficção:
da em mãos dessa missão de pensar o país
“Eu começo a ter um desgosto enor-
e a sua história: A Dama de Chandor
me com a maneira de fazer filmes.
(Catarina Mourão, 1998), Outro País (Sérgio
Acho que é uma coisa tão violenta,
Tréfaut, 1999) ou Natal de 71 (Margarida
cega, surda e muda... a equipa, o
Cardoso, 2000). Com o aparecimento, pela
catering, os horários, as folhas de
primeira vez, de um movimento
trabalho...”11
assumidamente documentarista em Portugal,
terminam, enfim, as barreiras psicológicas que
No Quarto da Vanda insurge-se contra
toldavam as gerações mais velhas de uma
tudo isso, barricando-se numa “outra” forma
relação mais directa com o real. Curiosamen-
de produção, mais livre do que o esquema
te, na exacta proporção inversa em que vão pesado da indústria, que impede mais do que
escasseando os exemplos dessa “impureza” ajuda, que inviabiliza mais do que facilita.
ficcional ou documentarista que tantos e tão A par destes condicionalismos surgem uma
singulares filmes legou o cinema português. política e uma economia de cinema que,
Vimos como um corpus de autores aliadas a uma ética, transformam este filme
emergiu nos anos 60, perseguindo uma num objecto seminal na história do cinema
“ideia” de e para o cinema português, português e no contexto do cinema contem-
(re)inventando uma tradição (in)existente e porâneo.
(re)criando um imaginário identitário comum, Crucial para a nossa tese é essa espécie
determinado e preservado pelas condições de de “armadilha” realista, tanto pelo género –
produção específicas que esta geração funda- documentário – como pelo tema, que P. Costa
dora encontrou e pelas especificidades cul- foi capaz de montar. Acerca dela, Thierry
turais herdadas de trás. Esta “ecologia” vê- Lounas fala de uma “total ausência de sin-
se agora ameaçada com a normalização tomas do ‘real”12. Emmanuel Burdeau, tam-
industrial que se avizinha devido à cada vez bém do Cahiers, no mesmo debate, prefere
maior pressão do público e à adequação conciliar a ausência da violência habitual do
progressiva do cinema a uma lei geral do documentário, uma vez que “não há nenhum
audiovisual que o empurra para fora do efeito de ‘real’”, com a ausência da violência
território da arte. da composição inerente a grande parte das
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 233

ficções e, por isso, o situa nesse cruzamen- tremo. Vemos que há muito trabalho:
to13; e não esquece o papel que as condições manipulação do som, falsos campos /
de produção desempenharam no potenciar contracampos – que não podem ter sido
deste resultado: feitos ao mesmo tempo, pois só havia
uma câmara e penso que o Pedro não
“Do que eu gosto no filme, o que o poderia ter interrompido as conversas
torna novo, é que talvez pela primeira para o fazer. Se há qualquer coisa de
vez temos a impressão de que este novo é aqui, é no levar ao extremo
filme pôde ser feito de duas maneiras o método do que se chama o realismo
a priori completamente opostas: a pri- e levar ao extremo o método do ci-
meira forma seria a observação, a nema de montagem.”14
paciência, filmar muito de uma forma
repetida e continuada. Gosto muito O filme de P. Costa é também invulgar
quando o Pedro diz que apanhava o porque revela um realizador português que,
autocarro para ir lá todos os dias, da começado na ficção, faz o percurso inverso
forma menos artística possível, menos daquela que tinha sido a norma da geração
premeditada no sentido em que a fundadora. Não para proceder, como então,
premeditação é de tal forma repetida, a qualquer lógica de substituição – até porque,
que se torna rotina e nos põe ao nível como afirmou já várias vezes, a maioria dos
do retrato absoluto. A segunda manei- documentários, o documentário puro, não lhe
ra seria na montagem, pois ao utili- interessa –, mas antes para prosseguir naque-
zarmos o método totalmente oposto já la que é a característica do melhor cinema
não estamos no nível do retrato mas português e que No Quarto da Vanda faz por
sim no da construção levada ao ex- preservar. Vamos ver até quando.
234 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

4
Bibliografia M. S. Fonseca in folha policopiada da
Cinemateca Portuguesa distribuída aquando da
AAVV, Os Debates – Doc’s Kingdom exibição do filme Os Verdes Anos.
5
Denis Lévy, “Introdução” in L’Art du Cinéma
2000, AporDOC, 2002.
(especial Manoel de Oliveira), Agosto de 1998.
Costa, João Bénard da, Histórias do 6
Cit. in J. Bénard da Costa, Histórias do
Cinema – Sínteses da Cultura Portuguesa, Cinema – Sínteses da Cultura Portuguesa, Lisboa,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991, p.184.
1991. 7
Cf. A. Roma Torres, ob. cit., pp.44-45.
Grilo, João Mário e Monteiro, Paulo 8
Acerca desta dupla ligação, apetece ainda
Filipe (org.), O Que é o Cinema? – Revista “revisitar” Noronha da Costa, para quem o ci-
de Comunicação e Linguagens, nº23, Lisboa, nema era antes de mais a perpetuação da pro-
Edições Cosmos, 1996. messa Romântica de transformação do espaço
cenográfico em espaço-ecrã. Segundo o pintor, a
Matos-Cruz, José de, O Cais do Olhar,
arte da pintura teria tido os seus raríssimos
Lisboa, Cinemateca Portuguesa-Museu do momentos altos em Portugal na representação de
Cinema, 1999. uma “imagem errante, indefinível”. A poesia, de
Pina, Luís de, História do Cinema Camões a Pessoa, seria por isso uma consequência
Português, Lisboa, Europa-América, 1987. exacta dessa “imagem inencontrável” (Cf. catá-
Torres, António Roma, Cinema Portugu- logo da exposição “Noronha da Costa Revisitado”,
ês, Ano Gulbenkian, Porto, Soares Martins, comissariada por Nuno Faria e Miguel
1972. Wandschneider).
9
Cf. J. B. da Costa no documentário Cinema
Turigliatto, Roberto (coord.), Amore di
Português?, de Manuel Mozos; J. M. Costa in
Perdizione, Storie di Cinema Portoghese R. Turigliato (coord.), Amore di Perdizione, Storie
1970-1999, Turim, Lindau, 1999. di Cinema Portoghese 1970-1999, Turim, Lindau,
1999; e J. M. Grilo na citada entrevista a Número
Magazine, nº 18.
_______________________________ 10
Cf. J. M. Grilo na citada entrevista a Número
1
Universidade Autónoma de Lisboa. Magazine, nº 18.
2
Cf. Serge Daney, “Como Todos os Velhos 11
Pedro Costa in Os Debates – Doc’s Kingdom
Casais, Cinema e Televisão Acabaram Por Ficar 2000, AporDOC, 2002, p.80.
Parecidos”, in O Que é o Cinema? – Revista de 12
Thierry Lounas in Os Debates – Doc’s
Comunicação e Linguagens, nº23, Lisboa, Edi- Kingdom 2000, AporDOC, 2002, p.75.
ções Cosmos, 1996, pp.223-228. 13
Emmanuel Burdeau in Os Debates – Doc’s
3
Cf. João Mário Grilo in Número Magazine, Kingdom 2000, AporDOC, 2002, p.76.
nº 18. 14
Idem, p.94.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 235

Câmara Clara, um diálogo com Barthes


Osvaldo L. dos Santos Lima1

No livro A Câmara Clara, Roland Barthes “No entanto, dessa emoção (ou dessa
tece conceitos úteis para qualquer pesquisa- essência) eu não podia falar, na me-
dor que se envolva com o universo das dida que nunca a conheci; não podia
imagens fotográficas. Nesta derradeira obra unir-me à coorte daqueles (os mais
Barthes estabelece uma relação entre a câmera numerosos) que tratam da Foto-segun-
clara, onde a imagem para ser reproduzida do-o-fotógrafo.”4
necessita da mão do homem, e a câmera
obscura que produz uma imagem ligada ao Contudo, o corte metodológico que o
referente através de sua emanação luminosa. coloca na posição de spectator, parece não
O texto se constrói entre a escrita aca- ser capaz de afastá-lo da emoção do operator
dêmica, precisa e analítica, e a literária, que é, durante o livro, diversas vezes ima-
emocional e metafórica. Desta forma qual- ginada.
quer tentativa de análise se vê amarrada por
esses dois pólos, que ora nos afastam de um “Eu podia supor que a emoção do
pensamento analítico e ora nos aproximam Operator (e portanto a essência da Fo-
de suas proposições conceituais. Entretanto, tografia-segundo-o-Fotógrafo) tinha
o caráter emocional da escrita somente alguma relação com o “pequeno ori-
aprofunda seu teor científico pois aproxima fício” (estênopo) pelo qual ele olha,
o leitor da essência da imagem fotográfica. limita, enquadra e coloca em perspec-
Barthes, logo no início de seu texto, nos tiva o que ele quer “captar” (surpre-
antecipa as dificuldades metodológicas enfren- ender)”5
tadas por quem deseja analisar a fotografia.
Barthes funde, na sua idéia de estênopo,
“Quem podia guiar-me? Desde o pri- dois oríficios distintos: o visor – enquadra-
meiro passo, o da classificação (é mento – e o pequeno orifício – responsável
preciso classificar, realizar amostra- pela indicialidade da imagem fotográfica:
gens, caso se queira constituir um
corpus) a fotografia se esquiva.”2 “A moldura se tornou o primeiro
filtro de acesso ao universo exterior
Por conseguinte Barthes se projeta como e janela metafórica ao ligar o mundo
mediador, como medida do saber fotográfi- interno ao externo, o interoceptivo ao
co, como atesta: “Decidi então tomar como exteroceptivo, o operator ao
guia de minha nova análise a atração que spectator numa dinâmica de relações
eu sentia por certas fotos. Pois pelo menos latentes do aparelho e agora realiza-
dessa atração eu estava certo.”3 das pela vontade e obra humana. O
Para então assinalar as três práticas fascínio inicial que se detinha no
ligadas à fotografia: fazer, suportar e olhar. orifício de entrada dos raios lumi-
O fazer representado pelo Operator. O olhar nosos, janela responsável pela con-
representado pelo Spectator, posição assumi- tigüidade física do referente, foi
da pelo autor. O suportar se referindo ao migrando para uma outra janela na
Spectrum e ao referente e sua condição fotografia contemporânea. Do orifí-
inevitável de retorno do morto. cio, que dá conta da representação
Ao se posicionar como Spectator para figurativa do referente, passa-se à
análise, Barthes se afasta da Foto-segundo- moldura, que representa o poder
o-fotógrafo. daquele que opera o aparelho”6
236 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Punctum e Studium nas, no nível mais elementar, das mo-


dalidades técnicas de constituição da
Barthes afirma sobre o punctum: “O imagem (a impressão luminosa), mas
punctum de uma foto é esse acaso que, nela, igualmente, por uma extensão progres-
me punge (mas também me mortifica, me siva, do conjunto dos dados que
fere).”7 definem, em todos os níveis, a rela-
O punctum não está relacionado com as ção desta com sua situação
intenções do fotógrafo, com a cultura do referencial, tanto no momento da pro-
operator, com sua visão do mundo. Ele dução (relação com o referente e com
depende do spectator se sentir ferido, pungido o sujeito-operador: o gesto do olhar
por determinada imagem. Ao contrário do sobre o objeto: momento da “toma-
studium que é uma espécie de educação, de da”) quanto no da recepção ( relação
“saber” que permite encontrar, para Barthes, com o sujeito-espectador: o gesto do
o operator e suas intenções. olhar sobre o signo: momento da
retomada – da surpresa ou do equí-
“É o studium, que não quer dizer, pelo voco).”12
menos de imediato, estudo, mas a apli-
cação a uma coisa, o gosto por al- O operator, ao fotografar, corta o fluxo
guém, uma espécie de investimento natural da vida transformando a forma do que
geral, ardoroso, é verdade, mas sem era íntegro em parcial e o tempo que era
acuidade particular.”8 contínuo em fragmento. Seu espaço
topológico determina sua mirada sendo ele
Segundo Barthes o punctum se subdivide o tanto de real – enquanto corpo – que define
em: forma e intensidade. O primeiro dá conta parte do golpe que está pronto a desferir. Seu
do detalhe da imagem que irá feri-lo. Esse corpo apóia o aparelho que o permite se
detalhe está na imagem e pode vir a ser uma lançar ao imaginário. A lâmina do obturador
gola, um colar, uma pedra onde a sua con- e o estrangulamento do diafragma cortam a
dição dentro do quadro remeta a um extra realidade em pequenas fatias. “A foto apa-
campo, um campo cego.9 “O punctum é, rece desta maneira, no sentido forte, como
portanto, um extracampo sutil, como se a uma fatia, única e singular de espaço-tempo,
imagem lançasse o desejo para além daquilo literalmente cortada ao vivo.”13
que ela dá a ver.”10 O ato fotográfico, no exato instante da
No que concerne a intensidade o punctum tomada, aprisiona, dentro do mecanismo da
que, não é o detalhe, mas sim o tempo e câmera obscura, um tempo inatual. O apa-
sua ênfase dilaceradora do noema (“isso- relho coleciona pequenas lâminas de passa-
foi”)11, sua representação pura. Nem todas as do, subtraídas de um espaço pleno. Óbvia
imagens nos oferecem um punctum. Algu- violência constitui a tomada.
mas permanecem inertes ao olhar provocan-
do-nos apenas um interesse geral, um “Cada objetivo, cada tomada é ine-
studium. lutavelmente uma machadada (golpe
Porém, no avesso do processo, encontra- de machado) que retém um plano do
mos a figura do operator e a necessidade de real e exclui, rejeita, renega a
relativizar o conceito de punctum. Parece- ambiência. Sem sombra de dúvida,
me obrigatório fazê-lo neste momento atra- toda a violência (e a predação) do ato
vés da análise do processo fotográfico. fotográfico procede essencialmente
desse gesto do cut.”14
“Se quisermos compreender o que
constitui a originalidade da imagem Porém, a enunciação fotográfica é fruto
fotográfica, devemos obrigatoriamen- de uma decisão do operator. Seu dedo de-
te ver o processo bem mais do que termina o momento exato da machadada e,
o produto e isso num sentido exten- portanto, do crime que terá como prova
sivo: devemos encarregar-nos não ape- irrefutável a imagem revelada.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 237

“SIRS, I have received Act II, Scene “E isso ainda mais porque tudo ocor-
II of “L’Acte Photographique,” wich re de fato na interioridade do pensa-
you were kind enough to send me. mento do sujeito. Afinal, se a memó-
I am deeply moved, and feel I must ria é uma atividade psíquica que
tell you how sensitive I am to your encontra na fotografia seu equivalen-
devotion to the action of our great te tecnológico moderno, é evidente-
masturbatory finger on the shutter mente, no outro sentido, que a me-
connected to the subversive agent that táfora nos interessa, como uma inver-
is our visual organ (see the dioptric são positivo/negativo: a fotografia é
of Descartes’s “Discourse on tanto um fenômeno psíquico quanto
Method”).”15 uma atividade ótica-química.”20

Ao fugir da latência, pela aceleração O fotógrafo expõe, através da fotografia


química ou pela emanação luminosa do pixel, como aparelho psíquico, sua imagem invisível,
o corpo bidimensional da fotografia vem à o que lhe foi inscrito na memória psíquica e
tona expondo o operator e seu crime que agora explode pelo confronto com a cena.
passional. Impossível não relacionar este
instante ao “momento decisivo”16 Bressoniano “Sempre haverá uma espécie de
e a força do punctum. Supõe Barthes, ao latência no positivo mais afirmado,
relativizar sua posição de spectator, ser a a virtualidade de algo que foi perdido
emoção do operator o poder de supreender, (ou transformado) no percurso. Nesse
através do estênopo, sua presa. Esta suposta sentido, a foto sempre será assombra-
emoção não seria a equivalente ao punctum da. Sempre será, em (boa) parte, uma
spectator? Não seria ela a “ferida” que leva imagem mental.”21
o operator a eleger um instante em detrimen-
to de outro e acionar sua guilhotina, apri- Ainda sobre o punctum
sionando na latência da câmera obscura, mais
uma fatia de tempo-espaço? A fotografia é, “A esse segundo elemento que vem
para o operator, o desejo de aprisionar a ferida contrariar o studium chamarei então
e de reter na prata ou na eletrônica do pixel, punctum; pois punctum é também pi-
o detalhe que lhe pungiu quando na visu- cada, pequeno buraco, pequena man-
alização da cena através de seu visor – cha, pequeno corte – e também lance
pequeno simulacro da imagem. Não haveria, de dados.”22
dessa forma, imagem criada pelo ato foto-
gráfico sem a manifestação de um punctum Interessante observar esta primeira apa-
operator.17 A condição para a existência da rição do termo punctum no “A Câmara
imagem é a ferida que, no momento da Clara”. Ao determinar que o punctum é um
tomada, o operator cauteriza na prata. “Com pequeno buraco é irresistível lembrar que a
o punctum, não é mais o intelecto que fala, emoção do operator está ligado a outro
é o corpo que age e que reage.”18 pequeno orifício, desta vez real, o visor e
Para o operator, o punctum é a essência sua capacidade construtora da imagem.
do ato, o detalhe que lhe confere verdadeira Parece também existir uma analogia, na
paternidade. ordem do operator, para a subdivisão do
O punctum operator é a inscrição sobre punctum spectator em forma23 e intensidade.
a superfície do material, tão bem denomi- O visor limita, enquadra, e ao fazê-lo se torna
nado de sensível, de um inconsciente ma- pequeno simulacro da imagem por onde o
nifesto. Ao fotografar o fotógrafo age como fotógrafo também recorta e isola o elemento
uma retro-câmera. Há uma referencialidade punctual que o fere. Este detalhe remete o
externa, uma imagem que irá aderir ao seu fotógrafo para um campo cego (inconscien-
sensível quando, este positivo (referencial) te) que se manifesta pelo ato da tomada. O
encontrar, através da ótica-química, seu segundo punctum, ligado ao noema “isso-foi”,
equivalente negativo.19 atua para o operator através de sua imagem
238 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

mental, de sua memória psíquica. Pois se é Em um encontro de fotógrafos, na Bienal


verdade que tudo se inscreve na memória Internacional de Fotografia Cidade de
psíquica, o que volta do passado24 é, em parte, Curitiba, recordo-me de Sebastião Salgado
o que compõe a tomada da foto, o “isso- afirmar que, em seus famosos ensaios do-
foi” para o operator. cumentais28, expõe apenas um segundo sobre
o tema retratado. Reside nesta afirmação uma
Pequenas considerações sobre o corte verdade matemática que sempre me incomo-
fotográfico dou. Um livro desse autor tem centenas de
imagens. Suas exposições são gigantescas.
A engenharia de algumas câmeras propor- Porém, se calcularmos que em média cada
cionam ao fotógrafo uma visão além do corte tomada seja da ordem de 1/250 de exposi-
cego de uma mono-reflex. São câmeras dessa ção, estaríamos então, de fato, restritos a
natureza as famosas Leicas da série M que observar apenas um segundo de cada um de
Bresson25 usou durante toda a sua carreira. seus grandes ensaios. A dimensão temporal
Nesses aparelhos, ao se olhar pelo visor, se ínfima de cada exposição é capaz de revelar
vê mais do que apenas o quadro que irá toda uma narrativa sobre temáticas
constituir a imagem. Vê-se também o extra- indubitavelmente complexas. O “instante
quadro, ou seja, as adjacências da cena, apenas decisivo” Bressoniano parece agir aqui em
separada por pequenas guias que servem ao consonância ao que até agora denominamos
operator como fronteira entre o registro e o punctum operator, se é que as desemelhanças
não-registro. Sendo assim, até o derradeiro entre um e outro permitem classificá-los como
instante da tomada, a imagem pode ser al- diferentes.
terada levando-se em consideração o que se
apresentava para além da cercadura do registro. Tangência punctual
Este tipo de aparelho trabalha com um inte-
ressante conceito: um extra-quadro de registro O punctum é, ao meu ver, um forte elo
que é, ao mesmo tempo, parte do visível. entre operator e spectator. Sua manifestação
Poderiamos supor que, em muitas fotografias dupla e relativizada aproxima importantes
do mestre Henri Cartier-Bresson, exista um partes do fazer fotográfico. O spectator ao
“momento decisivo” alheio ao registro mas observar uma foto, onde testemunhe um
pertencente ao “tempo”26 deflagrador do dis- punctum, determina, de certa maneira, um
paro. Um punctum operator que determinasse novo quadro a fim de isolar o que lhe punge.
o exato instante do disparo mas não fosse Ao cercar o que lhe fere ele subverte o
petrificado por ele. enquadramento original e, dessa maneira, o
spectator se lança à aventura do operador.
“For me the camera is a sketch book, O punctum spectator é um eco do ins-
an instrument of intuition and tante indicial, puro e decisivo que caracte-
spontaneity, the master of the instant riza o punctum operator. Entretanto, em cada
which, in visual terms, questions and tomada existe, para o fotógrafo, uma cicatriz
decides simultaneously. In order to obrigatória e necessária; e para o spectator,
“give a meaning” to the world, one em cada fotografia, uma facultativa e latente
has to feel oneself involved in what ferida. De qualquer modo, parecem compar-
one frames through the viewfinder.”27 tilhar a mesma dor.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 239

10
Bibliografia Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre
a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984,
Barthes, Roland. A câmara clara: nota p.35.
11
O “isso-foi” é a representação de um tempo
sobre a fotografia. Rio de Janeiro, Nova
vivido (do sentido) e não de um tempo crono-
Fronteira, 1984. lógico, linear, físico e empírico.”
Bresson, Henri Cartier. The mind’s eye: 12
Philippe Dubois, O ato fotográfico e outros
writings on photography and photographers. ensaios, Campinas, Papirus, 1994, p.66.
New York, Aperture, 1999. 13
Philippe Dubois, O ato fotográfico e outros
Caetano, Kati; Lima, Osvaldo. A ques- ensaios, Campinas, Papirus, 1994, p.161.
14
tão do referente em alguns fotógrafos con- Philippe Dubois, O ato fotográfico e outros
temporâneos. Significação – Revista brasi- ensaios, Campinas, Papirus, 1994, p.178.
15
leira de semiótica. São Paulo, Annablume, Henri Cartier-Bresson, The mind’s eye:
writings on photography and photographers, New
n.20, 2003.
York, Aperture, 1999, p. 105.
Dubois, Philippe. O ato fotográfico e 16
Além da relação entre o “momento deci-
outros ensaios. Campinas, Papirus, 1994. sivo” e o dedo masturbatório, verdadeiro órgão
Samain, Etienne.(Org) O fotográfico. São do fotógrafo e revelador de seu prazer solitário.
Paulo: Hucitec, 1998. 17
Relativização conceitual que visa dar conta
da emoção e de sua significação, para o operator,
quando do ato de tomada da fotografia.
18
_______________________________ Etienne Samain (Org), O fotográfico, São
1
Universidade Federal do Paraná. Paulo, Hucitec, 1998, p.130.
19
2
Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre Esta dupla face negativo-positivo
a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, (interioridade-exterioridade) trabalha aqui no sen-
p.12. tido de oposição e de contigüidade física.
20
3
Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre Philippe Dubois, O ato fotográfico e outros
a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, ensaios, Campinas, Papirus, 1994, p.316.
21
p.35. Philippe Dubois, O ato fotográfico e outros
4
Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre ensaios, Campinas, Papirus, 1994, p.326.
22
a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre
p.21, grifo nosso. a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984,
5
Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre p.46.
23
a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, Forma no sentido de seleção e combinação,
p.21. por meio de unidades figurativas.
24
6
Kati Caetano; Osvaldo Lima, Significação No sentido de tempo vivido (memorial) e
– Revista brasileira de semiótica, São Paulo, não de passado cronológico.
25
Annablume, 2003, n. 20, p. 137. Henri Cartier-Bresson somente fotografava
7
Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre com Leicas municiadas com objetiva normal (50
a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, mm).
26
p.46. Intensidade emocional, pontual do disparo.
27
8
Roland Barthes, A câmara clara: nota sobre Henri Cartier-Bresson, The mind’s eye:
a fotografia, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, writings on photography and photographers, New
p.45. York, Aperture, 1999, p. 15.
28
9
Este efeito se dá ao nível do discurso e pode Trabalhadores e Êxodos para citar apenas
ser caracterizado pelos estudos de Hjelmslev. dois.
240 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 241

Desterritorialização e exilio no cinema de Walter Salles Junior


Regina Glória Nunes Andrade1

Essa comunicação está baseada numa objetivo primeiro será identificar na obra do
pesquisa sobre a filmografia do cineasta cineasta conteúdos e significantes pregnantes
brasileiro Walter Salles Junior. Aprofundamos tais como o tema da desterritorialização e
a metodologia que vimos utilizando nos do exílio e conseqüentemente do “desam-
estudos de filmes e propomos um novo tema paro”, da “angústia” e do “desejo” em suas
que faz fronteira entre a Psicologia e os manifestações de tempo-espaço e “região
Estudos da Cultura. Começamos nosso es- nação” em apenas dois exemplos:
tudo, com cinco filmes do cineasta de longa- Na filmografia de Walter Salles Junior
metragem, todos muito bem premiados, e com escolhemos especialmente os filmes Terra
vasto repertório de vídeo cassetes, distribu- Estrangeira (1995) e Central do Brasil
ídos em quase todas das filmotecas do Brasil (1998). A percepção do diretor é conside-
e também em Portugal. rada como paradigmática do imaginário social
A filmografia de Walter Salles Junior da contemporaneidade e se sustenta numa
revela uma espécie de afirmação da “con- produção significativa, de linguagem contem-
dição subjetiva” no cinema brasileiro e não porânea que oferece uma nova percepção das
das condições socioeconômicas de um de- questões culturais até então não abordadas
terminado grupo ou classe social. As angús- na filmografia brasileira.
tias dos personagens se refletem nas dificul-
dades da realização de seus próprios desejos. Breve informação sobre o cinema de
As personagens são tratadas com suas con- Walter Salles Junior
dições psicológicas e subjetivas.
No filme Terra Estrangeira (1995) o O diretor Walter Moreira Salles Junior
personagem Paco, depende dos desejos de nasceu em 1956, no Rio de Janeiro. Os temas
sua mãe, Alex, aguarda os desejos de Miguel centrais das obras de ficção e dos
e Igor em frases agônicas. Revelando-se como documentários dirigidos por ele são o exílio,
verdadeiras personagens glauberianas, grita:“ a errância e a busca de identidade. Outros
é o fim do mundo (...), a memória foi-se conteúdos são observados em sua obra, tais
embora”. como a globalização a visão no tempo-es-
Estas expressões provocam um estudo paço e as construções de distância e o
interpretativo de argumentos psicanalíticos desamparo presente em todos os temas tra-
Por esta razão também concentramos nosso tados pelo diretor. Jovem ainda e dono de
estudo seguindo a obra do cineasta, no um brilhante trabalho e talento, todos os seus
conjunto de sua produção estético-subjetiva. filmes foram premiados. A seguir apresen-
Sua filmografia em longa metragem é ex- taremos uma visão rápida de sua produção
tensa, começando com A Grande arte (1991), cinematográfica.
Terra Estrangeira (1995), Central do Brasil
(1998), O primeiro dia (1999) e Abril despe- Década de 80:
daçado (2001), sendo que nesta apresenta- Sua consistente filmografia iniciada com
ção fragmentamos : Terra estrangeira (1995) filmes de curta-metragem, com o
e Central do Brasil (1998) e por fim Diário documentário Japão, Uma viagem no tempo
de motocicleta (2004). Kurosawa, Pintor de imagens (1986), em que
Encontramos nos filmes a diferença, o cineasta foi o diretor e o roteirista do
diversidades/semelhanças, em cada obra. A trabalho. No ano seguinte dirigiu e fez o
partir da especificidade de cada filme encon- roteiro de Krajcberg-O Poeta dos Vestígios
traremos a personalidade do conjunto. O (1987). Durante esta década o diretor ainda
242 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

trabalhou na montagem de China, O Império mobilizante, recebeu certa censura. O filme


do Centro (1987). Encerrando essa fase de conta o destino de João (Luiz Carlos Vas-
experiência de direção e roteiro, dirige Chico concelos), encarcerado num presídio do Rio
ou O País da delicadeza Perdida (1987). de Janeiro, e o de Maria (Fernanda Torres),
isolada em seu apartamento. No dia 31 de
Década de 90. dezembro de 1999 João foge da prisão. No
Na década de noventa surgem os primei- mesmo momento, Maria vaga pelas ruas da
ros filmes de longa-metragem, que darão cidade, desamparada e abandonada pelo
consistência à sua obra, e sobre os quais marido. João é perseguido nos becos e favelas
enfocaremos nossa proposta de pesquisa. É de Copacabana. Começa a contagem regres-
difícil dizer que são os filmes mais impor- siva da virada do ano. Estouram os primeiros
tantes de sua carreira porque o cineasta é fogos de artifício. Sem nenhuma perspectiva,
muito jovem e tem uma produção muito Maria sobe para o telhado de seu prédio, o
intensa. Ele inicia a década com um filme mesmo lugar em que João busca se esconder.
que não foi muito notado, A grande arte E é nesse espaço, entre o céu e a terra, na
(1991), cujo roteiro é baseado no livro utopia de uma única noite, que a cidade
homônimo de Rubem Fonseca partida se abraça e o milagre se produz. Até
Terra Estrangeira (1995), co-dirigido com a chegada do primeiro dia.
Daniela Thomas é o primeiro longa metragem Salles também produziu outros filmes, de
do cineasta e recebeu, entre outros o Grande longa-metragem de jovens cineastas brasilei-
Prêmio do Público da Reunions ros em seus primeiros trabalhos de realiza-
Internattionales de Cinema – Paris; no Fes- dores, como Madame Satã (Karim Ainouz),
tival de Bergamo, recebeu o prêmio de melhor Cidade de Deus (Kátia Lund e Fernando
filme do ano, tendo sido selecionado para Meirelles), Onde a terra caba (Sérgio
vários outros festivais. Neste filme podemos Machado), todos com temas mais ou menos
observar a sensibilidade do diretor por certas semelhantes ao que lhe inquieta, e todos
divisões subjetivas entre nacionalidade, reconhecidamente bem realizados e bem
regionalidade, angústia de imigração e limi- premiados. Talvez seja um indicativo de uma
tações locais. Trata-se de um trabalho pene- certa liderança na área da filmografia naci-
trante e de caráter reflexivo, a partir de temas onal.
universais.
Logo depois vem Central do Brasil (1998) Novo milênio 2000.
em que são apresentados conflitos entre Abril despedaçado (2001), inspirado no
gerações e de angústia subjetiva frente ao romance homônimo de Ismail Kandaré. Uma
desamparo da perda dos pais, o anonimato das história longínqua, quando em 1910, um
grandes cidades, e as dificuldades relacionais jovem de 20 anos passa a receber apoio do
de idade. Este filme é de uma sensibilidade pai para se vingar da morte de seu irmão
gritante, foi indicado para vários prêmios tendo mais velho, assassinado por uma família rival.
recebido um total de cinquenta e cinco prê- O elenco do filme é de jovens atores, entre
mios internacionais inclusive o do Festival de eles Rodrigo Santoro e Luiz Carlos Vascon-
Berlim 1998, o Globo de Ouro e o de Melhor celos. O tema deste filme se relaciona com
filme estrangeiro da BAFTA (British Academy arquétipos muito antigos da vingança, da luta
of Film, Television). pelo sangue ou mesmo dos vínculos que nos
Para fechar o século passado, Walter unem a todos. Até este momento são estes
Salles foi convidado para participar de um os filmes produzidos pelo cineasta Walter
projeto de realização de pequenos filmes para Salles Junior. Mas isto não impede novos
a televisão, tendo apresentado o longa- filmes sejam dirigidos e venham a ser ane-
metragem para a TV Meia-Noite / O Primei- xados na pesquisa, que pretende analisar toda
ro Dia (1999) co-dirigido também com a produção deste diretor.
Daniela Thomas. Foi um filme que passou Finalmente Diário de Motocicleta (2004)
durante apenas uma semana nos circuitos que relata uma viagem de Che Guevara,
brasileiros, mesmo assim em algumas capi- associando o nome do cineasta definitivamen-
tais. O tema, bastante atual, talvez muito te ao gênero subjetivo onde alguns temas
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 243

persistem e insistem como os do conflito te situado numa fronteira de um “eu” que


subjetivo e da angústia. não é moderno , nem pós-moderno. Podemos
observar que atualmente, encontramos a partir
A desterritorialização desses novos conceitos outra forma de iden-
tificar o mundo. A contemporaneidade refle-
A sociedade contemporânea apresenta um te essa sensação de falta de orientação a partir
ritmo acelerado de vida em que tomadas de do momento que em perdemos nossas refe-
decisões muito complexas são exigidas a rências estruturais. A cada instante podemos
partir das inúmeras mudanças tecnológicas, mudar nossos conceitos a forma de entender
políticas, econômicas, sociais, culturais e que o que acontece ao nosso redor. A velocidade
afetam inclusive a esfera íntima dos relaci- em que tudo acontece faz com que a mu-
onamentos. A transformação do planeta numa dança de nossa rotina sejam visualizadas e
aldeia global impõe-nos uma série de acon- sentidas como um desequilíbrio que nos causa
tecimentos que são expostos e absorvidos muita insegurança. Há uma necessidade da
quase que ao mesmo tempo que estão acon- plasticidade, de flexibilidade do individuo,
tecendo em qualquer lugar. Não existe mais pois ele deve se modelar constantemente para
“fronteiras” geográficas. Em contrapartida, acompanhar esse ritmo e atender a uma
os indivíduos não mais pertencem e se sociedade que faz inúmeras exigências de
identificam apenas com o seu lugar de excelência, de felicidade contínua e de su-
origem. A evolução tecnológica trás uma nova cesso.
realidade em que é possível a comunicação Segundo o geógrafo David Harvey, a
sem fronteiras, uma diminuição das distân- experiência mutante do espaço e do tempo
cias, uma identificação dos sujeitos com tem por referência condições materiais e
culturas que eles escolhem pertencer e uma sociais.
alteração nas concepções de tempo e espaço.
As referências de espaço sempre nos “A aniquilação do espaço por meio
situaram perante nossos costumes, tradições, do tempo modificou de modo radical
rituais, gostos, formas de entender e se o conjunto de mercadorias que entra
relacionar no mundo e nos ajudam a enten- na reprodução diária... A implicação
der o que somos. Hoje se apresentam novas geral é de que, por meio da experi-
representações de espaço e consequentemen- ência de tudo – comida, hábitos
te do tempo. A facilidade e a rapidez de acesso culinários, música, televisão,
e troca de informações muda qualitativamen- espetáculos e cinema –, hoje é pos-
te a noção de tempo e espaço e tornar-se sível vivenciar a geografia do mundo
essencial rever estes conceitos para que vicariante, como sendo um simula-
consigamos nos situar melhor na complexa cro.”3
rede de relações sociais em que nos encon-
tramos e em nossos modos de subjetivação. Acreditamos ser de extrema importância
Como diz Homi Bhabha, refletir como esses aspectos influem no nosso
comportamento, assim como na construção
“...encontramo-nos no momento de da nossa subjetividade. O conceito de
trânsito em que espaço e tempo se cru- desterritorialização escolhido nesse artigo
zam para produzir figuras complexas como uma categoria teórica que nos possi-
de diferença e identidade, passado e bilita essa reflexão nos traz a sensação de
presente, interior e exterior, inclusão um mundo cada vez mais comprimido. As
e exclusão. Isso por que há uma fronteiras ficam sem função. As pessoas
sensação de desorientação...”.2 sentem-se sem território delimitado, continua-
mente vivendo suas experiências em diferen-
Bhabha evidentemente enxerga em sua tes contextos tendo necessidade de criar novas
hipótese, a pós-modernidade enquanto espa- formas de subjetividade para se adaptarem
ço híbrido e hibridizante, vive ou sobrevive, às exigências de cada espaço que se encon-
com a noção de “eu” angustiado, criticamen- tram.
244 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Observamos que a criação de novas (não-lugares) onde o indivíduo não tem a


formas de subjetividade geram muita angús- princípio referencial nenhum da pessoa com
tia. Há um grande desconforto oriundo do quem interage, pode assumir o risco da
contínuo conflito em arriscar se expressar de interação face a face a qualquer momento, fato
forma autêntica e, em contrapartida, a ne- que dependerá do interesse mútuo. Quando
cessidade de ser aceito e admirado social- isso não ocorre o sujeito pode sofrer o
mente. Além da angústia vivida pelos jovens incômodo de sua comunicação ser interrom-
em escolher como se expressar existe tam- pida pelo desinteresse do outro. Uma forma
bém a sensação embaraçosa de se “colocar” de uma leitura sobre a desteritorialização seria
em palavras, gestos e ações num “não-lugar”, a análise do exílio tratada em dois filmes.
ou seja, falar e agir com metáforas e expres-
sões de uma determinada cultura num outro O exílio e a ferida narcisica.
espaço em que esta subjetividade não encon-
tra ressonância e nem diálogo. A negociação entre o amor de si
De acordo com Marc Augé: (narcisismo) e o amor ao outro (alteridade)
se enuncia no campo das relações parentais.
“os não-lugares são tanto as instala- Daí se dá a constituição do sujeito como
ções necessárias para a circulação ace- extensão dessa relação e produz a cadeia
lerada de pessoas e bens... como os significante que lhe determina como sujeito.
próprios meios de transporte ou os No campo do Outro, à pulsão caberia se fazer
grandes centros comerciais, ou tam- presente no psiquismo, em seu aspecto se-
bém os campos de trânsito prolonga- xual aí se cumpre a função de procriação e
do onde se estacionavam os refugi- o sujeito se submete à descontinuidade.
ados do planeta.”4 Segundo Freud essa pulsão não encontra
meios de se fazer situar como macho ou
A complexidade da vida cotidiana parece fêmea no psiquismo.
ter minimizado o espaço e o tempo que, em Assim é que a Psicanálise aponta o mito
geral, esses jovens estudados neste artigo de Édipo Rei como protótipo do pagamento
dedicam a confrontar questões que os per- que o sujeito humano deve fazer no plano
turbam em suas relações interpessoais. As simbólico. Freud diz que Édipo sela seu
discussões entre seus pares parecem tornar- destino, não quando escapa à previsão do
se superficiais refletindo a busca da con- oráculo, que diz que ele mataria o pai e se
firmação de premissas pessoais, havendo casaria com a mãe. Muito menos quando
pouco espaço para ouvir o que é diferente. foge, acreditando estar fugindo de seu des-
A diferença gera angústia que os remete ao tino, até mesmo porque é nessa fuga que,
limite e à repressão, castração. acidentalmente, mata o pai, sem saber e, ao
Na primeira teoria de angústia de Freud tomar conhecimento, cega a si próprio. O que
(1916) há uma estreita ligação entre angústia Freud pretende, a partir do conteúdo desse
e excesso de sexualidade que se modifica no mito, é apresentar os elementos teóricos sobre
texto Inibição, Sintoma e Angústia (1926). a constituição do sujeito que se refere ao
Freud propõe um movimento sincrônico: ao enigma que funda a sexualidade humana,
mesmo tempo em que os motivos da angús- distinta da sexualidade dos animais.
tia se concentram sobre o signo da castração, Longe de ser um dogma, a Psicanálise
opera-se uma re-inversão radical do “dentro” não se encerra em Freud foi inaugurada por
e do “fora”. Não é mais o recalque que produz ele a partir do conceito do inconsciente e
angústia, mas a angústia que produz o daí em diante tem desenvolvido vários
recalque. Outro lugar de comunicação huma- postulados. Esse referencial teórico que
na na atualidade que desperta novas formas propõe o Èdipo como centro da personali-
de sociabilidade promovendo descobertas, dade pretende se suficiente para explicitar as
prazeres, ilusões, encontros, desencontros questões acerca da “construção da identida-
podendo também gerar conflitos e angústias de” do sujeito que aponta para o enigma que
é a virtualidade conferida através dos sites funda a sexualidade humana. Mas estas
de relacionamento. Nesses espaços vazios colocações são teóricas.
FOTOGRAFIA, VÍDEO E CINEMA 245

Na filmografia de Walter Salles Junior setores da sociedade adquirem distintas


especialmente nos filmes Terra Estrangeira possibilidades de se desenvolverem e se ex-
(1995) e Central do Brasil (1998) , podemos pressarem em múltiplas perspectivas.
considerar como tema a saga dos persona- O desenraizamento tão presente neste
gens que vão à busca do pai, em busca de momento de inicio de século acompanha a
si mesmo, ou ao encontro de seu “destino” formação e o funcionamento da sociedade
mesmo que se percam, abram mão de seu global, permitindo situar os indivíduos em
território conhecido. diferentes lugares e distintas condições sócio
Ao articular o conceito de desamparo, ao culturais, diante de novas, desconhecidas e
Complexo de Édipo e ao narcisismo não surpreendentes formas e fórmulas de viver.
podemos deixar de lado o conceito de fe- Ao considerar conceitos como estranho,
minilidade, relativo ao erótico. Birman (1999) estrangeiro, local, vivência na pós-moderni-
afirma que o desamparo encontra uma forma dade estamos tratando de identidade cultural.
positiva quando se relaciona à feminilidade, Este conceito que cada vez mais tem sido
sendo o masoquismo a forma negativa do aprofundado nos remete à origem do que se
desamparo. Tal elaboração teórica favorece busca na cultura. Em 2002 em um congresso
o equívoco de se identificar o feminino ao em Barcelona sobre cultura, pincharam pela
masoquismo. No entanto, o que se elabora cidade a seguinte frase: “originalidade é
é a possibilidade de erotização pela via do origem”. Apesar de ser uma definição
masoquismo e não da ação propriamente dita, tautológica, evocar a origem é evocar a
havendo aí um percurso masculino e femi- identidade, de preferência cultural. Voltando
nino. No filme Central do Brasil (1998) Dora ao autor Homi. K. Bhabha, cuja proposta de
(Fernanda Montenegro) fala de uma sensu- trabalho se baseia no fato de que a identi-
alidade protetora, de uma substituta da mãe dade não é fixa, mas se constrói e se es-
que aponta para a admiração que tem de si, trutura a partir de relações sociais de um
e de sua capacidade em expressar sua ge- “outro” há uma possibilidade de emergir
nerosidade. desta difusão geográfica meio perdida e des-
O desamparo do sujeito é baseado em sua conhecida novos modelos de identidade que
real incompletude. Para a psicanálise estas atendam às angústias atuais.
alternativas estarão sobre-determinadas a
partir da vivencia do Édipo. Nos estudos Conclusão
atuais as diversas configurações da família
e as condições territoriais, revelam outras Esse texto foi trabalhado através do
situações presentes nos temas dos filmes tais processo “interpretativo” de filmes que
como a comunidade, as alteridades e mesmo constam da filmografia de Walter Salles
a solidificação de um laço de amor com um Junior. Ao associar os temas percebe-se que
outro como é proposto em Terra Estrangeira o diretor produz um texto imagético que
(1995). aponta para as questões atuais e que estão
Dessas múltiplas implicações resulta o sob o foco dos pesquisadores. Cada um deles
processo de desterritorialização, acentuando revela identificadores ficcionais de subjeti-
e generalizando outras e novas oportunida- vidade que são muito semelhantes às
des de ser, agir, sentir, pensar, sonhar e vivências atuais.
imaginar. Revelam-se condições desconheci- Apesar de semelhanças e estranhezas as
das no âmbito da sociedade global; ampli- trocas simbólicas e imaginárias nos filmes
am-se e generalizam-se outras e novas con- de cineasta poderão servir como indicadores
dições de realização das diversidades, sin- de várias questões sobretudo da subjetivida-
gularidades, universalidades; indivíduos, de mas nunca como resultados definitivos
grupos, classes sociais e todos os outros de conclusões fixas.
246 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia Muniz Sodré, A C. Reinventando a


cultura: a comunicação e seus produtos.
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NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 247

Capítulo III

NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS


248 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 249

Apresentação
Óscar Mealha1

Intróito… ente na sua actuação e igualmente eficaz na


sua missão (ISO-9421)(Shneiderman,
Vale sempre a pena parar para reflectir 1997)(Nielsen, 1993). Infelizmente nem
sobre a essência de um problema que apon- sempre é isto que acontece. Em finais do
tamos como recorrente, neste caso, com o período de guerra fria, Licklider já advogava
uso dos computadores no contexto das nossas (Licklider et al., 1968) as potencialidades do
áreas profissionais e científicas, e contribuir computador como dispositivo de mediação
para a identificação do mesmo. Chegar desta à comunicação inter-pessoal. Contudo, pas-
forma ao contributo possível, que cada um sadas várias décadas, e escravo do progresso
pode dar através de soluções, caminhos ou galopante que se continua a registar na área
estratégias que possam levar a um progresso da computação, muito continua por fazer.
mais adequado à realidade do ser humano, Associado ao vector de desenvolvimento
em concreto e neste cenário, no tocante ao e aplicação do domínio computacional, fe-
uso pessoal das novas tecnologias no dia-a- lizmente que existem nichos exemplares de
dia. sucesso com níveis elevadíssimos de satis-
O espaço proporcionado com esta con- fação em contexto de uso. Faça-se a análise
ferência e os contributos obtidos são um bom da evolução que os computadores têm so-
exemplo do que cada um de nós está, e pode frido na área dos tradicionalmente designa-
continuar a fazer para que o futuro seja dos videojogos, concretamente o que hoje se
diferente. Considerem estas próximas secções designa por consola de jogos interactivos. Em
como mais um contributo de matriz atenta formato secretária (desktop) ou em formato
e crítica, fundamentado na preocupação de portátil a evolução foi significativa porque
se esclarecer o complexo e ambíguo visando o contexto de uso esteve sempre bem de-
a sistematização de conhecimento, porventura finido contemplando um determinado
novo. público-alvo e com objectivos bem deline-
ados. O resultado desta evolução correspon-
Os contextos e as tecnologias de a um dispositivo para fins exclusivamente
lúdicos, e do ponto de vista ergonómico,
As novas tecnologias criam novos con- adequado a um público bastante vasto. No
textos ou os contextos potenciam o apare- fundo, consequência de um grande investi-
cimento de novas tecnologias e consequen- mento em design de produto, em conformi-
temente, as suas novas linguagens? Existe a dade com o seu contexto de uso. A política
expectativa natural de que novas tecnologias de estabilidade da plataforma tecnológica e
inseridas num dado contexto contribuem para melhoramento progressivo dos títulos dispo-
a sua evolução (Neves, 1998) num quadro níveis, também tem contribuído para o ex-
de funcionamento mais eficiente (admitindo celente desempenho em termos da ergonomia
que o contexto em causa é, e manter-se-á, do interface humano-computador e funcio-
eficaz no seu propósito ou missão) e even- nalidade de cada produto. Resumindo, uma
tualmente garantindo maior satisfação a quem nova tecnologia, vários géneros, várias lin-
o integra. guagens, um quadro de estabilidade e satis-
Efectivamente as tecnologias deveriam fação, um caso de sucesso promissor.
inserir-se numa estratégia de adequação aos Retomando o enquadramento do compu-
objectivos e missões dos contextos que as tador pessoal, existe considerável investimen-
integram, perspectivando com isso um con- to ao nível das aplicações individuais, espe-
texto mais rico na sua essência, mais efici- cificamente aliado a estratégias de integra-
250 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

ção ou correlação de tecnologias e/ou ser- e porventura, novas linguagens para a interface,
viços, mas com diminuta preocupação em funcionalidade e intervenção das novas tecno-
transformar o esforço em produto final logias nas quais se comece por construir com
encapsulado e ergonomicamente correcto. No a definição da natureza da equipa de trabalho,
fundo, conceptualizar e considerar o utilizador transdisciplinar. Outro factor relevante refere-
ou público final no processo de evolução da se à caracterização correcta do público alvo,
tecnologia. Continua-se a preferir a solução ou do utilizador final, em sintonia com os
de adequação ao quadro de integração e objectivos ao qual o instrumento tecnológico
utilização generalista nas plataformas poderá responder. A convergência de todo este
computacionais, nomeadamente no vulgar- processo deve conduzir-nos a um conjunto de
mente denominado, computador pessoal (de paradigmas, metáforas e linguagens, nomeada-
secretária ou portátil) numa matriz em tudo mente a visual, sonora e de interacção, ade-
muito idêntica à que foi proposta com os quadas ao contexto, social, cultural e/ou pro-
primeiros produtos comerciais (Williams, fissional em causa.
1983, 1984). A título de exemplo, que características
Compreende-se que, se por um lado e é que poderia ter uma consola computacional
desta forma a equação de sustentabilidade do em rede para a área do jornalismo? Por outras
progresso, nesta vertente, está temporariamen- palavras, que instrumento de trabalho
te garantida, por outro, perdem-se a todos computacional é que qualquer jornalista
os minutos que passam, utilizadores que gostaria de ter no seu gabinete, biblioteca ou
desesperam e desacreditam que um compu- secretária de trabalho? A resposta concentra-
tador de uso pessoal possa constituir, ou vir se numa máquina que ao ser ligada apresen-
a constituir, um instrumento de trabalho, de taria uma interface gráfica assente em
facto, eficiente e versátil. Ben Shneiderman paradigmas visuais que traduziriam a neces-
num dos seus últimos registos, (Shneiderman, sidade de um jornalista. Uma imagem que
2002) refere as necessidades prementes no representaria as opções de interacção para as
domínio da mediação tecnológica para as funções habituais de um profissional desta
áreas da saúde e da educação, mesmo a uma área. Desta forma estaríamos perante uma
escala global, para a intermediação com os proposta de interface unificadora de aplica-
centros de conhecimento e excelência. ções e suas correlações. Vejamos algumas das
Num plano mais geral, Donald Norman funcionalidades que poderia apresentar:
(Norman,1988) também há muito que alerta i) O resultado de uma pesquisa, a vários
para um défice de atitude crítica no cenário repositórios de informação nacionais e in-
mais abrangente das tecnologias de utiliza- ternacionais, é construído de forma a inte-
ção pessoal e doméstica. Com um apelo ao grar a notícia/informação em conformidade
design universal, alerta para as questões mais com o tema ou contexto de pesquisa. O
óbvias relacionadas com as tecnologias do próprio universo de pesquisa será
quotidiano, desde o puxador da porta até à prioritariamente condicionado aos repositórios
interface e funcionalidade do micro-ondas, de área profissional, pré-definidos pelo
videogravador, telemóvel, etc. utilizador ou já legitimados e pré-estabele-
Artefactos que se apresentam paradoxal- cidos por associações competentes.
mente como bastante modernos e por vezes, ii) O editor disponível foi construído
bastante ineficientes e pouco intuitivos, re- especificamente a pensar nas necessidades de
velando uma grande desadequação à tarefa edição de um jornalista. Dá prioridade à
para o qual foram concebidos, e exigindo do construção da notícia, ao seu valor informa-
utilizador uma taxa de esforço cognitivo e tivo e/ou semântico, considerando parâme-
motor, por vezes, descabido. tros multimédia (texto, imagem fixa e ima-
gem dinâmica) e remete para processos semi-
Novos paradigmas, novas linguagens automáticos, a tarefa de conversão para os
média de distribuição (revista, jornal, web,
Na verdade, como é que ocorrem? Que rádio, televisão, etc).
atitudes e princípios é que podem orientar iii) Os serviços de comunicação síncronos
o exercício de concepção de novos paradigmas e assíncronos encontram-se formatados e
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 251

inseridos nos locais apropriados da interface Continuando com este alinhamento de


e articulados com as aplicações activas de exercício é possível referir outros sectores
trabalho. Não se devem constituir por uma de investigação que trabalham segundo uma
aplicação por cada tipologia de comunicação matriz de intervenção transdisciplinar e to-
que se necessita. O que acontece habitual- dos eles, obrigatoriamente geradores de novos
mente é existir uma aplicação para cada uma paradigmas e consequentemente de novas
das seguintes necessidades: linguagens.
- mensagens instantâneas (com informa- i) Comunidades educativas on-line
ção de presença de destinatário) Um bom exemplo é a educação à dis-
- correio electrónico (e mailinglists) tância, em comunidade não presencial, com
- fórum (na web e outros através de enquadramento local ou mesmo nacional
aplicações específicas, ex. news) (Ramos et al., 2002) (existem registos de
- chat (texto, voz, vídeo) actividade numa abrangência internacional).
- SMS O aspecto interessante é a conjugação, e
iv) O repositório de informação digital carácter de complementaridade, que acaba por
local (a mediateca pessoal de cada jornalista) assumir com o tradicional paradigma
está concebido para: presencial já preestabelecido.
- integrar automaticamente todos os tra- Acredita-se que um sistema deste género
balhos produzidos pelo utilizador ou por proporciona, entre outras coisas e, para
outros (obtido através de pesquisa e neces- determinados subsistemas de ensino, uma
sário para referência) maior aproximação e cumplicidade entre os
- a consulta e referência ao material que agentes que constituem a comunidade edu-
consta do repositório é eficaz e em muitos cativa, estudante – professor – família.
aspectos deve estar automatizada e susten- ii) TV Interactiva
tada em metáforas visuais adequadas à área/ Neste sector sublinho o trabalho de Ferraz
tema de forma a melhorar a eficiência (Ferraz et al., 2001) que promove a TV
- a preservação do conteúdo digital interactiva como um instrumento que poderá
(backup) deve ser periódico, semi-automá- potenciar laços sociais, num contexto não
tico e com redundância, valendo-se de dis- presencial, em torno da oferta televisiva cada
positivos complementares de armazenamento vez mais segmentada. Um cenário que se
ou ligações a outras consolas (amigas ou perspectiva hoje num universo de partilha e
institucionais para efeitos de segurança fí- convívio, porventura, global. Um dos aspec-
sica). tos relevantes desta tese é que inverte as
Este exercício conceptual de correlaciona- tendências que apontam para um maior iso-
mento de computador pessoal com necessi- lamento do telespectador.
dades de um jornalista com o intuito de Outro factor interessante que se tem
chegar à “consola de jornalismo” exemplifica, perfilado, associado ao conceito de TV
resumidamente, numa primeira instância, que interactiva, é o da transposição de algumas
a equipa de concepção deve ter caracterís- decisões de régie, nomeadamente o exercício
ticas transdisciplinares, ou seja, qualquer um de realização, para o contexto de cada
dos elementos que integra a equipa de utilizador. Transfere para o telespectador o
concepção e desenvolvimento de um instru- poder de ver de uma forma diferente, ver
mento de mediação desta natureza, compre- de uma forma personalizada. Mantém-se a
ende ou está sensível: passividade do ver sem intervir, mas ganha
- às necessidades profissionais do jornalista o controlo do “como ver”.
- aos objectivos e tarefas do seu dia-a-dia Outra das alterações neste domínio, que
- à sua linguagem se prospectiva como extremamente revolu-
- ao seu modus operandi cionária, é a da redefinição do paradigma de
em suma, conceptualizam, implementam e formatação de conteúdos televisivos.
avaliam um instrumento de mediação Particularmente interessante quando se
tecnológico, em conformidade com os ob- passar a tomar em consideração as possibi-
jectivos e contexto de necessidade diária de lidades de interacção e influência/participa-
um profissional de jornalismo. ção directa do telespectador no produto
252 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

televisivo (passaria a agente activo do sis- a partir de centros de conhecimento ou


tema). excelência clínica, representa uma das acti-
iii) Teletrabalho vidades exemplificativa do que as novas
A abordagem do teletrabalho obriga, tecnologias podem fazer pela qualidade de
necessariamente, à redefinição do paradigma vida em zonas interiores ou inacessíveis.
de trabalho e/ou contributo socioeconómico Vislumbra-se uma tecnologia capaz de
de cada cidadão. Proporciona por um lado, resolver o problema de concentração de
a aproximação do seu contexto pessoal/fami- competências clínicas muito especializadas
liar e/ou doméstico e por outro, obriga a uma nos pólos urbanos centrais. Através do posto
redefinição do modelo de trabalho e de telemedicina o especialista passará a servir
consequente segmentação e transposição do em rede as solicitações de elaboração ou
quadro de responsabilidades para cada fun- esclarecimento de um diagnóstico complexo
cionário da organização ou teletrabalhador. O ou ambíguo. Na sua essência, os objectivos
modelo de instrumento de intermediação para do corpo clínico mantêm-se pois continua a
o teletrabalhador proposto por Almeida prestar um serviço de saúde pública.
(Almeida, 2000) exemplifica o grau de A forma como administra esse serviço
optimização que se consegue na definição de muda; muda o paradigma e consequentemente
novos paradigmas e novas linguagens para esta a linguagem de interacção entre especialistas
área. Fica no entanto por demonstrar se, o e porventura, entre médico e paciente.
tempo que se ganha devido ao aumento de
eficiência que se advoga com este paradigma, ...Considerações finais
será para trabalhar mais ou para investir em
qualidade de vida pessoal e familiar. Revestidos de um cepticismo científico
iv) Jogo interactivo multimédia saudável resta-nos, de facto, continuar a
Conforme já foi referido previamente, o avaliar o impacto dos instrumentos que temos
jogo interactivo em computador (e em rede) hoje, aqueles com o qual trabalhamos e que
exemplifica bem uma das áreas de interven- nos tocam, os ideais, a esses, deixemos que
ção pessoal e doméstica onde a evolução do o sonho os domine.
computador continua a registar o seu melhor Espero ter deixado um estímulo para que
desempenho. Neste momento registam-se se continue a questionar se os instrumentos
experiências de correlação de géneros sem tecnológicos que se instalam nas nossas
prejuízo para o desempenho, contemplando ecologias profissionais e domésticas, corres-
contudo, novas linguagens associadas a novos pondem objectivamente ao que
cenários imagéticos e sonoros. perspectivamos e, naturalmente, se o fazem
v) Telemedicina em conformidade com um quadro de desem-
O diagnóstico à distância equacionado penho e satisfação que se deseja, sempre,
pela telemedicina (Sousa Pereira et al., 1999), eficiente e eficaz.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 253

Bibliografia Utilização das TIC no Ensino Superior - A


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254 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 255

Apresentação
Graça Rocha Simões1

Está-se claramente a pensar em Tecno- Manovich e como, numa outra perspectiva,


logias da Informação e da Comunicação (TIC) se lê na colectânea de Peter Thomas. Esta
e, nomeadamente, nas que se desenvolvem formulação permitirá, porventura, diferenci-
em torno do computador e das redes de com- ar este tema de outros para os quais as TIC
putadores (em particular da Internet). Estas pela sua ubiquidade nas actividades humanas
tecnologias têm sessenta anos. Estão, no são também preocupação central e de que
entanto, em cima da nossa secretária, em uso o excelente reader de Lievrouw e Livingstone
corrente, há cerca de vinte e no caso da dá conta.
Internet só desde meados dos anos noventa. De momento, evitamos reduções exces-
Por isso, “novas”. Está-se também a procu- sivas no que toca ao objecto em causa e res-
rar circunscrever e qualificar o segundo termo pectivas formas de abordagem, enfrentando
do binómio em título. seguramente escolhos teóricos e
Quando em 1960 Licklider escreveu metodológicos inevitáveis a tal postura, mas
“Man-Computer Symbiosis”, um dos textos acompanhando Chesher quando afirma que
mais marcantes para a ciência e engenharia o melhor trabalho neste campo é
computacional e, especificamente, para a multidisciplinar, interdisciplinar e
evolução das interfaces ser humano-compu- transdisciplinar.
tador, identificou a dissemelhança básica entre A investigação em “Novas Tecnologias,
as linguagens humana e computacional como Novas Linguagens”, alguns dirão Novos
um dos mais sérios obstáculos a uma ver- Media (sem que exista actualmente consen-
dadeira colaboração (em tempo real) entre so em relação a este atributo de novo, como
seres humanos e computadores. De então para a leitura de “What´s New about New Media”
cá, muitas têm sido as soluções encontradas regista) procura entender, agora como sem-
para contornar esta diferença e adaptar os pre, as mediações tecnológicas nos modos
computadores às linguagens humanas. Entre- de trocar informação e, tal como se afir-
tanto, com a convivência computacional nós, mava em nota de abertura à temática “Co-
os não especialistas em computadores, não municação e Novas Tecnologias” em Con-
só nos temos também vindo a “adaptar”, gresso anterior, “vê e antecipa múltiplos e
como temos contribuído para esse esforço de fluidos objectos de investigação, servindo-
aproximação. Uma das formas de descrever se de antigos, mas tendo necessariamente
o objecto da temática “Novas Tecnologias, de convocar novos olhares, teorias, mode-
Novas Linguagens” será precisamente acen- los e metáforas”. No entanto, podemos ler
tuar ser a interacção entre ser humano e com- na passagem de uma denominação a outra
putador e as suas interfaces, no seu sentido uma aproximação a um objecto mais “pre-
mais amplo, o locus de formação e desen- ciso”, cujos contornos apenas ligeiramente
volvimento de convenções, elementos e se propuseram acima, facto que nos parece
formas que se constituem em novas lógicas indiscutivelmente sinal, se não de maturi-
e dinâmicas de expressão e conhecimento dade, de maturação nos caminhos da inves-
humanos, como acentua recentemente tigação.
256 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia Manovich, Lev (2001) The Language of


New Media. Cambridge (MA): The MIT Press.
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Sonia (eds) (2002), The Handbook of New 1
Universidade Nova de Lisboa. Coordenado-
Media. London: Sage Publications. pp.1- ra da Sessão Temática de Novas Tecnologias,
15. Novas Linguagens do II Ibérico.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 257

Refrescando a memória – arquivo e gestão da informação


Alberto Sá1

Introdução do passado e as bibliotecas como depositá-


rios de um saber acumulado que o Homem
Nos últimos anos, a comunidade cientí- foi produzindo na forma escrita. Contudo, o
fica tem-se debruçado sobre a problemática desenvolvimento tecnológico ocorrido sobre-
do arquivo e gestão da informação, consci- tudo em meados do século passado trouxe
ente da fragilidade dos meios de suporte uma nova concepção de informação e de
informativo tradicionais e da necessidade de conhecimento.
adoptar estratégias no presente para salva- Os processos de transformação da infor-
guarda da informação no futuro. O cepticis- mação analógica em formato digital reduzi-
mo instalou-se. Questionaram-se a ram a panóplia de dados sensoriais à expres-
vulnerabilidade e a longevidade dos suportes são encadeada de “zeros” e de “uns”. Deste
do registo informativo, diagnosticou-se a modo se constitui um outro tipo de infor-
dependência dos processos digitais de arqui- mação, de carácter não-físico, virtual,
vo de dados face aos programas (software) entendível pela máquina.
geradores, percepcionou-se a obsolescência Se, no passado, a consulta da informação
do equipamento tecnológico (hardware) res- pressupunha um suporte físico em papel -
ponsável pela leitura da cadeia de bits e pela e a própria informação era constantemente”
sobrevivência do código de linguagem ine- “reiventada” por novas e sucessivas interpre-
rente (Hedstrom, s.d.; Rothenberg, 1999b). tações de forma a produzir conhecimento, no
Desde sempre foi preocupação do Homem presente, novas questões se levantam: como
a ideia de arquivar, guardar e preservar, registar a informação expressa por código
mantendo, ainda que inconscientemente nos binário; como guardar e preservar documen-
primórdios da Humanidade, uma perspectiva tos do tipo e-mail, páginas web, bases de
de transmissão enquanto herança. Guardar dados, ou mesmo telefonemas e vídeos em
agora para mostrar amanhã, perpetuando formato digital. Ou seja, a questão de fundo
significados, vivendo-o em função de um é a de se saber como guardar os bits que
futuro incerto. Foi desde que o Homem tomou constituem a informação.
consciência de si próprio e do que o rodeava Os tradicionais depositários do saber da
que procurou registar na pedra as formas do Humanidade, as bibliotecas e os arquivos,
seu imaginário por meio das pinturas ou ganharam a companhia de outra entidade
gravuras. Registava informações, construin- armazenadora de informação: o disco-duro,
do memórias que ainda hoje servem de sem dúvida o suporte físico (hardware) que
narrativas de um espaço e de um tempo viabiliza o arquivo, gestão, organização e
concretos, como é o caso da arte paleolítica. posterior processamento de todos os dados
Significava eternizar algo que era importan- armazenados. Esta tendência foi reveladora
te, construindo mitos acerca da natureza que de uma nova atitude, a do recurso às novas
o envolvia. tecnologias da informação e da comunica-
Uma dificuldade sempre sentida foi a da ção, aproximando-se da noção da Biblioteca
natureza da informação a transmitir. A de de Babel, de Jorge Luis Borges, ilimitada no
carácter físico, aquela que existe por si, seu acervo, contendo todos os livros possí-
facilita o acto de preservar e arquivar, dado veis.
o seu perfil material - um edifício, uma Sem qualquer paralelo em alguma época
estátua, uma construção, os documentos histórica, a sociedade actual lida diariamente
escritos, os mapas, as pinturas. Neste sen- com uma constante produção de informação.
tido, surgiram os arquivos como guardiões Num passado não muito remoto, o suporte
258 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

tradicional de informação – o livro - trazia enquanto herança cultural, para as gerações


inerente a sua conservação. O acto de pu- do presente e do futuro.
blicação a isso “obrigava”. Este procedimen- Outras propostas têm em vista fins de
to consistia na realização de um conjunto de natureza militar, “fazendo dos computadores
etapas de validação da informação: os uma ferramenta muito mais eficaz em situ-
momentos do revisor, do corrector e do editor. ações de guerra”3, pela alimentação de gi-
Os custos deste percurso exigiam o seu gantescas bases de dados com informações
posterior arquivo e conservação, expressos individuais, esperando-se, com isso, elaborar
na existência de um Depósito Legal que padrões de comportamento e percursos de
garantisse a sua sobrevivência. vida dos criminosos.
Actualmente, os processos tecnológicos Também o meio académico e universi-
permitem saltar directamente da etapa da tário têm apresentado propostas de colecções
redacção para a publicação, sem passar pelos digitais para armazenamento, preservação e
processos intermediários de validação da divulgação da propriedade intelectual da
informação. Não existe um arquivo central comunidade científica, com a tónica assente
oficial, um organismo que funcione como num modelo menos centralizado e mais
Depósito Legal, mas antes vários e distintos distribuído da comunicação: os repositórios
processos de arquivo, sem, contudo, haver institucionais4. O conjunto das ferramentas
a orientar qualquer actividade reguladora – informáticas utilizadas permite ultrapassar o
precisamente, um dos motivos para o suces- problema complexo da integração dos dife-
so da web. Porque o suporte de registo é rentes processos de depósito, tão necessários
volátil, as formas de preservação da infor- à eficiência de um sistema multidisciplinar,
mação passam pelo armazenamento em vários recorrendo ao uso de tecnologias open source,
espaços. Um à escala global: a Internet, que facilitam a exposição da informação na
exposta aos “radares” dos motores de pes- Internet, conjuntamente com os seus
quisa. Outro à escala local: o disco-duro do metadados5. Os repositórios estão definidos
sistema, operando por processos de dissemi- por políticas de acesso restritas de modo a
nação realizados em suporte magnético ou controlar cada acção do processo, prevendo
na forma óptica de cd-rom e dvd. a existência dos submitters, dos reviewers,
Na verdade, a Internet permite ao cida- dos metadata editors, entre outros. De modo
dão anónimo tornar-se facilmente um editor, a ser possível encontrar um recurso depo-
que produz os seus próprios escritos e os sitado, é crucial que as citações permaneçam
publica num qualquer site, gratuitamente válidas por longos períodos de tempo, recor-
disponível mas residente em parte geogra- rendo-se à criação de identificadores persis-
ficamente incerta e irrelevante. Os baixos tentes para cada item – o Uniform Resource
custos associados à publicação online per- Identifier (URI)6.
mitiram a denominada “democratização da A ideia de tudo arquivar pode também
informação”. pertencer ao domínio do individual7, alcan-
çando-se verdadeiros projectos de vida di-
«Existo, logo, armazeno» gital, perpetuando a memória de toda uma
existência. A crescente digitalização do
Se o “presente” já se vai registando na quotidiano moderno tem a vantagem de
forma de código binário, a tendência para permitir guardar a informação sobre o nosso
a digitalização de tudo aquilo que constitui dia-a-dia de uma maneira fácil e barata:
o passado vem aumentando, fazendo passar mensagens de correio electrónico, fotos e
pelo crivo óptico todo o tipo de documentos vídeos pessoais, documentos textuais, cálcu-
existentes em formato não-digital: livros e lo da economia doméstica, mas também todo
obras de referência, periódicos, jornais, o registo das nossas acções efectuadas no
manuscritos, cartografia, entre outros, forman- contexto económico-social. Por exemplo, os
do autênticas bibliotecas virtuais. movimentos bancários, os registos de comu-
Algumas iniciativas têm correspondido a nicação móvel, o registo do dentista, as
grandes projectos nacionais2, fazendo apelo escolhas no clube de vídeo, ente tantos outros
à necessidade de proteger o património, exemplos.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 259

Em busca do paradigma linguístico É possível agrupar os problemas em dois


conjuntos: um primeiro diz respeito à pre-
A cultura do computador criou novos servação e revitalização dos antigos docu-
sistemas cognitivos diferentes daqueles a que mentos (Arqueologia Digital); um outro, de
estávamos habituados. Numa sociedade em teor profiláctico, diz respeito à adopção, na
constante mutação, onde todo o conhecimen- actualidade, de um conjunto de procedimen-
to é fluido e dinâmico, a informação é tos para que, no futuro, não se tenha ainda
assimilada instantaneamente e o pensamento que resolver aquilo que hoje se tenta solu-
que a acompanha espartilhado e fragmenta- cionar (McCray, 2001).
do: “a aceleração tecnológica e social súbita Da panóplia de soluções encontradas,
sem preparação pode na verdade levar à nenhuma parece satisfazer plenamente todas
desintegração (…). Os nossos computadores as condicionantes em jogo, visto a comuni-
estão a acelerar as nossas respostas psico- dade científica ter desenvolvido várias estra-
lógicas e os nossos tempos de reacção muito tégias de preservação digital, com resultados
mais do que fizeram os aviões, os comboios satisfatórios em situações concretas, mas sem
e os automóveis” (Kerckhove, 1997b, págs. atingir um nível de eficácia tal que seja capaz
118-119). de responder em absoluto ao problema
Um ponto sensível é o da questão da (Hedstrom, s.d.).
compatibilidade das linguagens. Tal motiva Estes procedimentos podem passar pela
o estado de dúvida acerca da capacidade de adopção de estratégias singulares ou, quando
interpretação das gerações futuras sobre os muito, mistas, que incluem a impressão dos
processos de informação desenvolvidos na documentos digitais em suporte físico, a
actualidade. uniformização dos procedimentos de
A velocidade frenética das sociedades codificação, a criação de um espaço
actuais levou à renovação das interfaces e museológico de computadores com vista à
das linguagens da programação, o que im- recriação de ambientes informáticos extintos,
plica criar processos não só de descodificação, a conversão/migração dos formatos digitais
mas também da manutenção dos códigos como forma de sustentabilidade e, finalmen-
linguísticos. te, a emulação dos dados conjuntamente com
A compatibilidade da informação exige o programa que originalmente os criou
a preservação do código que a formula. A (Rothenberg, 1999a; Lorie, 2001).
comunidade científica deu conta de que as Tarefa nada fácil por depender de várias
vantagens que promoveram a tendência variáveis, desde aquelas de carácter técnico
generalizada para a digitalização camuflavam até às organizacionais, passando pelos com-
problemas às gerações vindouras portamentos sociais. Em conjunto, pretendem
(Rothenberg, 1999b). Ninguém duvida dos evitar o designado pela “improbabilidade da
benefícios da digitalização documental por comunicação” (Luhmann, 1992, p. 42), as-
razões de preservação, facilidade de segurando processos de compreensão em
armazenamento, processo de cópia, redução função de um contexto próprio, de forma a
de custos e reutilização em novas e mais aceder aos receptores, obtendo resultados
avançadas ferramentas informáticas: “o novo comunicativos desejados.
torna possível uma utilização mais específica A questão da compatibilidade, da migra-
daquilo que já existe” (Luhmann, 1992, ção e da emulação tem, por isso, enorme
p.153). relevância no contexto da preservação da
No entanto, já menos perceptíveis - e aqui memória digital, assumindo particular des-
reside o problema -, são as relações de taque a sobrevivência do código linguístico
dependência estabelecidas durante o proces- enquanto factor de evolução.
so de digitalização: a codificação só é Um exemplo recorrentemente citado é o
interpretável pelo programa gerador, que, por da Pedra da Roseta e o seu contributo para
sua vez, depende do sistema operativo que a interpretação da escrita ideográfica egíp-
o acolheu e que, em conjunto, todos depen- cia. Neste caso, a preservação do conheci-
dem do equipamento que os executou mento foi possível pela recolha e recupera-
(Rothenberg, 2001). ção do código linguístico, através da compa-
260 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

ração entre a escrita hieroglífica antiga, o À primeira vista, o progresso tecnológico


grego e a escrita egípcia coeva. verificado nas unidades de armazenamento
Outro exemplo, que nos é mais próximo, não parece aliviar esse afogamento. A indús-
aponta precisamente para as dificuldades que tria do sector, recorrendo à nanotecnologia,
as gerações sucessivas encontram na trans- tem procurado formas capazes de condensar
missão dos códigos de linguagem, e tal diz maior informação em espaços mais compac-
respeito à reforma arquivística que D. Manuel tos com vista ao incremento da capacidade
empreendeu (e que foi continuado depois com das unidades. No entanto, estudos
D. João III), a qual ficou conhecida pelo nome laboratoriais apontam para uma nova concep-
de Leitura Nova 8: “sabemdo o passado ção de armazenamento mediante a utilização
hordenariam milhor o presente”. do átomo como elemento de representação,
Tratou-se de uma medida reformadora e atingindo-se o estádio quantum10, capaz de
organizacional da Torre do Tombo (à altura, guardar o bit um milhão de vezes mais
Real Arquivo, no castelo de S. Jorge, em densamente do que aquele actualmente pre-
Lisboa). Na prática, resultou na cópia, no sente num vulgar cd-rom (Bennewitz et alii,
século XVI, de documentos dispersos, quer 2002).
de chancelarias régias, quer das “Gavetas”, Todo este progresso convida a um certo
de milhares de cartas que, à altura, parece- laxismo no utilizador: a perspectiva infindável
ram de interesse histórico perpetuar com o de espaço em disco parece tornar irresistível
intuito de facilitar a sua leitura. Muitos desses a tendência para tudo armazenar, sem olhar
códices encontravam-se já quase ilegíveis e a meios, numa terrível “obssessão pelo dis-
incapazes de decifrar, para uma média de co-duro”. Armazenamos, porque podemos. E
funcionários. Em suma, eram “escritas” com se cada vez mais pudermos, mais querere-
séculos de distância. A intenção era a de mos armazenar. Já não são apenas documen-
agilizar a “burocracia” já que, quando alguém tos em texto, mas toda uma variedade pro-
pedia uma cópia de um documento (“certi- dutiva, de características e pesos (em bits)
dão”), tal revelava-se extremamente moroso, diferentes: mensagens de correio electrónico,
pois poucos sabiam já ler escritos a séculos fotos digitais, registos de vídeo, comentários
de distância. Assim, procedeu-se à transcri- em weblogs e/ou fóruns, entre outros. A
ção de muitos documentos, agora classifica- limpeza do disco torna-se uma tarefa cada
dos e arrumados com novos critérios. vez menos recorrente, porque o limiar do
O grande problema colocou-se na defi- espaço insuficiente se encontra distante.
ciência de muitas transcrições, cujos erros Nesta perspectiva, há o perigo de muitos
foram causados pela ignorância de alguns dos registos caírem no esquecimento, camu-
copistas. Em princípio, tratava-se apenas de flados por entre desmultiplicações de pastas
“copiar”, pelo que a estrutura da língua de arquivo. A já referida proliferação infor-
deveria manter-se medieva. No entanto, o que mativa faz com que o tempo da assimilação
se verificou, em grande parte, foi o acres- do saber se esgote rapidamente. Dado existir
centar de fenómenos linguísticos introduzi- um hiato temporal entre a capacidade huma-
dos pelos diversos copistas, com níveis de na de assimilação informativa e o caudal de
cultura e erudição muito díspares9. informações que desagua por vários meios
Tal como o referenciado hoje em dia, ainda no quotidiano social, verifica-se a tendência
que com menores implicações, também há para arquivar tudo o que se encontra e o que
quinhentos anos atrás se colocou a problemá- se pensa ser, posteriormente, objecto de
tica da migração dos paradigmas linguísticos. interesse: na dúvida, armazenamos!, remeten-
do a validação crítica do conhecimento para
Escapar ao naufrágio um a posteriori.
Estamos, pois, em presença de dois
A tão propalada “avalanche informativa” universos muito amplos, o do armazenamento
proporcionada pela Internet forçou à e o da pesquisa. Nesse sentido, a preservação
consciencialização de que era preciso fazer digital não se resume à tarefa de armazenar,
algo para evitar o soterramento no turbilhão a uma musealização passiva e estática. Ao
informativo. facilitismo proporcionado pelo desenvolvi-
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 261

mento tecnológico referido (maior capacida- perimentais possíveis, pelo que daqui resulta
de a menor custo), deve contrapor-se uma que as próprias soluções tentadas carecem do
lógica inteligente de organização e de gestão antídoto que pretendem anular: a padroniza-
dinâmica da informação. ção, tão essencial para a utilização eficaz dos
Tal mostra-se sobretudo premente quan- metadados13.
do fazemos da Internet o campo de recolha Ora, apesar da progressiva conversão das
de informação. Quem, por certo, já experi- agências noticiosas online a esta tecnologia,
mentou arquivar informação com base em o processo ainda se encontra em fase expe-
pesquisas na Internet não se terá deparado rimental, o que significa que apenas uma
tanto com a exiguidade do espaço em disco pequena parte das notícias estarão prepara-
(cada vez se compra mais por menor pre- das para suportar estes procedimentos. Daí
ço11), mas antes com um problema de ori- que os projectos de investigação que incidam
entação entre as centenas de ficheiros arqui- sobre recolha da informação pela Internet
vados. Quem já não terá experimentado uma enfrentem algumas dificuldades no
sensação mista de surpresa e de apreensão, manuseamento dos dados que dificilmente são
ao encontrar algum ficheiro importante es- ultrapassáveis – o processo de classificação
condido numa pasta recôndita? da notícia tem que ser feito no momento,
A solução imediata é a da elaboração de sem excepção.
bases de dados sobre a informação arquiva- Partindo deste campo de recolha, e par-
da. Mas, se optarmos por uma abordagem tilhando de muitas das dificuldades descri-
mais profissional - logo, mais intensa mas tas, o Projecto Mediascópio14 pretende estu-
também mais eficaz e exigente -, esta tarefa dar a comunicação e os media, designada-
parece insolúvel. mente aqueles publicados em agências e
Para a descrição dos recursos arquivados jornais impressos e electrónicos, nacionais e
tem-se procurado recorrer ao uso de estrangeiros. Esses textos podem estender-se
metadados, que consistem, basicamente, na a géneros diversos: notícias breves e desen-
formulação de dados sobre os dados. A ideia volvidas, entrevistas, reportagens, dossiers,
é a de desenvolver uma forma eficaz de textos opinativos (editoriais, colunas, análi-
descrever os recursos electrónicos, algo já ses, opiniões, cartas).
incontornável no ambiente caótico da A ideia da base de dados, neste caso,
Internet, ao qual os sistemas de indexação surgiu de uma constatação e de uma neces-
e de recuperação da informação tradicionais sidade: constatação, porque, ao reunir os
não permitem alcançar níveis satisfatórios materiais informativos para elaborar o regis-
(Baptista, e Machado, 2001). to dos eventos do campo da comunicação e
A aplicação de metadados tem sido dos media, verificava-se a existência de
experimentada no campo dos media, concre- documentos relevantes para a memória sobre
tamente no domínio da informação noticiosa o campo; necessidade, porque, para promo-
digital12, onde se tem procurado estabelecer ver as leituras sectoriais e globais, essa
um conjunto padronizado de metadados de documentação mostrava-se essencial.
modo a fornecer uma plataforma comum para Ao todo, estão compulsados cerca de 6600
a análise dos artigos noticiosos em formato registos, compreendidos entre inícios de 2000
digital, produzidos por agentes noticiosos e finais de 2003. A proveniência das fontes
online (Yaginuma et alii, 2003). Este sistema advém, em cerca de 85%, de jornais impres-
parte de duas premissas fundamentais em sos, sendo o restante dividido entre revistas
torno do ficheiro-base: por um lado, que ele e panfletos, em formato online, quando
contenha o texto propriamente dito (a notí- possível, ou através da versão papel, recor-
cia), e, por outro, que ele inclua na sua rendo-se à digitalização por scanner, em
código-estrutura os metadados - estes, para complemento.
além de descreverem a notícia, permitirão que As actividades no âmbito do projecto são,
sobre eles se aplique tratamento informático assim, escalonadas em duas fases: uma
adequado através da tecnologia de descrição primeira, a da produção digital da informa-
dos metadados extraídos. Tanto num como ção recolhida, e uma segunda, a da catalo-
em outro caso, são várias as abordagens ex- gação desses registos.
262 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Até ao momento, o projecto tem sido, nião de Kerckhove, tal pressupunha uma
igualmente, um laboratório de análise e “nova ecologia das redes”, baseada na
testagem ao desafio da criação de instrumen- interactividade, na hipertextualidade e na
tos eficientes de gestão e pesquisa da infor- conectividade (Kerckhove, 1997a). Mas, a
mação. A solução a adoptar ainda aguarda estas, há que assegurar o objectivo da
pela estabilização das ferramentas de extrac- interoperabilidade entre os sistemas, melho-
ção e descrição dos metadados. rando pela adopção da indexação e da
interconexão, condição imprescindível para
Conclusão o carácter funcional dos arquivos: “uma
memória está morta se não for catalogada,
O desígnio tecnológico, em muito expli- disponível, transmissível, criticada e eventu-
cado pela célebre Lei de Moore, teve o dom almente reinterpretada” (Hoog, 2003, p. 173).
de aproximar povos e culturas, impulsionando Antes mesmo da questão do que con-
a comunicação e a partilha de informação servar e do que transmitir, é preciso encon-
multimédia. A maior capacidade informática trar formas comuns de preservação da infor-
daí decorrente potencializou a rapidez e a mação já existente: “a história da memória
largura de banda da transmissão de dados. Ao deve ser também a história dos seus supor-
mesmo tempo, vai aumentando, de forma tes” (Hoog, 2003, p. 170).
espectacular, a capacidade de armazenamento Será, de facto, possível, construir-se uma
digital e descobrindo formas mais eficazes na memória a partir ciberespaço? Alguns entra-
compressão dos dados que contribui para a ves estão diagnosticados: a obsolescência dos
redução do tamanho ocupado, em bits. Como suportes de registo informativo, do código
consequência, a produção e a transmissão da linguístico e do seu respectivo equipamento;
informação ficou facilitada: produção de o carácter volátil e imaterial dos conteúdos;
websites institucionais e privados, mensagens a perenidade dos links que inter-relacionam
de e-mail, weblogs, conteúdos digitais mul- a informação na rede. Em conjunto, concor-
timédia diversos (fotos, vídeo, animações). rem para a urgência de, no presente, promo-
Parece, ainda que algo paradoxalmente, ver processos de produzir informação digital
que a sociedade tecnologicamente desenvol- que já incluam na estrutura-código a forma
vida criou um «monstro»: como gerir a de interpretação – um dna digital. A van-
avalanche informativa crescente e evitar o tagem é a da capacidade de proporcionar
soterramento? Simultaneamente, como con- imediato armazenamento, indexação e cata-
ferir utilidade ao oceano de dados? logação, através de programas estandardi-
A aproximação que se dá entre o sujeito zados apropriados. As ferramentas
e o conhecimento informático processa-se por informáticas devem corresponder às carac-
moldes diferentes dos tradicionais, que re- terísticas da open-source, de modo a ser
metiam para a relação com os livros: “este concretizável o objectivo da interopera-
novo salto na forma de adquirir e transmitir bilidade com outros sistemas, permitindo,
informações (…) certamente trará modifica- assim, a ampla disponibilização dos fichei-
ções às demais formas tradicionais – orais ros através da web, por meio de um sistema
e escritas – de se lidar com o saber” (Kenski, de procura e recuperação da informação.
1999, p. 173). De um ponto de vista do interesse individual
A ideia da World Wide Web, de Tim ou colectivo, todo o arquivo é património. A
Berners-Lee e dos seus colegas do CERN, tecnologia assim o vai permitindo, e permitirá
era a de integrar todos os conteúdos de cada vez melhor. Não nos cabe, agentes do
qualquer servidor em qualquer parte do presente, decidir o que sobre nós deverão saber,
mundo com outro computador online. O no futuro. Da mesma maneira que um arque-
caminho para alcançar esta convergência é ólogo exulta quando vê num artefacto um
o da digitalização de todos os conteúdos, mas sobrevivente da amnésia do tempo.
cuidando na promoção da interconectividade Refrescando a memória, porque a era
entre todas as redes e a humanização do tecnológica se esforça por permitir aos supor-
software e do hardware, atendendo aos efeitos tes do conhecimento a durabilidade e trans-
à escala globalizante dos satélites. Na opi- missão infinitas, sem degradação nem perdas.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 263

Bibliografia Preservation”, 1999a, pdf, disponível em:


http://www.clir.org/pubs/reports/rothenberg/
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Lorie, Raymond A., “Long Term logias da informação”, Maputo, 2003, p.
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Conference on Digital Libraries, Roanoke,
Virginia, New York, 2001, ACM-Press, p.
346-352, disponível em: http://doi.acm.org/ _______________________________
1
10.1145/379437.379726. Departamento de Ciências da Comunicação,
Luhmann, Niklas, A improbabilidade da Universidade do Minho.
2
comunicação, Lisboa, Vega, 1992. Servem apenas de referência, para além de
tantos outros exemplos, os projectos pioneiros
McCray, Alexa T.; Gallagher, Marie E.,
Electronic Publication Pilot Project da Biblioteca
“Principles for digital library development”, Nacional do Canadá, iniciado em 1994, e o
Communications of the ACM, Vol. 44, No. equivalente australiano Pandora, a partir de Junho
5, May, 2001. de 1994, e o congénere sueco Kulturarw, a partir
Nunes, Eduardo Borges, Abreviaturas de 1996. De igual menção, o projecto Gallica
paleográficas portuguesas, Lisboa, Faculda- (Biblioteca digital da Bibliothèque Nationale de
de de Letras, 1981. France), a Library of Congress (parte integrante
Oliveira Marques, A. H., “Leitura nova”, do projecto American Memory, dirigido pelo
Joel Serrão (dir.), Dicionário de História de Congresso Americano), e, entre nós, a BNDigital
(projecto lançado pela Biblioteca Nacional (Lis-
Portugal, vol. III, Porto, Livraria
boa).
Figueirinhas, 1971, págs. 475-476. 3
Tal é o caso do entretanto suspenso Projecto
Rothenberg, Jeff, “Avoiding Lifelog, da responsabilidade da Agência Nacional
Technological Quicksand: Finding a Viable de Defesa Americana (DARPA) [http://
Technical Foundation for Digital www.darpa.mil/ipto/Programs/lifelog/index.htm].
264 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

4
Entre outros exemplos, o RepositoriUM, isso, o copiarem mal, com o valor 10 (X romano),
repositório institucional da Universidade do levando a erros de transcrição (Santos, 1988). Em
Minho, “organizado por comunidades científicas, contrapartida, nos séculos XV e mesmo XVI era
armazena, preserva, divulga e dá acesso à pro- muito vulgar o R com valor de 40, que era uma
dução intelectual desta universidade em formato deturpação do x aspado (Nunes, 1981).
10
digital” [http://repositorium.sdum.uminho.pt]. Cf. “Quantum Information”, IBM Almaden
5
Cf. o protocolo Open Archives Initiative Research Center [http://www.almaden.ibm.com/st/
Protocol for Metadata Harvesting [http:// quantum_information/qio/index.shtml].
11
www.openarchives.org]. À data, os 300 Gb. do novo “Ultrastar
6
Como o sistema desenvolvido pela 10K300” da Hitachi converteu-se no disco-duro
Corporation for National Research Initiatives com maior capacidade no mercado comercial
[http://www.handle.net] [http://www.hitachi.com/New/cnews/E/2003/
7
Cite-se, da Microsoft, o MyLifeBits [http:/ 0106e/].
12
/research.microsoft.com/barc/MediaPresence/ Uma iniciativa da Information Society
MyLifeBits.aspx] baseada na visão pioneira de Technologies – o projecto Omnipaper (Smart Access
Vannevar Bush, que, em 1945, antecipava a to European Newspapers) [http://
possibilidade de se criar um dispositivo capaz de canada.esat.kuleuven.ac.be/omnipaper/] ––“pretende
tudo «ciberizar», isto é, registar todos os elemen- investigar formas de promover o acesso a diferentes
tos da vida de uma pessoa. Eram ideias visio- tipos de fontes de informação distribuída, permitin-
nárias, integradas num projecto pessoal denomi- do aos utilizadores um acesso estruturado, perso-
nado Memex, que consistia num “aparelho com nalizado e multilingue a todo o conjunto de artigos
o qual um indivíduo guardaria todos os seus livros, de notícias” (Yaginuma et alii, 2004).
13
registos, comunicações, numa forma mecânica, Por exemplo, o Dublin Core Metadata
pelo que tudo poderia ser consultado com extre- Elements Set e o Resource Description Framework
ma rapidez e flexibilidade”. [http:// (RDF), ambas recomendadas por organismos
www.theatlantic.com/unbound/flashbks/computer/ amplamente reconhecidos a nível mundial, tanto
bushf.htm]. pela comunidade científica, como pela comuni-
8
A Leitura Nova consiste na reescrita de um dade empresarial (a DCMI – Dublin Core
conjunto dos documentos legais e administrativos Metadata Iniciative, no primeiro caso, e a World
portugueses, copiados por ordem do rei D. Manuel Wide Web Consortium, no outro). Igualmente se
I entre 1504 e 1552 em letra vigente na época referenciam outros formatos estandardizados de
de sua transcrição, com o intuito de facilitar sua notícias, o NITF (News Industry Text Format) e
leitura e evitar a sua perda (Oliveira Marques, o NewsML, implementados pela International
1971). Press Telecommunications Council (IPTC), e o
9
Ainda no mesmo âmbito, e em jeito de XMLNews, desenvolvido pelo XMLNews.org
complemento, refira-se que muitas e graves (Yaginuma et alii, 2004).
14
imprecisões foram tomadas na tradução do X’ Estudo da Reconfiguração do Campo da
(“xis” aspado). Este numeral, que deriva do XL, Comunicação e dos Media em Portugal (Núcleo
com valor igual a 40, como sabido, foi muito de Estudos de Comunicação e Sociedade da
utilizado na Península Ibérica até ao séc. XIV, Universidade do Minho), projecto apoiado pela
mas nos séculos XV e XVI foi-se tornando raro FCT (POCTI/COM/41888/2001) – http://
ao ponto de muitos escribas o ignorarem e, por www.necs.ics.uminho.pt.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 265

Comunicação Organizacional
– impacto da adopção de um Sistema Workflow
Anabela Sarmento1

1. Introdução 2. Sistemas Workflow – definição e carac-


terização das suas potencialidades
Num contexto caracterizado por rápi-
das e constantes mudanças, onde o conhe- Os sistemas workflow podem ser defini-
cimento e a sua gestão adquirem uma dos como sendo um software de gestão,
importância cada vez maior e decisiva para computorizado e proactivo, que gere o fluxo
a competitividade das organizações, assis- de trabalho entre os participantes, de acordo
te-se à adopção e implementação, por vezes com procedimentos pré-definidos, que cons-
desenfreada e pouco reflectida, de sistemas tituem as tarefas2. Estes sistemas permitem
de informação, na expectativa de que estes coordenar os participantes e os recursos de
resolvam alguns dos problemas fundamen- informação envolvidos. Esta coordenação
tais com que a organização se depara. No procura que a transferência de tarefas entre
entanto, quando um gestor adopta uma os participantes se realize de acordo com uma
tecnologia, normalmente tende a focar-se sequência pré-definida, assegurando que todos
apenas nos aspectos técnicos e nas funções os intervenientes realizam as actividades
suportados por essa tecnologia. Não se requeridas e que, quando necessário, execu-
tam outras acções. O foco destes sistemas
procura compreender de que forma as nor-
está na forma como o trabalho evolui e não
mas e os comportamentos sociais determi-
na informação.
nam o modo como essas tecnologias são
A classificação mais comum de sistemas
utilizadas. Esta incompreensão pode tomar
workflow é a que distingue três categorias:
dimensões mais graves quando se trata de
(1) Sistemas Ad hoc; (2) Sistemas Adminis-
tecnologias com características capazes de
trativos; (3) Sistemas de Produção (Transac-
influenciar a forma como os agentes co- ção). Os sistemas workflow de produção
municam e interagem. ajudam a suportar as regras do processo pré-
De entre as opções disponíveis no definido, executando-as de uma forma muito
mercado, destacamos os sistemas workflow. rígida e rigorosa. Este tipo de sistemas é
Eles encerram potencial para provocar adequado para o suporte de missões críticas
alterações a nível dos domínios da gestão dos processos de negócio, onde nada pode
dos processos, nomeadamente da coorde- falhar e tudo deve ser executado de acordo
nação e controlo dos processos, da cola- com os modelos de processos pré-definidos.
boração e da comunicação, da gestão do No outro extremo surgem os sistemas
conhecimento e da produtividade. Nesta workflow colaborativos, cujo enfoque não é
comunicação vamo-nos centrar na comu- tanto o processo em si, mas sim a partilha
nicação. de informação entre os actores envolvidos
Após uma breve descrição das princi- no processo, permitindo que estes trabalhem
pais características e potencialidades dos em conjunto. Este tipo de sistemas pode ser
sistemas workflow, bem como de alguns as- aplicado em áreas de negócio como o de-
pectos relacionados com a comunicação senho de engenharia ou de arquitectura, a
mediada por computador, apresentamos um criação e aprovação de documentos, entre
estudo de caso onde se identificam os outras. A categoria Administrativa envolve,
impactos ocorridos nos diversos domínios essencialmente, os processos administrativos,
organizacionais, em particular na comuni- como por exemplo ordens de compra, rela-
cação, bem como os factores que tórios de qualidade, relatórios de despesas,
potenciaram ou inibiram tais mudanças. entre outros.
266 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Em termos gerais, é reconhecido por Estes sistemas também possibilitam o


diferentes autores3 que o sistema workflow armazenamento de informação e a constitui-
é uma tecnologia capaz de ajudar uma or- ção de repositórios de informação sob a forma
ganização a melhorar a coordenação, a de números, de factos e de regras, bem como
comunicação e a colaboração entre os seus conhecimento tácito, experiências, anedotas,
elementos, bem como o conhecimento orga- incidentes críticos, artefactos e detalhes sobre
nizacional. Ao nível da coordenação, as decisões estratégicas.
características deste sistema permitem desem- Relativamente ao conhecimento, o con-
penhar a gestão das tarefas ao longo de um tributo destes sistemas revela-se através da
processo de negócio, entregando o trabalho necessidade de se explicitar conhecimento até
à pessoa certa, no momento exacto4. Isto então detido por cada um dos indivíduos na
contribui para o processamento e gestão da organização (conhecimento tácito). O facto
informação uma vez que, em cada momento, destes sistemas serem baseados em proces-
existe uma interpretação da informação sos previamente analisados e aos quais se
enviada para cada unidade, com um baixo associam regras claras, explícitas e comuns
nível de incerteza e equívoco. O facto destes para todos, pressupõe a optimização dos
sistemas pressuporem a existência de regras recursos existentes (máquinas e homens), um
pré-definidas e a alocação de recursos e acesso mais facilitado à informação (passa
pessoas para a execução de determinada a estar disponível através dos meios electró-
tarefa, contribui para a diminuição de nicos, centralizada, e não em documento de
ambiguidades e uma maior qualidade na suporte em papel) e a reconstituição do
tomada de decisão daí decorrente. historial dos processos, contribuindo para uma
Nonaka e Takeuchi5 referem que a reu- melhor gestão do conhecimento organizaci-
nião de pessoas com experiência e conhe- onal.
cimentos diferentes é uma das condições
necessárias à criação de conhecimento. Esta 3. Comunicação mediada por computador
ideia é secundada por Davenport e Prusak6
que afirmam que o conhecimento é gerado A comunicação mediada por computador
pelas relações que se estabelecem nas redes (CMC) refere-se a toda e qualquer interacção
informais e auto-organizadas, as quais po- que seja gerada e transmitida com o uso de
dem ser formalizadas com o tempo. Afirmam tecnologia. Alguns dos tipos de meios que
ainda que a transferência efectiva do conhe- cabem dentro desta designação são a Internet,
cimento se dá através da comunicação, o Internet Relay Chat (IRC), o Multiple User
processo vital para o sucesso da organização. Dungeons (MUDs), os newsgroups, as con-
As características dos sistemas workflow ferências electrónicas, e o correio electróni-
conferem-lhes um estatuto de ferramenta de co, para citar apenas alguns.
comunicação, com capacidade de suportar A CMC distingue-se da comunicação face
encontros ou trabalho cooperativo sem cons- a face (FAF) pelo facto de ser uma comu-
trangimentos de tempo e de espaço 7. A nicação assíncrona, não existirem chaves
possibilidade de alargamento da rede de visuais e contextuais para descodificar a
contactos permite a criação de redes para mensagem, existir a possibilidade de gravar,
trocas de experiência e de conhecimento, guardar e encaminhar as mensagens, haver
envolvendo um número mais elevado de um aumento do nível de formalidade e a
indivíduos permitindo, deste modo, uma comunicação ter um carácter anónimo, entre
partilha mais rica de informação. Estes sis- outros aspectos.
temas facilitam, igualmente, a ligação entre O carácter assíncrono da comunicação
unidades dentro da mesma organização e até significa que emissor e receptor não neces-
entre organizações distintas, contribuindo para sitam de estar envolvidos simultaneamente
o alargamento da autonomia das unidades na comunicação. Esta pode ser feita de acordo
organizacionais e para a eliminação das com as conveniências dos intervenientes, con-
“ilhas” dentro da organização8, suportando a tribuindo para a eliminação dos obstáculos
partilha de informação. relacionados com factores humanos (p. ex.,
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 267

o emissor já não precisa de se certificar de exemplo, as normas da comunicação escrita


que o receptor está disponível para receber das mensagens de negócios veiculadas por
a mensagem no momento exacto da sua trans- correio electrónico tornaram-se menos exi-
missão). Esta característica dá tempo ao gentes, sendo frequentes as mensagens com
receptor para pensar, o que pode ser benéfico parágrafos pobres, frases incompletas e erros
para a qualidade das suas respostas9. ortográficos. O efeito destes erros é diferente
A ausência de chaves sociais e contextuais consoante o receptor da mensagem seja
é outra das características da CMC. Uma vez novato ou experiente, este último desculpan-
que não existem expressões faciais, entoa- do mais facilmente tais erros13. A mesma
ção, gestos, aparência física e adornos, pode aceitação de erros acontece para os que
ser mais difícil interpretar afirmações e escrevem numa segunda língua, o que pode
responder de acordo do que na comunicação levar a uma facilitação da comunicação de
FAF. A ausência de elementos não verbais negócios a nível internacional. O contrário
dificulta o conhecer melhor o interlocutor e, também se verifica, isto é, quanto mais formal
consequentemente, direccionar um diálogo for a comunicação, menor é a aceitação dos
para aspectos mais pessoais. Da mesma problemas de linguagem.
forma, é possível prestar-se menos atenção Nestas considerações é igualmente impor-
ao interlocutor porque o foco da atenção do tante ter em conta o número de mensagens
emissor pode estar a ser canalizado para trocadas. Isto porque, à medida que se vão
outros elementos do contexto. Mesmo quan- trocando mensagens, aumentam as relações
do os participantes estão absorvidos na CMC, pessoais entre os participantes. Tal acontece
há uma maior tendência para se deixarem porque eles vão-se conhecendo melhor, vão-
levar por impulsos, ou para se centrarem nas se sentindo mais confortáveis uns com os
suas preocupações, uma vez que não existem outros e começam a trocar ideias sobre outros
chaves visuais para lhes indicar o que é o interesses que descobrem terem em comum.
mais apropriado para responder naquela Saliente-se que, independentemente do meio
situação. Tais circunstâncias podem conduzir utilizado, no início de qualquer relação, a
a relacionamentos mais impessoais, sendo comunicação será sempre mais formal e
mais difícil criar um ambiente íntimo ou de impessoal.
confiança10. Lucas11 acrescenta que na CMC, Um outro efeito da CMC nos negócios
o emissor pode ter menos consciência do relaciona-se com o facto das comunicações
estatuto do receptor, o que lhe dá um maior serem mais orientadas à tarefa. Quer isto dizer
conforto e à vontade na emissão de más que na CMC os participantes têm mais
notícias. Estes efeitos podem ser mais visí- tendência a irem direitos ao assunto. Apesar
veis, sobretudo no início de uma relação12. deste foco na tarefa, é mais difícil chegar
Quando as interacções se prolongam ao longo a consenso porque não existem chaves vi-
do tempo, observou-se que os aspectos suais e contextuais às quais os intervenientes
impessoais desaparecem à medida que os possam aderir e porque os possíveis líderes
intervenientes trocam mensagens. Parece que existentes têm mais dificuldade em liderar
os grupos que comunicam através de com- as discussões.
putador, apesar dos obstáculos iniciais, aca- A CMC ajuda a ultrapassar o problema
bam por ultrapassar estes problemas e de- do número de ligações entre os vários
senvolver relações positivas, se tiverem tem- intervenientes no processo, uma vez que a
po para isso. mensagem já não necessita de atravessar uma
A receptividade e confiança que existe série de filtros antes de chegar ao destina-
entre os participantes condicionam, igualmen- tário, conferindo uma maior qualidade à
te, o nível de formalidade que vai existir na informação nela contida. A mensagem che-
comunicação. A sua influência verifica-se na ga, também, ao seu destinatário de forma mais
composição do texto, no número de erros rápida.
permitidos, na pontuação, entre outros aspec- De uma maneira geral, a literatura refere
tos. Quando a confiança é grande a que este meio facilita as comunicações
informalidade é maior; há uma maior acei- organizacionais, tornando-as mais rápidas e
tação das deficiências atrás enunciadas. Por mais eficientes. A informação chega a mais
268 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

funcionários e é o meio seleccionado na busca nadas com a produção de laminados deco-


de informação sobre um determinado assun- rativos.
to. A empresa Beta está organizada numa
A comunicação informal também pode estrutura matricial. Este tipo de estrutura
sofrer alterações. A rapidez e a acessibilida- combina a estrutura funcional e divisionada,
de permitem que a transmissão da mensagem que se cruzam e exercem funções comple-
se faça de uma forma mais simples e em mentares15. Por um lado facilita a distribui-
tempo real. Frequentemente, a utilização do ção de poder e o despoletar de novos pro-
correio electrónico permite a resolução de jectos e, por outro lado, pode conduzir a
problemas que de outra forma levariam mais conflitos de responsabilidade, pois funciona
tempo a resolver. como duas estruturas hierárquicas
Os sistemas permitem a ligação intra e entrelaçadas. Nesta empresa, os serviços
inter organizações, abrindo as portas para a administrativos são partilhados por várias
ligação entre pessoas, bens e ideias, clientes fábricas. Assim, por exemplo, o departamen-
e fornecedores (e até concorrentes) de forma to de Recursos Humanos não tem apenas de
a criar e distribuir novos produtos e serviços gerir os recursos humanos da empresa Beta,
sem limitações de fronteiras organizacionais tendo de fazê-lo para as restantes empresas
tradicionais, e onde cada empresa contribui da sub-holding INDUSTRIA. Tal situação
com as suas competências chave, com o que pode revelar-se problemática uma vez que
de melhor faz, durando, tal rede, enquanto as fábricas estão geograficamente distribu-
a oportunidade é lucrativa, podendo desen- ídas, algumas das quais no estrangeiro. Para
volver locais de trabalho virtuais14. gerir todas as fábricas (distribuídas por 10
Tendo em conta o que se foi relatando países), os gestores viajam bastante pelo que
ao longo dos últimos parágrafos parece a gestão dos fluxos do trabalho diário e a
razoável assumir que a comunicação pode ser comunicação podem apresentar problemas.
mais ou menos pessoal dependendo da O quadro seguinte apresenta uma síntese
natureza da conversa, dos participantes, e do das principais características desta organização.
tempo envolvido. Apesar das mudanças Os motivos que levaram à implementação
operadas no âmbito da comunicação empre- do sistema workflow prendem-se, sobretudo,
sarial apontarem para um caminho positivo, com o facto das fábricas desta sub holding
é preciso ter em conta que a tecnologia per estarem distribuídas geograficamente por 10
se nada faz. países. Mesmo em Portugal, elas não estão
localizadas em apenas um local, o que sig-
4. Estudo de caso nifica que é necessário assegurar que o fluxo
dos processos não pára por falta de uma
Nas secções seguintes apresenta-se um assinatura de um superior hierárquico.
estudo de caso de uma empresa onde ocorreu O primeiro processo onde se implementou
a implementação de um sistema workflow. o sistema, em 1988, foi o de selecção e
Depois de uma breve apresentação da orga- recrutamento de pessoal. A sua escolha
nização, descreve-se a metodologia utilizada ocorreu devido ao facto de não ser um
para a recolha e análise dos dados. Segue- processo crucial, pelo que se algo corresse
se a apresentação e discussão dos resultados. mal, não teria implicações para o negócio
central da empresa. As expectativas relativas
4.1. Caracterização da organização ao projecto eram (1) uniformizar, optimizar
e aumentar a velocidade dos fluxos de tra-
A empresa Beta pertence a uma sub- balho e do processo de negócio; (2) reduzir
holding que actua no sector da INDÚSTRIA, o volume de papel em circulação e a sua
de uma das mais importantes empresas manipulação; (3) assegurar a confidencia-
portuguesas industriais de produtos em lidade da informação; (4) melhorar a recolha
madeira. O seu objectivo é produzir produtos e gestão da informação para cada pedido
químicos que depois são utilizados nas res- relativo ao processo; (5) registar a informa-
tantes empresas do grupo que se dedicam a ção e disponibilizá-la para todas as activi-
actividades industriais e comerciais relacio- dades que dela necessitassem.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 269

Aspectos Aspectos Aspectos Aspectos Aspectos


Estruturais Tecnológicos Políticos Humanos Culturais
Não existem equipas
formais;
Grande parte dos
funcionários com
formação inicial
elevada;
Pessoas
aparentemente
satisfeitas com o
trabalho na empresa;
40 funcionários, 25
dos quais na fábrica e
os restantes 15
Preocupação com a
pertencendo ao
qualidade;
PC em todas as sector administrativo
Família é palavra
secções; Descentralização do (gerindo, igualmente,
chave;
Estrutura matricial; Chefes têm 1 PC; poder mas os as restantes
Realização de
Utilização das Intranet baseada em projectos necessitam empresas da
actividades sociais ao
tecnologias de Web; de aprovação pelo INDUSTRIA);
longo do ano;
informação para Acesso à Internet; Conselho de Trabalho por turnos –
Importância do líder
comunicar; Utilizam o Lotus Administração; não mais de 15
(fundador da
Os canais e circuitos Notes; Iniciativas de funcionários em
organização) que
de comunicação são Conhecimento sobre mudança podem simultâneo na
detém um perfil
claros e bem definido. como desenvolver um partir dos quadros empresa;
carismático junto dos
sistema workflow e intermédios. Média de idades de
funcionários;
como o implementar. 30 anos;
Tem Certificação de
Qualificação mínima
Qualidade.
para entrar na fábrica
– 12º ano. Grande
parte dos funcionários
continuou a estudar
tendo concluído a
licenciatura;
Há alguns
funcionários com o 4º
e 6º ano
Maior parte dos
funcionários sabe
utilizar os
computadores.

Esta implementação servia, igualmente, fábrica 15 funcionários. Esta situação facilita


propósitos de aprendizagem que seriam uti- o período de formação e reduz o número de
lizados, mais tarde, na implementação de computadores necessários para operar;
sistemas semelhantes, noutros processos. • A empresa estava a passar pelo proces-
Seguiram-se o processo de certificação da so de certificação da qualidade – os proces-
qualidade, o processo de pedido de autori- sos estavam a ser analisados e redesenhados,
zação de viagem, o processo de prevenção o que facilitou a análise para a implementação
e correcção de situações na fábrica e o do sistema workflow.
processo de pedidos de ausência e trabalho
suplementar. 4.2. Metodologia para recolha de informa-
O sistema workflow utilizado foi o Lotus ção
Notes que tinha a vantagem de já ser an-
teriormente utilizado na empresa, pelo que A recolha de dados foi feita entre Maio
os encargos financeiros seriam mínimos. Os de 2001 e Novembro de 2001. Utilizaram-
aspectos mais relevantes que contribuíram se a análise documental e a entrevista como
para a adopção do sistema workflow nesta instrumentos principais de recolha de dados.
organização foram: Foram recolhidos diversos documentos so-
• A existência do Lotus Notes na empre- bre a empresa e sobre os processos onde o
sa, não sendo necessário comprar a aplica- sistema workflow já havia sido implementado.
ção; Realizaram-se seis entrevistas que abrange-
• Os recursos humanos – seria um es- ram desde a Directora de Recursos Huma-
tagiário a desenvolver a aplicação; nos, a Directora de Produção, a responsável
• O trabalho por turnos o que significa pelo Departamento de Informática, um res-
que, no máximo, estão em simultâneo na ponsável da fábrica e dois elementos
270 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

operacionais. A duração média das entrevis- altura era frequente o processo parar, aguar-
tas foi de cerca de 60 minutos. Foram todas dando o regresso do Director para assinar o
gravadas e totalmente transcritas. A análise documento. A implementação do sistema e a
dos dados foi feita recorrendo a métodos possibilidade de assinar electronicamente o
qualitativos16. documento a partir de qualquer ponto do globo
veio obviar as dificuldades referidas e a ace-
5. Apresentação e discussão dos resultados lerar o andamento dos processos. Por exemplo,
no processo de pedido de autorização de
A tabela seguinte lista as mudanças viagem, foi referido pelos entrevistados que o
verificadas após a implementação do sistema sistema veio possibilitar uma comunicação mais
workflow em todos os processos já referidos. rápida e sem distorção da informação nela
A primeira coluna representa os domínios de contida, além de que o processo e as respon-
mudança e a segunda coluna a alteração pro- sabilidades dos funcionários na realização de
priamente dita. cada tarefa ficaram mais transparentes.

• Mudança no suporte do processo (de papel a electrónico)


• Todas as tarefas passaram a ser realizadas a partir da secretária de
cada funcionário. Estes não têm mais necessidade de se deslocarem a
Processos outro departamento para entregar um documento
• Eliminação de algumas tarefas (e.g. imprimir e distribuir cópias de
documentos)
• Processo tornou-se mais transparente
• Possibilidade de se saber o estado dos processos
• Facilitação da gestão dos processos
• Padronização dos processos
Coordenação
• Registo de eventos
• Diminuição da interpretação individual dos eventos
• Facilitação da supervisão
• Redução dos tempos (de execução e de espera)
Produtividade • Eliminação de papel
• Eliminação de tarefas redundantes
• Desenvolvimento de bases de dados
• As bases de dados são alimentadas a partir de fintes internas e
externas
• Desenvolvimento de uma memória organizacional electrónica
• Esta memória está disponível para todos os funcionários (de acordo
Conhecimento
com níveis de confidencialidade)
• Esta memória é facilmente actualizável e está sempre actualizada
• Possibilidade de extrair informação
• Conhecimento mais complete de todos os processos envolvidos
• Informação mais rigorosa

No que diz respeito aos domínios par- Um outro aspecto mencionado pelos
ticulares da comunicação e colaboração funcionários como sendo uma vantagem da
vemos que o sistema workflow é encarado utilização do sistema é o registo dos eventos
de duas formas distintas: (1) para uns o e dos conteúdos, o que constitui uma segu-
sistema facilita o acesso ao interlocutor. O rança em caso de dúvida. Além disso, o
emissor não depende de aspectos temporais sistema permite saber se a mensagem che-
e geográficos para contactar o seu receptor, gou ao seu destinatário.
sendo um aspecto positivo da aplicação; (2) Apesar das vantagens atrás enunciadas,
para outros, a aplicação distancia a relação a utilização do sistema workflow, e segundo
e o contacto entre emissor e receptor, reve- a perspectiva de alguns funcionários, encerra
lando um aspecto negativo da aplicação. inconvenientes. Antes da implementação do
Antes da implementação do sistema, e sistema, os funcionários deslocavam-se na
dada a frequência com que alguns Directores fábrica para entregarem os documentos re-
se deslocam no país e no estrangeiro, havia lativos aos processos acima já referidos. Nesta
alguma dificuldade em conseguir dar anda- deslocação e contacto pessoal com o
mento a determinadas tarefas que requeriam interlocutor aproveitavam para conversar e
as assinaturas desses funcionários. Nessa trocar opiniões e ideias sobre diversos assun-
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 271

tos, profissionais ou particulares. A utiliza- aceitação da mudança. Um outro aspecto que


ção do sistema workflow veio acabar com pode ter tido algum impacto no resultado
esta interacção face a face que foi substituída parece ter sido o facto da implementação ter
por uma comunicação electrónica e impes- sido realizada por cima dos procedimentos
soal, além de que os assuntos tratados ver- já existentes. Os fluxos de trabalho continu-
sam agora, apenas, aspectos de trabalho. aram na mesma forma, apenas se alterando
O quadro seguinte sintetiza os aspectos o acesso à informação (agora passa a estar
que se acabaram de descrever relativamente disponível de acordo com níveis de seguran-
ao domínio da comunicação. ça). Os formulários electrónicos são também

• Diminuição no número e duração dos contactos individuais


• Uso de meios electrónicos para comunicar
Comunicação
• Eliminação de barreiras de tempo e espaço
e Colaboração
• Prejuízo das relações individuais
• Alguns dos funcionários passaram a estar mais acessíveis

Após a identificação das alterações ocor- semelhantes aos em papel. Finalmente refi-
ridas fruto da implementação do sistema ra-se o facto dos funcionários sentirem que
workflow, procurou perceber-se de que for- o seu superior hierárquico estava sempre aces-
ma as características da organização sível mesmo durante a sua ausência da fábrica
condicionaram, inibindo ou potenciando, tais pode ter contribuído para uma melhor acei-
alterações. Os factores organizacionais envol- tação do novo sistema.
vidos foram: estruturais, políticos, humanos,
tecnológicos e culturais. Factores políticos

Factores estruturais Alguns funcionários resistiram à utiliza-


ção do sistema preferindo o processo com
Não foi fácil, para alguns funcionários o suporte em papel. Sentiam-se mais impor-
da fábrica, começarem a utilizar o sistema tantes quando tinham que entregar o docu-
em particular porque as tarefas a realizar com mento em papel aos seus superiores. Agora,
a nova aplicação são esporádicas (por exem- uma vez que a comunicação é mediada por
plo, o pedido de autorização de viagem ou computador, sentem-se mais distantes do
o pedido de alteração de turno). Para o centro de decisão. No entanto, o facto de
funcionário tornava-se difícil recordar os terem disponível mais informação (sobre eles
passos exactos necessários para iniciar a e sobre os colegas) ajudou, de alguma forma,
aplicação. Tal implicava um abrandamento a ultrapassarem os obstáculos sentidos. O
no ritmo de realização das tarefas com recurso facto dos estilos de trabalhos terem sido
ao sistema. Para além disso, alguns funci- uniformizados e ter-se minimizado as pos-
onários não gostavam do facto da aplicação sibilidades de interpretação individual, con-
poder controlar os seus passos e registar todos ferindo uma maior transparência e sentido de
os eventos. Sentiam como se estivessem a justiça às situações, também contribuiu para
ser vigiados e o seu desempenho profissional uma melhor aceitação do sistema.
medido. Paralelamente, a comunicação for-
mal mediada por computador pode levar a Factores humanos
uma má interpretação do conteúdo das
mensagens uma vez que estas são apenas Um outro obstáculo diz respeito ao
escritas não havendo outros mecanismos conhecimento que os funcionários têm para
disponíveis para clarificação do que se pre- utilizarem o sistema informático. Apesar da
tende dizer. maior parte ter uma boa formação inicial, há
O facto de se ter seleccionado como no entanto alguns que a não têm. O que se
primeiro processo a ser alvo da observou foi que as pessoas com uma es-
implementação deste tipo de sistema um colaridade menor manifestavam uma maior
processo simples, neutro e não vital para o dificuldade na utilização do sistema e no
negócio pode ter contribuído para uma melhor reconhecimento das suas potencialidades, ao
272 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

contrário dos operadores com uma escola- dor para realizar essas tarefas, pelo que
ridade mais elevada. A formação recebida resistem.
para utilizarem o sistema também foi alvo No entanto, procurou-se ter algum cui-
de críticas. Os funcionários referiram que esta dado com o desenho da interface gráfica
havia sido reduzida, muito teórica e espo- fazendo com que esta fosse a mais simples
rádica. Eles referem que era necessário te- e intuitiva possível e que não fosse preciso
rem tido mais prática de forma a melhor decorar comandos ou nomenclaturas.
memorizarem os procedimentos. Para aque-
les funcionários que não utilizam o compu- Factores culturais
tador para realizarem as suas tarefas diárias,
torna-se muito complicado fazê-los compre- A introdução do sistema workflow criou
ender a utilidade e as vantagens da utilização alguma nostalgia no seio das pessoas mais
do novo sistema. Alguns dos entrevistados velhas. Alguns dos entrevistados referiram
referiram, igualmente, que o facto da utili- que tinham saudades dos “velhos tempos”
zação do computador tornar as relações mais uma vez que antigamente sentiam-se mais
impessoais e distantes, servia como desculpa próximos uns dos outros, o que não acontece
para evitarem utilizá-lo. agora. O computador torna as relações mais
No entanto, verificou-se que aqueles distantes e impessoais.
funcionários que já utilizavam o computador Contudo, o facto de se sentir uma pre-
nas suas tarefas diárias aceitaram mais fa- ocupação com a gestão do conhecimento, de
cilmente o novo sistema. O mesmo se pas- se considerar a informação como um valor
sou com os funcionários mais novos. Parece acrescentado e de se considerar as mensa-
que as pessoas novas lidam melhor com a gens electrónicas como prova, contribui para
mudança do que as que têm mais idade. Estas ultrapassar algumas das resistências à mu-
últimas, como executaram as tarefas ao longo dança. Acresce ainda o facto da formação
dos anos sempre da mesma forma, têm mais dos recursos humanos ser uma prioridade e
dificuldade em se aperceberem de que exis- de existirem estímulos à partilha do conhe-
tem outras maneiras de as realizar, e mesmo cimento. Para além disso, o sistema workflow
até de as aceitar. permitiu uma uniformização da terminologia
Da mesma forma, as características da do trabalho, pelo que os processos e a lin-
personalidade também parecem influir no guagem utilizada deixam de ser produto da
sucesso da utilização do sistema. Há funci- vontade de cada um, para ser superior a todos.
onários curiosos e que querem explorar a
aplicação, como também há quem o não 6. Conclusões
pretenda fazer. E tal situação depende mais
das características individuais do funcioná- Procurou-se, neste artigo, descrever um caso
rios, da sua personalidade, do que propria- ilustrativo da adopção de uma determinada
mente de outros aspectos relacionados com tecnologia e das consequências que daí podem
a tecnologias ou com a organização. advir para a comunicação organizacional. A
identificação dos aspectos organizacionais que
Factores tecnológicos inibiram ou potenciaram a mudança e a acei-
tação do novo sistema foram, também, alvo
Relativamente aos factores tecnológicos, das nossas preocupações. Frequentemente, a
constatou-se que o equipamento existente adopção de sistemas de informação tem apenas
pode constituir um obstáculo caso seja por base as suas potencialidades e caracterís-
obsoleto ou não tenha capacidade suficiente. ticas tecnológicas, não se levando em consi-
Para além disso, algumas das tarefas demo- deração os factores humanos e o seu impacto
ram, mais tempo agora a realizar (por exem- nas relações interpessoais. São, no entanto, as
plo, o funcionário tem de ligar o computa- pessoas que os vão utilizar pelo que devem
dor, introduzir o seu login e password, abrir ser envolvidos no processo de mudança desde
algumas janelas antes de aceder ao documento o início, explicitando os seus receios e dialo-
electrónico); alguns operadores não reconhe- gando sobre as melhores práticas para a re-
cem vantagem alguma no uso do computa- alização da mudança.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 273

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12
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13
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14
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274 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 275

Novos media: inauguração de novas formas de sociabilidade


Ana Sofia André Bentes Marcelo1

«Computer-mediated communication segundo Robertson, «an area being


(CMC), it seems, will do by way of revolutionized by computer technology is
electronic pathways what cement personal communication» (1998: 163).
roads were unable to do, namely, Para algumas pessoas, utilizar os servi-
connect us rather than atomize us, put ços que a Internet lhes oferece tornou-se
us at the controls of a “vehicle” and quase tão simples como utilizar o telefone.
yet not detach us from the rest of the As comunidades on-line são constituídas por
world» (Jones, 1998: 3). pessoas reais, que estabelecem relações reais
e que encontram nos dispositivos tecnológicos
Com a ligação às redes telemáticas e a da Era Digital «a possibilidade de fazerem
edificação de um novo universo juntas muito mais coisas “reais” do que com
comunicacional (segundo uma lógica o telefone» (Kerckhove, 1999: 68). As
reticular), a visão que o Homem tem de si motivações das pessoas que integram as co-
e do mundo que o rodeia nunca mais será munidades virtuais passam pela procura de
a mesma. A criação de comunidades desig- informação muito diversa e pela vontade de
nadas virtuais (on-line communities), cons- comunicar, via Internet, com pessoas que já
tituídas na sua maioria por pessoas que não conhecem fora da rede, ou com pessoas que
se conhecem fora da rede, inaugura novas ainda não conhecem e com as quais procu-
formas de sociabilidade. Estas formações ram estabelecer relações da mais diversa
sociais, também designadas por índole. A Internet é, no entender de Holtzman
“cybersocieties” (Jones, 1998: XII), são (1997: 31), «a window into social space».
definidas por Holtzman (1997: 32) como A questão que se coloca neste momento,
«communities not of common location, but e para a qual ainda não existe resposta, foi
of common interest, webs of human formulada por Lyon (1995: 1) da seguinte
relationships linked in cyberspace». forma: «are social relationships themselves
Os indivíduos, denominados “netizens” changing as they become more electronically
(Jones, 1998), “cibernautas” ou “seres digi- mediated?».
tais”, membros das comunidades virtuais que
habitam o ciberespaço, constroem as suas «A chamada comunidade “virtual” não
identidades num contexto comunicacional que é apenas um número imenso de
gera uma teia de novas sociabilidades. pessoas envolvidas numa actividade
Thompson (1998: 57) afirma que «...senti- comum, mais ou menos directamente,
mos que pertenecemos a grupos y comuni- mais ou menos constantemente. É
dades que se han constituido, en parte, a também uma presença imediata e
través de los media», no que o autor designa contingente em tempo real, como um
por “sociabilidade mediática”. Até há alguns trabalho activo do espírito»
anos atrás, os seus membros eram cientistas, (Kerckhove, 1999: 68).
académicos e, nas palavras de Hamman
(1999: 4), «hobbysts, “netheads”, and Negroponte (1995) foi o primeiro pen-
technophiles». Nos dias de hoje, verificamos sador a reflectir sobre a noção de comuni-
que os indivíduos que as integram são pessoas dade, resultante da ligação à Internet. Numa
comuns, que se ligam à rede no intuito de análise retrospectiva, a existência de comu-
desenvolverem com mais facilidade as suas nidades virtuais remonta ao início da história
tarefas do dia a dia, como seja, por exemplo, da Internet. Os primeiros utilizadores deste
comunicar ou procurar informação, pois, novo medium, cientistas/académicos, utiliza-
276 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

vam a rede para trocarem informações sobre material, tangível, em oposição ao virtual que
os projectos em que estavam envolvidos. A expressa a ausência pura e simples da exis-
comunicação era estabelecida através de e- tência. Consideramos pertinente retirar im-
mail, newsgroups ou FTP-servers. A mais portância à excessiva ênfase dada por alguns
famosa comunidade virtual do início da autores à virtualidade das novas comunida-
história da Internet designou-se THE WELL des, na medida em que os seus habitantes
(Whole Earth ‘Lectronic‘Link) e foi criada definem-nas como comunidades reais.
em 1985, em São Francisco, pelos ecologis- Por sua vez, Kerckhove (1999: 67) faz
tas do Whole Earth Catalogue. Inicialmente, referência à Virtual Polis, de Carl Loeffler,
esta comunidade era constituída por indiví- como sendo a edificação de um ambiente
duos que se conheciam fora da rede e que virtual, descrito como um «apartamento
utilizavam a Internet como um meio adici- virtual, concebido pessoalmente, equipado
onal para trocarem informações. com um guarda-roupa virtual, integrado em
As novas comunidades, designadas como gavetas virtuais e comprado num centro
virtuais ou “tribos cibernéticas”, que encon- comercial virtual, ao lado de um parque de
traram em”THE WELL”o seu primeiro diversões virtual, num bairro virtual». Como
modelo, foram definidas por Laurel (1990) afirma Kerckhove (idem, ibidem), «em
como «the vibrant new villages of activity ambientes deste género, tudo é de facto
within the larger cultures of computing» (apud “virtual”, com a excepção de que as pessoas
Ramos, Do espaço público de Habermas ao que se encontram nele são”“reais”».
novo espaço público na era da revolução Rheingold (1996), autor da obra Comu-
informativa, p. 143). Mas comecemos por nidade Virtual, define comunidades virtuais
definir o conceito de virtual. como grupos de pessoas que se interligam entre
De acordo com Lévy (1999), si através de uma complexa rede informática
etimologicamente, virtual tem a sua origem (que obedece a uma estrutura rizomática, na
no baixo latim “virtualis”, derivado do qual não se identifica um princípio nem um
substantivo comum, do latim vulgar, virtus, fim), e não por intermédio de laços circuns-
que significa força, potência. Para se com- critos aos limites de um espaço físico. As novas
preender este conceito, Lévy apela aos comunidades resultantes das redes de compu-
ensinamentos da filosofia escolástica, segun- tadores podem ser caracterizadas como sendo
do a qual «virtual es aquello que existe en descentralizadoras, informais, ecléticas e com
potencia pero no en acto» (1999: 17). A uma «forte componente auto-governável, sem
imagem da árvore e da semente permite-lhe a necessidade de regulações exteriores...»
clarificar esta noção, já que, segundo ele, a (Ramos, 1998: 149).
árvore está virtualmente presente na semen- Rheingold (1996) caracteriza desta forma
te. Consciente de que o virtual se está a tornar a emergência de um tipo de comunidade, na
numa das categorias mais importantes da qual a troca de informações entre os sujeitos
cultura contemporânea, Miranda (1996) tam- é mediada pelos dispositivos informáticos,
bém procurou explicar este termo, para quem criando-se um novo sentido do conceito de
virtual é «o espaço do imaginário (determi- comunidade. Segundo ele, podemos identi-
nado metafisicamente, mas também teologi- ficar nas comunidades virtuais algumas das
camente ou politicamente) onde se institu- características das comunidades tradicionais,
íam, ou se construíam, as possibilidades» (p. ainda que a interacção seja mediada e não
1). Tendo por base o esquema aristotélico da seja, portanto, possível estabelecer uma
dynamis/energeia, que articula potencialida- relação face a face. A interacção entre os
de e actualização, o virtual corresponderia membros desta comunidade é transferida de
à potencialidade, pois, segundo este autor «de um espaço físico para um outro espaço
entre várias possibilidades apenas uma era concebido pelas novas tecnologias, um es-
realizada em cada momento» (idem, ibidem). paço sem uma referência estável, o que
A palavra virtual surge nos estudos sobre o conduz, na opinião de Lévy (1999), à re-
impacto dos novos media, em oposição a real. invenção de uma cultura nómada.
Segundo Lévy (1999), o uso corrente do As relações sociais estabelecidas entre os
conceito de real pressupõe uma realização indivíduos sofrem profundas modificações.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 277

Através da ligação à Internet, podemos da informação, dá um novo sentido à palavra


comunicar com indivíduos que não conhe- comunidade. O aparecimento das comunida-
cemos e partilhar interesses comuns, estabe- des virtuais surge, assim, inserido num novo
lecendo, assim, novas formas de relações contexto social. Através dos novos disposi-
sociais. Santos (1998) refere mesmo a exis- tivos computacionais, podemos estabelecer
tência de cidades virtuais, na medida em que contacto com uma série de indivíduos,
«à cidade real, física, tangível, os homens motivados apenas pela vontade de os conhe-
pretendem sobrepor uma outra, virtual, in- cer, a exemplo dos meios de comunicação
tangível...» (1998: 88). Cardoso (1998), tradicionais, como o telefone que, segundo
referência obrigatória quando nos propomos Wellman, «have enabled people to maintain
analisar, em toda a sua dimensão, estas novas active relationships over long distances with
formas de sociabilidade, define comunidade friends and relatives» (apud Hamman,
virtual como «um grupo social não sujeito Computer Networks Linking Network
a padrões de dimensão específicos, em cuja Communities: A Study of the Effects of
base de formação se encontra a partilha de Computer Network Use Upon Pre-existing
interesses comuns, de tipo social, profissi- Communities, p. 8).
onal, ocupacional ou religioso no qual não Por intermédio destas novas tecnologias,
se procura apenas informação, mas também os processos comunicativos articulam-se e
pertença, apoio e afirmação» (p.115). dão visibilidade ao funcionamento das novas
Não podemos deixar de referir a opinião formas de sociabilidade. A exemplo das
divergente de Jensen (1990), ao considerar que comunidades tradicionais, nas comunidades
«traditional life was marked by face-to-face, virtuais os indivíduos interagem, com a
intimate relationships among friends, while finalidade de fazerem quase tudo o que fazem
modern life is characterized by distant, directamente. A única diferença, óbvia, é que
impersonal contact among strangers. a interacção nas comunidades virtuais se faz,
Communities are defined as shared, close, and exclusivamente, por mediação do computa-
intimate, while societies are defined as dor. Comunica-se com aqueles que partilham
separate, distanced, and anonymous» (apud as mesmas afinidades, os mesmos gostos, os
Jones, “Information, Internet, and Community: mesmos interesses, com a única finalidade
Notes Toward an Understanding of de interagir com eles.
Community in the Information Age”, p. 13). No caso das relações estabelecidas com
Apesar de opiniões como esta última, se indivíduos que conhecemos fora da rede,
compararmos o conceito de comunidade essas relações são reforçadas através do
tradicional com o conceito de comunidade contacto estabelecido on-line, pois, como
virtual (também designada por on-line afirma Hamman (1999: 1), «when we use
community ou network community), verifica- CMC to communicate with members of our
mos que, a exemplo da comunidade tradi- pre-existing social networks, our time spent
cional, estamos perante um grupo de pessoas online may be beneficial to the solidarity of
que estabelecem entre si laços sociais, cuja these groups». As novas tecnologias trans-
interacção se circunscreve a um determinado formam-se em mais um instrumento, ao
espaço, ainda que não físico, mas que não dispor de todos os membros das comunida-
deixa, apesar disso, de ser um espaço de- des tradicionais, para comunicarem, não co-
limitado, só que por bits. Rosa (1996) é outro locando, assim, em perigo a própria existên-
entusiasta defensor da existência de comu- cia desta comunidade. Nas palavras de
nidades virtuais, pois, no seu entender, «a Hamman (idem, p. 10), «communities con-
Internet (e, subsequentemente, o espaço tinue to exist but are supported through a
cibernético) representa a possibilidade de number of technologies including the printed
constituição de uma Comunidade, funcionan- word, transportation, and new
do de modo quase completamente acentrado» communications technologies. Computer
(1996: 48). mediated communication is just one of the
Segundo Rheingold (1996), a interacção many technologies used by people within
estabelecida entre os indivíduos à escala existing communities to communicate, and
global, possibilitada pelas novas tecnologias thus to maintain those community ties over
278 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

distance», apesar das barreiras, aparentemente O grande interesse do ciberespaço reside


inultrapassáveis, do tempo e do espaço. no vitalismo social que ele permite (BBS,
Com base nas definições (ainda que Mud’s, IRC, newsgroups, e-mails), já que
díspares) sobre o conceito de comunidade, constitui um espaço propiciador da dinâmica
constatamos que ele evoluiu, permitindo social. As redes telemáticas geram, inclusive,
caracterizar os agrupamentos sociais que se novos espaços de encontro na comunidade
formam no ciberespaço (ainda que encerrem tradicional (ex: cibercafés). Sendo assim, as
relações sociais classificadas por alguns formas de sociabilidade contemporâneas en-
teóricos como instáveis, esporádicas e contram na tecnologia um potencializador, um
efémeras) como genuínos. Nas comunidades catalisador, um instrumento de conexão, o que
virtuais desenvolve-se, a exemplo das tradi- contraria, em última instância, a passividade
cionais, um sentimento de pertença entre os da lógica da Escola de Frankfurt.
elementos que as compõem. Este sentimento De facto, os indivíduos ligam-se uns aos
constitui nelas uma das características mais outros num espaço reticular (ciberespaço),
importantes, senão a mais importante. No que surge como a actualização de alguns dos
entender de Rosa (1996), a nova comunidade locais de interacção por excelência nas
que emerge no “espaço cibernético” edifica- comunidades tradicionais. Segundo Santos
se «a partir do sentimento de pertença a uma (1998: 95), «o modelo comunicacional não
mesma Comunidade que, sempre segundo a é o do contacto aleatório numa multidão
EFF, muitos dos utilizadores da rede pos- anónima, mas aproxima-se ao grupo de
suem (fala-se em “us”, “we”, etc). A partir companheiros que conversam no café do
desse sentimento, poder-se-á edificar uma bairro». Este espaço é o local escolhido pelos
Sociedade cujo “cimento” (aquilo que liga “cibernautas”, para comunicarem uns com os
os múltiplos nós da rede) é a Informação» outros e acederem, desta forma, a informa-
(1996: 49). ção muito diversa, que lhes chega a uma
As novas tecnologias permitem fundar velocidade estonteante e proveniente de todas
comunidades reais, propiciadas pela existên- as partes do mundo. Segundo Nora (1997:
cia de interactividade entre os sujeitos, mas 110), «c’est une vérité qui fait l’unanimité
virtuais, na medida em que, nesta interacção, parmi les entrepreneurs du cybermonde, c’est
os sujeitos não assumem uma presença física bien que les usagers ne recherchent pas tant
tangível. Questionamo-nos, agora, sobre se des informations utiles que le plaisir de la
a natureza da interacção mediada pelo com- camaraderie, voire le frisson de la rencontre».
putador é diferente da “interacção face a É um espaço de pesquisa de informação, mas
face”, pelo simples facto de termos maior acima de tudo de encontro e de partilha.
facilidade em nos desligarmos desta última, Como afirma Woolley (1992: 125), «...
sem grandes consequências para os sujeitos. everyone has equal acess to the network, and
Lyon (1995) considera que o incremento das everyone is free to communicate with as few
relações sociais indirectas ou mediadas, não or as many people as they like».
implica que as relações sociais directas Na sequência desta reflexão, parece
tenham sido suplantadas. Nas palavras do oportuno fazer uma breve referência à cu-
autor (1995: 1), «direct social relations did riosa analogia que Silva (1999: 9) estabelece
not disappear. Rather, they were entre os novos media (suportes de conheci-
compartmentalized in the so-called private mento e do estabelecimento de relações entre
sphere of the domestical, familiar household». os sujeitos) e a biblioteca, o laboratório e
Lyon (idem, p. 2) considera ainda que a praça pública, locais de interacção privi-
«remote and virtual relations are still legiados na comunidade tradicional: «…com
articulated with the material world of acess a biblioteca (extracção de informação, lei-
to resources and bodily co-presence». Os tura, reanálise, comentários, etc.); com um
novos espaços sociais tornam possível o laboratório (ligado à ideia de descobertas,
encontro face a face entre os sujeitos, mas reencontros, trocas de informação etc.) e com
sob uma nova perspectiva de “encontro” e a Praça Pública (comunidade, diálogo, in-
“face a face”. tervenção política etc)».
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 279

Rheingold (1996: 224) afirma que «a Confrontados com o crescente aumento


maior parte do conhecimento sobre a comu- do número de membros das comunidades
nicação humana, reunido pelos cientistas e virtuais e com a intensidade das relações que
académicos, envolve a presença física poten- estabelecem (alguns chegam a estar ligados
cial ou efectiva, ambas irrelevantes na IRC». mais de 6 ou 7 horas por dia; outros toda
Neste sentido, Ramos (1998) considera a a noite), há investigadores sociais que jus-
Internet uma estrutura que permite expandir tificam este comportamento como sintoma de
a noção de lugar público, visto que, no lugar um fenómeno comum nas sociedades con-
electrónico, constituímo-nos como «membros temporâneas: o fenómeno do isolamento
de uma comunidade planetária cuja locali- social, isto é, a solidão. Segundo um estudo
zação, em termos físicos, é inexistente visto (HomeNet Study), desenvolvido pela Carnegie
ser feita em bits, no Ciberespaço» (1998: Melon University (referido por Hamman,
154). No âmbito deste novo universo 1999), um número significativo de
comunicacional, os indivíduos «...são livres utilizadores da Internet e dos serviços on-
de fazer experiências com formas diferentes line é constituído por indivíduos que procu-
de comunicação e auto-representação» ram, através da sua ligação à rede, escapar
(Rheingold, 1996: 224). Apesar de não ao isolamento social das suas vivências off-
partilharem o mesmo espaço físico e da line. Cria-se, assim, um estereótipo do
interacção ser, por conseguinte, mediada; utilizador da Internet, como um indivíduo
«apesar do anonimato e da natureza efémera solitário que apenas estabelece amizades
das respectivas comunicações...» (idem, p. cibernéticas. Alguns teóricos, como Hamman
221), estabelecem entre si laços de afinidade (1999), questionam este estereótipo já que,
que resultam em relações sólidas, como, por segundo ele, muitos utilizam a rede no intuito
exemplo, as de amizade (algumas das quais de reforçar relações existentes com famili-
culminam em matrimónio), contribuindo, de ares e amigos do universo off-line.
qualquer modo, para a consolidação de uma Estamos convencidos de que, para
comunidade de pleno direito. Verifica-se que quantos, por qualquer razão, se encontram
a forma de interacção mediada pelo dispo- isolados socialmente, a Internet pode ser um
sitivos tecnológicos informáticos, coexiste instrumento de combate ao seu isolamento.
com formas de “interacção face a face”, Nora (1997) concluiu que um número sig-
complementando-a quando os indivíduos se nificativo de deficientes físicos encontrou na
conhecem fora da rede. Existem inúmeros Internet um espaço no qual resgataram uma
exemplos de comunidades virtuais, cujos sociabilidade perdida ou, como ainda afir-
membros residem na mesma cidade o que lhes mou esta jornalista do Nouvel Observateur,
permite o estabelecimento de relações face a «certaines catégories de personnes a retrouvé
face, reunindo-se fora da rede, em locais que une forme de sociabilité qui leur était in-
já consagraram como ponto de encontro. terdite» (1997: 424): nas relações que esta-
Segundo Rheingold (1996), outro aspec- belecem on-line, as suas deficiências físicas
to interessante nas comunidades virtuais não são visíveis. Neste sentido, Warf (2000:
reside no facto de o processo de formação 58) considera que as novas tecnologias, ao
de laços de afinidade social sofrer uma permitirem o anonimato, «allow us to escape
espécie de inversão. Por exemplo, na forma the parts of our identities associated with our
tradicional de estabelecer laços de afinidade, bodies. In cyberspace, people become more
procuramos seleccionar as pessoas entre os than their bodies, for electronic extensibility
nossos vizinhos, colegas de trabalho, conhe- allows them to “live in the minds of others”
cidos, etc., e, só depois, trocamos informa- at great distances from their physical selves».
ções e procuramos descobrir se os seus Segundo Papert (1997), os
interesses são idênticos aos nossos. Com a “ciberutópicos” acreditam que a Era Digital
ligação às redes telemáticas, o processo vai fornecer a oportunidade de uma vida
inverte-se: seleccionamos de imediato um melhor para os grupos sociais mais
grupo de pessoas que, de antemão, já sabe- desfavorecidos, como os deficientes. Alguns
mos que partilham os nossos interesses exemplos dos benefícios da tecnologia, na
(através, por exemplo, dos newsgroups). melhoria das condições de vida destes últi-
280 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

mos, consubstanciam-se, segundo Robertson é uma forma de combater o isolamento destas


(1998: 167), na utilização dos seguintes crianças que, devido às doenças de que
dispositivos/instrumentos: «voice recognition padecem, passam vários meses internadas
and speech generation technology can be of num Hospital, perdendo toda a motivação em
enormous benefit to the blind as well as to prosseguirem os seus estudos, isoladas que
the illiterate, and e-mail opens many of the estão do meio escolar.
capabilities of telephone communication to Os complexos sistemas tecnológicos da
the deaf. Quadriplegics can use detectors Era Digital operam um redimensionamento
based on eye and mouth movements for da esfera social, a partir da instauração de
communication». Silva (1999: 3) considera níveis de interacção nunca antes possíveis de
que a ligação às redes telemáticas parece re- atingir. Inaugura-se o que Ramos (1998)
criar «a comunicação onde ela parece estar apelidou de uma nova geometria da comu-
moribunda, ou seja, a nível interpessoal e nicação. Apelamos à sabedoria de Lévy
a nível da geração de laços sociais, quando refere que «uma alteração técnica
potenciadores do surgimento do sentimento é “ipso facto” uma modificação do colectivo
de comunidade». cognitivo, implica novas analogias e clas-
A ligação à Internet transformou-se, sificações, novos mundos práticos, sociais e
assim, num instrumento de enorme utilidade, cognitivos» (1994: 185).
mais que não seja, como forma de combater A ligação às redes telemáticas é um meio
a solidão de muitas pessoas que encontra- através do qual se podem desenvolver novas
ram, no novo espaço - o ciberespaço - um formas de sociabilidade, no âmbito das
local onde podem afirmar a sua dignidade comunidades virtuais recentemente criadas;
como seres humanos e que se manifesta nas o interface, «espécie de comutadores entre
relações que estabelecem na rede. o mundo real, onde o sujeito permanece, e
Um exemplo bem sucedido da correcta o mundo virtual» (Couchot, 1999: 25), é o
utilização das novas tecnologias da informa- computador, dispositivo requerido para dar
ção, ao serviço do bem-estar dos deficientes, vazão ao carácter dialógico das novas for-
resulta de um projecto denominado «Teleaula, mas de comunicar. Através dos diversos
presente!», da responsabilidade do Centro de produtos apresentados na rede, como, por
Avaliação em Novas Tecnologias da Infor- exemplo, o vídeo texto e o real chat, o
mação e Comunicação (CANTIC), do Mi- indivíduo pode estabelecer relações sociais,
nistério da Educação. Este projecto foi com diversas pessoas, em tempo real sem
desenvolvido através de um protocolo esta- sair de sua casa.
belecido entre o referido Ministério, a Estas relações sociais são estabelecidas
empresa Portugal Telecom (Programa Aladim em função de interesses comuns, partilhados
– RDIS para clientes com deficiência) e o por quantos “navegam” na rede. Desta for-
Hospital Dª Estefânia, em Lisboa (Wong & ma, recuperou-se uma sociabilidade perdida,
Ferreira, 5 Abril 1999). na medida em que a azáfama do dia-a-dia
O projecto consiste num sistema de não permite que as pessoas se encontrem nos
videoconferência que permite a diversos espaços de sociabilidade tradicionais (igre-
jovens, com deficiência motora profunda ou jas, cafés, jardins, ...). Esta sociabilidade é,
doença crónica (internados no referido então, realizada no ciberespaço; a vivência
Hospital), assistirem às aulas e interagirem em comunidade realiza-se num outro espaço
com os seus colegas de Escola. A tecnologia que não o físico, mas que amplia e alarga
que concretizou esta experiência resume-se as relações sociais: o virtual complementa
à ligação de dois computadores em tempo o real ou, como afirma Nora (1997: 81), «loin
real: um situado no Hospital e outro na de se substituer à la réalité, le cybermonde
Escola. A experiência, pioneira em Portugal, la prolonge et l’interpénètre».
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 281

Bibliografia Papert, S. (1997). A Família em Rede


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282 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 283

Cidade, tecnologia e interfaces.


Análise de interfaces de portais governamentais brasileiros.
Uma proposta metodológica
André Lemos,1 José Mamede,2 Rodrigo Nóbrega,3
Silvado Pereira,4 Luize Meirelles5

Introdução a que chegaram, aos portais oficiais faltam


interatividade com os cidadãos e prestação
É possível perceber uma crescente inte- de contas, tanto de gastos quanto de projetos
gração das novas tecnologias de informação e investimentos. Prevalece a oferta de infor-
e comunicação com a cidade, trazendo mações gerais sobre cada órgão e algumas
mudanças para o espaço urbano e facilidades no pagamento de tributos. Em
potencializando o fluxo de informações e de estudo semelhante, publicado em 2002, a
pessoas (Lemos, 2003). Dentre as iniciati- Federação das Indústrias do Estado do Rio
vas atuais para a implementação de interfaces de Janeiro - FIRJAN chegou a resultados
entre as cidades e as novas Tecnologias de semelhantes. O estudo “Desburocratização
Informação e Comunicação (TICs) estão os Eletrônica nos Estados Brasileiros”, que
projetos denominados de “cibercidades” ou avaliou os Web sites de 26 estados e do
“cidades digitais”6. Distrito Federal, relatou um cenário em que
A importância da interface nos web sites os portais governamentais parecem ser
de prefeituras e estados digitais brasileiros construídos com base nos organogramas dos
reside no papel que esta normalmente desem- governos e não nas necessidades dos cida-
penha nos ambientes digitais (Johnson, 2001). dãos. Essa constatação justifica-se pelo fato
Quando a busca de informação, a comuni- de que nenhum dos portais avaliados encon-
cação e a execução de tarefas são o foco tra-se no estágio integrativo de implantação
principal de um web site (Ribeiro, 2003), a do governo eletrônico9. É curioso que se
interface é o único meio de interação pos- compararmos estes resultados com os encon-
sível. Nos web sites dos estados e prefei- trados em países com melhores indicadores
turas, este papel torna-se ainda mais crítico de desenvolvimento sócio-tecnológico, como
em função dos recursos disponibilizados Portugal, encontraremos os mesmos diagnós-
serem direcionados para uma audiência com ticos10.
distintos níveis de literacia e condições de
acesso. Com um caráter preliminar e Aspectos metodológicos
exploratório, discute-se aqui como é anali-
sada a interface do portal do governo de uma As questões que motivam as avaliações
localidade e é proposto um modelo de de interfaces partem de uma abordagem que
avaliação que seja aplicável aos sítios ofi- toma como referencial a perspectiva do
ciais dos estados e municípios brasileiros7. usuário dos espaços on-line de uma cidade
ou estado. O portal pode ser encontrado
Avaliação de sites da Administração Pú- facilmente? Pode ser usado em qualquer
blica: alguns exemplos plataforma ou sistema operacional? Permite
a execução de tarefas, como buscar infor-
Nos últimos anos, alguns estudos têm sido mações ou realizar transações, de forma
conduzidos na análise de web sites de es- rápida? Oferece ajuda em caso de erros?
tados e prefeituras, nomeadamente na veri- Trata-se, em resumo, de questionar de que
ficação dos seus conteúdos e serviços. Em forma a interface destes espaços media aquilo
conferência recente, os pesquisadores José que é por ele disponibilizado (Quadros, 2002).
Pinho e Luiz Akutsu apresentaram os resul- Tal questionamento passa, necessariamente,
tados de um ano de pesquisa sobre a pre- pela noção de interface e pelo método de
sença dos governos estaduais e municipais avaliação baseada na Web (Web-based
brasileiros na Internet8. Dentre as conclusões survey).
284 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Por avaliação de interface baseada na rificam a sua visibilidade na WWW, a


Web, entende-se, resumidamente, qualquer compatibilidade com plataformas de acesso,
método de análise crítica que objetive a as facilidades para cidadãos com necessida-
observação de dados empíricos em Web sites des especiais e a abertura para cidadãos de
a partir de um modelo de verificação pre- língua estrangeira. Em relação ao critério de
viamente formulado. Em geral, empregam- visibilidade, pretende-se verificar a presença
se métodos de inspeção que caracterizam-se dos portais nos principais mecanismos de
pela não participação direta dos usuários busca da Web brasileira11, constatando se estes
finais do sistema no processo de verificação. mecanismos incluem, entre as suas primeiras
Os avaliadores se baseiam em regras, reco- ocorrências, a URL correspondente ao Web
mendações, princípios e/ou conceitos pré- site da cidade procurada. A boa colocação
estabelecidos (Melchior, 1996) para identi- na classificação de um motor de busca
ficar, por observação direta, os problemas da garante, do lado do usuário, a rápida iden-
interface de um Web site. A avaliação da tificação do link para o portal entre o grande
interface de um Web site recupera métodos número de endereços oferecidos em resposta
de inspeção fundamentados nas investigações à busca12.
da HCI – Human-Computer Interaction
(Sears, 2000). Este é o caso, por exemplo, 2. Otimização
do método de “inspeção de usabilidade
formal”. Tradicionalmente aplicado na iden- Já a segunda categoria está relacionada
tificação de defeitos no código de programas à otimização, e tem como critério único a
informáticos, esse método é atualmente uti- avaliação o tempo de carregamento da pá-
lizado na identificação de erros na formatação gina principal do portal. O parâmetro desta
HTML da interface Web ou nos aplicativos medição baseia-se no padrão de 56 Kbps, por
que suportam as suas funcionalidades. Se- este corresponder à velocidade máxima dos
guindo o mesmo princípio de adaptação, o modems domésticos, atualmente utilizados
método de “inspeção baseada em padrões”, pela maior parcela dos usuários da Internet
aplicado na verificação de conformidade de brasileira13. A otimização é importante para
um sistema interativo às regras ou recomen- possibilitar um rápido carregamento do portal
dações de organismos internacionais, é solicitado por usuários que não dispõem de
adotado no ambiente Web quando se verifica banda larga. De acordo com pesquisas
se um Web site está de acordo com as normas empíricas do Hewlett-Packard Laboratories
de acessibilidade do W3C. – Palo Alto, a tolerância da espera pelo
carregamento de páginas na Web encontra-
Modelo de avaliação: categorias e critéri- se entre os 5 e 10 segundos (Bathi et al, 2000:
os 6). O atraso no carregamento da página
implica uma percepção negativa dos conteú-
Com base nas metodologias de análise dos e serviços oferecidos pelo portal.
dos estudos da HCI adaptadas para a Web,
foi elaborado um modelo de avaliação com 3. Navegabilidade
questões a serem verificadas nos portais dos
estados e municípios brasileiros. Para a con- Esta categoria abrange critérios e indi-
cepção desse roteiro de análise levou-se em cadores que estão relacionados à mobilidade
conta critérios centrais para o bom funcio- do usuário no “interior” do portal. Navegar,
namento de um portal governamental, agru- no jargão telemático, significa mover-se de
pados em quatro categorias de avaliação. tela em tela, ou de página em página, por
meio da ativação de hiperlinks. A navegação
1. Acessibilidade é considerada uma das principais fontes de
problemas de usabilidade na Web. Parte destes
A primeira categoria diz respeito ao nível problemas, de acordo com Alison J. Head,
de acessibilidade, que contempla às condi- estão associados ao design de sites em geral,
ções do primeiro contato do usuário com o fazendo pouco uso de sinalizações que
portal, e, por isso, reúne critérios que ve- deveriam comunicar ao usuário onde ele se
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 285

encontra e para onde pode ir num dado entre as 10 primeiras ocorrências em todos
momento da navegação (Head, 1999: 109). os quatro motores de busca. Enquanto as
ligações para os portais dos estados do Rio
4. Tratamento de erros de Janeiro e de São Paulo obtêm presenças
positivas somente no Google, o da cidade
Por fim, a última categoria corresponde de São Paulo não é incluído em nenhum dos
ao tratamento de erros, que aponta para a buscadores. Constata-se, neste caso, a neces-
preocupação do governo em sanar problemas sidade de revisão dos metadados embutidos
funcionais no portal e garantir sua total nas páginas dos portais, de modo a melhorar
operacionalização. Pode-se identificar este suas classificações e fazendo com que o
quesito nos portais através da disponibiliza- cidadão tenha mais facilidade na localização
ção de um canal de comunicação (de pre- do portal na Internet. Em compensação, todas
ferência e-mail ou chat) com o webmaster as páginas avaliadas nos quatro portais go-
ou se é apresentada uma página que auxilie vernamentais mostraram-se plenamente
o usuário caso um link esteja inativo. O portal operacionais nos sistemas e navegadores em-
apresentando links inativos demonstra pro- pregados neste estudo. Em nenhum dos
blemas de funcionalidade, ou seja, se o site portais foi verificada qualquer alteração na
é funcional e se há um cuidado de manter interface que impedisse o acesso às suas
essa funcionalidade – já que links inativos seções principais. O cidadão que conseguir
significam a ausência de um trabalho mais encontrar o endereço do portal estará habi-
cuidadoso de manutenção. litado a acessar suas informações indepen-
dente de estar utilizando uma plataforma
Avaliação piloto da interface de portais específica. O mesmo não ocorre em relação
governamentais das Cidades e Estados do às facilidades para cidadãos com necessi-
Brasil dades especiais. A cidade de São Paulo é
a única cujo portal demonstra preocupação
Nesta fase de testes do modelo de ava- com este grupo de usuários, disponibilizando
liação o roteiro foi aplicado durante o mês na home page um link para informações sobre
de setembro de 2003, em portais governa- as peculiaridades do design universal. No
mentais de três capitais do Brasil: Rio de entanto, mesmo este portal não reúne as
Janeiro (www.rio.rj.gov.br), São Paulo condições para possibilitar o mais elementar
(www.prefeitura.sp.gov.br) e Porto Alegre nível de acesso especificado pelo W3C Web
(www.portoalegre.rs.gov.br) e um estado, o Content Accessibility Guidelines. Nenhum
Estado de São Paulo. Essa seleção foi ba- dos quatro portais obteve aprovação neste
seada numa pesquisa anterior, que dava conta critério, confirmando uma tendência já cons-
dos tipos de conteúdo disponibilizados pelos tatada em outros estudos do gênero15. Do
portais14. Sendo que essas três capitais se mesmo modo, os cidadãos estrangeiros que
destacaram pela variedade de informações e não dominam a língua portuguesa estão
serviços prestados, bem como pelo nível excluídos do acesso aos portais analisados,
destes conteúdos. Como esta ainda é uma fase exceto ao site do Estado de São Paulo, o
de validação das categorias e critérios deste único que disponibiliza conteúdos em inglês
modelo, os resultados a seguir apresentados e espanhol.
não estão quantificados, somente havendo a
possibilidade de serem descritos. 2. Otimização

1. Acessibilidade Os portais analisados não mostraram-se


otimizados para as condições de acesso da
Os resultados recolhidos na verificação maioria dos cidadãos brasileiros. Todos
desta categoria revelam que a maioria dos apresentam um tempo de carregamento
portais avaliados apresenta problemas em superior aos 10 segundos em modems com
relação à sua visibilidade na Web. Quando velocidade de 56kbps. No caso do site
efetuada a pesquisa do nome da cidade ou municipal de Porto Alegre, o tempo de
estado, apenas o site de Porto Alegre aparece resposta para a total funcionalidade da home
286 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

page é de 48.83 segundos. A baixa da cidade de São Paulo de utilizar, pelo menos
performance nesta categoria deve-se ao na primeira página de cada seção, um in-
excesso de objetos presentes nas páginas dicador de localização (barra de sequência
principais, sejam eles texto, imagem ou de links em hipertexto). O mesmo problema
códigos de programação, demonstrando uma foi diagnosticado no portal da cidade do Rio
falta de critério na priorização das informa- de Janeiro, sendo que apenas o do Estado
ções que são oferecidas ao usuário no seu de São Paulo preocupa-se em indicar todo
primeiro contato com o portal. o percurso desde a página principal. Por sua
vez, o único portal a orientar o usuário
3. Navegabilidade sinalizando-o com o nome das páginas in-
ternas na barra de títulos do navegador é
Na verificação do primeiro critério desta o da cidade de São Paulo. Em todos os demais
categoria, constatou-se que nenhum dos sites esta informação é negligenciada. Na
portais utiliza uma página de abertura maioria dos casos, a barra de títulos do
precedente a home page. A inexistência deste navegador permanece intitulada com o nome
recurso atesta a predominância de uma boa genérico do portal. O caso mais grave é
prática de design. Ao optar pelo direcionando protagonizado pelo site de Porto Alegre, onde
do cidadão diretamente para a página prin- há páginas, como a do “Orçamento
cipal do portal, sem retê-lo com mensagens Participativo”, que sequer apresentam título,
introdutórias ou propaganda não solicitada, mostrando apenas a URL do arquivo. Esta
elimina-se etapas desnecessárias de navega- deficiência reflete diretamente na forma como
ção, diminuindo o tempo de conexão e as páginas são registradas nos bookmarks do
encurtando o caminho entre o usuário e o usuário, dificultando a sua identificação em
serviço por ele desejado. No entanto, todos futuras consultas. Por isso, embora todos os
os portais apresentam problemas em relação portais permitam o registro das páginas
a algum dos indicadores de contexto e lo- internas nos bookmarks, notadamente pelo
calização. As interfaces das cidades de São fato de nenhum deles utilizar frames na
Paulo e Porto Alegre não mantêm inalterado interface, apenas o da cidade de São Paulo
o menu de navegação global nas páginas garante uma correta identificação destas
internas, exigindo do usuário um esforço páginas.
adicional na percepção da arquitetura do site16. No último grupo de questões acerca da
No entanto, no caso do site da cidade de São navegabilidade, constatam-se significantes
Paulo, deve-se reconhecer o esforço de limitações na oferta de ferramentas de apoio
padronização aplicado à interface desta ci- à mobilidade. O único ponto positivo veri-
dade, sendo que na maioria das suas áreas ficado é que todos os portais, com a exceção
o cidadão tem sempre à disposição o menu apenas do de Porto Alegre, apresentam um
de navegação principal, exceto em algumas campo de motor de busca na home page.
seções como, por exemplo, naquela dedicada Entretanto, este recurso só é mantido nas
à Cidadania. Nesta seção, ao optar por in- páginas internas dos sites dos estados do Rio
formações sobre os Telecentros, é defronta- de Janeiro e São Paulo, sendo que neste
do, sem aviso prévio, com um novo espaço, último, o campo é substituído por um link,
onde a uniformidade da interface anterior é o que reduz a sua eficiência mas não a anula
abandonada. de todo. Aprofundando mais a verificação da
Os portais das cidades de São Paulo e qualidade do serviço de busca oferecido, nota-
Porto Alegre também não oferecem ao usu- se que nenhum dos portais disponibiliza
ário uma sinalização adequada da sua loca- recursos de busca avançada ou instruções
lização quando nas páginas internas do site. para a pesquisa. No que se refere à presença
Na avaliação deste critério não foi verificada de mapa do site, o portal do estado do Rio
a utilização de qualquer recurso que comu- de Janeiro é o único a disponibilizar link para
nique a posição em relação a home page e este tipo de navegação remota, tanto na home
a seção na qual o usuário se encontra. page quanto nas primeiras páginas das seções
Entretanto, vale ressaltar o esforço do site internas.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 287

4. Tratamento de erros conseguiu aprovação em 12 deles. Coinci-


dentemente, este foi o índice alcançado pelos
Por fim, a verificação dos critérios dois portais de São Paulo e pelo do Estado
implicados nesta última categoria de avali- do Rio de Janeiro. Porto Alegre apresentou
ação mostra que em pelo menos dois portais, a mais baixa performance, com aprovação
cidades de Porto Alegre e São Paulo, foram em apenas seis critérios. Ainda que seja
encontrados links inativos (404 error: page considerada uma margem de erro, devido
not found). Entretanto, mesmo nos sites que a refinamentos necessários à metodologia e
não apresentaram links inativos, não está aos indicadores deste estudo, pode-se con-
implementada qualquer interface que auxilie cluir que as interfaces aqui analisadas
o usuário caso este tipo de erro venha a apresentam sérias barreiras para o seu uso
ocorrer. Em todos os sites, a página de por parte dos cidadãos em geral, e mais
resposta a links inativos obtida nos nossos especificamente para aqueles com necessi-
testes apresenta informações genéricas em dades especiais.
inglês17, inúteis no auxílio à navegação em Se o papel da interface é possibilitar, de
portais governamentais brasileiros. Por outro forma “amigável”, a utilização dos serviços
lado, com a exceção do portal de Porto e informações dos portais governamentais, os
Alegre, todos os demais disponibilizam um estados e prefeituras ainda têm um longo
canal de comunicação para o cidadão, tanto caminho a percorrer na solução dos proble-
na home page quanto nas páginas internas. mas aqui relatados. Contudo, embora os
resultados globais não tenham sido positivos,
Conclusão são encorajadores e demonstram o grande
esforço dos governos locais no domínio das
Os resultados apresentados neste estudo Tecnologias da Informação e da Comunica-
apontam uma significativa deficiência nas ção. Em última instância, espera-se que este
interfaces dos portais avaliados. Dos 23 estudo seja mais um contributo para a
critérios verificados em todas as categorias melhoria da interface dos portais estaduais
de análise, cada site individualmente só e municipais brasileiros.
288 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

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Zahar Ed., 2001. volvimento da Sociedade da Informação/Uni-
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 289

9
versidade do Minho/Cadernos Inter.face, De acordo com o estudo, os
2003, [On-line] Disponível na Internet via estágios‘informativo, interativo e transacional são
WWW: http://www2.dsi.uminho.pt/gavea/ anteriores ao integrativo (Campos et al, 2002: 10).
10
Neste país, o Observatório do Mercado das
downloads/EstCam2002-v3.pdf (acessado em
Tecnologias e Sistemas de Informação avaliou, em 2000,
06.10.2003). a presença das câmaras municipais na Internet e concluiu
Sears, A., Introduction: empirical studies que enquanto 97% disponibilizam informações gené-
of WWW Usability, International Journal of ricas do município, apenas 23% oferecem informação
Human-Computer Interaction, 12 (2), 2000, específica sobre a própria prefeitura. O quadro se agrava
p. 167-171. em relação aos serviços interativos ou transacionais,
Shneiderman, B., Designing the user com apenas 2% das câmaras a incorporá-los aos seus
interface, Reading, MA, Addison-Wesley, Web sites. Considerando todos os fatores da avaliação,
1998. conteúdos, serviços e interface, o estudo revela que
apenas 6% dos portais são excelentes e 20%, bons
Tsagarousianou, R. et al, Cyberdemo-
(Santos e Amaral, 2000). Embora os portais tenham
cracy: technology, cities and civic networks, alcançado resultados mais positivos na segunda ava-
Londres, Routledge, 1998. liação, realizada em 2003, a oferta de serviços per-
manece com índices baixos, referindo a apenas 7%
do conteúdo disponibilizado, e nenhum dos web sites
_______________________________ atingiu ainda o mais elevado patamar de maturidade
1
Professor, Universidade Federal da Bahia (Santos e Amaral, 2003: 69-72).
11
(Brasil). Este estudo abrange o buscador nacional
2
Professor, Universidade Federal da Bahia do UOL (http;//www.radar.uol.com) e a versão
(Brasil); Estudante de Doutoramento, Universida- brasileira do Yahoo! (http://www.yahoo.com.br) e
de de Aveiro. do Google (http://www.google.br).
3 12
Estudante de Doutoramento, Universidade O nível de visibilidade de uma URL nos
Federal da Bahia (Brasil). motores de busca depende da qualidade dos
4
Estudante de Mestrado, Universidade Fede- metadados inseridos nas páginas do web site. Os
ral da Bahia (Brasil). metadados são palavras-chave embutidas no
5
Estudante de Graduação, Universidade código HTML de uma página que garantem a sua
Federal da Bahia (Brasil). correta indexação pelos mecanismos automáticos
6
Tendo em vista as potencialidades que a Internet de catalogação da World Wide Web (sobre o
pode trazer para a dinâmica do espaço urbano, a assunto, ver McGovern et al; 2001).
13
pesquisa “Cibercidades” está sendo realizada atra- De acordo com a 13a. Pesquisa Internet POP
vés, dentre outras ações, de um mapeamento dos do IBOPE Mídia, em 2002, 88% dos domicílios
sites oficiais dos estados e capitais do Brasil, com utilizava linha comum de telefone como forma
a finalidade de identificar qual o nível de desen- de acesso à Internet (http://www.ibope.com.br/).
14
volvimento dos portais governamentais no país aos A pesquisa está em andamento na fase de
níveis de conteúdo e interface. Esse artigo trata da análise dos dados. Ver GPC, em http://
questão das interfaces em portais de governos locais www.facom.ufba.br/ciberpesquisa/cibercidades.
15
do Brasil. Ver os estudos desenvolvidos pela FIRJAN-
7
Veja matriz de análise em anexo. Federação das Indústrias do Estado do Rio de
8
Palestra apresentada no IX Colóquio Inter- Janeiro (Campos et al, 2002; Cruz et al, 2002).
16
nacional de Análise das Organizações e Gestão Os portais dos Estados de São Paulo e Rio
Estratégica, Salvador, Bahia, Brasil, 2003. A de Janeiro não apresentaram problemas neste
pesquisa referida faz parte de um projeto de critério de avaliação.
17
monitoramento dos web sites das administrações Este tipo de página normalmente encontra-
estadual e municipal, iniciada em 1999 (ver se pré-configurada na instalação dos Web servers
Akutsu; Gomes de Pinho, 2001). utilizados pelas prefeituras e estados.
290 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

ANEXO

Modelo para avaliação da Interface de web sites


da Administração Pública Local - Brasil (versão simplificada)

I. Acessibilidade
Todos
Google
1. Em quais motores de busca e catálogos o site é apresentado
Yahoo! Brasil
entre as 10 primeiras ocorrências?
Radar UOL
Nenhum
Nenhum

2.1. Em quais navegadores do Windows XP Home Edition o site é Internet Explorer 6.x
operacional? Netscape Navigator 7.x
Ambos
Nenhum
Internet Explorer 5.x
2.2. Em quais navegadores do Mac OS X o site é operacional?
Netscape Navigator 7.x
Ambos
Nenhum
Mozilla 1.x
2.3. Em quais navegadores do Linux o site é operacional?
Netscape Navigator 7.x
Ambos
3. A página principal do site disponibiliza o símbolo de acessibilidade Sim
ao qual seja associada uma página explicativa sobre as
características do acesso universal? Não
Nenhum
Nível A
4. Qual o nível de conformidade da página principal com as
Nível AA
diretrizes do Web Content Accessibility Guidelines 1.0 do W3C?
Nível AAA
Não verificado
Sim
5.1. O site disponibiliza versão em língua estrangeira?
Não
Inglês
5.2. Em caso afirmativo, em quais línguas? Espanhol
Outras

II. Otimização
Inferior a 10 seg.

1. Qual o tempo estimado de carregamento da página principal para Entre 10 e 20 seg.


conexões a 56 Kbs? Superior a 20 seg.
Não verificado
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 291

III. Navegabilidade

1. O web site apresenta uma página de abertura que precede a Sim


página principal? Não

1.1. Em caso afirmativo, a página de abertura oferece alguma Sim


possibilidade de navegação por opção? Não
1.2. Caso a página de abertura contenha algum recurso de Sim
animação, há a opção de não carregá-la e de seguir direto para a
página principal? Não

2. O menu de navegação principal da home page é mantido em Sim


todas as páginas internas? Não

3. A posição do usuário, em relação ao menu de navegação Sim


principal, é indicada em todas as páginas internas? Não
Sim
4. A home page e a primeira página de cada seção do menu
principal encontram-se especificamente nomeadas na barra de Apenas a HP
títulos do navegador?
Não

5. As páginas internas de 2o e 3o níveis podem ser acrescentadas Sim


aos bookmarks? Não
Sim
5.1. Em caso negativo, a interface utiliza frames?
Não

6. O site disponibiliza campo para motor de busca na página Sim


principal? Não

6.1. O site disponibiliza campo para motor de busca na primeira Sim


página de todas as seções do menu principal? Não
Sim
6.2. O site disponibiliza recursos de busca avançada?
Não
Sim
6.3. Há instruções para a pesquisa?
Não
Sim
7. Há link para o mapa do site na página principal?
Não

7.1. Há link para o mapa do site na primeira página de todas as Sim


seções do menu principal? Não

IV. Tratamento de erros


Sim
1. O site apresenta links inativos (404 errors)? Não
Não verificado

2. Há alguma informação relevante na página que indica a Sim


inexistência de arquivos (404 errors)? Não

3. É oferecido, na página principal, contato para o caso de Sim


ocorrerem problemas funcionais no site? Não

3.1. É oferecido, em todas as páginas internas, contato para o caso Sim


de ocorrerem problemas funcionais no site? Não
292 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 293

La figura del comunicador digital en la era de la


Sociedad de la Información: Contexto y retos de futuro
Beatriz Correyero Ruiz1

“Cabe al periodista asumir el papel humana”4. En la Sociedad del Conocimiento


que el enciclopedista trazara para sí la información adquiere su valor en la medida
mismo en los albores de la que es contextualizada por un individuo y
Modernidad; más que el desarrollo de utilizada como un conocimiento aplicado a
las ciencias se trata de la selección, las tomas de decisiones y la solución de
organización y transmisión de una problemas de su vida cotidiana5.
información más o menos general Lo cierto es que en el marco de este nuevo
accesible para todos y a todos orden social – auspiciado por una revolución
dirigida.” - Tocqueville. La tecnológica sin precedentes – podemos
Democracia en América observar a la consolidación de un nuevo
paradigma comunicacional de carácter
El desarrollo de la Sociedad de la segmentado e interactivo cuya máxima
Información ha supuesto una renovación de expresión es la creación de comunidades con
todos los órdenes de la vida actual empezando rasgos de fuerte dependencia cultural y social
por las relaciones sociales y continuando por y la aparición de nuevos espacios para la
las prácticas económicas y empresariales, los pluralidad, la diversidad, el intercambio
medios de comunicación, la educación, la multicultural y la participación ciudadana a
salud, el ocio y el entretenimiento. escala global. Es decir, gracias a la nuevas
Lo peculiar de esta nueva sociedad tecnologías la comunicación tiende a
emergente es precisamente el carácter democratizarse y va dejando poco a poco de
ilimitado que en ella tiene el acceso a los ser monopolio de unas empresas dedicadas
recursos informativos2. Sus protagonistas son tradicionalmente al sector, puesto que se
las Tecnologías de la Información y las convierte en un canal de comunicación accesible
Comunicaciones (TIC), y entre ellas, a todo aquel que disponga de un ordenador
especialmente Internet, un sistema de y una conexión telefónica o eléctrica.
información automatizado e interactivo Sin embargo, la adaptación de los
dotado de un gran potencial comunicativo que ciudadanos al nuevo entorno comunicativo,
abre un abanico ilimitado de oportunidades propiciado sobre todo por Internet, ha sido
de acceso a la información y a la cultura. lenta y, en mi opinión, es todavía un proceso
Por otra parte, los elementos abierto en el cual estamos inmersos. A ello
fundamentales que configuran esta nueva están contribuyendo varios motivos:
sociedad de la información, cuya 1. La limitación al acceso a la tecnología
denominación fue acuñada en los años sesenta en muchos lugares del mundo bien por
por Daniel Bell y otros sociólogos y motivaciones económicas, o bien por el
economistas, son los usuarios, las excesivo temor de algunos gobiernos al
infraestructuras, los contenidos y el entorno3. desarrollo de estas nuevas formas de
Hay quien da un paso más y afirma que comunicación que son prácticamente
el mundo en el que vivimos está inmerso en incontrolables.
una nueva etapa de transición: el paso de una 2. El analfabetismo tecnológico de gran
Sociedad de la Información a una Sociedad parte de la población mundial. Especialmente
del Conocimiento en la cual “la comunicación en el segmento mayor de 40 años. En este
es el nexo que favorece la relación entre los apartado habría que señalar también las la
individuos y el conocimiento es el vector falta de conocimiento y manejo de las TIC.
estratégico para generar valor agregado a la 3. La desinformación. En un mundo en
información y potenciar la inteligencia el que la información es vital para ser
294 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

competitivo se da la incongruencia de que de América Latina y el Caribe. Los 11


existen ciudadanos que continúan millones de habitantes de la isla no tienen
desinformados por varias razones entre los acceso a teléfonos móviles, algo de lo que
que podríamos citar: el Gobierno culpa al embargo impuesto desde
a) El exceso de fuentes de información hace más de cuatro décadas por EE.UU. Para
indiscriminadas que la tecnología pone a demostrar, sin embargo, que desde el poder
nuestro alcance. se quiere solventar esta situación las
b) La escasez de tiempo para procesar autoridades cubanas afirmaron el mes pasado
la información y transformarla en que este año distribuirían hasta 300.000
conocimiento. móviles. Juzguen ustedes mismos...
c) La carencia de verdaderos profesio- Y todo esto sin hablar de los países al
nales de la comunicación que sean capaces tercer mundo que se encuentra a años luz
de discriminar, estructurar y organizar la de una conexión a Internet como la
información de manera que ésta satisfaga las conocemos en las sociedades occidentales.
necesidades cognitivas de los usuarios. Obviamente las diferencias entre los que
Vamos a centrarnos concretamente en dos tienen acceso a la tecnología y los que aún
aspectos clave: las limitaciones al acceso están lejos, existe. Expresémoslo en cifras:
tecnológico y la figura del profesional de la El 70% de los usuarios de Internet vive en
comunicación en el marco de una Sociedad los 24 países más ricos, aunque éstos sólo
de la Información paradójicamente cobijan al 16% de la población mundial. La
desinformada. brecha digital existe pero será mucho menor
dentro de unos años, cuando se haya
Limitaciones al acceso tecnológico implantado la moderna tecnología que permite
acceder a Internet, telefonía y vídeo a través
Se da la circunstancia de que en China, de la red eléctrica. Este sistema abrirá la
segundo país del mundo en número de posibilidad de ampliar la sociedad de la
usuarios de Internet, el desarrollo de la Red información tanto a zonas rurales como a
de Redes se ve como una amenaza al férreo países subdesarrollados en los que el coste
control ideológico del Gobierno. Por este de acceso por teléfono sería impensable, pero
motivo, las autoridades del país han bloqueado donde ya llega la red eléctrica, por lo que
el acceso a determinadas páginas, entre las los usuarios podrán acceder a la banda ancha
que cabe citar medios de comunicación como y utilizar el teléfono a través de cualquier
la BBC, el Wall Street Journal – incluso el enchufe de su vivienda.8
buscador Google ha sufrido algún que otro Sin duda existen iniciativas para tratar de
bloqueo temporal –, además se han cerrado generalizar el uso de las tecnologías en todo
páginas web colectivas y personales así como el mundo y lograr poner en marcha la aldea
determinados foros de debate, e incluso se global macluhiana en la que cualquier
ha prohibido la apertura de cibercafés cerca individuo en cualquier lugar podría consultar
de las escuelas primarias y secundarios del y confrontar las informaciones sin más
país bajo el pretexto de “preservar la salud limitaciones que las idiomáticas. Una de ellas
mental de sus 329 millones de menores de ha sido promovida por la Organización de
edad”6. Naciones Unidas (ONU). Se trata de la
Algo similar sucedía en el Irak de la organización de una Cumbre Mundial sobre
postguerra, donde estaba vetado el acceso a la Sociedad de la Información que se
las páginas relacionadas con Israel, la política desarrolla en dos fases. La primera de ellas
estadounidense o la educación en otros países. tuvo lugar en Ginebra acogida por el
Los 57 cibercafés de titularidad pública de Gobierno de Suiza, del 10 al 12 de diciembre
la época de Sadam Husein se han convertido de 2003. En ésta se abordó toda una gama
hoy en centenares gracias a la iniciativa de temas relacionados con la sociedad de la
privada. Sin embargo las conexiones siguen información y se adoptaron una Declaración
siendo difíciles, lentas y caras7. de Principios y un Plan de Acción en los
Pongamos otro ejemplo. Las telecomuni- cuales se manifiesta el compromiso común
caciones en Cuba son las menos desarrolladas de “construir una sociedad de la información
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 295

centrada en la persona, incluyente y orientada extremistas islámicos circulaba ya en varias


al desarrollo en la que todos puedan crear, páginas en la Red mucho antes del 11-M.
consultar, utilizar y compartir la información Pero también Internet es un canal de
y el conocimiento, para que las personas, las comunicación solidaria. El pasado mes de
comunidades y los pueblos puedan desarrollar marzo se creó el portal
su pleno potencial en la promoción de su www.quienmeayudo.com con el objetivo de
desarrollo sostenible y mejorar su calidad de facilitar la toma de contacto entre las víctimas
vida [...]”. La segunda fase tendrá lugar en de los atentados en Madrid y las personas
Túnez del 16 a 18 de noviembre de 2005. que acudieron en su ayuda.
La propuesta de la ONU: Conseguir la Lo mismo podríamos decir de otros
implantación de las TIC en todo el mundo vehículos de comunicación como los
para 2015 es todo un reto y, tal vez, una teléfonos móviles. A través de esos aparatos
de las proposiciones más igualitaristas y de uso común se activaron los detonadores
globalizadoras que se hayan hecho en los del fatídico atentado que costó la vida a 190
últimos tiempos. Sin embargo, algo parece personas en Madrid. Asimismo, el éxito
preocupar a esta organización internacional. fulgurante de las movilizaciones convocadas
Algo que choca con la vocación liberalizadora vía Internet y a través de mensajes cortos
de Internet ¿se pueden poner controles al de telefonía móvil (flashmob) alcanzó en
tráfico de información en la Red? En este España el rango de fenómeno social durante
sentido el pasado mes de marzo la ONU los llamados “cuatro días que cambiaron
organizó un foro para debatir la España” (del 11-M al 14-M)11. Como bien
“gobernabilidad de Internet” explicando la indica José Luis Orihuela, Profesor de la
necesidad de “equilibrar la legitimidad y la Facultad de Comunicación de la Universidad
transparencia con la innovación y la de Navarra, la lectura positiva de lo sucedido
creatividad”.9 estos días de conmoción en España es “que
La reglamentación de Internet tardará la sociedad civil se ha apropiado de la
algún tiempo, aunque es un proceso que, a tecnología para comunicar, convocar y
pesar de ir en contra de la vocación liberadora movilizar muchísimo más de lo que lo hacen
de la Red, se va acelerando paulatinamente. los partidos políticos, las empresas o las
Por otra parte, dada la multiplicidad de instituciones; lo peligroso es que el anonimato
conexiones y la facilidad con que uno se hace de Internet facilita la difusión de rumores y
emisor los reguladores lo tienen francamente convierte esta herramienta en una tecnología
difícil. que, en vez de liberarnos, nos somete a los
Sin duda “las tecnologías – entre ellas nuevos medios supuestamente independientes.
la web – actúan como mecanismos de Éstos pueden envenenarnos al difundir su
refuerzo y de extensión de ideas que se información rápida y sin filtros. Su influencia
transmiten socialmente a nivel informal y de es inversamente proporcional a la información
persona a persona en un espacio global”10. veraz que ofrecen los medios tradicionales.”12
En este sentido, podemos afirmar que hay
consecuencias funestas y otras libertarias. La figura del comunicador digital
Pongamos dos ejemplos ilustrativos centrados
en la actualidad. La Red es mucho más que En este contexto en el que la tecnología
un instrumento informativo porque permite permite a cualquier usuario de la misma
hacer circular también bulos, rumores, participar de forma activa o pasiva en los
campañas de propaganda y comunicaciones procesos comunicativos hay quien pronostica
de todo tipo a lo largo y ancho del planeta. que en cinco aos cada internauta tendrá su
La herramienta está ahí pero el uso que se propio portal a través del cual podrá enviar
hace de ella puede ser positivo o nocivo, y recibir toda clase de contenidos13, en el
depende de los individuos. Se ha comprobado que la sociedad demanda una mayor cantidad
que Internet se ha convertido en un de información, servida de forma más rápida,
instrumento muy útil para los terroristas. por más medios y con más opciones, los
Según las últimas noticias la amenaza a profesionales de la comunicación, debemos
España como posible objetivo de los reflexionar sobre el papel que nos
296 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

corresponde desempeñar en la era de la (hipertextualidad, multimedialidad, inter-


Sociedad de la Información14. actividad, etc.)
En este sentido se expresa el Profesor de - Estructurar y organizar la informa-
la Universidad Complutense de Madrid, José ción (labor llevada a cabo por las personas
Luis Dader, al afirmar que “la proliferación que trabajan en los buscadores y directorios
de informadores y comentaristas virtuales as como por las encargadas de filtrar la
espontáneos no puede llevarnos a engaño información que llega a la empresa facilitando
respecto a la necesidad en una democracia nicamente la que es relevante para ésta)
madura de un servicio de información de - Crear y gestionar los flujos de
actualidad amplio, contrastado, clarificador comunicación en las entornos de
y riguroso respecto a los asuntos de máxima comunicación compartidos por varios
trascendencia para la vida pública de las usuarios (por ejemplo dentro de las
comunidades. Tales condiciones sólo puede comunidades virtuales)
garantizarlas un periodismo de calidad y - Crear y gestionar servicios. En cuanto
sometido a una exigente criba de que el comunicador hace uso de la tecnología
profesionalidad, que sin negar – e incluso que le permite conocer las necesidades de
aplaudiendo – el derecho a la libertad de los usuarios – ya sean éstas comerciales, de
expresión de cuantos quieran contribuir con entretenimiento y de otra índole – y
su granito de arena electrónica, suministre más satisfacerlas.
allá de ese primer nivel de libertad, un En mi opinión, para lograr una total
consumado ejercicio de información selecta eficiencia comunicativa, es decir que el
– tanto en el plano de la descripción de hechos, mensaje llegue y sea correctamente
como del análisis y el contraste de opiniones, decodificado por el receptor final de cualquier
con el que facilitar en las mejores condiciones actividad relacionada con la comunicación
de reflexión y suministro de datos, el ejercicio digital, perteneciente o no al sector de los
de la deliberación democrática”15. medios de comunicación, ésta deber ser
Internet no sólo ha cambiado los modos realizada por profesionales de comunicación,
de acceso a la información por los usuarios, es decir, por aquellos individuos que gozan
el modelo de comunicación tradicional, la de la cualificación necesaria para el
economa mundial y las empresas de desempeño de la funcin de buscar, analizar,
comunicación, sino también el perfil del elaborar y transmitir contenidos que agreguen
comunicador 16 . Surgen multitud de valor añadido a la información bruta y
interrogantes al respecto: ¿qu nuevos modelos codificar los mensajes para adaptarlos a las
informativos ha impuesto la Red?; ¿hasta qu peculiaridades comunicativas que posee el
punto las tecnologías de la información medio digital.
condicionan la presentación y la propia Ahora bien, para hacer frente este reto
esencia de la información?; ¿qu cambios se se impone la necesidad de un reciclaje
están imponiendo en la propia profesión del profesional que capacite a los comunicadores
profesional de la comunicación? del entorno digital para asumir las nuevas
En este sentido, y como bien apuntan rutinas profesionales que imponen la
Jaime Alonso y Lourdes Martínez, hoy en tecnología digital18 y que influyen en la
día ya no es merecedor en exclusiva del manera de “contar las cosas”, esto es, de
apelativo de “comunicador digital” el comunicar.
periodista que trabaja en los diarios y medios En virtud de todo lo expuesto
de informacin digitales, sino todo aquel anteriormente defiendo la necesidad de
individuo cuya labor se encuentra devolver al profesional de la comunicación
estrechamente ligada, de una u otra manera, su función informativa en el marco de la
al tratamiento de la información y la moderna Sociedad de la Información; puesto
comunicación en red. Entre las labores que que las fuentes son hoy en da accesibles a
puede desempeñar un comunicador digital cualquiera, esta figura profesional de la
estos autores señalas las siguientes17: comunicación tendr el cometido de dar las
- Producir informaciones utilizando las claves de contextualización de las
herramientas propias de la tecnología digital informaciones convirtiéndose en un auténtico
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 297

gestor de información y de conocimientos ms En este sentido, debo hacer una llamada


que un transmisor de contenidos. Esta es su a la reflexión del lector. Bajo mi punto de
gran aportación a la Sociedad de la vista esa “verdad” a la que hace referencia
Información. Ramonet será precisamente uno de los pilares
Lo que hoy puede parecer una utopía será que apoyan mi tesis de que la comunicacin
posible siempre y cuando las empresas tomen digital debe dejarse en manos de los
conciencia de los beneficios que les va a auténticos profesionales puesto que
reportar un profesional en cuanto a eficiencia comunicación es también asumir la
comunicacional; cuando los periodistas se responsabilidad de aquello que se difunde.
preocupen de adquirir las destrezas necesarias La deontología profesional será pues un valor
y asuman la responsabilidad social de lo que añadido en alza en una sociedad en la que
publican; y cuando las Facultades encargadas nadamos en una superabundancia informativa
de formar a estos nuevos profesionales descontrolada y, en muchos casos basada más
adecuen sus planes de estudio para ofrecer en la especulación y la rumorología que en
a los futuros profesionales los conocimientos el verdadero conocimiento. Lo que distinguir
necesarios para acceder al entorno digital al comunicador digital de sus compañeros de
capacitándoles en el conocer y dominar las otros medios serán los métodos, las técnicas,
herramientas de la comunicacin digital - y las herramientas pero nunca los objetivos:
multimedialidad, hipertextualidad, instan- la información veraz, rigurosa y honesta al
taneidad, interactividad y universalidad19 y servicio exclusivo de la sociedad.
ser hábiles a la hora de seleccionar los hechos
relevantes, jerarquizar, profundizar y Conclusiones
contextualizar la información.
Frente a esta postura, que tal vez pueda - Internet ha creado una necesidad de
ser tachada de excesivamente optimista existe comunicación y de interacción con la
otra radicalmente pesimista que vaticina que información de enormes proporciones; sin
la profesión como tal está en “vías de embargo la excesiva cantidad y redundancia
extinción”. Entre los principales defensores de informacin amenaza con entorpecer los
de esta corriente se encuentran el Catedrático flujos comunicativos generando situaciones
Jos Luis Martnez Albertos o el Director de de “incomunicación”, “desinformación” o
Le Monde Diplomatique Ignacio Ramonet. “intoxicación informativa”;
Entre sus las causas de la desaparición de - Gestionar y organizar de forma
los profesionales del periodismo estos autores estructurada los contenidos y los flujos
señalan, respectivamente, la falta de ética a comunicativos en la Red para evitar las
la hora de presentar la realidad20 y la “tiranía situaciones descritas anteriormente pasa a
de la comunicación” sobre la esfera de la convertirse en la principal tarea del comunicador
información que, al pasar de ser un bien digital, un profesional cualificado y capacitado
escaso a abundante, deja de tener valor en especialmente para establecer procesos
sí misma para convertirse en una mercancía comunicativos utilizando las nuevas
de manera que “lo que da valor a la posibilidades que brinda la comunicación
información es la cantidad de personas digital, esto es: conjugando los tres parámetros
susceptibles de interesarse por ella, pero este vertebrales que le dan forma: la tecnología, la
factor no tiene nada que ver con la verdad.”21 información y la comunicación.
298 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

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de 6 de noviembre de 2003, en la direccin: noticia: “China prohíbe abrir cibercafés cerca de
[http://old.clarin.com/diario/2003/11/06/t- las escuelas para proteger a los jóvenes” en
654102.htm] IBLNEWS (25/03/2004) [http://iblnews.com/news/
Dader, J. L: Los cinco jinetes print.php3?id=103913]. En este texto se indica
apocalípticos del periodismo español actual” además que según Amnistía Internacional China
ha incrementado en un 60% el número de
en Sala de prensa (www.saladeprensa.org) nº detenciones de cibernautas en los últimos dos años.
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García De Madariaga, J. M., “El
conectarse a Internet hoy en día tiene tres
periodista profesional ante la interactividad posibilidades: acudir a un cibercafé, aprovechar
digital” Comunicación presentada en el V las dos horas de conexión gratuitas ofrecidas por
Congreso de Periodismo Digital celebrado en el Ministerio de Información de 4 a 6 de la
Huesca entre los días 15 y 16 de enero de madrugada o comprar un acceso en el Ministerio
2004. (50 horas por 28 dólares) que por motivos de
En [http://www.congresoperiodismo.com/ saturación sólo se pueden usar a partir de la
medianoche y hasta las 6 de la mañana.
actualidad/noticia.asp?idNoticia=15]. 8
La red eléctrica es una red “global” que llega
Martínez Albertos, J. L., El Ocaso del a los lugares más remotos que podamos imaginar.
Periodismo, Barcelona, CIMS, 1997. Se estima que 3.000 millones de hogares del
Negroponte, N., El mundo digital, mundo tienen acceso a la red telefónica, frente
Barcelona, Ediciones B (4ªEd.), 1999. a los 8.000 millones de hogares que cuentan con
Pineda Alcázar, Migdalia, “El papel de red eléctrica. Op. cit. “Empresa valenciana diseña
Internet como un nuevo medio de un chip para la transmisión de Internet por la luz”
comunicación social en la era digital”. en:
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En [http://www.webjornalismo.com/
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Ramonet, I., La tiranía de la 9
Véase [http://www2.cronica.com.mx/
Comunicación, Madrid, Debate, 2001. nota.php?idc=116960]
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 299

10
C. Beckett et al., “Desconstruyendo la tecnológicos”, cuyos resultados se publicarán en
identidad del homo-digitalis”, Revista breve en un libro titulado El comunicador digital.
Comunicación nº 109, Caracas-Venezuela, Centro Un avance del mismo puede consultarse en http:/
Gumilla. 2000, p. 59. /cibersociedad.rediris.es/congreso/g24.htm.
11 15
El sábado 13 de marzo, jornada de reflexión Jose Luis, Dader, “Los cinco jinetes
anterior a las elecciones generales el tratamiento apocalípticos del periodismo español actual, Sala
de la información sobre el 11-M se conjugó con de prensa [http://www.saladeprensa.org] nº 65,
las nuevas tecnologías para sacar a la calle a miles Marzo 2004, Año VI, Vol. 3.
16
de personas. En 24 horas se dieron la vuelta los Nicholas Negroponte (1999:32) afirmaba ya
sondeos electorales y de las urnas salió un en 1995 que “Ser digital supondrá la aparición
Presidente del Gobierno que unos días antes veía de un contenido totalmente nuevo. Surgirán nuevos
incierta su victoria. Véase el artículo “Pásalo” en profesionales, inéditos modelos económicos e
La Razón digital de 26/03/2004 [http:// industriales locales de proveedores de información
www.larazon.es/ediciones/anteriores/2004-03-24/ y entretenimiento”.
17
noticias/noti_rep03.htm] Jaime Alonso y Lourdes Martínez, Medios
12
Íbid. interactivos: caracterización y contenidos, en Javier
13
Así lo ha declarado, por ejemplo Tom Hogan, Daz Noci, y Ramón S (Coords.), Manual de
Director General de Vignette, una de las empresas redacción ciberperiodística. Barcelona: Ariel,
líderes en el mercado de gestión de contenidos en 2003, p. 281.
18
Internet que soporta los portales y aplicaciones web En este sentido el periodismo digital tiene
de más de 1.600 empresas e instituciones -entre por delante un gran reto: desarrollar un lenguaje
ellas Telefónica, Vodafone y Amena. apropiado para el nuevo soporte en el que
14
Es muy interesante el trabajo realizado por convergen texto, audio, imgenes fijas y en
un equipo de profesores de la Facultad de Ciencias movimiento y bases de datos y adaptado a un
Sociales y de la Comunicación de la Universidad nuevo modelo de comunicación en la que el
Católica San Antonio de Murcia (UCAM) en el receptor (usuario) decide qu contenido quiere
que tambin ha colaborado el Profesor Jerome recibir, cómo y cuándo lo quiere.
19
Aumente, Director del Journalism Research Jaime Alonso y Lourdes Ortiz, Op. cit., p.
Institute (JRI). Se trata del PROYECTO DE 264.
20
INVESTIGACIÓN PMAFI-PI-07/1C/01 José Luis Martínez Albertos, El Ocaso del
“Transformaciones e innovaciones en las Periodismo. Barcelona, CIMS, 1997.
21
estrategias, protocolos y perfiles profesionales de Ignacio Ramonet, La tiranía de la
la comunicación en los nuevos entornos Comunicación. Madrid, Debate, 2001.
300 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 301

A Base de Dados como Formato no Jornalismo Digital


Elias Machado1

Apresentação ou informações relacionadas entre si, que


representam aspectos de um conjunto de
No livro The Language of new media, objetos com significado próprio e que de-
o professor da Universidade da Califórnia, sejamos armazenar para uso futuro (GUIMA-
em San Diego, Lev Manovich apresenta cinco RÃES,2003:19). Bases de Dados podem ser
princípios-chave para identificar as novas muito simples ou muito complexas, tudo
mídias: 1) Representação numérica – todos depende do conjunto de aplicações que se
objetos no campo das novas mídias, criados deseja fazer sobre os dados. Uma Base de
em computador ou convertidos de fontes Dados simples poderia reunir a relação dos
analógicas, são digitalizados; 2) Modularidade bens de uma determinada pessoa física. Bases
– Um objeto das novas mídias apresenta uma de Dados complexas, como as utilizadas pelas
mesma estrutura em diferentes escalas; 3) organizações jornalísticas, que nos interes-
Automação – A codificação numérica e a sam neste trabalho envolvem muitos tipos
estrutura modular permitem a automação de diferentes de dados interdependentes e inter-
muitas operações na criação, manipulação e relacionados. Como devem permitir uma
acesso; 4) Variabilidade – Um objeto das busca e recuperação rápidas, os dados arma-
novas mídias não é um estrutura fixada no zenados em Bases de Dados complexas são
tempo, mas pode existir em diferentes, po- tudo menos uma simples coleção de itens.
tencialmente infinitas versões e 5) Diferentes tipos de Bases de Dados –
Transcodificação – todos os objetos das novas hierárquicas, redes, relacionais e objeto-ori-
mídias podem ser traduzidos para outros entados – operam com modelos distintos de
formatos (MANOVICH, 2001:27/48). organização dos dados MANOVICH,
Mais do que leis absolutas obedecidas por 2001:219). Os registros em Bases de Dados
todos os objetos definidos como novas mídias, hierárquicas, por exemplo, são organizados
Maonovich considera que estes cinco prin- segundo a estrutura clássica da árvore en-
cípios devem ser tomados como sinalizadores quanto que Bases de Dados orientadas para
das tendências gerais subjacentes à cultura objetos são estruturas complexas, chamadas
da computadorização. Neste trabalho preten- objetos, organizadas em classes hierárquicas
demos utilizar o princípio da transcodificação que podem herdar propriedades de classes
para discutir as particularidades da Base de mais altas de uma determinada cadeia. Para
Dados, originalmente uma tecnologia para or- os usuários as coleções de itens
ganização e acesso a dados, como forma disponibilizadas na forma de Bases de Dados
cultural com estatuto próprio no jornalismo possibilitam uma diversidade de operações
digital. A partir da aplicação deste princípio como ver, navegar, buscar ou armazenar
defendemos a hipótese de que no jornalismo informações. De igual modo que a narrativa
digital a Base de Dados, como uma forma literária ou cinematográfica é um plano
cultural típica da sociedade das redes, assu- arquitetônico na Modernidade, a Base de
me ao menos três funções: 1) de formato para dados emerge como a forma cultural típica
a estruturação da informação, 2) de suporte para estruturar as informações sobre o mundo/
para modelos de narrativa multimídia e 3) realidade na cultura dos computadores.
de memória dos conteúdos publicados. Até meados dos anos 90 do século
passado uma Base de Dados era um conjunto
1. A Base de dados como forma cultural de dados alfanuméricos (cadeias de caracte-
res e valores numéricos). Hoje, uma Base de
Talvez a definição mais simples de Base Dados costuma armazenar textos, imagens,
de Dados seja a de uma coleção de dados gráficos e objetos multimídia (som e vídeo),
302 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

aumentando muito as proporções das neces- redes digitais requer o acesso simultâneo ou
sidades de armazenamento e a complexidade concorrente por vários usuários, cujas ope-
dos processos de recuperação e rações podem interagir, gerando inconsistên-
processamento dos dados. A principal dife- cias. Por exemplo, dois investidores, base-
rença existente entre as Bases de Dados ados em notícias em tempo real, descobrem
modernas e classificação mais antiga de que seria um bom investimento comprar todos
coleção de arquivos suportados pelo sistema os estoques de soja e autorizam seus agentes
operacional reside na possibilidade de rela- a comprá-los. Como somente um deles pode
cionamento dos dados entre si. Por mais concluir a ação, quanto antes a informação
complexa que seja uma coleção de arquivos sobre a compra e, se possível, quem com-
não reflete o inter-relacionamento que existe prou, chegar aos demais agentes do merca-
entre os dados nem as regras de consistência do, mais rapidamente estes atores poderão
que explicitam estes inter-relacionamentos se preparar para as conseqüências desta
(GUIMARÃES, 2003:20). transação. Em situações como estas somente
Chamadas entre os especialistas de regras o controle automático da concorrência, que
de negócio, tais regras podem, em alguns impede a continuidade de ações contraditó-
casos, ser simples como, por exemplo, reque- rias, tão logo um dado seja computado pelo
rer que a Lista das fontes que fazem parte sistema, pode garantir que o jornalismo
dos contatos do Editor de Esportes esteja acompanhe o ritmo deste tipo de transações,
contida na Lista Global de fontes mantida pela sem correr o risco de divulgar informações
Intranet da organização jornalística e na Lista inconsistentes. No século passado, quando da
de Fontes preferenciais do Editor Chefe. Em vinculação das transações na Bolsa de
outros casos, as regras podem ser mais com- Mercadorias às informações difundidas pelas
plexas, quando envolvem relacionamentos redes de telégrafo eliminou as diferenças entre
entre fontes, repórteres de distintas editorias, diferentes praças financeiras, para manter o
editores, colunistas, colaboradores e cronistas, controle do mercado remoto, a Bolsa de Nova
por exemplo, refletindo formas complexas e York decidiu estabelecer uma diferença de
específicas de gestão da informação e de 30 segundos em relação ao fechamento da
relações entre diversos profissionais envolvi- Bolsa de Boston.
dos no processo de produção de conteúdos Um lapso de tempo a uma só vez es-
em uma organização jornalística. sencial para o processamento quase que
Ao contrário das antigas coleções de totalmente mecânico das informações e
arquivos em que as informações são colo- necessário para que se especulasse, compran-
cadas uma a uma, uma Base de Dados do ou vendendo uma mercadoria que poderia
relacional possui uma característica, a sequer estar mais disponível. Neste começo
atomicidade, que estabelece a dependência de novo milênio, em que o tempo entre o
de que certas operações sobre os dados devem fechamento das transações e sua divulgação
ser feitas de forma conjunta e indivisível para pode ser de somente 15 segundos, mais que
preservar a consistência do sistema, mesmo nunca, a redução das inconsistências na
na presença de falhas no equipamento ou na produção das informações jornalísticas em
comunicação com a base de dados (GUIMA- tempo real fica atrelada ao desenvolvimento
RÃES,2002:21). Por exemplo, a partir de um de bancos de dados capazes de fornecer de
terminal remoto um repórter atualiza os forma automática os resultados destas mo-
resultados da rodada do campeonato nacio- vimentações dos agentes econômicos aos
nal de futebol. Seria inaceitável que, após jornalistas.
a atualização do resultado de um determi- Quando um raio X instantâneo da situ-
nado jogo, uma falha na comunicação ou no ação aparece como uma exigência prévia para
sistema impedisse uma atualização automá- uma intervenção inteligente em um sistema
tica dos demais dados do sistema envolven- de ações complexas e interligadas, talvez um
do os times ou mesmo os atletas relaciona- dos requisitos mais elementares de uma Base
dos com o dado alterado antes. de Dados que serve a uma organização
O funcionamento de uma Base de Dados jornalística seja a disponibilização confiável
de uma organização jornalística que opera nas e ininterrupta das informações aos usuários.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 303

A Base de Dados deve ser segura o sufici- Coube ao russo Lev Manovich o
ente para, em caso de falta de energia ou pioneirismo na demonstração de como os
de uma falha operacional, ativar de forma trabalhos de multimídia são compatíveis com
automática dispositivos de segurança capa- a forma cultural das Bases de Dados como
zes de colocar em funcionamento servidores modelo para a estruturação dos conteúdos
de reserva, garantindo a alimentação contí- apresentados. Para fins didáticos, no livro The
nua de informações que possibilita a inter- Language of new media, Manovich opta por,
venção dos atores sociais nos diversos sis- no primeiro momento, contrapor as formas
temas econômicos, políticos ou sociais. Se culturais da Narrativa e da Base de Dados.
o dispositivo de segurança for insuficiente, Somente ao final do capítulo que trata deste
a Base de Dados jornalística deixa de cum- tópico específico, Manovich defende a com-
prir com a função de retroalimentar o sis- patibilidade entre a noção do Banco de Dados
tema, o que pode comprometer a com uma forma de estruturação de informa-
racionalidade de todas as ações. ções e como um suporte para novos modelos
Até aqui vimos as especificidades das Bases de narrativa multimídia. Para Manovich os
de Dados e as suas possíveis aplicações como jogos de vídeo, por exemplo, são experimen-
uma forma cultural que estrutura os sistemas tados pelos usuários como narrativas enquanto
de produção de conteúdos das organizações que uma variedade de produtos – de CD-
jornalísticas. A compreensão das empresas ROMs a Sítios Web – o são como Bases de
jornalísticas enquanto organizações complexas Dados:
que obedecem etapas previamente programáveis
exige a aproximação das teorias do jornalismo “Thus, in contrast to a CD-ROM and
da ciência da computação. No próximo tópico Web database, which always appear
veremos como a computadorização da cultura arbitrary because the user knows
provoca a gradual reformulação das práticas additional material could have been
comunicacionais, que passam a adotar concei- added without modifying the logic, in
tos e lógicas oriundas do reino dos computa- a game, from the user’s point view,
dores. all the elements are motivated (i.e.,
their presence is justified)”
2. Base de Dados como suporte para (MANOVICH, 2001:220).
narrativas
Como se trata de uma lista seqüencial de
Naturalmente, nem todas as organizações elementos separados (blocos de textos, ima-
jornalísticas estão estruturadas como sistemas gens, vídeo clips e links), uma página web
de Bases de Dados complexas. Seja do ponto encarna uma lógica similar a dos Bancos de
de vista da gestão das informações, seja do Dados. A natureza aberta da Web a trans-
ponto de vista do armazenamento e recupe- forma em um meio incompleto e em per-
ração dos dados e, sobretudo, como um manente crescimento. (MONOVICH,
suporte para novos modelos de estruturação 2001:221). Na comparação preliminar que faz
de narrativas. Uma situação que antes de ser entre as duas formas culturais, Manovich
surpreendente chega a ser corriqueira na caracteriza a Base de Dados como uma lista
história dos meios de comunicação, como desordenada de itens, enquanto que a Nar-
relata Gosciola: rativa aparece definida como uma trajetória
de causa e efeito entre eventos, aparentemen-
“A arte de contar histórias é uma qua- te, desordenados. Se levássemos ao pé da letra
lidade por vezes deixada em segundo a conclusão que Manovich extrai desta dis-
plano quando uma nova técnica ou tinção parece que haveria pouco espaço para
uma nova tecnologia surge. No co- o desenvolvimento de nossa hipótese de Base
meço do cinema, as histórias eram de Dados pode servir como suporte para o
muito mais simples e rudimentares até desenvolvimento de narrativas multimídia:
se comparadas às histórias apresen- “...database and narrative are natural enemies.
tadas pela literatura da mesma época” Competing for the same territory of human
(GOSCIOLA, 2003:19). culture, each claims an exclusive right to
304 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

make meaning out of the world” conceito clássico de Narrativa quanto com
(MANOVICH, 2001:225). Mas, logo adian- o de Banco de Dados, pode-se incorrer no
te, o próprio Manovich inverte por completo equívoco de considerar uma sequência de
a situação, quando assume que, por detrás registros arbitrários de uma Base de Dados
das aparências, todos os novos meios são como uma Narrativa. Nada menos aconse-
Bases de Dados: lhável. Como sabemos, para receber a eti-
queta de Narrativa um objeto cultural deve
“In general, creating a work in new satisfazer uma série de critérios como ter um
media can be understood as the narrador, ao menos um ator, e uma história
construction of an interface to a com uma seqüência de eventos causados e
database. In the simplest case, the experimentados pelo ator.
interface simply provides access to the Na verdade, por mais que o caráter
underlying database” (MANOVICH, multifacético da Base de Dados possa au-
2001:226). torizar pensar o contrário, na cultura dos
computadores, mesmo que compatíveis um
Na era dos computadores, defende com o outro, Narrativa e Base de Dados
Manovich, a Base de Dados acaba se tor- mantém cada um seu próprio status:
nando a forma cultural que estrutura todo o
processo criativo, considerando que um objeto “In new media, the database supports
da nova mídia consiste de uma ou mais a variety de cultural forms that range
interfaces a uma Base de Dados de material from direct translation (i.e., a database
multimídia. Quando caracteriza a Base de stays a database) to a form whose
dados como a forma cultural que permite logic is the opposite of the logic of
quase que todo o processo criativo na era the material form itself – narrative.
dos computadores, Manovich percebe que More precisely, a database can support
mais interessante que contrapor Narrativa a narrative, but there is nothing in the
Base de Dados, para a exata compreensão logic of the medium itself that would
dos processos culturais em curso, talvez seja foster its generation” (MANOVICH,
mais conveniente redefinir o conceito clás- 2001:228).
sico de Narrativa:
Logo, como acentua Manovich, nada
“The “user” of a narrative is traversing menos surpreendente do que a relevância
a database, following links between alcançada pelas Bases de Dados no território
its records as established by the das novas mídias. No parágrafo final deste
database’s creator. An interactive tópico Manovich apresenta uma pergunta: por
narrative (which can be also called a que a narrativa todavia existe nas novas
hypernarrative in an analogy with mídias? A solução do enigma, cremos, tenha
hypertext) can then be understood as sido colocada pelo próprio Manovich: sim-
the sum of multiple trajectories plesmente porque a Base de Dados pode
through a database. servir de suporte para o desenvolvimento de
diferentes modelos de Narrativa multimídia.
A partir desta nova definição proposta por Mas, se apesar da compatibilidade com a
Manovich, antes da Base de Dados aparecer Narrativa nada nesta forma cultural promove
como o responsável pelo epitáfio da Narra- a sua geração espontânea, como podemos
tiva clássica, ao contrário, o caráter constatar pelo escasso uso destes recursos no
multifacético desta forma cultural, permite caso que mais nos interessa neste estudo, as
que a Narrativa linear convencional seja organizações jornalísticas, o que deveria ser
incorporada como uma das possíveis feito para melhor aproveitar as
trajetórias escolhidas pelo usuário dentro de potencialidades das Bases de Dados como
uma hipernarrativa. Mas, justo pelo fato do suporte para criativos modelos de narrativa
Banco de Dados como forma cultural apre- multilinear e multimídia?
sentar um caráter multifacético, que torna Em primeiro lugar, deveríamos ter claro,
pouco recomendável operar tanto com o como aconselha Roland De Wolk, que contar
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 305

uma história multimídia é diferente de tudo empresas. Uma opção que talvez seja uma
o que se faz nos meios convencionais porque possível consequência do senso comum das
a história é construída de diversas maneiras redações que defende que o jornalismo deve
e considera diferentes pontos de vista (De cuidar da cobertura do presente, cabendo o
WOLK, 2001:126). Em segundo lugar, de- tratamento da memória social à História. Nada
veríamos compreender que, afora os compo- mais equivocado, como veremos ao longo
nentes econômicos, culturais ou políticos, a deste tópico.
plena utilização das Bases de Dados como No mundo das redes digitais a memória
espaço para novos modelos de narrativa antes de refletir um passado morto, apresenta
depende, ao menos, de dois fatores: 1) do parâmetros para aumentar o coeficiente de
desenvolvimento de programas de autoração previsão no fluxo ininterrupto de circulação
compatíveis com as necessidades das orga- de notícias:
nizações jornalísticas e 2) da capacitação de
profissionais para contar de forma apropri- “O cenário emergente da cultura das
ada às reportagens publicadas. redes exige que cada organização jor-
nalística assuma a função de articular
3. A Base de Dados como memória no um sistema orgânico de saberes, aban-
jornalismo digital donando a metáfora do arquivo como
um depósito de registros do passado,
Se gravar e arquivar o nosso passado uma fonte auxiliar de pistas para re-
parece uma obsessão para a lógica da cultura portagens e um guia para o trabalho dos
e da técnica contemporâneas, impregnando jornalistas”, (MACHADO, 2002:54).
não somente o processo coletivo, mas a vida
cotidiana, os modos de pensar e as convic- Para cumprir com a nova função toda
ções pessoais, por que tão poucas organiza- organização jornalística deve adotar a forma
ções jornalísticas estão estruturadas na forma de uma Base de Dados complexa, que sirva,
de Bases de Dados complexas? Um fato mais como vimos, de estrutura para a organização
estranho quando se sabe que desde os anos das informações, de suporte para composi-
1980 a Base de Dados funciona como es- ção de narrativas multimídia e, acima de tudo,
trutura para armazenar notícias no permita a atualização constante da memória
organograma das organizações jornalísticas. armazenada.
Um serviço a mais que oferecia aos usuários Neste caso, deveríamos inverter o pos-
externos textos memorizados, artigos do tulado aristotélico que privilegia a mnémè,
próprio jornal ou de outras fontes. O The New centralizando o processo de preservação do
York Times Information Bank, por exemplo, passado na correta impressão da memória,
reunia um total de três milhões de documen- para recuperar a função da anámnèsis, en-
tos na metade dos anos 80 (COLOMBO, carregada de ativar o passado de acordo com
1991:26). as demandas do presente. Enquanto persistir
Ora, talvez tenhamos que voltar a dis- a tradição mnemotécnica fundada pela retó-
tinção feita entre mnémè e anámnèsis por rica a lógica do arquivamento nas organiza-
Aristóteles no De Memória et Reminiscentia ções jornalísticas, incluindo as digitais, es-
para compreender os motivos da falta de tará vinculada à capacidade de armazenar os
potencialização das organizações jornalísticas dados corretamente, ficando a atualização da
na forma de Bases de Dados. Para Aristóteles memória em plano secundário. “O ato de
a primeira faculdade consiste na simples recuperar a informação não é nada além de
conservação do passado, enquanto que a uma consequência direta que põe em ação
segunda possibilita a sua ativação mais a vontade do que a competência do
(COLOMBO, 1991:17). Até aqui a vocação usuário” (COLOMBO, 1991:33). Ao usuário
para a memória que permeia a cultura e a cabe eleger numa tela o conjunto de seleções
evolução tecnológica ao conceber o arqui- possíveis para aceder de forma remota aos
vamento jornalístico como conservação do dados disponibilizados, sem possibilidade de
passado favoreceu que o arquivo ocupasse colaborar para incrementar a complexidade
uma função marginal no organograma das da Base de Dados.
306 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

A manutenção da lógica arquivística nas datas, por exemplo. Para que o princípio da
organizações jornalísticas digitais contraria as transcodificação seja aplicável ao jornalismo
características da memória no ciberespaço digital, a Base de Dados deve servir tanto
porque mantém um processo individual e como um espaço para a experimentação de
centralizado de produção. Em contrapartida, formas diferenciadas de narrativa multimídia,
Palacios (2002:22) considera que a memória quanto como uma fonte de atualização do
no jornalismo digital seja ao mesmo tempo presente vivido à luz da memória armaze-
múltipla, instantânea e cumulativa. Se esti- nada.
vesse estruturada como um Banco de Dados O primeiro requisito para constituir uma
a organização jornalística poderia incorporar estética própria para as organizações
tanto os usuários no sistema de produção jornalísticas nas redes digitais passa por
quanto reutilizar de forma instantânea os perceber que nas novas mídias os elementos
fundos documentais armazenados. Como o constitutivos da narrativa são formatados
atual modelo de utilização da memória como Bases de Dados. Mais que lamentar
desconsidera as lógicas estruturantes do que, até agora, a Base de Dados, tenha
ciberespaço, os arquivos das organizações contado tão pouco como estrutura fundadora
jornalísticas são relegados a uma situação das diversas relações estabelecidas dentro das
marginal na economia produtiva das empre- organizações jornalísticas, deveríamos iden-
sas, seja no processo de produção dos con- tificar as verdadeiras causas deste
teúdos, seja como espaço para testar formas descompasso. Afinal, se nossa hipótese es-
diferenciadas de captação de recursos. tiver certa, o futuro das organizações
O formato padrão do arquivo jornalístico, jornalísticas nas redes, permanece condici-
concebido como um apêndice da organiza- onado a capacidade que teremos de traduzir
ção, ordena o passado como um retrato fixo as habilidades potencializadas pelos Bancos
e imóvel no tempo, enquanto que a verda- de Dados para automaticamente armazenar,
deira força do passado, como diz Pedro Nava, classificar, indexar, conectar, buscar e recu-
vem da multiplicidade e da simultaneidade perar vastas quantidades de dados em tipos
como são organizadas as lembranças para criativos de narrar o passado imediato como
atender as demandas do presente. “As recor- se fosse um presente projetado em direção
dações, sempre contraditórias, vão e vem ao futuro (GOMIS,1991:32).
segundo as solicitações da realidade atual, A estruturação dos modelos de produção
sempre efêmera e em constante negociação de conteúdos jornalísticos como Bases de
seja com o passado, seja com o futuro” Dados representa um esforço para adaptar as
(NAVA, 2000:213). Quando organiza o sis- organizações jornalísticas as características
tema de produção de forma independente da dos sistemas de memorização contemporâ-
memória armazenada, fica difícil para a neos. Na atualidade, a transferência da res-
empresa jornalística cumprir com sua função ponsabilidade de arquivar o passado para os
de estabelecer uma mediação entre passado grandes sistemas sociais de memória – como
e futuro, dando ao usuário a sensação de que, as organizações jornalísticas – revela uma
por viver em um presente contínuo, pode progressiva exteriorização das lembranças in-
controlar o futuro (GOMIS, 1991:33). dividuais e sociais. Uma exteriorização, ao
A plena incorporação pelas organizações menos se consideramos os modelos de ar-
jornalísticas da lógica dos Bancos de Dados quivamento nas organizações jornalísticas,
depende da utilização casada das funções de contraditória: de um lado, considera-se que
modelo de estruturação da informação, es- o individuo deveria confiar cada vez menos
paço para criação de narrativas e lugar para na capacidade pessoal de rememoração dos
ativação da memória. Como um simples fatos porque se encontra no centro de um
arquivo do conteúdo das publicações passa- sistema de redes informativas, enquanto, de
das, mesmo que organizada na forma de uma outro, nos sistemas sociais de memorização,
Base de Dados, uma empresa jornalística incluindo os jornalísticos, cabe ao usuário,
continua oferecendo ao usuário um conjunto como bem define Colombo, atuar como
de itens isolados, como resultado de buscas coadjuvante no direito de usufruir de um
pré-estabelecidas por palavras-chave ou por passado morto (COLOMBO, 1991:119).
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 307

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308 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 309

Linguagens da informação digital:


reflexões conceituais e uma proposta de sistematização
Elizabeth Saad Corrêa1

“Nobody knows for sure how the new assumia o lugar central para que as discus-
interactive media will develop or how sões acerca da consolidação (ou não) de uma
they might shape the messages they nova mídia prosseguissem de forma sistemá-
deliver. We must make guesses about tica e acadêmica.
today, experiment with the new Por fim, ressaltamos que a configuração
technology, and try to understand desta comunicação também resulta das con-
how people will relate to it. But as tribuições de outras pesquisas relacionadas
we do, we have to be very sure about e integradas ao nosso tema central – a lin-
our purposes. The medium may affect guagem digital – desenvolvidas pelos pós-
the message, but the message comes graduandos do Núcleo de Jornalismo, Mer-
first. Just as with the use of marketing cado e Tecnologia da ECA-USP.
techniques, we have to know what we
want to say before deciding upon the 2. Conceitos, recortes e delimitações
best means of getting the message
through to the people we want to move A expressão “linguagens da informação
by it”. - Jack Fuller, jornalista. digital” que incluímos no próprio título deste
trabalho desencadeia, por si só, uma série de
1. Apresentação linhas de pensamento e campos do conheci-
mento que se entrecruzam para buscar uma
Desde o advento da World Wide Web uniformização do entendimento da expressão,
comercial, nos idos de 1992/93 e um pouco como a Teoria da Comunicação, a Semiologia,
mais tarde no Brasil, um dos aspectos mais a Arquitetura, a Informática, as Ciências da
discutidos tem sido a configuração de uma Informação e a Estética, entre outras.
linguagem informativa que explorasse os Evidentemente que tal amplitude foge aos
recursos tecnológicos inovadores trazidos propósitos de uma comunicação para um
pelos meios digitais – a hipermídia, e que simpósio e, portanto, optamos por delimitar
também preservasse as características ineren- e recortar os aspectos levantados, de forma
tes a cada especialidade midiática, a exem- a que pudéssemos apresentar coerência em
plo do jornalismo, da publicidade e dos meios nossas análises.
audiovisuais.
Nossas pesquisas, também iniciadas nos 2.1. As múltiplas visões da Linguagem
idos de 1992, inicialmente buscavam o en-
tendimento desta inovação tecnológica e o O primeiro recorte necessário refere-se ao
processo de sua absorção e utilização pelas conceito de Linguagem, com as devidas
empresas informativas2 e, conseqüentemen- precauções de não enveredarmos longamente
te, sua estratégia de viabilização empresarial para o campo dos estudos semióticos, sem
e consolidação como nova mídia para as qualquer vinculação aos meios digitais, um
empresas informativas3. O próprio processo de nossos objetos de investigação. Optamos
de pesquisa demonstrou, na medida em que aqui pela simplificação e pela objetividade.
acompanhávamos as criações, os modismos O professor Teixeira Coelho, da ECA-USP,
e o desenvolvimento da informação nos meios nos apresenta uma importante correlação entre
digitais, de que o trabalho de pesquisa lingüística e linguagem:
bastante aprofundado no campo da criação
de uma linguagem e definição de possibi- “A teoria linguística, cujo objeto de
lidades narrativas para a informação na web análise é a linguagem – que não deve
310 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

ser entendida como simples sistema verbal e sonora – constituem-se nas três
de sinalização mas como matriz do matrizes de linguagem e pensamento:
comportamento e do pensamento
humanos – tem por objetivo a formu- “a partir das quais se originam todos
lação de um modelo de descrição os tipos de linguagens e processos
desse instrumento através do qual o sígnicos que os seres humanos ao
homem enforma seus atos, vontades, longo de toda sua história, foram
sentimentos, emoções e projetos. Apre- capazes de produzir. A grande vari-
sentando-se assim a linguagem como edade e a multiplicidade crescente de
um dos fundamentos das sociedades todas as formas de linguagem (lite-
humanas, não era difícil prever que ratura, música, teatro, desenho, pin-
a teoria lingüística acabaria por ser tura, gravura, escultura, arquitetura,
solicitada a prestar conta do que etc.) estão alicerçadas em não mais
ocorria em outros campos gerados e que três matrizes. Não obstante a
sustentados por aquela matriz funda- variedade de suportes, meios, canais
mental: o campo da arte, da (foto, cinema, televisão, vídeo, jornal,
arquitetura, do cinema e do teatro, rádio, etc.) em que as linguagens se
da psicanálise, da sociologia e ou- materializam e são veiculadas, não
tras áreas. E mesmo sem convite ela obstante as diferenças específicas que
acabaria, simplesmente, invadindo elas adquirem em cada um dos di-
esses domínios”. (TEIXEIRA COE- ferentes meios, subjacentes a essa va-
LHO, 2001: 15-16) riedade e a essas diferenças estão tão-
só e apenas em três matrizes”.
Numa revisão mais ampla entre os di- (SANTAELLA, 2001: 20)
ferentes pesquisadores do tema, a exemplo
de SANTAELLA, 2001; CRYSTAl, 2002; Já nos focando mais diretamente no
MURRAY, 1997; CHAPARRO, 2001; jornalismo, seus signos no campo da lingua-
PAVLIK, 2001; BOUGNOUX, 1995; COS- gem pertencem predominantemente à lingua-
TA, 2000 e CHOMKY, 1998, pudemos gem verbal, aonde inserem-se o texto e a
restringir um pouco mais as relações exis- escrita. Os sistemas sígnicos imagéticos e
tentes entre linguagens e novas mídias e, mais sonoros, apesar de não predominantes, pas-
adiante neste texto, o jornalismo inserido sam a ganhar espaço quando recursos
nesse contexto. tecnológicos funcionam como facilitadores da
A grande maioria dos autores localiza a linguagem.
linguagem num sistema de eixos ou ainda Através de CHAPARRO podemos situar
de matrizes de pensamento. Todas estas um pouco melhor o jornalismo no campo das
formas de conceituação inserem a linguagem ciências da linguagem:
em relações intrínsecas com a própria língua,
com mensagens e conteúdos e, alguns ou- “mais no jornalismo do que em outros
tros, com as formas e os meios de recepção, campos da linguagem escrita, a cla-
os contextos culturais e as variáveis reza vai além das questões de estilo
tecnológicas. e das capacidades do talento indivi-
HJELMSLEV (apud TEIXEIRA dual de quem escreve. Jornalismo é
COELLHO, 2001: 35 a 40) apresenta cinco texto de consumo rápido, imediato,
traços sem os quais não se pode falar na nos circuitos sociais. E carrega con-
existência de uma linguagem: os dois eixos sigo as subjetividades e complexida-
– o texto e a língua; os dois planos – de des de um processo interlocutório
expressão e de conteúdo; as relações entre muito amplo e complicado. Uma
expressão e conteúdo; as relações entre notícia, mais ainda uma reportagem,
unidades lingüísticas e a não-conformidade. é produto da interveniência interes-
Já a professora Lúcia Santaella, numa sada de múltiplos sujeitos, alguns
vertente peirceana, desenvolve a hipótese de deles partícipes dos fatos, outros,
que apenas três tipos de linguagem – visual, intérpretes dos fatos. Nos próprios
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 311

limites das redações, vários jornalis- riações encontradas. [...] Neste livro,
tas atuam no percurso da notícia – optei por uma ‘aproximação inicial’,
nem sempre harmoniosamente. A utilizando o termo variety sem quais-
questão da clareza está, pois, condi- quer outras correlações situacionais
cionada pela complicação das vinculadas à linguagem. Algumas
interações”. (CHAPARRO, 2001: 195) vezes, irei utilizar gêneros inseridos
na variedade. Na literatura internet
As referências aqui citadas nos interpõem essa terminologia modifica-se bastan-
dois condicionantes na relação linguagem e te conforme as diferentes situações de
jornalismo: 1) a complexidade decorrente do internet, com por exemplo, ambien-
processo interlocutório, aonde uma sucessão te, espaços interativos e espaços
de variáveis e variantes vai ocorrendo ao virtuais”. (CRYSTAL, 2001: 6)
longo da construção da informação jornalís-
tica; 2) a utilização de recursos de estrutura 2.2. Expressividade informativa nos meios
narrativa que são próprios do jornalismo, digitais
como a recorrência a algumas estratégias
narrativas para seu discurso referencial4. O segundo recorte refere-se ao campo da
Caminhando para as chamadas linguagens informação jornalística disponibilizado nos
digitais vemos que a maioria dos conceitos meios digitais e, especialmente, na web.
em literatura apresentam a linguagem a uma Apesar das recentes e importantes pesquisas
relação interdependente entre informação, sobre o uso da web como espaço para
computador e redes de transmissão de dados. narrativas ficcionais e também visuais, que
Surgem a partir disto os termos multimídia, nos fornecem interessantes insights sobre a
hipertexto e hipermídia, que se incorporam configuração de uma linguagem digital, a
e, muitas vezes se misturam, ao que preten- informação jornalística é nosso foco acadê-
demos conceituar como linguagem digital. mico primordial.
Sabemos que ainda não existe consenso Desde os primórdios e também num
sobre estes três termos – multimídia, processo de similaridade e repetição do
hipertexto e hipermídia. É neste momento que ocorrido com as demais mídias – especial-
surgem misturas, redundâncias e/ou novos mente a exemplo do rádio para a televisão
conceitos entre mídia e suporte, entre infor- – se pergunta como as informações deveriam
mação e comunicação, entre autoria e se expressar no meio digital, mantendo suas
interação, entre outras possibilidades. características de base conceitual e, ao mesmo
Santaella destaca que “pós digitalização, a tempo, aproveitando os diferenciais exclusi-
transmissão da informação digital é indepen- vos das NIC – Novas Tecnologias de Infor-
dente do meio de transporte (fio do telefone, mação e Comunicação5.
onda de rádio, satélite de televisão, cabo)” Como destacamos no item anterior, o
(SANTAELLA, 2001:24). Assim, o termo jornalismo nos meios digitais defronta-se com
hiper incorpora-se à construção da lingua- os condicionantes de complexidade dos
gem digital, uma vez que se reporta a es- agentes de interlocução e a caracterização de
truturas complexas alineares da informação. um novo estilo narrativo. Novamente, esta-
Finalizando esta breve revisão dos aspectos mos diante de duas temáticas extensas e que
de linguagem apresentamos a visão de ultrapassam os propósitos deste trabalho.
CRYSTAL que defende, com a disseminação Apenas destacamos a condicionante narrati-
da internet, o conceito de language variety: va estamos nos referenciando à construção
de um estilo de linguagem verbal, sonora ou
“é um sistema de expressão lingüística visual. Se pensarmos na linguagem digital,
cujo uso é regido por fatores podemos pressupor que seu estilo narrativo
situacionais. [...] à medida em que deveria integrar as três matrizes de lingua-
se desenvolve uma lingüística para a gem através da utilização dos recursos
internet, serão necessários modelos tecnológicos chamados por Santaella de
cada vez mais sofisticados para “hiper” – o hipertexto e a hipermídia. Se-
abarcar todas os elementos das va- gundo exposição da professora Cristina Costa,
312 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

“as narrativas são maneiras de expres- ma. Em outra pesquisa desenvolvida por esta
sar e realizar nossa temporalidade, tor- autora verificamos que:
nando-a tão objetiva quanto a certeza
de nossa finitude e transitoriedade. São “Tempo e espaço perdem seus parâ-
metáforas constitutivas de ordenação, metros físicos de medição e passam
de ritmos e seqüências seriais e cau- a funcionar no tempo e no lugar de
sais. E se não são capazes de criar re- cada um de das respectivas interfaces
almente uma duração, criam ao menos conectadas por uma rede de sinais
uma ‘ilusão de duração’. Assim, as es- elétricos. Compreender estas diferen-
truturas narrativas são formas de es- ças pode parecer abstrato para es-
tabelecer modulações e durações, trategistas e publishers de mídias
arquitetando a temporalidade humana”. digitais preocupados com sua renta-
(COSTA, Cristina, 2000: 41) bilidade, mas dá sentido à noção de
‘levar a informação na hora certa,
Verificamos, portanto, que o aspecto no lugar apropriado e do modo que
temporalidade é elemento constituinte fun- o usuário quer’. [...] O sistema téc-
damental para a estruturação de narrativas nico atual é dominado pelo transpor-
que se utilizam da linguagem digital. Em te de informações entre computado-
assim sendo, ao pensarmos na informação res que, por sua vez, possuem a
jornalística expressada em linguagem nos capacidade de controlar tempo e uni-
meios digitais, há que se considerar as formizar as mensagens. O estado da
variáveis tempo e também lugar (ou espaço) técnica atual permite não só a
como integrantes diferenciais. unicidades dos tempos, mas principal-
Em extensa pesquisa realizada por Cristina mente a convergência dos momentos,
Costa na ECA-USP (2002), embora focada nas não importando o estado físico e
narrativas ficcionais na web e suas possibili- concreto de pessoas e lugares. A
dades de interlocução e intervenção dos usu- possibilidade de deslocamento sem
ários, a professora identifica duas variáveis sair do lugar, de estar no fato, opinar
importantes: a primeira é o tempo narrativo sobre ele e trocar experiências sem
vinculado ao fato/tema, geralmente preservado sequer sair diante da tela de um
na interlocução e interação com o usuário como computador reposiciona a informação
forma de orientação e preservação do discurso; digital. Estaríamos diante de um novo
a segunda variável é o espaço/cenário narra- espaço?” (SAAD, 2003: 234-236)
tivos que proporcionam um sentido de lugar
e localização dos protagonistas dos fatos. Resumindo, a estruturação de estilos
Tais resultados de pesquisa, acrescidos de narrativos para o jornalismo, utilizando-se da
autores que também tratam extensivamente linguagem digital (embora ainda não total-
do tema, a exemplo de Manuel Castells mente conceituada e configurada), passa pelos
(sociólogo), Milton Santos (geógrafo), aspectos da complexidade, da utilização dos
William Mitchell (arquiteto) – humanistas que recursos “hiper” e de uma adequação de
têm em comum a preocupação com o ho- temporalidades e espcialidades. Tudo isso,
mem numa sociedade em mutação – nos sem deixar de lado os preceitos fundamen-
colocam uma segunda pressuposição para a tais dos valores-notícia e da ética jornalís-
sistematização de uma linguagem digital tica. Fechando com mais outras variáveis, a
voltada às informações jornalísticas: as exemplo das vinculadas aos aspectos de
variáveis de tempo e espaço como qualita- viabilização econômico-financeira e comer-
tivas neste processo de sistematização. cial da narrativa jornalística na web: susten-
Mundo digital e sociedade da informação tabilidade, lucratividade e oportunidade.
vêm atrelados à percepção coletiva de um
mundo onde tudo muda muito rápido, uma 3. A práxis da narrativa jornalística na web
sociedade em que as relações se estabelecem
sem a necessidade da presença física, em que Se considerarmos os primeiros sites in-
a eliminação das distâncias parece ser nor- formativos na World Wide Web, no Brasil
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 313

e também no exterior, vimos surgir, desapa- nirem seus projetos editoriais, esses
recer e ressurgir uma série de propostas portais criaram um compromisso com
narrativas nos meios digitais de comunica- a atualização permanente, uma abor-
ção que, se olhadas em conjunto ou também dagem conectada a uma idéia que
como um processo evolutivo, ainda não se define o meio como difusor de infor-
constituem numa práxis consolidada para a mação, mais do que formador de
informação digital. opinião. [...] em redações que funci-
Tomando por base o ambiente das onam 24 horas, 7 dias pode semana,
redações jornalísticas brasileiras que possu- a periodicidade passou a se confundir
íam/possuem produtos ou serviços na web, com instantaneidade”. (MARTINEZ,
poderíamos descrever um processo de “on- 2003: 99)
das sucessivas”:
a) a disputa inter-sites sobre a prioridade Um segundo aspecto a ser discutido como
de veiculação da informação, às vezes por práxis narrativa do jornalismo na internet
diferença de segundos: “qual site deu pri- brasileiro é o surgimento do “jornalista
meiro?”; b) a “normatização” de notícia em empacotador”, e aqui a pesquisa desenvol-
textos curtos e sucessivos como forma de criar vida pela professora Pollyana Ferrari Teixeira,
para os usuários sensações de “atualidade e que avaliou os portais UOL, Globo.com e
tempo real”; c) o conseqüente empilhamento Terra, constatou que,
da sucessão do fluxo noticioso; d) a trans-
posição pura e simples da informação “o caminho percorrido pela notícia,
construída para narrativas em meios impres- desde o seu surgimento na reunião de
sos para o meio digital; a utilização do recurso pauta, ou mesmo no momento em que
“enquetes” como ferramenta de o repórter ou o editor acessamos oa
“interatividade” na relação usuário – site; e) sites das agências de notícias, até a
um processo de repetição das narrativas sua publicação na internet demora,
verbais nas propostas de inclusão de links muitas vezes dez minutos. Por isso,
sonoros e/ou de imagens (fotos, vídeos), na no jargão jornalístico ‘empacotar a
intenção de incrementar a narrativa com re- notícia’ significa editar um material
cursos multimídia; f) a febre do “linkalism”6 que já está praticamente pronto”.
criando hiperlinks vinculados à publicidade (TEIXEIRA, 2002: 92)
e não ao conteúdo editorial; o atual predo-
mínio dos sistemas-robôs de inserção de O predomínio dos softwares ou siste-
notícias compradas em fluxos ou pacotes das mas publicadores também surge como uma
grandes agências noticiosas globais; g) uma práxis já bastante comum. Tais sistemas
perigosa tendência em substituir narrativas ultrapassam a condição de publicadores de
não lineares e navigacionais por versões em fluxos. Eles permitem uma pré-programação
formato PDF de conteúdos de suportes tra- para a publicação de conteúdos, automati-
dicionais. zando rotinas em horários de menor audi-
Destacamos, primeiramente, o aspecto dos ência, madrugadas e finais de semana; além
ritmos de publicação de informações notici- de algumas versões possuírem características
osas. Adriana Garcia Martinez, em sua dis- de agentes buscadores para rastrear os fluxos
sertação de mestrado, na qual descreve o das agências noticiosas através de palavras-
processo de constituição da narrativa jorna- chave.
lística no Portal IG, afirma: Ainda nesta etapa de levantamento de
questões, a professora Maria Regina Cardeal
“como vimos, dos ritmos possíveis de desenvolveu para sua tese de doutoramento
publicação pela internet, o que pa- uma metodologia que combina aspectos
rece ter sido mais utilizado pelos qualitativos e quantitativos para verificar a
portais brasileiros é o do tempo presença (em termos de importância edi-
urgente. Muito rapidamente percebeu- torial) e a freqüência do fluxo noticioso
se no Brasil que atualização constan- nos portais brasileiros, levando-se em
te é sinônimo de audiência. Ao defi- consideração as dificuldades de acesso ao
314 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

texto noticioso que, por conta da arquitetura que “interessam” ser vendidas mais rapidamen-
de multiplicação de links adotada por todos te. Não é o caso das notícias nos portais.
os portais, acaba fixando o usuário na leitura Segundo as conclusões das pesquisas de
das manchetes da lista atualizada minuto a TEIXEIRA, as informações temáticas e a
minuto (ver Quadro 1, página seguinte). prestação de serviços são as molas propulsoras
Referindo-nos aos aspectos qualitativos dos três portais analisados. Quantitativamente,
desse quadro, a pesquisadora definiu as seguin- através das páginas acessadas e registradas, foi
tes variáveis, com base na análise do dis- possível constatar que 99% do dia-a-dia destas
curso: globalização da notícia, cujo critério redações concentra-se em informações e pres-
foi o foco territorial de abrangência temática tação de serviços, e apenas 1% para o tradi-
– global ou local; características do noticiário cional fazer jornalístico.
– valor do conteúdo, predominância temática, Esta breve amostragem de resultados já nos
design do portal; e a relação notícia-tecnologia, aponta para um cenário de não sistematização
critério voltado para a exploração da hipermídia das atividades de uma redação estruturada para
(ver Quadro 2, página seguinte). os meios digitais que, em última instância, é
Mais um recorte de análise foi desenvol- o locus do desenvolvimento da narrativa di-
vido na mesma pesquisa conduzida pela gital. Tal cenário nos dá sustentação para apontar
professora Pollyana: a prática da usabilidade7 dois pontos-chave: a necessidade de transfor-
como forma de estimular o acesso a notícias mação do perfil profissional; e os aspectos de
nos portais por ela selecionados. Tenta-se, estratégia de empreendimentos informativos
aqui, estabelecer a relação entre conteúdo que, por conta de decisões de investimento e
e usabilidade através do cruzamento das modelo de negócios.
seguintes variáveis: acesso às homepages nos Pelo lado da transformação do perfil
horários de maior audiência; público-tipo; profissional, a pesquisa de MARTINEZ
oferta de conteúdos informativos. sugere como possíveis reposicionamentos: a
A pesquisadora levantou uma amostragem absorção do conceito de media literacy 8,
de 75 telas das homepages dos portais Terra, cunhado por KELLNER (2001); uma
UOL e Globo.com, na proporção de 25 telas consequente transição do papel de filtrador
por marca, avaliando os espaços reservados da realidade para um novo e desconhecido
à cobertura jornalística, ao comércio eletrônico, papel de agregador.
bate-papo, comunidades, etc. Algumas de suas Pelo lado do custo-benefício do
conclusões foram bastante significativas: determinismo tecnológico que a pesquisa re-
a) a grade de atualização das primeiras centemente publicada desta autora propõe à
páginas dos portais assemelha-se muito com empresa informativa e seus profissionais ain-
as grades de programação de televisão; b) da estão em gestação as tarefas de criação de
os portais analisados apresentam um conjun- fortes vínculos com os usuários do mundo
to de “conteúdos-âncora”: ferramenta de digital. É um processo de re-aprender a
busca, bate-papo, canais de conteúdos reutilizar sua própria produção de informação,
temáticos, comércio eletrônico, comunidades, aproveitar todo os materiais de captação, a
discos virtuais, e-mail, esportes, hospedagem armazenar o que antes era jogado fora se não
de páginas pessoais, jogos, tempo e notícias; publicado, a potencializar com recursos
c) a informação textual preencheu quase a tecnológicos o que antes era estático, a com-
totalidade das telas com resolução 800x600 preender a informação como um conjunto re-
pixels; quase sempre as chamadas noticiosas organizável de dados, imagens e sons que pode
e as fotos nas primeiras páginas dos três ser estruturado (através de narrativas especí-
portais são as mesmas ao longo dos diferen- ficas) adequadamente para qualquer mídia,
tes picos de audiência; d) de forma fixa ou incluindo as tradicionais. (SAAD, 2003: 78)
intermitente portais apresentam atrações
multimídia na homepage; as ofertas de in- 4. Reflexões e algumas propostas
formação ficam expostas numa espécie de
metáfora do hipermercado: o que é exposto Podemos sugerir, a partir destas primeiras
na altura dos olhos pelas gôndolas são as marcas pesquisas que os caminhos para reformular o
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 315

Quadro 1
Sumário quantitativo da cobertura de um dia nos portais UOL,
Estadão.com e Globo.com (Setembro 2000)

UOL ESTADÃO GLOBO.COM


Total de notícias 155 – cerca de
582 – cerca de 60/hora 190
publicadas 6,46/hora
Notícias identificadas
O veículo não O veículo não
como exclusivamente 163, com AFP e
identifica no título a identifica no título a
de fontes de agências Reuters na liderança
procedência da notícia procedência da notícia
internacionais
Notícias identificáveis
como de fontes
199 19 57
externas sem a
publicação do crédito
Foco em notícias de
166 21 6
esportes (1)
Foco em notícias
212 08 129
sobre o Brasil (1)
Foco em notícias
204 26 55
globais (1)
Foco em Economia (2) 180 35 78
Foco em Política — 63 51
Fonte: CARDEAL, 2003: 199; 203; 205
(1) Notícias provenientes tanto de fontes externas identificadas ou não como também de produção própria, com
cruzamentos temáticos entre as categorias (duplicidade na contagem)
(2) Notícias provenientes tanto de fontes externas identificadas ou não como também de produção própria, com foco
exclusivo

Quadro 2
Sumário da análise do noticiário nos portais UOL, Estadão.com, Globo.com
Período – Agosto a Setembro 2000

Aspecto
Primeiras conclusões
qualitativo
UOL: predomínio das notícias “globalizadas
Globalização Globo: predomínio das notícias locais
da notícia Estadão: aparente preponderância das notícias locais
Uso intensivo de traduções das agências internacionais
Tendência à homogeneização
Primazia para notícias com valor de mercado
Economia predomina á política editorial e em design
Maior espaço de cobertura a eventos globais
Características
Aparente equilíbrio entre global-padronizado e local-segmentado para
do noticiário
notícias de caráter trágico-espetacular
Estrutura gráfica e editorial interlia, nessa ordem de importância, aos
seguintes esforços: a) atrair público; b) fixar uma marca; c) obter receita e,
d) oferecer conteúdo.
Profusão de repetições de notícias por problemas técnico-editoriais
Lista de temas múltiplos e sucessivos confere peso semelhante a
Tecnologia informações de temas e importância diversos
Pouca informação visível para o uso do hipertexto ou da interatividade
Nova mídia não dá origem a um novo gênero jornalístico.
Fonte: CARDEAL, 2003: 280
316 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

atual status da narrativa jornalística na web rias nas estruturas das redações e também
brasileira se entrecruzam obrigatoriamente na da cadeia de valor da indústria da informa-
busca de uma narrativa adequada à linguagem ção e, por fim um realinhamento das rela-
proposta pelas mídias digitais. Para isso, há ções inter e intra empresas informativas,
que se assumir como linha de pensamento e jornalistas, os diferentes públicos: leitores,
valores que hoje a World Wide Web é a mais fontes, concorrentes, anunciantes e governo.
recente mídia que se incorpora aos demais (PAVLIK, 2001: xii)
meios de comunicação. Com tal status, en- Ramón Salaverría, Diretor do MMLab
tramos no campo da linguagem: um meio que (Mídia Lab) da Universidade de Navarra, na
possibilita a produção de sentidos e signifi- Espanha, propõe uma matriz de construção
cados para o individual e também para o narrativa baseada em células informativas:
coletivo. Sentidos e significados só são
traduzidos através de especificades narrativas “...se os tipos de narrativa jornalís-
que tipificam o meio. tica funcionam de fato como unida-
A vertente que expusemos desemboca na des estruturais de sentido dentro dos
emergência de formas narrativas para a web que gêneros jornalísticos tradicionais,
contemplem a informação jornalística em seus salta aos olhos sua utilidade como
diferentes gêneros e expressões. Tema centro de critério para decompor os mesmos
atenções constantes de pesquisadores como textos em conjuntos orgânicos inter-
MURRAY, PAVLIK, CRYSTAL, SALAVER- ligados pelo hipertexto. [...] a mesma
RÍA, COSTA, CHAPARRO, FULLER, entre informação poderia se decompor em
muitos outros, dos quais destacamos: unidades textuais e infográficas de
O jornalista Manel Carlos Chaparro, sentido pleno, distribuídas em diver-
aponta para o desaparecimento da perio- sas matérias correlacionadas em
dicidade e pela “mutação genética”9 do função de seus conteúdos. [...] tal
jornalismo no meio digital, tornando-se ele- estrutura não pode ser considerada
mentos desestruturante das rotinas narrativas: como fechada, mas sim como um
conjunto de elementos conectados
“Tocamos, assim, numa das variáveis pelo hipertexto cujas partes seria di-
mais interessantes e instigantes da tadas de rolar dos acontecimentos
crise que a tecnologia criou no jor- a cada caso. (SALAVERRÍA, 1999)
nalismo diário: o desaparecimento
daquele histórico intervalo chamado Já enveredando por formatos para esta
periodicidade, que organizava a narrativa integradora de recursos temos as
atualidade e que poderíamos explicar contribuições de David Crystal que coloca
assim: as coisas aconteciam, eram aquilo que ele chama de “linguagem digital”
observadas, apreendidas e compreen- numa relação de interdependência às seguin-
didas, para o relato jornalístico do tes variáveis: as características físicas (tama-
dia seguinte. E assim era a vida, nho, tela, modo de conexão, etc) dos dis-
organizada em ciclos de 24 horas.” positivos de recepção e leitura dos conteú-
(CHAPARRO, 2001: 76) dos; a construção de uma pedagogia para o
uso da linguagem Internet, sugerindo inclu-
John Pavlik, professor do Center of New sive a sistematização dos termos usados em
Media, na Universidade de Colúmbia, NY salas de bate-papos e fóruns de discussão;
propõe que o uso das técnicas oferecidas pelas o ensino do uso de ferramentas de busca e
NIC abre espaço para novos formatos nar- a criação de toda uma nova pedagogia que
rativos que buscam envolver o usuário na abrigue tantas transformações. (CRYSTAL,
navegação por conteúdos mais 2001:227-242).
contextualizados. Para ele, tais inovações Crystal também afirma que uma das mais
provocam uma narrativa mais fluida. O significativas contribuições sociais da Internet
professor também chama atenção para algu- é o contínuo enriquecimento da linguagem,
mas condições para a mudança: uma chegando a posicioná-la como uma quarta
reciclagem na práxis, mudanças compulsó- matriz de linguagem – a Netspeaking:
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 317

“A linguagem é o coração da Internet uma narrativa jornalística no meio digital que


e o motor que aciona a característica aproveite eficazmente os recursos
de interatividade na rede. A Internet tecnológicos já disponíveis. Assim:
não é apenas um fato tecnológico; é • a narrativa jornalística digital deve
um fato social, com ressalta Tim preservar os mesmos valores éticos e
Berners-Lee; e a sua principal mo- editoriais da organização que a suporta;
eda de troca é a linguagem”. • a necessidade de um planejamento da
(CRYSTAL, 2001: 227-242) rotina redacional, incluindo preocupação
com usabilidade, usos de recursos avançados
Diante das colocações, podemos já infe- das ferramentas de busca ou de bases de
rir que qualquer delineamento acerca da dados proprietárias; estruturar as camadas
linguagem digital passa pela tipologia da informacionais cabíveis ao texto (ou as células
não-linearidade, ou também pelo que informativas no dizer de Salaverría);
LUNENFELD (2000: 10) chama de estética • a clareza de que a informação jornalís-
da infinitude10, tópicos determinantes pela tica na web assume completamente a es-
tecnologia dos ambientes digitais. tética da infinitude proposta por Lunenfeld,
Também nos parece necessária a discus- pois, ao longo do tempo cronológico, uma
são sobre as transformações nos processos determinada notícia vai “crescendo” e/ou se
de aprendizagem e cognição. Nossos proces- reconstruindo conforme os acontecimentos;
sos cognitivos e a grande maioria das • a transição da própria função do jorna-
metodologias pedagógicas de aprendizagem lista que, no dizer de Martinez, (2003: 137)
baseiam-se, ainda, em concepções positivistas “a maior parte do tempo, o jornalista faz é
e cartesianas, portanto lineares. Ainda vemos praticar um processo de tomada de decisões
uma infinitude de processos onde nosso que é excludente – a ‘angústia do filtro’”.
pensamento é levado a racionar numa linha Tal transição, na web exige do profissional
lógica de começo, meio e fim. À exceção um papel de “produtor de correlações”,
da pedagogia construtivista. oferecendo aos usuários opções de constru-
Não por acaso, vemos cada vez mais a ções de sentidos através da aplicação adequa-
aproximação entre o construtivismo e os da dos recursos como links, linhas do tempo,
desenvolvimentos tecnológicos que possibi- recuperação de arquivos, etc.;
litarão a constituição da linguagem digital. • como consequência, o produtor de cor-
Autores como Simon Pappert, Marvin Minsky relações teria um perfil de formação mais ge-
e Walter Bender exploram essa vertente. neralista, amplitude intelectual e cultura e ex-
Assim, antes da constituição de uma quarta periência na profissão. Decorre disso, uma
matriz, é fundamental a transição para modelos revalorização dos profissionais de idade
pedagógicos e processos cognitivos que pos- mais madura;
sibilitem a concepção de uma linguagem in- • por fim, a narrativa jornalística digital
tegrada onde, verbal, sonoro e visual se con- deve também incorporar as características de
cretizem em narrativas e formas discursivas multilinguagem, discutidas ainda nos anos
naturalmente assim concebidas. Evidentemen- 1990 pelo professor Júlio Plaza, onde o texto
te, falamos de um processo lento e longo, onde passa a incorporar a iconização do verbal-
as futuras gerações, sempre as mais envolvidas escrito, automações parciais de inclusão de
em ambientes digitais terão a capacidade ine- textos, e a crescente utilização de expressões
rente de concepção de conteúdos integrados. pictóricas como grafites, logotipos e
Por ora, ainda temos de nos concentrar emoticons, por exemplo.
em propor melhorias e adequações para As conclusões das pesquisas de campo
promover o uso da não-linearidade, cuja apresentadas ao longo deste texto, acrescidas
cognição ocorrerá conforme processo das reflexões finais nos leva a considerar que
associativo de signos de cada indivíduo. ainda o campo de pesquisas e experimenta-
Portanto, encerramos estas reflexões desta- ções em construções narrativas para o jor-
cando alguns aspectos, procedimentos e nalismo nos meios digitais ainda tem um
atitudes que, no contexto ambiental do meio longo caminho a percorrer. Mas, de fato, suas
informativo brasileiro, possam contribuir para bases já estão alicerçadas.
318 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia Pavlik, John V. Journalism and new


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information age. Chicago: University of referencial do jornalismo ao campo do discurso
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Kellner, Douglas. A cultura da mídia. São 5
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Lunenfeld, Peter. Unfinished Business in, flexibilidade, hipertextualidade e atualidade. Já
LUNENFELD, Peter (editor) – The Digital para Lev Manovitch, seriam princípios da new
Dialetic. Massachussetts: The Mit Press, media: representação numérica, modularidade,
2000. automação, variabilidade e transcodificação.
Manovitch, Lev, New Media from Borges (MANOVITCH, 2003: 17). Por outro lado, a pes-
to HTML, in WARDRIP-FRUIN, Noah e quisadora do MIT, Janet Murray, amplia ainda
MONTFORT, Nick. The New Media Reader. mais os espaços possíveis paras as NIC, deno-
minando este de “ambiente digitais”. A autora
Cambridge: The MIT Press, 2003.
categoriza tais ambientes como procedurais,
Martinez, Adriana Garcia. Perdidos no
participativos (características relacionadas à
ciberespaço? Reflexões sobre o jornalismo interatividade), espaciais e enciclopédicos (rela-
e jornalistas na internet. Dissertação de cionadas à imersão do usuário). (MURRAY, 1997:
mestrado. São Paulo: ECA-USP, 2003. 71). Todo este conjunto de conceitos embasa
Murray, Janet. Hamlet on the holodeck: nossas reflexões, especialmente quando nos
the future of narrative in cyberspace. referirmos aos termos “NIC”, meios digitais e
Cambridge, Mss.: The MIP Press, 1997. novas mídias.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 319

6
A idéia do linkalism foi divulgada num artigo camente acessar, analisar, interpretar, processar e
da Columbia Journalism Review que discutia o forte armazenar tanto material impresso quanto mate-
desafio de se criar uma narrativa digital diante do rial multimídia. (MARTINEZ, 2003, 154).
9
embate entre os valores-notícia e sua vinculação Tal mutação refere-se à possibilidade de
a hiperlinks comerciais em nome da almejada sus- expressão dos próprios atores dos fatos através
tentação financeira dos empreendimentos. da internet: hoje não é a atualidade que faz parte
7
Usabilidade endereça a relação entre uma do jornalismo, mas o inverso”, segundo Chaparro.
ferramenta ou uma interface digital e seu usuário. Assim, os sujeitos produtores de notícias que
Para uma ferramenta ser útil, ela tem de permitir controlam os media, assistem à mutação genética
aos clientes completar suas tarefas da melhor forma dos sujeitos produtores de acontecimentos com
possível. (TEIXEIRA, 2002: 114). atributos jornalísticos.
8 10
O autor afirma que a alfabetização O autor afirma que o processo de nave-
informática genuína inclui não somente conheci- gação por entre links, banco de dados, e troca
mentos e habilidades técnicas, mas também uma de mensagens é um processo contínuo e também
leitura refinada, escrita, pesquisa e capacidade de ao mesmo tempo renovável, ilimitado em termos
comunicar-se com capacidades intensas de criti- de trasnformação.
320 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 321

Transformaciones estructurales del lenguaje en el entorno digital


Guiomar Salvat Martinrey1

La presente comunicación pretende El origen de la escritura se encuentra en


mostrar la recuperación de la imagen como las formas gráficas más rudimentarias. Su
elemento estructural del lenguaje, rompiendo desarrollo tiene un sentido eminentemente
así una tendencia histórica de disociación práctico: “Las imágenes, en otras palabras,
de ambos elementos esencialmente asociada se hicieron para ser utilizadas. Fue esta forma
a los lenguajes alfabéticos. El elemento que de uso de las imágenes la que, en algún
ha servido de catalizador para este proceso sentido, irrumpió en la eflorescencia del arte
es el desarrollo y la implantación de las de la Era Glacial. Pero no fue una revolución
nuevas tecnologías digitales de la artística; fue una revolución cultural”.
comunicación. (Crowley y Heyer, 1997:32)2
En la Historia de la comunicación existe Trazados y lenguajes se desarrollan casi
cierta unanimidad en considerar que la de forma paralela, aunque históricamente se
palabra es la mejor de las herramientas de diferencian en el tiempo, ya que sí existe esa
conocimiento desarrollada por el hombre y diferencia temporal si entendemos por
que con el tiempo será capaz de conformar escritura un sistema de comunicación escrito
un pensamiento nuevo. Se entiende que la que permita, con efectividad, sustituir al
palabra es la base y el principio para las lenguaje hablado. Es la etapa de lo que se
posteriores formas de conocimiento, y el ha llamado protoescritura, en la cual signos
siguiente salto excepcional en la evolución muy elementales como muescas o rayas son
de las estructuras de pensamiento se produce capaces de albergar un mensaje. En realidad
cuando el hombre es capaz de representar, queremos insistir de nuevo en el carácter
de plasmar gráficamente su lenguaje. funcional que tiene la imagen desde sus
Todas las limitaciones comunicativas orígenes: “Era un simbolismo a la vez
propias de la etapa oral son superadas por cósmico e intelectual, altamente ritualizado,
esta nueva tecnología gráfica: las limitaciones sin duda unido a manifestaciones verbales.
que imponía el tiempo, ya que la (…) La invención del trazo permanece
comunicación oral precisaba de la confluencia entonces subordinada a la producción de una
temporal de los actores, las limitaciones información (rememoración útil, enumeración
propias del espacio, ya que la oralidad exigía contable, indicación técnica)” (Debray,
un estado presencial de los comunicantes, y 1994:186)3
además, la capacidad humana de recuerdo Los trazos van adquiriendo una
sistemático que evidentemente tenía unos complejidad, una sofisticación, tanto en su
límites muy cercanos. En este sentido, significado como en la forma de ser
también las limitaciones derivadas de la falta ejecutado. La imagen como espejo del mundo
de una memoria histórica, del poso cultural, real está presente en las primeras formas de
de la estratificación del conocimiento comunicación y como resultado se obtendrán
quedarán disueltas con la aparición del dos grandes modelos de comunicación que
lenguaje escrito. darán lugar a algunos de los sistemas de
La escritura, o lo que es lo mismo, la escritura con mayor repercusión.
representación del lenguaje, le otorgará a la En primer lugar nos encontramos con la
palabra una dimensión insospechada. Gracias escritura pictórica, que siglos después vamos
a la capacidad de organizar macroestructuras a recuperarla para argumentar parte de la tesis
se crearán civilizaciones complejas y que aquí se expone. Es una de las formas
sofisticadas, y en la misma medida lo hará más simples de escritura, pero que por eso
con el pensamiento. mismo está dotada de unas características
322 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

muy peculiares. Consiste básicamente en escritura en los que las diferentes imágenes
narrar hechos o acontecimientos a través de no representaban ideas u objetos, sino que
imágenes copiadas del mundo real con una representaban los sonidos de cada palabra.
evolución en el tiempo, de manera muy Los sonidos a su vez se representan por un
similar y bajo los mismos principios que una conjunto muy limitado de grafías, signos
tira ilustrada. Una manera infantil y primaria convencionales que en su infinitas
de contar historias mediante dibujos de menor combinaciones ofrecen la posibilidad de
o mayor complejidad y calidad. albergar cualquier tipo de concepto, los mas
Esta aparente limitación comunicativa a abstractos e imprecisos, y por supuesto
través de la cual es imposible transmitir también de pensamiento. Son este tipo de
pensamientos medianamente complejos, escrituras alfabéticas las que disociarán
resulta ser poseedora de un valor excepcional: definitivamente la imagen y la palabra,
no mantiene ningún tipo de conexión con las aunque la historia ofrecerá mecanismos para
diferentes lenguas y puede ser “escrita”, o realimentar esta situación.
sea codificada, y traducida o “leída”, por La imagen a su vez recupera cierta
cualquier persona que hable cualquier libertad al romper las ataduras con el campo
lenguaje, no siendo necesario que ambos lingüístico de la escritura. A partir de entonces
interlocutores compartan una lengua concreta. abandona un papel secundario en la
Mucho menos aún existe una dependencia comunicación para brillar por si misma en
de un código escrito que deba conocerse para unas circunstancias diferentes ampliando su
ser descifrado. función plástica.
Es cierto que su valor a la hora de ser Aún después de deslindarse de la imagen,
capaz de transmitir según qué contenidos es los rasgos alfabéticos no abandonan el sentido
francamente limitado, pero no es menos cierto estético y artístico de donde emanaron.
que la historia recurrirá a ello en un momento Aunque con una naturaleza distinta a la
dado como la gran alternativa a su encrucijada originaria iconográfica y simbólica, se
comunicativa. desarrolla el arte de la representación de la
En segundo lugar, nos encontramos con palabra, la tipografía. En todas las culturas
las escrituras jeroglíficas. Es una forma de y escuelas se conocen y se desarrollan formas
escritura diametralmente opuesta a la de representación de las formas de su palabra
anteriormente descrita. En este caso está lleno que son exquisitas, que representan y
de convenciones del propio lenguaje hablado, diferencian su pensamiento. La tipografía es
y por tanto, sólo podrá ser compartido entre una de las ciencias más complejas y muchas
personas que conozcan dichas lenguas. Un veces menos reconocida, no por sus métodos
baile de pictogramas primero y de ideogramas arquitectónicos de ejecución, sino por las
más tarde llevaron a la consecución de un profundas relaciones con la psicología del
sofisticado sistema de escritura mediante los inconsciente de la cultura que la desarrolla:
cuales la capacidad para transmitir “toda huella puede ser considerada como una
información era ya infinitamente mayor al marca de psiquismo”. (Gauthier, 1996:203)4
que ofrecía el otro uso de la imagen. Todo Esta idea se puede llevar hasta el extremo
un universo simbólico cuya evolución llevará de que, a pesar de la tremenda evolución que
al origen de símbolos fonéticos. Con el uso sufren los caracteres durante miles de años,
de signos sonoros, los fonogramas, se amplían hay quien considera que debajo de toda esa
las capacidades de la memoria y a través de arquitectura tipográfica subyacen todavía los
la estratificación del conocimiento se trazos de las antiguas representaciones
desarrolla una nueva manera de cognición. gráficas “con su capacidad de síntesis, su
Y es en esta etapa alfabética donde la intuición de las formas, y el conocimiento
palabra escrita sufre el primero de los de los elementos y los recursos gráficos”.
desencuentros que tendrá con la imagen en (Martín Montesinos/Mas Hurtuna, 2001:40)5
su madurez visual. Esta primera escisión la En cada uno de los sistemas o culturas
encontramos en el momento en que se alfabéticas se iba imponiendo
abandonan las formas de escritura progresivamente este distanciamiento entre la
pictográficas y aparecen los sistemas de palabra hablada y la representada, que se
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 323

consolidaría con todas las tecnologías de reivindicarse este aspecto gráfico de la


reproducción de la imagen y el texto que se tipografía hasta el deseo de elevarla a
incorporaban, ya que eran distintas y categoría de arte. Son los inicios, muchos
antagónicas en muchos casos. siglos después, de un acercamiento al entorno
Un hito importantísimo resulta de la estético del texto.
mecanización de la escritura, de la aparición El reencuentro se produjo en el entorno
de la imprenta, que debido a su efectividad digital. Sólo en este campo en el que se
se extiende rápidamente en el s. XV. Trae desarrollan las nuevas tecnologías ha sido
consigo la diversificación del trabajo y la posible que ambos medios de expresión
especialización en cada una de las labores confluyan de nuevo. Estamos en lo que
necesarias para la reproducción en serie de algunos autores (Ong, 1997)6 llaman oralidad
los escritos. La modificación que se produce secundaria. La última etapa de la
en la propia producción de los lenguajes comunicación que llega con la formalización
fomentan la separación de los códigos del sonido mediante la tecnología: la radio,
alfabéticos de los gráficos, ya que establecen el cine, la televisión. En los últimos años
modos de trabajo absolutamente distintos, la implantación masiva de ordenadores
hasta el extremo de que si texto e imagen personales permiten considerarlo como un
se tenían que plasmar en una reproducción nuevo medio de comunicación con tremendas
se elaboraban de manera independiente y sólo repercusiones sobre la sociedad y el
en el último momento se montaban en el conocimiento.
soporte que compartían. La digitalización de los medios de
Sin embargo la tecnología de la imprenta comunicación permitió que se aunaran de
no triunfó en todas las culturas por igual. nuevo la imagen y el texto. Unificó ambos
En las sociedades no alfabéticas, aquellas que medios, el textual y el gráfico, expresándolos
seguían utilizando la imagen como la base en el mismo código, convirtiéndolos a ceros
de su escritura, no pudieron diferenciar los y unos, aplicando el lenguaje informático que
métodos de producción de las escrituras y permite una codificación conjunta. Lo
las imágenes, e inventos como el de la realmente llamativo es que este lenguaje
mecanización de la escritura no resulta en intermedio en realidad sólo es un código para
absoluto interesante. En culturas como la la elaboración, almacenamiento, exhibición
china es imposible que resultara rentable o reproducción de la misma. Pero en el
fundir y reutilizar miles de caracteres, que momento último recobra su naturaleza
son los símbolos gráficos que tiene su analógica y debe interpretarse según los
escritura, frente a los veintitantos de la códigos que rigen las lecturas y las imágenes.
mayoría de las escrituras alfabéticas. A partir de entonces se entiende que uno
A otro nivel, la tipografía crea una nueva y otro medio, texto e imagen, en definitiva,
relación con lo gráfico. Desde que se eran imágenes en la producción digital,
abandona la imagen con un referente real y naturales o artificiales, pero imágenes al fin
se limita a sus representaciones fonéticas, la y al cabo. En los años 80 se empieza a
escritura gesta una dualidad entre las dos considerar la posibilidad de tratar ambos
características que la definen, entre el aspecto medios con los mismos sistemas. Se entiende
linguístico y el aspecto gráfico que van a que las imágenes naturales son las fotografías,
mantener todas las tipografías. Es el texto dibujos e infografías, mientras que las
como signo o el texto como imagen, es artificiales son todas aquellas que representan
conocerlo en su vertiente estética o en su imágenes textuales, ya que son
faceta de funcionalidad. representaciones de los fonemas que se
Durante siglos se pierde la espontaneidad, articulan.
al menos de la personalidad y la naturaleza “Los procesos informáticos de edición
del escribiente, y se somete a la tipografía electrónica y sobre todo, los procesos de
a la fundición de unos tipos móviles digitalización de imágenes (de todo tipo de
sometidos a unas reglas muy estrictas. Con imágenes) que se ofrecen en el mercado van
la llegada del siglo XX cierta frescura invade a conseguir una cosa: que los dos tipos de
el mundo de la edición y comienza a imágenes a los que aludíamos al principio
324 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

se elaboren de un modo exactamente igual, de los elementos en la página o el simple


en un proceso único de principio a fin. (…) reconocimiento de un símbolo que es una
Esta simultaneidad texto-imagen será el eje flecha hacia la derecha o la izquierda y que
de partida para cuantos productos se comprende que es el avance o el retroceso
informativos nazcan a partir de la década de de un página.
los noventa.” (Pérez Cuadrado: 2000: 69)7. Entre una necesidad y la otra, de una
El resultado es que fue a través de un manera instintiva y primaria, la plataforma
lenguaje común para los dos medios cómo se digital recuperó un viejo tipo de escritura,
logró el reencuentro. Pero lo más importante medio olvidado y denostado, arrinconado para
es que de un lenguaje y un entorno conjunto géneros infantiles o para cuestiones muy
se llegará a las multiplicidades de la plataforma puntuales. Este tipo de lenguaje escrito
y las nuevas culturas. Abordaremos el respondía de manera inocente a todas las
problema centrándonos en dos aspectos necesidades que se planteaban: estamos
fundamentales de la incidencia de las nuevas hablando de la escritura pictórica.
tecnologías digitales sobre los mensajes: Probablemente, la herramienta perfecta para
a) Los nuevos medios de comunicación la universalización de los medios digitales,
digitales, fundamentalmente los que se sobre todo, teniendo en cuenta que se
perciben a través de un monitor de ordenador considera que la percepción visual desarrolla
y están conectados a una red de información el canal sensorial, el más importante a la hora
externa, necesitan una adecuación de los de recibir información en la especie humana.
contenidos que tradicionalmente se ofrecen Por un lado, la escritura pictórica es una
en los distintos medios de comunicación, así forma de comunicación visual que no necesita
como las estructuras y representaciones grandes estructuras mentales para ser
formales que lo sustentan. descifrada, y no podemos perder de vista el
b) El intercambio de grandes cantidades carácter lúdico que impregna los aspectos mas
de información en tiempo real desdibuja límites serios de los nuevos medios de comunicación.
históricos, fronteras espaciales y las diferentes La gran cantidad de información que ofrecen
culturas tienden a mixtificarse. Se impone una las plataformas digitales se caracterizan
nueva cultura con afán conquistador y además por un afán por parte del lector de
divulgativo, estamos en el complejo y manido discriminar la información que no le interesa,
entorno de la globalización. aspecto provocado por la infosicación, y por
Estas dos circunstancias unidas tienen una requerir un tiempo de lectura
serie de exigencias muy concretas que significativamente menor que los medios
convergen en determinados puntos. Ambos impresos.
aspectos requieren de un nuevo lenguaje, en Además, el hecho de que la escritura
el primer caso, para que sea específico y se pictórica no dependa de una lengua concreta
adapte perfectamente a la nueva plataforma, y que pueda ser descodificado por cualquier
un lenguaje más sencillo, claro, directo y en persona independientemente de su idioma
algunos momentos un lenguaje con un para su perfecta comprensión le abre infinitas
carácter más lúdico, con ciertas posibilidades de expansión en la red.
reminiscencias publicitarias y con grandes Otros aspectos positivos que debemos
intenciones de seducción. resaltar es su capacidad de sintetizar y
En el segundo de los casos, se necesita simplificar labores y conceptos, así como
un lenguaje que se adapte a lugares aparecer de un modo mucho más atractivo
tremendamente dispares y distantes, a culturas y seductor en su aspecto estético.
antagónicas y a formas de conocimiento Podemos decir, por tanto, que supone el
distintos. Esto no obliga a que todas las retorno de la imagen como signo, realizado a
páginas webs o los portales compartan la través de una compleja codificación, a su forma
misma lengua (los traductores automáticos más elemental, a una imagen como
suplen con eficiencia y premura esta representación. Al igual que en las civilizaciones
situación), pero sí que determinados códigos orales, y fundamentalmente en este entorno
sean compartidos, tales como las formas en digital, “las imágenes cumplen la función de
la dirección de la lectura, las distribuciones los signos. Esos semáforos no representan,
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 325

indican. Esquematizando, simplificando, _______________________________


1
concentrando.” (Debray, 1994: 186)8. Universidad Europea de Madrid.
2
Formas elementales de comunicación que Crowley, David y Heyer, Paul (1997), La
comunicación en la Historia. Tecnología, cultura,
por otra parte no han sido abandonadas nunca,
sociedad, Bosh Comunicación, Barcelona.
pero si relegadas a un supuesto segundo plano 3
Debray, Régis (1994), Vida y muerte de la
al encontrar formas de expresión que permitan imagen. Historia de la mirada en Occidente,
desarrollar un pensamiento complejo. Es la Paidós Comunicación, Barcelona.
recuperación masiva de esas formas 4
Gauthier, Guy (1996), Veinte lecciones sobre
elementales para el medio de comunicación la imagen y el sentido, Cátedra, Madrid.
5
de la globalización. Cabría preguntarse aquí Martín Montesinos, J.L. y Mas Hurtana, M.,
cuales serán las consecuencias que podremos (2001), Manual de tipografía, del plomo a la era
observar dentro de unos años de la digital, Campgrafic, Valencia.
6
Ong, Walter J., (1997), “Lo oral, lo escrito
readaptación de esta fórmula.
y los medios de comunicación modernos”, en La
Sin embargo, es cierto que este tipo de comunicación en la historia, Bosh comunicación,
lenguaje no es suficiente para expresar ideas Barcelona.
de una mínima complejidad, pero para eso 7
Pérez Cuadrado, Pedro (2000), “La
están los diversos códigos alfabéticos, ya no importancia de lo digital en el proceso de
debemos pensar que estos medios que fabricación de diarios”, en La experiencia digital
describimos deben ser excluyentes. Digamos en presente continuo, Universidad Europea-CEES
que ambos son necesarios, como otros muchos, Ediciones, Madrid.
8
Debray, Régis (1994), Vida y muerte de la
y que el auténtico arte de la comunicación
imagen. Historia de la mirada en Occidente,
está en conocer cuando se debe recurrir a cada Paidós Comunicación, Barcelona.
uno de ellos en según qué momento.
326 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 327

Espaços Multifacetados em Arte – Novas Formas, Novas Linguagens


Helena Santana1 e Rosário Santana2

I. Introdução próprias, reduzindo a separação entre a arte


e a vida, concebendo um objecto artístico
As origens do espectáculo multimédia – o espectáculo multimédia - onde a
encontram-se nos rituais primitivos quando multiculturalidade, a interdisciplinariedade
o Homem concebia um objecto artístico, e a diversidade de meios e expressões pre-
social, religioso e cultural onde interagiam domina. De difícil realização pela quanti-
diversos elementos, nomeadamente o fogo, dade e qualidade de meios que requerem,
a dança, o canto, a música e diversos efeitos revelam-se de uma riqueza ímpar anunci-
sonoros, dependendo do objectivo a que se ando o seu desenvolvimento, no início dos
destinava e propunha. O seu desenvolvimen- anos 60, uma arte total. A confluência de
to e criação encontra-se contudo condicio- várias formas de comunicação num único
nado pelo desenvolvimento dos diferentes objecto artístico onde se interpenetram várias
meios que utiliza. Assim, e ao longo dos anos noções coreográficas, musicais e teatrais
50 e 60 surgem a luz e o som. Integrados origina um tipo de colagem caracterizado
e desenvolvidos por inúmeros criadores, pelo movimento. A coexistência em palco
nomeadamente Iannis Xenakis em de diferentes formas de expressão alarga os
Les Polytopes, as possibilidades que horizontes da criação conduzindo à produ-
oferecem, bem como os vários filtros, os ção de numerosos espectáculos multimédia
diversos sistemas sonoros ou o raio laser, e interactivos.
permite a criação de imagens sonoras e
gráficas várias. Os sistemas de projecção de Les Polytopes
imagens, inicialmente projectores de filmes,
permitem a criação de um outro universo Na Europa, Xenakis vai produzir alguns
discursivo – um universo de imagens – que destes espectáculos utilizando o computador
contrapõe (ou não) o universo sonoro3. para coordenar luz e som. O primeiro destes
Actualmente a definição de espectáculo espectáculos compõe-no em 1972, e o se-
multimédia compreende a utilização sincro- gundo em 1973, para as termas romanas de
nizada de diferentes média convergindo no Cluny em Paris. O espaço em forma de T
desenvolvimento de um tema, ou objectivo, oferece ao compositor um novo desafio: como
predefinido. conceber uma estrutura para fixar os pontos
de luz e som. A estrutura concebida, dupla,
II. Espaços multimédia permite uma grande liberdade na disposição
das estruturas luminosas e sonoras. No
Veículo de comunicação de uma realida- entanto, o compositor dispõe estes pontos de
de, de uma vontade, de um pensamento, os uma forma bastante simples, utilizando uma
espectáculos multimédia servem-se de meios estrutura ortogonal. Em seguida questiona-
próprios e interdisciplinares potenciando a se: O que fazer com todos estes pontos?
pluralidade e a multiculturalidade. As pos- Como estruturar tudo isto? Que figuras
sibilidades que oferecem, múltiplas, consti- sonoras e luminosas utilizar? Quais as
tuem um desafio. Como meio de expressão melhores face ao resultado pretendido?...
artística, permitem a convergência de dife- Assim, e inicialmente, concebe um conjunto
rentes áreas do saber. de figuras, estruturas e elementos que no-
Os média, empregues como material meia metaforicamente utilizando termos como
constituinte da obra, interagem com os demais nuvens, labirintos, rios, lagos tentáculos... Em
elementos segundo parâmetros e hierarquias seguida formaliza-os4.
328 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Para além dos pontos de luz contém ainda Encomenda da Westdeutscher RundFunk,
3 raios laser, reflectidos por diferentes es- comporta sons electrónicos concebidos no
pelhos animados segundo dois planos por CEMAMu, microsons, sons concretos de
pequenos motores eléctricos. Os motivos, as diversos instrumentos tradicionais e ruídos
figuras geométricas, modificam-se constan- de objectos e materiais batidos uns nos outros.
temente quer na sua cor, quer na sua direc- Devido à pluralidade e diversidade das fon-
ção, localização ou forma. Realizada à frac- tes sonoras, a audição da obra permite, e
ção de segundo, a sua variação cria diferen- origina, um vasto conjunto de imagens
tes esculturas cinéticas. A banda sonora, mentais. A continuidade é absoluta, predo-
minando a modulação sonora e tímbrica. O
composta no Estúdio Acousti em Paris,
som, movimentando-se continuamente, remo-
contém espaços de timbres modulados con-
dela o espaço em espirais e atmosferas de
tinuamente.
sons com rugosidades várias.
Em Persépolis Xenakis cria um espectá-
O espectáculo luminoso contém diferen-
culo mais denso utilizando um conjunto tes configurações luminosas móveis, pontos,
diversificado de elementos que confluem para linhas, etc., encontrando-se a organização dos
um espectáculo de luz e som, encomenda do diferentes movimentos luminosos, contínuos
V Festival Internacional de Artes de Chiraz ou descontínuos, regida por funções mate-
– Persépolis, Irão. A obra, Persépolis, criada máticas8. Sendo um espectáculo onde as
a 26 de Agosto de 1971 nas ruínas do palácio superfícies curvas das paredes da tenda
de Darius I - o Apadana, tem uma duração condicionam e transformam a percepção dos
de 56 minutos. O espaço físico do palácio seus componentes, esta obra evidencia os
oferece ao público a possibilidade de se movimentos dos pontos luminosos e um
movimentar em 6 áreas de escuta sendo a movimento contínuo das duas componentes
música difundida por um conjunto de colu- do espectáculo – luz e som. Espaços de timbre
nas dispostas em três círculos5. Na montanha e cor cobrem e invadem todo o espaço da
em frente, perto dos túmulos reais, encon- tenda - O Diatope.
tram-se vários projectores que difundem para Em Polytope de Mycènes, uma obra de
o universo uma coreografia luminosa. No 1978, o público encontra-se sobre o flanco
cume, encontram-se dispostas várias foguei- de uma montanha face à cidade. Entre eles
ras. Ao longo da montanha, descendo len- encontra-se um grande vale de onde se avista
tamente e de forma desordenada, vários o Monte Elias. A obra combina 18 pontos
grupos de jovens transportam tochas de fogo sonoros e dramáticos, récitas de Homero,
hinos de Sófocles, versos de Eurípedes, coros
criando linhas que se dispersam e movimen-
de Ésquilo, 12 projectores antiaéreos, uma
tam pela montanha formando um conjunto
procissão de crianças, um rebanho de cabras
diversificado de figuras geométricas e cons-
com sinos e tochas de fogo e uma banda
telações de luz e fogo. No final, juntam-se
sonora. No início do espectáculo são ento-
entre os dois túmulos e escrevem em fogo ados por um coro textos de Helena de
Nós trazemos a luz da terra. Em seguida, Eurípedes. Em seguida, por um conjunto de
passam a ravina, entram pelo público desa- colunas dispostas de forma a que todo o vale
parecendo, a pouco e pouco, na floresta de seja inundado de som, ouvem-se declama-
colunas do palácio. Gigantesca, Persépolis ções em dialecto, posteriormente traduzidas
é uma obra “abstracta, densa e complexa, cuja em grego moderno, assim como, várias obras
força abrupta investe, tanto sobre os senti- do autor, entre elas Mycènes Alpha,
dos, como sobre o intelecto. [Para Xenakis], Persephassa e Psappha. A partir de um palco
corresponde ao rochedo sobre o qual estão que permite a repercussão do som de uma
gravadas diversas mensagens hieroglíficas de montanha para a outra através do eco, são
uma forma compacta e hermética, sendo im- ainda executadas diversas obras orquestrais
possível conhecer o seu significado”.6 e corais do compositor, terminando o espec-
La Légende d’Eer (1977), uma das obras táculo com Oresteia para coros e instrumen-
mais longas do compositor foi criada num tos. Paralelamente decorre uma procissão que
espaço de características únicas – O Diatope7. oferece flores.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 329

A parte luminosa comporta diversos alusão a John Cage representando uma versão
momentos, iniciando com a criação de um de 0’ 0’’, uma obra que consiste na reali-
tecido luminoso por vários projectores an- zação de uma qualquer acção desde que esta
tiaéreos. Situados perto das cidades de seja disciplinada. O momento inicial do
Tirynthe e Argos, formam uma pirâmide de espectáculo alude a 4’ 33’’. Enquanto o
luz estática. Em seguida, surge no vale um público entra na sala e se disponibiliza frui-
conjunto de tochas, pontos de fogo, desenhan- se a obra que se desenvolve autónoma na
do vários motivos plásticos. Um fogo imen- sala11.
so surge regularmente no cimo do Monte A referência a Bach encontra-se em Bossa
Elias, e um filme, apresentando os tesouros bem temperada onde no Prelúdio em Dó
dos túmulos antigos, é projectado sobre os Maior do Cravo Bem Temperado são cola-
muros da cidade. Xenakis faz subir pela dos e interpolados fragmentos de obras de
montanha um rebanho de cabras criando outra Gilberto, Jobim, Veloso ou Regina. Esta
constelação de luz9. Um grupo de soldados acção, não destrói, no entanto, a fluência e
descendo a montanha transportando tochas mestria técnica, formal e discursiva do seu
acesas anuncia o fim do espectáculo. Polytope autor. O espectáculo finaliza com Música
de Mycènes foi o maior espectáculo do autor. onde somos convidados a fruir um rap, uma
versão contemporânea e urbana de An die
Bach2Cage Musik: “bate no corpo e o corpo sente... é
som ardente... voz e pensamento, razão e
Bach2Cage é um espectáculo multimédia sentimento... laço eterno, céu, inferno, infi-
onde confluem diversos domínios do saber10. nito, vazio, rodopio... big-bang inicial,
“Mais do que um espectáculo, Bach2Cage apocalipse final, eclipse total, pecado origi-
é um processo, um laboratório experimental nal, pôr do sol, nascer da lua, água, fogo,
de cruzamentos de música/artes performativas terra crua, chuva, búzio, som de rua”. “É tão
com multimédia/arte digital”. Desenvolven- estranho o tempo perde o tamanho”....
do uma constante actualização – as suas Denunciando uma pluralidade e multi-
diferentes versões – procura uma interacção culturalidade marcadas, esta obra contribui
com o público e com os seus autores e para que o objecto artístico adquira diferen-
actores, sendo cada uma das versões, tes rostos e evolua numa multiplicidade de
consequência de um processo de procura, de formas e conceitos. A diversidade de cami-
indagação, de conhecimento, de aprendiza- nhos propostos reflecte a diversidade cultu-
gem e transformação de todos os que o ral e racial de uma sociedade que, em
integram. Assim, a obra de dois autores contínua transformação, tenta responder a
maiores da História da Música – Bach e Cage exigências, transformações e questões fun-
– revela-se o pretexto para um processo de damentais que se colocam ao ser humano
criação que se encontra em contínua trans- enquanto criador.
formação – “work in progress”. No entanto,
não será entendimento dos seus autores a sua III. Espaços multimédia e educação
re-produção, re-criação, re-interpretação ou
re-leitura condicionada por um conjunto de A escola, local de convergência e vivên-
condicionantes criativas. A obra e o universo cia de uma comunidade, que pela sua na-
criativo dos dois compositores são relidos, tureza e diversidade se manifesta, de uma
reavaliados e inseridos de uma forma nova forma geral, sempre aberta a novas experi-
no processo de criação. Como exemplo ências, revela-se um local propício para a
referimos Tango Perpétuo, uma alusão ao realização e concepção de espaços de cria-
poema de Cage Perpetual Tango, obra que ção multifacetados. Estes, motivo do interes-
se insere num universo musical Piazzoliano, se e curiosidade por parte dos discentes
interagindo igualmente com um conjunto de tornam-se apelativos, integrando o aluno na
imagens e acções teatrais que aludem à escola, fundamentando a sua educação artís-
oposição de elementos e realidades. A tica. A multiplicidade de saberes exigida na
máquina de escrever, recorrente numa das concepção de tais eventos, o esforço e o
versões do espectáculo, é igualmente uma trabalho de equipa exigidos na sua criação,
330 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

fomentam ainda uma responsabilidade face eventos formas novas, originais, inovadoras,
aos outros e à obra a realizar, e o desen- senão fundamentais no processo educativo
volvimento do espírito de interajuda indis- inserindo-se dentro de uma pedagogia de
pensáveis ao desenvolvimento e formação do projecto.
indivíduo. Inserindo-se dentro de projectos
A aquisição de conhecimentos e o estudo educativos, que se encontram encerrados nas
direccionado e vocacionado para um objec- suas próprias possibilidades de execução, não
tivo, a concepção do espectáculo, levam o deverão nunca perder de vista a concretização
aluno a pesquisar e a adquirir uma série de de um conjunto de objectivos. Nestes, con-
conhecimentos que não se encontram desli- fluem, tanto a pedagogia de projecto, como
gados de um objectivo, de uma realidade, e a pedagogia por objectivos. Através do
que de outra forma não seria possível inte- projecto o homem cria, implicando a reali-
grar na sua formação, no seu currículo. A zação de um projecto, a existência de uma
concepção e estruturação do objecto artístico estratégia que defina as diferentes etapas do
implica ainda a hierarquização e o domínio mesmo, e uma calendarização precisa das
claro e objectivo de todas as componentes tarefas, e objectivos, a cumprir. A estratégia
do mesmo. O uso de uma linguagem artís- do projecto, permitindo a sua realização,
tica, nova e complexa, e a utilização de uma contribui para a sua definição e
multiplicidade de saberes única, implica sequenciação12.
igualmente a apreensão de diferentes noções O tipo de trabalho que apresentamos
e acções implícitas ao acto criador, que insere-se dentro de um projecto com as
deverão ser geridas e assimiladas por todos características do projecto de acção educa-
os intervenientes do espectáculo a que se tiva ou projecto educativo, um projecto
procura dar forma. O discente torna-se um concebido por diferentes membros da comu-
artista, criando, interpretando, investigando nidade escolar, e que visa o aluno enquanto
e concebendo um produto no qual intervém criador, e enquanto membro de uma socie-
desde o primeiro instante. dade, e o projecto de formação. Concebido,
O homem, criador e investigador por tanto por docentes, como pelos discentes, a
natureza, tenta através da procura incessante sua acção desenvolve-se exteriormente ao
de novos caminhos, conduzir-se para novos espaço da escola consequência da qualidade
níveis de entendimento, conhecimento e do projecto idealizado e concretizado. Visan-
existência. Enquanto criativo, representa um do o aluno enquanto indivíduo em formação
mundo interior produto de uma educação e e enquanto ser criador, membro de uma
interacção com o meio. Sendo assim, não fica sociedade, inserem-se dentro de um projecto
indiferente às evoluções científicas e de formação: pela qualidade, originalidade e
tecnológicas que se processam tendendo a dimensão que possam possuir, podem, e sem
integrá-las no processo de criação. Fruto de qualquer restrição, sair do espaço da sala de
uma sociedade em contínua transformação aula, ou mesmo da escola. Assim, e em
representa-a através da obra, o seu reflexo. consequência, agem e interagem com a
De difícil realização e concepção tanto sociedade em que se inserem. Para além de
pela enorme quantidade como pela qualidade um espaço de formação e criação serão ainda
de meios exigida, estes espectáculos revelam- espaços de acção e transformação, permitin-
se no entanto de uma riqueza impar, e um do a aquisição, o desenvolvimento e a in-
contributo educativo de inegável valor. A re- vestigação de conteúdos vários, aplicados em
alização de espectáculos desta natureza, onde seguida num projecto mais vasto onde
interagem vários domínios do saber e dife- interagem diferentes domínios do saber.
rentes formas de expressão artística, revela- Através do projecto educativo o aluno
se bastante complexa. A sua concepção, confronta-se com o real, interage com o meio,
estruturação, produção e realização, implican- desenvolve as suas capacidades intelectuais,
do o conhecimento e a aquisição de uma criativas e sociais, fomentando a investiga-
multiplicidade de saberes que se torna bas- ção direccionada e sistematizada com um fim
tante útil na estruturação e definição do único. Realizando esta acção, o aluno age
processo de ensino aprendizagem, faz destes segundo uma metodologia que se situa numa
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 331

linha próxima da sócio-antropologia. Os levam à sua influência reciproca, esta deter-


agentes da acção ficam ainda implicados minará a personalidade e a postura do in-
ideológica e socialmente, pressupondo uma divíduo face à composição musical, à música
interacção entre a teoria e a prática. Estes em geral e a todas as outras formas de arte.
espectáculos potenciam igualmente um pro- É ainda de considerar que a música, a cri-
cesso de ensino aprendizagem muitas vezes ação artística contemporânea e as novas
transdisciplinar e multidisciplinar. Assumin- tecnologias da informação e da comunica-
do a implicação dos que o concebem e ção, induzirão o confronto consigo próprio,
realizam, fomentam e apostam no trabalho e com o mundo exterior a si, levando o
de equipa revelando e relevando os seus estudante a autodefinir-se através de uma
constituintes. constante pesquisa das estruturas discursivas
e estéticas da obra. Essa aprendizagem pode
IV. Conclusão tomar como referência vários autores, cor-
rentes técnicas e estéticas, com uma aplica-
Expressão de uma vivência, o espectá- ção no quadro específico de cada disciplina.
culo multimédia constitui uma forma plural A orientação deve ser conduzida de forma
de expressão e comunicação. A procura a que o estudante alcance os objectivos
incessante do belo, e de novas formas de propostos, através da descoberta do som e
expressão, conduz o criador ao longo de uma da sua estrutura, dos instrumentos e tecno-
viagem que muitas vezes adquire contornos logias operantes, sem modelos preexistentes,
ímpares. A nós, cabe-nos a missão, se assim a não ser, eventualmente os mecanismos e
o entendermos, de entrar nesses mundos, as formas pessoais de expressão. Funde-se
seguir, explorar e investigar esses universos, assim a descoberta do interior de si, utili-
deixando-nos invadir por realidades sonoras zando um objecto exterior, o som e as novas
e artísticas que nos transformam, de forma tecnologias da informação e comunicação.
mais ou menos marcada, depois de Imergindo no mundo contemporâneo o in-
imergirmos e emergirmos da obra. divíduo surge metamorfoseado e transforma-
Sabendo que os intervenientes neste do por estes, agentes de educação e inova-
processo mantêm relações de interacção que ção.
332 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografía verificamos que alguns compositores organizam


o discurso e concebem os seus universos sonoros
Aymerich, C., Expresión y arte en la através de modelos matemáticos como a teoria
escuela, la expresión musical/ la expresión e o cálculo das probabilidades, a estatística, a teoria
dos jogos, a teoria dos conjuntos, a teoria dos
como auxiliar didáctico, Barcelona, Edito-
crivos, a lógica matemática, a secção de ouro, a
rial Teide, nº 3, 1981. série de Fibonacci ou o fractal. A formalização
Gloton, R., L’Art à l’école, Paris, PUF, do acto de compor prende-se com a necessidade
1971. de organizar, e estruturar o discurso, de uma forma
Gordon, E., The Psychology of Music lógica e coerente.
9
Teaching, New Jersey, Prentice Hall, 1970. No céu encontram-se diversas constelações
Hargreaves, D. J., Infancia y educación fixas, no solo encontram-se diversas constelações
artística, Madrid, Ediciones Morata, 1991. móveis. A astronomia, chama de constelação, a
Ley, M., La mise en scène du conte um grupo de estrelas, que devido a estarem fixas
conserva a sua estrutura. Alguns destes agrupa-
musical, éveil esthétique et thèmes d’ateliers,
mentos estrelares lembram formas específicas
Courlay-France, Editions J. M. Fuzeau, 1985. como a Lira, a Grande Ursa ou o Touro. Utili-
Sproccati, S., Guia de História da Arte, zamos a metáfora para designar por constelação
Lisboa, Editorial Presença, 1999. de sons, a estrutura, configuração sonora, obtida
Swanwick, K., A Basis for Music pela emissão de um mesmo objecto sonoro por
Education, Windsor, Nfer/Nelson, 1991. vários instrumentos dispostos em diferentes lo-
cais do espaço físico do círculo instrumental. Estas
constelações de som adquirem as formas mais
_______________________________ variadas, sofrendo diferentes processos de vari-
1
Departamento de Comunicação e Arte, ação como a translação, a rotação, a inversão, ou
Universidade de Aveiro. mesmo a transformação da sua forma original.
10
2
Escola Superior de Educação, Instituto Bach2Cage é um projecto desenvolvido no
Politécnico da Guarda. Departamento de Comunicação e Arte da Univer-
3
Em exemplo o discurso gráfico desenvol- sidade de Aveiro tendo como investigadores res-
vido por Le Corbusier para o espectáculo fruído ponsáveis os docentes Paulo Rodrigues, Nuno Dias
no Pavilhão Francês da Exposição Universal de e Mário Vairinhos.
11
Monte Real em 1967 – o Pavilhão Philips. Não podemos deixar de referir as
4
Tomando como exemplo o rio, podemos condicionantes estéticas e filosóficas que envol-
afirmar que é constituído por moléculas, um vem estas duas obras, nomeadamente a proble-
conjunto de partículas muito pequenas, que terá mática do tempo e do espaço musical, do material
necessariamente uma corrente, uma direcção e um e constituintes da obra, da acção e integração no
débito específico. As diferentes moléculas, repre- objecto artístico por parte de realidades “exteri-
sentadas por um conjunto de dados que podem ores” a ela.
12
ser tratados matematicamente, através das leis da No entanto, não podemos esquecer que o
estocástica, são representadas por pontos de luz, termo projecto encerra várias nuances. Segundo
e transportadas a diferentes pontos do espaço Francine Best existem vários tipos de projecto.
favorecendo sempre uma direcção determinada. Projecto de acção educativa ou projecto educativo.
Contudo, nunca é imposto um itinerário único. Concebido por diferentes membros da comunida-
5
O compositor compensa através deste pro- de escolar visa o aluno enquanto criador e en-
cesso, a falta de densidade e intensidade do som quanto membro de uma sociedade. Projecto
ao ar livre. pedagógico. Desenvolvido por professores perma-
6
XENAKIS, Iannis, Persépolis, Philips 6521 nece dentro do espaço da instituição, mas não
045. obrigatoriamente no espaço da sala de aula.
7
A sua concepção foi inspirada pela leitura Projecto de instituição. Este género de projecto
de vários textos, nomeadamente A Lenda de Eer foca as estruturas de funcionamento da própria
da República de Platão, Poimandre de Hérmes escola. Projecto de formação. Concebido tanto por
Trismégistre, um texto sobre o infinito incluído docentes como pelos discentes, a sua acção pode
em Pensamentos de Pascal e um texto sobre a desenvolver-se exteriormente ao espaço da escola
Supernova de Kirschner. como consequência da qualidade do projecto
8
A afinidade entre a música e os outros idealizado e concretizado. Projecto de zona.
domínios do conhecimento, nomeadamente a Incidindo numa determinada zona de acção es-
matemática, foi evidenciada pela primeira vez colar, este projecto é concebido por entidades de
pelos grandes filósofos gregos. Neste contexto, diferentes ministérios.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 333

You can’t see me: Contributo para uma teoria das Ligações
Ivone Ferreira1

“Não vês os perigos com que o oráculo de Apolo, implorando um esposo para
o destino te ameaça? Estão ainda a filha. Mas a resposta foi para que a aban-
afastados, mas se não tiveres firmeza donasse numa rocha onde um terrível monstro
com grande antecipação, em breve imortal a iria buscar. E como a profecia tinha
estarão contigo. Tentarão sobretudo que ser cumprida, assim foi. Psiché é aban-
convencer-te a procurar ver-me. Como já donada no local combinado, após ter passado
frequentes vezes to repeti, se me vires pelo luto público. Acabou por cair no sono,
uma vez, nunca mais me verás.” embalada pelo sopro do Zéfiro que haveria de
Eros transportá-la. Acorda algum tempo depois, já
num lugar magnífico e coberto de riquezas. Ao
“Antes morreria mil vezes do que fim da noite, quase sem se aperceber, já o
faria qualquer coisa que pudesse monstro estava ao seu lado e a tomara por
romper uma união tão doce.” esposa. De manhã desaparecera, tal como
Psiché chegara, sem que ela o tivesse visto. E o
episódio repetia-se dia após dia, nunca o via,
Mais do que pronunciar-me sobre algu- limitava-se a usufruir das coisas que tinha à
ma teoria, procurarei estabelecer um sua disposição. E não poder vê-lo era para
paralelismo entre uma fábula antiga, a de Eros Psiché estranho, tal como é estranho para o
e Psique, e o funcionamento da Internet e homem conceber o infinito. (Moura: 2002, 3)
o tipo de relações sociais por ela fomenta- Tomou, então, Eros por marido e olhou para
das, relações que, a nosso ver, se asseme- ele como olharia qualquer cidadão para a
lham às existentes no mundo físico, sofren- tecnologia “with caution, but rarely with fear”
do, apenas, uma mudança de espaço, do (Katz citado por Marcelo, 56.)
mundo das relações presenciais para um local Passava os dias atraída pelas maravilhas
onde as relações são invisíveis e insensíveis do lugar onde agora habitava. A pouco e
(apenas porque não podemos tocar o outro). pouco, foi-se aventurando e explorando o
Entre as histórias do místico Lucius espaço ao redor, tornando-se cada mais
Apuleius, descobre-se a de Eros e Psique, audaciosa até transpor o limiar. “Aí admi-
a mortal que, de tão bela, provoca inveja à rava a sábia e ampla arquitectura dos com-
própria Vénus, e Eros, o senhor das ligações, partimentos onde se acumulavam imensos
que espalhava confusão pelo mundo. Vénus, tesouros. Numa palavra: nada havia de pre-
criadora de todos os elementos, sente-se cioso no universo que não se encontrasse ali;
desprestigiada por ser equiparada em beleza mas, qualquer que fosse o espanto em que
com uma mortal. Procura vingar-se e pede mergulhava o espectáculo das inumeráveis
ajuda ao seu filho, um jovem malicioso e riquezas, o que sobretudo a admirava era que
cheio de audácia, conhecido pelas paixões nenhuma barreira, nenhum guarda, impedis-
desordenadas e pelas suas inúmeras malda- sem a entrada naquele tesouro universal”
des. O seu nome: Eros. Seria ele o vingador (Apuleius, 114). Mas a riqueza não foi su-
da desertidão dos templos de Vénus. A ficiente para suprir a ausência do outro. Eros
vingança seria fazer com que Psiché se vinha apenas uma vez por dia ter com ela,
apaixonasse pelo pior dos homens, conde- sempre de noite. De manhã desaparecia, tal
nando-a, deste modo, à infelicidade. como viera. Sentia-se perdida e sem recurso.
As irmãs de Psique tinham já casado com Dizia ela: “entristeço-me fechada numa bela
homens abastados, só aquela estava sozinha. prisão, privada de qualquer contacto com as
O pai, suspeitando de ira celeste, consulta criaturas humanas” (Idem, 116).
334 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Ora uma ligação tão feliz mas com O ideal de Mcluhan era que os media
tamanhas lacunas encontra sempre oposição tecnológicos unissem a espécie, criando uma
de alguém. Eros avisara-a desde o primeiro comunidade global semelhante às comunida-
dia que esta relação corria perigo. “Tentarão des tribais. Ao contrário do idealizado, es-
sobretudo convencer-te a procurar ver-me. tamos perante uniões peer to peer, entre um
Mas, como já frequentes vezes to repeti, se ente individual e outro ente individual, lo-
me vires uma vez nunca mais me calizados em locais geograficamente distan-
verás”(Idem, 120). tes. Se entendermos que nas formas de
A oposição viria de fora, da família da interacção mediadas não há envolvimento
esposa, mas os avisos do marido não foram completo porque só um envolvimento físico
suficientes para impedir que Psiqué deixasse pode ser total, não compreenderemos a forte
que as suas irmãs, movidas por inveja, se relação entre Eros e Psiqué, uma vez que
aproximassem com conversas mansas destina- existia uma barreira entre eles
das a provocar-lhe dúvidas. Alertavam-na dos Esta fábula escrita no início da História
perigos que corria ao deitar-se com um mons- Ocidental contempla as formas de interacção
tro a quem nunca vira. Era necessário armar- dos indivíduos nesta nova fase
se, pegar numa navalha bem afiada e escondê- comunicacional e as expectativas que os
la na cama. Preparar também uma lâmpada de rodeiam. A fábula de Eros e Psiqué começa
azeite. Quando ele dormisse, era só pegar na com a constatação de uma frustração (a
lâmpada e na navalha e cortar a cabeça ao impossibilidade de encontrar marido para
dragão. E Psiqué assim fez. O destino prepa- Psique, apesar da sua beleza) e a crença numa
rara a derradeira armadilha, a profetizada pelo maldição, decorrente da consulta ao oráculo.
oráculo. “Apenas tinha aproximado a luz...que Psiqué estava ainda sozinha. É o pai que
viu ela? O mais doce, o mais amável de todos consulta o oráculo na tentativa de resolver
os monstros”: Eros em pessoa. Arrependida de esta situação. E são os pais que, acompa-
não ter ouvido os conselhos do marido, quis nhados da comunidade (em que se inclui
matar-se com a própria arma com que pensara família, vizinhos, conhecidos, etc.), fazem o
matá-lo mas aquela beleza pediu que o admi- luto e a abandonam no lugar determinado.
rasse mais uma vez. Quis então saciar-se de Após este episódio, raramente são feitas
amor, tocar aquele corpo, mas a lâmpada deixou referências aos pais ou a outros mortais. Diz-
cair uma gota de azeite sobre o ombro do senhor se apenas que Psiqué sofre com a ausência
das ligações. “Tu queimas o autor de todos os da família mas não ousa procurá-los. Como
fogos? Tu, que foste inventada por um amante explicaria ela estar casada com um semi-deus,
que queria gozar, mesmo durante a noite, da alguém a quem não vê mas com quem se
visão daquela a quem amava, é assim que tu sente feliz? Os pais, provavelmente, julga-
proteges os amantes?” (Apuleius, 128.) E a pu- ram a filha morta e choraram por ela. E que
nição profetizada vem: a ligação estava termi- é feito das pessoas que acompanharam Psiché
nada ou, pelo menos, temporariamente à rocha, enquanto esperava Eros? Onde estão
desactivada. os mortais a quem Vénus pediu que loca-
A Técnica interfere no quotidiano. Esta lizassem Psiché? Cumpriram a sua missão
premissa é ponto assente mas que os novos e desapareceram.
media inauguram uma nova identidade do A única alusão feita ao mundo exterior
indivíduo, com novas possibilidades, “trans- refere-se às irmãs, que acabarão por sofrer
formando a sociedade actual numa outra mais um fim trágico. Na sua sede de vingança,
ajustada às expectativas da condição huma- são enganadas. Lançam-se no espaço, ofe-
na”, ainda está a ser descoberto. recendo-se ao Amor “mas nem mesmo depois
A relação Eros/Psique era, por assim dizer, de mortas chegaram aonde queriam, ao alvo
uma relação comum. Não fosse Psique não dos seus insensatos desejos; porque os seus
poder vê-lo e teríamos uma relação comum: membros, quebrados e dispersos pelas rochas,
a união de duas pessoas por um laço sexual foram devorados pelas feras e pelas aves de
e com uma casa própria. A novidade neste rapina”(Apuleius, 131.) Ficam desfeitas,
relacionamento é fictícia, tal como o é nos partidas em pedaços. É o fim de todas as
relacionamentos virtuais. referências. Como tal, Psiqué fica sozinha,
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 335

a menos que consiga restabelecer a ligação ondas hertzianas já terem ultrapassado este
à única figura possível: Eros. É urgente patamar. A novidade está na multiplicidade
arranjar um mediador que a leve ao seu de localizações de informação: não há um
marido, e as figuras disponíveis são os deuses emissor e um receptor localizados num local
que não são entidades arbitrárias mas figuras específico. O projecto designado por Internet
que têm todo o sentido no delinear de uma Protocol (IP), criado nos anos setenta, viria
teoria das ligações. Psiché procura interme- a determinar a evolução da comunicação em
diários, alguém que restabeleça a ligação, que rede, colocando vários pontos em comuni-
lhe devolva Eros. Antes de viver naquele local cação. A comunica com B e este com C. E
poderia recorrer à família, vizinhos ou assim sucessivamente, até que nenhum dos
amigos, mas agora pode falar, sem dificul- pontos esteja isolado. Se um computador não
dade, com os deuses com quem se cruza no está ligado a outro e por sua vez estes ligados
caminho. Vemos, então, que a partir da à rede, ficam na contemplação do isolamento
relação com Eros, Psiché encontra-se enre- total, o que gera situações de dependência.
dada numa nova rede de ligações. (Marcelo, p.18) A tarefa de Euler para saber
Recorre em primeiro lugar a Pã, figura quantas vezes teriam os habitantes que re-
da fusão, que une as formas animais e as petir a travessia de uma das pontes de
formas humanas, filho de Hermes e mensa- Konigsberg para atravessar as sete pontes,
geiro dos deuses mas nem este a pode ajudar. seria agora mais difícil. Não há uma estrada
Continua a caminhada em busca do esposo única a percorrer, há miríades delas, inúme-
e entra no primeiro templo que encontra, o ros endereços de páginas, todas interligadas
de Ceres, deusa da multiplicação. Nem esta entre si. Não há estradas, seria pouco, mas
a ajuda, com receio do castigo de Vénus. um sistema de redes leva o nosso pedido à
Encontra o templo de Juno, protectora das outra parte do mundo e traz-nos a resposta
ligações contratuais mas nem ela a pôde em alguns segundos:
auxiliar. Como se não bastassem os males, “Yes, I heard you!”
Vénus toma conhecimento da união do filho (Lazlo Bárabasi)
a uma mortal e sua maior inimiga e ficou Partilhamos da opinião de Rodrigues
encolerizada. Mandou procurar Psiqué em quando diz que o modelo da Internet con-
todas as partes para a castigar. A Eros siste “numa dupla rede: uma rede de circu-
ameaçou pô-lo na companhia da Sobriedade, lação de mensagens, conservadas numa
que o castigaria pela abstinência. Resta a espécie de memória, a que os utentes estão
Psiqué entregar-se livremente a Vénus, que conectados por circuitos electrónicos, e uma
a submeterá a inúmeras provas, a fim de a rede aleatória e transversal à primeira,
castigar. interconectando os utentes entre si, indepen-
A primeira destas consiste em separar um dentemente da distância geográfica, social ou
monte de grãos e dividi-los por espécies. São cultural que os separe” (Rodrigues por
as formigas que fazem o trabalho, usando Marcelo, 133), ligação que é feita a uma
o mesmo processo que a rede utiliza quando velocidade quase vertiginosa. A distância no
digitamos uma palavra num qualquer motor espaço era sempre acompanhada pela distân-
de busca: “- Laboriosas filhas da terra com- cia no tempo (300 kms a 100 kms hora =
padeçam-se dos perigos que corre a esposa 3 horas de viagem) Agora vemos um e-mail
do Amor; voem em socorro da mais bela das chegar em segundos a outra parte do mundo.
jovens!” (Apuleius, 142, 143.) Prova supe- Are you there? Yes, you may come in. Está
rada. A ligação funcionou, como notou Vénus: sempre alguém do lado de lá.
“Feia criatura, isso não é obra tua, mas sim As tecnologias dão-nos a possibilidade de
do insolente a quem agradas.” (Idem, 143) deixarmos de estar confinados a um lugar
É obra do senhor das ligações. físico. Não permitem apenas um conjunto de
Partindo desta analogia, o aparecimento transformações e fusões humanas que tornam
da Internet deu-nos o livre acesso às fontes possível um novo tipo de formas corporais
de informação. Um acesso que levou o mas permitem também a produção e o
homem a querer ultrapassar o espaço do controlo da informação e a simulação e outras
visível, apesar de as linhas telefónicas e as entidades. Fazem-se e refazem-se mundos.
336 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Voltando à fábula, a segunda prova torno-os iguais, para que o casamento seja
colocada por Vénus consiste em pedir à nora legítimo e legal. Bebe, Psiché, e sê imortal!
que lhe traga um novelo de lã de ouro retirado Nunca o Amor se separará de ti, o himeneu
de carneiros selvagens. A solução é-lhe une-vos para sempre!”(Idem, 51)
segredada por Zéfiro, o mensageiro de Eros. Ultrapassada a primeira fase das provas
Prova ultrapassada. A terceira, trazer um balde em que é feita a triagem das fontes de
de água de uma fonte rodeada de um enorme informação - obra realizada pelas pequenas
rochedo, aparentemente inacessível por to- formigas, e superadas as barreiras que pre-
dos os lados. As águas rolavam por um canal tendiam impedir o acesso às fontes de in-
profundo e apertado, que despejava no vale formação - os dragões que guardavam a fonte,
próximo. De cada lado, duas cavernas, com vemo-nos em frente a uma nova realidade.
dois dragões acordados de dia e de noite. Por um lado um vasto número de “info-
Esta prova pode levar-nos, simbolicamente, excluídos” que as oposições governamentais
às questões de segurança na rede e levar- não se cansam de referir e que nesta fábula
nos a indagar se as leis do mundo físico estão representados pelos pais de Psiché; por
estarão aptas para reger os mundos virtuais. outro, a existência de um número cada vez
Um sistema governamental físico parece maior de addicted: os levados ao Hades que
obsoleto e incapaz de congregar pessoas não resistem a abrir a caixa. É esta a maior
situadas num espaço virtual. Este é um dos das provas a ultrapassar. Estamos ainda na
problemas abordados na colectânea editada fase da incompreensão. Afinal o que é que
por Peter Ludlow, Crypto Anarchy, está em jogo: Um mero instrumento técnico,
Cyberstates, and Pirate Utopias. Os dragões uma ligação à informação, ou o acesso ao
são exemplo das firewalls procurando barrar outro?
acesso a hackers. “Que fazes tu? Retira-te, A ausência física, patente nesta fábula,
pensa em fugir ou morrerás!”(Idem, pág.145) tem contribuído para que duvidemos da
Uma águia vai ajudá-la, em memória da altura possibilidade de existirem relacionamentos
em que o Amor prestara a Júpiter. Funciona entre indivíduos que não podem tocar-se,
a memória da ligação, tal como os nossos relacionamentos algo primários. Estas novas
computadores funcionam com a memória em formas de relacionamento (não creio que lhe
cache. possamos chamar novas porque temos rela-
Resta a prova final. Pegar numa caixa, cionamentos semelhantes aos que caracteri-
entrar no inferno e de lá trazer uma caixa zam o mundo físico, com a diferença de
com algumas parcelas de beleza. Chegar até existir uma separação geográfica entre os
lá implica uma série de passos: descobrir a pares) provocam alterações na psiché do
entrada, levando um bolo de cevada em cada indivíduo (Kerchove, 20), na medida em que
mão e duas moedas na boca. Não falar a consistem numa adulação do ego, confundin-
ninguém lá dentro. Dar uma moeda a Caronte do as emoções e fomentando o desequilíbrio.
para que possa entrar, um bolo ao animal Aquilo a que Freud chamava realidade
que guarda o palácio de Proserpina. Uma vez era sempre o problema de uma realidade
lá dentro devia recusar-se a sentar-se à mesa social, o problema da ligação aos outros e
e a comer as iguarias que lhe apresentassem. não de uma realidade física. É sempre o
Pediria apenas um pouco de pão duro e problema de se organizar no seio de uma
comeria sentada no chão. Traria a caixa, mas realidade humana e social, a realidade dos
sem a poder abrir. No regresso o mesmo outros homens, das instituições e valores.
percurso: o bolo a Cércero e a moeda a Agora a identidade é livre e depende apenas
Caronte. Feito o percurso, Psiché estaria a da nossa escolha.
salvo, logo que resistisse ao desejo de ter A utilização de uma identidade
a beleza para si. Mas não conseguiu e caiu exploratória, baseada nas narrativas infantis,
em sono profundo. Eros foi em seu auxílio em que podemos fingir ser quem quisermos,
e acordou-a. Apelou a Júpiter, defendeu a sua e que pode ser trocada a qualquer momento,
causa e este concordou em consentir o não é pacífica para o ser humano. Podemos
casamento. Tranquilizou Vénus, dizendo que escolher uma identidade uma vez e, depois
o seu filho não casaria com uma mortal. “Eu de jogarmos duas ou três vezes o mesmo jogo,
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 337

já sabemos quais as personagens que têm mais sição) mas durante o dia de trabalho, o que
sucesso. Basta treinar para escolher o que conta é a palavra amiga, o jogo do “quem
queremos ser. As tentativas valem o esforço, és tu e será que eu sou quem digo ser?” mas,
uma vez que o prémio alcançado é superar apesar de tudo, não nos podemos ver. Porque
as frustrações e os constrangimentos da também, nas ligações sociais, deixar o outro
realidade, tal como Psique. O mundo das ver-nos implicaria tirar toda a magia, seria
tecnologias ou dos semi-deuses permite-nos o cair da máscara. Se esta falhar, procura-
explorar o que quisermos, aparentemente sem remos outra ligação que supra a lacuna. Se
sermos vistos, num mundo com o poder for visto, é o fim do mistério. Resta procurar
ilimitado dos sonhos que gratifica a criati- outro nó de ligação ou encontrar o que se
vidade e a ominipotência. Com esta erosão perdeu.
do possível e impossível, real ou imaginário, A utopia à volta da tecnologia
a ênfase fica nas ligações (Robbins, 140). computacional é escapar aos constrangimen-
Há reminiscências de sentimentos e fantasias tos físicos. O sonho a cumprir é deixar a
de omnipotência quando se regressa ao carne e a imortalidade para trás para formar
mundo físico, aí a frustração é ainda maior. uma relação pura e incontaminada, através
A realidade artificial é designada de acordo da tecnologia. O corpo ideal não se cansa,
com os ditames do prazer e do desejo, não tem constrangimentos nem frustrações
motores das ligações, motores que estão a mas é na busca desse corpo que os nerds
apelar a um comportamento regressivo e a se tornam vegetais. Afastam-se da sociedade,
desejos solipsistas. (Robbins, 146) o que revela uma certa lacuna na comuni-
Há, contudo vantagens. Os utilizadores cação face a face, o que os leva a emergir
não ficam constrangidos pela presença do nesta nova realidade. Diz Rotzer que um só
outro mas também não há toque. (Será ele mundo já não é suficiente, queremos muitos.
preciso?) Depois, enredamo-nos numa rede Mas, acima de tudo, o que mais se verifica,
que fomenta a aparente invibilidade. Apa- é a transposição para a rede das necessidades
rente, dissemos, porque o não ser visto é do quotidiano. O que levou Psiché a Eros
fictício. O homem já não pode esconder- foi a incapacidade humana de suprir a sua
se, tal como Psiché não podia esconder-se necessidade. As fronteiras físicas estão di-
de Vénus. Quem é o senhor A? Posso tentar luídas, a informação circula quase livremen-
localizá-lo através de um motor de busca. te num constante vaivém. O fascínio vem de
O comum mortal sabe que o FBI utiliza acreditarmos que “uma simples ligação às
mecanismos de controlo inseridos nos pro- redes telemáticas parece trazer-nos o mundo
gramas da Microsoft. Os próprios sites inteiro ao domicílio e pô-lo ao nosso alcan-
instalam cookies para conhecerem o perfil ce. (Marcelo, 79) Foi o que aconteceu a
dos seus utilizadores. É a cultura do Psiché. Estar com Eros era a garantia de que
desvelamento, posso ser feliz assim...mas estaria tudo bem. E mesmo quando a ligação
quem será o outro que não vejo? É melhor foi quebrada ficou a memória dela. As provas
pegar na navalha e na lâmpada, na técnica que Vénus colocou à mortal Psiché foram
e na ciência, para saber quem está do outro resolvidas por ajuda de seres que trabalha-
lado de lá. ram em memória de serviços feitos pelo
Os relacionamentos de hoje, acompanham Amor. Estamos suspensos entre duas condi-
a nossa vida quotidiana, fazem parte dela. ções: a nostalgia do mundo físico (as remi-
A relação Homem/técnica mostra-se nesta niscências que Psique tinha da família) e a
relação Psiché / Eros, “derivam um em presença num lugar óptimo em que tudo está
relação ao outro, interpenetram-se e hibridam- à nossa disposição.
se”: Eros comete pecados como os mortais, Há, ainda, algo de alucinação perante esta
Psiché aspira à divinização. Actualmente, tecnologia dos sonhos e dos milagres que leva
podemos utilizar um media que nos põe em o homem a julgar-se transcendente e, ao fim
contacto com pessoas do outro lado do da tarde, é “a família dos amigos invisíveis”
mundo, dá acesso a toda a informação (o que que aparece, como afirma Rheingold. “You
fascinou Psiché foi não haver guardas na- can´t see me”porque fica sempre o desejo
quele imenso lugar que tinha à sua dispo- de uma identidade protegida. Quanto mais
338 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

se mostra, mais se perde a magia. E o sucesso help but anthropomorphize the elements in
dos chats e programas de troca de mensa- the world around us. It’s in our blood” (“The
gens tem a magia do véu que fica por Dishinibishion Effect”)
desvelar. E também You don´t know me que O que é feito da mortalidade de Psiché,
revela uma certa introprojecção solipsista da sua fraqueza? Terminou ao unir-se ao elo
porque, apesar de tudo, na Internet, está que é Eros, conseguiu a imortalidade. Tentou
(quase) tudo na nossa mente. Tudo parte de todas as mediações para recuperá-lo e con-
nós. A ideia do outro, do monstro está em cluiu que não precisava delas. Foi sozinha,
nós. entregar-se à mãe do Amor para conseguir
Há uma relação de transferência para o ter acesso a ele e conseguiu. Psiché torna-
computador, Eros não era Homem mas era se num novo media, um novo nó donde
ele que podia resolver os problemas de partirão novas ligações. Torna-se mais um
Psiché. “These models (em que a Internet ponto da rede, no mundo de Eros. Um mundo
está incluída) also shape how people select “aberto a todas as possibilidades, um espaço
and experience things in their lives that are fluído, oferta de múltiplos percursos e pos-
NOT human, but so closely touch our needs sibilidades infinitas” (Moura, 4) Um mundo
and emotions that we want to imbue them em que “You are Me, I am you, We are all
with human characteristics. We humans can´t together”.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 339

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340 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 341

Estratégias de midiatização das ONG‘s1


Jairo Ferreira2

Introdução social ou seriam de outra ordem. Nesse


sentido, consultamos a Abong para verificar
O objeto de pesquisa apresentado foi o vínculos das mesmas com o Fórum Social
construído na investigação experimental “A Mundial, o qual foi criado por instituições
emergência do campo de significação das do movimentos social (entre os quais a CUT
ONG’s na Web: discurso e contexto de e MST). O quadro evolutivo das ONG’s que
produção em dispositivos digitais”3. Nessa compõem o corpus da pesquisa é o seguinte
pesquisa, a análise da distinção de cada (Tabela 2).
instituição (ONG`s) no mercado formado Essas dados sobre a presença no Fórum
pelos discursos concorrentes na Web, refere- serão utilizados posteriormente nas análises
se não só às modalidades do dizer em texto, de correlações. Essa pesquisa utiliza um
mas ao conjunto do dispositivo. Através dessa método de análise que é um encontro de
análise, pretendemos configurar o mercado diversos procedimentos visando formalizar
discursivo composto pelas mídias digitais um conjunto de hipóteses que respondam às
assinadas pelas ONG`s na Web. dimensões da lógica, da explicação causal e
O procedimento de coleta para essa pes- da competência implicativa, em articulação
quisa partiu da lista de ONG‘s da Abong (As- com as questões teóricas do campo da
sociação Brasileira de ONGs). Essa lista foi comunicação. Procuramos sempre trabalhar
ampliada pela pesquisa na Internet, atingindo com tríades conceituais, evitando análises
cerca de 300 sites. Esses foram distribuídos por com mais dimensões que dificultassem a
temas (análise de conteúdo). As maiores ocor- formalização do pensamento. Na articulação
rências : ecologia, gênero, dst/aids, criança/ado- entre as várias tríades, buscamos o pensa-
lescente, índios e movimentos ligados à mento relacional mais avançado, ou comple-
globalização (Movimentos de Resistencia). xo. Essas formalizações foram construídas no
Desse conjunto, foram escolhidos aleatoriamen- âmbito da pesquisa, lentamente, com diver-
te 31 sites distribuídos entre os temas mais sas idas e vinda, partindo de um conjunto
recorrentes. Em cada site, foi coletada uma categorial normalizado pela literatura do
amostra de até 35 textos, escolhidos em pro- campo (numa verdadeira bricolagem de
porção aos tipos de materiais encontrados. Nos conceitos, esse momento foi de abertura, de
sites com um número de textos inferior à média, uso diverso de categorias, procurando
a amostra foi inferior, o que foi compensado pertinência em relação a problema de pes-
pelos sites com maior número de textos. A quisa em construção).
média, como pode ser verificado no quadro Muitas das categorias originais foram
abaixo, é de 33 textos por sites. abandonadas, outras reconstruídas, e articu-
Uma questão sempre reiterada é saber se ladas com novas perspectivas. Nesse sentido,
essas instituições pertencem ao movimento nossas categorias não são pré-construídas, e

Tabela 1 - Sites e número de textos analisados

Sites Textos
17 sites : tema ecologia 600 textos
7 sites : tema gênero 200 textos
7 sites : tema dst /aids 200 textos
Total : 31 sites 1000 textos
342 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Tabela 2 - Participação das ONGs investigadas nos fóruns mundiais.


Fonte: organização do Fórum

FÓRUM 1 FÓRUM 2 FÓRUM 3


ONGs
(2001) (2002) (2003)
AACC (Associação de Apoio às Comunidades do Campo do RN X X

ABAPAM (Associação Barbosense de Proteção Ambiental)

ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids) X

AGIRAZUL na REDE

AJA (Associação Jequitiba de Agroecologia) X

AMAJF (Associação pelo Meio Ambiente de Juíz de Fora)

AMAZONA (Associação de Prevenção à Aids) X X

AMB (Articulação de Mulheres Brasileiras) X X

CAZUZA

CEMINA (Comunicação, Educação e Informação em Gênero) X X

CFEMEA (Centro Feminista de Estudos e Assessoria) X X

ECOM (Ecologia e Comunicação)

ECOS (Comunicação em Sexualidade) X

GAPA (Grupo de Apoio e Prevenção à Aids) X X

GGB (Grupo Gay da Bahia)

GIV (Grupo Humanitário de Incentivo à Vida) X X

GREENPEACE international X X

GRUDE X

GRUPO ORIGEM X X

GRUPO SIM A VIDA

GTA (Grupo de Trabalho Amazônico) X X

IAAL (Instituto Socioambiental Austral)

ICV (Instituto Centro de Vida) X


IMAFLORA (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e
X
Agrícola)
ISA (Instituto Socioambiental) X X

MIRA-SERRA

REDEH (Rede de Desenvolvimento Humano) X

SEA SHEPHERD

SEB (Sociedade de Ecologia do Brasil)

SOS CORPO X X

WWF (Fundo Mundial para a Natureza) X

sim tomaram forma lentamente, ou seja, a objeto de pesquisa. Cada uma das tríades
pesquisa não avançou sob o clássico proces- ou díades foi inserida num processo de
so de codificação conforme categorias pré- construções de hipóteses experimentais,
vias. A não utilização desse processo, caro que estão relacionadas entre si e cotejadas
sob todos os aspectos, nos permitiu avançar com as questões teóricas e epistemológicas
em direção a um conjunto categorial novo no processo de análise. Este artigo se refere
relativamente às categorias e conceitos ori- especificamente a tríade informação, re-
ginalmente utilizados para a construção do flexão e política4
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 343

Informação, reflexão e política mídias digitais é jornalístico, na medida em


que a “opinião” não se desenvolve em torno
Consideramos que a informação jornalís- dos eventos, nem dos acontecimentos
tica está ancorada em cinco dimensões. Duas referenciais que compõem o quadro da
são temporais (inspiradas no conceito de notícia. As proposições e argumentos se
discurso relatado de Charaudeau, 1997): a referem muitas vezes a temas eletivos que
proximidade em relação ao tempo de ocor- não estão incluídos na agenda jornalística
rência do acontecimento que referencia o (embora possa compor a agenda de deter-
discurso; o acompanhamento temporal do minados campos específicos com as quais as
desenrolar do acontecimento. A terceira é ONG’s trabalham: ecologia, mulheres, crian-
formal (inspirada em Rodrigues, 1993): a ças etc.). Isto é, as problematizações,
informação jornalística tem o seu valor elucidações, avaliações etc. ocorrem, aparen-
condicionado pela probabilidade menor do temente, sobre assuntos recolhidos numa
evento (como vai sugerir a teoria da infor- agenda que pertence ao conjunto das ONGs
mação e os teóricos da comunicação). Even- que concorrem em torno de um determinado
to muito provável, sem acompanhamento tema (ecologia, infância etc.), seus progra-
temporal e sem proximidade à ocorrência do mas, formas de acesso direto aos aconteci-
acontecimento referencial pode ser informa- mentos que irrompem no cenário midiático
tivo, mas não é jornalístico. Por isso, em (e será necessário aqui verificar em que
nosso sistema de classificação, um evento medida essa irrupção agenda o subsistema
desse tipo é informação fraca. No caso midiático fundado em fortes capitais
inverso, satisfeitas as três condições, temos econômicos e políticos, isto é, a chamada
a informação jornalística forte. grande imprensa). Sugerimos que os crité-
O valor social da informação jornalística, rios de classificação da reflexão jornalística
entretanto, não é absoluto. É relativo, isto partam da informação jornalística.
é, depende de outras dimensões relacionais. A terceira dimensão que abordamos é a
Uma dessas dimensões (a quarta) se refere do discurso político. O discurso político
à forma jornal (Mouillaud). Um texto encontra sua singularidade e legitimidade
jornalístico impresso em folhas de papel ancorada no campo político. O campo po-
ofício pode ter menos força social do que lítico é lugar de especialistas, como diz
um texto de baixo valor jornalístico impres- Bourdieu, que requisita um monopólio da
so num dispositivo jornal (ancorado em fala, decorrente de uma competência que
editorias, com títulos, seções, fotos, legendas supõe uma formação especial, e de uma
etc.). A última dimensão é a inserção do preparação de seus integrantes para partici-
discurso no âmbito de um conjunto de outros parem da concorrência pelo poder. Mesmo
discursos concorrentes sobre o mesmo tema, não se constituindo em partidos políticos, as
pelas distinções que opera, pelo reconheci- ONG‘s são instituições que disputam o espaço
mento do mesmo como um discurso do público no âmbito deste campo, e, por isso
campo midiático. O valor social do discurso mesmo, nele se inserem como interlocutores
num determinado mercado pode deslocar a que disputam os leigos, legitimam as auto-
sua força para baixo ou para cima em termos ridades, creditam ou debitam popularidade a
de informação jornalística. Isto é, um dis- todos aqueles que compartilham sua temática,
curso sobre um acontecimento atual, que possuindo seus próprios capitais políticos
acompanhe o desenrolar, e seja sobre um (militantes, sedes, siglas, programas, congres-
evento pouco provável, pode restar sem sos, funcionários, etc.). A dimensão política
reconhecimento no campo midiático (isto é, do discurso das ONG‘s, portanto, expressa
pode resultar num discurso com baixo poder sua condição de pertencimento na constitui-
de agendamento). ção do campo político (inúmeros políticos
A reflexão jornalística tem características tem parcela de sua legitimidade autorizada
especiais que a diferenciam do texto refle- por movimentos como esses). Porém, nem
xivo em geral. Em geral, o texto reflexivo sempre o discurso das ONGs é “francamen-
mais evidente é tratado como opinativo. Nem te” político, ou seja, um discurso voltado para
sempre o material “opinativo” das ONG’s em o questionamento, avaliação e programação
344 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

das políticas públicas, de mobilização dos mi- discurso, coordena suas perspectivas com seus
litantes e da ação social para a execução de concorrentes, e integra olhares conforme
um programa, etc. As dimensões políticas determinados perfis institucionais. Num jogo
podem ser dissimuladas, decorrência de uma sem fim entre conteúdos observados e for-
dependência de recursos governamentais para mas possíveis de relatar, o corte se faz na
o seu funcionamento (o que pode implicar temporalidade do campo jornalístico e nos
em determinados pactos sobre o modo de tempos de seus dispositivos específicos (rá-
dizer). As dimensões observáveis no discur- dio, televisão, etc.), nas agendas concorren-
so são a tematização de objetos pertencentes tes no espaço público, disputadas no campo
(virtual ou realmente) à esfera pública, a das mídias.
incidência nas políticas públicas estatais, a Nesse processo, há um nível específico
mobilização de simpatizantes, funcionários e relacionado ao dispositivo (Mouillaud, 1997,
militantes à ação política, etc. Ferreira, 2002b, 2002c). A informação jor-
Já as dimensões relacionadas a reflexão nalística é produzida em rotinas e objetivada
partem de nossa perspectiva teórica de que em textos estruturados em formas categoriais.
o texto é, em sua constituição ontológica A distribuição em editoriais, seções, capa,
resultante de uma ação social, necessariamen- títulos, legendas, fotos, etc. se constitui num
te uma forma de reflexão. Desenvolvemos processo de diferenciação, distinção e clas-
essa abordagem em vários artigos em que sificação incorporados às rotinas produtivas,
tratamos a produção de sentido advindas da que localizamos como um sistema sócio-
linguagem (Ferreira, 2002a, 2003a; Ferreira técnico de produção discursiva e cognitiva
e Dayan, 2003c). Piaget afirma isso, ao dizer do mundo. E, nesse sentido, a forma jornal
que a linguagem requisita um reflexionamento remete já a uma reflexão que atravessa a
perante o sentido da ação. Através da lin- produção, circulação e consumo de informa-
guagem, afirmamos que o jornalista ções jornalísticas. Aqui, quanto maior a
reconstitui ações de um acontecimento, diferenciação, distinção e classificação em
coordena ações num tempo e espaço diver- formas, maior o nível de reflexão.
sos do ontológico, categoriza os eventos, num
processo de reflexão ascendente que Das reflexões à construção de marcas
reconstitui os observáveis sugeridos em seu
discurso. Isso indica as dificuldades do A partir dessas reflexões teóricas, inves-
conceito de informação. Se a informação se tigamos essa tríade na perspectiva de marcas
refere ao relato, afirmamos que ela não existe discursivas. A forma jornal é observada numa
sem a opinião, na medida em que essa se organização do espaço – signo na forma de
constitui em torno dos processos de reflexão, lead, editorias, seções, colunas, links, foto,
substrato da argumentação e avaliação. Se legendas, títulos, assinaturas, citações, etc.
o texto já é reflexão, o relato já é opinião (Mouillaud, 1997). A atualidade abrange a
e comentário. presença na esfera do enunciado nas marcas
Isso não desfaz a possibilidade de uma de localização do acontecimento em três
diferenciação de textos mais ou menos modalidades temporais (presente, passado e
argumentativos. É esse degradê que dificulta futuro), nas técnicas de lead, na
a análise categorial estática, e expõe os limites processualidade operada através de títulos
da análise de conteúdo. As formas possíveis referenciais e informacionais. No título, o
de reconstituição das ações, a coordenação acontecimento é presentificado; no artigo, as
entre eventos no texto, a comparação entre diversas temporalidades são recuperadas. O
acontecimento concorrentes (a guerra do apagamento em relação a data do aconteci-
Iraque e o do Golfo, o governo Lula ou de mento pode ocorrer também pela omissão do
FHC), as categorizações (indiciais ou explí- verbo (o que significa omitir o tempo do
citas) das personagens e acontecimentos, acontecimento), fechando o título numa
podem estar mais ou menos subordinadas aos classificação do acontecimento, sendo a clas-
observáveis relatados. Esses são processos de sificação um trânsito do título informacional
regulação, através dos quais o jornalismo se para o título referencial. Nesse sentido, o
adapta à construção social dos objetos de efeito-presente do texto jornalístico relati-
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 345

vamente a data do acontecimento será bus- de evento; há muito tempo não ocorre; mas
cado no texto do artigo, em oposição ao efeito há também o que ocorre normalmente, o que
de atualidade buscado no enunciado (do significa acontecimento de rotina (habitual);
título). média probabilidade, acontecimento ocorre
Apaga-se também atos diversos, distribu- diversas vezes com o transcorrer do tempo.
ídos no discurso, que registrariam a presença O agendamento é o inverso do anterior.
de outros agentes do processo enunciativo. Aqui, o importante é se falar sobre algo que
Nesse sentido, o acontecimento sai, através é falado pelos outros, que pertence ao fluxo
das operações sobre os enunciados, da esfera de interações entre várias campos sociais, que
narrativa (história que se conta num tempo através de suas instituições, estabelece estra-
sobre eventos distribuídos em tempos e tégias de atualização informacional. O
espaços localizados, incluindo agentes do agendamento deixa marcas em processos
processo enunciativo) e “vai” para a esfera enunciativos, onde agentes de enunciação
da classificação (o que significa para nós, aparecem com outros enunciadores (de ou-
o ingresso no texto, ou do enunciado, na tras instituições e/ou campos sociais) e
esfera da ordem argumentativa, ou reflexi- agentes de enunciados (de outras instituições
va). e/ou campos sociais), ancorados em tempos
O texto tem as marcas do desenrolar diversos (fala-se em alguém num determi-
através de três operações marcadas no nado tempo e espaço).
enunciado. Primeira, através de outros dis- A partir dessas marcas construías foram
cursos dos agentes do processo enunciativo, configurados os seguintes dados agregados
há o título anafórico (Mouillaud, p. 105). (Tabela 3).
Nesse caso, aparecem o recurso aos artigos A dimensão reflexão inicia-se com a
definidos (o, a, os, as) a partir dos quais o categorização, ou tematização. Muitas vezes,
texto lembra “os acontecimentos antes do inicia com a ONG classificando a sim mesma.
número e dos quais a duração excede a Depois, classificando os outros, e assim por
duração quotidiana. O título anafórico con- diante, criando um sistema classificatório. As
fere ao jornal uma temporalidade específica” marcas da categorização são verbos que
(p. 105). Nesse tipo de título, há uma atu- indicam pertencimento de um indivíduo (ou
alização do acontecimento através de diver- coleção) a outra coleção, ou exclusão dos
sos níveis de categorizações. Num primeiro mesmos de outra coleção, através de uma
nível, o acontecimento remete a classes e determinada ação. Ou seja, é quase impos-
paradigmas gerais (tipo “ a caso Zé Dirceu...”, sível falar sem categorizar (através de con-
“A crise do Oriente...”). Esse nível, chama- junções – soma, disjunção – subtração, res-
mos de condensação. Num segundo nível, trições, oposições, causalidade, etc.). Esse
ocorre a ressemantizações através de outros processos aparecem como confrontação en-
níveis de tematizações (exemplo: no caso da tre discursos – confrontar discursos é uma
plataforma da Petrobrás que afundou, isso forma de reflexão. Assim, no campo das
aparece na ressemantização do acontecimen- mídias, podemos confrontar Rigotto com
to como acidente, escândalo, problema sin- Olivio, Lula com FHC, etc., ou comparação
dical, drama familiar...). dois discursos, ou dois acontecimento sobre
A baixa probabilidade foi pensada em os quais a mídia fala. Exemplo: a guerra do
termos relacionais. Um acontecimento pouco Vietnã com a Guerra do Iraque – uma guerra
provável é um acontecimento que tem um com ideologia, uma guerra sem princípios;
valor discursivo forte relativamente a outros ou, as duas guerras são decorrentes de in-
discursos. A presença discursiva das ONGs teresses econômicos; etc. A diferenciação
visa preencher lacunas discursivas no campo nasce da comparação (falar das diferenças
das mídias, procurando gerar um novo fluxo, sobre um determinado acontecimento): Guer-
em torno de falas sobre acontecimentos pouco ra do Vietnã (conjuntura de confronto entre
prováveis de serem ditos pelas mídias ex-União Soviética e EEUAA); guerras no
hegemônicas. Aqui, o importante é a fala diga Oriente (conjuntura de acirramento cultural
algo de novo (não porque é atual, mas porque entre ocidente e oriente; entre sociedade de
não foi dito) do tipo: nunca ocorreu este tipo mercados e sociedades pré-mercantis; entre
346 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Tabela 3 - As colunas abaixo agregam dados relativos às dimensões construídas (res-


pectivamente, informação, atualidade, desenrolar, baixa probabilidde e agendamento).
Assim, é interessante verificar que a ausência de desenrolar indica uma fragilidade de
inserção da informação no fluxo da produção jornalística industrializada. A forma jornal
e a probabilidade são médias, indicando também formatos em que os textos, mesmo
quando informativos, estão integrados a dispositivos não jornalísticos e uma tendência
a produzir acontecimentos de rotinas (mesmo que essas sejam do escopo das ONGs).
Os pontos fortes estão na atualidade (de suas atividades) e no agendamento (que aparece
forte, como vimos no item campo de pertencimento dos agentes do processo enunciativo,
como agentes do enunciados diferenciados).

111 112 113 114 115


100 0 1 1 4 9
200 0 0 0 0 0
400 1 3 2 1 3
500 54 50 19 31 45
600 0 4 1 0 2
700 0 0 0 0 0
800 0 1 0 0 0
900 19 27 6 8 26
1000 24 22 2 12 27
1100 0 16 1 11 26
1200 24 22 1 12 35
1300 21 24 1 7 33
1400 0 2 0 2 10
1500 21 17 3 16 21
1600 6 15 1 5 22
1700 10 12 3 11 19
1800 8 8 1 1 9
1900 0 19 1 4 23
2000 4 8 0 0 10
2100 25 21 4 6 26
2200 31 23 0 13 29
2300 1 20 0 6 16
2400 69 99 6 30 113
2500 5 4 0 3 4
2600 26 23 1 10 18
2700 29 32 0 20 28
2800 20 35 4 24 26
2900 2 31 0 11 24
3000 0 6 1 1 7
3100 0 23 0 15 19
3200 0 23 0 4 3
82 177 6 88 129

muçulmanos e cultura judaico-crista). E, final- duas guerras são compreendidas como um pro-
mente, a integração nasce também da compa- cesso único, do tipo: ambas se fazem contra
ração entre eventos e discursos diferentes, mas, os EUA, portanto, são conflitos vinculados a
na integração, não se busca a diferença. Se busca hegemonia desse Estado-Nação, contra cultu-
um lugar de identidade entre acontecimento ras alternativas (ideológicas, religiosas, políti-
diversos, recorrendo a um patamar em que as cas e culturais - Tabela 4).
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 347

Tabela 4 - Os dados agregados indicam a fragilidade em termos de processos reflexivos


no discurso das ONGs. Essa fragilidade indica a alta de presença de marcas de um
discurso opinativo. A opinião é um embrião do processo reflexivo, que só através de
diferenciações atinge os níveis do discurso teórico e as grandes condensações simbólicas.
Aqui encontra-se uma contradição entre o esforço de institucionalização e os níveis de
legitimação (Berger e Luckmann, 1985, p. 129). Essa contradição reduz o potencial das
estratégias de institucionalização observadas nas mediações construídas através das
representações sociais, do legislar, moralizar e ordenar o “bom caminho” social.

121 122 123 124 125


100 16 0 2 0 0
200 1 0 0 0 0
400 13 0 4 0 3
500 17 27 21 5 16
600 10 3 7 1 1
700 2 0 0 0 0
800 3 0 1 0 0
900 12 5 14 2 0
1000 21 0 8 0 0
1100 28 0 4 0 0
1200 32 3 9 4 0
1300 23 0 10 0 0
1400 10 0 2 0 0
1500 19 9 14 3 3
1600 30 1 3 0 0
1700 19 0 1 0 0
1800 7 0 0 0 0
1900 4 0 3 0 0
2000 17 0 3 0 0
2100 21 1 3 1 0
2200 31 7 8 1 2
2300 15 1 1 0 0
2400 95 9 18 2 2
2500 5 0 0 0 0
2600 34 6 2 0 2
2700 26 6 3 2 1
2800 34 1 2 0 0
2900 25 1 0 0 1
3000 9 0 0 0 0
3100 19 0 0 0 0
3200 19 0 0 0 0
171 14 7 2 4

Consideramos que o discurso pela ação manifestação do 25 de Abril, data da Revo-


política tem como objeto questões da esfera lução dos Cravos, havia quem pedisse inves-
pública. Mas quais são essas questões? Elas timento público em calçamentos e esgotos.
variam. Exemplo: A Revolução dos Cravos Portanto, podemos alargar o conceito de
foi feita tendo como temas as grandes ques- objetos da esfera pública: são todos aqueles
tões da esfera pública (a democracia, a tratados pelo Estado (do calçamento a violên-
propriedade da terra, os direitos dos traba- cia), e também todos aqueles que, mesmo sem
lhadores, e assim por diante). Mas, hoje, na trato pelo estado, as ONGs pretendem transfor-
348 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

mar numa questão de políticas de Estado, ou tema geral. As de organização se refere às agendas,
de debate na “praça pública”, envolvendo agentes datas, espaços materiais de atividade (prédios,
sociais localizados em vários campos sociais. cidadas, estados, nações), cronograma de de-
As marcas de mobilização vão se carac- senvolvimento das atividades, quadros com
terizar pela chamada a ação estrito senso. Uma responsabilidades diferentes, etc. (saldo).
passeata, uma caminhada, um ato coletivo e Marcas de um projeto pedagógico implica em
/ou individual, uma ocupação, um convite para cursos, cartilhas, bibliografia, textos, discur-
envio de e-mails, cartas, utilização de adesi- sos de formação, tempo para formação, qua-
vos, camisetas, etc. Isso pode ter como público- dros preparados, com capacidade de agir e dis-
alvo militantes, simpatizantes ou população em cursas sobre o tema da ONG, etc. (Tabela 5)

Tabela 5 - Agir, organizar e formar. Essas três dimensões se destacam como marcas
de um discurso que responde às rotinas das ONGs. Relacionadas às outras dimensões,
elas indicam enunciados vinculados ao campo político herdado da modernidade (em
especial, do movimento social-democrata e socialista).

131 132 133 134 135


100 11 5 3 2 0
200 0 0 0 0 0
400 20 11 6 16 0
500 45 19 29 14 8
600 7 2 9 6 3
700 1 0 4 3 0
800 3 1 2 1 1
900 28 10 13 14 4
1000 26 3 12 12 0
1100 10 10 30 22 2
1200 35 1 19 10 1
1300 32 4 16 20 0
1400 13 1 11 10 9
1500 24 15 22 1 11
1600 22 10 28 5 4
1700 23 7 20 14 1
1800 13 2 5 8 0
1900 15 7 31 22 1
2000 9 4 17 14 0
2100 23 5 22 23 6
2200 30 12 20 16 3
2300 24 6 17 17 3
2400 114 36 112 100 13
2500 5 0 3 2 0
2600 23 6 23 18 3
2700 29 5 16 5 4
2800 33 2 20 9 0
2900 25 3 13 14 2
3000 6 3 9 6 2
3100 22 1 16 6 2
3200 19 0 9 11 5
162 20 109 71 18
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 349

Algumas observações finais proporcional ao grau de dependência e su-


bordinação (por partes dos sites assinados
Se considerarmos as dimensões acima pelas ONGs) à produção de informação
para caracterizar o que chamamos de infor- jornalística realizado pelo subsistema
mação jornalística, podemos afirmar que a midiático fundado sobre fortes capitais
maioria dos sites de ONGs que categorizamos econômicos e políticos (ou seja, à “grande
encontra-se num nível inferior e médio in- imprensa”). Ou seja, parte das informações
ferior de informação jornalística. Os limites jornalísticas das ONG’s é gerada na “grande
são: uma grande quantidade de informação imprensa”, ou em agências de notícias (como
não jornalística acompanhada de alguns casos a Agência Brasil).
de informação estritamente jornalística (nas Já o discurso político de caráter
quais encontramos as dimensões: aconteci- jornalístico, num só movimento, articula
mento próximo no tempo, com acompanha- discurso político, opinião e acontecimento,
mento do desenrolar e eventos poucos prová- num feixe em que o jornal (mídia) é o partido
veis). As primeiras evidências dos dados (portanto, instituição do campo político), que
coletados indicam que o valor jornalístico da chama seus militantes, funcionários e públi-
informação é promovido nos sites conforme cos à ação. Essa é uma das modalidades.
os capitais econômicos, políticos e culturais Poucas ONGs conseguem fazê-lo. Esse é o
das ONGs. caso das ONG’s com fortes capitais cultu-
Assim, os sites das ONG’s Grenpeeace rais, econômicos e políticos (como o ISA).
e ISA oferecem discursos do tipo jornalístico. Nesse caso, se inserem as agências temáticas
Porém, essa oferta está condicionada. No (como a Ecoagência de Notícias e a ECOM
Greenpeace, parte dos textos jornalísticos – Ecologia e Comunicação) como produto-
informativos é apropriada na perspectiva ras de mídias e notícias. Por essas vias, ocorre
opinativa, sendo a informação jornalística e o agendamento da “grande imprensa” pelas
não jornalística oferecida através de links mídias das ONGs, inclusive gerando os
externos a outros jornais e instituições (o que “textos informativos” dos jornais localizados
remete, às vezes, a um espaço público entre em posições de concentração de capitais
instituições que não passa pela “grande econômicos e políticos.
imprensa”). Já o ISA produz, através de Portanto, as disposições discursivas das
colaboradores e funcionários, textos ONGs em mídias digitais nos indicam con-
jornalísticos vinculados aos seus objetos de dutas diversas. Por um lado, há apropriação
discurso. Por sua vez, o Greenpeace também dos discursos jornalísticos como um dos
reproduz e edita textos produzidos por suas fatores dinâmicos dos fluxos midiatizados em
agências com um formato reflexivo elabo- sites. Essa apropriação de discursos ocorre,
rado (seus Breafings). A correlação entre em grande medida, através de um jornalismo
ocorrência do discurso jornalístico e capitais “opinativo”, em que proposições, avaliações
incorporados (Greenpeace, Agirazul e Isa) é e críticas são feitas conforme os aconteci-
um indício de que não há jornalismo sem mentos relatados na grande imprensa. Assim,
capitais (sendo o capital econômico somen- o subsistema “grande imprensa” é legitima-
te uma condição do trabalho especializado do e, ao mesmo tempo, criticado. Por outro
requisitado a sua produção). lado, as ONGs criam uma agenda própria,
A interpretação desse valor creditado ao vinculada a sua ação político temática, em
discurso jornalístico pelos sites das ONGs que constituem uma singular associação entre
é de vários tipos. Em termos endógenos, o informação jornalística da própria ação (aces-
discurso perde valor se ele não circula; a so direto e disruptivo à atualidade, desen-
informação jornalística é o ponto dinâmico rolar e improbabilidade) e discurso político
dos discursos dos sites; em termos exógenos, (em que militantes, funcionários e simpati-
o valor do discurso é indissociável de um zantes são chamados à ação). A legitimação
mercado para o qual ele se dirige, mercado do discurso das ONG’s também ocorre
esse demarcado pela agenda do espaço quando o subsistema “grande imprensa”
público. Esse processo gesta um elo funda- aceita os temas propostos pela ação política,
mental da hegemonia no campo midiático, e incorpora os mesmos em sua agenda. Esse
350 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

é o caso do Sea Shepherd. Sua ação política Uma grande quantidade dos sites que se
agenda a mídia e, além disso, os textos rela- mantêm estáveis na rede são de informações
tivos aos acontecimentos que cria têm elevado e artigos opinativos com baixo valor
grau de aproveitamento nas mídias digitais, jornalístico (isso é, não preenchem os requi-
sempre reproduzidos muitas vezes na íntegra. sitos anteriores). Essa estrutura está presente
Porém, as classificações possíveis dos inclusive nos sites que apresentam textos
textos conforme apresentados anteriormente jornalísticos renovados com uma certa
não esgotam a problemática da distinção entre temporalidade. Ou seja, os sites das ONGs
mídias digitais assinadas pelas ONG‘s em não são jornalísticos, nem portais, mas sim
determinados mercados temáticos. A diferen- fortemente institucionais, e a notícia aí
ciação ocorre em vários níveis. O primeiro encontra-se portanto numa outra forma, em
deles é do acesso aos meios de produção. que o conjunto localiza o discurso jornalístico
Muitas ONG‘s utilizam servidores numa totalidade diferente do jornal. Em geral,
disponibilizados por outras instituições, ten- a notícia é vinculada a linques “notícia”, os
do uma vida instável. Isso pode estar vin- quais não são diferenciados em editorias, e
culado aos capitais econômicos, políticos e a única forma de organização é temporal (data
culturais, mas é necessário investigar em que de edição). Isso indica dois processos con-
medida as dimensões especificamente traditórios: se a ocorrência do texto
comunicacionais se articulam os processos jornalístico indica anuência à forma jornal,
sociais macroestruturais. O uso do blog como a indiferenciação da forma jornal indica uma
recurso foi observado como uma alternativa estratégia que a subordina a outras estraté-
sem sucesso (no sentido da produção e gias comunicacionais (do tipo comunicação
circulação da informação jornalística). institucional).
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 351

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352 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

3
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Recherches et d´Etudes Publicitaires), Paris. sidade de Buenos Aires. Bolsistas de Iniciação
1983. Científica: Claucia Ferreira da Silva e Soraia
Zimmermann. O universo estudado é de 35 ONG‘s
(2/3 das quais no tema ecologia) e cerca de 1200
_______________________________ textos.
4
1
Os fundamentos teóricos das reflexões aqui Essa tríade retoma, com algumas modifica-
desenvolvidas estão em vários artigos do autor. ções, as clássicas funções do jornal político da
2
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – social-democracia d’ O que fazer, de Lenin (in-
Unisinos. formar, conscientizar e organizar).
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 353

Periodismo de “código abierto”:


diversidad contrainformativa en la era digital
José María García de Madariaga1

Tan importante como el relanzamiento favorecer la deliberación social que le falta


mediático de los movimientos sociales a la democracia representativa.
favorecido por las nuevas Tecnología de la El impacto más profundo de la
Información y la Comunicacin (TIC), es el colaboración digital no es el que se deja ver
refuerzo organizativo que estos colectivos en los movimientos ya formados y
encuentran en ellas para configurarse como consolidados, sino el que abre un camino muy
actores capaces de incidir en la deliberacin sugestivo para la formación de nuevos
social. Lo interesante de este paso cualitativo, movimientos sociales. La prueba quizás más
aparte de su potencialidad en lo referente a palmaria de esta tendencia a la participación
relevancia social, es el proceso desestructurada se materializa en procesos de
eminentemente deliberativo con el que se intervención ciudadana como el que se vivió
gestan y gestionan sus pretensiones y los en Madrid el pasado sábado 13 de marzo,
contenidos de su construccin informativa de víspera de unas elecciones generales cuyas
la realidad. A pesar de que la tecnología es circunstancias y antecedentes neutralizaron la
en muchos sentidos causa y efecto de brechas indiferencia de un 10% del electorado. El
sociales cada vez más grandes y profundas, propio desarrollo comercial de Internet facilita
también se ha hecho más asequible en opciones que pueden ser aprovechadas para
términos económicos y culturales para el establecer todo tipo de relaciones humanas
desarrollo de iniciativas colectivas. Muchas que, si bien se caracterizan por la fugacidad,
de ellas deben al abaratamiento y a la la irrelevancia social y la ausencia de
simplificación de los dispositivos electrónicos compromiso, en no pocos casos sirven para
y digitales su propia existencia, no as las poner de relieve inquietudes globales y locales
inquietudes que les lleva a fundarse. Es el de gran calado, al margen de su pequeña o
caso de Witness 2 , ONG que denuncia nula repercusión en las agendas oficiales.
violaciones de derechos humanos en Aparte de las múltiples formas de
diferentes puntos del planeta a través de los participación en foros, chats y listas de correo,
propios testigos, quienes filman y editan quizás uno de los modelos que más han
reportajes con el material y la ayuda técnica impactado en la comunicación social es el
de los voluntarios de esta organización. de los weblogs, diarios personales publicados
Lo que nos muestra este tipo de iniciativas en la Red que han proliferado de manera
es que las nuevas TIC ofrecen un enorme imparable desde 2002, muy particularmente
potencial a la hora de explotar fórmulas durante las semanas previas al inicio de los
colaborativas entre los miembros de los ataques a Irak y mientras duraron los
movimientos sociales para la comunicación bombardeos. A través de ellos, millones de
de sus inquietudes, tareas y resultados e internautas publican sus inquietudes sobre
incluso para la elaboración de sus cometidos cualquier asunto que se pueda imaginar3.
si su objetivo es eminentemente informativo. Asumiendo la dificultad de que Internet
En este sentido, hay que fijarse especialmente sirva por sí sola para convocar y estimular
en las ventajas que la digitalización brinda inquietudes sociales tal como mostraron las
a la puesta en común de recursos y ensoñaciones emancipatorias de las radios y
conocimientos. La colaboración en red, con televisiones comunitarias desde los años 70
todas sus variantes y formatos, se presenta (Manuel Chaparro, 2002), la colaboración
así como la base operativa y conceptual de social mediante fórmulas digitales encuentra
una forma de entender la organización que caminos mucho más prometedores y con
encaja perfectamente con el objetivo de resultados palpables. Un fenómeno
354 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

especialmente llamativo en este sentido es el Linux, modelo de creación colectiva


que plantean los sistemas Peer to Peer (P2P),
programas informáticos, que en su versión más Otras iniciativas similares a Indymedia,
lúdica permiten el intercambio de archivos entre con vocación participativa y global, como la
los usuarios de Internet sin necesidad de la Asociación para el Progreso de las
mediación de servidores, un modelo de Comunicaciones (APC)7, así como de tipo
transmisión que, si bien se aplica en gran medida local o regional, como Nodo 508, Liberinfo9,
de modo comercial, recoge el espíritu libertario Barrapunto10 y muchos otras, participan del
de los orígenes contraculturales de Internet. mismo espíritu de colaboración que trata de
Éstos son los sistemas como eMule, eDonkey, explotar los nuevos recursos tecnológicos para
Kazaa y otros, que tantos quebraderos de cabeza propiciar la distribución de competencias en
están provocando en las industrias musicales los procesos de información. Lo que tienen
y cinematográficas por la facilidad con la que en común estas organizaciones y plataformas
permiten a los internautas copiar canciones y organizativas es uno de los aspectos nucleares
películas recién estrenadas; aunque también son de la presencia y efectos de las nuevas TIC
los que facilitan el trabajo compartido de manera en nuestra sociedad global: Linux. Desde los
completamente descentralizada, como ocurre puntos de vista operativo, conceptual y de
con el gestor de conocimiento y colaboración los resultados, este sistema operativo es
Groove4. quizás la manifestación contracultural más
Pero sin duda son experiencias colectivas extendida, consciente de sí misma, estable
como la de Independent Media Center (IMC), y creciente de esta sociedad globalizada y
conocida popularmente como Indymedia5, las una de las más destacables que ha
que plantean las alternativas comunicativas experimentado la humanidad. Si entendemos
más contundentes al modelo unidireccional la contracultura como alternativa a la cultura
y vertical que predomina en los medios de dominante, Linux se presenta como la opción
comunicación convencionales. Indymedia es más completamente antitética de la
una red mundial que recibe y publica hegemonía de las construcciones y los
informaciones y recursos multimedia procesos de producción y consumo que
aportados por testigos directos y no inspira el pensamiento único.
profesionales de los acontecimientos que se De hecho, Linux es algo más que un
producen en todo el planeta, tanto los que sistema operativo que, aparte de ser libre y
aparecen en los medios convencionales como gratuito, ofrece una seguridad y una
los que ni siquiera son mencionados. Esta estabilidad funcionales mucho mayores que
red cuenta con servidores locales en múltiples las de los sistemas operativos comerciales,
enclaves del planeta que sirven de nodos para incluido, por supuesto, el hegemónico
garantizar su principal objetivo: potenciar una Windows de Microsoft. Es además una
forma de comunicación lo menos mediada alternativa conceptual y procedimental de
posible, interactiva, comunitaria y transversal, producción cultural que se fundamenta en el
mediante la construcción colectiva y trabajo colaborativo en red y en la superación
permanente de la noticia. Aunque cada nodo del marco tradicional de autoría desarrollado
tiene sus procedimientos, cualquier internauta durante la era industrial. Linux es la expresión
puede publicar su información en el más clara de una nueva ética, la del hacker,
Indymedia que escoja, pasando por el único cuya esencia contradice profundamente a los
filtro de las votaciones de los lectores, que planteamientos con los que se construyó la
son las que determinan la ubicación más o ética protestante que identificó Weber. Esta
menos destacada de los artículos bajo la ética establece unas coordenadas nuevas para
supervisión de un equipo supervisor que no valorar el trabajo intelectual que desplazan
puede censurar nada6. En definitiva, se trata el objetivo del reconocimiento profesional,
de una apuesta por lo que autores como Pierre en cualquiera de sus acepciones por el de
Lévy (1999) o Derrick de Kerchove (1999) la pasión, cuyo resultado debería ser la
definen como inteligencia colectiva o gratificación del entorno. Este cambio de
distribuida, este último desde posiciones más matiz supone, según Pekka Himanen (2001),
tecnofílicas y macluhanianas. el origen de un nuevo espíritu, el de la era
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 355

de la información, radicalmente opuesto al magnitud de tiempo calificado en un


del industrialismo protestante. Se trata de una problema que cualquier compañía.
concepción integral que rompe con el viejo (Raymond, 1998, 27)
espíritu capitalista y su idea de la propiedad
que, contrariamente a las tesis de Rifkin sobre El espíritu del que habla Himanen y que
la era del acceso (2000), se refuerza aún más imbuye de creatividad efectiva al bazar de
que en la etapa industrial, aplicándose de Raymond es el mismo que inspira el ideario
manera creciente en la información y el y la actividad de movimientos sociales
conocimiento a través de patentes, marcas, como Wu Ming (antes conocido como
copyrights y todo tipo de contratos. Lo más Luther Blisset), que durante los últimos
interesante de este nuevo espíritu es que no años se han especializado en buscar y
abandona en absoluto los mecanismos del aplicar nuevas fórmulas de la creación
capitalismo, lo que lo convierte en una colectiva y acción política. Aunque Wu
corriente contracultural de la que no puede Ming es un conjunto de personas
apartarse el mercantilismo, pues forma parte identificadas que, entre otras acciones y
de él. Como explica Himanen, obras, ha ejercitado con notorio éxito la
producción colectiva de obras literarias y
En realidad, propone una economía científicas11, la esencia más profunda de su
de libre mercado en un sentido mucho existencia es la “singularidad múltiple”. La
más profundo que en el léxico idea de “condividuo” aparece como fórmula
capitalista habitual, pero sin dejar de para desconstruir los mitos cristalizados por
ser economía capitalista. (Himanen, y para la reproducción del poder como el
2001: 79) de la fundación de EE UU o el del
proletariado, y construir un mito nuevo y
Lo que distingue al modelo cerrado abierto que haga de la comunidad “una
construido sobre la restricción del síntesis de conflicto y cooperación, una
conocimiento mediante la exaltación de la construcción interminable de situaciones sin
propiedad intelectual, del modelo abierto perdedores, porque la victoria será el propio
representado por Linux basado en la desarrollo del juego, así como la
colaboración y la descentralización, queda estipulación de nuevas alianzas temporales
recogido en la elocuente metáfora que da y la creación de reglas que incluyan
título al ensayo del hacker Eric Raymond: alianzas temporales y la creación de reglas
La catedral y el bazar (1998). Ambos que incluyan su flanqueamiento y
espacios representan dos formas opuestas de transgresión (Luther Blisset, 2000: 11-12).
entender la producción cultural y su Wu Ming, que en chino significa “sin
distribución: centralización, aislamiento e nombre”, presenta así la mayor subversión
individualismo frente al desorden abierto y posible ante la exacerbación del
el intercambio horizontal. Y ambos modelos individualismo:
conviven estrechamente aunque, según
Raymond, Podría conformarme con decir que un
nombre múltiple es un escudo para
Es posible que a largo plazo triunfe defenderse del poder existente cuando
la cultura del software libre, no porque trata de identificar y encontrar a sus
la cooperación es moralmente correcta enemigos, un arma en manos de lo
o porque la “apropiación” del software que Marx describió irónicamente
es moralmente incorrecta (suponiendo como “el lado malo” de sociedad. En
que se crea realmente en esto último, Spartacus, de Stanley Kubrick
lo cual no es cierto ni para Linus ni (E.E.U.U., 1960), todos los esclavos
para mí), sino simplemente porque el derrotados capturados por Crassus
mundo comercial no puede ganar una afirmaban ser Spartacus, igual que
carrera de armamentos evolutiva a las todos los zapatistas son Marcos y
comunidades de software libre, que todos los míos son Luther Blissett.
pueden poner mayores órdenes de (Luther Blisset, 2000: 6)
356 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Participación vs información restringida motivaciones monetarias” (Mateos, 2001).


Por el contrario, alternativas heterodoxas
Al calor de la cultura del código abierto como el Copyleft o la General Public License
surgen iniciativas de todo tipo animadas por (GPL), “protegen” producciones colectivas
la liberación de conocimiento (frente a la como Linux de su apropiación por parte de
liberalización de los contenidos) y las ventajas intereses comerciales, sometiendo cualquier
de los nuevos soportes digitales para alcanzar pieza de software que se le añada a las
“la supremacía del valor de uso sobre el valor condiciones de apertura, transparencia y
de cambio” (Levy, 1999: 60)12. Sin embargo, publicidad. Las comillas de “legales” y
la gran contradicción que vincula al modelo “protegidas” se deben a que, obviamente, sólo
abierto con el cerrado, al bazar con la catedral las instituciones públicas tienen la capacidad
y a la identidad múltiple con el poder de la coercitiva de establecer y aplicar normas, y,
individuación es, como plantea Pekka al parecer, por el momento, favorecen a los
Himanen, intereses comerciales y privados más que a
la salvaguarda de la accesibilidad y la
la paradójica dependencia de la transparencia del conocimiento y la cultura.
información codificada y cerrada Como concluye Mateos, “al aceptar
respecto de la informacion abierta y, definiciones cada vez más laxas de
de libre acceso. Esta paradoja se halla ‘originalidad’, los registros de DPI permiten
en el corazón de nuestro presente: de la privatización de enormes conjuntos de
hecho, si se considera con toda información a los que basta con añadir
seriedad la dependencia de las extensiones ‘propietarias’”.
empresas de tecnología respecto de la Los derechos del autor, tal como están
investigación, se debería decir que el planteados actualmente, más que una garantía
dilema ético al que se enfrentan las de reconocimiento del trabajo y el mérito de
empresas en la nueva economía de la los productores intelectuales y culturales,
información consiste en que el éxito constituyen un instrumento eficaz para la
capitalista sólo es posible mientras la salvaguarda de los intereses comerciales de
mayoría de los investigadores las industrias culturales. Sin embargo, el
continúen siendo “comunistas” [...] profundo problema que supone la
Sólo mientras se tenga libre acceso desprotección del trabajo creativo para la
al saber científico, los añadidos producción cultural de una sociedad tan
marginales que se hagan a la sofisticada como la digital, podría encontrar
información colectiva llevarán a mejor solución si se articulara, desde el punto
espectaculares beneficios individuales. de vista normativo e institucional, como uno
Esta paradoja se debe al hecho de que de los elementos imprescindibles de una
la sociedad red no está determinada política comprometida con la universalidad
únicamente por el capitalismo sino, del conocimiento y no con su restricción.
en un grado cuando menos igual, por En el caso del periodismo, sus portavoces
el «comunismo» científico. (Himanen, ya no pueden reclamar la exclusividad de su
2001: 79-80) papel con el argumento de su autoría. Lo que
más les refuerza en todo caso es su
Efectivamente, aquí está el mayor riesgo pertenencia al medio para el que trabajan,
del “fortalecimiento de los DPI [derechos de que es el que verdaderamente se beneficia
propiedad intelectual] y la creciente tendencia de la pervivencia anacrónica del modelo
a considerar la información como una actual de propiedad intelectual, como exponía
mercancía propiedad de alguien pueden poner Ignacio Escolar en el III Congreso de
en peligro la existencia de las reservas Periodismo Digital en enero de 2003:
existentes de ‘información pública’ [...]:
fomentar su apropiación por parte de Una sociedad de autores que se
individuos con objetivos económicos, preocupara por el trabajo de los
haciendo desaparecer finalmente las periodistas, del mismo modo que los
conductas que no se hallan basadas en músicos tienen una sociedad que les
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 357

protege [...] a lo mejor no es tan buena A pesar de los ataques de algunos sectores
idea porque podemos estar haciendo profesionales a la concesión que suponía este
el caldo gordo a intereses muy experimento, la semilla de Jane´s y Slashdot
distintos al del autor.13 ha germinado de diversas maneras en
diferentes medios digitales. En las mismas
La conclusión que mostraba José Cervera fechas nacía en Corea del Sur OhMyNews18,
en ese mismo congreso era aún más rotunda: un sitio de noticias que basaba su estructura
productiva en una inmensa red de
La propiedad intelectual está abolida corresponsales, formada hoy por 26.000
de facto, sólo falta que las leyes se ciudadanos-periodistas que nutren sus páginas
enteren. Lo que salvará a los autores de todo tipo de informaciones y opiniones.
de la copia indiscriminada será ‘’la Este medio participativo se ha convertido en
economía de la reputación’’: si el diario digital más influyente del país con
plagias, baja tu reputación en el una media de 14 millones de visitas diarias
mercado.14 y dos millones de lectores, es decir, un 35%
de la población surcoreana. De manera similar
Objetivo: abrir el núcleo de los discursos funcionan la publicación japonesa JanJan19,
dominantes que también se ha erigido en serio competidor
de los principales medios convencionales; o
Ante este panorama tan contradictorio, GetLocalNews 20 , una red de sitios web
resultan especialmente valiosas las desplegada por todos los Estados Unidos que
experiencias periodísticas que no se recoge mediante una infraestructura de
conforman con producir material informativo edición sencilla las inquietudes más presentes
al margen o en contra de los discursos entre la ciudadanía local. Ejemplos más
dominantes – tal como sucede con la mayoría recientes y más localizados son los de Santa
de los weblogs –, sino que apuestan por Fe New Mexican21 o The Dallas Morning
fórmulas de integración que aspiran a News22, que se han convertido en puntos de
incorporar en los medios convencionales las referencia inevitables siguiendo el modelo de
aportaciones de la ciudadanía y los OhMyNews.
movimientos sociales a través de los nuevos El llamativo de los último experimentos
recursos tecnológicos. En los últimos diez de periodismo participativo es el que Jason
años ha habido muchas experiencias de lo Calacanis inició en 2003 con
que se ha dado en llamar periodismo Weblogsinc.com23, una adaptación del código
ciudadano15, pero Jane’s Intelligence Review16 abierto al periodismo especializado que aspira
fue la primera publicación que puso en a reunir a 300 socios webloggers expertos
marcha en 1999 una iniciativa inspiradas en en diferentes áreas temáticas para superar los
el código abierto de Linux cuando sometió problemas de credibilidad y autonomía que
a la crítica de los usuarios expertos de padece el periodismo tradicional. Este
Slashdot17 un artículo sobre ciberterrorismo proyecto supone una sistematización de lo
y una lista de preguntas sobre sus contenidos que algunos medios convencionales como la
antes de publicarlo. La respuesta fue tan BBC han empezado a asumir con la
contundente que el editor de Jane´s decidió incorporación de espacios de publicación
desechar el texto original y construir uno personal en sus páginas web. Si ya son
nuevo con los comentarios aparecidos en muchos los precedentes en lo que se refiere
Slashdot y las clarificaciones y los datos que a aportación de materiales audiovisuales y
a continuación se solicitarían a algunos de testimonios por parte de la ciudadanía para
los expertos de este site. Con ello se la producción informativa convencional en
inauguraba una nueva forma de hacer sus diferentes vertientes (no sólo en Internet),
periodismo en la que la redacción informativa no son menores las expectativas que se abren
se asemejaba al proceso en el que los en el desarrollo de esa línea de trabajo, dadas
programadores de Linux analizan, critican y las potencialidades que brinda la cada vez
retocan una versión beta de software. más sofisticada y asequible tecnología móvil,
358 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

que pone en las manos de cualquier ciudadano síntomas contrastables de un nuevo marco
una verdadera unidad móvil multimedia. teórico basado en los nuevos paradigmas
Las experiencias de periodismo ciudadano comunicacionales, que plantean redefi-
revelan de manera clara la profundidad de niciones conceptuales en la comunicación
los efectos que las nuevas TIC están periodística y en la mediación social ejercida
provocando en la esencia de la comunicación hasta ahora por los periodistas, entre otros
social. Son efectos que ya nadie rechaza como actores.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 359

Bibliografía profesional con el mantenimiento diario de sus blogs


personales, en los que presentaban versiones más
Blissett, Luther. Pánico en las redes. heterodoxas de sus crónicas y reportajes. La CNN
Teoría y práctica de la guerrilla cultural. llegó a censurar a su reportero Kenin Sites,
Madrid, Literatura gris, 2000. prohibiéndole la publicación de su diario en Internet.
Otras cadenas adoptaron posturas más inteligentes
Bowman Shayne y Willis, Chris. We Media.
ante tal bifurcación narrativa: la BBC no sólo
How the audiences are shaping the future of consintió que sus enviados desarrollaran sus diarios
news and information. The Media Center at the personales de guerra, sino que lo alentaron
American Press Institute, 2003. Disponible en: facilitándoles espacio en su servidor para alojarlos.
http://www.hypergene.net/wemedia 4
http://www.groove.net/.
[Consulta: 13/2/2004] 5
www.indymedia.org.
6
Casacuberta Sevilla, David. Creación Cabe aquí destacar el enorme valor simbólico
colectiva. En Internet el creador es el público. que tiene uno de los últimos proyectos de
Barcelona: Gedisa, 2003. Indymedia desde el punto de vista de las
Chaparro Escudero, Manuel. contradicciones socioeconómicas de la
Sorprendiendo al futuro. Comunicación para globalización: Indymedia Estrecho, una iniciativa
en plena fase de creación y en la que están
el desarrollo e información audiovisual. Sant
participando diversos movimientos sociales de
Cugat del Vallés (Barcelona): Los Libros de Andalucía, Canarias y el Magreb. Como
la Frontera, 2002. contrapartida, hay que señalar otro de los nodos
Himanen, Pekka, La ética del hacker y de la red de Indymedia, la de Madrid, donde la
el espíritu de la era de la información; coordinación de las votaciones de artículos punto
prólogo de Linus Torvalds; epílogo de Manuel fundamental en cualquier Indymedia, como hemos
Castells. Barcelona: Destino, 2002. visto, fue motivo de excesivos enfrentamientos
Kerckhove, Derrick de. Inteligencias en entre los principales participantes del nodo.
7
conexión: hacia una sociedad de la web. http://www.apc.org.
8
Barcelona: Gedisa, 1999. http://www.nodo50.org/.
9
Lévy, Pierre. ¿Qué es lo virtual? http://www.liberinfo.net.
10
http://www.barrapunto.com.
Barcelona: Paidos Ibérica, 1999. 11
Q, Manual de Guerrilla de la Comunicación,
Mateos García, Juan. Derechos De
Esta revolución no tiene rostro.
Propiedad Intelectual Y Espacios De 12
Un buen ejemplo de la experimentación de
Información Pública [en línea]. En: University nuevas fórmulas para socializar el conocimiento es
of East Anglia Norwich, 2001. Disponible en: el Libro Interactivo editado por el Máster de
http://www.uea.ac.uk/~j013/wipout/ Televisión Educativa de la Universidad Complutense
essays/1012garcia.htm [Consulta: 20/09/2003] de Madrid, dirigido por Agustín García Matilla, cuyos
Rifkin, Jeremy. La era del acceso: la contenidos se distribuyen a través de redes educativas
revolución de la nueva economía. Barcelona: y sociales con un precio por debajo de su coste
Paidos, 2000. y muy inferior al precio que tendría si se
Villate, Javier. “Periodismo de ‘fuente comercializara como cualquier producto multimedia.
13
La Vanguardia, 18 de enero de 2002. En:
abierta’”. [En línea]. Enredando, 1999.
h t t p : / / w w w. l a v a n g u a r d i a . e s / c g i b i n /
Disponible en: http://www.enredando.com/ n o t i c i a l v d . p l ? n o t i c i a =
cas/cgi-bin/enredantes/plantilla.pl?ident=77. huesca180102&seccion=int...
[Consulta: 12-agosto.03] 14
Ibid
Wolton, Dominique. Sobrevivir a 15
Según Pew Center, al menos el 20 de los
Internet: conversaciones con Olivier Jay. aproximadamente 1500 periódicos estadounidenses
Barcelona: Gedisa, 2000. practicaron alguna fórmula de periodismo
Wu Ming. Esta revolución no tiene participativo entre 1994 y 2001 con resultados
nombre. Madrid: Ediciones Acuarela, 2002. notablemente positivos.
16
http://jir.janes.com/.
17
http://www.slashdot.com.
18
www.ohmynews.com.
_______________________________ 19
www.janjan.jp.
1
Universidad Rey Juan Carlos. 20
getlocalnews.com.
2
http://www.witness.org/. 21
http://www.santafenewmexican.com.
3
Durante la invasión de Irak, muchos 22
http://www.dallasnews.com.
23
corresponsales de guerra compaginaron su labor Weblogsing.com.
360 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 361

El impacto de Internet en los medios de comunicación en España.


Aproximación metodológica y primeros resultados
José Pereira1, Manuel Gago, Xosé López2,
Ramón Salaverría3, Javier Díaz Noci, Koldo Meso4
María Ángeles Cabrera, María Bella Palomo5

Historia de los cibermedios en España comparación de esas bases de datos, y de


otras parciales (por ejemplo, la que de
Internet, como nuevo medio de ciberdiarios hizo Bella Palomo para el In-
comunicación, ha encontrado ya su lugar en forme anual de la comunicación 1999-2000),
las últimas aportaciones bibliográficas sobre nos permitirá comprobar la evolución de los
historia del periodismo e historia social de diferentes medios de comunicación a lo largo
la comunicación6. También se dedicó un de una década, qué medios han sobrevivido
capítulo a la perspectiva histórica en la que y qué mutaciones han experimentado, así
puede ser considerada la primera monografía como qué otros medios han surgido, y
sobre ciberperiodismo en España 7. Han también desaparecido, aprovechando las
transcurrido diez años desde que en 1994 nuevas tecnologías.
aparecieron los primeros medios de Desde una perspectiva histórica, también
comunicación en la World Wide Web y nos interesa comprobar cómo se han
disponemos ya de una cierta perspectiva desarrollado, en su primera década de vida,
temporal que permita, aplicando la los estudios sobre ciberperiodismo. Otros
metodología histórica, explicar la evolución aspectos nos interesan también: la evolución
del ciberperiodismo español. Precisamente, empresarial y la estructura de las redacciones
trabajan en este sentido parte de los miembros de esos cibermedios, y también el público,
del proyecto de investigación “El impacto de tanto en lo que se refiere a su cuantificación
Internet en los Medios de comunicación en como en lo que se refiere a los aspectos
España”, financiado por el Ministerio de cualitativos. En definitiva, un enfoque social
Ciencia y Tecnología y reconocido con la para un análisis historiográfico de este nuevo
referencia BSO2002-04206-C04-02, en el que fenómeno comunicativo.
participan las universidades de País Vasco,
Navarra, Santiago de Compostela y Málaga. Mapa de cibermedios
Para empezar, disponemos de sendas
bases de datos que permiten comparar la “Mapa de cibermedios en España” es la
evolución del panorama de los cibermedios primera parte de la investigación menciona-
españoles en esos diez años. Entre los años da. En este caso, el objeto de estudio son
1994 y 1997 los profesores de la Universidad todos aquellos emisores de contenidos que
del País Vasco Koldo Meso Ayerdi y Javier tienen voluntad de mediación entre hechos
Díaz Noci confeccionaron una base de datos, y público, utilizan fundamentalmente criterios
que se pretendía exhaustiva, con todos los y técnicas periodísticas, usan el lenguaje
títulos de cibermedios españoles, a partir de multimedia, se actualizan y se publican en
la ficha hemerográfica clásica de Jacques la red Internet. Por supuesto, dentro de esta
Kayser. Parte de los resultados de esa recogida clasificación se encuentran todos los que
de datos se publicaron en el El periodismo dispongan de un ISSN (International
electrónico: información y servicios en la era Standard Serial Number) y los que son
del ciberespacio, a modo de apéndice, y, de versiones de otros ya existentes, ya sean
forma muy resumida, un año después en periódicos, radios o televisiones.
Medios de comunicación en Internet8. Desde La ficha de análisis utilizada refleja dos
2003, las cuatro universidades que trabajan grandes áreas: datos de identificación (nombre,
en el mencionado proyecto de investigación ubicación, dirección, …) y datos de publicación
nutren una base de datos con todos los de la información (tipología, actualización, otros
cibermedios españoles actuales. La soportes, contenido, idioma,…).
362 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Para realizar la muestra, el grupo ha var en el transcurso de la investigación ha


diseñado una base de datos en línea a la que sido la variedad de tipologías que existen en
pueden acceder exclusivamente los la actualidad en España. Observamos que la
codificadores y miembros de los equipos de gran mayoría parte de la concepción de
investigación y que ha permitido una mejora cibermedio como prensa periódica. Esto
en el proceso de recogida de datos. ocurre en el 57,50% de los casos, lo que
Las fuentes que se han utilizado para supone hablar de 617 cibermedios. Si con-
elaborar este “Mapa de cibermedios” han sido tinuamos con esta clasificación por tipologías,
las diferentes guías de comunicación observamos que los cibermedios-radio
publicadas en España, los directorios locales, acaparan el 23,3% (251) del total en España,
un seguimiento de las informaciones seguidos de los cibermedios-televisión, con
publicadas o emitidas en prensa, radio o un 9,11% (98). El resto, son publicaciones
televisión, así como la búsqueda en los de otros tipos no incluidas en las anteriores.
diferentes buscadores. Una vez recogidos los A este dato tenemos que añadir la
primeros datos, los codificadores comprueban confirmación de una sospecha que teníamos
exhaustivamente cada uno de estos al inicio de la investigación: la mayoría de
cibermedios, para determinar o no su valía. los medios de comunicación en Internet
Los resultados del primer censo de españoles tienen una versión en otro soporte.
cibermedios en España son los que se pueden De hecho, los datos son muy claros: un 77,7%
ver en el siguiente cuadro: (835) de los cibermedios tienen un sucedáneo
en otro soporte distinto frente al 22,3% (240)
Porcentaje
Comunidade
Número
con respecto
que sólo existen en la red.
de Si nos referimos al tipo de contenidos,
autónoma al total
cibermedios
de España observamos un dato ciertamente interesante
Madrid 260 24,19 % relacionado con la especialización. La
Cataluña 198 18,42 % investigación realizada indica que el 43% de
Andalucía 12 6 11,72 % los cibermedios realizan información espe-
Euskadi 11 7 10,88 % cializada, frente al 57% que publican
información de carácter general. El dato
Galicia 61 5,67 %
confirma que en Internet existe una gran
Valencia 61 5,67 %
preocupación por la especialización en los
Castilla-La
Mancha
53 4,93 % contenidos, lo que abre cierta esperanza en
lo que se refiere a la calidad de los
Baleares 44 4,09 %
contenidos9.
Aragón 30 2,79 %
Otro nuevo dato aportado por la
Asturias 28 2,60 %
investigación confirma el interés en la
Navarra 17 1,58 % especialización: de los 462 (43%) cibermedios
Castilla-León 16 1,49 % que realizan información especializada, 114
Cantabria 14 1,30 % (24,67%) no tienen un equivalente en otro
Canarias 14 1,30 % soporte, frente a los 348 (75,32%) que sí la
La Rioja 13 1,21 %
tienen. Sin embargo, en los cibermedios de
información general se observa una sensible
Extremadura 10 0,93 %
disminución en el porcentaje de medios que
Murcia 7 0,65 %
no tienen más que una versión en Internet:
Melilla 4 0,37 % un 20,55% frente al casi 80% de los
Ceuta 2 0,19 % cibermedios de información general que
Total 1075 100,00 % tienen más de un soporte.

Tipología de cibermedios Modelos de negocio

Una de las características fundamentales En nuestro estudio también nos interesan


de los cibermedios que se han podido obser- los aspectos empresariales. Y en este senti-
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 363

do, la palabra que describe mejor el pano- publicidad y servicios de comercio electró-
rama actual de los modelos de negocio en nico. Este modelo es el elegido por la mayoría
los cibermedios españoles vuelve a ser, sin de las publicaciones con presencia exclusiva
duda, la heterogeneidad. De hecho, los medios en Internet (publicaciones digitales,
hispanos en Internet presentan modelos de confidenciales, weblogs, etc.), por los sitios
negocio diversos no sólo desde una perspec- web de todas las cadenas y emisoras de radio
tiva mediática – es decir, en función de si y televisión, y por la mayoría de las ediciones
el medio matriz es un diario, una televisión digitales de los diarios, sobre todo los de
o una radio –, sino también desde el punto difusión regional.
de vista de las distintas cabeceras dentro de
los diarios, por ejemplo, el abanico de Modelo de pago
modelos de negocio adoptados por las Es aquél que obliga a los usuarios a pagar
publicaciones va desde la total gratuidad al por la consulta de la totalidad – o, al menos,
pleno pago. Toda esta diversidad actual en de la gran mayoría de las informaciones- y
la adopción de modelos de negocio es un por el uso de los eventuales servicios
síntoma de la desorientación que padecen las interactivos de los medios. Este modelo ha
empresas de comunicación en su propósito sido incorporado por pocos cibermedios en
de asentar modelos de negocio sostenibles España, pero existen no obstante algunos
en sus publicaciones digitales10. ejemplos muy significativos. El más desta-
En los cibermedios hispanos actuales, hay cado, sin duda, es el caso de Elpais.es,
quienes aspiran a la rentabilidad atrayendo íntegramente de pago desde el 18 noviembre
audiencias masivas mediante la oferta gra- de 2002, salvo las secciones de ‘Participación’
tuita de todos sus contenidos y la adopción y ‘Opinión’. Junto a este ciberdiario, han
de estrategias multiplicadoras de su adoptado el modelo de pago, entre otros, la
visibilidad o, en expresión de Phil Meyer, práctica totalidad de los sitios web de las
de su “influencia”. No faltan tampoco quienes agencias de noticias, algunas revistas (por
pretenden ser rentables con estrictos mode- ejemplo, Hola), las ediciones en Internet de
los de pago, si bien como se detallará a la prensa económica (Expansión, Cinco Días,
continuación apenas cabe incluir en esta La Gaceta de los Negocios) y, en general,
categoría más que a unos contados aquellos cibermedios cuyos contenidos gozan
cibermedios, entre los que destacan Elpais.es de un alto valor añadido por su utilidad
y las ediciones digitales de los diarios profesional.
económicos. Aumentan asimismo los medios
que tratan de alcanzar la deseada rentabilidad Modelo mixto
a través de una combinación de las dos Es el resultante de la combinación de los
estrategias anteriores. Y, por fin, hay medios dos modelos anteriores. Se distingue del
que todavía se limitan a estar presentes en modelo de pago en que, si bien se exige el
la Red, sin modelo de negocio alguno más abono por una cantidad significativa de
que el de mantener una presencia informa- contenidos y/o servicios, el usuario puede
tiva testimonial o, menos incluso, meramen- obtener un servicio informativo suficiente
te corporativa. Estas estrategias coexisten en sólo con la oferta gratuita. La extensión de
la Internet hispana actual11 y dibujan los este modelo mixto está en aumento en los
siguientes tres modelos de negocio que últimos años y alcanza a medios de diverso
pretendemos analizar con detalle en nuestra tipo, particularmente a los portales de Internet
investigación: (que cobran, sobre todo, por algunos de sus
servicios interactivos) y a las ediciones en
Modelo gratuito Internet de algunos diarios sobre todo de
Consiste en dar acceso a una oferta difusión nacional (El Mundo, Abc), pero
gratuita de contenidos y servicios interactivos, también de ámbito regional (periódicos del
con la que los medios pretenden atraer a la grupo Godó y del grupo Vocento) y local
mayor cantidad posible de usuarios para (Diario de Navarra, El Periódico del Alto
traducir esa audiencia en ingresos por Aragón, etc.).
364 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Géneros son los factores que inciden más profunda-


mente en la evolución actual de las formas
El impacto de Internet en los medios de del discurso periodístico. Los nuevos géne-
comunicación también ha alcanzado a los ros ciberperiodísticos se caracterizan por
lenguajes. El desarrollo de unos medios con desarrollar los géneros clásicos en alguno de
características específicas, en una plataforma esos tres frentes aisladamente o bien, varios
tecnológica diferente de las anteriores y o todos ellos a la vez.
dirigidos a un tipo de lector/usuario con No por casualidad, los investigadores de
hábitos nuevos, estaba llamado a producir los nuevos lenguajes periodísticos coinciden
nuevas formas de expresión para el en señalar a la infografía digital como el
periodismo. Y así ha ocurrido. género que más ha evolucionado y ha
Durante su primer decenio de vida, los aprovechado más a fondo las posibilidades
cibermedios españoles han desarrollado for- expresivas de Internet13. La infografía digital
mas nuevas de expresión, al compás de lo es el género periodístico que recurre con más
que ocurría también en otros países. Partiendo variedad a la construcción hipertextual, a la
del canon profesional establecido por la integración multimediática de soportes
Redacción Periodística clásica, se han textuales y audiovisuales y, en menor me-
desarrollado las primeras formas específicas dida, también a los juegos interactivos entre
de codificación de los mensajes el género y el lector. En este sentido, puede
ciberperiodísticos, dando lugar así a lo que decirse que los cibermedios hispanos son un
ya se ha dado en llamar una nueva Redacción vivero fecundo de nuevas formas
Ciberperiodística 12. Estas nuevas formas ciberperiodísticas de discurso, por cuanto su
encuentran un referente directo en los géne- producción infográfica digital es ampliamente
ros procedentes de los medios impresos; no reconocida como una de las mejores del
en vano, al igual que en los periódicos, en mundo. Nuestra investigación tratará de
los cibermedios se habla, entre otros tipos comprobar la realidad de ese sentir común.
de textos, de noticias, entrevistas, reportajes,
columnas y editoriales. Sin embargo, el El diseño ciberperiodístico
lenguaje ciberperiodístico ha comenzado a
importar también formatos propios de los Los cibermedios han evolucionado visu-
medios audiovisuales. El género de las cró- almente desde sus primeras experiencias en
nicas simultáneas, profusamente utilizadas ya red entre las que destacan las vinculadas a
para el relato en vivo de eventos deportivos, cualquiera de los modelos ya definidos como
y los encuentros o entrevistas en directo, son el de reproducción facsimilar, así como el
claro ejemplo de esta importación de forma- adaptado al nuevo medio, el digital o el más
tos desde la radio y la televisión. De hecho, reciente modelo multimedia14. La aplicación
también formatos nacidos de la propia red, práctica de este último se ha concretado
como las bitácoras o weblogs, han comenzado fundamentalmente en el desarrollo de una
a ser incorporados como nuevos géneros infografía y una publicidad más interactivas.
periodísticos por parte de los cibermedios Entre los continuos intentos de adaptación
españoles. del diseño al nuevo espacio mediático
La tradicional tendencia del periodismo predominan todavía, las soluciones visuales
a perpetuar rutinas profesionales abre paso, procedentes del diseño gráfico15, que si bien
siquiera tímidamente, a nuevas formas espe- han aportado jerarquización a los contenidos,
cíficas de presentación de los contenidos así como claridad y orden en la presentación
periodísticos. Nuestro estudio pretende de información periodística, no han propi-
describir esas novedades. Aspiramos a ciado la apuesta por nuevas formas de diseño
mostrar cómo las nuevas formas plenamente inspiradas en el lenguaje audiovisual, como
ciberperiodísticas se caracterizan por por ejemplo la estructuración de las webs a
aprovechar cada vez más las posibilidades partir de un guión. De igual manera, aunque
expresivas de la información en la red; a ya se empieza a diseñar la información
saber, fundamentalmente la hipertextualidad, atendiendo a las posibilidades de
la multimedialidad y la interactividad. Estos hipertextualidad, multimedialidad e
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 365

interactividad, faltan soluciones visuales y también lo es el ciberperiodismo. Hasta qué


basadas en la personalización de los punto los nuevos medios ayudan o no al
contenidos, así como en el conocimiento de desarrollo de esas diferentes lenguas y de qué
las audiencias y en la accesibilidad que ofrece modo representan realmente la importancia
la red y que no contemplan un gran número de éstas a través de su presencia en el
de cibermedios. En los últimos años, los ciberespacio es algo que también analizamos
cibermedios han experimentado casi anual- en este ambicioso proyecto, desde varias
mente nuevos diseños, lo que favorece la vertientes.
adaptación a las nuevas tecnologías y soportes Un primer enfoque metodológico es
(pantallas de ordenador, televisor, móviles, cuantitativo, es decir, pretendemos medir en
PDA, etc.), a la vez que exige innovación, lo posible la presencia de esas lenguas en
y creatividad para plantear nuevas solucio- los cibermedios españoles y su importancia
nes audiovisuales de presentación de la relativa respecto, sobre todo, de la lengua
información periodística. común, el castellano. Por ejemplo, si el
porcentaje de cibermedios encuentra o no un
Lenguas y cibermedios españoles paralelismo con el número de hablantes de
esas lenguas. Aquí las situaciones legales son
España se configura, tras la Constitución bien diferentes, como lo es el nivel de uso
de 1978, como un estado con diferentes de cada lengua en las áreas geográficas donde
lenguas, una común, de conocimiento se hablan. Por ejemplo, no es igual el estatus
obligatorio (el castellano) y otras de ámbito jurídico del euskera en Navarra y en el País
geográfico más reducido a las que se otorga Vasco, y por lo tanto intentaremos comprobar
la posibilidad de ser cooficiales en cada hasta qué punto eso se traslada al uso en el
autonomía. En más de un cuarto de siglo de ciberespacio. Tampoco es igual el uso del
catalán en Cataluña o en Valencia,
vigencia de la actual Constitución, han sido
independientemente de la situación jurídica
varias las autonomías que han optado por
en que el idioma se encuentre en cada
conceder, con diferente estatus jurídico, la
comunidad.
categoría de cooficial a su respectiva lengua.
En segundo lugar, proponemos un
Así, en Galicia es cooficial el gallego; en
enfoque cualitativo. Esto, a su vez, quiere
el País Vasco y en Navarra, el euskera o
decir que nos fijaremos en el modelo o
vascuence; en Asturias, aunque la Ley de
modelos de lengua que se dan a conocer en
Normalización Lingüística se demoró bastan-
el ciberespacio. Sobre todo, aunque no sólo,
tes años tras aprobarse el Estatuto de
en el caso de las lenguas diferentes al
Autonomía, el asturiano es ya lengua castellano, teniendo en cuenta que,
cooficial. El catalán lo es en Cataluña (don- generalmente, su gramaticalización ha sido
de también lo es, en el valle de Arán, el mucho más tardía. Empleo o no de formas
aranés) y en las Islas Baleares, mientras que dialectales, o incluso de variedades locales
en la Comunidad Valenciana adopta la (claro en el caso, por ejemplo, del euskera16),
denominación oficial de valenciano. Hay otras de modelos ortográficos (el caso del gallego),
comunidades donde se hablan idiomas dife- valoración de modelos estándar, son algunos
rentes del castellano; es el caso de Aragón, de los puntos que abordamos en nuestra
que al tiempo de escribir estas líneas tiene investigación. La globalización no siempre,
pendiente la aprobación de una Ley de ni necesariamente, quiere decir el abandono
Lenguas, ya que en la denominada Franja de la comunicación local, es más, a veces
de Poniente (la que linda con Cataluña y ésta se potencia. El abaratamiento de los
Valencia) se habla catalán y en los valles costes con respecto al mundo de lo impreso
pirenaicos oscenses se mantiene vivo el supone, además, que Internet es campo
aragonés. abonado para medios de comunicación de
Todo ello hace de España uno de los público más reducido o contenidos más
países de Europa más ricos, desde el punto especializados, que en muchas ocasiones tiene
de vista cultural y linguístico. Por supuesto, también su parangón en el modelo de lengua
el periodismo es reflejo de esa pluralidad, empleado.
366 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Otro factor ha de tenerse en cuenta: el asume nuevas responsabilidades y se enfren-


contacto de comunidades de hablantes de una ta a dilemas derivados de la virtualidad de
misma lengua (en sus diferentes variantes, la red que pueden dañar la credibilidad de
si se quiere), repartidas en espacios geográ- los contenidos y, por extensión, del propio
ficos o político-administrativos diferentes, medio de comunicación: desde cómo veri-
implica muchas veces un fenómeno paralelo ficar las declaraciones vertidas en un chat,
de unificación linguística. Esto ocurre, por un blog o un foro teniendo en cuenta que
ejemplo, en el caso del castellano, una lengua estas fuentes ‘invisibles’ pueden desaparecer
con más de 400 millones de hablantes de los repentinamente y que en muchas ocasiones
cuáles sólo una décima parte son de sólo propagan rumores, hasta confiar en
nacionalidad española. Pero también ocurre correos electrónicos de remitentes que
en el caso del euskera (que se habla en parte defienden su anonimato, o fijar nuevas
del sur de Francia), del catalán (que se emplea estrategias para ganar a una audiencia infiel
en el Rosellón francés y en la ciudad italiana por naturaleza.
de Alguer), o incluso del aranés, en el fondo Por otra parte, el autocontrol es el único
una variedad dialectal occitana. Nos arma para hacer frente a la deficiente
adentramos así en el terreno de la regulación en materia de copyright, vacío
sociolingüística y de la dialectología17, puesto legislativo que ha facilitado el uso
que nos interesa comprobar si Internet es un indiscriminado del contenido gráfico y/o
factor de cohesión social y lingüística, en un textual que circula por la red.
país donde se regula jurídicamente buena El futuro que propone Internet por tanto
parte de sus lenguas (lo que ha hecho, por no evoluciona de espaldas a la ética de la
ejemplo, que el aranés sea la variedad profesión, aunque este compromiso depende
occitana más gramaticalizada) y donde las en gran medida de la voluntad individual del
que no lo están tienen problemas frente a informador. Para algunos estudiosos18, en esta
la competencia del muy pujante castellano era la ética es el único motivo que justifica
(caso del asturiano o el aragonés, o incluso la supervivencia del periodista.
del mirandés, de uso mucho más reducido).
Finalmente, nos interesa comprobar cuál De la indefinición a la precariedad del
es la presencia y uso de otras lenguas en los periodista digital
cibermedios españoles: el inglés, la lengua
más extendida en Internet, pero también otras Se ha cumplido una década del nacimiento
como el francés o el alemán, toda vez que del ciberperiodismo en España, y aún hoy
se trata de lenguas con una larga tradición las ventajas para el profesional de la
culta y con una cierta comunidad de hablantes comunicación resultan confusas desde una
en nuestro país. perspectiva maniqueísta. El nuevo entorno ha
precipitado la búsqueda obsesiva de una
Los desafíos éticos en la era digital denominación para aludir a un informador
rediseñado (Pattern, Ramonet, Fernández
La revalorización de los rasgos esenciales Hermana). Pero hablar de teleperiodista,
de la práctica tradicional del periodismo se tecnoperiodista, infonomista, instantaneista o
ha implantado en los últimos tiempos también periodista cyborg sólo nubla aún más una
en el terreno digital bajo el lema “sólo los realidad caracterizada por la precariedad
medios de calidad sobrevivirán en Internet”. laboral.
Pero lejos de cualquier reduccionismo, las Con el ‘boom’ de Internet se generan
ansiadas búsquedas de la veracidad y la múltiples mitos y deseos en torno a la figura
objetividad de los textos quedan influidas por del emisor, que sólo el tiempo se ha encargado
un nuevo contexto que aumenta la de desmentir. La expansión tardía del acceso
complejidad de la cuestión. a Internet en las redacciones19, unido a una
Los debates se centran en el trato con formación coja desde el punto de vista
las fuentes, la redefinición del trabajo de tecnológico, unos salarios discriminados, las
investigación y la excesiva dependencia de escasas inversiones en personal y el
la publicidad. En este marco, el periodista consecuente abuso de los contratos a becarios
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 367

y el horario dependiente del cierre de las Otro aspecto muy importante que debe
versiones tradicionales demuestran que este tenerse en cuenta a la hora de analizar el marco
periodismo no goza de buena salud, y que profesional del ciberperiodista español es el
los periodistas reconozcan en este contexto jurídico. Tanto el contractual (laboral o civil-
más debilidades que puntos fuertes20. mercantil) como el de los modelos asociativos
El estudio desarrollado por el Grup de (sindicación, asociacionismo o sindicación) o
Periodistes Digitals y el Sindicat de el de la gestión de los derechos de negociación
Periodistes de Catalunya21 confirma este colectiva o el de los derechos de autor. Puesto
elevado grado de insatisfacción. Una situación que Internet es un medio con características
difícil de resolver porque el periodista pre- bien diferentes, podría incluso pensarse que,
sume tradicionalmente de su alergia al al tratarse de una nueva profesión o del
asociacionismo, y porque las propias empre- desarrollo de otra no siempre suficientemente
sas no confían en Internet, manteniendo estas regulada en España (la de periodista) la
áreas al margen de los convenios laborales necesidad de mejorar los instrumentos jurí-
que afectan al resto de la plantilla. dicos que la definen es aún mayor.
368 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

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370 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 371

Interfaces meta-comunicativos:
uma análise das novas interfaces homem/máquina
José Manuel Bártolo1

“This is the Language lise e de projecto fazendo convergir sobre


of the On-Again Off-Again Future. si tanto a Semiótica como o Design.
And it is Digital.” A evolução que se opera nos 30 anos que
- Laurie Anderson medeiam o aparecimento do VDU e o apa-
recimento do facto de RV, vão sucessivamente
A emergência de uma cultura interactiva impondo modelos de interacção tecnicamen-
é um dos traços dominantes da época con- te possível: o menu, a linguagem de coman-
temporânea, de diferentes áreas nos chegam do, a interface directa.
sinais de avanço em direcção ao domínio da Esta evolução operou uma generalização
interacção, de um modo que, há muito, ul- do uso do conceito mas não o dilucidou, pelo
trapassou áreas de especialização para, apa- contrário, a generalização não só não foi
rentemente, penetrar as mais diversas práti- capaz de demarcar as fronteiras entre a ficção
cas quotidianas. e a realidade, pelo contrário diluía-as, como
É nos anos 60, a partir das relações entre tornou a interface, a interacção, a
o utilizador humano e o computador, que se interactividade noções muito genéricas e, por
lançam as bases da análise das interfaces sob isso potencialmente pouco operativas.
a perspectiva da interactividade. A procura num dicionário pelas entradas
O primeiro dispositivo interactivo a ser interacção e interactividade revelam precisa-
introduzido foi o terminal de escrita, o mente o carácter muito genérico das noções.
teletype, mas o grande salto qualitativo no Aldo Lippman um dos primeiros autores a
domínio da interactividade dá-se, de facto, definir a noção na perspectiva da HCI es-
no início dos anos 70 com o aparecimento creve: Interactivity: Mutual and simultaneous
do terminal vídeo, o VDU. activity on the part of both participants,
O terminal vídeo alargava as prestações usually working toward some goal, but not
em relação ao teletype de dois modos de- necessarily.
cisivos: aumentando a velocidade de trans- No contexto do presente trabalho segui-
missão e de visualização dos dados e aumen- remos esta definição de Lippman mas pre-
tando a quantidade de informação susceptí- cisando alguns aspectos: em primeiro lugar
vel de ser visualizada e trabalhada simulta- consideraremos que a interactividade com-
neamente. preende pelo menos dois participantes do qual
Isto traduzia-se na possibilidade de apre- um é necessariamente humano e outro é
sentar instantaneamente uma quantidade de necessariamente artificial, em segundo lugar
informação tal que consente ao operador consideraremos que a interactividade é sem-
interagir com o computador seleccionando pre suportada por operações de interface
domínios de informação e ambientes de homem-máquina.
trabalho a partir de um menu. De resto, o que estará verdadeiramente
Com o desenvolvimento das novas sobre análise neste trabalho é o tipo de
interfaces desenvolve-se também um novo presença do humano no interior de opera-
domínio de estudo que cedo se revela não ções de interface homem-máquina. A afirma-
ser susceptível de se esgotar num único ção de Bolt segundo a qual “The person is
campo disciplinar mas, pelo contrário, ser the true terminal of any computer-based
ponto de convergência transdisciplinar: O information system. That terminal is already
HCI Human computer Interaction é um bom designed. We can only designed for it,
exemplo desta convergência, apresentando- incorporating human capabilities and
se simultaneamente como disciplina de aná- limitations as explicit elements in our thinking
372 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

about the total interface situation.” parece- interface corresponde, pois, à capacidade de
nos importante no sentido de orientar a processar elementos energéticos (mecânicos,
perspectiva de análise no interior de uma térmicos, sonoros, ou electromagnéticos) em
análise dos fenómenos de HCI e de novas informação conversível em operações.
interfaces em geral. Para que tal seja possível é necessária a
Numa outra ocasião, defendemos que as existência de uma espécie de diálogo entre
práticas sustentadas por relações de interface, o utilizador e a máquina. A máquina deve
sustentam-se a partir de determinados indi- ser capaz não só de reconhecer o discurso
cadores epistémicos que são construídos sobre usado pelo utilizador, mas ser capaz ela
o sistema percepção-linguagem mas que o própria de o utilizar.
deslocam num processo permanente de re- Esta operação de interface da qual de-
construção. O Sistema percepção linguagem pende todo o tipo de interactividade é
assim criado in process a partir de variados identificada na literatura como Recognition
indicadores epistémicos quer gramaticais, ou tracking.
quer gestuais, aproxima-se dos sistemas de No nosso caso vamos utilizar o conceito
logica fuzzy, pela indecidibilidade dos ter- de apropriação como sinónimo de recognition
mos, precisamente porque o que importa não e de tracking.
é a verificação do valor de verdade do No filme de Ridley Scott, Blade Runner,
discurso mas a sua performatividade. a personagem interpretada por Harrison Ford
Ao falarmos de interactividade estamos, introduz uma fotografia num Scanner e
pois, a falar de actividade mútua e simul- através da voz comanda o computador,
tânea entre um sistema biológico humano e explorando relações topológicas que ele
um sistema artificial. próprio detecta na imagem. “À direita de”,
O sistema humano é o que identificamos “Dentro de” são comandos proferidos pela
com o corpo: o corpo é capaz de movimen- personagem para explorar o espaço descrito
tos, emite calor, tem um aparato fónico que na fotografia e que pressupõe que o com-
emite sons tendo a capacidade de os articular putador tenha a mesma capacidade perceptiva
de modo a formar linguagens, é dotado de do utilizador. Tal é possível por operações
um cérebro com actividade electromagnéti- de apropriação do discurso humano por parte
ca. da máquina.
As estes quatro meios de transmissão O exemplo ilustra um dos cinco modelos
energética: a mecânica do corpo, a energia de interface por nós mencionados, neste caso
térmica, a energia sonora, e a electromag- o utilizador usa o comando voz, no compu-
nética correspondem quatro modos de tador ocorre aquilo que na linguagem da HCI
interface com o sistema artificial, aos quais se chama de Speech Recognition, isto é, há
podemos acrescentar um último que pressu- uma apropriação do discurso humano por
põe a interface directa do sistema artificial parte da máquina que permite converter a
com o nosso sistema nervoso e que desen- informação em acção.
volve portanto a ideia de conexão neuronal Esta eficácia da interface mantinha, ain-
que a literatura cyberpunk antecipara. da, uma diferença entre pensar e processar,
Mais do que uma análise exaustiva de entre o que é do domínio de speech
cada um destes cinco modelos de interface, recognition e o que é de domínio de speech
interessa-nos compreender, em geral, os understanding e uma distinção, de hardware
mecanismos da interface que, como procu- e de software, entre o humano e o maquinal.
raremos mostrar, são os mesmos para qual- Mas num programa como o Flying Mouse
quer modelo. desenvolvido pela SimGraphics apercebemo-
O fundamento da interface é o fundamen- nos como hoje, na realidade, as interfaces
to comunicativo, existe interactividade quan- ganharam um protagonismo, que nos anos
do os agentes conseguem processar informa- 80 não possuíam na ficção.
ção: é no processamento mútuo de informa- O Flying Mouse é um aparelho de re-
ção entre agentes de dois sistemas (um cepção para acrescentar as mãos ao progra-
biológico humano, um outro artificial) que ma de simulação Automated Mainframe
consiste o operar da interface. O operar da Assembly que deixa as marcas do movimento
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 373

realizado num dado terreno quando se na- bilidade perderem. A este respeito poder-se-
vega através de um campo de análise a 3 ia dar o exemplo de uns óculos produzido
dimensões, ou quando se faz digitalização de pela Cyberspace Corporation que projectam
objectos a 3 dimensões e ainda nas aplica- imagens directamente para a retina, óculos
ções que envolvem o posicionamento e de projecção de laser directamente na retina
visionamento de objectos ou entidades a 3 ou aparelhos de interface que utilizam as
dimensões. O aparelho controla a visão do ondas cerebrais do utilizador são exemplos
utilizador, selecciona a viabilidade de uma de tecnologias de interface desenvolvidas na
parte dos resultados verificando-os numa base direcção do processamento directo do pen-
de dados constituída por conjuntos particu- samento para a máquina, tratam-se de tec-
lares, e tentando encontrar espaços vagos. A nologias de interface que se aproximam, ao
partir do momento em que a tecnologia ponto de com eles se confundirem, do nosso
permite o movimento arbitrário e a visão corpo e da nossa mente constituindo-se já
alternada, podem ser realizadas todas as não apenas como sínteses comunicativas mas
operações do mundo real. Algumas dessas como sínteses sistémicas, no sentido de
funções CAD avançadas incluem detecção parcialmente, num determinado instante ou
das colisões em tempo real, prevenção das em relação a uma determinada operação,
penetrações e obtenção de imagens para as terem anulado as fronteiras entre o sistema
bases de dados. biológico humano e o sistema artificial.
O Flying Mouse é um exemplo de uma Importa reforçar que todas as operações
nova interface homem-máquina operada a de interface, mesmo as mais simples, que
partir de operações de eye tracking. Neste executamos para lidar no quotidiano, por
caso a apropriação do olhar por parte da exemplo, com o nosso telemóvel implicam
máquina é a base de toda a informação a funções de apropriação por parte da máquina
processar. O exemplo é mais fantástico na e, portanto, realizações, em menor ou maior
medida em que a máquina é capaz de se escala, de operações de síntese.
apropriar e, portanto de dominar, informação Por outro lado, o exemplo do telemóvel,
que não é dominada pelo humano. ao con- em particular, dos telemóveis da nova ge-
trário das operações por comando voz, nas ração são, ainda, um bom exemplo, de novas
quais o utilizador compreende os significa- competências semânticas de que se revestem
dos dos comandos “à direita”, “à esquerda” objectos marcadamente de interface no que
e a máquina sem os compreender reconhece- representa a diferença entre as novas
os, neste exemplo de interface por apropri- interfaces e a interface que se estabelecia com
ação do olhar é o utilizador humano a, na objectos mecânicos.
incapacidade de compreender o seu discurso No caso de objectos mecânicos, como
reconhecê-lo após processado pelo compu- uma bicicleta, a percepção do objecto con-
tador em imagens 3D. Trata-se, a meu ver, duz à consciência da sua estrutura de fun-
de um bom exemplo daquilo que chamo cionamento, sendo a função associada por nós
síntese comunicativa que traduz uma opera- à estrutura físico-mecânica dos componen-
ção de interface na qual o utilizador não é tes, ou seja o esquema mental que constru-
capaz de reconstituir analiticamente as fases ímos ao olhar uma bicicleta não é puramente
da interacção com a máquina. Existe um um esquema gráfico mas um esquema grá-
diálogo de que, a cada instante se reconhe- fico-mecânico. Com a introdução da electró-
cem resultados sem que se reconheçam os nica este esquematismo entra em crise, desde
momentos do diálogo propriamente dito, está- logo por a estrutura física do objecto, a
se de cada vez depositado no resultado da anatomia da máquina, deixar de ser
síntese. comunicante em relação à sua função. Os
Parece-me contudo excessivo concluir que novos telemóveis, por exemplo, não podem
com ferramentas de manipulação de objectos ser definidos simplesmente a partir da sua
3D em tempo real, o pensamento e o função. De facto, do ponto de vista funci-
processamento se estejam a tornar a mesma onal, o novo telemóvel é um objecto
coisa. Sem dúvida que as interfaces ganham conectivo de múltiplas funções utilitárias (as
tanto mais protagonismo quanto mais visi- funções standard de um telefone móvel, as
374 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

funções de um computador portátil, as fun- ganismo humano.


ções de uma estação GPS) associadas, por Poder-se-iam dar múltiplos exemplos ilus-
vezes, a funções lúdicas, veja-se o telemóvel trando operações de interface por apropria-
que se converte numa mala de senhora para ção do discurso, apropriação do olhar, apro-
usar a tiracolo, o telemóvel para usar no pulso, priação de expressões do rosto, apropriações
como um relógio, ou o telemóvel incorpo- do fluxo respiratório, apropriação do calor
rado, composto por dois piercings, um no das mãos ou apropriação dos gestos. Os me-
lábio outro na orelha. canismos operativos, como já o dissemos são
Se quisermos utilizar a distinção sempre idênticos. A título ilustrativo pode-
heideggeriana, poder-se-ia dizer que os mos dar um exemplo de interface por apro-
objectos não se caracterizam apenas por priação do corpo na sua completude: pode-
relações de usabilidade com o utilizador mas, ríamos dar como exemplo o DataSuit
fundamentalmente, por relações de disponi- comercializado pela VPL onde biosensores
bilidade para com o utilizador, esta dispo- fazem a leitura de todas as articulações
nibilidade traduz um alargamento de possi- principais do corpo, mas talvez o exemplo
bilidades de apropriação por parte da máqui- mais interessante seja o Biomouse patentea-
na. do pela Universidade de Stanford na
Brenda Laurel propõe, no seu Computer Califórnia e que é um exemplo interessante
as a Theatre (Laurel, 91) que se pense o da exploração do carácter lúdico das
computador como medium e não como ins- interfaces homem-máquina. O Biomouse é
trumento (tool). Woods e Roth, por seu lado, constituído por um sistema de sensores que
pensam a interface como um meta-medium fornecem indicações sobre a actividade mus-
e um meta-tool, o que aqui é posto em cular e cerebral, esta actividade é susceptível
destaque é a competência multiforme do com- de ser traduzida pelo biomouse em código
putador, podendo assumir várias MIDI. O MIDI – Musical Instrument Digital
especificações, ser um processador de texto, Interface – é um instrumento electrónico di-
ser um sistema de projecção, ser suporte de gital que assim traduziria em música a energia
um jogo etc. e as suas múltiplas possibili- electromagnética produzida pelo nosso cére-
dades de utilização, apresentadas nas várias bro quando, por exemplo, reconhecemos uma
operações assistidas por computador (enge- cadeira, da mesma forma que traduziria quase
nharia assistida, cirurgia assistida, desenho numa sinfonia as inúmeras alterações mus-
assistido). culares que produzem nos nossos músculos
O computador surge como meta-medium quando nos sentamos nessa mesma que o
de uma meta comunicação que caracteriza as nosso cérebro sonoramente reconhecera.
novas interfaces homem-máquina enquanto Para que a apropriação se dê é necessário
comunicação interactiva entre sujeitos sinte- algum tipo de contacto entre o homem e a
tizados, isto é, anulados na sua diferença. máquina. Contacto é con-tangere, um tocar
As comunicações de síntese entendidas recíproco que anula o intervalo, que faz
como modelos de substituição, correspondem, síntese, entre o sentir e o sentido.
ao operar de um procedimento metafórico. Quando esfregamos as mãos somos in-
Lakoff e Johnson lembram-nos que “a es- capazes de dizer qual a mão que esfrega e
sência da metáfora é compreender e expe- qual a que é esfregada, algo de semelhante
rimentar uma coisa no lugar de outra”. Se acontece no contacto entre o humano e a
analisarmos a evolução das interfaces entre máquina: a possibilidade de fazer síntese é
o utilizador e o computador, por exemplo, dada pela existência de uma síntese já feita,
deparamo-nos com uma série de metáforas: como se a interface se desse pela constitui-
a metáfora do menu, do painel de controle, ção de múltiplas replicas de interface, elas
do rato, do agente, do vírus, etc. próprias dadas de um modo sintético em
Mas o operar metafórico está igualmente relação ao sujeito e ao objecto, ao espaço
presente na constituição de sínteses efectivas e ao tempo. Por outras palavras conseguimos
nas quais, como começámos a ver, a máqui- perceber que a interface é uma espécie de
na não se apropria apenas de linguagens mas contacto mas não conseguimos identificar
tende potencialmente a apropriar-se do or- qual o ponto em que se dá o contacto ou
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 375

qual o instante em que ele ocorre. percepcionar-se e sentir-se.


Da mesma forma que não somos capazes O Conhecido investigador em Inteligên-
de fixar o instante do adormecer não somos cia Artificial Marvin Minsky afirmou que em
capazes de fixar o instante da interface. breve a fronteira entre a mente humana e a
Sabemos que a interface se constitui por máquina tornar-se-á fluida. O estabelecimen-
sucessão de instantes, mas a relação que to da conectividade directa entre o homem
temos com eles é a mesma que teríamos com e a máquina, ontem sonhada pela literatura
a sucessão de instantes de adormecimento - Cyberpunk, hoje testada laboratorialmente,
ou seja, a analiticidade é possível retrospec- pressupõe, contudo, uma reelaboração dos
tivamente, da mesma forma que ao acordar- actuais suportes tecnológicos. Por isso, a
mos podemos tomar consciência que ador- investigação que hoje se desenvolve no
mecemos, mas essa analiticidade lança evi- domínio da electrónica molecular anuncia os
dência sobre algo que não foi acompanhado futuros biocomputadores compostos de cir-
analiticamente e que de um ponto de vista cuitos e memórias elaborados no âmbito da
estritamente analítico corresponde a uma electrónica molecular, utilizará suportes or-
ausência a um espaço e um tempo de não- gânicos como base para o tratamento da
acompanhamento. informação e os materiais serão compatíveis
Se o contacto é ele próprio um indicador com os sistemas vivos.
epistémico, se se quiser uma crença, ele opera Esta lógica conectiva que dilui os concei-
entrelaçado a outros indicadores epistémicos. tos de natural e artificial, opera ainda a um
A ausência de um horizonte espacio-tempo- outro nível, na medida em que os homens
ral analítico é preenchida por uma auto- interagem cada vez menos com máquinas
suficiente epistemologia do contacto. isoladas, vivendo-se cada vez mais num mundo
O apontar e o tocar são os operadores em rede, no qual tudo está ligado a tudo.
da auto-doação da evidência. O que fazemos Exemplar desta conectividade suportada
com o rato ou com os nossos dedos em por rede é a recente inovação militar Norte-
Touch-scream é demonstrar posição, distin- Americana que convida os soldados a ingerir
guir, delimitar algo, torná-lo existente no um minúsculo aparelho constituído por bio
espaço. O apontar reúne tacto e vista, federa sensores e rádio transmissores que operam a
um contacto ideal e uma vista dirigida a uma ligação à Internet permitindo que na sala de
coisa única. Preenche um abismo, mas de operações, olhando para o ecrã do computa-
cada vez que se procura desenvolver o esforço dor o comandante saiba qual a condição física
analítico, o abismo lá está à espera de ser e anímica de cada um dos seus soldados.
transposto. Como refere Ray Janckendoff na A Realidade parece ter ultrapassado a
HCI analiticamente existirá sempre um abis- ficção, a afirmação é um lugar comum, vazio
mo que separa a experiência subjectiva vivida, num dizer sem dizer nada, mas efectivamen-
a introspecção, o afecto e a apercepção (que te, o espantoso desenvolvimento das
Janckendoff chama de matéria consciente) das interfaces parece ter perturbado as fronteiras,
estruturas da informação linguística e de resto sempre instáveis, entre a realidade
perceptiva e dos seus dispositivos de trata- e a fantasia, num universo povoado de
mento (que Janckendoff chama de fantasmas como o Cyborg, o Hal de 2001
computational mind). uma Odisseia no Espaço, ou o Johnny
As operações de interface encontram-se Mnemonic do conto de William Gibson, e
sempre no eixo de três vértices: os disposi- os reais Biomouse ou Pointer, no qual dei-
tivos físicos ou Hardware, os dispositivos xamos de conseguir em absoluto distinguir
lógicos ou Software e o interactor, o humano. o fantasma do real, porque ambos nos tocam,
O futuro das interfaces, a julgar pelo inves- nos chamam, nos assustam e nos seduzem
timento material e humano, que tem sido feito, nos sonho e na vigília. Porque se o homem
poderá ser marcado por uma importante é o sonho de uma sombra, como dizia Píndaro
evolução que corresponderia ao desenvolvi- num seu poema escrito há 25 séculos atrás,
mento de um quarto eixo, que, para utilizar, ele não cessa de sonhar outros sonhos e outras
um neologismo cunhado pela Logitech seria sombras que também a nós nos tocam, nos
o Senseware, isto é a capacidade da máquina chamam, nos assustam, e nos seduzem.
376 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

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NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 377

Qual o papel da Internet na promoção da (in)existência


de laços entre os investigadores da comunidade lusófona?
Lídia J. Oliveira L. Silva1

1. A comunidade Científica Lusófona – do na escola, onde se confundem os


diversidade e unidade relatos dos fatos que fizeram a his-
tória dos povos com os interesses
A comunidade científica lusófona tem um daqueles que conduzem os destinos
património cultural que advém do facto de das nações; Se, em nossa escola, a
ser uma comunidade linguística, a qual exerce referência sobre o Outro enfatiza o
o papel de plataforma identitária facilitadora período colonial, nos outros membros
da geração de redes de cooperação, inves- da comunidade a tónica sobre o Brasil
tigação e desenvolvimento. A partilha do não passa dos limites das grandes na-
lastro linguístico, com toda a diversidade e vegações.” (Vitorino, 2003:15)
riqueza vivida denota a existência de uma
identidade plástica, em que a memória é um O hibridismo (biológico, de costumes
património e uma semente. alimentares, de valores, etc.) esteve presente
A Internet e as navegações virtuais criam no processo que levou à geração da ideia de
a possibilidade de traçar caminhos e gerar lusofonia, este hibridismo foi promovido pelo
sítios com potencial para reinventar a iden- corpo, pela presença física no lugar, mergu-
tidade, promover a cooperação usufruindo das lho no espaço societal físico. E agora?
diferenças como riqueza. Tal como Wolton Teremos um mergulho no noos-espaço, na
(2004) sublinha o problema actual da Internet esfera das ideias. Ou, tão simplesmente essa
e da comunicação de cariz global não é um esfera, esse território, continua por materi-
problema técnico, esse está ultrapassado, mas alizar, existindo, na melhor das hipóteses
sim um problema cultural. arquipélagos (de ideias, de encontro).
Os serviços de comunicação dispo-
“O mundo transformou-se numa aldeia nibilizados pela Internet têm o potencial de
global no plano técnico, mas não no gerar ciber-mestiçagem (sócio-cultural,
plano social, cultural e político. (...) interpessoal) e promover o hetero-conheci-
Pensar as condições da globalização da mento das comunidades científicas dos vá-
informação e da comunicação de modo rios países de expressão lusófona mas, tam-
a que não se torne uma espécie de bém, das comunidades lusas espalhadas pelo
bomba-relógio.” (Wolton, 2004:9-10) mundo.
Assim o desafio é a passagem da ausên-
Estamos face ao desafio da coabitação cia, invisibilidade, desconhecimento mútuo,
cultural. Esse é também um desafio no seio ao arquipélago e, deste, ao “continente
da lusofonia. Mas, o primeiro passo será o lusófono”.
de dar maior visibilidade a esta comunidade Os descobrimentos e a instalação de
no sistema mundial de comunicação e pro- portugueses, homens, nas terras apropriadas
mover o heteroconhecimento dos cidadãos com o intuito de fixar população, conduziu
lusófonos. à formação de populações híbridas, de que
o Brasil é o exemplo mais marcante. O
“Na condição de ex-colônias de processo de miscigenação, não só biológica
Portugal, os sete países de língua mas, também, sócio-cultural, que originou os
oficial comum pouco se conhecem, a mamelucos 2 iniciou um processo que se
não ser a referência sobre mitos e poderá considerar a base da génese da
estereótipos difundidos nos meios de globalização. No processo que se caracteriza
comunicação, estilo idêntico propaga- pelo encontro de elementos de diferentes
378 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

proveniências e culturas que se fundem e resistência e como modo de aumentar o


confundem, mas em que quase sempre existe prestígio internacional (Mourão, 2000:95).
a dominância de um dos elementos. O desafio
é fazer com que esse encontro se torne em «A língua tem o papel de liame, apro-
práticas de convivência multicultural, ximando culturas, algumas de natu-
enraizadas no respeito pela alteridade. Para reza tridimensional, como é o caso da
que isso seja possível é necessário a exis- cultura brasileira, e dando
tência de um espaço de conhecimento mútuo. substantividade a espaços localizados
O conhecimento é o melhor meio para re- em três continentes, para não falar de
fazer as memórias, de modo a curar as feridas presenças históricas.” (Mourão,
e os ressentimentos e, também, os precon- 2000:100-101)
ceitos que se foram mantendo ao longo dos
anos entre os povos de língua portuguesa. A criação de acervos de informação em
Trata-se de não esbanjar o legado histórico português, no ciberespaço, será um contri-
e sócio-cultural como esbanjámos os bens buto para nivelar o acesso ao conhecimento
materiais. pelas diversas comunidades de língua por-
tuguesa, bem como pelas comunidades de
“Tal como fomos perdulários com as emigrantes. Assim, se poderá, em parte
especiarias da Índia e com o ouro do colmatar o deficit de meios existente em
Brasil parece que ainda não percebe- alguns países, promovendo uma educação e
mos as enormes potencialidades de formação mais sólidas e aprofundadas e
mediação cultural do património que criando condições intelectuais e de
continuamos a esconder e a esquecer intercomunicação entre pares, de modo a
de que somos depositários porque as desenvolver/promover a formação de equi-
vicissitudes da história o atirou para pas de investigação transnacionais. Assim, se
as nossas mãos.” (Areia, 2000:65-64). contribuirá para criar condições para que o
intercâmbio científico entre os países
Existe um traço de união que não tem lusofalantes seja incrementado.
sido devidamente valorizado como elemento
estruturante de um espaço supranacional, o «O português é hoje a sétima língua
espaço lusófono. Existe a necessidade e o mais falada no mundo – o francês
desafio de, sem ressentimento colonialista ou ocupa a oitava posição – e a terceira
neo-colonialista, olhar para a riqueza que uma língua mais falada no Ocidente, além
língua é em si mesma e fazer um esforço de ser a língua oficial de várias or-
de elevação da auto-estima, para que se possa ganizações internacionais. Cabe aos
reconhecer que a existência desse património países lusofalantes empreender esfor-
comum é um bem precioso para aproximar ços para que a língua portuguesa seja
deixando lugar à diversidade. Num mundo adotada como língua de trabalho nas
em que a globalização é um processo organizações internacionais, papel que
incontornável é necessário perspectivar a criação de uma Comunidade de
modos de modelar esse processo em favor Países de Língua Portuguesa poderá
das identidades. Neste caso, a potencial reforçar.» (Mourão, 2000:100)
identidade lusófona tem duplamente a ganhar,
porque por um lado, tem oportunidade de se «Diante de um mundo onde se
unir de modo a ter uma presença mundial registram fortes tendências à
significativa, por outro tem oportunidade de supranacionalidade, o uso do portu-
(re)conhecer a sua própria diversidade intrín- guês, em diferentes regiões do pla-
seca. É assim, um processo em duas mãos. neta, surge como um elemento
O uso da língua portuguesa no unificador das posições da cada Es-
ciberespaço, povoado massivamente por tado lusofalante nas suas inserções,
conteúdos de língua inglesa, poderá ser não excludentes, em outros espaços
encarado de dois modos: como forma de regionais.» (Mourão, 2000:103).
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 379

A língua é o ingrediente base potenciador 2. Estudo empírico


de identidade, cultura e comunicação – os
três elementos estruturantes da condição de Os resultados obtidos através de um
futuro no mundo globalizado. questionário que foi enviado a investigadores
dos vários países da CPLP e de várias
«Pensar a coabitação cultural é cons- Universidades e Laboratórios de investigação
truir o terceiro pilar da globalização. não têm carácter representativo, antes carácter
(...) É preciso pensar o estatuto da indicativo. Foram recebidas 143 respostas das
política no momento da globalização, quais 140 foram consideradas válidas.
levando em conta a emergência do A distribuição dos respondentes pelos
triângulo explosivo, constituído pelas países é a seguinte:
relações entre identidade, cultura e
100
comunicação. (...) O desafio cultural 95
90
é o horizonte da globalização.» 85
(Wolton, 2004:179) 80
75
70
65
O desafio será então promover redes 60
humanas, redes de investigadores no seio da 55
50
comunidade científica lusófona. É certo que 45
40
ainda existem algumas fragilidades técnicas 35
Percentagem

em alguns dos países lusófonos, contudo, a 30


25
questão técnica é mais facilmente 20
15
ultrapassável do que a questão 10
comportamental, educacional, organizacional, 5
0
enfim, as representações e os comportamen-

O
M
Po

Br

ab

ut

as
rtu

ro
o
tos são mais resistentes à mudança. am
il
ga

s
Ve
bi
l

r
qu

de
A questão que conduziu o estudo e

empírico, de que de seguida se apresentam A maioria dos respondentes é, portanto,


os resultados, foi a de averiguar qual a re- de Portugal e do Brasil. Esta situação tam-
presentação que os investigadores da comu- bém denota a presença na rede, ou seja, o
nidade científica lusófona têm acerca das Brasil é seguramente o país lusófono com
potencialidades da Internet para facilitar o maior presença na Internet seguido de Por-
conhecimento e a aproximação inter-pares e, tugal (Palácios, online). Claro que esta si-
também, saber se na prática usam os servi- tuação advém da própria dimensão das res-
ços em rede para esses fins. pectivas comunidades científicas.
Talvez já não existam dúvidas que os No tocante ao género dos respondentes
serviços em rede têm potencial para divulgar verifica-se um equilíbrio maior do que o ha-
a investigação realizada e em curso, para bitual, como se pode observar no gráfico abaixo.
promover a sinergia entre grupos (coopera-
60
ção), para partilhar recursos (acesso), gerar 55
uma memória colectiva (identidade) e para 50
promover a internacionalização e reconheci- 45
mento (Silva, 2002). Contudo, se se reco- 40

nhecem essas potencialidades no uso da 35

Internet nas rotinas cognitivas e sociais das 30

comunidades científicas, o facto é que nem 25

sempre o uso efectivo se realiza no sentido 20


Percentagem

15
de passar da potência ao acto. Foi sabendo
10
desta discrepância entre potencialidade, re-
5
presentação e acção que se levou a cabo um 0

pequeno estudo empírico junto dos investi-


M

Fe
as

m
cu

in

gadores dos vários países lusófonos.


in
lin

o
o
380 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Quanto à idade dos respondentes varia entre Se se considerar que o conhecimento


os 25 e os 67 anos, sendo a média 42 anos. mútuo é uma primeira etapa para se criar a
Uma das questões de caracterização visa- possibilidade de vir posteriormente a interagir,
va saber se no percurso académico os inves- digamos que esta representação favorável é
tigadores tinham estudado noutro país um primeiro alicerce na mudança dos com-
lusófono, os resultados mostram que menos portamentos de cooperação.
de um quarto dos respondentes passaram por Face à questão: Considera que a
essa experiência. Sendo no essencial brasilei- Internet facilita a aproximação entre os in-
ros e moçambicanos a estudar em Portugal. vestigadores dos países de expressão
portuguesa? Os resultados, apesar de li-
100 geiramente menos favoráveis que na res-
95
90 posta anterior, são bastante favoráveis com
85
80
65,2% com uma representação fortemente
75 favorável, considerando que facilita mui-
70
65
tíssimo (35,5%) e facilita muito (29,7%).
60 Gráfico seguinte
55
50
45 40
40
35 35
Percentagem

30
25 30
20
15 25
10
5 20
0
Sim Não
Percentagem

15

Estudou noutro país lusófono ? 10

Face à questão: Considera que a Internet 5

facilita o conhecimento acerca da investiga- 0


ção realizada por outros investigadores/equi-
Fa
Fa

N
Fa
Fa

ão
ci
ci

ci
ci
lit
lit

lit
lit

pas de investigação dos países de expressão fa


a
a

a
a

ci
m
m

po

lit
ui
ui

a
uc

portuguesa? Os resultados indiciam que uma


to
tís

o
si
m
o

maioria de 71,8% considera a Rede um meio


facilitador do conhecimento do trabalho A Internet e a aproximação entre os investigadores
desenvolvido pelos pares lusófonos.
Se a representação acerca do conhecimen-
40 to dos parceiros e acerca da aproximação
35
entre eles promovida pelo uso dos serviços
Internet é bastante favorável interessa agora
30 saber se quando os investigadores lusófonos
25 necessitam de obter parceiros, para um
projecto de investigação, costumam procurar
20
expressamente outros investigadores dos
Percentagem

15 países de expressão portuguesa, usando a


10
Internet.
Os resultados indiciam que a acção di-
5
fere bastante da representação favorável
0 obtida nos dois quesitos anteriores. Sendo que
apenas 4,3% procuram sempre parceiros
Fa
Fa

Fa
Fa

N
ão
ci
ci

ci
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lit
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fa
a
a

a
a

lusófonos como parceiros de investigação


ci
m
m

po

lit
ui
ui

a
uc
to
tís

usando a Internet, 10,1% procura quase


si
m
o

sempre e 22,5% por vezes, toma essa ini-


Internet e o conhecimento da investigação realizada ciativa.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 381

40 80
75
35 70
65
30
60

25 55
50
20 45
40
Percentagem

15 35
30
10
25

Percentagem
5 20
15
0
10
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Se

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5
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am
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ca
pr

0
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e

en
se

es

te
m

Sim Não
pr
e

Obter parceiros para projecto de investigação Documento publicado on-line

Estes resultados podem ficar a dever-se tigadores lusófonos publicam muito pouco na
a inúmeros factores. Se se cruzarem estes Internet.
resultados com os comentários que os Contudo, quando a questão incide sobre
respondentes fizeram na área de comentário o tópico da troca de informação, de ideias,
aberto poder-se-á apontar como uma das etc., ou seja, um processo de comunicação
razões principais a falta de cultura de co- menos formal que a publicação, mais pes-
operação, ou seja, não está enraizado na soal, então os resultados obtidos são mais
cultura dos investigadores lusófonos a pro- favoráveis com quase metade dos
cura de parceiros dentro da lusofonia. Apre- respondentes a afirmarem usar a rede para
sentam como razão a facto de preferirem esse fim.
procurar como parceiros investigadores de A questão era: Troca regularmente infor-
países que estejam mais desenvolvidos na sua mações, ideias, etc. com colegas dos países
área de investigação, ou seja, que sejam mais de expressão portuguesa usando a Internet?
centrais no sistema científico mundial e, como
tal, potencialmente lhe tragam uma maior 60
visibilidade. Não se trata de uma questão de 55
lusofobia, mas sim de gestão da visibilidade
50
e do reconhecimento.
45
Quanto à questão: Tem algum documen-
40
to publicado em alguma revista on-line ou
em algum repositório digital de informação 35

de expressão portuguesa? Os resultados 30


mostram, ainda, a existência de muito pouca 25
adesão ao processo de publicação on-line. 20
Percentagem

Também no que diz respeito à não ade-


15
são à publicação on-line poderá ter múltiplas
10
razões. Será interessante levar a cabo um
5
estudo que vise mapear as razões desta
0
situação. Tanto mais que existe uma Sim Não
dissonância identificada entre o reconheci-
mento da Rede como um meio eficaz de Troca regularmente informação, ideias, etc.
divulgar o trabalho de investigação desen-
volvido e, concomitantemente, tomar conhe- Quanto ao papel da rede no desencadear
cimento do trabalho desenvolvido pelos e manter os contactos colocou-se a seguinte
outros e, depois, paradoxalmente, os inves- questão: Conheceu-os através da Internet ou
382 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

já os conhecia anteriormente e a Internet foi sobre questões tropicais em que a teia se


apenas um meio de manter as relações alarga aos países africanos. Nesses casos, é
previamente existentes? a natureza do trabalho de investigação que
Apesar de existir uma franja de 5,9% é o motor do alargamento e a Internet é o
de novos contactos que não teriam existido instrumento facilitador. O importante seria
se não se usufruísse da Internet o facto é gerar maior conhecimento entre os membros
que a rede se apresenta, preferencialmente, da comunidade científica lusófona, de modo
como um instrumento de continuidade e a encontrarem problemas de investigação em
manutenção dos relacionamentos que sur- que naturalmente, o tema fosse um estímulo
gem, essencialmente, a partir de conheci- à cooperação lusófona. Na área das ciências
mentos estabelecidos em colóquios e con- sociais essas temáticas são mais evidentes.
ferências.
Contudo, deve ainda reflectir-se sobre as “Se os físicos, matemáticos, biólogos,
razões de quase 50% não usar os serviços podem cooperar no plano mundial, é
de comunicação em rede como meio de porque as palavras utilizadas são pou-
desencadear e manter contactos. co numerosas. Com as ciências so-
ciais é pelas palavras que pensamos
60
e, além disso, qualquer criação teó-
55
rica está ligada à capacidade de or-
50
denar as palavras de forma
45
percuciente. (...) Para as ciências so-
40
35
ciais (...) comparar é, aqui, a condi-
30
ção de qualquer conhecimento.”
25 (Wolton, 2004:36)
Percentagem

20
15 A investigação realizada em consórcios
10 de investigação constituídos por investigado-
5 res das diferentes comunidades lusófonas será
0
seguramente uma investigação mais rica e
Am

N

mais enriquecedora, fruto da diversidade


a

ão
os

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In

us
te

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co

cognitiva que os diferentes enquadramentos


o
rn

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a
et

si
ec

In
tu

culturais e percursos de formação trazem ao


te
ia

rn
õe

et
..
s

processo.
Conheceu-os através da Internet ou já os conhecia O apelo é no sentido de desenharmos os
mapas cognitivos e relacionais que possam
Na área de comentário aberto do ques- ser orientadores do desenho de novos cami-
tionário muitos respondentes sublinharam nhos de cooperação no âmbito da investiga-
que, essencialmente, estabelecem novos ção mas, também, na cultura e desenvolvi-
conhecimentos nos encontros presenciais e mento em sentido lato. Para que o apelo dê
que os serviços em rede, nomeadamente, o fruto são necessárias iniciativas que se
correio electrónico e a partilha de ficheiros, contraponham à tendência excessivamente
servem para manter esses contactos. Por outro individualista e promovam a criação de redes
lado, para os investigadores que no seu humanas de parceiros.
percurso académico estudaram em outra No âmbito deste trabalho para a VI
instituição, em outro país a rede serve para Lusocom procuraram-se iniciativas e projec-
dar continuidade às relações enraizadas que tos que já estivessem em curso. Fez-se uma
durante esse período estabeleceram. selecção que se apresenta de seguida.
Quanto à teia e densidade das relações
entre os membros da comunidade científica 3. Algumas Iniciativas em Curso
lusófona os dados indiciam que a teia é ténue
e as relações são pouco densas. A maioria Em primeiro plano deve-se sublinhar a
das relações são estabelecidas entre o Brasil existência de um instrumento com grande
e Portugal existindo áreas como os estudos capital para potenciar a cooperação no seio
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 383

da Comunidade Científica Lusófona. Trata- entíficos e académicos conferidos


se da Associação das Universidades de Língua pelas Instituições associadas;
Portuguesa (AULP)3, que na sua Constitui- Fomentar a reflexão sobre o papel da
ção e Estatutos se apresenta como um or- Educação Superior, suas estruturas e
ganismo que tem por objectivo central pro- meios de acção no mundo actual e
mover a cooperação entre as Universidades particularmente nas sociedades em que
e Instituições de Ensino e Investigação de estão inseridas;
nível superior. Apoiar a criação de estruturas de
Transcreve-se de seguida o Artigo 2º, pela ensino e de investigação que facili-
sua relevância e capacidade de elucidação dos tem a realização dos fins da Associ-
objectivos a promover. ação.” (AULP, on-line)

“Capítulo I – Objectivos - Art.º 2.º A Associação das Universidades de Lín-


A Associação das Universidades de gua Portuguesa surge como um instrumento
Língua Portuguesa (AULP) visa pro- que, se devidamente dinamizado, poderá ser
mover a cooperação entre as Univer- de crucial importância para a promoção da
sidades e Instituições de Ensino e criação de redes humanas no seio da Comu-
Investigação de nível superior que nidade Científica Lusófona.
dela sejam membros. Um projecto que nasceu no seio da
De facto, a AULP tem para além disso, Associação das Universidades de Língua
outras missões de não menor impor- Portuguesa é o da Universidade Virtual de
tância: Língua Portuguesa (UVLP)4. Trata-se de um
Concorrer para salvaguardar o desen- Projecto em que, claramente, a Internet é o
volvimento da Língua Portuguesa; instrumento promotor das actividades de
Recolher e apoiar o contributo de cooperação ao nível do ensino e da inves-
todos os que, em Universidades de di- tigação.
ferentes idiomas, estudam a Língua Para além deste dois grandes instrumen-
Portuguesa; tos a Associação das Universidades de Lín-
Promover projectos de investigação ci- gua Portuguesa e a Universidade Virtual de
entífica e tecnológica conjuntos nas Língua Portuguesa destacamos de modo crí-
áreas ou temas de interesse dos as- tico dois projectos.
sociados, estimulando o conhecimen- Por um lado, o Índice Interactivo da
to da realidade e desenvolvimento de Lusofonia5, que pelos objectivos que se pro-
cada um dos Países; põe atingir seria uma ferramenta muito im-
Incrementar o intercâmbio de docen- portante. Contudo, o que encontramos é pobre
tes, investigadores, estudantes e pes- do ponto de vista dos conteúdos e com pouca
soal administrativo com vista à par- qualidade no que toca ao design gráfico e de
ticipação em acções de natureza interacção. Vale como ideia que seria preciso
pedagógica, cientifica, cultural e ad- implementar com uma nova dinâmica.
ministrativa que se realizem em cada Por outro lado, o PORTCOM – Portal de
um dos membros da Associação; Ciências da Comunicação ou Rede de Infor-
Promover a circulação de informação mação em Ciências da Comunicação dos
científica, técnica, pedagógica e cul- Países de Língua Portuguesa6, que se propõe
tural, o intercâmbio de revistas e “Ser referência internacional de toda a pro-
publicações científicas, bem como a dução técnica, científica e académica em
edição conjunta e a divulgação de Ciências da Comunicação produzida em
trabalhos científicos; instituições de países de língua portuguesa”.
Estimular a elaboração de acordos bi- Este projecto surpreende por conflituar com
laterais e multilaterais entre os mem- o trabalho que tem vindo a ser desenvolvido
bros da Associação em todos os pela BOCC – Biblioteca On-line das Ciên-
domínios do seu interesse e particu- cias da Comunicação nos últimos anos. Deste
larmente no âmbito das equivalências modo, é um exemplo da falta de sinergia que
de habilitações literárias e graus ci- por vezes existe entre os pares da Comunida-
384 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

de Científica Lusófona e/ou a falta de de germinarem cooperações duradouras no


heteroconhecimento. Muitas vezes, tempo e férteis. Mas, o conhecimento mútuo
preocupamo-nos em realizar um olhar inter- faz-se também através da disponibilização de
nacional sobre o que se faz numa determinada informação na Internet, quer ao nível das
temática esquecendo muitas vezes de incluir publicações quer de informação sobre pro-
os parceiros lusófonos nessa pesquisa. jectos em curso, entre outra informação. Os
resultados indicam que, também aqui, muito
Em síntese há a fazer – publicamos/publicitamos pouco
na Internet – é necessários compreender
Há uma discrepância entre o número de porquê para atacar as causas.
utilizadores lusófonos da Internet e a quan- Nesta lógica da promoção do conhecimen-
tidade de conteúdos de língua portuguesa to e, também, da divulgação internacional do
disponíveis na rede. trabalho desenvolvido é fundamental o desen-
volvimento de bases de dados comuns,
“...o crescimento do número de usu- unificadoras dos arquivos dos diversos países.
ários lusófonos não implica necessa- Boaventura de Sousa Santos em entre-
riamente em crescimento da vista no âmbito do seminário Cultura e
proporcionalidade de conteúdos em Desenvolvimento da Comunidade dos Países
língua portuguesa, pois está ocorren- de Língua Portuguesa7 reforça a ideia de se
do um descompasse entre os gerarem arquivos electrónicos comuns e
percentuais de usuários e os livrarias e propõe:
percentuais totais de conteúdos
lusófonos na rede. Fazem-se neces- “Temos ainda de criar um centro
sárias, portanto, acções programáticas transdisciplinar de pesquisa, onde in-
no sentido de incrementar os conteú- vestigadores e agentes artísticos pos-
dos lusófonos.” (Palácios, online) sam encontrar um espaço de
interconhecimento. Deveríamos tam-
Há uma dissonância entre a representa- bém criar uma agência de notícias e
ção favorável dos investigadores lusófonos emissoras de TV da comunidade. Este
quanto ao papel que a Internet desempenha conjunto de iniciativas poderia ser
ao nível da promoção do interconhecimento chamado de Fórum da Diversidade.
dos investigadores e das comunidades e da Algumas agências internacionais,
aproximação entre eles e o uso efectivo dos como a Unesco, estão interessadas em
serviços em rede na busca de uma coope- fomentar este espaço, que seria uma
ração científica efectiva. alternativa ao espaço anglo-saxônico.
As iniciativas a promover serão tanto mais Ou seja, uma tentativa de preservar
eficazes quanto mais integradoras no sentido a diversidade cultural do mundo do
de articularem o maior número possível de domínio da cultura anglo-saxã.” (San-
membros da comunidade científica lusófona. tos, 2004).
Um passo crucial no incremento da
aproximação dos investigadores da comuni- Unir respeitando é o lema, usando a Internet
dade científica lusófona é a promoção do como ferramenta facilitadora do processo.
interconhecimento. Conhecemo-nos mal e o
conhecimento mútuo é a base para coope- SIGLAS
rarmos. Os resultados indicam que a presen-
ça física é um elemento eficaz na promoção ACSEL – Associação dos Cientistas
do conhecimento, como tal a realização de Sociais do Espaço Lusófono (criada em 22
congressos do tipo A Comunidade Científica de Novembro de 1994).
Lusófona em Questão e congressos sectoriais, AULP – Associação das Universidades
por áreas científicas, serão seguramente de Língua Portuguesa (http://www.aulp.org/
fóruns de debate e de encontro que deixam proj_uvlp.html)
sementes, que a comunicação em rede se BOCC – Biblioteca On-line de Ciências
encarrega de facilitar criando a possibilidade de Comunicação (http://www.bocc.ubi.pt/)
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 385

CPLP – Comunidade dos Países de SALP – Sociedade Africanológica de


Língua Portuguesa (criada em 17 de Julho Língua Portuguesa (criada em 18 de Junho
de 1996) (8 países, 4 continentes) (http:// de 1991).
www.cplp.org) UCCLA – União das Cidades Capitais
PALOP – Países Africanos de Língua Luso-Afro-Américo-Asiáticas ou União das
Oficial Portuguesa. Cidades Capitais de Língua Portuguesa (http:/
PORTCOM – Rede de Informação em /www.uccla.pt)
Ciências da Comunicação dos Países de UVLP – Universidade Virtual de Língua
Língua Portuguesa Portuguesa
(http://www.portcom.intercom.org.br/ ) (http://www.aulp.org/univ_virtual.htm )
386 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia Autónoma de Lisboa, 2001, p.331-346.


Silva, Lídia Oliveira, “A comunidade ci-
Areia, Manuel Laranjeira R., “O entífica nas malhas da rede – que percepção?”,
Lusotropicalismo Revisitado: a miscegenação in: Revista Comunicação e Linguagens, Junho
em “Casa Grande e Senzala”, in: Neves, F.S. 2002, Número Extra, Actas do Congresso
(org.), A Globalização Societal Contemporâ- ICNC: International Conference on Network
nea e o Espaço Lusófono: Mitideologias, Culture, Universidade Nova de Lisboa, Centro
Realidades e Potencialidades, Lisboa, Edições de Estudos de Comunicação e Linguagens.
Universitárias Lusófonas, 2000, p.55-64. Silva, Lídia Oliveira, Implicações
Margarido, Alfredo, A Lusofonia e os Cognitivas e Sociais da Globalização das
Lusófonos: Novos Mitos Portugueses, Lisboa, Redes e Serviços Telemáticos – estudo das
Edições Universitárias Lusófonas, 2000. implicações da comunicação reticular na
Mourão, Fernando A. A. (2000), “A dinâmica cognitiva e social da Comunidade
Comunidade de Países de Língua Portugue- Científica Portuguesa, Tese de Doutoramento:
sa: a base linguística e a base material”, in: Universidade de Aveiro, 2002. (disponível on-
Neves, F.S. (org.), A Globalização Societal line em: www.bocc.ubi.pt)
Contemporânea e o Espaço Lusófono: Vitorino, Benalva da Silva, “Lusofonia:
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des e Potencialidades, Lisboa, Edições _______________________________
1
Universitárias Lusófonas, 2000. Departamento de Comunicação e Arte da
Oliveira, J.F. Santos, “A Educação, a Universidade de Aveiro.
2
(Bras.) filho de branco e de crioula; mestiço
Cultura e a Informação, como a nova ‘Ri- especial. (Do ár. mamluk, «escravo»).
queza das Nações’ do(s) Espaço(s) 3
Associação das Universidades de Língua
Lusófono(s)”, in: Neves, F.S. (org.), A Portuguesa: http://www.aulp.org.
4
Globalização Societal Contemporânea e o http://www.aulp.org/proj_uvlp.html.
5
Espaço Lusófono: Mitideologias, Realidades “Os objectivos do projecto Índice
e Potencialidades, Lisboa, Edições Univer- Interactivo da Lusofonia são os seguintes:
Mostrar de que maneira os países da Lusofonia,
sitárias Lusófonas, 2000, p.109-119. através das suas comunidades estão activos e
Palácios, Marcos, “Por mares doravante actuantes na World Wide Web (Internet);
navegados: panorama e perspectivas da pre- Sensibilizar a comunidade científica para a impor-
sença lusófona na Internet”, in: tância da publicação dos seus projectos na WWW;
www.bocc.ubi.pt. Avaliar de que modo as Tecnologias de Infor-
Santos, António de Almeida, Paixão mação são encaradas e utilizadas pelos Estados
e diferentes organizações não-governamentais,
Lusófona, Lisboa, Imprensa Nacional Casa propiciando a mudança para a partilha;
da Moeda, 2001. Identificar os Projectos inter-lusófonos que re-
Santos, Boaventura de Sousa (entrevis- correm às Novas Tecnologias da Informação;
ta), “Um otimista trágico”, 2004, in: Quantificar os projectos por áreas de saber, e
www.cplp.org. nomeadamente os ligados à Educação e Ciência,
Silva, Lídia Oliveira, “A Comunidade Literatura, Linguística, História, Arte e Cultura;
Inferir de que modo as novas tecnologias de in-
Científica na Era da Sociedade em Rede: a formação e os projectos inter-lusófonos contri-
geração de uma aldeia global da investiga- buem para um melhor conhecimento mútuo entre
ção?”, IV Lusocom – Congresso Lusófono os povos de Angola, Brasil, Cabo Verde, Guiné-
das Ciências da Comunicação, S. Vicente, S. Bissau, Moçambique, Portugal e Timor LoroSae.”
Paulo, Brasil, 18-21 Abril, 2000. Informação disponível em: http://
Silva, Lídia Oliveira, “Implicações da www.terravista.pt/PortoSanto/1999/intro.htm/
cimo%20da%20pagina(2004-04-13)
Internet nas rotinas cognitivas e sociais da 6
Informação disponível em: http://
comunidade científica”, in: Actas do Congres- www.portcom.intercom.org.br/.
so Internacional de Comunicação De Gutenberg 7
Seminário que decorreu em Salvador da
ao Terceiro Milénio, Lisboa, Universidade Bahia em Março de 2004.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 387

Significando e ressignificando
Lourdes Meireles Leão1

Um dos postulados básicos de Vygotsky dos em palavras. Caracterizar este mecanis-


é que a relação do ser humano com o mundo mo de produção e compreensão de discurso
não é uma relação direta, mas, é uma relação especializado em um ambiente profissional
mediada, isto é, sofre a intervenção de um de alta densidade tecnológica, com base em
elemento intermediário. A presença de ele- um trabalho colaborativo, onde existe toda
mentos mediadores introduz um terceiro uma tecnologia que dá suporte a estas ope-
elemento que se coloca entre o sujeito e o rações e na qual a eficiência e a precisão
objeto, compreendendo um elo a mais nas da linguagem são indispensáveis é o objetivo
relações organismo-meio tornando-as mais deste estudo.
complexas. Ainda segundo Vygotsky existem
duas classes de mediações: por objetos 1. Caracterização da atividade
materiais, os instrumentos e a realizada por
signos ou símbolos. Os seres humanos de- Este artigo é o relato de um segmento
senvolveram, ao longo da sua história, di- de uma pesquisa maior que compreendeu a
ferentes sistemas de semiotização para se tese de doutoramento da autora. A pesquisa
comunicarem que lhes tornam possível a vida realizou-se em uma das maiores e mais
social. Isto fica bem evidente no ambiente importantes empresas do setor hidroelétrico
de trabalho, em que cada profissão ou brasileiro, responsável pela produção, trans-
atividade específica desenvolve seu sistema porte e comercialização de energia elétrica
próprio de comunicação ou jargão profissi- para oito Estados do Nordeste do Brasil. O
onal. A crescente complexidade do mundo setor específico pesquisado foi a sala de
moderno propicia o surgimento de novas controle do Centro Regional de Operação do
tecnologias da comunicação e da informa- Sistema Leste denominado CROL. Um dos
ção, com a conseqüente necessidade de novas objetos deste estudo foram os processos
linguagens ou ressignificações da linguagem comunicativos desenvolvidos pelos operado-
natural daquele grupo cultural. Como as res da sala de controle em questão. O universo
pessoas constroem certos tipos de linguagens da pesquisa compreendeu os operadores do
em certos ambientes profissionais é uma CROL, que trabalham em duplas, em turnos
questão central neste trabalho. É sempre ininterruptos de seis horas, alocados em
importante estudar o surgimento destas novas diferentes grupos de trabalho e realizando o
construções. Saber como as pessoas inven- mesmo tipo de tarefa. Os processos comu-
tam e fazem uso de linguagens especializadas nicativos foram estudados a partir de obser-
vai nos mostrar a capacidade que o ser vações locais, entrevistas abertas, notas de
humano possui de produzir novos tipos de campo e registro de gravações de situações
discursos. cotidianas e de anormalidades no sistema, no
A ação humana é rica em conteúdos período de dois anos.
semânticos. Ações possuem influência em Nosso uso situado da linguagem e con-
virtude do significado que adquirem em seqüentemente a significação da linguagem,
contextos socioculturais específicos. Em uma pressupõe e implica um horizonte de coisas
interação face-a-face, em que existem pistas que nunca são explicitamente mencionadas,
não lingüísticas formuladoras de contextos, mas são dadas como sabidas. Isto acarreta
estas ações significam por elas mesmas, uma dificuldade de comunicar instruções para
porém, em uma interação mediada por a ação em situações particulares. A
máquinas, em que estas pistas estão ausen- indexicabilidade de instruções quer dizer que
tes, estes significados precisam ser traduzi- o significado de uma instrução com respeito
388 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

à ação não é explicitamente inerente à foi construído tais como: codificação de


instrução, mas deve ser encontrado pelo linhas, formas específicas de enviar e rece-
seguidor da mesma, com referência à situ- ber mensagens e um vocabulário próprio,
ação do seu uso. O que facilita a compre- tendo como finalidade exclusiva garantir a
ensão da instrução para a ação não é somen- inteligibilidade, a precisão e, por conseguin-
te a instrução como tal, mas sua interpre- te, a segurança das trocas comunicativas neste
tação em uso. Cada ocasião, do uso situado contexto. A linguagem utilizada pelos ope-
da linguagem, é caracterizada por incertezas. radores não é, pois, uma linguagem corrente,
Já que na interação comunicativa nem tudo mas é uma linguagem especializada, típica
é claramente explicitado, grande parte per- daquele contexto de trabalho.
manece implícita, as pessoas têm de inferir
muita coisa da situação e isto pode, algumas 2. Processos comunicativos no CROL
vezes, acarretar problemas porque os sujei-
tos podem supor o indevido, o que deve ser No CROL a comunicação com as
evitado ao máximo em um tipo de atividade subestações, as concessionárias e os outros
como esta. órgãos do sistema, é toda realizada por meio
A linguagem não só é ancorada na si- de instrumentos. Os operadores dos diferen-
tuação, como também em larga escala, tes setores estão engajados em uma interação
constitui a situação de seu uso. Um sentido indivíduo - máquina - indivíduo. A máquina
pode ser convencional dentro de uma comu- é o fator mediador nesta comunicação, eles
nidade, como entre os usuários de compu- estão interligados, interagindo via configu-
tador, entre médicos, entre apreciadores de ração do sistema, cujo funcionamento está
futebol, entre os operadores do CROL, mas sendo acompanhado por eles.
pode ser totalmente sem sentido para as outras Este processo de interação, para usar uma
pessoas. Como existem inúmeras possibili- metáfora, pode ser comparado a uma gigan-
dades de significação das palavras fora do tesca teia de aranha na qual o CROL cons-
significado dado pelo dicionário, a signifi- titui a parte central. Ele tem a visão geral
cação real de uma palavra em um determi- do todo e recebe todas as informações. É uma
nado momento e situação é o resultado de cadeia interacional muito grande e fechada.
um processo de coordenação, trocas e con- O operador do CROL fala com os operado-
cordância mútua entre os sujeitos. “O que res das subestações e estes com o operador
uma palavra significa depende não somente do CROL. O operador do CROL fala com
de suas propriedades genéricas do domínio os operadores das concessionárias e vice-
conceitual, mas da situação sendo descrita versa e fala com o ONS (Operador Nacional
no momento” (Clark, 1992: 372). Por con- de Sistema Elétrico - órgão controlador
seguinte, o significado convencional é de fato central) que por sua vez se comunica com
uma descrição breve e parcial de algum ele. Assim, apesar de todo o sistema estar
aspecto do mundo. O “significado real”, interligado, não há comunicação entre si, mas
aquele que se pretende dar em uma situação através do CROL. Este é quem supervisiona
específica, é construído pelos interlocutores. e controla todo o sistema, quem detém toda
A atividade estudada é desenvolvida em a informação e poder de autorizar ou
um ambiente de alta densidade tecnológica desautorizar este ou aquele procedimento. É
em que a comunicação não é direta, face a um sistema interligado de forma tal, que um
face, mas é intermediada por instrumentos, problema que aconteça em uma subestação
o que torna o processo mais complexo, e no pode afetar uma ou mais subestações ao
qual a precisão e a segurança da comuni- mesmo tempo, ainda que estejam afastadas
cação são imprescindíveis. Considerando as geograficamente umas das outras. Apesar
características da linguagem e considerando disto, elas não têm nenhuma atuação entre
que esta é uma atividade de alto risco em si para resolver o problema, a não ser através
que a exatidão na comunicação é essencial, do CROL. É uma rede muito grande de
já que um comando errado ou uma má interações intermediadas entre si pelo CROL
interpretação de uma informação pode gerar e entre elas e o CROL pelos instrumentos
uma tragédia, todo um aparato semiológico que fornecem as configurações das
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 389

subestações e concessionárias e que permite operacional, constituído de códigos fonéticos


ao CROL ter acesso a elas. É, portanto um e numerais. Abrange os códigos de identifica-
sistema distribuído, no qual o CROL é a ção de equipamentos e os alfanuméricos:
instância mediadora. a) Alfabeto fonético: Segundo os manu-
ais da empresa os operadores de Sistema e
“Em sistemas distribuídos as tarefas de Instalação, ao transmitirem via fonia a
são executadas em e através da posição ou código operacional de qualquer
interação, por conseguinte a distribui- equipamento ou linha, deverão fazê-lo atra-
ção de acesso à informação é uma vés dos códigos em uso. Alguns instituídos
importante propriedade do sistema de pela empresa, como é o caso da codificação
cognição distribuída” (Hutchins e internacional utilizada pelas linhas aéreas,
Klausen, 1996: 26). com algumas modificações no significado que
é ajustado para a atividade desenvolvida no
Processos cognitivos que são distribuídos CROL e outros criados dentro da atividade,
através de uma rede de pessoas, têm de lidar pelos usuários do sistema.
com as limitações da comunicação entre Tabela de Códigos Lingüísticos:
pessoas. Considerando estas limitações foi A = Alfa; B = Bravo; C = Charlie;
construído um arcabouço linguístico para D = Delta; E = Eco;
padronizar e dar suporte às trocas comuni- F = Foxtrot; G = Golfo;
cativas, a fim de que as informações circu- H = Hotel; I = Índia; J = Julieta;
lassem com mais precisão e eficiência. K = Kilo; L = Lima;
Veremos a seguir este arcabouço padrão para M = Mike; N = Novembro;
a comunicação oral no CROL. A empresa O = Oscar; P = Papa; Q = Quebec;
chama de “comunicação de voz” e refere- R = Romeu; S = Sierra;T = Tango;
se à comunicação via telefone, rádio e/ou
U = Uniforme; V = Victor; W = Whisky;
hand-talk. É composto dos seguintes elemen-
X = Ecstra; Z = Zulu.
tos: Estrutura Padrão de Comunicação,
As significações do alfabeto fonético:
Codificação Alfanumérica, Terminologia
Bravo significa “banco capacitor”
Operacional Básica e Fraseologia Padrão.
Eco “reator”
Estes elementos serão detalhados a seguir.
Tango “transformador”
1º) Estrutura Padrão de Comunicação -
Kilo “compensador”
Toda comunicação de voz deve sempre
Quebec “compensador estático”
ocorrer dentro da seguinte estrutura:
TC “transformador de corrente”
• Identificação dos interlocutores.
• Transmissão da mensagem. Trafo “transformador de potência”
• Repetição da mensagem recebida. As outras letras do código denominam
• Confirmação e conclusão. as linhas.
Em relação à repetição da mensagem b) Numerais: Os numerais 1 e 6 são
recebida, a redundância da informação é respectivamente denominados de uno e meia
realmente uma das estratégias de se lidar com por conta de sua sonoridade, o que acarreta
as limitações da comunicação. A comunica- facilidade de serem mal interpretados. Segue
ção redundante é uma forma de garantir a as suas significações:
precisão do que é informado e a execução 0 (zero) significa linha;
do que é solicitado. A repetição das solici- 1 significa disjuntor;
tações e das autorizações, às vezes exaus- 2 significa tensão de 69 kv (quilovolt -
tivamente, é uma medida de segurança. unidade de medida de força);
Funciona como uma confirmação do que foi 3 significa tensão de 138 kv;
solicitado ou autorizado - checagem de erros 4 significa tensão de 230 kv;
- e leva à diminuição da possibilidade de 5 significa tensão de 500 kv;
“problemas” ocasionados por erros de comu- Exemplos do uso do código alfanumérico:
nicação. - “04 mike 2” - significa linha M2 de 230 kv
2º) Codificação Alfanumérica - É o voca- - “12 julieta 8” - significa disjuntor de 69
bulário convencional utilizado na comunicação kv da linha J 8
390 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

- “04 tango 2” - significa transformador 2 expressões, construídas colaborativamente,


da linha de 230 kv são utilizadas com certas especificidades. Isto
3º) Terminologia Operacional - Conjunto é, foram criados também, novos significados
de termos peculiares adotados a determinada para algumas palavras, o seu jargão interno,
atividade. Refere-se às ações em equipamen- o qual funciona como uma linguagem espe-
tos. Para cada equipamento há uma termi- cífica do lugar. Segue algumas ilustrações
nologia específica da ação a ser executada. deste tipo de construção (quadro da página
Exemplos: seguinte).
Barramento: energizar/desenergizar; ater- Estes são apenas alguns exemplos do
rar/desaterrar; interligar/seccionar. linguajar interno. Porém, mais interessante
Teleproteção: ativar/desativar; colocar (em do que mostrar construções metafóricas
teste) etc. específicas é mostrar o processo cognitivo
4º) Fraseologia Padrão - Forma de cons- através do qual estas construções foram
trução de frases próprias a cada atividade. realizadas. É importante saber como novos
Exemplos: Para pedidos: Solicito liberação sentidos são dados às palavras e de onde
+ codificação do equipamento. vêm estas novas significações. Para carac-
Para informações: Informo variação de terizar este mecanismo de emergência de
tensão na barra “X”. novos significados, fomos buscar suporte
A seguir um exemplo completo, isto é, teórico na Teoria dos Espaços Mentais de
utilizando todos os elementos da padroniza- Fauconnier. No âmbito desta teoria encon-
ção da comunicação oral operacional do tra-se a explicação de como se constrói todo
CROL: o processo analógico, metafórico e de
ressignificação de palavras. Na ótica de
E - Emissor - Subestação RCD Fauconnier, 1997: 2
R - Receptor - CROL
Identificação dos Interlocutores:
E - Faz a chamada “A linguagem visível é apenas um
R - CROL, Antônio tipo de iceberg da construção do
E - RCD, Ricardo significado invisível que ocorre
Transmissão da Mensagem: quando pensamos ou falamos. Essa
E - Informo desarme quatorze tango uno e
doze tango uno sinalizando relê de gás e significação escondida, de bastido-
atuando chave oitenta e quatro do zero quatro res, define nossa vida mental e
tango uno. social. A linguagem é uma de suas
Repetição da Mensagem: proeminentes manifestações exter-
R - Ok, você informa desarme quatorze tango
uno e doze tango uno sinalizando relê de gás e nas”.
atuando chave oitenta e quatro do zero quatro
tango uno. Segundo Marcuschi (1999), a teoria de
Confirmação / Conclusão: Fauconnier possui três noções nucleares:
E - Positivo, aguardo instruções.
1º) Espaços Mentais - são domínios de
3. Ressignificando conhecimentos, concebidos como núcleos
cognitivos estruturalmente simples.
Cada organização de trabalho constrói seu 2º) Correspondência (mapping) - esta
próprio vocabulário e seus significados in- noção sugere uma espécie de correspon-
ternos, coisas que só têm sentido dentro dência entre dois domínios cognitivos (es-
daquela realidade, são construções coletivas paços mentais) em que o segundo é um
de mecanismos semióticos que se cristalizam tipo de contraparte do primeiro, que lhe
dentro da organização e são passadas dos mais serve de base. Estas correspondências são
antigos para os novatos, sendo muitas vezes projeções de um domínio para o outro e
normatizadas, isto é, passam a fazer parte têm características de uma inferência
das normas da empresa. No CROL não é analógica.
diferente, além dos códigos operacionais 3º) Integração Conceitual ou Mesclagem
construídos a funcionar com mais precisão (blending) - é uma operação cognitiva
nas interações comunicativas, uma série de geral de integração conceitual com múlti-
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 391

PALAVRA SIGNIFICADO
Abortar (o comando) Suspender uma operação
Afundamento Diminuição de energia
Alimentação - alimentar uma linha Energia - colocar energia na linha
Anel aberto Quando a energia não volta ao ponto inicial
Quando a energia volta sempre ao ponto
Anel fechado
inicial, está circulando
Banco de carga Uma grande quantidade de energia
Linha de grande porte que transporta um
Barra
volume muito grande de energia
Cair (uma subestação) Deixar de funcionar por algum problema
Correr a linha Fazer uma vistoria no local
Perder (uma linha, uma subestação, etc.) Deixar de funcionar por algum problema
Sistema malhado Com bastante interligação

plas funções num processo de construção ções, novas configurações e, por conseguinte
de significados. novos significados e novas conceitualizações.
Como estas noções se integram? Como Tais construções linguísticas, bastante cria-
isto funciona? De acordo com as elaborações tivas, são impulsionadas por um importante
de Fauconnier, dois espaços mentais iniciais processo cognitivo que é a integração
que têm correspondência um com o outro, conceitual ou mesclagem. Para ele,
pelo processo de mesclagem ou integração mesclagem é uma operação que embora
conceitual, dão surgimento a um terceiro, a simples (é um processo cognitivo que opera
mescla (blend). Esta usa as estruturas vindas sobre dois espaços mentais para obter um
dos espaços estímulos e dos conhecimentos terceiro) pode explicar uma série de fenô-
de fundo do sujeito para criar uma nova menos lingüísticos e contribuir para melhor
estrutura e permitir que o trabalho cognitivo se conhecer a natureza das relações existen-
central seja desempenhado. Este terceiro tes entre construções lingüísticas e processos
espaço herda a estrutura parcial dos espaços cognitivos. Na opinião de Sweetser e
iniciais, mas tem estrutura emergente própria. Fauconnier (1996), a idéia básica é que à
O ponto de partida ou o espaço base, como medida que nós pensamos e falamos, espa-
ços mentais são estabelecidos, estruturados
sugere Fauconnier, é sempre um sistema de
e ligados sob pressões vindas da gramática,
relações correspondidas em um outro espaço
contexto e cultura.
mental. Almeida (1999) utiliza uma metáfora
Chiavegato, 1999: 111, por sua vez, afir-
para exemplificar o processo:
ma que

A frase em questão é, pois, o resultado “... por engendrarem construções com


de projeções ou correspondências de um significados bastante originais, os resul-
domínio do conhecimento com outro. O tados das análises do processo de
significado é na realidade produto de mescla mesclagem ..... na interação real, podem
ou integração de conhecimentos e possui, ele ser reveladoras de como são criativas as
mesmo, uma estrutura própria. interações mais comuns do cotidiano”.
Fauconnier (1997) ressalta a dimensão
criativa de todas as formas de pensamento. Basicamente a teoria de Fauconnier toda
Estas, segundo o autor, produzem novas rela- pode ser resumida no seguinte: há um elemen-
392 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

to que é a linguagem comum, está no dici- subestações totalmente automatizadas e nas


onário, são os espaços mentais da vida diária. outras subestações, em algumas situações,
E há a vivência de uma dada situação que antes mesmo de serem oficialmente comu-
são os espaços mentais onde isto é utilizado. nicados do fato pelos operadores das mes-
Da junção destes dois espaços mentais, surge mas. Quando surgem alterações na configu-
um novo sentido ou um terceiro espaço mental. ração das subestações é sinal de problema
No caso específico do CROL, eles estão que precisa ser interpretado.
utilizando-se da linguagem comum e da prática A outra forma de obterem informações
das suas atividades, para a partir desse material via tecnologia é pelos alarmes sonoros e
produzirem, colaborativamente, outros espa- visuais do quadro sinóptico (instrumento que
ços que são os espaços do contexto em que transmite informações do sistema, como
eles atuam, criando novos significados para situação dos disjuntores, das tensões, etc.) e
as palavras utilizadas. Assim, a Teoria dos também pelas variações de tensões ali apre-
Espaços Mentais nos dá uma visão dinâmica sentadas. Um olhar em direção ao “display”
da construção de significados. das tensões do quadro sinóptico pode for-
Além deste código linguístico próprio, necer recursos através dos quais se pode saber
criado pelos sujeitos para suprir suas neces- que uma subestação está com problemas.
sidades comunicativas, outra linguagem Alterações nestes instrumentos já são um sinal
coexiste no mesmo espaço profissional, a de alerta, de que alguma coisa não está
linguagem transmitida pelos instrumentos funcionando dentro dos parâmetros da nor-
tecnológicos. No seu cotidiano de trabalho malidade. São estas alterações que tornam
os sujeitos lidam, portanto, com dois tipos possíveis aos operadores construírem uma
de linguagens: a do código lingüístico por versão do que está ocorrendo. Eles sabem
eles elaborado e a “linguagem” dos instru- que “algo está errado”, que alguma coisa
mentos tecnológicos que monitoram o sis- diferente aconteceu. Esta é uma linguagem
tema, através dos quais eles têm que “ler” construída inferencialmente pelo que os
diretamente as informações pertinentes ao instrumentos fornecem.
funcionamento do mesmo. Os equipamentos Saber “ler” e compreender o que os
na sala de controle proporcionam aos ope- instrumentos sinalizam, não é uma habilida-
radores o seu primeiro acesso perceptual para de natural, transparente, mas um elemento
o mundo do trabalho. Eles vêm e agem sobre de aprendizagem cultural, organizado soci-
este mundo através do uso destes instrumen- almente e que é desenvolvido e mantido
tos que estão constantemente transmitindo dentro de uma comunidade de prática. Se-
para os operadores, através da configuração gundo Goodwin e Goodwin (1996) “ler” os
das subestações nos computadores, informa- instrumentos de uma forma relevante ao
ções do sistema como um todo. É um re- trabalho, é resultado de um conhecimento
curso crítico na colaboração entre os ope- cultural produzido localmente. As linguagens
radores e as subestações. Estas vias de desenvolvidas nesta atividade específica são
distribuição da informação capacitam os formas de adaptações das transações comu-
operadores a tomarem conhecimento da nicativas às tecnologias complexas que com-
ocorrência de um problema no caso das põem a prática da atividade.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 393

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394 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 395

Clipoema:
a inter-relação das linguagens visual, sonora e verbal
Luiz Antonio Zahdi Salgado1

Os anseios gerados pela poesia concreta Os poetas deste grupo estavam conectados
brasileira nascida nos anos 50, donde as pos- às idéias artísticas e teóricas de Mallarmé,
sibilidades plásticas da palavra ganharam James Joyce, Ezra Pound, Cummings e
importância, são agora, nestes últimos 12 Apollinaire e também as tentativas experi-
anos, concretizadas através do cruzamento mentais futuristas/dadaístas que estão na raiz
com as atuais interfaces tecnológicas. A ampla do novo procedimento poético, que se im-
revolução causada pela ferramenta digital puseram à organização convencional formal
possibilitou que a poesia escrita, sua imagem do verso. (Campos 1987: 50). Os signos
e movimento agregassem novos valores. O verbais da poesia se abrem para a visualidade
som e seus desdobramentos, a música, a das Artes Plásticas e do Design Gráfico, a
utilização de ruídos, a poesia falada, bem leitura tradicional rende-se para uma visão
como outros recursos oriundos de outras ma- multidirecional da distribuição do poema pelo
nifestações artísticas como, por exemplo, a espaço da página: os tipos se soltam sobre
performance e a vídeo arte podem ser agora a superfície branca plana.
elementos para serem agrupados em poesia. Para Philadelpho Menezes, o momento
O resultado desta inter-relação diferenciada concretista é considerado “o de maior alcance
de linguagens chama-se no Brasil da consciência crítica até então produzido pela
“Clipoema”. vanguarda brasileira”, quando foram dados os
A inter-relação das linguagens visual, primeiros passos para “(…) o caminho da
sonora e verbal (VSV) já ocorre a quase 80 crescente presença da visualidade, que acabaria
anos nas manifestações cinematográficas de por aprofundar a implosão sintática, chegando
modo indiscutivelmente consagrado, entretan- a própria unidade molecular do discurso ver-
to do cruzamento da poesia concreta com as bal: a palavra.”(Menezes, 1991: 13). Santaella
atuais interfaces tecnológicas ocorre um novo também trata do mesmo assunto e acrescenta
modo nessas relações: um alto grau de “no Brasil, o polêmico movimento da poesia
inter(IN)dependência entre elas, ou seja, cada concreta foi o primeiro a pôr programaticamente
linguagem pode se estabelecer independen- em discussão a visualidade na poesia (…)”
temente das outras, mas quando agrupadas (Santaella, 1998: 70-71).
não apenas funcionam como meras ilustra- Paralelo ao interesse pelo sentido visual
ções ou legendas umas das outras mas pro- da palavra, principalmente pelo grupo de
porcionam múltiplas possibilidades de leitu- poetas do Noigandres, também já estava
ra e entendimento de modo que ampliam contido, na dinâmica concretista, o desejo de
consideravelmente as possibilidades de sig- utilizar o som na construção poética, con-
nificado da mensagem poética. Entendo que forme declara Augusto de Campos. (Araújo,
isto caracteriza o Clipoema. 1999: 50) Muito da estrutura da poesia está
Há meio século os poetas Augusto de na sonoridade proporcionada pela combina-
Campos, Haroldo de Campos e Décio ção criativa das letras, sílabas e palavras que
Pignatari, como integrantes do Grupo possibilitam resultados interessantes tanto no-
Noigandres, iniciaram um movimento de poema recitado quanto no cantado. Entretan-
vanguarda, pioneiro, bastante considerado in- to, a utilização do som proposta por estes
ternacionalmente, que abriu novos caminhos poetas é aquela cujas referências se encon-
para a poesia brasileira, “(…) surge a poesia tram nos grandes compositores que inova-
concreta detectando a crise do verso e ten- ram e ampliaram os conceitos musicais do
tando reordenar o caos gráfico do esfacela- século XX, como Schoenberg, Webern,
mento da linearidade” (Menezes, 1991: 13). Boulez, Xenakis, Cage, entre outros.
396 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Pode-se ainda dizer que uma das prin- Na obra Nome se encontra a continuidade
cipais características da poesia visual já se do percurso iniciado pelo concretismo, uma
encontrava antecipadamente no pensamento obra de poesia que se vale de outras lingua-
concretista: a exploração de novos suportes. gens não só para ilustrar o seu sentido verbal,
“Antecipando a explosão das variadas ma- mas para, na inter-relação com o som e a
nifestações da poesia visual (poema proces- imagem, gerar múltiplos significados.
so, poesia experimental, alternativa, arte
postal, gestual, poesia visiva, grafismo, Informação, comunicação e repertório
letrismo), a poesia concreta, especialmente
nos desdobramentos por que viria passar na A percepção da obra Nome passa a
obra de Augusto de Campos, antecipou ocorrer através da combinação de variados
também o pulsar dos movimentos em luz ou caminhos, possibilitando uma leitura ampla
som de uma poética eletrônica na era da e diversificada, limitada apenas pelo reper-
automação” (Santaella et al, 1998: 71). tório individual do público apreciador. O
Os elementos inscritos pelo movimento público atingido por este formato de trabalho
concretista atravessaram décadas em busca de aumenta em número, porque a obra atrai,
movimento e animação. Entretanto, através dos numa mesma idéia, amantes da música, do
mesmos poetas citados e juntando-se a eles vídeo e da poesia.
o artista plástico Júlio Plaza e também o artista Uma das mais importantes características
multimídia Arnaldo Antunes, novas experimen- encontradas na obra Nome está relacionada
tações surgiram na composição com signos com o modo de utilização dos repertórios
verbais e não verbais. Estas explorações sonoro, visual e verbal, dos cruzamentos, das
ocorreram principalmente na utilização de complementações, das linhas de fuga, enfim,
outros suportes tecnológicos como o fax, o das relações intersemióticas entre eles. O
vídeo texto, o holograma, o laser, o vídeo e artista multimídia combina os três repertó-
o computador, que foram emprestados de suas rios de forma bastante variada, gerando uma
funções para servirem como interfaces para obra múltipla onde cada poema, clipoema,
expressão artística destes poetas. música, apresenta diferenças de níveis de
Na década de 90, no Laboratório de inteligibilidade e redundância. Podem-se
Sistemas Integráveis da Escola Politécnica da encontrar músicas de repertório facilmente
USP, foram desenvolvidos alguns poemas a reconhecido, assim como poemas com níveis
partir dos recursos da computação gráfica. altos de inteligibilidade e que exigem do
A idéia era transcriar poemas do papel para receptor um repertório mais elevado.
o vídeo (Araújo, 1999: 15), este evento foi A obra apresenta múltiplos cruzamentos,
chamado de Vídeo Poesia. Paralelo a este com variados graus de complexidade, pois
evento, AA desenvolveu a obra multimídia a utilização do recurso de repetição não segue
Nome. uma lógica convencional. Os elementos são
organizados em estruturas diversas que
Nome buscam muito mais a experimentação esté-
tica. O alto grau de informação da obra como
Nome é o título/tema um todo resulta num complexo organismo
da obra de Arnaldo onde em cada parte se observam níveis
Antunes. Esta obra variados de disposição da informação, alguns
datada de 1993, con- momentos mais redundantes, outros intensa-
siderada multimídia mente mais informativos, causando radicais
por envolver vários enfrentamentos entre inteligibilidade e
meios para sua produ- previsibilidade.
ção e apresentação, é Por exemplo, pode-se observar no vídeo
composta de CD com Cultura uma combinação de repertórios que
23 músicas, vídeo facilita ao público o entendimento da men-
com 30 clipoemas, sagem poética.
livro com 30 poemas Já em outro clipoema onde o título frase
e show musical. “os nomes dos bichos não são os bichos”,
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 397

o autor coloca uma questão metalingüística A inter-relação das linguagens sonora,


sobre a relação entre os signos/símbolos que visual e verbal (VSV)
por convenção representam, mas não são os
seus referentes. Fica evidente a utilização da É de meu interesse colocar outras ques-
imagem como signo que indica/induz o tões sobre a inter-relação das VSV e não
receptor a aceitar vários referentes para o apenas seguir a ordem do convencional, do
mesmo signo verbal. Como em Alice no país posto, do consagrado, mas de procurar novos
das maravilhas, o interessante nestes jogos recursos para reflexão que possam se apro-
metalinguísticos está nas possibilidades en- ximar de modo mais eficaz e aberto de uma
contradas por trás do espelho, ou seja, o nova proposta artística.
receptor vai percebendo o jogo conforme o Nesta concepção, as conexões entre as
vídeo vai se mostrando no tempo, quando linguagens ocorrem em forma de rizoma2,
vai se deixando perceber o deslocamento de podendo acontecer a qualquer momento,
um referente para outro. De outro modo, interligando pontos de informação, signifi-
poderia se dizer que o primeiro referente, por cados ou os diferentes suportes que possi-
exemplo, da palavra “macaco”, é o animal bilitam a veiculação das mensagens poéticas.
conhecido por todos como objeto deste sím- Independentemente de qualquer regra
bolo. Num segundo momento, poder-se-ia preestabelecida, o receptor navega entre
dizer que a mesma palavra estaria se trechos ou fragmentos de imagens visuais,
referenciando a um boneco que possui sig- verbais, sons e/ou músicas, intercalando-os
nos semelhantes aos do animal. E ainda, em em tempo real na seqüencialidade temporal
uma terceira possibilidade, ocorre uma in- da obra, conforme lhe desperte o interesse,
versão no deslocamento, sendo que agora é por vizinhança, parentesco, proximidade,
a palavra/signo/verbal/sonoro que é substi- similaridade, contigüidade, ou de qualquer
tuída por outra que indica uma nova refe- outra forma que lhe determine um percurso
rência dentro do mesmo objeto: neste caso particular para o entendimento da informa-
o objeto/boneco/macaco/material, pode ser ção.
identificado/chamado/entendido através da A alta taxa de informação de cada
palavra “pelúcia”. mensagem poética de uma obra híbrida que
Os referentes são potências latentes de mantém uma inter-relação não hierárquica,
significação, conscientizadas a partir das não permite uma completude perceptiva
evidências indiciais deixadas propositalmen- finalizada, única, acabada em si mesma. São
te pelo autor na composição da inter-relação múltiplas possibilidades abertas para a recep-
das linguagens. E por fim a própria palavra ção. Entretanto, não se trata de uma escolha
escrita/dita como signo de referência dela objetiva por este ou aquele caminho. A
mesma com suas características gráficas e interatividade ocorre através de um processo
sonoras também participa deste jogo de de edição cerebral que opta por quais cami-
cruzamentos metalingüísticos. O poema se nhos navegar. É um ato de percepção e
encerra no ato de lavar o cavalo, diluindo conscientização. Na dinâmica da escolha das
as palavras nele escritas. A palavra, que no partes, no ato da leitura, a seqüência obtida
início foi apresentada sendo construída, leva a uma interpretação do todo, não de um
materializada, no final é diluída/lavada. todo único, mas de um possível dentre muitos.
Percebe-se que não há hierarquia entre Na inter-relação das linguagens, o reper-
os signos/elementos. A cada instante, a cada tório signico do receptor entra em confronto
linha/frase/imagem/som o receptor é surpre- permanente com o da obra. A cada nova
endido pela multíplice de combinações onde leitura, novos signos de informação vão sendo
o significado flutua em muitos fragmentos. desvendados, e novos encadeamentos de sig-
O poema se organiza na obrigatória condição nificados vão surgindo. A passagem de
temporal imposta pelo meio, porém a não entrada para a leitura da obra ocorre a partir
linearidade se destaca na multiplicidade de de elementos de repertório simples, redun-
signos que se justapõem, às vezes por vi- dantes e conhecidos, ou até sofisticados
zinhança e aproximação e outras por saltos elementos de metalinguagem. É bastante
e linhas de fuga. interessante observar que, simultaneamente
398 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

ou isolando uma determinada informação do um movimento que se estabelece conforme


todo, as VSV possibilitam muitas leituras. o receptor identifica os signos mais conhe-
Nesta dinâmica ocorre ruptura e cidos, seja na imagem, na escrita, na fala ou
desterritorialização constantemente, mesmo no som. A mensagem, para o receptor, re-
diante de uma obra videográfica. A leitura aliza-se como um patchwork, um mosaico
se desloca entre as mensagens, onde ocorre de significâncias.
uma flutuação perceptiva na interpretação dos Na relação entre a imagem e o texto da
signos VSV, seja de forma vertical, na si- obra Nome, ocorre uma constante confron-
multaneidade dos signos, seja na tação entre signos redundantes e de infor-
horizontalidade da sequência temporal. mação. Kalverkämper3, citado por Santaella
O clipoema “Pessoa” que também, faz e Nöth (1997: 54) distingue três casos em
parte da obra Nome, é um exemplo do que que imagem e texto se relacionam na cons-
quero dizer sobre a inter-relação de lingua- trução da mensagem: no primeiro caso a
gens. O clipoema inicia apresentando uma imagem é inferior e apenas complementa o
imagem/fundo, movimentando-se para a texto, servindo como elemento de redundân-
direita. A imagem marcada por rascunhos, cia do verbal escrito; no segundo caso, a
escritas a mão, riscos e rasuras, causam um imagem é superior ao texto porque carrega
ruído branco na mensagem, signos que maior taxa de informação; no terceiro caso
denunciam a existência do poeta. Na estru- a imagem e o texto têm a mesma importân-
tura do clipoema, a imagem/fundo serve de cia. Esta equivalência é descrita como
suporte contrastante para os tipos digitais do complementaridade. “A vantagem da
poema escrito se movimentarem para a complementaridade do texto com a imagem
esquerda. O movimento contrário entre as é especialmente observada no caso em que
imagens causa dificuldades para a percepção conteúdos de imagem e de palavra utilizam
do poema escrito. Entretanto, na fragmenta-
os variados potenciais de expressão
ção do poema não ocorre perda de qualidade
semióticos de ambas as mídias”4 (Ibid., 55).
na informação. Uma outra interferência de
Sugiro uma quarta situação onde não só
teor metalingüístico aumenta a sensação de
a imagem e o texto, mas também o som em
estranhamento e de desconcerto perceptivo:
todas as suas variações se inter-relacionam
ao mesmo tempo em que o poema passa pela
diferentemente do conceito de complementa-
tela, se podem ouvir, simultaneamente, AA
ridade, pois possuem qualidades independen-
fazendo a análise gramatical do poema. Di-
tes capazes de informar tanto de forma isolada
ferentemente do habitual, onde o texto ver-
como associadas umas com as outras, po-
bal falado se relaciona com poema escrito
ou de forma recitativa ou através de melodia dendo este caso ser identificado como uma
musical, neste clipoema os signos verbais se Inter-relação rizomática das linguagens VSV.
relacionam em contraponto, o receptor lê o Este caso se enquadra em certos momen-
poema e ouve a análise sintática. Ainda se tos, a meu ver, com a obra em questão. Um
pode perceber a presença de sons graves de dos indícios desta constatação é o próprio
um baixo acústico aumentando a expectativa kit multimídia de Nome (CD musical, livro
em torno do clipoema. A quantidade de de poemas, clipoemas, show musical). Cada
informação verticalizada, acontecendo simul- um destes itens, tratados individualmente,
taneamente na horizontalidade seqüencial do carrega em si informações estéticas sufici-
vídeo, em determinado momento causa um entes para se sustentarem como mensagens
estado parecido com a hipnose, um descon- poéticas. As linguagens aqui não são apenas
certo multisensorial. complementares, mas se relacionam em uma
Este clipoema se caracteriza pelo modo multiplicidade de caminhos. Entendo ser deste
rizomático como se apresenta à recepção. Na modo uma proposta inovadora de inter-re-
tentativa de buscar uma interpretação ime- lação das linguagens VSV. A linguagem
diata, o receptor é levado a se distrair na resultante é composta por uma combinação
inter-relação das linguagens, fragmentando a de linguagens que são articuladas e se
compreensão linear do clipoema. O resulta- materializam numa mensagem híbrida. En-
do é uma sensação ramificada causada por tretanto este ponto de vista não exclui a
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 399

existência, em determinados momentos, de de abrangência seja ampliado também para


signos de som e imagem que se relacionam o âmbito da imagem sequenciada, uma vez
hierarquicamente apenas como uma ilustra- que constatei que esta guarda semelhanças
ção. com uma característica fundamental do som:
ambos necessitam da passagem no tempo para
Clipoema Suíte5 existirem. Sobre este assunto, Santaella e
Nöth (1997) escrevem: “(...) a partir do
Este clipoema foi criado a partir das cinema, então com o vídeo, e agora com a
características observadas durante a pesqui- computação gráfica, os processos visuais, ao
sa. Suíte é uma mescla de linguagens. Das se inseminarem cada vez mais de tempo,
relações entre estrutura/resultado se pode adensando sua dinamicidade, estão ficando
perceber que uma se espelha/reflete na outra, cada vez mais parecidos com a música”.
caracterizando o uso da metalinguagem como Outro dado importante para a definição da
recurso de composição. Suíte é uma rede de estrutura do clipoema está diretamente ligado
inter-relações e desdobramentos onde cada à unificação do código (binário) para todos
elemento VSV ocupa espaço equivalente, não os tipos de dados dentro dos novos processos
hierarquizado. O clipoema começa empres- tecnológicos de informação e comunicação.
tando da música a estrutura formal – suíte, Além das semelhanças já citadas, pode-se
para em seguida desterritorializar esta forma observar também que, em seu estado de
do seu habitat natural para reterritorializá- potência virtual, não há mais diferenciações
la de modo ampliado para todas as demais entre som e imagem, a não ser no modo como
linguagens. se apresentam ao espectador. Também sobre
O motivo inicial que serviu de semente isto dizem Santaella e Nöth (1997: 91), “...
para a elaboração do clipoema Suíte foi a o que se tem hoje, na realidade, é uma
necessidade de utilizar um processo que não dissolução de fronteiras entre visualidade e
fosse condicionado pelos padrões ou facil- sonoridade, dissolução que se exacerba a um
mente iludido pelos recursos da computação ponto tal que, no universo digital do som e
gráfica banalizados pelo uso, e que utilizasse da imagem, não há mais diferenças em seus
um signo verbal como motivo ou como uma modos de formar, mas só nos seus modos de
mola propulsora para a construção do aparição, isto é, na maneira como se apre-
clipoema. A palavra “suíte” foi escolhida por sentam para os sentidos”.
designar uma estrutura formal que envolve A partir disto, para manter a coerência
peças musicais que guardam relações entre dentro de um sistema não hierarquizado
si. Esta organização, assumida na palavra por previamente, estruturei um método específi-
convenção, envolve de saída um procedimen- co para criação do clipoema. Inicialmente
to metodológico estabelecido historicamente foram selecionadas 12 palavras, escolhidas
através da composição musical. A palavra por estarem relacionadas a considerações
suíte diz significar:“Série de composições preestabelecidas: 1- a metalinguagem da suíte
instrumentais em forma de dança (ou de musical; 2- referências às tecnologias da
canção), de construção binária, as quais se computação gráfica; 3- e que também guar-
sucedem em ordem lógica de movimentos dassem relações entre si e com o tema.
diversos, ligados entre si por estreito paren- As palavras escolhidas foram as seguin-
tesco tonal” (Holanda, 1983: 1139). Como tes: Forma, dança, estrutura, ternário, míni-
se pode ver na definição, a palavra, por sua mo, algo ritmo, quadrados, receba flores,
representação simbólica adquirida pelo seu ligação, rede, salto.
uso, determina o modo como ocorre a or- A montagem foi realizada de modo não
ganização interna de seus elementos, deter- convencional. Para descondicionar a percep-
minando inclusive a estrutura temporal de ção e eliminar a possibilidade de associações
como se devem suceder, bem como qual por similaridade ou contiguidade geradas pela
sistema musical rege a relação entre esses mente, para evitar a influência do meu próprio
elementos. repertório, o melhor recurso seria uma com-
Para a composição portanto, a palavra binação aleatória das palavras através de um
“suíte” é utilizada de modo que o seu espaço sorteio.
400 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Para o sorteio foi necessário determi- o desenvolvimento visual, e a terceira, o


nar alguns critérios estruturais para orga- motivo para o desenvolvimento sonoro
nizar o todo do clipoema. A suíte musical (música e/ou ruído e/ou sonoplastia e/ou
serviu de modelo. A partir desta referência, manifestações verbais) e assim por diante,
o clipoema ficou composto por 4 partes, até formar os 4 grupos de ação VSV,
cada uma contendo 3 palavras escolhidas correspondentes aos movimentos musicais
através de sorteio. A primeira sorteada que formam a suíte.
definiu o título, a segunda, o conteúdo para Após o sorteio o quadro ficou assim:

Ação Título Referências Imagéticas Referências Sonoras


1 rede imagens abstratas ternário
2 ligação forma dança
3 quadrados estrutura mínimo
4 algoritmo salto receba flores

Ação 1 - Título: Rede

Imagens abstratas

Ação 2 - Título: Ligação

Forma
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 401

Ação 3 - Título: Quadrados

Estrutura

Ação 4 - Título: Algo ritmo

Salto

Entre os clipoemas da obra Nome e o forma de expressão poética evoluída a partir


clipoema Suíte observa-se semelhanças no da história da poesia concreta brasileira, das
que diz respeito a inteligibilidade da men- possibilidades não hierárquicas entre elemen-
sagem. Enquanto no primeiro ocorre uma tos de som, imagem, ou texto verbal deste
grande diversidade de repertórios distribuí- tipo de composição, do caráter híbrido do
dos ao longo dos 30 clipoemas, no segundo seu resultado misturando cinema, vídeo,
as diferenças ocorrem em apenas 4 movimen- poesia, artes plásticas, etc., e finalmente o
tos. Em consonância também se encontra o repertório variado que permite aproximações
modo aberto para múltiplas possibilidades na entre mensagens com níveis de taxas de
inter-relação das linguagens. informações muito diferentes.
Principalmente o que se quis considerar
neste trabalho é o Clipoema como uma nova
402 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia _____. Poesia pois é poesia. Pó&tc. São


Paulo: Brasiliense, 1986.
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3
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In TITZMANN, M., org., Zeichen (theorie) und
Paulo, 2001, 3ª ed.
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Pignatari, Décio. Informação, linguagem 4
Michael TITZMANN org. Zeichen (theorie)
e comunicação. Cotia: Ateliê Editorial, 25ª und Práxis. Passau: Rothe, 1993.
ed., 2002. 5
Este clipoema é de minha autoria e foi
_____. Semiótica & literatura: icônico e finalista do 1º Concurso Nacional de Clipoemas
verbal, Oriente e Ocidente. 2ª ed. ver. e ampl. Perhappiness realizado pela Fundação Cultural de
São Paulo: Cortez & Moraes, 1979. Curitiba.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 403

Modelos de Personalização de conteúdos em Audiovisual:


novas formas de aceder a velhos conteúdos
Manuel José Damásio1

1. Introdução natureza historicamente enraizada destas tec-


nologias (Uricchio, 2003) e aponta para a
Este texto apresenta uma análise da necessidade de transferirmos a nossa análise
evolução de uma tecnologia da informação de um enfoque, porventura excessivo, nas
e da comunicação – a tecnologia audiovisual propriedades da tecnologia e no seu carácter
– e da experiência subjectiva que está as- instrumental, para a compreensão das con-
sociada ao consumo e produção de conteú- sequências que esse processo tem sobre as
dos audiovisuais. De acordo com a nossa práticas discursivas subjectivas e sobre a
análise, podemos detectar ao longo desse experiências de utilização e consumo de
processo evolutivo a emergência cada vez conteúdos audiovisuais. A nossa posição
mais clara de um modelo, em que mais do preconiza uma análise da tecnologia como
que o acesso aos conteúdos audiovisuais ou produto de um processo social de formatação
às fantásticas propriedades interactivas que em que, mais do que se constituir como um
estes supostamente agora encerram, o que instrumento de transformação social, a
está em jogo é o valor da experiência do tecnologia passa a ser parte integrante de
sujeito e a forma como esses conteúdos se novas formas subjectivas de experimentar e
adaptam à natureza específica dessa expe- manipular informação.
riência. A personalização, enquanto componente
Ao longo dos últimos anos, não cessaram essencial de uma experiência subjectiva de
os discursos (Bell, 1999; Antonelli, 2003) que conteúdos aumentados (Dimitrova,
proclamam uma revolução tecnológica, a que Zimmerman, Janevski, Agnihotri, Haas &
está associada a emergência de uma socie- Bolle, 2003), constitui uma variável central
dade da informação (Webster, 2002) e o deste processo e indica uma das caracterís-
domínio avassalador do digital sobre todas ticas nucleares do mesmo, a costumização
as formas de representação (Flichy, 1995). de conteúdos audiovisuais em função do
Devemos antes de mais confessar a nossa alargamento do número de canais de trans-
opinião pessoal de que o uso e abuso da missão à disposição, quer de produtores, quer
palavra “revolução” para descrever toda e de consumidores, e a consequente passagem
qualquer mudança que abala as nossas exis- de um modelo broadcast a um modelo
tências, tem vindo a corroer o valor e a multicast (Tseng, Lin & Smith, 2004).
importância que no passado atribuíamos a este O surgimento da personalização como
termo. As tecnologias da comunicação e da componente de uma tecnologia que no pas-
informação, tal como aliás qualquer outra sado não tinha quaisquer preocupações com
tecnologia, não evoluem de forma abrupta as preferências específicas deste ou daquele
ou repentina (Winston, 2003). A história do receptor passivo dos conteúdos que emitia,
computador (Ceruzzi, 2003) já nos indica que não resulta da convergência da tecnologia
estas tecnologias são mais do que meros audiovisual com qualquer outra forma
artefactos e devem ser compreendidas como tecnológica, e é sim resultado directo de um
a soma de um dispositivo, das suas aplica- processo em que o sujeito é cada vez mais
ções, contextos sociais de uso e arranjos o centro de toda a experiência audiovisual,
sociais e organizacionais que se constituem de acordo com uma lógica que deixa de estar
em seu torno. preocupada com o acesso para passar a estar
Um modelo geral de análise do processo preocupada com a forma como as preferên-
de evolução das tecnologias da informação cias e o ambiente do sujeito se reflectem na
e da comunicação (TIC) permite iluminar a sua experiência.
404 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

2. Modelo de Evolução das Tecnologias da posteriores, é validado através da construção


Comunicação e da Informação de sistemas que permitam à idealização
científica testar as suas soluções. Os siste-
A convergência entre as tecnologias mas que emergem da fase de idealização são
computacionais e os media é um processo denominados “protótipos” e não correspon-
que se traduz no surgimento de um conjunto dem obviamente a estágios finais de desen-
de inovações na forma de comunicar e de volvimento de uma aplicação.
representar informação (Manovich, 2001). A Tal como no momento de passagem à fase
tecnologia audiovisual é uma dessas inova- de idealização assistimos à manifestação de
ções e também ela resulta em grande parte uma competência tecnológica específica,
de um processo de evolução histórica que também agora vamos assistir à interferência
segue um paradigma que tem como objecto no processo de um conjunto de transforma-
tecnologias que são simultaneamente um ções, desta vez de ordem social colectiva.
instrumento de transformação social e um Brian Winston (2003) classifica estas forças
produto da evolução das organizações soci- genéricas que intervêm no sentido de definir
ais (Livingstone & Lievrouw, 2002). objectivamente os requisitos de uma deter-
O padrão histórico de evolução das tec- minada circunstância social ou de agrupar
nologias da Informação e da Comunicação, necessidades subjectivas percepcionadas,
e consequentemente do audiovisual pode ser como necessidades sociais de nível superior.
representado como estando centralizado numa São estas necessidades que definem os vários
esfera – a esfera social – na qual os elementos tipos de protótipos que encontramos ao longo
científicos, tecnológicos, culturais e da história e que os transformam em inven-
económicos, se intersectam. O resultado desta ções passíveis de difusão (Rogers, 1995).
intersecção é uma relação produtiva, em que A passagem dos protótipos a “invenções”
é um dos momentos cruciais na evolução da
cada nova expressão tecnológica depende da
tecnologia e respectiva relação com a esfera
competência científica que lhe está subjacente
social. A transformação operada sobre um
e das necessidades culturais e económicas que
protótipo pela necessidade que a ele preside,
permite exprimir. A tecnologia é entendida
determina que estes artefactos já não possam
como estando numa relação estrutural perma-
ser designados como protótipos e passem a
nente com a ciência e com as condições
assumir a categoria de”“invenções” (Winston,
económicas e culturais existentes, por forma
2003). As invenções já não são protótipos
a potenciar novos usos que estimulem as laboratoriais, mas antes tecnologias que, trans-
competências científicas e respondam a ne- formadas por uma necessidade e em sincronia
cessidades sociais e económicas efectivas. com o seu desenvolvimento, surgem simulta-
As tecnologias correspondem, de acordo neamente em vários locais. O exemplo extre-
com este modelo, a uma série de desempe- mo deste “acto de inventar” é dado pelo registo
nhos que materializam usos – por vezes simultâneo por Bell e Gray de uma patente para
invocados outras vezes descobertos quase por o telefone como resposta à necessidade social
acidente – no interior de uma esfera social, promovida pela moderna organização empre-
como resposta a um conjunto de competên- sarial que surgia nesse período (Flichy, 1995).
cias em que se sustentam. A distinção entre “invenção” e “protótipo”
O percurso que vai da competência à é menos óbvia do que poderia parecer e in-
performance e ao uso, é feito de transfor- troduz o tema da inovação como crucial no
mações sucessivas onde cada um destes ciclo de evolução de uma tecnologia (Antonelli,
elementos desempenha um papel específico. 2003). Uma inovação não é algo que precede
Assim, há sempre um primeiro momento de a entrada de uma invenção no mercado, mas
transformação, que corresponde à idealização sim algo que sucede à entrada de um protótipo
de um processo ou sistema que integre no mercado e que, após a sua confirmação como
conceptualmente uma determinada competên- algo viável de acordo com a sua capacidade
cia científica e formule uma hipótese efec- de cumprimento da necessidade expressa, o
tiva de solução de uma necessidade. institui como invenção.
O desempenho de uma tecnologia, pri- A existência de padrões sociais que con-
meiro estágio na definição dos seus usos formam a tecnologia à organização e às necessi-
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 405

dades sociais vigentes, está na raiz de um sociais continuem a incentivar a entrada no


processo pelo qual nenhuma efectiva “revolu- mercado de mais protótipos ou invenções.
ção” é despoletada pelas TIC, mas onde pe- O conflito entre uma necessidade
quenos ganhos de produtividade são realizados aceleradora e uma lei social que trava a
em áreas onde a própria cadeia de valor do difusão da tecnologia, gera uma transforma-
negócio é preparada para a introdução dessas ção no processo de evolução que vai deter-
tecnologias (Farrel, 2003). O acelerador de minar um desempenho tecnológico impulsi-
qualquer processo de inovação tecnológica é onador da produção, o que por sua vez vai
a existência de uma necessidade social efectiva originar spin-offs e redundâncias.
partilhada por um grupo, comunidade ou O último estágio de evolução das tecno-
organização, que é significativa para o conjun- logias é sempre sucedido por um momento que
to da estrutura social dominante. já não podemos decretar como evolutivo mas
Se há necessidades que impulsionam a que nem por isso deixa de ser importante. Esse
adopção e difusão de uma tecnologia, tam- momento é o da institucionalização do uso da
bém há elementos que travam esse processo tecnologia. O processo de institucionalização
e que não podem ser menosprezados se é um processo historicamente enraizado que
queremos compreender como é que as tec-
envolve ciclos de longa duração de uso da
nologias evoluem e são adoptadas numa
tecnologia, respectiva apropriação subjectiva,
sociedade. Os constrangimentos de qualquer
difusão do seu valor e estabelecimento da
tipo actuam nesta fase do processo para
importância das necessidades que presidem à
impedir que inovações que não são compa-
sua evolução (Urichio, 2003).
tíveis com a organização social dominante ou
com as crenças do grupo que gerou a neces- Não é a importância per se da tecnologia
sidade de invenção, possam ser adoptadas. que despoleta a sua difusão e
Esta terceira e crucial transformação no institucionalização em larga escala nas so-
processo de evolução - recorde-se que a ciedades. O permanente confronto entre os
primeira correspondia à idealização e a se- aceleradores e os travões da difusão da
gunda à actuação das necessidades sociais em tecnologia, as necessidades e os constrangi-
ordem à criação de invenções -, refere-se então mentos, obriga-nos a interpretar o processo
à intervenção de forças sociais que suprimem de evolução das tecnologias, não como uma
a difusão da tecnologia e a remetem para um revolução ou um salto abrupto promovido
estágio anterior ou para a extinção. pelas novidades tecnológicas, mas sim como
É esta lei de supressão do potencial um processo lento, historicamente enraizado
radical que nos permite compreender como e provido de um padrão claro. O processo
é que as instituições sociais se mantêm em de evolução de uma qualquer tecnologia da
funcionamento de forma inalterada apesar de informação e da comunicação, nomeadamente
o grau de inovação aumentar. A existência da tecnologia audiovisual, está
desta lei não impede que as necessidades esquematicamente representado na figura 1.

Fig. 1 – Modelo de evolução das TIC


406 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

3. A personalização como variável de uso comunicação, para além das transformações


e consumo por que passam esses mesmos utilizadores
enquanto participantes num processo de co-
Contrariamente aos meios de comunica- municação, tem como resultado um carácter
ção de massa, que assentavam o seu funci- progressivamente mais personalizado e va-
onamento numa lógica linear de transmissão riável de uso.
da informação, as Tecnologias da Informa- Por personalização entende-se a variação
ção e da Comunicação apresentam por vezes de um conteúdo em função do carácter único
modelos bi-direccionais de troca de conteú- de cada utilizador (Gandy, 2002). A
dos. Este facto não é por si mesmo novo personalização pode ser entendida como
– no princípio do séc XX o telefone já referente a duas áreas distintas –
apresentava esta mesma característica – mas personalização da apresentação ou interface
a partir do momento em que a essa da aplicação e personalização do conteúdo.
bidireccionalidade surgem associados conteú- No primeiro caso estamo-nos a referir à
dos audiovisuais que podemos manipular e personalização do ambiente da interacção ou
que são formatados aos nossos perfis (Davis, interface, nomeadamente através da defini-
2003) estamos perante uma evolução signi- ção de uma preferência individual de cores,
ficativa da tecnologia. Uma das formas de disposição de elementos, etc; no segundo
descrever o modelo de comunicação típico caso, estamos a considerar sobre a denomi-
das TIC é através da utilização da metáfora nação de “personalização” todos os serviços
da rede (Rafaeli & Sudweeks, 1997). A ou aplicações que permitem adaptar um
metáfora da rede pode ser aplicada às tec- conteúdo às necessidades específicas de um
nologias e aos padrões de relações e indivíduo. Esta forma de personalização pode
organizações sociais baseados em nós com ser realizada, quer através da adequação da
vários participantes que assumem de forma apresentação do conteúdo ao tempo e espaço
variável, quer o papel de emissores, quer o da experiência do sujeito, quer através da
papel de receptores, ao longo do processo formatação do conteúdo às preferências do
de comunicação. Paralelamente, as tecnolo- utilizador (Dimitrova et al, 2003; Tseg et al,
gias audiovisuais têm como padrão central 2004).
de uso a interacção isolada com um terminal O carácter individualizante ou persona-
ou equipamento receptor, facto esse que lizado e variável das TIC deve ser visto, não
posteriormente determina muitos dos seus tanto como uma propriedade diferenciadora
modelos de circulação de informação desta ou daquela tecnologia, mas sim como
(Bordewijk & Van Kaam, 2003). um objectivo evolutivo de um determinado
O aumento e a segmentação do volume conjunto de tecnologias que partilham de um
de sujeitos que podem interagir sobre o meio princípio infra-estrutural numérico,
e a variedade de direcções de comunicação recombinatório e de separação entre a cama-
que ele permite (MacMillan, 2002), possi- da de dados e a camada de apresentação e
bilitam a desmassificação do meio e a ge- que possibilitam a adição de metadata, quer
ração de fenómenos de anycast – o envio ao nível do programa, quer ao nível do canal
de uma mensagem para um indivíduo loca- de transmissão. Estes princípios infra-estru-
lizado no meio de uma audiência. Conceitos turais têm servido no passado para justificar
como audiência deixam de ser válidos por- o carácter ubíquo das TIC (Livingstone &
que reveladores de uma forma de análise Lievrouw, 2002) e a consequente dissemi-
típica dos media de massa, e o elemento nação da sua presença por todos os campos
importante a considerar neste contexto passa da actividade social.
a ser o da deslocação do centro de controlo A ubiquidade é uma consequência social
da mensagem do produtor para o consumi- das formas de uso da tecnologia como res-
dor, agora participante efectivo do processo posta a necessidades sociais superiores.
de comunicação, porque utilizador da Assim, a ubiquidade refere-se ao interesse
tecnologia. da camada social em desenvolver mecanis-
O aumento dos níveis de segmentação do mos de descrição, estruturação e gestão da
volume total de utilizadores e dos canais de informação que facilitem o seu uso pelos
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 407

sujeitos e lhes permitam passar de um estado o desenvolvimento de máquinas cada vez


de acesso para um estado de uso e apropri- mais rápidas e com capacidade de processar
ação efectiva. A necessidade superior que mais informação. O aspecto crucial desta
determina este processo resulta da prolife- definição é a experiência individual de uso
ração de canais de transmissão e do aumento da tecnologia e da informação. A ubiquidade
do volume global de informação disponível como consequência das TIC só é uma pro-
sem que daí resulte uma melhoria qualitativa priedade válida se considerarmos que essa
da experiência subjectiva, isto contrariamen- mesma experiência se centra no utilizador e
te àquilo que era aparentemente prometido envolve um elevado índice de personalização.
pela própria natureza física do modelo de co-
municação típico das TIC. 4. Conclusões
Uma das soluções para reduzir o fosso
entre o volume de informação fornecido e o A possibilidade de relacionar a riqueza
de informação requisitada, é a criação de um representacional dos conteúdos audiovisuais
modelo de experiência multimédia universal com os modelos de interacção típicos das
– Universal Multimedia Experience (UME) - tecnologias computacionais e de redes é uma
que substitua os modelos de acesso à infor- consequência directa de um processo
mação exclusivamente preocupados com a evolutivo das tecnologias da informação e da
formatação dos conteúdos às limitações do comunicação, nomeadamente da tecnologia
equipamento receptor – Universal Multimedia audiovisual, que passou a integrar nas suas
Access (UMA) - por uma preocupação central propriedades modelos de representação e
com o utilizador (Pereira & Burnett, 2003). descrição dos conteúdos que permitem en-
Tal modelo preconiza a apresentação de di- carar uma experiência mais valiosa para o
ferentes formas de informação de um mesmo utilizador.
conteúdo de acordo, não com as limitações A enorme variedade de fontes de infor-
do equipamento, mas sim com o contexto de mação e o volume de conteúdos que as
uso e as necessidades do utilizador. mesmas publicam, aliado à proliferação das
De acordo com esta definição, o termo TIC por todas as áreas da nossa actividade
“universal” não se refere a uma lógica como consequência directa do seu carácter
globalizante de acesso à informação e à ubíquo, são motivo adicional para o
tecnologia, mas à possibilidade de o utilizador surgimento de uma necessidade superior de
aceder à mesma em qualquer local, a qual- facilitar o acesso dos utilizadores aos con-
quer momento, independentemente do tipo teúdos de acordo com as suas preferências,
de informação, de acordo com as necessi- características da sua experiência e necessi-
dades da sua experiência. dades específicas de informação aumentada.
A experiência do sujeito que se relaciona A definição dos formatos MPEG-7 e
com a tecnologia e impulsiona o seu desen- MPEG-21 como formas de descrição de
volvimento, está a evoluir de uma experi- conteúdos, adição de metadata e represen-
ência centrada no fornecimento de informa- tação do ambiente de consumo, são apenas
ção para uma experiência centrada no for- o primeiro passo na evolução da tecnologia
necimento da melhor experiência possível audiovisual em direcção a formatos
para aquele indivíduo ou aquela comunidade reutilizáveis e personalizados que certamen-
(Preston, 2001). te vão constituir o núcleo de uma experiên-
Este conceito envolve muito mais do que cia futura que já não se limitará à represen-
a infra-estrutura de rede com que se preo- tação e passará a incluir o utilizador e os
cupam os operadores de telecomunicações ou seus perfis como parte integrada e essencial.
408 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

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NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 409

Contributo dos serviços de comunicação assentes em


Internet para a manutenção e alargamento
das redes de relações dos sujeitos
Maria João Antunes, Eduardo Anselmo Castro, Óscar Mealha1

1. Introdução lelamente os agentes que estejam inseridos


em grupos fortemente ligados parecem ter
A adesão em larga escala aos serviços de uma maior propensão para o desenvolvimen-
comunicação e informação assentes em to de uma rede rica de relações fracas. Este
Internet vem despertar os estudiosos para a mecanismo de reforço cumulativo entre
problemática da comunicação mediada por relações fortes e fracas está fortemente
computador, mas também para as oportuni- associado aos espaços geográficos 4. As
dades que se abrem perante o alcance de uma relações fortes estão bastante dependentes
rede de comunicação global. da proximidade social e tendem a desen-
A teoria das relações fortes e fracas, ex- volver-se em lugares com redes grandes e
posta por Mark Granovetter nos anos 70, integradas, tradicionalmente centros urbanos.
fornece um contributo importante para o es- Mas saliente-se que as relações fortes devem
tudo da disseminação de informação em ser complementadas por um conjunto diver-
redes. As relações fortes caracterizam-se por sificado de relações fracas, por forma a
contactos frequentes e ligações de grande permitir ligações a outros grupos evitando
reciprocidade, ocorrendo tipicamente entre assim a formação de meios autistas, fecha-
amigos e familiares chegados, ou seja, entre dos sobre si. A capacidade dos indivíduos
indivíduos com estatuto semelhante parti- e das organizações interagirem com agentes
lhando entre si um mesmo conjunto de in- localizados em qualquer lugar depende, em
formações. Estas relações afiguram-se de grande medida, da sua capacidade de
inequívoca importância na aquisição de interagirem localmente e absorverem, selec-
recursos básicos à manutenção do bem-estar cionarem e distribuírem informação gerada
dos indivíduos. As relações fracas, por seu localmente3.
lado, possibilitam a ligação a indivíduos per- Neste contexto afigura-se de particular
tencentes a outros grupos, permitindo o relevância o conhecimento das utilizações que
acesso a recursos inexistentes no círculo os indivíduos estão a dar aos novos dispo-
social no qual o sujeito se integra. Natu- sitivos de comunicação e informação assen-
ralmente estas ligações resultam de relaci- tes em Internet, na medida em que estes se
onamentos menos íntimos e mais esporádi- apresentam como um poderoso meio de
cos2. interacção. Por forma a averiguar a forma
De acordo com Granovetter 3 e como o potencial destas ferramentas está a
Haythornthwrite, o desenvolvimento de re- ser aproveitado elaborou-se um inquérito
lações fracas, com agentes fora do círculo auto-administrado por computador, disponi-
de interacção do sujeito que possuem in- bilizado num Web site aberto, dirigido à
formação e recursos diferentes, é uma forma comunidade portuguesa de utilizadores da
efectiva de alargar a base de conhecimento Internet5. A aplicação do questionário ocor-
e as redes sociais de indivíduos e organi- reu entre Novembro de 2002 e Janeiro de
zações. Mas mais do que serem indepen- 2003. Os resultados apresentados provêem de
dentes, as relações fortes e fracas reforçam- uma primeira análise feita aos dados dos 3129
se mutuamente. Assim, agentes que desen- respondentes.
volvam um conjunto variado de relações Seguidamente procede-se a uma breve
fracas são potencialmente mais atractivos e caracterização dos respondentes e à análise
mais capazes de suscitar a entrada em de alguns indicadores relacionados com a
ambientes ligados por relações fortes. Para- utilização da Internet, mais especificamente
410 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

dos serviços de correio electrónico, chats no uso da Internet, sendo que 81,2% refere
e serviços integrados oferecendo a possibi- usar a Rede há pelo menos 2 anos.
lidade de comunicação por texto, som e
imagem, na manutenção de relações 2.1 Contributos dos serviços de comuni-
estabelecidas no espaço físico e no estabe- cação assentes em Internet para a manu-
lecimento de novas relações. Relativamente tenção das redes de relações dos sujeitos
a este último indicador é analisada a rele-
vância que a inserção dos sujeitos em redes Os dados relativos ao uso dos serviços
estabelecidas no espaço físico pode desem- de comunicação Internet, para a manutenção
penhar. de contactos com indivíduos cujos relacio-
namentos foram estabelecidos no espaço
2. Apresentação dos resultados: caracteri- físico, demonstram que estes serviços vie-
zação dos respondentes ram adicionar uma nova forma de manter
estas ligações. Neste sentido, 89,8% dos
A tabela 1 permite determinar o perfil dos respondentes indicam recorrer a estes servi-
respondentes ao inquérito. Através da sua ços no contacto com amigos, familiares e
análise é possível constatar que predominam colegas. A tabela 2 apresenta os grupos de
respondentes do sexo feminino. 75,4% dos indivíduos com quem os respondentes indi-
inquiridos tem idades compreendidas entre cam contactar através da Internet.
os 18 e os 35 anos, e uma significativa parte Como decorre da leitura da tabela, a
possui ou frequenta o ensino superior. Os categoria de pessoas que mais destaque
respondentes possuem já alguma experiência assume nas comunicações estabelecidas atra-

Tabela 1: Caracterização dos respondentes (%)

Sexo
Feminimo 55,7
Masculino 44,3
Faixa etária
Menores de 18 6,8
18-25 39,5
26-35 35,9
36-45 11,5
46-50 2,8
51-60 2,8
Maiores de 60 0,7
Habilitações literárias
Inferior ao Ensino Secundário 4,9
Ensino Secundário 20,1
Bacharelato/Licenciatura/Pós-graduação 56,2
Mestrado/Doutoramento 18,8
Experiência de uso da Internet
Menos de 1 ano 4,6
1 ano 14,2
2-5 anos 50
Mais de 5 anos 31,2
Participação activa em instituições sociais, culturais, religiosas,
desportivas ou recreativas
Sim 45,2
Não 54,8
Base: Todos os respondentes do questionário
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 411

Tabela 2: Categoria de pessoas, conhecidas no espaço físico, com quem os


respondentes comunicam através dos serviços Internet

Categoria de pessoas conhecidas %


Familiares ou amigos com quem coabita 53,8
Familiares e amigos com quem há um relacionamento
90,2
mais estreito
Colegas de trabalho* 66,2
Familiares ou colegas com quem há um relacionamento
63,8
mais afastado
Base: Respondentes que usam a Internet para comunicar com indivíduos cujo
relacionamento foi iniciado no espaço físico
* exclui contactos mantidos por razões profissionais

vés da Internet é a que integra familiares e mos em conta que é a partilha de um mesmo
amigos com os quais há uma relação pró- espaço-tempo e as vivências em comum que
xima. Saliente-se no entanto, que todas as alimentam as cumplicidades é natural que exista
outras categorias são significativamente as- menos a dizer a alguém que não tem partilhado
sinaladas, pelo que a Internet parece adequar- as mesmas experiências que o sujeito. No
se ao contacto entre todos aqueles que têm entanto, a simplicidade, rapidez e baixo custo
um conhecimento sedimentado no espaço das comunicações realizadas através da Internet,
físico, independente da força da relação que concretamente através do serviço de correio
os une. electrónico, que surge como o canal mais
A tabela 3 pretende estabelecer uma referido no contacto com pessoas com as quais
relação entre o uso da Internet, no contacto há uma relação próxima criada nos espaços
com indivíduos com os quais existe uma físicos, possibilita que esta ferramenta surja
ligação iniciada no espaço físico, e a peri- como um meio adequado para a manutenção
odicidade dos seus encontros presenciais. de relações independentemente da distância.

Tabela 3: Frequência com que os respondentes usam a Internet para comunicar com
pessoas, conhecidas no espaço físico, e periodicidade dos seus contactos presenciais

Frequência de uso da Internet %


Regularidade com que se
Não Usa Usa Usa
encontra presencialmente
Usa Pouco Raramente Muito
com as pessoas
Raramente
13,1 35,7 35,5 15,7
(menos de 5 vezes por ano)
Poucas vezes (menos 1 uma vez por
9 33,6 44,1 13,3
mês mas mais de 5 vezes por ano)
Alguma regularidade (menos de 1
vez por semana mas pelo menos 1 5,4 24 51,3 19,3
vez por mês)
Frequentemente (pelo menos 1 vez
9,6 23,5 33,3 33,5
por semana)
Base: Respondentes que usam a Internet para comunicar com indivíduos cujo relacionamento foi iniciado no
espaço físico

Pela análise da tabela podemos constatar Pode-se, no entanto, verificar que o


que os respondentes se encontram divididos recurso aos serviços Internet ocorre sobre-
entre aqueles que não recorrem de todo à tudo no contacto com pessoas com quem os
Internet, ou recorrem pouco, para contactar inquiridos estão com maior frequência. 70,6%
pessoas com quem estão raramente (48,8%) dos respondentes indicam “usar regularmen-
e aqueles que o fazem numa base “regular” te” ou “usar muito” a Internet para contactar
ou “frequente” (51,2%). De facto se tiver- indivíduos com quem estão entre pelo menos
412 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

1 vez por mês e menos de 1 vez por semana Uma vez analisados alguns aspectos
e 66,8% dizem recorrer a esta Rede para relativos às comunicações que ocorrem entre
comunicar com pessoas com quem se encon- sujeitos com relações estabelecidas e conso-
tram com grande assiduidade (pelo menos 1 lidadas nos espaços de lugar, procede-se à
vez por semana). Estes valores parecem observação de alguns dados relativos ao
indiciar que os serviços de comunicação contributo da Rede para a expansão de li-
Internet se afiguram como meios de contacto gações a outros indivíduos.
complementares aos encontros presenciais
podendo servir mesmo para mediar o rela- 2.2 Contributos dos serviços de comuni-
cionamento entre esses encontros. cação assentes em Internet no alargamen-
A apresentação dos motivos invocados to das redes de relações dos sujeitos
pelos respondentes para contactar amigos,
familiares ou colegas através da Internet De acordo com as ideias expressas na
permitirá obter uma imagem mais detalhada introdução, uma das características mais
sobre as comunicações que ocorrem on-line interessantes de alguns dos novos serviços
(tabela 4). de comunicação Internet é a possibilidade de

Tabela 4: Motivos que desencadeiam o contacto e respectiva frequência de uso da Internet

Frequência de uso da Internet %


Usa
Usa Usa Não
Motivo para o contacto Regular-
Muito Pouco Usa
mente
Combinar actividades em comum 19,9 34,5 33,2 12,4
Contar o que tem andado a fazer,
21,1 35,9 31,1 11,8
desabafar
Envio de imagens, anedotas, textos
41,5 32,2 20,6 5,7
para reflexão
Lembrar ocasiões importantes 24,2 39,1 29,9 6,7
Envio de informação genérica 18, 2 43 32 6,8
Envio de informação direccionada
17,9 42 32,3 7,8
aos interesses do destinatário
Base: Respondentes que usam a Internet para comunicar com indivíduos cujo relacionamento foi iniciado no
espaço físico

Da análise da tabela ressalta que os usos alargar o círculo de interacção dos sujeitos,
lúdicos são de longe aqueles que colocam permitindo pôr em contacto pessoas de di-
a circular, entre pessoas que têm já relações ferentes grupos, potencialmente portadoras de
firmadas no espaço físico, um maior número informações e conhecimentos diferentes.
de mensagens na Internet. A requerer de facto Relativamente ao uso dos serviços de
um maior envolvimento, por parte do indi- comunicação Internet, enquanto veículo de alar-
víduo que estabelecem a interacção, e a tes- gamento das redes de relações dos indivíduos,
temunhar eventualmente o sentido de proxi- o estudo indica que cerca de dois terços dos
midade proporcionado pelos meios electró- inquiridos (74%) já estabeleceu novos contac-
nicos estão as mensagens destinadas a as- tos através da Rede. Os motivos que desen-
sinalar ocasiões importantes (regular ou fre- cadeiam os contactos, mediados pela tecnologia,
quentemente enviadas por 63,3% dos dividem-se em duas categorias distintas:
respondentes a esta questão). O envio de motivos pessoais e motivos profissionais.
informação, quer direccionada aos interesses A tabela 5 sumaria os principais motivos
específicos do interlocutor quer de carácter indicados como estando na origem de rela-
genérico, assume igualmente uma conside- cionamentos desencadeados através da
rável expressão sendo transmitida regular ou Internet.
frequentemente por cerca de 60% dos Uma análise ao perfil dos indivíduos que
respondentes. referem um ou outro tipo de motivos evi-
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 413

Tabela 5: Motivos pessoais e profissionais que originaram os contactos,


através dos serviços Internet, com pessoas com quem nunca tinha
existido qualquer relacionamento social no espaço físico

Motivos Pessoais %
Estabelecimento de novas amizades 48,5
Curiosidade 43,4
Necessidade de efectuar um negócio 30,5
Debate e/ou aprofundamento de conhecimentos em áreas
28,3
com um elevado número de interessados
Debate de assuntos relativos a convicções 25,6
Debate e/ou aprofundamento de conhecimentos em áreas
21,7
com interesse apenas para um grupo restrito
Necessidade de desabafar, encontrar apoio 19,6
Coleccionismo 6,5
Motivos Profissionais
Esclarecer dúvida sobre algum aspecto da actividade
50,4
profissional
Obtenção de informações, sobre a actividade levada a
44
cabo pelo interlocutor
Troca de impressões com indivíduo que trabalham na
33,8
mesma área que o respondente
Aquisição de produto(s) necessário(s) para o
28
desempenho da actividade
Necessidade de recorrer à prestação de algum serviço
20
relacionado com a actividade do respondente
Base: Respondentes que indicaram já ter usado a Internet para estabelecer
contactos com indivíduos com quem nunca tinham tido qualquer relacionamento
social no espaço físico (as percentagens apresentadas referem-se a motivos
pessoais e profissionais considerados separadamente).

dencia, naturalmente, algumas diferenças. Fortemente associado às idades dos


Assim, é possível constatar que os motivos respondentes, que indicaram motivos pessoais
pessoais apresentados são particularmente re- ou profissionais, estão também as suas qua-
feridos por respondentes do sexo feminino, lificações académicas. Assim, entre os
sendo que esta diferença é significativamen- respondentes que assinalaram motivos pesso-
te menos acentuada nos motivos profissio- ais vamos encontrar a predominância da fre-
nais, com excepção da “Obtenção de infor- quência, ou posse, do ensino secundário e de
mações sobre a actividade levada a cabo pelo bacharelato/licenciatura e entre os respondentes
interlocutor” onde as mulheres surgem igual- que assinalaram motivos profissionais a posse
mente em clara maioria. Os motivos pessoais ou frequência de uma formação graduada ou
apresentados são sobretudo enunciados por pós-graduada. Note-se que a formação pós-
respondentes com idades inferiores a 26 anos. graduada surge particularmente representada
Não deixa de ser curioso verificar que tra- na “Obtenção de informações sobre a activi-
tando-se de “desabafar e encontrar apoio”, dade do interlocutor” e na “Troca de impres-
junto de terceiros desconhecidos através da sões com indivíduos que trabalham na mesma
Internet, a faixa etária dos 26 aos 35 anos área que o respondente”, ou seja, possivel-
surge bastante representada (36,5% dos mente associada a contactos desencadeados
respondentes que enunciaram este motivo devido a actividades de investigação.
indicam ter idades situadas nesta faixa etária). A próxima tabela (Tabela 6) relaciona o
Naturalmente no que respeita aos motivos motivo por que foi estabelecido o contacto,
profissionais as faixas etárias mais elevadas através dos serviços de comunicação assen-
estão bastante mais representadas. tes em Internet, e a relevância da inserção
414 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Tabela 6: Relação entre o motivo por que é estabelecida


a interacção e a inserção do interlocutor num meio específico (%)

Motivos Pessoais Motivos Profissionais


Para o
motivo que
Debate Debate Informações Troca
originou a
assuntos assuntos sobre inpressões Aquisição Prestação
interacção Novas Esclarecer
Curiosidade Desabafar com poucos com muitos actividade com de de
o respon- amizades dúvida
interes- interes- do indivíduos produtos serviços
dente
sados sados interlocutor da área
pretendia
comunicar...
com
qualquer
pessoa 54,7 62,3 54,1 — 31,7 14,7 7,9 5,7 23,8 —
disposta a
interagir
com
qualquer
pessoa
21,5 14,6 — 65,1 41,5 29 27,7 34,7 32,7 38,8
inserida num
determinado
meio
com uma
pessoa em
específico,
por essa
— — — — — 46,1 54,5 51,1 38,6 41,8
pessoa estar
inserida num
determinado
meio
pela pessoa
em si,
indepen-
dentemente 21,5 17,7 29,5 — — 10,2 9,9 8,5 — —
do meio em
que se
encontrava
Base: : Respondentes que indicaram já ter usado a Internet para estabelecer contactos com indivíduos com quem nunca tinham tido qualquer
relacionamento social no espaço físico e que, referindo-se ao relacionamento mais estreito assim estabelecido, indicaram ter sido eles a
iniciar a interacção (as percentagens apresentadas referem-se a cada motivo considerado separadamente).
—: valor não apresentado devido ao pequeno número de casos (N<10).

dos interlocutores em determinado meio. A Este aspecto pode ainda ser analisado em
tabela apresenta apenas os cinco motivos maior detalhe através da análise dos lugares
pessoais e profissionais mais referidos e tem onde os diversos interlocutores da interacção
como base o contacto, desencadeado a partir se situam (Tabela 7). Note-se que a tabela
da Internet, considerado pelos respondentes apresentada não leva agora em consideração
como mais significativo, tendo sido esse a especificidade dos vários motivos pessoais
contacto iniciado por eles próprios. e profissionais.
O motivo porque é desencadeada a interacção Pela análise da tabela apresentada é
parece ter alguma relação com a inserção do possível verificar que de uma forma geral
interlocutor num determinado meio. Assim, para é na Região de Lisboa e Grande Porto que
as comunicações que têm na sua origem o se concentra a maior parte dos destinatários
estabelecimento de novas amizades, a mera das interacções (refira-se também que é nestas
curiosidade ou o desabafar o que interessa, na zonas que se concentra uma percentagem
generalidade dos casos, é de facto encontrar significativa da população portuguesa).
alguém disposto a interagir. Nas comunicações A finalidade por que é estabelecida a
originadas por motivos profissionais, a maior interacção vem demonstrar que para comu-
parte dos indivíduos invoca naturalmente ter pre- nicações desencadeadas por motivos pessoais
tendido comunicar com um indivíduo em par- é muito mais heterogénea a localização dos
ticular, por este se encontrar inserido num de- sujeitos, tanto a nível do território nacional
terminado meio. Parece pois verificar-se que em (eventualmente espelhando a densidade de po-
áreas de grande especificidade a inserção em pulação residente em cada região) como a nível
redes, geradoras de confiança e capazes de sa- internacional. Neste domínio, as interacções
tisfazer necessidades específicas do sujeito, será com indivíduos localizados no Brasil obtêm
sem dúvida uma mais-valia. algum destaque, porventura pela partilha da
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 415

Tabela 7: Distribuição geográfica dos destinatários da interacção segundo o motivo


que originou o contacto através dos serviços de comunicação assentes em Internet (%)

Motivos Motivos
Região de Portugal / País Estrangeiro
Pessoais Profissionais
Noroeste (Minho-Lima, Cávado, Ave, Tâmega,
5,3 2,8
Entre Douro e Vouga)
Interior Norte (Alto Trás-os-Montes, Douro) —
Interior Centro (Dão-Lafões, Beira Interior Norte e Sul, Serra
3,9 1,3
da Estrela, Pinhal Interior Norte e Sul, Cova da Beira)
Baixo Vouga, Baixo Mondego 9,4 9,8
Pinhal Litoral, Oeste, Médio Tejo e Lezíria do Tejo 4,5 2,5
Região de Lisboa, Grande Porto e Península de Setúbal 45 40,9
Alentejo 2,2 1,6
Algarve 1,9 —
Ilhas 2,3 —
Países da EU + Suíça e Noruega 5,5 19,2
Países do alargamento — —
EUA+Canadá 2 8
Brasil 6,2 2,1
Outros países de expressão portuguesa —
Outros países 2 1,2
Desconhece a localização do interlocutor 8,8 8,8
Base: respondentes que indicaram ter sido eles a iniciar a interacção (as percentagens apresentadas referem-se a
motivos pessoais e motivos profissionais apresentados separadamente).
—: valor não apresentado devido ao pequeno número de casos (N<10).

mesma língua. Tratando-se de motivos desen- travados no espaço físico e às dinâmicas dos
cadeados por razões profissionais, onde a lugares. Tratando-se do estabelecimento de
localização do interlocutor terá porventura novos contactos, e de situações que envolvam
muito mais relevância, vamos encontrar, no a troca de sentimentos pessoais, a pertença
território nacional, interlocutores inseridos do interlocutor a uma qualquer rede estruturada
sobretudo em Lisboa e Porto. No caso de revela-se totalmente irrelevante.
países terceiros, há uma elevada No entanto, o crescimento exponencial de
representatividade da Europa e da América do mensagens pessoais, da oferta de informação,
Norte, que juntas acolhem 27,2% dos desti- e também de serviços na Internet contribui
natários das interacções. sobremaneira para a crescente complexidade do
ciberespaço colocando ao utilizador dificulda-
3. Conclusões des na selecção do que realmente interessa mas
também daquilo em que pode confiar. Estes
Quando do surgimento e expansão das aspectos são particularmente relevantes quando
comunicações mediadas por computador acre- na interacção estão envolvidas informações (mas
ditava-se que as interacções on-line alheariam também produtos e serviços) com elevados custos
os sujeitos dos relacionamentos que mantinham de transacção. Quando assim acontece, os in-
nos espaços físicos e poderiam igualmente divíduos tendem a procurar agentes inseridos em
conduzir a uma perda da relevância dos redes firmadas e validadas nos espaços físicos,
lugares. Contudo o que sucessivos estudos têm que lhes possam assegurar confiança e credi-
vindo a demonstrar é precisamente o contrá- bilidade. Neste sentido Internet e espaços ge-
rio. Também de acordo com os dados ana- ográficos mais do que espaços alternativos de
lisados, as interacções que ocorrem na Rede comunicação afiguram-se como inevitavelmen-
estão fortemente ligadas aos relacionamentos te complementares.
416 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Agradecimentos Granovetter, Mark, “The Strength of


Weak Ties, American Journal of Sociology”,
O doutoramento em curso tem o apoio 78 (6), 2003, p 1360-1380.
da Fundação para a Ciência e para a Tec- Haythornthwaite, Caroline, A Social
nologia e do Fundo Social Europeu (IIIº Network Theory of Tie Strength and Media
Quadro Comunitário de Apoio). Use: A framework for Evaluating Multi-Level
A aplicação do questionário que serviu Impacts of New Media, 1999.
de base ao artigo contou com a colaboração URL: http://alexia.lis.uiuc.edu/~haythorn/
dos Portais e Instituições seguidamente sna_theory.html (Julho 2002).
mencionados: Clix, campus.sapo.pt, Aveiro
Cidade Digital, Alentejo Digital, Centro
Regional de Segurança Social de Aveiro, _______________________________
1
Escola Superior de Educação de Leiria; Universidade de Aveiro, Portugal.
2
Escola Superior de Enfermagem de Viana do Caroline Haythornthwaite, “A Social
Castelo; Escola Superior de Tecnologia e Network Theory of Tie Strength and Media Use:
A framework for Evaluating Multi-Level Impacts
Gestão de Viana do Castelo; Instituto
of New Media”. 1999. URL: http://
Politécnico de Coimbra; Instituto Politécnico alexia.lis.uiuc.edu/~haythorn/sna_theory.html (Ju-
de Gaya; Instituto Politécnico de Portalegre; lho 2002).
Instituto Politécnico de Setúbal; Instituto 3
Mark Granovetter, “The Strength of Weak
Politécnico de Viseu; Instituto Superior de Ties”, American Journal of Sociology, 78 (6), 1073,
Contabilidade e Administração de Coimbra; p 1360-1380.
4
Instituto Superior de Contabilidade e Admi- Eduardo Anselmo Castro, Cris Jensen-Butler,
nistração do Porto; Instituto Superior de “Network Externalities Telematics and Regional
Economia e Gestão e Universidade de Aveiro. Economic”, Development. Papers of Regional
Science 82, 2003, p 27-50.
5
Pormenores sobre a metodologia de cons-
Bibliografia trução do questionário podem ser encontrados em:
Maria João Antunes, Eduardo Anselmo Castro,
Castro, Eduardo Anselmo, Jensen- Óscar Emanuel Mealha, “A Methodology for the
Butler, Cris, “Network Externalities Administration of a Web-Based Questionnaire”,
Telematics and Regional Economic Human-Centred Computing: Cognitive, Social and
Development”, Papers of Regional Science Ergonomics Aspects, Lawrence Erlbaum
82, 2003, p 27-50. Associates, Publishers, 2003, p 639-643.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 417

Los web sites instituciones. Dos casos concretos:


Guardia Civil y Cuerpo Nacional de Policía
María de las Mercedes Cancelo San Martín1

1. Públicos que visitan el site de la Guardia utiliza para transmitirlo, Internet. Asimismo
Civil en algunos tramos de las páginas hay una
total ausencia de fotografías o espacios libres
En el site y tal como está diseñado se que relajen la lectura.
ven cuatro públicos claramente diferenciados: Se observa un especial cuidado en la
- Los medios de comunicación que son navegación, no existe la sensación de sentirse
atendidos mediante el gabinete de prensa perdido en el web. También se pone a
virtual. Para los cuales se han creado disposición del navegante motores de
múltiples herramientas con objeto de búsqueda en las secciones que son necesarias
satisfacer sus necesidades informativas. para encontrar más rápidamente y con el
- Personal del Cuerpo o futuros miembros menor esfuerzo la información. El valor
de la institución. Que buscan en el site obtener añadido en el site es una constante. En casi
información vinculada a la organización a la todas las páginas se ofrece la posibilidad de
que pertenecen o bien recabar datos sobre utilizar un servicio que proporciona el
convocatorias, pruebas de acceso e Cuerpo, como el servicio de intervención de
información de interés para los aspirantes a armas virtual, el de delitos telemáticos,
formar parte de la Guardia Civil. violencia doméstica, etc.. Con estos servicios
- Ciudadanos de a pie que buscan un se busca agilizar la burocracia propia de las
servicio concreto de la organización o instituciones, dar una respuesta rápida al
asesoramiento ante situaciones delictivas. ciudadano aunque solo sea para satisfacer una
- Público infantil que seguramente navega consulta. Se está estudiando la posibilidad
con la compañía de sus padres. de instalar un servicio de denuncias virtual
En cada sección se usa un lenguaje acorde mediante firma electrónica.
con el público y también una estructura
distinta, como en el caso de la web infantil, 2. Usabilidad en el site de la Guardia Civil
en la que se prescinde del fondo institución
y se toma partido por un fondo verde que La usabilidad se define2 como el grado
no deja de ser un elemento claramente de efectividad, eficiencia y satisfacción con
corporativo. A la vez que usa un lenguaje la que los usuarios alcanzan los objetivos
próximo a los niños. Existe una perfecta unión formales contemplados en un sitio web
entre los contenidos, el lenguaje utilizado y concreto. Según Ramos (2001:199-201) el
el público objetivo de cada sección del site. principio de usabilidad quedaría claramente
Podemos decir que predomina un lenguaje definido y contenido en los siguientes
neutro sin intención de convencer, recordemos aspectos:
que no es una web comercial. Sólo se hace - Visibilidad de la web: para el
uso de un lenguaje persuasivo o peticionario posicionamiento mental del site en la mente
cuando se recomienda adoptar un del consumidor. Lo que implica una clara
comportamiento vinculado a nuestra propia imagen del site y de sus herramientas para
seguridad. que el conjunto sea reconocible por el
Persiste un error en cuanto a los navegante. En la página web de la Guardia
contenidos, en el abuso del texto en aquellas Civil tanto la home con el resto de páginas
secciones poco “serviciales” es decir, aquellas tiene una estructura bien delimitada e
que solo van a ser visitadas por personal inconfundible.
cualificado y que denotan una gran dejadez - Reconocimiento: los elementos de la
de adaptación del lenguaje al medio que se pantalla deben tener significado por sí
418 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

mismos. En la web del Cuerpo todos los links - Estructuración de contenidos: que sigan
están etiquetados con la acción que producen. un orden lógico.
- Feed-back: si se lleva acabo una acción - Variedad y actualización del site.
que tenga una respuesta inmediata. Ante el - Facilidad y rapidez en las búsquedas:
simple click en cualquier elemento del site que las herramientas de uso simplifiquen la
se recibe una respuesta que como mínimo se navegación.
traduce en un cambio visual y de contenido. - Comprensión de la información: claridad
- Accesibilidad: que sea fácil y rápida la en los contenidos, en como se facilita la
navegación. La existencia de pocos caminos, información y en el uso del lenguaje.
la disposición jerárquica de la información - Utilización de sistemas de ayuda al
y ofrecer claves al usuario que le permitan usuario: mapas web, motores de búsqueda
reconocer los puntos de interés. Todo ello y FAQ’s (Preguntas frecuentes).
está contemplado en la web de la institución, Al aplicar el término de usabilidad al web
los caminos de navegación están claramente site de la Guardia Civil llegamos a varias
prefijados y es imposible perderse en la conclusiones:
página, los contenidos siguen una estructura 1. El público objetivo formado por medios
rígida como ya comentamos al principio y de comunicación posee todas las herramientas
los puntos de interés están indicados. para buscar y confeccionar noticias, tanto
Orientación en la navegación: que nunca se pasadas como de última hora. Se pone a su
sienta perdido el usuario, orientarlo mediante alcance una base de datos con noticias y
hipervínculos, una clara visualización de la reportajes donde la institución es protagonista.
web y que sepa donde se encuentra. Siempre Los contenidos se actualizan diariamente a
existe un hipervínculo que nos devuelve a través de la ORIS3 y las OPC’s4. Asimismo
la home al igual que indicaciones en cada tiene la opción de solicitar información o
sección situándonos no solo dentro de la exponer cualquier tipo de necesidades a través
misma sino del propio site y en relación con del contacto directo con la OPC de su
los contenidos generales de la página. localidad o mediante correo electrónico con
- Evitar errores, satisfacción y legibilidad: la oficina de prensa.
la satisfacción de uso se obtiene mediante 2. Los ciudadanos son informados de sus
un servicio en la página, objetivo que cumple derechos ante la institución, de las
perfectamente el site. La navegación no posibilidades legales que tienen de defenderse
provoca errores debido a que los posibles de la delincuencia, sea promovida a través
tramos de uso del site ya están fijados de de actos comunes como timos o utilizando
antemano. Legibilidad se obtiene mediante la más alta tecnología, delitos informáticos.
el uso de un vocabulario que se adecue al Pueden acceder a un amplio directorio de
público que consume las secciones y en este enlaces de interés, comunicarse mediante el
último caso ya comprobamos que hay una site con aquel servicio de la Guardia Civil
clara relación entre el lenguaje y el target que pueda resolver sus dudas, etc..
de las secciones. 3. Los miembros del Cuerpo son
- Diseño visual: página simple, que los atendidos a través de la Intranet pero también
elementos más destacados sean los más tienen su apartado en aquellas secciones como
visuales, utilizar colores y blancos que relajen el Consejo Asesor de Personal, formación etc..
la lectura al igual que el tamaño de letra e 4. Los niños encuentran en este site una
intercalar gráficos y material fotográfico. En forma divertida de aprender consejos de
este apartado es donde el site necesita más seguridad que al mismo tiempo también
cambios ya que en algunas páginas se adolece satisface las necesidades de los padres.
de falta de relajación en el ritmo de lectura, 5. Cualquier navegante que entre el site
profusión de texto y falta de iconicidad. encontrará que hay una constante
Los usuarios de Internet según la interactividad. Contemplando interactividad
consultora Júpiter Research y en contraste como el cambio o respuesta ante una acción
con estudios de teóricos como De Salas y del usuario.
Nielsen, valoran en un site(dejando de lado No podemos olvidar que este web site
aspectos técnicos) los siguientes puntos: nace con una doble vertiente: ser una web
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 419

de ayuda al ciudadano y un instrumento de navegante. En la página del Cuerpo Nacional


Identidad Corporativa, aunque bien es verdad de Policía no hay una clara identificación del
que a través de la ayuda a la sociedad la mapa de la web, de hecho nos perdemos
institución se labra una Imagen Corporativa durante la navegación y no hay enlaces para
más fiel a la real. Se mantiene una volver a la home. Sí que existe una
comunicación que cumple los objetivos de identificación de las herramientas de
promover una Imagen, Cultura e Identidad navegación como enlaces y botones, pero de
corporativa. En todo momento estéticamente poco ayudan si al navegar nos perdemos por
se hace presente la identidad visual del el site.
Cuerpo, su labores denotan su papel en la - Reconocimiento: los elementos de la
sociedad y también las constantes alusiones pantalla deben tener significado por sí
a los servicios, las agrupaciones, las noticias, mismos. En la web todos los links nos indican
la presencia de la revista corporativa en el su acción concreta.
propio site, etc.. - Feed-back: si se lleva acabo una acción
que tenga una respuesta inmediata. Ante el
3. Públicos que visitan el site del Cuerpo simple click en cualquier elemento del site
Nacional de Policía se recibe una respuesta que como mínimo
se traduce en un cambio visual y de
Existen tres perfiles de visitantes del site contenido. No hay un feed-back continuo, en
perteneciente al Cuerpo Nacional de Policía: multitud de ocasiones se rompe la
- Personal vinculado a la institución o comunicación por fallos en los links o por
próximo a estarlo. Estos visitantes buscan falta de enlaces para volver a la página
información clara y precisa sobre servicios, principal.
convocatorias a exámenes, etc. El mejor - Accesibilidad: que sea fácil y rápida la
navegación. La existencia de pocos caminos,
instrumento de cara a este público es la revista
la disposición jerárquica de la información
digital.
y ofrecer claves al usuario que le permitan
- Periodistas que entran en el site para
reconocer los puntos de interés. Hay una
ampliar algún tipo de información. Por las
disposición parcialmente jerárquica de los
noticias y su elaboración estimamos que
contenidos pero en ningún momento se
pocos, ya que no se amplían las informaciones
ofrecen claves al usuario para reconocer lo
emitidas en los propios medios.
más llamativo del site.
- Ciudadanos que entran en el site para
- Evitar errores, satisfacción y legibilidad.
obtener alguna información sobre temas
La satisfacción de uso se obtiene mediante
policiales. Los únicos servicios realmente un servicio en la página, que se consigue
prácticos son el de denuncias virtuales, el parcialmente a través de la posibilidad de
directorio de Comisarías y la información denunciar via Internet, bajarse algún
ciudadana y familiar. formulario para extranjeros o encontrar videos
sobre la formación del Cuerpo Nacional de
4. Usabilidad en el site del Cuerpo Nacional Policía. La satisfacción no se produce debido
de Policía a la constante sensación de perdida que existe
durante la navegación. La legibilidad si se
Aplicaremos el término usabilidad da al estar todos los links previamente
haciendo otra vez referencia a las señalados.
características enumeradas por Ramos(2001). - Diseño visual. Página simple, que los
El principio de usabilidad quedaría claramente elementos más destacados sean los más
definido y contenido en los siguientes visuales, utiliza colores un poco agresivos y
aspectos: que no facilitan una lectura relajada. En pocas
- Visibilidad de la web: para el ocasiones se colocan “blancos” para relajar
posicionamiento mental del site en la mente la lectura del site. Si existen fotografías y
del consumidor. Para ello es necesario una también material videográfico que ayudan a
clara imagen del site y de sus herramientas dar mas dinamismo a la información en el
para que el conjunto sea reconocible por el site.
420 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Recordemos, como ya dijimos antes, que demasiado influenciado por los medios
los usuarios de Internet según la consultora impresos. Es notorio el hecho de que los
Júpiter Research y en contraste con estudios contenidos, la estructuración y la
de teóricos como De Salas y Nielsen, valoran actualización no se realiza bajo la supervisión
en un site (dejando de lado aspectos técnicos) de la ORIS perteneciente a la Dirección
los siguientes puntos: General de la Policía. Un instrumento que
- Estructuración de contenidos: que sigan podría ser tan potente en el plan estratégico
un orden lógico. de comunicación como es Internet, está
- Variedad y actualización del site. totalmente desaprovechado en este caso.
- Facilidad y rapidez en las búsquedas:
que las herramientas de uso simplifiquen la 5. Propuesta de análisis de sites
navegación. institucionales
- Comprensión de la información: claridad
en los contenidos, en como se facilita la Por último proponemos un conjunto de
información y en el uso del lenguaje. ítems que pueden ayudar al análisis de una
- Utilización de sistemas de ayuda al web institucional5 de estas características. Los
usuario: mapas web, motores de búsqueda campos básicos sobre el análisis del site son
y FAQ’s (Preguntas frecuentes). un compendio de características propuestas
En este site no existen motores de que debe contener un site según Nielsen
búsqueda ni FAQ’s. La estructuración de (2000) y De Salas (2001). Los ítems
contenidos sigue un orden lógico y los propuestos específicamente para esta web son
instrumentos de navegación están a la vista. una propuesta particular basada en el análisis
Respecto al nivel expositivo de los de los dos sites institucionales estudiados en
contenidos, el lenguaje se adecua pero está esta investigación.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 421

Cuadro 1: Análisis de sites Guardia Civil y CNP

URL http://www.guardiacivil.org/, se relaciona la URL pertenece al Ministerio del Interior


directamente con el tema de la página y y a q u e l a p á g i n a v a h o s p e d a d a e n e l
con la identidad de la institución. dominio de esta institución,
http://www.mir.es/policia/
Presencia en los Google, Yahoo y Altavista. Google, Yahoo y Altavista.
buscadores
Tiempo de descarga C o n u n m ó d e m n o r m a l e s m e n o r d e 8 Módem normal entre 16 y 60 segundos en
segundos en cualquier franja horaria. cualquier franja horaria.
Resolución de pixelado Superior al de las pantallas de uso normal 800 x 600.
que suelen ser de 640 x 480. En este caso
es de 800 x 600.
Intro Sin intro Sin intro

Navegador Se obtiene una imagen de idéntica calidad Se obtiene una imagen de idéntica calidad
utilizando Explorer y Nestscape. utilizando Explorer y Nestscape.
Apertura de ventanas al Desde marzo de este año se abre la web El site del Ministerio del Interior se abre al
descargarse la web del Ministerio del Interior. mismo tiempo que la página web de la
Policía.
Espacio útil 90 % de la página. 90 % de la página.

Disposición de texto en Sigue una estructura lineal, sin columnas Sigue una estructura lineal, sin columnas
pantalla ni formas distintas a la escritura en ni formas distintas a la escritura en
cualquier medio impreso, a diferencia de la cualquier medio impreso.
web infantil donde sí se utiliza la
disposición del texto en columnas.
Tamaño de texto Tamaño 10. Tamaño 10.

Estilo o letra Times New Roman. Times New Roman.

Color Negro Negro

Disposición de párrafos En su mayoría largos, es una web En su mayoría largos, es una web
institucional y se dedica a dar la mayor institucional y se dedica a dar la mayor
información aprovechando al máximo el información aprovechando al máximo el
espacio. espacio.
Elementos que impidan la Lectura de los contenidos mediante una Lectura de los contenidos mediante una
lectura o la navegación barra de desplazamiento que interrumpe el barra de desplazamiento que interrumpe el
libre ritmo de lectura del texto. ritmo de lectura del texto. Falta de links
para volver a la página principal durante
toda la navegación por el site. Solo hay un
link en el menú desplegable que no
funciona y en la página de la revista digital.
Existencia de imágenes Utilización de fotografías como apoyo de Utilización de fotografías como apoyo de
texto y elemento de relajación en la lectura. texto y elemento de relajación en la lectura.
No hay vídeos. Disponibilidad de vídeos.
Impresión directa del texto Solo en algunas secciones. No se da esa posibilidad ni se permite
copiar el texto de la página.
Utilización de espacios “en Sí, para relajar la lectura y la sensación de Escasos.
blanco” o vacíos hipertextualidad de la página.
Fondo y colores Fondo gris con el emblema del Estado Fondo gris con el emblema del Estado
corporativos español, colores corporativos en todas la español, colores corporativos en todas la
páginas que identifican el site como páginas que identifican el site como
perteneciente a la administración pública. perteneciente a la administración pública.
Posibilidad de descargas Solos textos PDF y Word. Videos y formatos PDF.

Audio No disponible. No disponible.

Buscadores en el site o Si y de gran utilidad. Ninguno.


FAQ’s

.../...
(continua)
422 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

.../...
(continuación)

Contactos directos con el Mediante mail en secciones en las que se M e d i a n t e m a i l y e n e l a p a r t a d o d e


usuario p i d e l a p a r t i c i p a c i ó n c i u d a d a n a : denuncias virtuales.
“Desaparecidos”, “Buscados”,“Patrimoni o
Histórico”, etc. Apartados en los que los
visitantes pueden formular consultas sobre
el site, aspectos legales, etc. Éstas pueden
se envían websmaster y éste las remite a
la agrupación de la Guardia Civil que tenga
jurisdicción sobre esos temas o remitidas
a los distintos mails que aparecen en el site
vinculados a un servicio o departamento
del Cuerpo. También hay un buzón de
quejas y sugerencias. En la sección de
Gabinete de Prensa se pueden solicitar
distintas informaciones acerca de noticias
en las que aparezca la institución. Se
puede contactar conel gabinete de prensa
mediante mail directo. Por último la
weinfantil en la que los niños pueden
enviar.
Diversificación de los Sí, por secciones. Mediante el lenguaje y Sí, por secciones. Mediante el lenguaje y
públicos los contenidos se estratifica a cuatro tipos los contenidos se estratifica a tres tipos de
de públicos. públicos
Interactividad de la página Muy alta, hay una conexión directa entre Escasa, solo mediante mail y la oficina de
los usuarios y el personal que hace la web. denuncias virtuales.
Se atienden todos los mails recibidos, se
promueve la participación del visitante en
aquellas secciones creadas para la
colaboración, en el caso del site infantil
mediante el envío de dibujos.
Valor añadido del site La oferta de servicios agiliza cuestiones Exclusivamente la Oficina de Denuncias
a d m i n i s t r a t i v a s o l a r e a l i z a c i ó n d e Virtual.
consultas.
Presencia de enlaces con Hay un apartado con enlaces de interés. Hay un apartado con enlaces de interés.
otras páginas En varias páginas del site hay vínculos con En la home en la sección Actualidad
webs ministeriales como Interior, Ciencia y Policial hay un enlace con el Ministerio de
Tecnología, etc. Ciencia y Tecnología. Asimismo en varias
secciones hay encales como en la de
seguridad ciudadana, atención familiar y
lucha antiterrorista.

Bibliografia _______________________________
1
Universidad de Málaga.
2
De Salas, Mª I. (2001): “La incidencia Según la ISO CDS 9241.
3
Oficina de Relaciones Informativas y
del medio interactivo en la estrategia
Sociales de la Guardia Civil, es la responsable
publicitaria”, Reiniciar el sistema: Actas de de la comunicación de la organización.
las III Jornadas de Publicidad Interactiva, 4
Oficinas Periféricas de Comunicación, son
Universidad de Málaga, pp. 27-36. los enlaces o sucursales con los que cuenta la
Nielsen, J. (2000): Usabilidad. Diseño de ORIS para ejercer su labor de enlace con los
sitios webs. Madrid: Prentice Hall. medios locales y la población.
5
Ramos Serrano, M. (2001): “El correo El mayor inconveniente para plantear un
electrónico y el diseño gráfico”, Reiniciar el modelo tipo es la falta de investigación en análisis
sistema: Actas de las III Jornadas de de sites institucionales ya que solamente se han
investigado páginas comerciales.
Publicidad Interactiva, Universidad de
Málaga, pp. 199-201.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 423

Enquadramento e impacto dos sistemas


de informação no Programa Aveiro Norte
Miguel Oliveira1, Pedro Beça1, Nuno Carvalho2,
Sara Petiz1 e A. Manuel de Oliveira Duarte3

Introdução do origem a um portal informativo que


promova todas as entidades envolvidas cri-
O propósito deste artigo é o de demons- ando um fluxo de informação comum, em
trar o relevo que os sistemas de informação especial o sistema de informação do Progra-
têm em todo o processo de criação e desen- ma Aveiro Norte.
volvimento de uma nova oferta formativa
potenciada pela Universidade de Aveiro no Motivação
norte do distrito. Inicialmente, e com o intuito
de desenvolver ferramentas para a gestão e Com o início das actividades lectivas no
administração do Programa Aveiro-Norte, ano de 2003, tornou-se imperativo a cons-
criou-se o sítio do Programa Aveiro-Norte. trução de um sítio (www.aveiro-norte.ua.pt)
A sua forte adesão por parte dos vários actores que disponibilizasse conteúdos informativos
envolvidos na utilização do mesmo sistema, sobre todas as actividades a decorrer no
deu origem a novos inputs com vista ao âmbito do Programa Aveiro Norte (PAN).
aperfeiçoamento do mesmo, bem como novos Partindo deste principio, e tendo sido desen-
sistemas que promovem uma maior interacção volvida uma base tecnológica sólida, foi
com o tecido empresarial da região. disponibilizada a ‘secretaria virtual’ com
O Programa Aveiro-Norte surge como diversas ferramentas e funcionalidades como,
uma acção de Intervenção da Universidade por exemplo, gestão de faltas, horários,
de Aveiro no Norte do Distrito, com o inserção de sumários, gestão de formadores
objectivo de promover o reforço do ensino e alunos, que são disponibilizadas aos for-
superior orientado para a formação inicial madores, formandos e administrativos.
politécnica, formação especializada e requa- A forte adesão do uso do sítio da Se-
lificação profissional. Consiste numa Rede cretaria Virtual do Programa Aveiro Norte por
de Unidades de Formação Especializada a parte de todos os actores intervenientes, tem
partir da qual se pretende implementar um impulsionado o desenvolvimento de novas
conjunto de cursos, cujas propostas de for- ferramentas e integração com outros siste-
mação pretendem responder não só às ne- mas de informação necessários à formação
cessidades locais de formação inicial, mas do aluno e que promovem a sua integração
também de actualização dos quadros das no mercado de trabalho. Noutra perspectiva,
empresas e serviços existentes na região norte os sistemas de informação disponíveis con-
do distrito de Aveiro. tribuem para que, o tecido empresarial e in-
Pretende-se que a oferta formativa do dustrial da região, os utilize de forma a
Programa Aveiro Norte articule e potenciar um melhor envolvimento com os
compatibilize tanto os graus do sistema de alunos, formadores e directores de curso,
ensino superior que lhe estão a jusante (li- assim como a Comissão Instaladora do
cenciaturas e pós-graduações) como as vias Programa Aveiro Norte.
de acesso a montante, com origem no ensino
secundário e pós-secundário não superior Secretaria Virtual
(cursos profissionalizantes, cursos de espe-
cialização, etc.). Como já referido anteriormente, a Escola
Pretendemos apresentar, de uma forma Aveiro Norte é dotada de uma ferramenta
sucinta e clara, os vários sistemas em pro- denominada Secretaria Virtual, que se encon-
dução e desenvolvimento e como é que tra em permanente desenvolvimento para dar
interagem no ‘Universo Aveiro-Norte’, dan- resposta às necessidades dos formadores,
424 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

alunos e pessoal administrativo, potenciando Tendo em conta que o serviço é uma


assim o uso das tecnologias de informação secretaria virtual, cada pessoa terá de dirigir-
por parte de todos os elementos que cons- se à área que mais lhe convém. Para tal,
tituem o Programa Aveiro Norte. existem diferentes acessos:
No âmbito deste programa foi desenvol- • Gestão e Administração
vido um conjunto de ferramentas em ambi- • Formador
ente Web para proporcionar o máximo de • Formadores
informação e interactividade a todos os • Inscrição na bolsa de formador
interessados neste programa. Assim, para • Pré-inscrição (candidatura a formando)
além de todo um leque de informações
relativas aos vários cursos, os interessados Segurança
podem ainda recorrer a uma secretaria vir-
tual, onde têm desde logo a possibilidade de Tendo em conta um dos factores mais
realizar algumas acções que até então só importantes para este serviço, a cada
seriam possíveis junto da instituição em utilizador do sistema está garantido um nível
causa. de segurança que permita confiar no serviço
A existência deste serviço on-line tem a que a aplicação se propõe.
inúmeras vantagens para os seus utilizadores, No caso concreto de uma secretaria
na medida em que permite uma maior fle- virtual, acontece existirem várias pessoas a
xibilidade temporal e espacial, uma vez que utilizá-la em simultâneo e isso não pode gerar
está disponível 24 horas por dia e em qual- qualquer conflito ou perda de informação,
quer ponto de acesso à Web. pois poderia ter efeitos muito graves. Para
Pretendeu-se, desde o início, informatizar além disso, cada utilizador tem que ter o
e optimizar processos relacionados com as mínimo de privacidade e segurança nos dados
actividades do Programa Aveiro Norte, atra- que disponibiliza.
vés do desenvolvimento de ferramentas de Neste caso, estes factores foram consi-
BackOffice para a Secretaria Virtual. Estas derados e por isso cada utilizador para aceder
ferramentas surgem na sequência da ao serviço pretendido tem que em primeiro
informatização do processo de registo de lugar preencher correctamente os campos
aulas, um requisito do POEFDS4, para os referentes ao login e password.
cursos oferecidos pelo Programa Aveiro
Norte. Assim, começámos por dimensionar. Funcionalidades do Módulo de Gestão e
Essas actividades estão segmentadas em Administração
3 eixos principais: Gestão e Administração,
Formador e Aluno, sendo de esperar que a Este módulo permite aceder a toda a
cada um destes elementos sejam possibili- informação relativa aos administradores,
tadas funcionalidades adequadas à sua fun- formadores, formandos, cursos e outros dados
ção. de importância para o Programa Aveiro Norte.
Quem acede a este módulo tem ao seu dispor
Acessibilidade e apresentação uma grande lista de funcionalidades como se
pode constatar pela Figura 2.
O desenvolvimento de aplicações para Muitas das funcionalidades são bastante
Web, pressupõe que o uso desta tecnologia intuitivas, pelo que não será feita uma
seja do conhecimento geral dos utilizadores descrição exaustiva das mesmas, o que não
a quem esta se destina. Assim, é expectável quer dizer que tenham menos importância.
que as pessoas sejam minimamente capazes A funcionalidade “Colocar documento no
de interagir com o computador e seus pe- site” consiste em possibilitar a anexação de
riféricos. Para aceder a esta aplicação basta documentos a serem exibidos on-line. Na
ter acesso à Internet e dirigir-se ao site http:/ Figura 3 é apresentada a informação que é
/www.aveiro-norte.ua.pt e aí clicar sobre a necessária para este efeito. É de realçar a
opção “Secretaria virtual” que se encontra possibilidade de o mesmo documento estar
no menu (Figura 1). anexado a áreas podendo, por isso, pertencer
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 425

Figura 1 – Acesso ao site do Programa Aveiro Norte e à Secretaria Virtual

Figura 2 – Lista de Menus do Módulo de Gestão e Administração


426 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Figura 3 – Inserção de um novo documento online

aos documentos da comissão de acompanha- exibido na figura que se segue e posterior-


mento, comissão instaladora, acesso geral e mente clicar em no botão “Enviar” para fazer
parceiros do programa em simultâneo, se isso a validação da informação, ou então no botão
se justificar. “Apagar” para não realizar o registo.
As funcionalidades referentes à visuali- O menu Bolsa de formadores tal como
zação de pré-inscrições e pedidos de infor- o próprio nome indica permite ver a lista de
mação servem exclusivamente para ver a formadores que se inscrevem na bolsa de
informação respeitante a cada item e se for formadores.
caso disso tem o contacto de quem fez o No menu referente aos alunos é possível
pedido para, se se justificar, proceder à res- ver uma lista de alunos geral, adicionar novos
posta. alunos através do preenchimento de um
No menu referente aos formadores existe formulário próprio, visualizar para cada aluno
a possibilidade de fazer listagens de forma- o registo de faltas e respectivo subsídio e
dores usando vários critérios, sendo um deles finalmente realizar um histórico do aluno em
o facto de os formadores terem ou não termos de faltas.
curriculum vitae. Um ponto importante é a possibilidade
A gestão de vencimentos tarefas é uma de criar novos cursos a partir do preenchi-
das funcionalidades com maior relevância na mento do formulário respectivo.
parte da gestão e administração. O cálculo Além destas funcionalidades, ainda exis-
é feito a partir das horas leccionadas por cada tem algumas com extrema importância. Entre
formador. Cada formador, ao preencher o elas, gostaríamos de referir o gestor de
sumário, indica o número de horas horários, ainda em fase de testes, que cria
leccionadas nessa aula e a data (Figura 4). uma grelha de aulas e actividades para os
Outra possibilidade consiste em adicionar alunos e formadores (Figura 5).
novos formadores à lista de formadores. E para Por consequência do desenvolvimento do
isso é necessário preencher o formulário gestor de horários foram desenvolvidas algu-
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 427

Figura 4 – Visualização de vencimentos

Figura 5 – Visualização de sumários


428 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

mas ferramentas de backoffice como o gestor pode alterar o seu conteúdo sempre que se
de salas que, por sua vez, dará origem ao justifique.
gestor de recursos em sala.
Por fim existe ainda um conjunto de Funcionalidades do módulo formando
menus correspondentes à publicação de
documentos consoante a área a que se des- Neste módulo são disponibilizados os
tinam, nesses menus é possível ver quais os materiais referentes aos cursos, nomeadamen-
documentos actualmente on-line. te os sumários das disciplinas leccionadas e
os documentos informativos.
Funcionalidades do módulo de formador Para aceder a esse material o formando
tem que escolher o curso que lhe interessa
Para aceder ao módulo do formador é e posteriormente seleccionar a disciplina que
necessária a autenticação por login e pretende. O acesso a esta informação é livre.
password. Após estar autenticado, o forma- Após a selecção do curso surge uma
dor fica com acesso à lista de disciplinas que listagem de disciplinas leccionadas, respec-
lecciona, como se pode ver pela Figura 6. tivos formadores e carga horária da mesma.
No menu que tem ao seu dispor nesta Depois de escolher a disciplina o formando
página, o formador pode ainda modificar ou tem a possibilidade de efectivamente aceder
visualizar os seus dados pessoais e/ou aos sumários ou ver a listagem de alunos
modificar, visualizar ou apagar o curriculum inscritos. Se o item seleccionado for “Alunos
vitae. Inscritos” o que aparece é uma listagem de
Após a selecção de uma disciplina este alunos onde é apresentado para cada aluno
menu aumenta e permite também realizar o seu email, situação curricular e número de
operações relacionadas com a disciplina que faltas.
escolheu. O formador pode listar, adicionar,
modificar ou apagar sumários e ainda ver uma Funcionalidades do módulo inscrição na
listagem dos alunos inscritos nessa disciplina. bolsa de formador
Após a selecção de uma disciplina apa-
rece na parte do cabeçalho da página o nome Este módulo possibilita a todos os inte-
da disciplina escolhida, permitindo assim ao ressados em dar formação neste programa
formador saber em que disciplina está a registarem-se como candidatos a formadores.
aceder. Para isso têm que escolher a opção “Novo
Na área de sumários o formador tem ao utilizador” e preencher os campos respecti-
seu dispor um espaço de aula que lhe per- vos à sua pessoa como mostra a figura
mite sumariar as aulas e registar as presenças seguinte.
dos seus alunos. Para fazer esta operação o Após o registo o formador recebe uma
formador tem que preencher o conjunto de mensagem convidando-o a formalizar a sua
dados que mostra a Figura 7. candidatura preenchendo o seu curriculum
As restantes operações relacionadas com vitae. Para proceder a este passo o formador
os sumários processam-se de uma forma tem que entrar na sua área de trabalho e aí
muito semelhante. O formador pode ainda escolher a função “Inserir”.
visualizar uma listagem dos seus alunos
seleccionando a função ”Alunos Inscritos” do Funcionalidades do módulo Pré-inscrição
menu. Neste caso, o formador tem acesso a (Candidatura a formando)
todo o histórico de faltas do aluno após a
selecção do mês referente ao campo frequên- Este módulo é destinado a todos os
cia (Figura 8). formandos que pretendam inscrever-se num
Tal como já foi referido, para além do dos cursos existentes no programa. Desta
espaço de aula o formador tem sempre a forma podem fazer um abordagem inicial à
possibilidade de alterar ou consultar os seus instituição sem que para isso tenham de se
dados pessoais. deslocar pessoalmente até ao local.
Para além dos dados pessoais o formador A pré-inscrição consiste no preenchimen-
pode ainda aceder ao seu curriculum onde to de um questionário que está divido em
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 429

Figura 6 – Página inicial do módulo de formadores

Figura 7 – Página de registo do sumário e presenças em aula


430 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Figura 8 – visualização da assiduidade dos alunos

Figura 9 – Planificação geral da disciplina


NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 431

vários passos e onde o formando inicialmen- que os agreguem à secretaria virtual, nas suas
te começa por preencher o curso que pre- disciplinas e segmentados por aulas.
tende, depois os dados pessoais e restante
informação considerada relevante para a Conclusões
instituição de ensino.
A secretaria virtual é uma aplicação que
Desenvolvimento de novas funcionalidades se encontra em pleno desenvolvimento desde
para ensino assistido o início de 2002. Constantemente, é alvo de
reestruturações e novos desenvolvimentos tais
Actualmente, a Secretaria Virtual já é um como a aposta no ensino assistido.
sistema de informação embrionário de apoio Existem alguns pontos fracos que devem
ao ensino assistido. Facilita a inserção de ser tomados em consideração em actualiza-
sumários por parte dos formadores e divulga- ções futuras, como por exemplo, a falta de
os aos alunos, controla presenças em aula e visibilidade em relação à posição do utilizador
possui outras funcionalidades descritas ante- na aplicação, ou seja, neste momento não
riormente, permite a gestão de horários, etc.. existe nenhuma indicação sobre a localiza-
Tendo em conta os objectivos propostos ção e o que o utilizador está a fazer em
de novas funcionalidades para apoio ao ensino algumas funcionalidades.
assistido, é facultado aos formadores a Como podemos aferir de uma forma
possibilidade de inserção de uma planifica- bastante clara e objectiva, a relação existente
ção global da disciplina que leccionam. entre as ferramentas de ensino, os actores
Assim, na área da disciplina, o formador tem envolvidos neste novo programa formativo
a possibilidade de inserir, visualizar e alterar e materiais pedagógicos é bem mais proble-
algumas informações relevantes para a dis- mática do que o que poderia parecer numa
ciplina, tais como Objectivos, Fundamenta- primeira análise. A utilidade deste tipo de
ção, Abordagem, Programa, Metodologia, ferramentas é altamente dependente da
Avaliação e Bibliografia (Figura 9). potenciação das suas funcionalidades. Pode-
Em fase de análise e desenvolvimento se dizer que há uma relação de mutualismo
encontra-se aquilo que foi denominado por que ainda falta (e é necessário) gerar entre
‘roteiros de aula’. Tendo em conta a diver- professores e alunos de forma a criar um
sidade dos alunos que aprendem na Escola ambiente realmente integrado de geração,
Aveiro Norte, surge a necessidade de se disseminação e aquisição de conhecimento
reinventar o conceito de aula. Assim, pre- de importância formativa relevante. A solu-
tende-se que os formadores disponibilizem ção não é única nem unidireccional mas
materiais pedagógicos das suas disciplinas e pretende-se unificadora.
432 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia Magalhães, José, “Perplexidades


Ciberlegislativas à beira do III Milénio” in
Vieira, João, Programação Web com O Futuro da Internet: Estado da Arte e
Activer Server Pages, Lisboa, Centro Atlân- perspectivas de Evolução, Centro AtlÂntico,
tico, Janeiro 2000. 1999.
Capitão, Zélia, Lima, Jorge Reis, E-
learning e e-conteúdos, Lisboa, Centro Atlân- _______________________________
1
Escola Superior Aveiro Norte, Universidade
tico 2003 de Aveiro.
Horton, E-learning Tools and Techniques, 2
Departamento de Electrónica e Telecomu-
Wiley, 2003. nicações, Universidade de Aveiro.
3
SkillBeck, Malcom, “Os Sistemas Escola Aveiro Norte, Departamento de
Electrónica e Telecomunicações, Universidade de
Educativos face à Sociedade da Informação”
Aveiro.
in Na Sociedade da Informação – O que 4
Plano Operacional Emprego, Formação e De-
prender na Escola?, ASA, 1999. senvolvimento Social.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 433

Elementos de Emoção no Entretenimento Virtual Interactivo


Nelson Zagalo1, Vasco Branco2, Anthony Barker3

Introdução adamente através de: narrativas emergentes


(Ayllet, 1999), drama interactivo (Mateas,
O papel do entretenimento nos media, 2002), narrativa metalinear (Brooks, 1999),
assume para Vorderer (2001) três funciona- modelos centrados no personagem (Riedl e
lidades fundamentais: a “compensação” ou Young, 2003). Todas estas abordagens têm
seja uma forma de escapismo à nossa rea- contribuído para um maior conhecimento
lidade social; a “gratificação” através da qual sobre o funcionamento de uma possível ficção
se dá lugar ao preenchimento de expectati- interactiva. Da nossa investigação surge como
vas e desejos que todos possuímos e por fim hipótese a emoção como a principal respon-
a “realização pessoal” que se pode traduzir sável pela problemática da integração de
por um enriquecimento e desenvolvimento da interacção na ficção. Hipótese que até à data
pessoa como ser humano. O entretenimento se apresenta como um fenómeno do ponto
pode desta forma ser entendido como uma de vista interactivo pouco estudado.
experiência que fornece ferramentas para lidar Nos media tradicionais, o cinema é hoje
com a vida do quotidiano, uma forma de lidar conhecido como a arte das emoções, sendo
com a própria realidade. mesmo reconhecido por Tan (1996) como
O entretenimento virtual interactivo in- uma verdadeira “máquina de emoções” atra-
tegra-se neste universo dos media de entre- vés da qual “não só vemos o que (os per-
tenimento pertencendo ao nicho dos novos sonagens) vêem, como vemos a forma como
media. Sendo que o podemos aqui distinguir eles a vêem, o que torna possível uma
de duas formas das suas congéneres. A identificação emocional” (p.32). Assim ao
primeira é relativa ao factor “interactividade” assumirmos a realidade deste papel do ci-
que é o que mais o distancia do entreteni- nema concluímos que este é provavelmente
mento dos media tradicionais colocando em o media com maior poder gerador de “clas-
causa os papéis de autor/espectador (Ryan, ses de indutores de emoção” (Damásio, 1999).
1994) ou alterando as regras na recepção de A nossa hipótese inclina-se para o facto
testemunha para agente (Murray, 1997). A de que se o entretenimento virtual como
segunda está ligada à forma como em tempo media permite o mesmo acesso audiovisual
real o entretenimento virtual é gerado por e que para além desse possui ainda a pos-
computador (Laurel, 1991) sendo experimen- sibilidade de interacção com todo o
tado a partir de um personagem/agente vir- ecossistema apreendido então só podemos
tual que reflecte todas as decisões tomadas esperar que a intensidade emocional aumen-
pelo utilizador (Cavazza et al, 2001) possi- te.
bilitando ao utilizador a experiência do A relevância do estudo da emoção é, nesta
ambiente na primeira pessoa em vez de uma pesquisa, definida pela capacidade de gerar
exclusiva simulação mental (Currie, 1995). estímulos capazes de despoletar emoção no
utilizador e não na criação de um sistema
O problema e as hipóteses cognitivo de emoção integrável em agentes
do cenário de entretenimento. Ou seja pro-
A inclusão de interactividade na ficção curamos à semelhança do que acontece com
tem encontrado enormes problemas no cum- o desenvolvimento do Aibo4, estabelecer os
primento das três funcionalidades do entre- elementos de “geração de emoção que pos-
tenimento acima descritas. A pesquisa na área sam suportar as concepções humanas” sobre
ao longo dos últimos anos tem desenvolvido personagens e/ou situações da vida real
várias formas de abordar o problema, nome- semelhantes aos apresentados “e assim enco-
434 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

rajar a ligação entre o humano” (Arkin, et diz que os seres humanos possuem a capa-
al, 2003) e o artefacto interactivo. cidade de prever e explicar o comportamento
dos outros utilizando a sua própria mente,
Estado actual da emoção constituída pela sua estrutura cognitivista,
para simular mentalmente as suas acções
Em o “O Erro de Descartes” Damásio (Gordon e Cruz, 2001). Esta teoria é actu-
(1994) lançou uma das suas mais fortes almente suportada com os últimos trabalhos
teorias sobre a lógica da emoção, sendo esta na área da neurociência nomeadamente a
também aquela que mais nos interessa no descoberta dos Neurónios Espelho (Gallesse
âmbito do nosso estudo à qual deu o conhe- e Goldman, 1998).
cido nome de “Hipótese dos marcadores- Interessa ainda salientar para este estudo
somáticos”. Segundo esta teoria, o processo a distinção que Damásio (1999) faz entre
racional de tomada de decisões é condici- emoção e sentimento. A emoção é definida
onado por respostas emocionais observáveis como uma “representação externa” do nosso
que o sujeito usa como forma de despistar corpo visível e pública ao contrário do sen-
a “boa” decisão da “má” decisão. Hipótese timento que apenas ocorre num plano inter-
que Damásio sustenta com a apresentação de no através da “experiência mental e privada
casos clínicos de sujeitos que perderam partes de uma emoção” (p.62). É nesta lógica que
do cérebro ao longo da sua vida. assenta o facto de o nosso estudo versar as
Em 1999, Damásio definiu a emoção emoções e não os sentimentos. Ao preten-
humana no prisma concreto da neurobiologia dermos estudar e aplicar padrões de compor-
como “conjuntos complicados de respostas tamento sobre os nossos personagens virtu-
químicas e neurais que formam um padrão” ais, interessa-nos para já que estes demons-
(p.72). Estas respostas usam o “corpo como trem a emoção e não que possuam sentimen-
teatro” para além de afectarem “numerosos tos. Talvez no futuro a IA consiga dar esse
circuitos cerebrais” ou seja o padrão é passo extremamente complexo.
constituído por modificações profundas tan-
to ao nível da “paisagem corporal, como da A emoção no cinema
paisagem cerebral” (p.73). Charlton (2000)
resumiu de forma bastante perceptível este Analisemos agora de que forma o cinema
processo: estimula as emoções do espectador. Para Tan
(1996) o espectador selecciona de toda a
“se virmos aproximar um homem com informação recebida apenas aquela que o
ar agressivo, esta imagem irá provo- afecta, que lhe interessa, aquela que de uma
car a activação do sistema nervoso “forma imediata e espontânea o atinge como
simpático o que afectará o ambiente significante”. Ou seja a emoção surge apenas
interno do corpo através da sua acção quando à informação que recebo atribuo
sobre os músculos e níveis hormonais. “importância”, por sua vez significado. O acto
Esta alteração do estado do corpo de seleccionar é desenvolvido pelo especta-
correspondente à emoção que nós dor num processo activo de inferência ela-
chamamos de medo conduz a padrões borando significado a partir do filme de duas
de activação de células nervosas no formas distintas, quer através dos estímulos
cérebro. As emoções são assim repre- da percepção quer através de esquemas
sentações cognitivas de estados do cognitivos constituídos por “expectativas, co-
corpo que fazem parte do mecanismo nhecimentos pré-adquiridos, processos de
homeostático... e influenciam o com- resolução de problemas e outros” (Bordwell,
portamento de todo o organismo”. 1985:31). Este processo cognitivo forma por
sua vez uma simulação no espectador mais
Desta definição falta-nos perceber o modo ou menos bem sucedida.
como damos significado, ou seja a estrutura O processo da selecção de informação
cognitiva que identifica a imagem daquele relevante, ocorre sobre duas áreas distintas
homem como agressivo ou não. Para tal do filme, a primeira no plano diegético a
recorremos à Teoria da Simulação que nos segunda no plano do artefacto. No campo
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 435

diegético grande parte da responsabilidade manutenção da vida e ainda sobre a forma


recai sobre as costas dos actores que dão vida como a emoção é activada na maior parte
aos personagens. O processo de simulação das vezes de forma não consciente. A sua
efectuado pelo espectador implica a identi- forma não consciente é assim um dos motivos
ficação com os personagens, “uma espécie pelos quais é tão difícil reproduzir uma
de empatia” (Oatley,1999) e essa identifica- emoção o que vem realçar e reforçar a
ção acontecerá quanto mais próximo do real capacidade e autenticidade do Método de
o sistema emocional do actor ocorrer. Stanislavski na construção do personagem.
Stanislavski (1938) sobre a emoção no
actor diz que “temos de usar as nossas O filme e o videojogo
próprias emoções, sensações, instintos...
quando estamos dentro de outra personagem” O filme e os videojogos analisados de
(p.52). É desta forma que os actores elabo- uma perspectiva cognitiva apresentam-se
ram o seu papel, interiorizando o persona- como uma experiência que na sua essência
gem para depois se exteriorizarem a si possui enormes laços na elaboração da estru-
próprios dando vida ao personagem. tura narrativa na recepção. Ora vejamos: a
No segundo plano, o do artefacto ou não- experiência acontece em tempo real, apesar
diegético, temos a música, a cinematografia, das variações temporais na ficção apresen-
a sonoplastia, a montagem e o enquadramen- tada, a experiência como espectador/utilizador
to como os mais relevantes. Todos estes decorre em tempo real; utiliza-se a tensão
componentes se direccionam para a constru- e resolução, ou seja após situações de tensão
ção de um artefacto com capacidade para são sempre oferecidas ou a vitória no caso
iludir emocionalmente o espectador de que do jogo ou a resolução intelectual/emocional
as situações estão a decorrer em tempo real no caso do filme; utiliza-se a incerteza, no
à sua frente. A sua função é assegurar que jogo não se dão todas as regras à partida,
a mensagem chega ao receptor. De uma certa no filme os eventos são apresentados de forma
forma são elementos que geram estímulos incompleta fazendo com que as regras e a
reconhecíveis audiovisualmente por nós e que restante informação dos eventos sejam
facilitam o processo de simulação do “mun- fornecidas apenas à medida que o tempo de
do” representado. Ao mesmo tempo que a experiência passa; durante este tempo a
familiaridade facilita a comunicação esta procura de padrões é uma constante comum.
facilita também a imersão no filme o que Estas características podem ser resumi-
gera a noção “compensatória” de escapismo das num argumento de Tan (1996) em que
ou seja uma perda de noção da realidade ele diz que a “experiência de um filme tal
circundante. Nos últimos anos, o cinema de como no jogo é conduzida cognitivamente
entretenimento tem-se especializado na for- pela curiosidade ou interesse, obtendo prazer
ma como consegue activar respostas emoci- à medida que descobre ordem na resolução
onais espontâneas através destes estímulos ao sobre o que vai sendo apresentado”(p.34).
escapismo que Mellmann (2002) define como Assim o conflito ou tensão apresentam-se
“efeitos de realidade”. Diz Mellmann que como elementos fundamentais para a criação
quando de grande intensidade estes afectam de motivação no espectador/jogador, uma vez
o nosso “sistema de reflexos automático”, ou que são estes os potenciadores do processo
seja, os estímulos porque assumidos como de “redução de tensão” (Tan, 1996). Um
“reais” vão “directamente ao cérebro e são processo que funciona como regulador da
disparados imediatamente no sistema motor emoção no espectador ao longo do filme
como comandos neuroquímicos gerando dessa através do desenvolvimento de ”catarses de
forma o choro, posições de defesa, fechar os pequena escala”. Ou seja o filme de entre-
olhos, encolher-se ou proteger a cabeça.” tenimento vai desenvolvendo tensões emo-
Damásio (1999) diz mesmo que “travar a cionais ao mesmo tempo que vai apresen-
expressão de uma emoção é tão difícil como tando resoluções. De uma certa forma esta
evitar um espirro”(p.69). Comportamentos é a perspectiva desenvolvida por Carroll
que de certa forma fundamentam as teorias (1996) para quem o conflito se desenvolve
de Damásio sobre o valor da emoção na a partir de motivações do filme que impli-
436 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

quem questões morais para o espectador. Esta e as zonas inferiores representam de uma
perspectiva é também aceite por Zillmann forma geral zonas de explicação ou descri-
(1996) mas para quem é condição necessária ção da ficção na qual as emoções são
que o espectador testemunhe o conflito sem maioritariamente neutras. Em cada gráfico são
poder intervir. Vorderer (2000) sobre esta apresentados duas curvas, as curvas (A)
condição diz que “se o espectador pudesse representam a resolução final das narrativas
influenciar o conflito, o seu estado de ex- as curvas (B) representam as pequenas re-
perimentação mudaria para verdadeiras emo- soluções ou “catarses em pequena escala” que
ções de medo ou de esperança”. Interpreta- acontecem ao longo da experiência e que
mos a palavra “verdadeiras” como mais fazem manter o sujeito motivado para a
intensas, uma vez que em nossa perspectiva grande e final resolução do objecto em si.
as emoções despoletadas pelos media são Existem vários pontos que distinguem este
verdadeiras. processo aparentemente tão parecido. A curva
Analisadas as narrativas e tendo em conta (B) no videojogo oferece-nos uma curva com
o argumento de Vorderer facilmente se elege picos de tensão, que representam a
o videojogo como uma “máquina” ainda efemeridade das resoluções da tensão dos
mais poderosa de criação de emoções que videojogos criados em parte pela sua dinâ-
o cinema. Desta forma onde é que falha o mica de vitória ou objectivos predefinidos.
poder emocional do videojogo? Porque é que Por sua vez a sua efemeridade no tempo reduz
as emoções no cinema são mais profundas, drasticamente a área em que seria possível
intensas e duradouras? Porque é que os ocorrer o maior e mais intenso número de
videojogos não conseguem, no mínimo, emoções o que analisado em confronto com
despoletar toda a gama de emoções bási- a curva do filme explica as diferenças. No
cas5? que toca à curva (A) no filme, ela exibe um
aumento gradual e ponderado desembocando
numa resolução final com abertura suficiente
para o maior número possível de emoções,
sendo que as pequenas resoluções continuam
a acontecer mesmo depois da resolução final
ter ocorrido em contraponto com o que sucede
no videojogo que ultrapassado o objectivo
final termina por completo a sua capacidade
de acção sobre o utilizador.
Face ao demonstrado por estes gráficos
no ponto seguinte vamos explorar os elemen-
tos de emoção nos videojogos capazes de
produzir uma maior “área de emoção” du-
rante os períodos de resolução tendo em
consideração os elementos de emoção exis-
tentes no filme.

Os elementos

Dos elementos estudados resultou a clas-


Os gráficos 1 e 2 explicam o processo sificação em 3 categorias de elementos dis-
como a emoção ocorre durante a experiência tintas. A primeira denominada de persona-
de ver um filme ou jogar um videojogo, gens compreende os elementos da matriz, da
através da análise do parâmetro da tensão voz e das expressões faciais; a segunda
gerada no espectador ao longo do tempo da corresponde ao ambiente e diz respeito à
experiência. Sendo que os pontos altos das música e à perspectiva; a última categoria
curvas representam momentos de resolução, é o poder de decisão e integra os elementos
por sua vez geradoras de áreas emocionais da semântica e do risco.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 437

1. As personagens cionais diversos nos utilizadores dos


videojogos. Ora vejamos aquilo que um
1.1 Matriz de interacção personagem pode comunicar a um utilizador
exclusivamente através de uma expressão
A importância das personagens como facial de emoção segundo Ekman (1997):
elemento emocional, não depende em grande “antecedentes; pensamentos; estado interno;
parte da motivação que as move ao longo uma metáfora; aquilo que o (personagem)
da narrativa, dessa forma devemos antes provavelmente fará a seguir; aquilo que o
explorar e expandir a relação entre as per- (personagem) quer que o (utilizador) faça;
sonagens e o utilizador. Ou seja, é necessário ou uma palavra de emoção”. Sendo a capa-
criar uma ligação emocional forte entre os cidade comunicativa tão alta, a sua ausência
personagens e o utilizador por forma a que não poderia deixar de se fazer sentir na área
este possa estabelecer laços de empatia, de emoção do gráfico 2. A mera expressão
simpatia e preocupação que por sua vez facial de uma emoção permite inferir mais
possam ser utilizados na regulação da emo- sobre todo um videojogo do que qualquer
ção no utilizador. Para que se criem estes outro tipo de informação visual que se
laços existe a necessidade de proceder a uma pretenda adoptar. A expressão facial é assim
alteração na matriz de interacção social parte integrante de toda uma linguagem
(Goffman, 1959) presente actualmente nos silenciosa (Hall, 1959) muito mais vasta, que
jogos. A matriz nos jogos actuais define-se por motivos óbvios não vamos poder abor-
pela existência de um protagonista e vários dar aqui mas que nos servirá de rumo a seguir
inimigos, matriz que impossibilita qualquer no futuro desta investigação.
interacção de carácter social necessária à
construção dos personagens. Para que o 1.3. A voz
utilizador possa assumir o papel emocional
do protagonista necessita de saber qual “é” A voz é parte integrante dos seres hu-
a sua personalidade e essa informação apesar manos e através dela podemos inferir recor-
de poder ser dada no início de um videojogo rendo aos esquemas cognitivos o tipo de
necessita de ser constantemente reforçada por situação emocional que se está expressar
co-protagonistas o que implica o desenvol- (Scherer, 2001). Para que esta inferência
vimento de “plataformas de comunicação ocorra é necessário que “a relevância emo-
interpessoal” (Zagalo et al, 2003). cional de uma mensagem falada seja
É muito difícil para o utilizador num jogo conduzida através do seu conteúdo semân-
realizar a “identificação emocional” que tico (“o que” é dito) e pela prosódia afectiva
ocorre no cinema porque ele não pode ver usada pelo falante (“como” é dito)”
o que o protagonista faz nem como faz, pelo (Vingerhoets et all, 2003). Ou seja, o que
menos6, até ao momento em que o decide acontece nos videojogos é muitas vezes a
fazer, ele pode ver sim é a forma como os quase ausência de “prosódia afectiva” o que
outros o vêem e como reagem. No entanto provoca um enorme factor de estranheza ao
o problema vai para além da matriz uma vez mesmo tempo que alisa de forma drástica a
que em casos de grande sucesso e popula- estrutura emocional da sequência levando à
ridade como “Final Fantasy X” em que os sensação de ausência de “vida”.
personagens formam uma equipa e funcio- A prosódia e a semântica em conjunto
nam em conjunto o nível emocional desses podem ser usadas para criar praticamente toda
personagens é muito baixo, funcionando com uma diversidade de emoções vocais que
níveis próximos das escalas dos figurantes possam existir ao mesmo tempo que o seu
de cinema. correcto uso ao nível narrativo pode facil-
mente despoletar elementos de incerteza
1.2 Expressão facial através de variações semânticas não acom-
panhadas pela prosódia esperada.
A ausência de expressões faciais de Relativamente à conjugação da expres-
emoção apresenta-se como uma das mais são facial com a voz esta produzirá um acesso
fortes causas de ausência de padrões emo- muito mais evidente de identificação do
438 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

estado emocional do personagem (Cohn e 2.2 Perspectiva


Katz, 1998) facilitando desse modo o seu uso
pela narrativa. A perspectiva engloba aqui três planos
distintos: o enquadramento, a montagem e
2. Ambiente o ponto-de-vista. O ponto-de-vista por sua
vez engloba os outros dois planos uma vez
2.1 Música que são dependentes da perspectiva adopta-
da: primeira-pessoa ou terceira-pessoa.
Tendo em conta que a funcionalidade da No caso de adoptarmos um ponto-de-vista
música no cinema é o de “fundamentalmente de primeira-pessoa, tanto o enquadramento
agir como maestro de emoção” (Zagalo et all, como a montagem deixam de fazer sentido
no prelo) não se pode esperar que num uma vez que não podem ser aplicadas. A
ambiente que é também ele narrativo e primeira-pessoa permite apenas o enquadra-
audiovisual o seu papel se altere. Isto é, a mento único podendo nesse plano executar
música não deve ser entendida como apenas aproximações ou distanciamentos em
maximizadora de intensidade ou de diversi- profundidade. Desta forma o utilizador que
dade de uma situação emocional num aparentemente parecia ter um grande contro-
videojogo, ela deve ser antes percebida como lo em primeira-pessoa tem afinal menos
o elemento que conduz a emoção do utilizador. opções. O relacionamento do utilizador com
A música é um elemento não diegético ou seja o videojogo na primeira-pessoa acontece de
não interfere de forma objectiva sobre a acção, uma forma linear (Willson, 1997) em direc-
age antes directamente sobre o sujeito indu- ção ao mundo que pretende controlar, o
zindo ou permeando informação que lhe utilizador só pode ver o que personagem vê.
permite seleccionar da forma mais aproxima- Na terceira-pessoa o utilizador vê o
da possível a emoção a activar, tendo isso mundo através da perspectiva do personagem
como é natural repercussões sobre o poder de para além da possibilidade de poder analisar
decisão do sujeito. o mundo directamente. Ou seja, vê o que o
A criação de música para o entreteni- personagem vê e pode ver como ele vê, o
mento interactivo apresenta claros proble- que faz deste ponto-de-vista uma perspectiva
mas uma vez que é difícil determinar a mais complexa ou seja mais rica em padrões
duração de uma certa sequência emocional. e em hipóteses de emoção. Neste contexto
Segundo Casella e Paiva (2003) o problema é possível realizar enquadramentos do per-
mais comum é a música a “trabalhar contra sonagem, realizar planos e contra-planos de
a narrativa... o que acontece quando o uma interacção social, planos de pormenor
utilizador recebe a pista errada da música, de determinados objectos, planos gerais do
ou quando o utilizador prevê o fluxo da local onde o personagem está. Todos estes
acção através de reconhecimento de padrões” enquadramentos podem seguidamente ser
musicais. Para ultrapassar este problema a alvo de diferentes formas de edição que por
“Adaptive Music” tem sido apontada como sua vez possuem capacidade para desenvol-
uma possível forma de solução. Um forma- ver ritmos através de variações de tempo7
to capaz de gerar música em tempo real com e espaço8. A capacidade de produção de
capacidade para se alterar com os estados enquadramentos e edição permitem quando
do jogo, possuindo ao mesmo tempo geridos dessa forma gerar emoção intensa no
instruções que evitam a repetição por forma espectador.
a não saturar o utilizador (Clark, 2001).
Podemos ver já alguma utilização destes 3. Poder de decisão
algoritmos musicais a funcionar em “Enter
the Matrix” no que toca à criação de exci- 3.1 Semântica
tação e até algum suspense de forma mais
ou menos bem sucedida. Mas falta ainda dar A utilização exclusiva de lógica matemá-
provas no que toca à capacidade de condu- tica comum nos jogos, não funciona nos
ção de uma maior diversidade emocional ou videojogos quando se pretende uma expan-
seja a investigação tem de continuar. são emocional. Uma vez que esta apenas
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 439

propiciará picos de tensão sem muito espaço para do utilizador está intimamente ligada à
áreas emocionais (ver gráfico 2). A invocação semântica da acção a tomar.
de resolução através da lógica por parte do Assim e voltando ao exemplo do elemen-
utilizador coloca-o numa esfera de abstracção to anterior, o videojogo precisa de dar ao
em relação à natureza semântica da narrativa, utilizador a possibilidade de este decidir
visto que este acaba por se deixar envolver na ajudar ou não, C a chegar a B se ele assim
sua teia mental de resolução do padrão acaban- o entender. O videojogo não pode bloquear
do por se retirar da situação emocional em que a progressão do utilizador unicamente por este
o videojogo o pretenderia inserir inicialmente. motivo, isto porque se o fizer incorre no
Assim quando o sujeito constrói padrões perigo de “desvelar” a verdade sobre o padrão
mentais sobre o videojogo que enfrenta, não lógico por detrás da operação semântica entre
devemos permitir que ele se interesse ou C e B. Acontecendo o desvelamento a decisão
melhor que ele sequer tenha conhecimento, a tomar deixa de conter significado narrativo
se deve ou não concluir a tarefa C antes de e assim o risco emocional da ficção desa-
B para poder chegar a A. Ou seja, não parece para dar lugar ao raciocínio de lógica.
interessa qual é a lógica necessária ao cum- Então para que o risco ocorra precisamos
primento dessas tarefas mas sim qual é a de semântica que coloque em causa os valores
semântica dessa acção. Se C for apenas um bem e mal no utilizador e que consequen-
objecto que necessite ser “encaixado” em B temente possua castigos e recompensas (Ross,
para que o utilizador avance para A, esta- 2003). Assim se o utilizador decidir não
remos a dar ao utilizador unicamente um caso ajudar C ele poderá continuar a sua progres-
de raciocínio baseado em unidades lógicas. são no videojogo, mas essa progressão irá
Se C é um personagem que possui uma custar-lhe um castigo num período
necessidade qualquer (ex. ferimento) e se indeterminado de tempo a seguir ao acon-
torna necessário ao utilizador ajudar C a tecimento. Tendo em conta que num
chegar a B (ex. hospital) então estaremos a videojogo tudo se desenrola muito rapida-
lidar com uma questão de variáveis morais. mente, no momento do castigo poderemos
Assim o utilizador ajuda C porque os seus usar técnicas explicativas como o “flashback”
esquemas cognitivos simulam a acção como narrativo para que o utilizador perceba a razão
importante para ele e não porque é neces- do castigo. A utilização do castigo e da
sária à progressão no videojogo. Criou-se no recompensa é fulcral para a criação do factor
utilizador uma preocupação moral com o risco. Por sua vez o factor risco aliado ao
decorrer da sequência levando-o a agir sobre factor incerteza permitirá criar uma enorme
o objecto C e desta forma serão despoletadas diversidade de indutores de emoção no
várias classes de emoções. utilizador.

3.2. Risco Perspectivas de futuro

A emoção em Damásio tem uma função Sendo este um trabalho em desenvolvi-


reguladora da vida do organismo porque esta mento no âmbito de um projecto de
regula as decisões que o sujeito precisa de doutoramento, o trabalho futuro será dedi-
tomar em caso de risco. Decisões essas que cado ao desenvolvimento de relações com-
são sempre tomadas em função da avaliação plexas entre os elementos de emoção e o
entre bom e mau que é executada sobre a sistema cognitivo do utilizador com acentu-
situação. Assim para que exista risco é ação na personagem e na perspectiva, aliado
necessário que exista uma situação dicotómica à investigação sobre especificações de auto-
que permita ao sujeito executar essa escolha. nomia e planeamento interactivo de elemen-
Desta forma o risco na tomada de decisão tos em ambientes virtuais.
440 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

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As mudanças de plano dão noções diferentes
“Entertainment”, Conferência Internacional: de espaço, podendo dessa forma dar diferentes
O Poder e a Persistência dos Estereótipos, perspectivas de “tamanho” e ao mesmo tempo de
Universidade de Aveiro, Portugal. “movimento”.
442 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 443

Rádio e Internet: novas perspectivas para um velho meio


Paula Cordeiro1

“En un mundo como el nuestro, donde O estilo hipermediático agora utilizado


casi nada ya por inventar, las recorre a quase todos os recursos da comu-
principales sorpresas no las deparan nicação em rede, fazendo distinguir os meios
los nuevos usos que reciben viejos de comunicação modernos entre outros as-
inventos” (BASSETS, 1981: 257) pectos, pela interactividade, hiperligações,
personalização e actualização constante.
A rádio é um meio de comunicação O panorama radiofónico português tem
extraordinariamente rico, com uma narrativa sofrido, ao longo dos últimos anos, mudan-
singular e para muitos, fascinante. Tradici- ças fundamentais de base essencialmente
onalmente conhecida como um meio imedi- tecnológica. O momento actual é de transi-
ato e irrepetível, a rádio, com o advento da ção, um momento particular na rádio por-
Internet, pode redefinir-se. tuguesa, caracterizado essencialmente pela
O desafio das novas tecnologias tem sido mudança, ou pela existência de elementos que
um factor de renovação para a rádio que, ao propiciam essa mudança.
longo dos últimos anos, se tem vindo a Este momento vai seguramente aumentar
reinventar, quer ao nível da produção, dos as potencialidades comunicativas da rádio e,
conteúdos e das formas de recepção das pelas suas características, transformar a rá-
emissões. No momento actual, a rádio pode dio num meio essencialmente interactivo.
incluir novos elementos na sua estrutura nar- A evolução tecnológica ditou sempre
rativa, e desenvolver novas estratégias comu- mudanças estruturais para a rádio, cujo sis-
nicativas, suportadas pelas potencialidades que tema técnico evoluiu e condicionou, pela sua
a nova plataforma de comunicação oferece. mudança, o sistema de comunicação
A introdução de sistemas multimédia vem radiofónico. A digitalização implicou mudan-
alterar a natureza da rádio, podendo ças estruturais para a rádio, no campo da
transformá-la de tal forma que nos obrigue captação e edição de sons, no trabalho dos
a re-equacionar o conceito, questionando a jornalistas e no modo de funcionamento das
validade da definição do que é a rádio e a redacções, mais ainda, pelas novidades decor-
sua comunicação. rentes de novos sistemas para a emissão de
O digital veio modificar a forma e os rádio.
processos comunicativos, tornando-os mais No campo da recepção, a inovação mais
abrangentes, pela introdução de um modelo recente, o Digital Audio Broadcasting, é
multimediático que permite a dispersão e di- considerado uma verdadeira transformação
versificação dos pólos de enunciação e dos tecnológica que vai contribuir para a mudan-
enunciados produzidos. Sendo a rádio o meio ça da natureza da rádio. Em paralelo, a
que ao longo da história da comunicação mais Internet tem vindo a integrar o sistema de
facilmente se adaptou aos novos cenários comunicação da rádio, apresentando-se, no
tecnológicos, absorvendo-os para renovar a momento, como um suporte complementar
tecnologia de comunicação radiofónica, como para as emissões em FM. Para a rádio, a
será que o desafio do digital está a ser Internet pode ser encarada tanto como con-
enfrentado por este meio? corrência quanto como desafio, no sentido
O paradigma da comunicação moderna da variedade que o mundo online oferece
encontra no digital o aspecto que introduz (tendo como elemento central a world wide
a novidade e propicia a mudança, face aos web), e pelo desafio da adaptação ao novo
processos, meios e fenómenos que conhecí- meio, na pesquisa, produção e difusão de
amos até aqui. conteúdos.
444 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

A world wide web surge como elemento Evolução e modelos de rádio na Internet
fundamental neste contexto, enquanto supor-
te para os meios de comunicação e serviços O conceito de rádio na Internet, está ainda
que se vêm desenvolvendo. Na web, encon- por definir.
tramos todo o tipo de serviços, para con- Uma rádio com texto e vídeo, foge ao
sulta ou comercialização, a par com apli- modelo tradicional, mas actualiza um forma-
cações de lazer e informação, que transfor- to com cerca de oitenta anos de existência
mam o tradicional esquema da comunica- e fornece ao utilizador, que é também o
ção de massas. É por esta razão que ao ouvinte, um amplo conjunto de
pensarmos a relação da rádio com a Internet, potencialidades, que até aqui seriam
devemos considerar os aspectos que a impensáveis.
caracterizam e que influenciam a forma Avançar propostas para classificar as
como a rádio potencia a estrutura da sua formas que a rádio apresenta na Internet, pode
comunicação. fazer-se recorrendo aos termos que estão
Uma vez que a Internet está a transfor- associados a esta nova realidade tecnológica,
mar a rádio, devemos então, desenvolver usando-os para estabelecer eixos de orien-
elementos de análise deste impacto, consi- tação nesta análise.
derando as tecnologias e estruturas que As emissoras que têm uma presença
alteram a comunicação deste meio. Consi- mínima na rede poderão enquadrar-se num
derando as possibilidades multimédia e modelo testemunhal, relativo a websites que
multimediáticas deste sistema, quais serão nos indiquem apenas as informações essen-
então, os desenvolvimentos possíveis para a ciais sobre a estação, sem transmissão em
a Internet em si e a rádio em particular, directo das emissões.
quando presente no mundo virtual? Outro, multimediático, corresponde aos
Ao longo desta sumária análise, procu- operadores que exploram a Internet parale-
ramos compreender a nova estrutura de lamente à emissão regular, assumindo a sua
comunicação radiofónica, através dos ele- presença na rede como mais um canal de
mentos que tradicionalmente compõem a difusão que transforma a rádio num modelo
sua linguagem e as alterações proporcio- de comunicação multimédia.
nadas pela integração de vários modelos Há também um esquema telemático, que
expressivos na extensão deste meio para se apresenta exclusivamente on-line, com
a Internet. serviços próprios, vulgarmente designado
Em termos gerais, encontramos um qua- webradio.
dro analítico no qual prevalece um modelo Na rádio, a Internet começou por ser
de emissão em Frequência Modelada e outro, utilizada essencialmente como ferramenta de
ainda em evolução, eminentemente conver- trabalho. A partir da sua produção para as
gente. Este modelo, multimediático, resulta ondas hertzianas, muitas estações começaram
da tendência integradora de meios e do a disponibilizar os seus conteúdos na Internet
objectivo das empresas de estarem presentes em websites próprios sem aumentarem nada
em todos os mercados da comunicação. A ao formato inicial. Posteriormente, as esta-
rádio passa a oferecer serviços que unem ao ções começaram a produzir conteúdos espe-
som, elementos escritos e visuais e junta-se cíficos para a Internet, e surgiram projectos
a outros media para estar presente e respon- a operar exclusivamente neste novo meio de
der às solicitações do consumidor multimé- comunicação, sendo este o estágio que se
dia. desenvolve na actualidade.
A programação apresenta-se de carácter Decorrendo em paralelo, mas num núme-
generalista, mas deixa lugar para a emergên- ro menor de websites, o mais recente esque-
cia de um novo modelo de cariz temático ma operacional disponibiliza os seus conteú-
que especializa cada emissora em conteúdos dos exclusivamente na Internet, sem emissão
monotemáticos e que se reflecte para já, na por ondas hertzianas e pode utilizar todas as
especialização musical de algumas estações potencialidades que a Internet oferece, na
de rádio. construção um produto completamente di-
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 445

ferente, para o qual subscrevemos a desig- Partindo do princípio que as pessoas


nação utilizada de webradio. visitam o website para ficar a conhecer alguns
O modelo multimediático caracteriza-se aspectos relativos à própria estação emisso-
essencialmente por uma utilização da Internet ra, a generalidade das rádios em análise aposta
enquanto suporte adicional para a rádio, uma na apresentação da sua programação, infor-
extensão que serve de «montra» para a mação sobre locutores e jornalistas, bem
estação, no qual são apresentados os seus como dados relativos à playlist, passatempos
principais aspectos. e algumas notícias. A maior parte das esta-
Na actualidade, o formato FM faz a ponte ções centra as suas preocupações nestas
entre a comunicação áudio e o website da questões, tornando estas páginas numa es-
estação rádio, apelando à visita, pela suges- pécie de montra da estação, onde se podem
tão de conteúdos e pela solicitação de ficar a conhecer os principais aspectos da
mensagens via correio electrónico. rádio, sem aprofundar nenhum deles, ou dar
Para esta abordagem, a consulta e análise informações complementares, relativas à
dos websites de estações e cadeias de rádio rádio, à música e à informação.
nacionais levou-nos a concluir que o website
de uma estação de rádio deverá traduzir-se O modelo telemático - webradio4
na representação de uma estrutura paralela
que não deve ser confundida com o seu Na Internet, a rádio reúne música, infor-
formato tradicional. mação e publicidade, em paralelo com outros
Na Internet, a rádio afasta-se do seu componentes como animações, imagens
conceito original e, no website, pode apre- estáticas ou em movimento. Os novos su-
sentar serviços distintos da emissão portes permitem a introdução de componen-
radiofónica, estabelecendo uma nova estru- tes (gráficos, tabelas, fotografias, textos
tura, mais rica e variada que concorre di- escritos, imagens de vídeo) que vêm com-
rectamente com o formato tradicional da plementar a informação disponibilizada pelo
rádio. meio. Este aspecto vai obrigar a uma adap-
A classificação dos tipos de rádio pode tação a esta nova forma de comunicar, com
fazer-se de acordo com perfil editorial da recursos que vão permitir produzir uma
estação: rádios generalistas nacionais (Rádio mensagem tão completa quanto possível.
Renascença, Rádio Clube Português, RFM, O caminho a traçar para a webradio é
Antena 1) e locais; temáticas – sendo que a mais complicado, porque são projectos que
designação mais correcta será, especializadas vivem exclusivamente na Internet e podem
-: nacionais (a antiga Comercial,2 Mega FM, redefinir o próprio conceito de rádio, pelas
Best Rock FM), locais (Mix) e cadeias (TSF); possibilidades que o visitante não conseguirá
rádios com existência exclusiva na rede (exem- encontrar no formato tradicional e pela
plos existentes no Cibertransistor do website difusão das emissões à escala mundial.
Telefonia-Virtual, ou no Cotonete). À partida, uma webradio transforma-se
Todas elas devem reflectir no website num meio essencialmente visual.
aquilo que se passa em antena, construindo- Depende da qualidade gráfica do seu site
o de acordo com o seu perfil editorial. Cada para atrair os visitantes. Os novos sistemas
estação que coloca a sua página on-line de difusão para a rádio desenvolvem novas
deveria pensar nas vantagens multimédia e formas e expectativas. São rádios que resul-
apropriar-se das combinações possíveis entre tam da integração do multimédia num su-
som e imagem, oferecendo a possibilidade porte também novo, o único que permite a
de escutar material áudio em arquivo. Uma convergência de meios. O esquema de fun-
rádio generalista nacional deverá ter a infor- cionamento da rádio é alterado, apresentan-
mação que faz a actualidade, sem esquecer do os seus conteúdos de forma diferente
as referências à sua programação.3 preparados de acordo com o percurso que
O website de uma rádio deverá sempre o site tem para oferecer, através de hipertexto
estimular a visita e o regresso do utilizador, e hiperligações.
apresentando conteúdos com interesse e As características da maior parte destas
relevância para o seu público. rádios obrigam-nos a pensar em novas desig-
446 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

nações para o conceito, pois em muitos casos O estilo multimediático agora utilizado
é difícil precisar até que ponto não passarão recorre a quase todos os recursos da rede,
estes projectos de uma mera oferta de con- como a interactividade, as hiperligações, som
teúdos para a rede, ainda sem definição e imagem, personalização e actualização
concreta. constante, aspectos que não encontramos no
O novo modelo começa a desenhar-se, formato tradicional da rádio.
mas está ainda em desenvolvimento, não Na impossibilidade de uma descrição
sendo possível, por enquanto, saber a me- exaustiva dos melhores exemplos para ilus-
dida exacta dessa nova «rádio». trar o modelo multimediático, a escolha recaiu
Quando esta revolução digital estiver sobre um website que, não sendo uma es-
concluída, será possível para a rádio voltar tação de rádio, congrega os principais aspec-
a concentrar a sua atenção nos conteúdos e tos desta fértil relação: www.cotonete.iol.pt.
serviços que a vão acabar por definir, dife- O «Cotonete» é um portal de música que
renciando as estações e procurando atender parte de uma estrutura idêntica à de uma rádio
às necessidades individuais e sociais. para promover e divulgar artistas e produtos
Aquilo que durante tanto tempo marcou da indústria fonográfica.
a especificidade da rádio face aos restantes É um projecto do grupo de comunicação
meios de comunicação social, deverá conti- Media Capital, que, um pouco à semelhança
nuar a ser a principal aposta da webradio. As do projecto Usina do Som, 5 incentiva o
webradios podem fundar uma nova modali- utilizador à construção da sua própria rádio,
dade, colocando os ouvintes/utilizadores como definindo-a em todos os seus aspectos.
produtores da comunicação. Tirando partido No «Cotonete», é o utilizador que decide
da interactividade que a Internet oferece, estes o que pretende ouvir, a partir de uma se-
são estimulados a produzirem e emitirem os lecção que se organiza em secções diferen-
seus programas, transformando a concepção tes. Neste website estão reunidas variadas
tradicional da rádio. informações do universo musical, como
notícias, reportagens e entrevistas. O
O modelo multimediático na rede utilizador pode aceder a uma base biográfica
dos principais artistas, discografias e letras
A integração de práticas precedentes tem das canções. O website disponibiliza também
sido comum na evolução dos meios de a escuta de excertos das músicas.
comunicação. A rádio socorreu-se do cinema Encontramos também estações pré-pro-
e da imprensa para compor uma nova es- gramadas que abrangem todos os géneros
trutura comunicativa, da mesma maneira que musicais. Para além das estações criadas e
numa primeira fase, a Internet integrou os com emissão exclusiva para a Net (Baladas,
meios existentes. A rádio instalou-se na rede, Cotonete, Dança, Pop Rock, Teen, Alterna-
desenhou a sua identidade em sites na web tiva, Clássica, Cotton Club, Fado e Portu-
e passou a participar da comunicação no guesa) as rádios do grupo Media Capital estão
ciberespaço, contribuindo para a evolução da também disponíveis para escuta (Comercial,
Internet enquanto meio. Nostalgia, Cidade, Mix e Nacional). Entre
Face à convergência dos meios de comu- esta variedade de oferta, encontramos ainda
nicação social num só suporte, a rádio pode os canais, um sistema diferente das rádios.
representar um dos diversos canais deste novo Não há, contudo, a possibilidade de escutar-
meio de comunicação, que se evidencia pelo mos outras rádios para além destas.
estímulo à participação dos seus utilizadores O projecto convida à personalização em
e deita por terra a passividade da audiência. todos os aspectos do website, de forma a
Mesmo no seu suporte em FM, as estações garantir o melhor serviço ao utilizador, dando-
de rádio têm implementado sistemas de lhe a hipótese de criar as suas rádios, ter as
comunicação que favorecem a interactividade suas notícias, ver o seu perfil e guardar as
entre produtores e receptores, numa estraté- suas músicas. A partir de «O meu Cotonete»
gia de acompanhamento das novas modali- o utilizador pode definir as notícias e as
dades comunicativas que a Internet veio músicas que deseja consultar, criando um
estabelecer. perfil e uma rádio, se assim o desejar. Esta
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 447

é uma das principais propostas deste projec- Os conteúdos das rádios na Internet
to, dando aos ouvintes a possibilidade de enquadram-se numa estrutura tecnológica que
escolherem as músicas que mais gostam, a lhe permite diversas ligações, numa extensão
partir de uma gigantesca base de dados de um mundo de informação ilimitada,
musical, que está em constante actualização. documentada e de fácil acesso a bases de
Entre os serviços proporcionados pelo dados especializadas. A ligação ao arquivo
«Cotonete», destacamos a secção «comprar». é uma nova esfera da comunicação, possi-
Tirando partido das plataformas de rede e bilitada pelo on-line e que vem desvirtuar
da convergência multimédia, o «Cotonete» a instantaneidade da comunicação
comercializa bilhetes para espectáculos e radiofónica.
discos de música. Os recursos hipermédia representam a
possibilidade de interagir com o público e
Conclusão a estação, num processo de intercâmbio que
recorre aos fóruns de discussão, salas de
As sinergias que as novas tecnologias conversação, correio electrónico, votações e
permitem, acabam por transformar não só a comentário de notícias, para tornar o ouvinte
forma como se processa a comunicação, mas num elemento que passa a poder fazer parte
a própria essência dos meios de comunica- da construção das emissões, aproximando-se
ção. Promove-se uma nova discursividade, do conceito de produtor da comunicação.
pela combinação de elementos de linguagens A expansão dos sistemas de difusão,
diferentes, menos singular, mas contudo, mais comporta a fragmentação das audiências que
rica, por via da utilização multimédia na se dividem em função do aumento do nú-
construção da sua mensagem. mero de estações emissoras e da diversifi-
A extensão da rádio para a Internet, cação dos seus conteúdos. A escuta de pro-
acarreta algumas transformações nas princi- gramas em diferido e a selecção entre os
pais características deste meio que assim se vários canais que a rádio na Internet pode
aproxima da especificidade da comunicação disponibilizar resulta num consumo diferen-
na Internet, mantendo em relação à rádio ciado, de acordo com os interesses e neces-
tradicional, a difusão sonora. sidades de cada indivíduo.
O modelo multimediático, aqui analisa- A tecnologia veio permitir a ampliação
do, comprova a fase de transição que a rádio, da difusão e uma maior capacidade de
enquanto meio, atravessa. armazenamento, favorecendo a utilização em
Os modelos coexistem e não há ainda uma função daquilo que os ouvintes/utilizadores
afirmação do multimédia sobre o FM, para determinem. Esta estrutura favorece a cria-
além de que as estações criadas para emissão ção de novas formas de organização dos
exclusiva na Internet estão ainda a procurar conteúdos e a personalização, pela definição
a sua identidade, não sendo, para já, uma da informação que cada utilizador recebe por
ameaça ao sistema que prevalece. correio electrónico, ou da estrutura da página
Neste novo modelo, o sistema expressivo de entrada do website.
da rádio decompõe-se e multiplica-se, adi- No geral, as estações de rádio apresen-
cionando mais elementos ao som, num tam websites criados em função das expec-
caminho que poderá vir a desvirtuar a sua tativas dos utilizadores, mas não têm ainda
importância e transformará o website de uma uma componente de informação e serviços
rádio num espaço multimédia onde a emis- que autonomize o website em relação ao FM.
são radiofónica é apenas mais uma das A escuta em directo, agenda de espectáculos
propostas que a rádio tem para oferecer. e acontecimentos, notícias, informação bi-
No modelo multimediático, a imediatez ográfica sobre os artistas, informação sobre
da rádio mantém-se, mas a mensagem pode o tema que está a tocar no momento e os
ter dados adicionais que o suporte áudio não temas da playlist, descrição com fotografia
comporta e que estão disponíveis nas dife- da equipa que faz a rádio em FM, são os
rentes unidades que compõem o website da aspectos mais comuns nas rádios nacionais
estação. enunciadas para esta análise.
448 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

A possibilidade de interacção entre a h t t p : / / w w w. s a l a d e p r e n s a . o r g /


audiência e os profissionais da rádio é art198.htm.)
potenciada na Internet, pelo recurso que
algumas estações fazem aos fóruns de dis- A rádio na Internet desenvolve modali-
cussão e salas de conversação. Para além dades interactivas e constrói um sistema
destes aspectos, a rádio na Internet pode dialógico que altera tanto o modelo comu-
afastar-se do seu conceito original e apre- nicativo da rádio como o comportamento das
sentar formas de transferência de músicas ou audiências. Cabe ao ouvinte a decisão de
ficheiros, ou estabelecer esquemas de navegação pelo website da estação, assim
comercialização de produtos e serviços ou como a selecção da emissão ou da consulta
de alguns conteúdos do site, estabelecendo dos menus diponíveis, programando aquilo
uma nova estrutura que concorre directamente que deseja escutar, transformando o conceito
com o formato tradicional da rádio. de ouvinte num mais alargado que se poderá
entender por utilizador.
“La radio sigue teniendo la ventaja A rádio afasta-se do seu conceito original
de la instantaneidad, proximidad, e assume uma configuração multimédia que só
calidez, frescura... (...) Internet supone a Internet pode oferecer. A convergência das
un nuevo medio de comunicación pero tecnologias instaura novos formatos para ve-
también un aliado. Es un escenario lhos conteúdos, e obriga ao progressivo desen-
de experimentación de formas de volvimento do sistema de comunicações. Num
comunicarnos que anteriormente sólo futuro próximo, a rádio na Internet poderá ser
tenían cabida en las hojas de un diario, banalizada a partir do momento em que o
un receptor de radio o un aparato de sistema digital se generalizar. A inovação mais
televisión; ahora este medio sintetiza recente, o sistema digital de radiodifusão (DAB
todo ello y se abre a nuevas y – Digital Audio Broadcasting), abre perspec-
emergentes audiencias”. («La radio tivas até aqui nunca pensadas para a rádio, pela
como modelo de participación demo- flexibilidade de um sistema inovador, cujos
crática», Benjamín F. Bogado (2002): limites ainda não são conhecidos.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 449

Bibliografia _______________________________
1
Universidade do Algarve.
2
1. Livros Na actualidade, a Rádio Comercial não é
temática e a rádio que aparentemente a vem
Balle, Francis (1999) Médias et Sociétés, «substituir» no campo temático (Best Rock FM)
9ª ed., Paris, Montchrestien. emite apenas em Lisboa e no Porto. Contudo,
tanto a Mega FM, como a Best Rock FM, por
Bassets, Lluís (1981) De las Ondas Rojas
emitirem fora de Lisboa, são consideradas para
a Las Radios Libres, Barcelona, Gustavo Gili.
as medidas de audiência ao nível nacional.
Belau, Angel Faus (1981) La Radio: 3
À semelhança da TSF, que tem uma «es-
introduccion a un medio desconocido, 2ª ed., pécie» de portal de informação, a Rádio Renas-
Madrid, Latina Universitaria. cença tem uma página que se apresenta quase
Herreros, Mariano Cebrián (2001) La como um portal informativo, sem esquecer a pro-
Radio en la Convergencia Multimedia, gramação. Cada estação do grupo tem um do-
Barcelona, Ed. Gedisa. mínio próprio onde estão conteúdos diferenci-
Rodrigues, A. D. (s/d) O Campo dos ados. Contudo, para que o website da Rádio Re-
Media, Lisboa, Vega. nascença se possa assumir como um portal,
deverá fazer referência aos diferentes projectos,
2. Documentos Electrónicos desenvolvendo conteúdos que poderiam ser
actualizados pelas equipas das respectivas esta-
«Digital Audio Broadcasting (DAB): a ções.
4
Rádio do ano 2000», José Manuel Nunes (s/ A UBI tem um projecto exclusivamente on-
d), Observatório da Comunicação http:// line – RUBIWEB – em http://www.rubi.ubi.pt,
www.obercom.pt/revista/ que nasceu de uma parceria da Universidade da
josemanuelnunes.htm (19.04.01). Beira Interior e a Universidade Pontifícia de
Salamanca.
«Radio Station Web Site Content: an in 5
De acordo com os dados na apresentação do
depth look», Larry Rosin e Janel S. Shul
site, o Usina do Som é um dos maiores fenómenos
(2000), Arbitron
da Internet no Brasil, apresentando, em média, 215
http://www.arbitron.com/downloads/ milhões de page views/mês, 120 mil unique visitors
radiostationwebstudy.pdf (10.09.02). por dia, mais de 1,3 milhão de utilizadores
«La radio como modelo de participación registados e mais de 2 milhões de rádios pessoais
democrática», Benjamín F. Bogado (47, criadas. Com pouco mais de um ano de existência,
Setembro de 2002, ano III, vol. 2), Sala de o site firmou-se como o primeiro e maior na
Prensa, http://www.saladeprensa.org/ categoria de música no Brasil. (http://
art198.htm, (12.10.02). www.usinadosom.com.br, 25.09.02).
450 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 451

Critérios de qualidade para revistas científicas


em Ciências da Comunicação: reflexões para a PORTCOM
Sueli Mara Soares Pinto Ferreira1

1. REVCOM – uma proposta da mesmo tempo, a publicação de textos com-


PORTCOM pletos de artigos, seu armazenamento em
bases de dados e sua recuperação eficiente
A REVCOM – Coleção Eletrônica de e imediata. Inclui também um módulo para
Revistas em Ciências da Comunicação - inclui o controle e a medida de uso de periódicos
periódicos científicos, vinculados a institui- na Internet, assim como de seu impacto
ções de países de língua portuguesa publi- mediante a produção de relatórios, a partir
cados na forma impressa e/ou eletrônica, que dos quais especialistas poderão analisar a
arrolem predominantemente artigos resultan- literatura científica incluída na coleção. Esses
tes de pesquisa científica original e outras relatórios são baseados em indicadores e
contribuições originais significativas para as critérios quantitativos e em técnicas e mé-
Ciências da Comunicação. todos bibliométricos”. Tem como princípios
Coordenada pela PORTCOM/ para seu desenvolvimento o compromisso
INTERCOM2, esta coleção tem como objetivo com normas nacionais e internacionais, sin-
geral: contribuir para o desenvolvimento da cronização com os avanços internacionais no
pesquisa científica nos países de língua campo das publicações eletrônicas e uso
portuguesa, por meio do aperfeiçoamento e intensivo de tecnologias de informação e co-
da ampliação dos recursos de disseminação, municação adequadas a América Latina e
publicação e avaliação dos seus resultados, Caribe (BIJONE, 1999).
fazendo uso intensivo da publicação (2) Desenvolvimento do protótipo piloto
eletrônica. Em síntese, pretende aumentar a com revistas representativas da área;
visibilidade, a acessibilidade e a credibilida- Para a implementação do protótipo piloto
de nacional e internacional da publicação - fase 2 - a REVCOM assumiu os critérios
científica em ciências da comunicação dos de qualidade definidos pelo Sistema QUALIS
países de língua portuguesa; bem como 2001 da Fundação CAPES, convidando para
colaborar para o aumento do impacto a nível participar deste protótipo as seis revistas bra-
internacional da produção científica lusófona, sileiras consideradas Nível A Nacional. Foram
atuando diretamente no processo de comu- estabelecidos documentos de parcerias,
nicação científica. manuais de procedimentos para o envio dos
A estratégia assumida para o desenvol- textos pelas revistas parceiras e critérios e
vimento desta coleção REVCOM pode ser cronogramas de trabalho para a publicação
sintetizada em quatro fases: eletrônica, pela equipe PORTCOM, dos
(1) Delineamento do projeto e seleção de fascículos das revistas parceiras de 2001 até
metodologia para publicação eletrônica de 2003.
periódicos científicos; (3) Definição de critérios de qualidade
Em relação a primeira fase, a PORTCOM para as revistas da coleção; e
conta com a parceria do Projeto SCIELO da Com este protótipo em desenvolvimento,
BIREME – Centro Latino Americano e do passou-se para a fase 3 referente ao estabe-
Caribe de Informação em Ciências da Saúde, lecimento e incorporação de critérios de
que cedeu a Metodologia SciELO para a qualidade e normalização para revistas cien-
preparação, armazenamento, disseminação e tíficas seguindo padrões internacionais de
avaliação de periódicos científicos em for- primeira linha. Para o estabelecimento destes
mato eletrônico. Segundo Antonio e Parker critérios várias atividades e estratégias estão
(1998) esta metodologia “é formada por sendo desenvolvidas, entre elas (a) a análise
módulos integrados que possibilitam, ao dos periódicos inseridos no protótipo, (b)
452 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

avaliação e adequação dos critérios interna- problemas, dificuldades, falta de normaliza-


cionais à área de ciências da comunicação, ção adequada à área e critérios para trabalho
(c) validação junto a representantes da co- coordenado e cooperativo; optou-se por uma
munidade e editores científicos da área e, composição e adaptação do modelo menci-
finalmente, (d) homologação pelo Comitê onado com sistemáticas adotadas por insti-
Consultivo da REVCOM composto por re- tutos nacionais e internacionais especializados
presentantes da área de publicações periódi- na temática (SCIELO/BIREME, 2002; ICSU,
cas eletrônicas e de instituições fortemente 1999; QUALIS/CAPES, 2001; CINDOC,
comprometidas com o desenvolvimento do 2001) e ainda respaldo nas várias normas
ensino, pesquisa e extensão na área de nacionais como internacionais existentes 3.
Ciências da Comunicação. Deste modo, foram definidas como va-
(4) Implantação final da coleção com base riáveis de estudo:
nos critérios definidos. - aspectos de forma - incluindo análise
Corresponde a última fase do projeto das partes da revistas, instruções aos autores,
quando se terá delineado os procedimentos periodicidade, normalização, layout, difusão,
finais da coleção, de modo a possibilitar a regularidade de publicação, periodicidade etc;
entrada, seleção e manutenção de todos os - tipologia de conteúdo e autoria - in-
periódicos interessados em ingressar, garan- cluindo identificação dos tipos de trabalhos
tindo a qualidade da coleção e da própria publicados nas revistas e procedimentos de
ferramenta de disponibilização on-line. apresentação e seleção (artigos originais/
No contexto da 3ª. Fase desse projeto revisão e/ou atualização, formatação dos
REVCOM – “definição de critérios de qua- trabalhos, padronização com base em nor-
lidade para as revistas da coleção” – foi mas científicas nacionais e internacionais, re-
realizado um estudo com cinco revistas visão pelos pares, comitê editorial) e crité-
científicas em ciências da comunicação, de rios de endogenia (diversidade de pesquisa-
modo a identificar as características e com- dores, instituições e localidades vinculadas
portamento das revistas da área e levantar à autoria dos trabalhos publicados).
algumas reflexões quanto à adequação dos
padrões internacionais para a área de comu- 1.2. Definição da amostra
nicação.
A síntese desse estudo, objeto desse paper, A amostra selecionada visou abranger um
será descrita em termos da metodologia conjunto de publicações produzidas por
adotada, definição da amostra, análise dos instituições de diferentes escopos (associa-
dados coletados das revistas da amostra, ção científica e universidade), de abrangência
resultados e pontos para reflexão. diversificada, de pelo menos dois países
diferentes e que cobrissem tanto o formato
1.1. Metodologia adotada impresso como o eletrônico. Assim, as re-
vistas selecionadas foram:
Os estudos de critérios de qualidade de (1) Revista Brasileira de Ciências da
periódicos identificados na literatura brasi- Comunicação. INTERCOM => 03 fascícu-
leira, de maneira geral, enfocam a avaliação los – 2001: v.24, no. 2; 2002: v.25, nos 1
quanto aos aspectos de forma dos periódicos e 2.
e/ou de mérito das revistas conforme suge- (2) Galáxia: revista transdisciplinar de
rido pelos próprios pares, associando-se comunicação, semiótica, cultura. Programa
pontuações e mensurações classificatórias de Pós Graduação da Pontifícia Universida-
para se chegar a tabelas de níveis de desem- de Católica de São Paulo => 03 fascículos
penho (modelo desenvolvido por Braga e – 2001: no. 2; 2002: no.4 e 2003: no. 5.
Oberhofer em 1982, posteriormente, valida- (3) Media & Jornalismo. Centro de
do por outros estudos como Castro e Ferreira, Investigação Media & Jornalismo da Univer-
1995 e Krzyzanowski e Ferreira, 1998). sidade do Minho, Portugal => 02 fascículos
Como o estudo, relatado nesse paper, não – 2002: vol.1, no. 1 e 2003: vol.2, no.2.
tem pretensão avaliativa e sim de análise da (4) Studium. Laboratório de Media e
situação atual, ou seja, o levantamento de Tecnologias de Comunicação da UNICAMP
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 453

(http://www.studium.iar.unicamp.br/) => 03 fas- fica de cada revista está apresentada de forma


cículos – 2002: nos. 10 e 11 e 2003: no. 12. diferente, o endereço completo das revistas
(5) Contracampo. Programa de Pós não aparece em três dos cinco títulos, etc..
Graduação em Comunicação da Universida- - em várias situações as revistas não
de Federal Fluminense => 03 fascículos – seguem as normas e regras que elas próprias
2000: vol.05, 2001: vol.06 e 2002: vol. 07. estabeleceram, como por exemplo, as infor-
mações sobre forma de contato com o autor
2. Análise dos dados coletados das revistas principal variam de fascículo para fascículo
da amostra ou dentro do mesmo fascículo.
- há uma adequação deficiente de pala-
A análise dos dados será apresentada vras-chave, podendo ser ocasionada pela falta
conforme as variáveis de estudo definidas na de vocabulário controlado ou tesauro na área
metodologia acima descrita, ou seja, quanto de comunicação, o que respaldaria os autores
aos aspectos de forma das revistas e tipos e editores na seleção de termos mais ade-
de conteúdo e autoria dos artigos incluídos quados, consistentes e normalizados.
nestas revistas. - inexistência de uniformidade na elabo-
ração das referências bibliográficas, que
2.1 Quanto aos aspectos de forma das constam nas instruções aos autores mas que
revistas não são monitoradas pelos editores.
Já quanto à tipologia de conteúdo e
Os aspectos formais das revistas foram autoria, foi identificada:
analisados segundo a normalização da publi- - ausência de consenso em relação à
cação periódica no todo, a normalização dos definição e caracterização do que seja, por
fascículos, e as instruções ao autor, apresen- exemplo, um artigo classificado como “iné-
tados a seguir (quadros 1 a 3). dito” para a área de comunicação e como
deve ser sua estrutura de elaboração, orga-
2.2 Quanto ao tipo de conteúdo e autoria nização e apresentação (resumo, objetivo,
metodologia, resultados entre outros).
No que tange à análise de endogenia, - ausência de lógica na organização da
quantificação e qualificação de conteúdo linha editorial entre as revistas e em alguns
foram observadas as variáveis: identificação casos, entre seus próprios fascículos. A lógica
de autoria e sua relação com tipologia de de organização das revistas, observada em
conteúdo (quadros 4 a 5). outras áreas do conhecimento, é por tipos de
documentos (artigos, resenhas, comunicados),
3. Principais resultados o que não está presente na maioria das revistas
da área de comunicação.
De maneira geral, a análise dos títulos Considerando que as normas internacio-
de periódicos sob o critério da forma como nais preconizam que a caracterização de
a revista está normalização e distribuída (do cientificidade de uma revista é medida com
desempenho), possibilitou visualizar que: base no número mínimo de artigos inéditos
- boa parte das regras e normas prescritas publicados por fascículos, bem como a diver-
em documentação da ABNT ou outras ins- sificação mínima da procedência institucional
tituições normativas internacionais não estão dos seus autores; a somatória das caracterís-
sendo observadas pelas revistas brasileiras de ticas apontadas acima não permitiu essa análise
maneira geral ou estão sendo absorvidas em na amostra (quais e quantos artigos publica-
partes e/ou de maneira diferente da conven- dos nas revistas analisadas eram inéditos e
cional em outras áreas. Por exemplo: a procedência dos autores).
maioria das revistas não utiliza a identifica-
ção cronológica corretamente, os títulos das 4. Considerações finais - pontos para
revistas apresentam divergência em diferen- reflexão
tes registros (CCN – Catálogo Coletivo
Nacional - e ISSN – International Standar- Embora tendo as restrições apresentadas,
dization Serial Number), a legenda bibliográ- o estudo feito e aqui apresentado, possibili-
454 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

2.1.1 Normalização da publicação periódica no todo (capa, lombada, sumário, legenda, ISBN,
periodicidade entre outros).

Quadro 1 - Normalização da Publicação Periódica:


(NBR6021 – Publicação periódica científica impressa – apresentação)

NORMAS QUANTO A: SITUAÇÃO DAS REVISTAS


Regras para composição das capas, lombada,
As revistas analisadas seguem pequena parcela
folha de rosto, errata, sumário, editorial, índice,
das normas definidas por esta NBR.
projeto gráfico,
Somente uma revista utiliza notações de volume e
número. As demais utilizam ou volume ou
Identificação cronológica
fascículo/número. Os demais identificadores
(ano, volumes, números, época, série, outras).
cronológicos mencionados como época, série etc.,
não são utilizados.
Nenhuma das revistas observa a norma (ou o
conteúdo está errado, ou a legenda está no local
Legenda bibliográfica errado ou o conteúdo e o local estão errados e
incompletos). Algumas têm legenda da revista no
todo, mas não legenda dos artigos.
Todos os títulos têm registro no ISSN.
Mudança de título exige alteração junto ao órgão
ISSN
regulador e isto nem sempre tem sido feito. Uma
das revistas utiliza a sigla ISBN e não ISSN.
Em apenas duas revistas aparece o endereço
completo, mas em lugares diferentes do
recomendado. Alguns títulos colocam somente
Endereço completo
endereço dos editores, outros não colocam nada,
outros colocam partes da informação em um ou
outro fascículo.
Quatro das revistas apresentam esta informação,
Periodicidade explícita
mas em distintos locais.
Apenas dois títulos comentam a existência de
Financiamento
financiamento.
Somente uma revista menciona a indexação
Indexação em bases de dados nacionais ou
na base PORTCOM/PORTDATA (Brasil),
internacionais
CENEDIC (México) e IFCA/Indicator (Canadá).
Três das revistas analisadas mantém
regularidade na periodicidade de publicação (uma
Tempo de existência das revistas e regularidade delas existe já há 25 anos, outra 3 anos
na publicação dos fascículos. e a terceira 2 anos). As demais, mantém
publicidade irregular (tendo uma delas 06 anos de
existência e a outra três).
Presença em várias bibliotecas Somente duas revistas estão inseridas no CCN,
(CCN – Catálogo Coletivo Nacional sendo que apenas uma delas tem
de Publicações Periódicas). 75% de presença em bibliotecas brasileiras.
Apenas 03 revistas incluem informações
Difusão (forma de distribuição) e formulários apropriados para assinatura
das revistas.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 455

2.1.2 Normalização dos fascículos (sumário, título abreviado, referência, publicidade, peri-
odicidade).

Quadro 2 - Normalização de Fascículos:


(NBR6022 – Artigo em publicação periódica científica impressa – apresentação)

NORMAS QUANTO A: SITUAÇÃO DAS REVISTAS


Todas as revistas apresentam sumário em
Sumário (somente português e/ou bilíngüe) português e apenas uma delas apresenta um
sumário bilíngüe (português/inglês).
Nenhuma das revistas analisadas apresentam sua
Título abreviado da revista abreviatura seguindo a normalização internacional
ou nacional (NBR6032).
Apenas uma revista apresenta as referências
Referências bibliográficas bibliográficas normalizadas segundo um padrão
conhecido.
Layout – alinhamento das colunas, diagramação Quatro das revistas analisadas tem um padrão
fácil e identidade visual. quanto ao layout de seus fascículos.
Todas apresentam encadernação ou publicação
Impressão/Publicação eletrônica eletrônica e tratamento das imagens com
qualidade.
Publicidade (se existe, se interrompe artigos, se há Apenas uma revista possui publicidade,
distinção entre conteúdo editorial e publicitário) sendo ela claramente diferenciada do conteúdo.
A maioria das revistas analisadas é nova, apenas
Periodicidade (intervalo regular de publicação,
uma delas já existe há muitos anos. Mas todas
número de fascículos por ano)
mantêm periodicidade regular.
456 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

2.1.3 Instruções ao autor (nome do autor, título, resumo, palavras-chave, endereço, filiação
entre outros)

Quadro 3 - Quanto as Instruções Oferecidas aos autores

NORMAS QUANTO A: SITUAÇÃO DAS REVISTAS


Apenas uma revista comenta algo visando
Título do artigo
padronizar a formatação (estilo de fonte).
Instruções sobre a forma de apresentação dos
Nenhum dos títulos apresenta esta instrução.
nomes de cada autor
Nenhum dos títulos apresenta esta instrução. Mas
Titulação acadêmica de cada autor três títulos mencionam a necessidade de uma
biografia resumida.
Apenas um título solicita título e vinculação
Instituição de origem do autor
acadêmica.
Departamento ou instituição que tem Nenhum dos títulos analisados traz instrução
crédito pelo trabalho quando a este quesito.
Nenhum dos títulos analisados traz instrução
Responsabilidade autoral pelo conteúdo
quando a este quesito.
Apenas um título solicita o envio de endereço,
Nome e forma de contato com autor responsável
telefone e email para contato.
Quatro revistas solicitam resumo, mas as
instruções de elaboração se restringem a sua
forma, em termos de número de linhas e
Resumo estruturado (NBR-6028) caracteres. Quanto ao idioma, duas revistas
e em diferentes idiomas. solicitam resumo trilíngue (português/
inglês/espanhol e português/inglês/francês),
uma bilíngüe (português/inglês) e a última nada
menciona.
Uma única revista indica a norma Harvard para
elaboração das referências. Outra revista
Norma para referencias
apresenta alguns modelos de referência padrão
ABNT.
Explicitação sobre critérios para seleção de Quatro dos títulos analisados possuem um
trabalhos Conselho Editorial.
Quatro revistas orientam quanto ao número de
palavras-chave a ser incluído nos trabalhos e
Orientação para criar descritores / palavras-chave também quanto ao idioma das mesmas. Mas
nenhuma delas orienta quanto ao uso de algum
vocabulário controlado ou tesauro.
Orientação para indicar financiamento relacionado Não há menção em nenhuma das revistas
ao trabalho a ser publicado analisadas.
Apenas uma revista menciona o aceite de artigos
Indicação dos idiomas aceitos para publicação
em outro idioma que não o português.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 457

2.2.1 Identificação de autoria nos artigos das revistas (afiliação do primeiro autor, resumo
estruturado, data de aceitação, data de edição, palavras-chave entre outros).

Quadro 4 - Identificação de autoria nos artigos das revistas

NORMAS QUANTO A: SITUAÇÃO DAS REVISTAS


Quatro revistas da amostra indicam a afiliação do
Afiliação do primeiro autor
primeiro autor.
Quatro revistas da amostra indicam a afiliação dos
autores, mas curiosamente, todos os fascículos
Afiliação de todos autores
analisados de três revistas da amostra continham
artigos de autoria única.
Apenas duas revistas colocam tal informação. As
Endereço do autor responsável outras três apresentam alguns artigos com
identificação outros não.
Quatro das revistas analisadas apresentam
Resumos (estruturado, em diferentes idiomas)
resumo, mas nenhum deles é estruturado.
Quatro revistas apresentam palavras chave no
Descritores (se existe no idioma do texto pelo idioma português, uma revista tem palavras chave
menos nos artigos originais, se existe em outros trilíngue (português/inglês/espanhol) e outra
idiomas) bilíngue (português/inglês). Apenas uma revista
não inclui palavras chaves.
Praticamente nenhuma revista apresenta esta
Data de recebimento pelo editor informação. Apenas em um único fascículo de um
dos títulos apareceu tal dado.
Praticamente nenhuma revista apresenta esta
Data de aceitação para publicação informação. Apenas em um único fascículo de um
dos títulos apareceu tal dado.
Data de revisão Nenhuma revista divulga esta informação.

2.2.2 Tipologia de conteúdo e de autoria (número de autores individuais, estrangeiros, número


de artigos inéditos, total de autores, total de artigos dentre outros).

Quadro 5 - Tipologia de Conteúdo e Autoria

NORMAS QUANTO A: SITUAÇÃO DAS REVISTAS


Número de artigos originais e de revisão que Três das revistas apresentam em média um artigo
apresentam colaboração de autores estrangeiros com um colaborador estrangeiro.
Três das revistas apresentam praticamente autores
Número de autores de outras instituições do país
de outras instituições.
Total de artigos
Total de autores A impossibilidade de identificar o que exatamente
Média de autores por artigo é um artigo original, uma comunicação etc. tornou
Média de artigos por fascículo esta contagem impossível.
Máximo de autores por artigo
No. de artigos originais A impossibilidade de identificar o que exatamente
No. artigos de revisão é um artigo original, uma comunicação etc. tornou
No. de artigos de atualização esta contagem impossível.
Resenhas, comunicações e notas prévias,
entrevistas, comentários (com notas e biografias),
Outros tipos de conteúdos memórias, fórum, noticiário, diálogo, projeto,
notícias, percursos, recensões, resumos, abstracts,
mesas redondas
458 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

tou o levantamento de alguns pontos básicos sobre os conceitos: artigo inédito, artigo de
e iniciais para se discutir a problemática das acompanhamento, artigo de revisão etc? Faz
revistas científicas em ciências da comuni- sentido o uso desta terminologia para a área?
cação sob duas perspectivas: Quais são os tipos de trabalhos mais ade-
A revista como um todo: quados à área?
• quais critérios seguir para a avaliação
• os parâmetros já existentes de organi-
qualitativa dos conteúdos publicados na área?
zação e apresentação de conteúdos dos ar-
Se o objetivo da pesquisa é original e válido
cientificamente? Se os procedimentos utiliza- tigos científicos (resumo, introdução,
dos e o delineamento experimental são apro- objetivo, metodologia, resultados e conclu-
priados para responder às questões propostas? são) são adequados para a área de ciências
Se os dados experimentais possuem qualidade da comunicação? Por exemplo: faz sentido
suficiente para serem interpretados dentro do a exigência de um resumo estruturado para
contexto dos objetivos? Se os resultados a área?
justificam as conclusões indicadas pelos Análises complementares ao estudo de
autores? Se os resultados e as conclusões são mérito devem ser feitas, buscando observar
relevantes para questões importantes estuda- a representatividade e nível científico do
das por outros investigadores da área? editor e do comitê editorial, a percepção dos
• as normas padronizadas pela comunidade
pesquisadores quanto ao caráter científico da
científica nacional e internacional, no que se
revista, predominância de artigos frutos de
refere ao formato de apresentação das publi-
cações periódicas não estão sendo seguidas pesquisa ou reflexão originais, exaustividade
porquê? Elas não contemplam as especificidades e atualidade nos artigos de revisão e debates,
da área de ciências da comunicação? qualidade dos textos em relação à
O conteúdo da revista: metodologia e estrutura, processo de arbitra-
• do ponto de vista da tipologia dos gem e importância da revista para o desen-
trabalhos, como alcançar consenso na área volvimento da área.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 459

Bibliografia cos brasileiros. Ciência da Informação,


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460 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 461

Banco de dados como metáfora para o


jornalismo digital de terceira geração
Suzana Barbosa1

1. Introdução se explore gêneros como a notícia, a entre-


vista, as colunas de opinião, crônicas, e a
Na terceira geração do jornalismo digi- reportagem, como também na perspectiva de
tal2 ou terceira onda do jornalismo online - se trabalhar o potencial do suporte digital para
como prefere classificar Larry Pryor3 (2002) a consolidação de outros gêneros ou híbridos
- que é caracterizada não só por operadores entre gêneros. Como exemplo, citamos a
e equipes mais sofisticados, maior integra- fotografia, o arquivo, a infografia, os mapas,
ção dos usuários na produção dos conteúdos, que podem ser pensados num sentido mais
proliferação de plataformas móveis e, sobre- amplo não mais em duas dimensões como
tudo, pela utilização de novos softwares na superfície da página impressa, mas em
capazes de habilitar poderosas formas de três dimensões, considerando o entorno
publicação e formatos de produtos, as apli- multimídia e o espaço navegável que dife-
cações para a implementação de conteúdo renciam o ciberespaço. Ademais, não custa
mais original, contextualizado e multimídia lembrar: a qualidade do conteúdo relaciona-
passam pela adoção de estruturas de bancos se diretamente com a capacidade de criação
de dados inteligentes e dinâmicos, funcionan- de novos produtos, cujos gêneros e narra-
do a partir da lógica descentralizada que rege tivas habilitem o estabelecimento de relações
as redes telemáticas, especificamente a entre os diferentes atores.
internet.
Neste contexto, cabe considerar, para tais 2. Banco de dados: nova metáfora para
aplicações, a adoção de um conceito de formas culturais
bancos de dados tal qual propõe Lev
Manovich na obra The language of new media Certamente, o status atribuído por Lev
(2001). Para ele, o banco de dados é um Manovich aos bancos de dados pode ser
complexo de armazenagem de formas cul- criticado por alguns como equivocado, fruto
turais, constituindo-se no centro do processo de uma visão que enaltece o determinismo
criativo ou na principal forma de expressão tecnológico. No entanto, a sua proposição nos
cultural da era dos computadores e podendo permite perceber outras potencialidades para
ser trabalhado a partir das possibilidades de os bancos de dados, que, até então, eram
criação de novos gêneros e narrativas. vistos apenas como uma ótima solução para
Especialmente no que concerne à produ- estruturação e estocagem de informações,
ção da informação jornalística, os bancos de permitindo a sua consulta e recuperação. Indo
dados, principalmente os chamados bancos além, Manovich vai afirmar que o banco de
de dados inteligentes e dinâmicos4, podem dados da computer media é completamente
contribuir para a geração de uma maior diferente da coleção tradicional de documen-
variedade de conteúdos, mais adaptados às tos e, juntamente com o espaço navegável,
características de um produto digital, consi- torna-se uma das formas5 que atualmente
derando os elementos que conferem podem ser encontradas na maioria das áreas
especificidades para o jornalismo, tais como: ou dos objetos da chamada nova mídia.
multimidialidade, hipertextualidade, A nova mídia – segundo definida por
personalização, interatividade, memória e Manovich - surge a partir da síntese entre
atualização contínua (Bardoel & Deuze, 2000; a computação e a tecnologia da mídia e tem
Palacios, 1999, 2002). o computador como principal instrumento
Pensamos isso não apenas quanto a se afetando todos os estágios da comunicação:
ofertar conteúdos mais contextualizados, onde aquisição, manipulação, armazenamento,
462 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

distribuição e convergência e cujo resultado de itens para rápida recuperação e que até
é a mudança de toda a cultura para formas então norteou os procedimentos de
de produção mediadas pelo computador. Os armazenamento e ordenamento de informa-
objetos da nova mídia tanto podem ser novos ções para adquirir o status de “nova forma
como os já existentes que têm sua forma cultural simbólica”, um novo modo de es-
afetada pelo uso do computador. Na migra- truturar a experiência humana. Neste senti-
ção para o ambiente do computador, ele diz, do, Manovich afirma:
a coleção de dados e o espaço navegável
incorporaram técnicas particulares para a Indeed, if after the death of God
estruturação e acesso dos dados ou informa- (Nietzche), the end of grand
ções: Narratives of Enlightenment
(Lyotard), and the arrival of the Web
So, for instance, a computer database (Tim-Berners Lee), the world appears
is quite different from a traditional to us as an endless and unstructured
collection of documents: it allows one collection of images, texts, and the
to quickly access, sort, and recognize other data records, it is only
millions of records; it can contain appropriate that we will be moved to
different media types, and it assumes model it is a database. But is also
multiple indexing of data, since each appropriate that we would want to
record besides the data itself contain develop a poetics, aesthetics, and
a number of fields with user-defined ethics of this database (Manovich,
values (Manovich, 2001: 214). 2001: 219).

Nesta acepção, o banco de dados pode É com a Internet - ela mesma um


armazenar individualmente ou a partir de ambiente para estabelecimento de diversas
diversas combinações qualquer tipo de dado formas culturais, capazes de constituir rela-
ou objeto digital, desde documentos textuais, ções entre os diversos atores e criar novas
a fotografias, clips, seqüências de áudio, convenções - que a forma de banco de dados
imagens estáticas, em movimento, ou, ainda, floresce, segundo afirma Manovich. A sua
animações, mapas, gráficos, entre outros, que parte gráfica - A World Wide Web - trans-
podem ser navegados/acessados de modos forma todo site em um tipo de banco de
variados. Ao argumentar em favor do banco dados, pois, na sua estrutura definida pela
de dados como forma cultural simbólica da linguagem de formatação HTML, uma lista
era do computador, Manovich chama aten- sequencial de elementos separados (texto,
ção para o fato de que ele representa o mundo blocos, imagens, vídeo-clipes, entre outros)
como uma coleção de itens. permite que se acrescente novos elementos
Assim, tal lógica está implícita na e links, o que faz com que os sites estejam
estruturação de boa parte dos produtos da sempre crescendo toda vez que se adiciona
nova mídia como um CD-ROM de um museu algo novo. Uma vez digitalizados, os elemen-
virtual com sua coleção de imagens para tos ou dados podem ser organizados e
serem acessadas de diferentes modos, assim indexados a partir de inúmeras possibilida-
como um web site, que apresenta uma lista des combinatórias. E isso tem relação direta
sequencial de elementos separados: blocos de com um dos seis princípios abstratos do
texto, imagens, vídeo clipes e links para hipertexto propostos por Lévy (1993): o
outros sites. Portanto, para o autor, o banco princípio da exterioridade6, fundamental para
de dados se torna o centro do processo preservar o caráter aberto da rede.
criativo do design da nova mídia, gerando De acordo com Lévy, o crescimento e
um tipo de narrativa que é construída pela diminuição de uma rede (e aqui podemos
ligação de elementos do banco de dados em considerar o próprio site enquanto micro-
uma ordem particular. rede), sua composição, alimentação e recom-
O entendimento do potencial do banco posição permanente dependem de um exte-
de dados na era do computador, portanto, vai rior indeterminado: adição de novos elemen-
além daquela noção mais básica de coleção tos, conexões com outras redes (ou conexões
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 463

com outros sites por meio dos links ou mesmo Diante disso é que consideramos ser
remetimentos a vários documentos). Tal possível pensar a internet como uma forma
princípio reforça, por outro lado, o quanto cultural maior e representativa da cibercultura,
a descentralização da produção de conteúdos em consonância com a visão empreendida por
pode funcionar como um agente ativador da Raymond Williams a respeito da televisão
rede, uma vez que assegura a sua permanen- (Williams, 1977, 1990) já que ela é parte da
te alimentação, sendo operada de maneira experiência humana e um processo social, o
contínua, em fluxo. que a torna um ambiente para estabelecimento
O que expomos acima também é expli- de práticas. Funciona, como sugere Palacios
cado por meio dos cinco princípios sistema- (2002), como um ambiente compartilhado de
tizados por Lev Manovich (2001:19-48) para comunicação, informação e ação para uma
demarcar algumas das principais diferenças multiplicidade de (sub) sistemas sociais e para
entre a antiga e a nova mídia, e que devem agentes cognitivos (humanos). Para Castells
ser considerados muito mais como tendên- (2001), a “Galáxia Internet” é um novo
cias gerais de uma cultura computadorizada entorno de comunicação, uma nova estrutura
do que como leis absolutas. social, que se está estabelecendo em todo o
Esses princípios são: - Representação planeta para a vida das pessoas, segundo sua
numérica: código digital permite trabalhar ou história, cultura e instituições (Castells, 2001:
modificar cada objeto da nova mídia auto- 305). Sendo a internet também um grande
maticamente, pois é programável; - banco de dados mais complexo, ela fornece
Modularidade: um objeto da nova mídia tem as condições para o surgimento de novas
a mesma estrutura em diferentes escalas tal formas culturais a partir do uso de bancos
qual um fractal7, o que significa que elemen- de dados inteligentes e dinâmicos - a base
tos de mídia como texto, som, imagem, estruturante para indefinidos tipos de sites.
podem estar reunidos numa única narrativa
3. Jornalismo e bancos de dados
ou documento, mas continuam mantendo suas
identidades separadas (exemplo são os sites
A utilização de bancos de dados no
que formam a WWW, pois são constituídos
jornalismo não é algo novo, pois, desde que
por diferentes elementos de mídia e cada um
as redações começaram a ser informatizadas
deles pode ser acessado separadamente ou
ainda na década de 70 nos Estados Unidos
mesmo ser modificado; - Automação: código
e em parte da Europa (no Brasil esse pro-
numérico da mídia (princípio 1) e a estrutura
cesso ocorre nos grandes jornais na década
modular de um objeto da mídia (princípio
de 80) e, logo em seguida com a incorpo-
2) permitem a automação de muitas opera- ração da Reportagem Assistida por Compu-
ções, desde a criação, à manipulação até o tador8 (RAC), passando pelo videotexto9, o
acesso da mídia; - Variabilidade: prevê que jornalismo empregou as estruturas
um objeto da mídia pode existir potencial- hierarquizadas de estocagem e ordenamento
mente em diferentes e infinitas versões (uma de informações dos bancos de dados para
fotografia, por exemplo, tanto pode ser usada adicionar maior qualidade e profundidade às
enquanto ilustração de um texto, integrar uma suas narrativas10.
galeria de fotos de tema específico, um slide Para o jornalismo digital de terceira
show e, ainda, ser empregada como uma geração, nosso interesse específico, pode-se
espécie de novo gênero, ao ser disponibilizada pensar na idéia dos bancos de dados inte-
juntamente com uma narração em áudio ligentes e dinâmicos como agentes com
associada onde o fotógrafo descreva o pro- capacidade de produzir rupturas e, até, de se
cesso de captura daquela determinada ima- constituírem como uma metáfora apropriada
gem). Ou seja, tem-se tanto uma variabili- para trazer nova luz no sentido de se superar
dade de modalidade como também de for- a metáfora do jornal impresso11 que, desde
mato; Transcodificação cultural: a os primeiros anos de experimentação do
computadorização transformou a mídia em jornalismo no suporte digital até agora,
dados do computador. Transcode quer dizer permanece sendo a mais empregada pelos
traduzir alguma coisa em outro formato. mais diferentes tipos de sites noticiosos.
464 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Mesmo que ainda se aponte a necessi- mação mais relevante proporcionada pela
dade de uso desta metáfora, sobretudo pelo internet. Por conseguinte, ele considera o
fato de garantir navegabilidade e usabilidade jornalismo de fonte aberta (cita como exem-
aos usuários, por conta da familiaridade, a plo o www.slashdot.org15) como um caso
adoção de bancos de dados inteligentes e paradigmático de um jornalismo específico
dinâmicos pode favorecer a inovação, per- sobre bases de dados e que os jornais (pre-
mitindo a exploração de novos gêneros, a ferimos denominar sites noticiosos) assenta-
oferta de conteúdo mais diverso, a disponi- dos em base de dados distinguem-se entre
bilização/apresentação das informações de os demais online por não terem edições fixas.
maneira diferenciada, mais flexível e dinâ- Isso ocorre, segundo o autor, pelo fato
mica, além da produção descentralizada - de uma edição ser apenas uma configuração
outra das características que o jornalismo possível gerada pela base de dados. Ao fazer
digital de terceira geração deve contemplar. esta afirmação, António Fidalgo estabelece
Compartilhamos, assim, da visão de a distinção entre um jornal online feito apenas
Manovich acerca do potencial do banco de em HTML - um produto único ainda que
dados como essa nova possível metáfora para recorra a templates ou modelos – e um que
a memória cultural. E, compreendendo o use bases de dados. Neste último, diz, o
jornalismo como forma singular de conhe- resultado é sempre uma determinada pesqui-
cimento e interpretação da realidade12, cuja sa dependente do conjunto de notícias
função de documentação e atualização da inseridas e da estrutura da base de dados,
memória social (Machado, 2002) é favorecida que determina a forma como as diferentes
pelo ambiente das redes, acreditamos ser notícias aparecem conjugadas na apresenta-
possível adotar essa nova metáfora para gerar ção online.
produtos mais criativos com mais chances de
enredar os usuários e conduzir o jornalismo A coerência sintáctica das notícias, or-
digital ao patamar desejado – e efetivamente ganizadas numa base de dados, não
possível - nesta sua terceira geração. se limita a uma edição, até porque esta
Trabalhos referenciais de pesquisadores estritamente não existe, mas a todas
nacionais e estrangeiros nos ajudam a enten- as notícias, presentes e passadas. Uma
der como a apropriação dos bancos de dados notícia recente remete, mediante a in-
inteligentes e dinâmicos deve ser tomada clusão dos títulos e respectivos links,
como uma decisão necessária, seja por parte para as notícias anteriores que incidam
das organizações de notícias mais tradicio- directamente ou indirectamente com
nais, ou por aquelas resultantes de fusões o assunto em questão. As regras da
entre empresas de informática, telecomuni- sintaxe aplicam-se ao todo da base de
cações, entre outras que possuem operações dados (Fidalgo, 2003:8).
digitais. No âmbito acadêmico, por outro lado,
já há experiências laboratoriais contemplan- Em sua análise, Fidalgo também aponta
do o uso de bancos de dados no intuito de para a mudança no procedimento do jorna-
indicar novos caminhos para o jornalismo lista com relação à incorporação de rotinas
digital13. de produção descentralizadas, ao acréscimo
O catedrático português António Fidalgo, ilimitado de temáticas abrangidas, à manu-
em seu artigo pioneiro Sintaxe e semântica tenção dos arquivos, pois, conforme pontua,
das notícias on-line. Para um jornalismo “o passado condiciona e determina o presen-
assente em base de dados14, acredita que a te na justa proporção em que pode ser
tecnologia das bases de dados é a recuperado”. Ou, como indica Elias Macha-
especificidade que distinguirá o jornalismo do (2000:54), na rede, a memória antes de
online do jornalismo dos meios tradicionais refletir um passado morto, apresenta parâ-
da imprensa, rádio e televisão, conferindo não metros para aumentar o coeficiente de pre-
só maior rigor, mas também maior visão no fluxo ininterrupto de circulação das
objetividade e melhor cobertura da realidade notícias. Sobre isso, faz-se importante
humana. Para Fidalgo, a simbiose entre referenciar a característica da memória con-
bancos de dados e jornalismo é a transfor- forme proposta por Palacios (1999, 2002)
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 465

como uma ruptura em relação ao uso em 4. Especulações em torno dos géneros


suportes anteriores, produzindo no jornalis-
mo digital a primeira forma de memória Um dos grandes desafios para o jorna-
múltipla, instantânea e cumulativa possibi- lismo digital é justamente o conteúdo. Na
litada pela flexibilidade combinatória a partir sua história de mais de uma década, muito
da hipertextualidade, da interatividade e da se evoluiu quanto à oferta de informações
atualização contínua, em fluxo. originais afinadas com os recursos do
Outros pesquisadores, entre os quais Tom ciberespaço e conformadas em modelos que
Koch (1991), há bem mais de uma década, buscam inovação e, sobretudo, estimular a
já antecipavam o potencial crescente das navegação e o acesso por parte dos usuários
bases de dados para o jornalismo, inclusive no sentido de consolidar a nova modalidade
em termos de se adotar regras para a escrita de jornalismo. Porém, muito do que é ofertado
das notícias nas quais os dados são exami- ainda apresenta uma forma equivalente com
nados e arranjados em formas inteligentes. suportes anteriores, sendo pouco inovador do
É claro que a concepção de bancos de dados ponto de vista de uma diversidade para se
estava mais próxima da que era oferecida tratar o conteúdo. Neste sentido, procura-se
aqui tecer algumas considerações acerca de
naquele momento por empresas comerciais
possíveis novos gêneros ou híbridos entre
com produção centralizada (e por isso Koch
gêneros para o jornalismo digital.
criticava a pouca consistência existente entre
Inicialmente, ao se falar sobre gêneros16
a multitude de bancos de dados disponível
deve-se ter em mente, como nos diz Nora
online naquele momento) e mais distante da
Mazziotti (2002), que embora eles possuam
que propõe Manovich.
elementos formadores e traços que necessa-
Mas, aqui, o importante a demarcar é riamente devem estar presentes, não por isso
justamente a evolução do conceito e mostrar devem ser considerados como categorias
como o jornalismo se beneficia das bases de restritivas e imutáveis. “Pelo contrário, são
dados nos diferentes estágios de evolução das maleáveis, dilatam-se, esticam, incorporam
tecnologias das comunicações. Ao comentar traços, transformam-se. (...) A sua maneira
sobre o uso potencial de recursos para a de operar é na tensão entre o conhecido e
informação eletrônica, Koch afirma: o inovador” (Mazziotti, 2002:206). E um dos
traços de estilo de época para os gêneros,
At least, this technology will allow the conforme aponta a pesquisadora argentina que
newsperson to place the often vague, estuda os gêneros na televisão, é a prolife-
contradictory, and circumlocutious ração e a aceleração dos empréstimos e
public statement in a context where it cruzamento entre gêneros. Tais empréstimos
can be first measured and then aparecem refletidos em suportes como a
transformed beyond the unitary level. televisão, conforme cita, a exemplo de co-
(Koch, 1991: 135). médias com traços de novela, documentários
que estão próximos da entrevista, montados
Já Stephen Quinn (2002), ao abordar o com edição de vídeo-clipe, entre outros, como
uso de ferramentas para o gerenciamento da o vídeo-clipe e a linguagem publicitária, que
informação nas redações virtuais, confirma permearam todos os discursos audiovisuais.
que os bancos de dados estão mudando o Neste sentido, podemos acrescentar que,
modo como as organizações de notícias vêm levando em conta a convergência de forma-
operando. Para Quinn, os bancos de dados tos presente no suporte digital, este constitui
têm uma importante função porque estrutu- em si mesmo um ambiente potencial para o
ram os dados que serão compartilhados e ma- entrecruzamento entre gêneros e a origem de
nipulados para produzir conhecimento muitos outros novos. Basta observar como
(Quinn, 2002: 115). Sob esse aspecto, ele a fotografia vem sendo empregada por edi-
reitera a necessidade de investimento em ções digitais de jornais como o Washington
tecnologias capazes de gerar e prover con- Post (www.washingtonpost.com), onde fotó-
teúdo único, original. grafos narram como se deu a escolha dos
466 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

ângulos das imagens – exemplo de como a ciberespaço informativo (Diaz Noci, 2002:
fotografia passa de acessório para se tornar 123). O pesquisador da Universidade do País
algo mais, um gênero - ou como a utilização Basco vê a entrevista como um gênero que
da TV na web vem originando hibridismos, se modifica, pois: pode ser usada como
tal qual nos apresenta sites como os da Reuters formato de perguntas e respostas que podem
(www.reuters.com) ou mesmo como a TV ser ouvidas e vistas; pode resultar em perfis
UOL News (www.uol.com.br), que articula multimídias e mesmo aparecendo como tex-
tratamentos diferenciados, oferecendo tanto to em si e, pode, principalmente, ter como
boletins ao vivo, mas também permitindo que protagonistas os usuários atuando como
se leia um texto e se tenha o áudio da entrevista entrevistadores ao participar de chats com
que deu origem a uma determinada notícia. personalidades, onde os jornalistas assumem
No El Mundo (www.elmundo.es), os função de intermediários, filtrando as pergun-
infográficos animados já foram incorporados tas. A infografia em três dimensões também
como um canal a mais para se apresentar um é citada por Javier Diaz Noci como um gênero
fato jornalístico e os mapas, mesmo ainda que também ganhará uma nova dimensão no
não animados, são usados como complemen- ciberespaço e alcançará grande desenvolvi-
to para as informações em portais como o mento.
Terra (www.terra.com.br). No Portal Estadão
(www.estadao.com.br), os arquivos já ganha- 5. Conclusão
ram canal exclusivo – Diário do Passado –
onde se tem uma mostra do uso potencial O que quisemos explorar neste ensaio foi
do material jornalístico anteriormente publi- a potencialidade de uma nova metáfora para
cado. Ou seja, tais exemplos iluminam o o jornalismo digital a partir do uso dos bancos
caminho e demonstram concretamente uma de dados como a forma cultural simbólica
diversidade de opções para a produção de da era do computador (Manovich, 2001).
conteúdos no jornalismo digital para além da Neste nosso exercício, intentamos’ampliar o
conformação mais básica para as informa- foco acerca do jornalismo digital nesta sua
ções como se tem visto. terceira geração ou terceira onda, com o
Javier Diaz Noci (2002) pensando os objetivo de lançar alguma luz no sentido da
gêneros jornalísticos e o texto eletrônico, exploração da diversidade para os conteúdos
afirma que o que tem ocorrido até agora é e para os formatos.
que a maioria dos jornais na internet tem Ao fazer isso, consideramos a possibili-
apenas transferido os tradicionais gêneros dade concreta para novas aplicações, saben-
presentes no impresso para o suporte digital. do que elas necessitam de investimentos para
Sobre eles, Diaz Noci confirma o potencial serem implementadas, mas, acima de tudo,
de gêneros interpretativos como a reporta- de criatividade, imaginação, para se inovar,
gem, beneficiada pela potencialidade do uso rompendo com os vícios. Assim como outros
de recursos, como som, imagens fixas e em pesquisadores, compartilhamos da idéia de
movimento, gráficos, e animações em três que o jornalismo digital tem na tecnologia
dimensões e, principalmente, pela ausência dos bancos de dados inteligentes e dinâmi-
de limites crono-espaciais - segundo ele, a cos o diferencial em relação às demais
reportagem é o gênero por excelência do modalidades.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 467

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A primeira é caracterizada pela transposição
Century. Online information, electronic da versão impressa para a internet e, a segunda,
databases and the news. New York: Praeger, mesmo mantendo a metáfora do jornal impresso,
1991. é marcada pela agregação de recursos e criação de
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fonte para os jornalistas. Salvador: Calandra, do jornalismo digital ver: Luciana Mielniczuk.
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468 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

3
Segundo ele, a terceira onda do jornalismo Knowledge management in the digital newsroom.
online começa em 2001 quando já se tem a London: Focal Press, 2002, especificamente no
tecnologia de banda larga mais bem desenvolvi- capítulo New tools for journalists (p.114-138)
da, assim como produtos jornalísticos mais dife- apresenta uma forma sofisticada da RAC/CAR:
renciados naquilo que se refere à geração de o Geographical Information Systems (GIS) ou Sis-
conteúdos que usam mais amplamente os recur- temas de Informação Geográfica, que seria a união
sos do suporte digital. In: The third wave of online da cartografia e dos bancos de dados trabalhando
journalism. Online Journalism Review, 18/abril. juntos sob a cobertura de computadores para
In: www.ojr.org/ojr/future/1019174689.php Aces- produzir mapas e acompanhar estatísticas que
so em 28/10/2003. mostram como os eventos aconteceram.
9
4
Tal denominação deriva do emprego dos Sobre o videotexto, ver Roger Fidler.
diferentes modelos, arquiteturas, softwares e tec- Mediamorphosis. Understanding new media.
nologias avançadas para a construção de bases de London: Pine Forge Press, 1997; Emy
dados que vão operar num nível ainda maior de Armañanzaz; Javier Días Noci; Koldo Meso. El
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disponibilização, apresentação e consulta da in- multimedia en la era del ciberespacio. Barcelona:
formação. As aplicações de bancos de inteligentes Ariel Comunicación, 1996; Lizy Navarro Zamora.
e dinâmicos devem garantir a estruturação de Los periódicos on line. San Luis de Potosí:
grande volume de dados (sejam documentos Editorial Universitaria Potosina, 2002.
10
textuais, imagens estáticas ou em movimento, e Sobre o uso e potencial dos bancos de dados
arquivos de áudio até simulações) com segurança, no jornalismo ver Tom Koch. Journalism for the
baixo nível de redundância e acuracidade. 21 st century. Online information, electronic
5
O banco de dados seria a primeira forma databases and the news. New York: Praeger, 1991.
11
que se encontra na nova mídia, ao passo que o Sobre o uso da metáfora do jornal im-
espaço virtual interativo em 3-D empregado em presso aplicado no jornalismo digital ver o tra-
jogos de computador, animação, e nas interfaces balho de Melinda McAdams: Inventing online
homem-computador, seria a segunda. newspaper. In: www.sentex.net/~mmcadams/
6
Os outros princípios pensados por Lévy para invent.html, publicado pela primeira vez em 1995
preservar as possibilidades de múltiplas interpre- no Interpessoal Computing and Technology: as
tações do modelo de hipertexto são: o da meta- electronic journal for the 21st century. ISSN: 1064-
morfose, o de heterogeneidade, multiplicidade de 4326, july 1995, v. 3, p. 64-90.
12
encaixe das escalas, da topologia e de mobilidade O conceito de jornalismo como forma sin-
dos centros. In: As tecnologias da inteligência. gular de conhecimento da realidade e diferenci-
Rio de Janeiro: 34, 1993. ado do conhecimento do senso comum, da arte
7
Um fractal – termo cunhado em 1975 por e da ciência está presente em Adelmo Genro Filho.
Benoit Mandelbrot para descrever um objeto ge- O segredo da pirâmide. Para uma teoria marxista
ométrico que nunca perde a sua estrutura qual- do jornalismo. Porto Alegre: Tchê, 1987. Robert
quer que seja a distância de visão - é uma forma Park, ex-jornalista e sociólogo norte-americano,
geométrica, de aspecto irregular ou fragmentado, fundador da sociologia urbana, publicou em 1940
que pode ser subdividida indefinidamente em o artigo News as a form of knowledge, no qual
partes, as quais, de certa maneira, são cópias define o jornalismo como forma de conhecimento
reduzidas do todo. A palavra fractal significa, da realidade a partir do que ele tem de diferente
sobretudo, auto-semelhante. Auto-semelhança é a e do que lhe é específico. Ele propõe a existência
simetria através das escalas. Ou seja, um objeto de uma gradação entre um “conhecimento de” uti-
possui auto-semelhança se apresenta sempre o lizado no cotidiano e um “conhecimento sobre”,
mesmo aspecto aqualquer escala que seja obser- sistemático e analítico, como o produzido pelas
vado. Troncos de árvore, nuvens, montanhas são ciências, observado que o jornalismo realiza para
objetos que podem ser representados por fractais. o público as mesmas funções que a percepção
Em 1980, Mandelbrot descobriu o primeiro fractal realiza para os indivíduos (Eduardo Meditsch,
gerado por computador. A geometria fractal que 1997; Robert Park, 1955).
13
usa softwares sofisticados produz imagens belas Uma delas é o Projeto Akademia
e interessantes, mixando arte e matemática. (www.akademia.ubi.pt), Sistemas de Informação
8
Sobre a RAC, sigla em português para CAR e Novas Formas de Jornalismo Online, da Uni-
(Computer Assisted Reporting), ver LAGE, Nilson. versidade da Beira Interior, em Covilhã, Portugal.
A reportagem: teoria e técnica de entrevistas e Trata-se de um experimento de jornalismo de fonte
pesquisa jornalística. Rio de Janeiro: Record, aberta, iniciado em setembro de 2000.
14
2001, especialmente o capítulo “Reportagem O trabalho foi apresentado no XII Encontro
Assistida por Computador” (p.153-168). Ainda Nacional dos Programas de Pós-Graduação (Compós),
relacionado ao assunto, Stephen Quinn no seu livro realizado em Recife, em setembro de 2003.
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 469

15
Podemos citar também como exemplo os apenas com outros textos pertencentes a um
Centros de Mídia Independente (http:// mesmo gênero, mas também entre textos e pú-
www.indymedia.org), com edições em vários idio- blicos (audiências), textos e produtores, produto-
mas, nas quais os usuários colaboram na produção res e audiências. Trata-se de um intercâmbio, de
do conteúdo, publicando desde textos, fotos até vídeos. uma mediação (conhecida, tacitamente aceita), que
16
Os gêneros podem ser entendidos como conta com o consenso cultural (Mazziotti,
conjuntos de convenções compartilhadas, não 2002:205).
470 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 471

Killer parrilla generalista. Producción,


programación y difusión documental
Xaime Fandiño Alonso1

I. Introducción El género Documental sería uno de los


beneficiarios en la utilización de este nuevo
La programación competitiva de la canal de difusión gracias al hipotético
televisión generalista ha asesinado algunos desarrollo de una programación más
géneros tradicionales apostando por formatos coherente y plural que ahora al parecer resulta
híbridos que conjugan modelos genéricos de imposible. Muchas piezas y series
entretenimiento: magazín, talk, game, reality etc. documentales permanecen hoy a la espera de
En concreto el género Documental ha ser programadas en el canal autonómico
sufrido, cuando no la desaparición de las gallego sin visos de encontrar en un plazo
parrillas, sí la transposición hacia horarios razonable y un hueco en una parrilla plagada
imposibles situados tras el late-night. Sólo de contenidos estandarizados por las modas
las cadenas temáticas y las públicas con y estrategias comerciales.
segundo canal conservan la capacidad de La televisión regional necesitada de
programar este género en horarios racionales contenidos relacionados con su audiencia más
que dignifiquen los contenidos propuestos y próxima se desvía de esta manera de la
el trabajo realizado por los equipos de realidad y del contacto directo con su público
creativos. objetivo así como de los principios que
Televisión de Galicia (TVG) es la única inspiraron su propia gestación. Se ignoran los
televisión pública autonómica del territorio contenidos y propuestas pergeñadas dentro
español que no dispone de segundo canal y de su ámbito de actuación para desarrollar
esto limita la posibilidad de desarrollar una formatos y productos que responden
programación documental o de contenidos miméticamente a modelos testados en gustos
específicos alejados de los killer-formatos foráneos y en los que en muchos casos la
imperantes en el modelo actual de televisión audiencia no se ve reflejada. En esta sin razón
comercial. los formatos más zafios se encumbran
En enero de 2004 la Academia Galega justificados por unas audiencias cautivas
do Audiovisual ha celebrado un seminario, cerrando los ojos a cualquier planteamiento
en el que han participado los directores de en otra dirección.
segundos canales de todas las cadenas Esta situación ha provocado un
autonómicas del estado2, con el fin de solicitar alejamiento progresivo de la cadena
la inmediata puesta en marcha de un segundo autonómica del público más joven y
canal para TVG en el que programar los comprometido4. Una audiencia potencial que
espacios de calidad que, por razones que no encuentra en la parrilla ninguna referencia
atienden a estrategias comerciales, al parecer que seduzca sus expectativas con propuestas
no encuentran hueco en las parrillas de una atractivas5. Así, el perfil de una cadena que
primera cadena autonómica entregada a una nació con un espíritu joven6, en los últimos
competencia feroz por los resultados de años se ha tornado cada vez más conservadora
audiencia y que no permite ninguna licencia atendiendo casi en exclusiva a una audiencia
en la programación de piezas alternativas o mayor y rural.
complementarias. Un segundo canal que,
según las conclusiones expresadas en el foro II. Televisión de proximidad. Batalla
de la Academia Galega do Audiovisual “…é perdida
necesaria para reforzar aun máis a autoestima
como país, e para ofrecer máis plataformas En otro sentido la centralización de la
de proxección da producción que se fai en producción informativa en San Marcos y la
Galicia”3. política orientada a no desarrollar una
472 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

verdadera red local de la TVG, ha ni tienen acceso a una cinta del producto al
proporcionado una baza importante a las no haber sido difundido éste por la cadena.
nuevas emisoras locales7 que, poco a poco Así, duermen en las estanterías más de
se van ganando la confianza de los públicos quince series documentales de entre ocho y
de su ámbito de influencia gracias a una trece capítulos cada una. Son productos
estrategia de televisión de proximidad. aletargados sin posibilidad de difusión a corto
La emisora autonómica, a pesar de plazo ya que no existe en este momento en
disponer casi desde su implantación en 1985 la emisora ninguna ventana estable que pueda
de delegaciones en las siete grandes ciudades dar cabida a este género. Si bien hasta finales
de Galicia, no llevó a cabo una estrategia de febrero se mantenía un fluctuante espacio
para reforzar estas células informativas los sábados a primeras horas de la tarde en
mediante la producción propia local y sólo donde se emitían documentales relacionados
tímidamente ha desarrollado una producción con la naturaleza y otros productos9, ese nicho
basada en pequeños espacios de desconexión no tiene viso de continuidad.
informativa. Una estrategia que contemplara El despegue del formato docu-soap10,
una apuesta orientada a desarrollar una gracias a unos buenos resultados de audiencia,
programación local producida en las propias abrió en el año 199911 una vía para incluir
delegaciones y basada en las desconexiones un espacio documental estable en la parrilla.
nutridas de programación de contenidos El tirón de audiencia de otros productos de
propios entre los que podrían destacar entre ficción como Mareas Vivas permitieron a la
otros el documental etnográfico y el reportaje, cadena arriesgar con documentales sin
habría sido determinante para la consolidación comprometer en demasía la preocupación
de una emisora autonómica más vertebrada máxima de la dirección de la cadena: el
y con posibilidad de competir hoy con la resultado de los números en la cuenta de
neonata televisión local y de proximidad que resultados de la cuota de pantalla12. Hasta el
poco a poco va marcando en los ámbitos más 2002 bien en late-night o antes del prime-time
urbanos, si no una cuota significativa de se programaron productos documentales13 con
mercado, sí un posicionamiento estratégico una cadencia bastante regular aunque truncada
y una tendencia de consumo al alza8. Una en muchas ocasiones por los compromisos
oportunidad perdida por la televisión derivados de los derechos de las
autonómica cuando aun las emisoras locales retransmisiones deportivas. Incluso el late-
eran todavía una entelequia. night de los lunes se utilizó durante un tiempo
para emitir productos alternativos. En este
III. El documental cautivo momento no existe una franja dedicada
explícitamente a la emisión de documentales
Dentro de la producción documental aunque, salpicados por la parrilla, según
propiamente dicha la cadena gallega tiene en necesidades programáticas y estrategias
este momento vampirizada la difusión de puntuales aparezcan colocados productos tales
estos contenidos. Mientras que la estrategia como series de reportajes elaborados por
de TVG en lo referente al apoyo de la enviados especiales a distintas zonas de
producción propia y contratada de conflicto internacional14 o piezas oportunistas
documentales mantiene unas pautas como la programación de una reportaje sobre
razonables, la emisión de estas piezas no sigue el terrorismo emitida en los días del atentado
el mismo ritmo. Muchas de los trabajos pasan del 11M.
años esperando un hueco en la parrilla La política de convertir la producción
provocando en la mayoría de los casos la documental en un activo de stock, algo que
obsolescencia de los productos y perdiendo es muy saludable a medio y largo plazo para
la oportunidad de ser emitidos en caliente. la cadena que dispone de esos fondos, no
Esta situación provoca que los responsables debe estar reñida con la realización de una
de las producciones y la propia emisora programación adecuada de los productos,
irradien una mala imagen ante los personajes teniendo en cuenta las características
filmados y comprometidos con el trabajo que singulares de cada serie con el fin de no
no ven nunca en emisión sus intervenciones, perder en las piezas valores tales como la
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 473

actualidad o la oportunidad. Series ha sido posible gracias a la amabilidad de


documentales como 091, Emerxentes o los entornos e interfaces de la nueva
Urbanitas entre otros15 descansan desde hace generación digital, tanto en lo referente a la
dos o más años en el limbo de los fondos utilización del equipamiento tecnológico de
de la TVG sin ser emitidos por su canal postproducción y registro, como a las rutinas
regional. de producción empleadas y a la sobria
utilización de los recursos humanos17.
III. El caso Urbanitas
IV. Medios y recursos para la producción
Desde la Facultad de Ciencias Sociales y distribución
y de la Comunicación de la Universidad de
Vigo se realizó este proyecto de investigación Si bien la difusión de productos
en colaboración con la TVG (Televisión de audiovisuales especializados tales como el
Galicia) y el vicerrectorado de investigación documental no ha sido mimada en demasía
de la Universidad de Vigo. FEUGA en nuestra comunidad, es también cierto que
(Fundación Empresa Universidad Gallega) se nos encontramos en un momento fundamental
encargó de la gestión económica del proyecto. para desarrollar nuevas y económicas
El equipo de investigación analizó propuestas gracias a la irrupción de la
distintos habitats de la comunidad gallega tecnología digital en los procesos productivos.
seleccionando una serie de modelos. Si bien En este escenario tecnológico actual se
no podemos hablar de una diversidad de tribus dibuja en Galicia una oportunidad singular
urbanas, en Galicia existen colectivos sociales para el desarrollo del sector. El Parlamento
que se prodigan apartados de los estilos de regional ha aprobado una ley del audiovisual
comportamiento estandarizado y mantienen que considera y califica esta actividad
conductas de corte alternativo alejadas del profesional integrada en el ámbito de las
denominado pensamiento único que parece industrias culturales de “sector estratégico”18.
definir esta última etapa de nuestra sociedad. Con una importante masa crítica y unos
Este proyecto se plasmó en una serie de recursos humanos cada vez más
documentales temáticos que con el título especializados y capaces en lo referente a la
genérico de Urbanitas se emitieron por el elaboración de productos audiovisuales19,
canal internacional de Televisión de Galicia podemos decir que Galicia es una región que
y que, pese a su interés social, no tuvieron presenta un knowhow nada desdeñable en lo
hueco la programación autonómica de la referente a los procesos de gestión y
cadena, como tantos otros proyectos producción de productos audiovisuales.
documentales que permanecen en el stock de Quizá, en este momento, los aspectos más
la emisora. Cuando la TVG decida programar débiles de esta industria estén referidos al
la emisión de Urbanitas muchas de las desarrollo de proyectos y su comercialización.
propuestas presentadas ya habrán quedado Con voluntad de superación, consolidación,
obsoletas.16 homologación y fortalecimiento de la
La investigación realizada aporta, gracias industria audiovisual se están desarrollando
a la utilización de fuentes de primera mano, en este sentido trabajos desde los ámbitos,
imágenes e intervenciones exclusivas e académico, institucional, profesional,
inéditas. Además, la estrategia de producción artístico, económico etc.20, con el fin de
de esta obra contribuye a asentar un nuevo elaborar estrategias correctoras para paliar las
modelo de investigación aplicada para el deficiencias estructurales del sector a través
desarrollo de proyectos relacionados con la de la realización de análisis de la situación
comunicación entre la universidad y la en donde aparezcan reflejadas las
industria audiovisual utilizando como oportunidades a la vez que se identifican las
vehículo el género documental. debilidades que condicionan las capacidades
Un diseño singular en las estrategias de objetivas inherentes al proceso de desarrollo.
producción e investigación han permitido El documental es uno de los géneros que
realizar el trabajo dentro de márgenes de saldrá beneficiado de estas iniciativas pero,
excelencia científica y competitiva. Todo esto además de tener en cuenta los aspectos
474 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

relacionados con la producción, será necesario fronteras internas o mentales confiando en


que las políticas de distribución y programación los propios productos desde la comunidad.
desde la principal ventana interior de Galicia En este sentido la TVG es el motor no sólo
sean serias, puntuales y estables con el fin de de la industria de la producción gallega, sino
fidelizar a las audiencias potenciales. también la principal depositaria de la
Para que las producciones audiovisuales confianza de todos los corazones que
puedan cruzar las fronteras físicas en un conforman el universo de esta industria
mercado tan difícil, arriesgado y competitivo cultural: creadores, gestores, técnicos,
como éste, es necesario superar antes las ejecutivos…
NOVAS TECNOLOGIAS E NOVAS LINGUAGENS 475

7
Bibliografía Sobre todo con la entrada del modelo
sindicado de Localia que oferta una programación
AA.VV. Carta de Ajuste, Revista de la competitiva tanto en el ámbito local como en la
Academia de las Ciencias y las Artes de programación que realiza en cadena.
8
Francisco Campos Freire. Director General
Televisión. Madrid 2004.
de RTVG: “Nuestros programas intentan ser un
AA.VV. El anuario de la televisión. reflejo fiel de la realidad gallega, y para ello
Gabinete de estudios de la comunicación necesitamos la colaboración activa de la gente de
(GECA). Madrid 2003. nuestra comunidad”. Fuente: AA.VV.”El anuario
AAVV. Audiovisual galego 2003. Centro de la televisión. Gabinete de estudios de la
Galego de Artes da Imaxe. Santiago de comunicación (GECA). Madrid 2002.
Compostela 2003 9
A pesca no mundo (Llagostera CPI-TVG)
Bustamante, Enrique. La televisión – Terras de Merlín (Faro-TVG) – Deep Blue
económica: financiación, estrategias y (BBC) – As viaxeiras da lúa (Ibisa–TVG)…
10
mercados. Gedisa. Barcelona 2001 Hacen uso de técnicas de producción y
realización basadas en la “modalidad de
Francés, Miquel. La producción de
observación” Francés, Miquel. La producción de
documentales en televisión en la era digital.
documentales en televisión en la era digital.
Cátedra. Madrid 2003. Cátedra. Madrid 2003. Pág.25.
11
Chunda-chunda (Costa Oeste-TVG).
12
El éxito comercial de la serie de Mareas
_______________________________ Vivas con un share máximo de 39,3 propició en
1
Universidad de Vigo. la temporada 2000-2001 la gestación de una docu-
2
TM, ETB, TVV, CS, TV3. serie que tomaba como argumento el propio rodaje
3
http://demiagalegadoaudiovisual.com página y los personajes. Con el título Vida nas Mareas
consultada el 20 de Abril de 2004. el documental se emitía los lunes antes de la serie
4
Francisco Campos Freire. Director General alcanzando un share máximo de 31,7 con lo que
de RTVG: “quizá una asignatura pendiente sea se situó como el tercer programa más visto de
la incorporación de programas dedicados a la toda la temporada. Ninguna otra serie documental
juventud donde ellos sean los protagonistas”. aparece reflejada dentro de los 25 programas más
Fuente: AA.VV. El anuario de la televisión. vistos. Fuente: AA.VV. El anuario de la televisión.
Gabinete de estudios de la comunicación (GECA). Gabinete de estudios de la comunicación (GECA)
Madrid 2002. Madrid 2002. A partir de datos TNsofres A.M.
5
La audiencia en TVG ha envejecido. En el 13
Sobre todo docu-soap tales como
reparto por edades la suma de las franjas de 45 Comediantes (TVG) – Vivir en Manhattan
a 65 años y de 65 en adelante suman un 66,2% (Universidad de Vigo-TVG).
de la audiencia de la cadena. La clase social que 14
No consideramos aquí los reportajes
consume la TVG se sitúa entre el 36,2 media- elaborados por los servicios informativos de la
mediabaja y un 32,2 baja. Fuente: AA.VV. El cadena propios del género documental. Aunque
anuario de la televisión. Gabinete de estudios de podamos decir que “existe una frontera muy
la comunicación (GECA). Madrid 2003. A partir difusa… …está más vinculado al periodismo con
de datos TNsofres A.M. un estilo poco retórico. El documental necesita
6
Programas para un público infantil o juvenil de una reflexión previa. Cuando comenzamos un
tales como el magazine A Tumba Aberta (año trabajo documental sabemos su punto de partida
1987), Xabarín (año 1995), o Chambo (2001) entre
pero desconocemos su final”. Francés, Miquel. La
otros, muy integrados en el ámbito regional, han producción de documentales en televisión en la
ido desapareciendo para dejar paso a una era digital. Cátedra. Madrid 2003. Pág.29.
programación rutinaria y conservadora que no 15
Entre otros productos documentales
arriesga en nuevos productos y que como única producidos y que no han sido emitidos por la
estrategia la producción se ha orientado casi cadena autonómica podemos destacar: O CORPO
exclusivamente a las series de ficción, que a pesar DA ALMA (13) - EMERXENTES (13) - EN
de que en algunos casos alcanzan buenas cuotas CLAVE NATURAL (6) - GALICIA DESTINO
de audiencia en la comunidad, tal y como sucedió MAR (9) - URBANITAS (8) - O MUNDO DE
en el caso de Mareas Vivas, no logran traspasar CELAVELLA (13) - AMENCER (6) -
las fronteras regionales. Todo esto en detrimento PEREGRINAXES (3) - TRES NO CAMIÑO (1)
de otros formatos como el documental o programas - UN BOSQUE DE MUSICA (1) - O QUE DIS
que estimulen la participación de audiencias más QUE DIN (1) - PUCHO BOEDO. UN CORNER
selectas, el análisis o el servicio público. NA FIN DO MUNDO (1) - 13 FERROCARRIL
476 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

(4) - O CORPIÑO (1) - TARDES DE DOMINGO becario de último año de la licenciatura de


(8) - 091 (8). Publicidad y RRPP de la misma universidad.
16 18
Es el caso de ANFIV un equipo de Ley 6/1999 de 1 de septiembre del
baloncesto de minusválidos que sube a la categoría Audiovisual de Galicia.
19
de honor. Este documental estrenado un año o La TVG nació el 25 de Julio de 1985 y
dos más tarde carece de sentido. es el motor principal de la industria audiovisual
17
La inclusión de equipamiento digital de la comunidad. En este momento hay en Galicia
prosumer en formato miniDV en la planificación dos asociaciones de productoras AGAPI y AEGA
de la producción facilitó en gran medida los que agrupan a la mayoría de las productoras
rodajes, tanto en volumen de maquinaria como profesionales.
20
en el número de personas integrantes en el equipo. Academia Galega do Audiovisual, Universidad,
La producción compartida entre la TVG Consorcio Audiovisual de Galicia, Asociaciones de
(Producción) y la Universidad de Vigo (Dirección productoras (AGAPI-AEGA), Asociación de
y realización) contó con la participación de un Guionistas, CREA, Asociación de actores.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 477

Capítulo IV

ESTÉTICA, ARTE E DESIGN


478 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 479

Apresentação
Fátima Pombo1

O território do estético pode ser a pos- No princípio do século XX, a arte reflec-
sibilidade de desenvolvimento de um conhe- te a imagem de um universo sem desculpas,
cimento de actualização poética do tempo fragmentado, isento da transcendência tute-
presente, na medida em que também fizer lar do belo. A arte seculariza-se num mundo
confluir o vasto domínio da criação artística, submetido à racionalização crescente de todas
com o apelo e a integração das particulares as actividades humanas, endurecido por
tradições culturais. Nesse território do esté- clivagens ideológicas e agitado por revolu-
tico, a arte e o design assumem a sua condição ções sociais, económicas, políticas. Os artis-
de formas de conhecimento que, em reali- tas interrogam-se sobre as implicações não
zação plena, são experiências que confron- só culturais ou estéticas da arte, mas sobre
tam o indivíduo com a condição de liber- a sua repercussão social e política. Os ar-
dade, a conseguida e a desejada. O conhe- tistas (alguns pelo menos) gritam de deses-
cimento poético, presente nas realizações pero e de revolta contra a guerra, contra a
artísticas, actualiza os conteúdos de verdade arte-ilusão, contra o belo enganador, elabo-
das obras de arte, através da forma (Adorno), rando, ao mesmo tempo, a sua teoria da arte
reflectindo sobre os problemas de sempre da e a sua obra artística. Os movimentos de
humanidade – a morte, o amor, a liberdade, vanguarda e a irrupção da arte moderna,
o ser, o existir –, propondo sucessivas res- utilizando novos materiais e procedimentos,
postas provisórias, que são condição de ensaiando novas formas, comprometendo a
visões-do-mundo (Husserl), de versões-do- arte no seu tempo, tornam a questão da arte
mundo (Goodman) para o sujeito compro- um problema da cultura, interrogando a sua
metido consigo e com o seu tempo futuro. finalidade e o seu papel na sociedade que
Como sustentava Aristóteles, a poética é mais lhe é contemporânea. O salto foi colossal e
importante do que a história, porque a his- teve força para desequilibrar a atitude do
tória relaciona-se com o que é ou o que foi; público (e da cultura académica) perante as
a poética relaciona-se com o que poderá vir coisas da arte. As experiências da “vanguar-
a ser. O conhecimento veiculado pela arte da histórica” prepararam o terreno para as
é peculiar, porque é, ao mesmo tempo, um novas vanguardas. O objectivo é fazer falar
conhecimento com implicações no plano da o mundo, em vez da alma emocionada pela
cultura comum, ao ensaiar respostas medi- imagem do mundo. A questão coloca-se entre
adoras, entre os tais problemas de sempre a não aceitação de que tudo seja arte, por
da humanidade, propondo ilhas de sentido uma ausência completa de critérios e o
e de ordem, e um conhecimento que é paradigma ontológico da natureza do que é
marcador de existência individual, quer do e não é arte. Quando Goodman substitui a
ponto de vista do criador, quer do fruidor. pergunta What is art? Por When is art?,
O cruzamento de destinos entre o plano caracterizando a natureza da arte pela pers-
dos fenómenos e o plano das ideias, entre pectiva da simbolização, assenta na premissa
o indivíduo e a sua condição de ser colec- de que não existe uma forma única de
tivo, entre o efémero e o perene... é o experiência estática, que possibilite a subs-
domínio a que se reporta a arte que, talvez, tituição de um essencialismo artístico por um
necessite de um momento de reflexão sobre essencialismo estético e na premissa de que
si própria, para que possa continuar a ser são os processos simbólicos implicados na
movida pelas interrogações do mundo e para experiência estética que caracterizam a arte.
que o mundo possa ser impregnado pela sua Construir mundos, fazer mundos é a
manifestação. proposta do pluralismo de Goodman para a
480 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

arte, ciência, filosofia, ou mesmo para a vida compreender a obra, é necessário compre-
comum. Trata-se de mundos e não do mundo; ender a poética que a ela preside. Não se
da construção no plural, da construção em trata apenas de fruir, mas de estar consciente
função de uma variedade que exige versões da fruição, não uma obra como forma sen-
e visões nem sempre compatíveis, nem sível, quer dizer, reagir aos estímulos físicos
sempre igualmente verdadeiras, povoadas por do objecto e reagir não apenas através de
sistemas simbólicos passíveis de funciona- um acordo de ordem intelectual, mas de um
rem em versões-de-mundo diferenciadas. conjunto de movimentos sinestésicos, de
A estética contemporânea não pode ser respostas emocionais, de maneira a que a
uma ciência normativa, nem partir de defi- fruição do objecto, ao complicar-se com todas
nições apriorísticas, ao pretender ser um estas respostas, não assuma a exactidão
pensamento vivo sobre as manifestações da unívoca da compreensão intelectual de um
arte. A estética renunciou a fundamentar as referente determinado e que a interpretação
possibilidades de uma actividade humana em da obra se torne, por isso, pessoal,
presumíveis estruturas imutáveis do ser e do posicionada, mutável, aberta.
espírito, de tentar uma fenomenologia con- A Estética procura repensar os ideais da
creta e compreensiva das várias atitudes modernidade e da pós-modernidade, tendo em
possíveis, das múltiplas inclinações dos conta um elemento novo – a cultura plane-
gostos e dos comportamentos pessoais para tária e globalizante –, o que impõe a neces-
encontrar uma justificação para uma série de sidade de reflectir sobre as relações da arte
fenómenos que não são definidos com uma com o mundo da comunicação interactiva,
fórmula, mas através de um discurso geral, na rede de uma cultura geral. A Estética que
que tenha em linha de conta um factor parta de um essencialismo, que se proponha
fundamental: a experiência estética é feita de encontrar normas em função de teorias gerais
atitudes pessoais, de contingências de gosto, da arte, actualmente, não tem campo de
da sucessão de estilos e critérios formativos. aplicação, correndo o risco de tornar-se um
A forma compreende-se como acto de co- pensamento de conteúdos anacrónicos, sem
municação e uma vez materializada não relação com o “espírito do tempo” e sob pena
continua a ser realidade impessoal, mas de alienar a relação da arte com a situação
configura-se como memória concreta de quem concreta das condições de possibilidade em
a criou e disponibiliza-se para as possíveis que se realiza. Pensar o comportamento dos
hipóteses interpretativas dos seus fruidores. indivíduos com as coisas, é manifestação de
O desenvolvimento da sensibilidade contem- atenção ao presente da vida no seu desen-
porânea acentuou a aspiração a um tipo de rolar-se.
obra de arte que, cada vez mais consciente Uma reflexão sobre o espiritual do design
das várias perspectivas de interpretação, se descobre como capaz de conceder esse valor
apresenta como estímulo para uma interpre- espiritual, quer a intenção do designer, quer
tação livre, orientada apenas nos seus traços o uso do artefacto criado, reforçando a
essenciais. perspectiva de que o que se faz, dá forma
A sugestão simbólica procura favorecer ao que somos e àquilo em que nos tornamos
não tanto a recepção de um significado (Victor Papanek). Por outro lado, o mundo
preciso, mas um leque de significados pos- também pode ser visto como um produto de
síveis, todos imprecisos e igualmente váli- uma civilização; é construído, projectado por
dos, conforme a capacidade interpretativa do indivíduos e, por isso, acontecem projectos
receptor. No limite extremo, temos certas conseguidos ou não conseguidos (Otl Aicher),
obras, que pela sua construção, renovam os através dos quais o indivíduo se vai trans-
seus significados, autoproliferando em pers- formando naquilo que vai sendo.
pectivas próprias e aspirando a constituir um O design, tal como a arte e a engenharia,
sucedâneo do mundo. Que concepção de obra procura desenvolver possibilidades de
têm os artistas hoje? De que modo estas interacção com a existência, quer do ponto
intenções se concretizam em modelos de vista emotivo (estético e ético), quer do
operativos e, logo, em estruturas formais? ponto de vista funcional (pragmático). A
Cada obra exprime uma poética e para prática do design distingue-se da prática
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 481

estética, pela condição de inutilidade funci- design é reforçada se, para além de quali-
onal da arte, estigma e condição do design. dades práticas/funcionais, a inovação espe-
Distingue-se também da prática da engenha- cífica do design manifestar novas propostas
ria, pela interpretação da construção da forma, estéticas, o que pressupõe esclarecimento
através do recurso a argumentos que não se acerca das relações entre a autoria, o produto
limitem à função e à tecnologia, mas sejam e a função.
portadores da poética de uma autoria, enquan- A Estética, a Arte e o Design são modos
to espaço conseguido de liberdade, a propó- de reflexão que podem colocar em relação
sito do projecto (Álvaro Siza). o indivíduo (inteligência emocional), a cul-
A reflexão sobre a origem da disciplina tura da comunidade (património, tradição,
do design, estabelece parcerias entre o pen- logos comum) e o mundo (ordem/desordem
samento que revela conteúdos pelo discurso, dinâmica), desenvolvendo elos de sentido,
pelo argumento, pelo conceito e o pensamento resultantes da aliança da experiência e do
materializado em artefactos culturais, pensamento, em ordem à criação de mais
marcadores do tempo e de conteúdos de argumentos de liberdade.
experiência, considerando as relações do
design com os seus parceiros mais directos
como o artesanato, a engenharia e a arte e _______________________________
com linhas interpretativas mais do domínio 1
Universidade de Aveiro. Coordenadora da
da ontologia, da semântica, da fenomenologia Sessão Temática de Estética, Arte e Design do
ou do estruturalismo. A natureza cultural do VI Lusocom.
482 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 483

Apresentação
Maria Teresa Cruz1

A importância crescente da relação entre resultantes dos media tradicionais, a aparen-


comunicação, arte e estética está bem expres- te instigação destes novos media à experi-
sa nos desenvolvimentos mais recentes das mentação e à expressão individual, a sua
Ciências da Comunicação e dos estudos dos vocação para ultrapassar a lógica de difusão
media, nomeadamente nos seus curricula, nas e de massa em procedimentos simultaneamen-
suas linhas de investigação e até na confi- te globalizáveis e singularizáveis, a tendên-
guração e designação das instituições que os cia para uma ficcionalização da experiência
acolhem. A injunção entre «comunicação e a partir do peso crescente do virtual e do
artes» apresenta assim uma inscrição lata da simulacro no espaço comunicacional, a
comunicação na cultura, a partir de uma plasticidade que adquirem os arquivos e os
leitura ampla das suas práticas, do mesmo materiais da cultura em geral, quando trans-
modo que a injunção «comunicação social» formados em bases de dados informacionais
tem representado a inscrição lata da comu- e, ainda, as possibilidades de interacção que
nicação no âmbito dos fenómenos sociais e oferece este novo universo comunicacional,
nesse seu primeiro grande espaço de com- em oposição à passividade de uma cultura
preensão que são as Ciências Sociais. Esta do espectáculo.
abordagem complementar não significa ne- Pode entender-se, com alguma justiça, a
nhuma secundarização das Ciências Sociais partir desta breve elencagem, que a
e Humanas no enquadramento epistemológico racionalidade comunicacional está hoje par-
das Ciências da Comunicação, e menos ainda, ticularmente marcada pela tecnologia, o
uma sua entrada forçada no campo discipli- mesmo acontecendo com as novas práticas
nar tradicional da Teoria da Arte e da Es- e artes que nela emergem, muitas vezes
tética. Trata-se, sim, de fazer ressaltar que referidas, com efeito, como «artes
a comunicação não apenas traz consigo uma tecnológicas». Mas, tal como não é uma teoria
viragem dos nossos paradigmas teóricos e da arte que rege a injunção «comunicação
uma transformação profunda dos processos e artes», não é também um determinismo
sociais, como também possibilidades criati- tecnológico que a comanda. Aliás, o campo
vas que abrem a cultura humana a caminhos da comunicação, que conhecia antes uma
que mal vislumbramos ainda nos dias de hoje. identificação forte pela natureza e funciona-
Esta visão tem-se vindo a impor em lidade tecnológica dos seus media, vê-se hoje
contraponto a um entendimento da comuni- unido, pelo contrário, a uma infinidade de
cação como um conjunto de fenómenos que outros campos e de outras actividades,
reproduziriam a racionalidade social e, em mediante o uso das novas tecnologias da
círculo, a destinariam também predominan- informação, da electrónica e da cibernética,
temente à reprodutibilidade. partilhando com eles infra-estruturas micros-
Nesta nova perspectiva, que coloca maior cópicas como o chip e implicações
atenção no sentido e potencialidade da co- macroscópicas como a globalização. São pois
municação como um conjunto de práticas as práticas, e não meramente as tecnologias,
mais aberto e, simultaneamente, propiciador que se tornam importantes na caracterização
da própria abertura da experiência, estão da condição contemporânea da comunicação.
presentes aspectos que se tornaram já quase É assim de uma especificação do agir
correntes na caracterização contemporânea da comunicacional que se trata, quando se fala
comunicação: a emergência dos novos media da injunção entre comunicação e artes. Ela
informacionais, que vieram acrescentar e exige, com efeito, procedimentos, gestos e
instabilizar produções, efeitos e instituições competências culturais novos, em torno dos
484 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

quais se organizam também novos desem- dominante e não são também externos nem
penhos e novas profissões e, ainda, novos divergentes relativamente à racionalidade
hábitos e novas formas de recepção : pro- comunicacional. A compreensão de algumas
gramar, desenhar, simular, jogar, interagir das dimensões fundamentais dos processos
etc... são dimensões da prática comunica- comunicacionais da actualidade exige, na
cional que fazem apelo, quer a competências verdade, o aprofundamento de vias de refle-
logotécnicas, quer a uma dimensão criativa xão que passam, quer pela compreensão da
do ser humano e a uma transformação da injução entre arte e técnica, indispensável para
suas formas de percepção e de sensibilidade. a compreensão do papel das mediações
O agir comunicacional torna-se assim impul- comunicacionais na produção cultural con-
sionador directo de experiências culturais temporânea, quer ainda pela injunção entre
novas, nas quais colidem e se instabilizam estética e técnica, para a compreensão da
categorias às quais o pensamento moderno mobilização e maquinação que a comunica-
havia procurado conferir autonomia e niti- ção faz da percepção e da afectividade. A
dez, como por exemplo as de arte e de técnica, efectividade destas convergências não é
que inclusivamente se oponham, de certo sequer inteiramente nova, como o mostra o
modo, entre si. O espaço do agir profundo entretecimento da cultura e dos
comunicacional e das suas novas mediações media, pelo menos desde o final do século
é hoje o lugar onde, pelo contrário, elas XIX e ao longo do século XX. Bastará para
parecem convergir. Esta convergência exige tanto referir: o advento da fotografia e do
articulações também no plano da reflexão. cinema que hoje entendemos, sem discussão,
Por um lado, a nossa concepção moderna de como fazendo simultaneamente parte do
arte e a autonomia conferida à prática ar- universo das artes e do universo da comu-
tística que lhe corresponde são estreitas para nicação ou o surgimento de um cultura e de
albergar as experiências com estes media
uma arte pop a meados do século XX,
comunicacionais. Por outro lado, uma
decorrentes de uma integração plena e re-
perspectivação tradicional da comunicação
flectida das mediações comunicacionais.
permance cega relativamente a estas injunções
Vários destes media, como o desenho, o
da comunicação com as artes e a estética,
grafismo, a fotografia, o cinema e o video,
encarando-as como uma dimensão
sendo plenamente reconhecidos como artes,
tendencialmente irracional da comunicação.
fazem também plenamente parte do universo
Um tal preconceito tem origem num ideal
comunicacional, tendo provocado um alarga-
de comunicação, de linguagem e de cultura,
mento decisivo do espaço alfabético em que
renitente em aceitar dimensões da experiên-
cia que a modernidade, contudo, vem expres- este se constitui desde a «galáxia de
sando desde há muito. Um ideal que é, em Gutenberg». Na sua plena ambivalência
si mesmo, limitador da compreensão da reconhecida de artes comunicacionias estes
comunicação nas sociedades contemporâne- media integram hoje, por sua vez, novas
as: o de sujeitos que comunicam entre si possibilidades de cinematismo, de animação,
segundo o modelo exclusivo de um uso de significação e de expresssão, conferidas
intencional, lógico e argumentativo da lin- pela mediação computacional multimedia, e
guagem, ao qual se juntam, quando muito, também isto corresponde a um alargamento
dimensões retóricas e pragmáticas da comu- do espaço da comunicação: o seu alargamen-
nicação, sujeitos esses que negoceiam entre to pela informação, que é um alargamento,
si aspectos da experiência cognitivos, polí- não apenas extensivo, mas intensivo, em
ticos, éticos e de gosto. O campo e as práticas virtude da plasticidade, acessibilidade sub-
comunicacionais são também constituídos, no jectiva e universalização que esta lhe con-
entanto, por dispositivos técnicos, por fere.
suscitações da criatividade e da expressão e, Tais possibilidades não podem deixar de
ainda, por mobilizações e formatações da transformar profundamente e conjuntamente,
percepção e da sensibilidade. quer a comunicação quer a cultura, tal como
Estas dimensões da experiência não são outrora o fizeram o alfabeto, a escrita e, ainda,
meros restos de uma dada racionalidade as diversos dispositivos da imagem.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 485

O design parece ocupar, nesta cultura dos Web Design) , os interfaces (Interface Design)
novos media, um protagonismo particular, e as interacções (Interaction Design). Dese-
unicamente comparável, talvez, àquele que nham-se igualmente as ideias e os projectos
tem pertencido à escrita na cultura da literacia, (Project Design) e, de certa forma, desenham-
sendo então necessário compreender as ra- se também já os corpos e as experiências.
zões de um tal protagonismo. O design é a disciplina que assiste hoje toda
A sua quase imposição à cultura em geral a cultura e, em especial, a cibercultura, na
está para além da procura de uma elevação tarefa de conferir um mínimo de estabilidade
estética dos seus objectos e práticas, ligan- e de tipologia (de forma) ao universo sem
do-se antes à obrigatoriedade de projectar, sentido do digital, que é, ao mesmo tempo,
construir e dar sentido a um verdadeiro novo um universo extremamente plástico, mutante
espaço cultural imposto pela comunicação e, e híbrido. A centralidade do design é pois
a de uma verdadeira nova linguagem em
sobretudo, pelas novas tecnologias da infor-
processo de constituição. Ele testemunha,
mação. Como mostram as suas novas espe-
talvez melhor do que qualquer outra prática
cialidades, tudo se desenha hoje: para além
comunicacional dos dias de hoje, o quanto
dos produtos industriais, a comunicação em as injunções entre comunicação, arte e es-
geral, ultrapassando em muito o desenho tética são centrais à racionalidade
gráfico. Desenha-se não apenas o universo comunicacional e o quanto necessitam, por
da palavra e do traço, mas também o da isso, de uma reflexão estratégica e crítica.
imagem (Image Design), desenha-se tudo o
que possa ser veiculado na forma da infor-
mação e, por isso, as especialidades do _______________________________
desenho de informação (Information Design) 1
Universidade Nova de Lisboa. Coordenadora
são hoje muito diversas: desenham-se os da Sessão Temática de Estética, Arte e Design
ambientes virtuais (Environmental Design e do II Ibérico.
486 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 487

Resultados y función de procesos de investigación


sobre intervención en esculturas del patrimonio
Antonio García Romero, Vicente Albarrán Fernández,
Rodrigo Espada Belmonte, Cayetano José Cruz García1

El grupo de investigación “Métodos y Si el estudio nos permite confirmar la


Técnicas de Reproducción y Reconstrucción existencia y localización de otros fragmentos
Escultórica y de Tratamiento de Superficie” existentes de la obra, previa reproducción de
está financiado por el Plan de Investigación los mismos, procederemos a anexionarlos a
de la Junta de Andalucía. Este grupo pertenece la escultura reproducida o, en caso de la
al departamento de Escultura e Historia de inexistencia de fragmentos, realizaríamos el
las Artes Plásticas, adscrito a la Facultad de modelado volumétrico de sus pérdidas. Si
BBAA de la Universidad de Sevilla. Dicho existieran lagunas entre estas piezas se
grupo, viene ejerciendo como desarrollo de reconstruirían siguiendo alguno de estos
su investigación: la reconstrucción de criterios:
volúmenes perdidos y el estudio de a) Bajando el nivel de superficie en las
recomposición, que nos permite determinar zonas a reconstruir;
cómo fue una obra escultórica en sus orígenes, b) Cambiando la textura con respecto a
incluidos sus tratamientos de superficie, para los fragmentos originales.
su posterior exposición en museos o espacios Una vez logrado el conjunto escultórico,
arquitectónicos. si procede, pasamos a recuperar el tratamiento
superficial de la obra, a partir de la
Las intervenciones especificadas se
documentación recopilada, para lograr una
realizan siempre sobre las reproducciones
visión retrospectiva de su estado original. Con
fidedignas de las piezas originales.
dicha actuación, el espectador puede conocer
El proceso de intervención del grupo se
la visión global de la obra sin desvirtuar lo
sintetiza en el desarrollo de tres momentos
que de original permanece en ella.
definidos:
Nuestras investigaciones han permitido
- Reproducción del estado actual de la participar en la conservación, rehabilitación
pieza y posibles componentes de la misma. e integración del Patrimonio Histórico-
- Recomposición del conjunto Artístico y Arqueológico. Se realizaron
escultórico. varias intervenciones sobre obras de museo
- Reconstrucción de los volúmenes o del paisaje arquitectónico, tales como el
perdidos, tras un estudio exhaustivo del Caballo de Porcuna (Museo Arqueológico
modelado e historia de la pieza. de Jaén), la Cabeza de Adriano (Museo
- Tratamiento de superficie (dorado, Arqueológico de Sevilla), el busto romano
ornamentación y policromía) sobre las de Catón (Museo Arqueológico de Tetuán),
reproducciones. los escudos heráldicos y leyendas, o el
Para el desarrollo de la primera fase, Caballo de Cancho Roano (Museo
realizamos moldes a base de elastómeros “in Arqueológico Provincial de Badajoz). Las
situ”, partiendo del propio original. A partir esculturas pétreas de personajes ilustres
de estos, se elaboran una serie de (Palacio de San Telmo), el Giraldillo
reproducciones en materiales específicos y (Catedral de Sevilla) y las esculturas
adecuados al mismo. ubicadas en el interior y fachada del Pabellón
Tras un importante estudio de la pieza: de Méjico (Sevilla). También se ha
entorno, hallazgo, autor e historia de la obra intervenido, desde la exposición didáctica,
y sus contemporáneas se procede a su mediante reproducciones de esculturas
reconstrucción, teniendo en cuenta los clásicas (Hebe y Torso Romano de Mérida),
criterios compositivos propios del lenguaje y cursos nacionales e internacionales que
escultórico. versaron sobre nuestra materia, entre los que
488 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

destacan los realizados el Instituto de Bellas juntas; siendo éstas fijadas desde el interior,
Artes de Tetuán (Marruecos) y la realización con resina de poliéster y fibra de vidrio. Para
de videos didácticos de diferentes procesos. evitar posibles desacoples y una perfecta
Con estos proyectos se ha participado en unión se utilizó un sistema de torniquetes y
la mejora de la difusión de importantes obras gatos.
para la activación social y turística. La excesiva altura y peso de la figura
aconsejaba el desarrollo de un sistema basado
Proceso de restitución, reconstrucción de en la confección de diferentes radios de
fragmentos perdidos y policromado de copia sujeción, dispuestos a diferente altura, a
del “Giraldillo” medida que iban siendo restituidos los
fragmentos. Estos radios, que unían el interior
Este proyecto nace como resultado de de la figura con el vástago central,
la propuesta de recuperación y conservación garantizarían la estabilidad de la pieza y
de la copia del “Giraldillo”, de la que se evitaría posibles desplazamientos.
partió para el duplicado de bronce que hoy La siguiente fase consistiría en el repaso
vemos coronando la Giralda. Dicha copia, de las juntas desde el exterior. Se trataba de
confeccionada con resina de poliéster, fue reponer material donde faltaba y obtener
fragmentada en el transcurso del proceso de planos limpios en las superficies de unión
fundición. El objetivo de la actuación de las piezas.
pasaba, por tanto, por devolver todos estos Tras la reconstrucción de la copia y el
fragmentos a su disposición original. Sin estudio de la documentación histórica de la
embargo, la deformación que habían escultura, se resolvió acometer la restitución
experimentado la mayoría de las piezas, hipotética de la policromía original, de la que
impedían su perfecto ajuste; con lo cual, el no existe documentación gráfica, aunque sí
proceso de intervención adquiría una mayor escrita. Se trataba de ofrecer una propuesta
complejidad. abierta, teniendo en cuenta las circunstancias
Por otro lado, se detectó la inexistencia que han marcado la historia de la escultura:
de algunas piezas, tales como varios dedos pérdidas de policromía y volumétricas,
de la mano izquierda y derecha, así como repolicromados, añadidos,...
diversos fragmentos de la corona y de la Para la ornamentación de los elementos
palma. añadidos en 1770, se tuvo en cuenta un
El eje central de la escultura, de hierro detallado dibujo que conserva el Archivo
galvanizado, se hallaba fragmentado. Su Catedralicio. Entonces, la escultura, muy
lamentable estado desaconsejaba su deteriorada, fue sometida a importantes
reparación, por lo que fue sustituido por otro. alteraciones tanto en su estructura como en
Esta estructura central recorría la figura desde su aspecto externo.
la cabeza hasta los pies, sobresaliendo un El proceso de restitución de los
metro por debajo de estos, para, finalmente, tratamientos de superficie se inició con el
insertarse en la bola, que sirve de base a la dorado de la figura, prácticamente en su
figura. totalidad, a excepción de las zonas destinadas
Tras la localización de las piezas que a la encarnadura. El procedimiento elegido
habían sufrido deformaciones, alterando el fue el dorado con mistión al aceite y pan
movimiento general de la figura, se diseñó de oro.
la estrategia para devolverlas a su estado El policromado de la figura se desarrolló,
original. La naturaleza del material de soporte, tras la aplicación y secado de un barniz
la resina de poliéster, permitía su maleabilidad protector para metales, que evitaría la
con la elevación de la temperatura. Así, las oxidación del dorado al entrar en contacto
distintas piezas fueron siendo sometidas a con la humedad. La policromía se desarrolló
dicho proceso, llevando un orden ascendente. conforme a la iconografía y simbología de
Se corrigió la deformación existente, los colores de la época, así como a la
obteniéndose un perfecto ajuste entre sus documentación histórica mencionada.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 489

Proceso de consolidación, recomposición y existentes y se tuvo en cuenta el movimiento


reconstrucción de fragmentos existentes y de las masas externas.
perdidos de las esculturas pétreas de la
portada del Pabellón de Méjico. Proceso de consolidación y reconstrucción de
fragmentos perdidos de las tallas del Pabellón
Con motivo de la rehabilitación del de México. (Sevilla). (1.929) (Pabellón de
Pabellón de Méjico, que tuvo lugar a Méjico, Sevilla).
comienzos de la década de los noventa, se
plantea la restauración de las figuras pétreas Con motivo de las recientes obras de
que custodian la portada principal. rehabilitación del Pabellón de México, hoy
Se trata de dos esculturas femeninas, que sede del Tercer Ciclo de la Universidad de
parecen representar dos deidades de la Sevilla, construido con ocasión de la
abundancia. Las esculturas, de piedra Exposición Iberoamericana que se celebró en
compuesta, son huecas, lo cual revela su Sevilla en 1929, se propone la restauración
confección a partir de moldes. de dos tallas en piedra.
Ambas piezas presentaban un mal estado Las esculturas representan dos figuras
de conservación, con importantes deterioros, alegóricas: el soldado castellano, conquistador
motivados, en gran medida, por la oxidación del “nuevo mundo” y el guerrero indio, que
de las estructuras metálicas internas de las habitaba la tierra “descubierta”, como
peanas y figuras. Cabe destacar entre los representación de los dos mundos
principales daños: la desestabilización de la encontrados.
estructura interna de las peanas, lo cual Las obras presentaban daños de
provocaba importantes tensiones en las considerable importancia: rotura y pérdida de
esculturas que sustentaban, poniéndolas en cabeza, rotura de las piernas a la altura de
peligro; pérdidas de volumen generales en las rodillas y sustancias adheridas a la
rostros, brazos y peanas; desconsolidación superficie, en el soldado castellano. Rotura
de fragmentos existentes, en figuras y y pérdida de cabeza y sustancias adheridas
peanas; y grietas y fisuras generalizadas. (restos de materiales propios de la
Se decidió iniciar la intervención con el construcción), en el guerrero indio.
refuerzo interior de las piezas, para la Tras el estudio de la documentación
paralización de las tensiones mencionadas. existente, de mediocre calidad, y tras una serie
Las estructuras de hierro oxidadas y en mal de operaciones encaminadas a la mejora de
estado fueron extraídas y sustituidas por las mismas, se procede a la reconstrucción
otras nuevas. Esta operación se desarrolló de las piezas perdidas. Las cabezas son
primero en las peanas y, posteriormente, en modeladas conforme a la documentación
las figuras; operación que requería un gráfica y teniendo en cuenta las características
especial cuidado. Para ello, era estilísticas propias de la escultura: proporción,
imprescindible acceder al interior de las lenguaje, estilo,... Posteriormente, se realizan
piezas, por lo que se practicó un acceso en los moldes de las mismas y se positivan en
el tabique lateral de las peanas. Tras la resina de poliéster. Tras los oportunos estudios
actuación en el interior, se intervino en el de la piedra original, se opta por una de
exterior de las piezas: reconstrucción de los similares características en cuanto a color,
fragmentos perdidos, recomposición y textura, porosidad, dureza,..., la cual será
consolidación de fragmentos existentes, finalmente tallada.
consolidación de fisuras, aplicación de una La consolidación de todos los fragmentos
película protectora hidrófuga, y la se realizó en la ubicación original de las
elaboración y aplicación de una película de esculturas, unas hornacinas situadas a ambos
temple coloreada en función de las figuras. lados de las escaleras que dan acceso a la
Como siempre, se prestó especial cuidado segunda planta. De esta manera se evitaba
en que las intervenciones no alteraran la posibles tensiones que podrían sufrir en el
lectura original de las obras, por lo que se traslado, montaje y carga. Para ello fue
acudió a las fuentes de documentación necesario un sistema de polea y una
490 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

exhaustiva sincronización en las operaciones, jinete, de las patas del caballo y de la


dado el gran peso de las piezas y el escaso relación de ambos cuerpos (jinete y caballo),
tiempo y espacio disponible. Se utilizaron nos permitieron demostrar la pertenencia de
consolidantes de piedra de dos componentes, esta basa al grupo en cuestión. A su vez,
altamente resistentes, y gavillas de acero el guerrero alanceado se ubicó en el conjunto
galvanizado, reforzadas con otros tanto por su parte inferior (para unirlo a
consolidantes, para aportar la suficiente restos que existían en la basa: mano sobre
fortaleza a las zonas fragmentadas. escudo, pierna izquierda adosada al suelo,
Previamente fueron practicadas una serie de y pie derecho), cuanto por su parte superior
perforaciones en los roturas de las piezas a para unirlos a los restos que quedaban en
consolidar. Se introdujeron las gavillas en los el jinete y el caballo.
calibrados, junto con los consolidantes y se
fueron acoplando las piezas, con ayuda de Baco de Chirivel. (Siglo II d.c.) (Museo
la grúa, hasta conseguir un perfecto ajuste. Provincial de Almería)
El hecho de tratarse de una rotura limpia (la
del soldado castellano), facilitó bastante el La escultura, de origen romano, fue
proceso, pues la pieza superior se mantenía localizada en el sitio arqueológico de Villar
ya por su propio peso. Finalmente, se del Rey, (Almería), donde se realizó una
consolidaron las cabezas, utilizándose el excavación de urgencia en 1985.
mismo sistema. Se rellenaron las grietas La obra, realizada en mármol, representa
existentes y las juntas, con una mezcla de a un dios de origen griego, al que le faltan
componentes de similares características a la los brazos pero, se pueden suponer otros
del original. atributos divinos en las manos; en la
izquierda una vara de tirso y en la derecha
Jinete desmontado y enemigo vencido (s. V
kántharos inclinados hacia la pantera.
a. de C.) (Museo Arqueológico Provincial de
Ramos, 1992.
Jaén)
La actuación sobre dicha obra consistió
en la reproducción de la misma en resina
Durante las excavaciones llevadas a cabo
tratada mediante un molde de silicona densa
entre 1975 y 1979, en El Cerrillo Blanco,
y caja de resina de poliéster.
de Porcuna (Jaén) aparecieron, entre
numerosos restos escultóricos, diferentes
Escudos e inscripciones del puente de Palmas
fragmentos pertenecientes al mencionado
de Badajoz, (s.XVI, XVII). (Museo
conjunto escultórico. Se reconstruyeron las
patas del caballo y parte del lomo, siguiendo Arqueológico Provincial de Badajoz.)
criterios de composición, movimiento y
proporción para una idea aproximativa. El siguiente trabajo, consistió en la
La recomposición se realizó partiendo de reproducción de seis piezas correspondientes
tres evidencias nuevas Negueruela, 1992: 102: a inscripciones y escudos heráldicos, cuyos
1) la existencia de un torso de guerrero al originales están depositados en el Museo
que le asoma una lanza por la espalda, junto Arqueológico Provincial de Badajoz.
a la observación de que el “Jinete Estos originales se ubicaron en su
desmontado” debió haber llevado una lanza momento en la cabecera y final del puente
en su ahuecada mano derecha, lo que de Palmas de Badajoz, se realizaron por
permitía establecer una relación lógica. 2) diferentes motivos: reconstrucción,
el análisis de una basa muy desgastada en ampliación y financiación del puente.
la que pudimos “leer” dos pezuñas traseras El puente de Palmas, según González, fue
de caballo, dos pies de guerrero y los restos construido a mediados del siglo XV, pero
de otro guerrero, caído. 3) el haber localizado según Araya y Rubio, 2003: 39, El puente,
el fragmento con la rodilla izquierda del según rezaba una inscripción, fue terminado
jinete, lo que nos daba el ángulo seguro de en el año 1596, siendo Rey Felipe II y
prolongación de esa pierna. Minuciosos Gobernador de la ciudad Diego Hurtado de
estudios de restitución de las piernas del Mendoza; aunque algunos autores mencionan
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 491

que se construyó junto con la puerta en 1460, según su dictamen, el estado de conservación
y fue destruido en una fuerte inundación en de estas era bueno para la aplicación del
1545. molde. No obstante se protegieron las mismas
Aunque desde entonces ha sufrido con un desmoldeante inocuo debido a que
numerosos daños ocasionados por las en algunas partes la piedra había perdido
repetidas crecidas del Guadiana, que ha consistencia.
obligado a su reconstrucción en diferentes Algunas piezas fueron limpiadas
ocasiones, como la del 6 de diciembre de superficialmente, por que en su superficie
1.876, acompañando estas actuaciones con habían aflorado musgos, al encontrarse
escudos e inscripciones recordatorias, como expuestas al exterior, como el caso del gran
documenta González, 1994: 205 – 213. panel de tres escudos, o el escudo de la Casa
Las piezas estuvieron colocadas en el Real.
puente hasta 1871, año en el que se sustituyó Los moldes de realizaron con silicona
el pretil de mampostería donde se hallaban, densa y caja de resina de poliéster y fibra
por una baranda metálica. Ese año, fueron de vidrio, reforzándose estas con listones de
recogidas por el Cuerpo de Ingenieros de aluminio que evitaron el arqueamiento de los
Caminos y se trasladaron al Taller de Obras moldes, sin aportar peso a estos.
Públicas. Tras 23 años de negociaciones, por Se desechó la silicona líquida para evitar
fin en 1894, se trasladaron al Museo la penetración de la misma en los poros de
Arqueológico la piedra, evitando así problemas de adhesión
Las piezas consisten en: y desgarro de los originales.
- Escudo de Badajoz, expuesto en las salas Especial rapidez y limpieza requirió el
del museo, y realizado en mármol. escudo de Badajoz expuesto en las salas del
- Gran panel en relieve, realizado en museo, trabajando molde de silicona y caja
mármol y compuesto de tres escudos: un en la tarde noche del domingo y lunes,
escudo de España, uno de Badajoz, y un dejando pieza y estancia preparadas para su
escudo de armas, de una casa desconocida. exposición.
- Escudo de la Casa Real rodeado del Los moldes de las piezas expuestas al aire
Toisón, realizado en mármol, expuesto al libre también requirieron rapidez de trabajo,
exterior. Con la corona y la cabeza del águila esta vez motivado por las inclemencias del
totalmente destruidas a pedradas en las tiempo, con la problemática añadida de los
revueltas del movimiento insurreccional del conflictos de catalización de la resina en
29 de septiembre de 1868. contacto con la humedad.
- Escudo de cinco carteles, entre ellos los Las reproducciones se hicieron fuera ya
de las Casas de los Mendoza y Solís, realizado de las estancias del Museo, en piedra
en mármol, y ubicado en los almacenes del artificial, conformada por cemento blanco y
Museo. mármol de diferentes densidades en
- Inscripción dedicada a Felipe II, perdida superficie, reforzadas en su interior por mallas
en su totalidad, y recogido su texto en metálicas.
documentos, año 1596. En cuanto a la inscripción perdida, se
- Inscripción de reconstrucción del puente construyó en su totalidad en el mismo
el 6 de Julio de 1609, realizado en mármol, material que el resto, aunque con un formato
ubicado en los almacenes. de texto actual, sin querer imitar a piezas
- Inscripción de ampliación del puente, arqueológicas, sino como referencia
en mármol, descubierto en el siglo XX, con informativa, aunque con la misma pátina que
la leyenda casi perdida, de muy difícil lectura, el resto de las piezas, para que su lectura
ubicado en los almacenes. cromática no distorsione.
La descripción y catalogación de los El tratamiento de superficie se realizó
mismos, como constata Mélida, 1926: 153 al óleo, siguiendo un criterio, no de
– 155, en la Serie Hispano-Cristiana. equiparación total al original, sino de lectura
La realización se efectuó en colaboración didáctica para el espectador, ya que esta será
con la arqueóloga y restauradora de piezas su misión en la ubicación definitiva de las
arqueológicas Fátima Marcos Fernández, reproducciones.
492 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Las obras se colocaron bajo el nivel de Se realizaron diez copias del caballo y
suelo, en unas cajas metálicas de aluminio, dos del bocado, todas ellas realizadas en
perforadas en sus laterales, con orificios de resina de poliéster, con una pátina de
conductividad del aire para evitar la imitación al bronce, siguiendo en esta los
condensación del agua, y protegidos por un pasos de oxidación del bronce, a través de
cristal blindado, que permite vislumbrarlos pinturas sintéticas especialmente tratadas y
desde la superficie. Un foco de luz blanca pigmentadas.
en cada una de las cajas, permite su
iluminación nocturna. Investigación de intervención sobre una copia
del busto romano de Adriano.
Caballo de Cancho Roano y bocado de
caballo. (Siglo V a.c.) (Museo Arqueológico En la Sala Villasís del Centro Cultural
Provincial de Badajoz). El Monte de la ciudad de Sevilla, tiene lugar
la exposición del año 2001: Retratos romanos
Como documenta Celestino, 2002: 22 – de la Bética. Con motivo de dicha muestra
35, la escultura del caballo y la cama lateral escultórica se proyecta la reconstrucción de
del bocado de un caballo, fueron encontradas fragmentos perdidos y policromado de una
en el sitio arqueológico de Cancho Roano, copia del Busto romano de Adriano, con el
junto a la localidad de Zalamea de la Serena, propósito de recuperar la visión original de
en Badajoz. la obra.
El sitio de Cancho Roano, pertenece a La muestra reunió esculturas marmóreas
un levantamiento prerromano destinado como procedentes de distintos Museos
centro religioso y de culto. Arqueológicos de Andalucía: Cádiz, Córdoba,
En el emplazamiento se hallaron
Málaga y Sevilla; del Museo Nacional, y de
numerosos objetos de cerámica, (jarros,
diversas colecciones privadas. La selección
ánforas), de bronce, (braseros, botones), dados
de retratos comprendía el período entre el
de hueso, etc.…, pero destaca especialmente
siglo I a.C. y el siglo III, por lo que permitía
la aparición de una escultura de pequeño
conocer el proceso evolutivo de la influencia
formato que representa un caballo ricamente
artística romana en la Comarca del Bajo
enjaezado, encontrado en el sector oeste.
Guadalquivir, a lo largo de dicho periodo.
Al tratarse de una pieza hallada en el
El Busto de Adriano, perteneciente al
término provincial de Badajoz, se destinó al
Museo Arqueológico de Sevilla, es situado
Museo Provincial de la Capital, donde se
entre la transición de la época adrianea y
expone hasta la fecha.
principios de la antoniniana. Se trata de una
Aprovechando una revisión de las piezas
encontradas en Cancho Roano por parte de talla en mármol pentélico, que presenta una
la restauradora de piezas arqueológicas intensa labor de trépano; con una altura de
Fátima Marcos Fernández, realizamos un 0,82 m., más 0,12 m. de pedestal. León, 2001:
molde sobre la escultura del caballo y del 306
bocado, para realizar reproducciones con Por lo que respecta a su estado de
vistas a realización de regalos oficiales por conservación, el principal deterioro lo
parte del Excmo. Ayuntamiento de Zalamea constituye, sin lugar a dudas, la pérdida del
de la Serena, (Badajoz), otorgando a la pieza hombro derecho y arranque del brazo del
un nuevo carácter de divulgación del mismo lado. Se detectan, además, pequeñas
patrimonio extremeño. pérdidas en los extremos de los bucles
Para la realización del molde se trataron anteriores y en la nariz del gorgoneion.
las piezas fijando su superficie de bronce y Esta pérdida de fragmentos alteraba
aplicando un desmoldeante inocuo sobre las considerablemente la visión original del
mismas. busto, puesto que provocaba un evidente
El molde se realizó con silicona densa desequilibrio de masas. Así pues, se procedió
y caja madre de resina de poliéster con fibra a la reconstrucción de los mismos sobre una
de vidrio, de siete piezas. copia de la obra. Se tuvieron en cuenta los
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 493

criterios habituales en estos casos, el lenguaje policromado y ornamentado. La policromía


compositivo, se analizaron y continuaron, en cumplía una función de realce del retrato en
dirección, los planos interrumpidos en las función de la iluminación propia de la época,
roturas, se consultaron obras de análogas a base de antorchas, lucernas de aceite, etc.;
características y época,... esto explica la utilización de colores fuertes.
Con esta intervención, el grupo de La muestra escultórica ofrecía la posibilidad
investigación pretendía aportar una visión de contrastar la obra original, que presentaba
fidedigna de los retratos romanos en su el deterioro propio del paso del tiempo, con
origen; los cuales eran sometidos a diferentes la copia, que mostraba su apariencia original,
tratamientos de superficie: dorado, reconstruida y policromada.
494 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografía Sevilla, Departamento de pintura. Facultad


de Bellas Artes – Universidad de Sevilla.
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Méjico, de la Exposición Iberoamericana de Tratamiento de Superficie”, Universidad de
1929”. Monografías de arte 2000 – 2001. Sevilla.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 495

La poética de la imagen en Deseando Amar de Wong Kar-Wai:


El cuerpo y el espacio como las materias del espíritu
Begõna González Cuesta1

A través de un análisis fílmico de la Pere Salabert, en un interesante libro sobre


película Deseando amar de Wong Kar-Wai, las presencias del cuerpo en la pintura a lo
pretendo adentrarme en una cuestión largo de los siglos plantea alguna cuestión
especialmente interesante con respecto a las que entronca con lo realizado en el cine de
poéticas del cine: el tratamiento del mundo Wong Kar-Wai: “Cuando a Paul Claudel le
humano interior y su expresión cinema- encandila la pintura de Vermeer de Delft,
tográfica en el trabajo con los cuerpos y los encuentra motivo a su alteración en que las
espacios. figuras del artista, pegadas “a la propia
Frente a aquellos que señalan la dificultad continuidad”, permanecen inmóviles “en la
del cine, a diferencia de otras manifestaciones ventana del pasado”. Al trascender la
artísticas, para mostrar la compleja representación – observa –, hacen “acto de
interioridad del ser humano, es necesario presencia” y nos despiertan “a la conciencia
poner de manifiesto que el cine puede de la duración” (1967: 49)2. Introduce su texto
alcanzar el alma de formas muy variadas con con dos citas que vienen muy bien al caso.
sus materiales significantes: la palabra, la Platón: “El filósofo se ocupa en separar
música, el sonido, el texto escrito y la imagen. cuanto más mejor su alma de las cosas del
En este sentido, me parece necesario cuerpo, y en eso se diferencia de los otros
detenerse, a lo largo de la historia del cine, hombres” Platón Fedón 64d-65c. Hegel:
en aquellas obras que marcan un hito en el “Mediante la belleza, esta apariencia [de los
desarrollo del lenguaje cinematográfico en objetos] se encuentra fijada como tal... El arte
cuanto que lo llevan más allá, revelando consiste en captar los rasgos momentáneos,
nuevos matices. Creo que la obra que voy fugitivos y cambiantes del mundo y su vida
a analizar es una de ellas por muchas razones, particular, para fijarlos haciéndolos
entre las que se encuentra la cuestión que duraderos” Estética (t.II). De este último lado
desarrollaré en esta comunicación, es decir, se situaría el trabajo sobre el cuerpo en
la manifestación visual de la interioridad, en Deseando amar.
un admirable tratamiento fílmico de los La historia que se cuenta en la película
cuerpos y los espacios. es la siguiente: todo se inicia en el Hong
Deseando amar pone en pie una historia Kong de los años 60. Chow Mowan es
de amor y de secretos muy interior, íntima. redactor en un periódico local; se traslada
Y sin embargo, aun siendo así, la vemos en junto con su mujer a un nuevo domicilio en
imágenes: se manifiesta en los cuerpos de un edificio donde los vecinos en su mayoría
los amantes y en los espacios que habitan, pertenecen a la comunidad de Shangai.
sin que haya una explícita mostración de sus También se muda al edificio Su Lizhen, una
relaciones. Wong Kar-Wai consigue hacer en bella mujer que vive con su marido. Ella
cine algo que pone en pie la fuerza de la trabaja como secretaria en una compañía de
imagen y de lo visual cuando se trabaja con exportaciones y su marido es representante
maestría cinematográfica sobre ello: vemos de una sociedad japonesa, por lo que tiene
lo invisible, asistimos a lo íntimo de los que ausentarse con frecuencia en viajes de
corazones en una sutil danza de cuerpos en negocios. Chow y Lizhen van conociéndose
los espacios. Lo intangible se palpa. El cine, y tratándose y también se van dando cuenta
para Wong Kar-Wai, debería ser la expresión de que sus respectivas parejas mantienen una
visual de una experiencia emocional: son relación sentimental. Ellos deben afrontar esta
palabras de Christopher Doyle, su director situación que les va acercando y, aunque
de fotografía. parece que están en un estado propicio para
496 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

el amor, como dice el título en inglés, In Interesa analizar, por tanto, en esta
the mood for love, no quieren ser “como comunicación la presencia de los espacios y
ellos” y viven así una imposible historia de de los cuerpos, poniendo de manifiesto sus
amor. implicaciones formales y de sentido. En toda
Se trata de una historia contada desde el obra artística, el trabajo con las formas es
recuerdo. En el texto citado al final del film el lugar de encuentro con los sentidos; y
– que procede de un relato corto publicado Deseando amar es una obra de arte. Obra
por Liu Yichang, escritor expatriado original que muestra al espectador y al analista un
de Shanghai- se dice que vemos el pasado gran trabajo sobre las materias y los
a través de un cristal lleno de polvo, y no contenidos, que se presentan estrechamente
lo podemos tocar. Desde esa perspectiva nos imbricados. Hasta los más pequeños detalles
hemos acercado a las vidas de Chow y de entran en juego, se conjugan en una
Su Lizhen y de su historia de amor y desamor, transmisión de sentido encarnada en todos
desde una rememoración de un tiempo sus niveles: fotografía, encuadres,
pasado, desde un intento de reconstrucción movimientos de cámara, luz, color, música,
del mismo a través de las huellas borrosas fuera de campo, ritmo, utilización de la
que han quedado de un paso físico de unos cámara lenta, montaje, raccords, atrezzo,
cuerpos por unos espacios. Y lo que narración, personajes, espacios, tiempos, etc.
permanece en esa rememoración es el propio Aquí la forma es el fondo, la escritura es
recuerdo, no tanto el tiempo real, ya pasado. el contenido.
Lo que queda y lo que se nos ofrece es la Se manifiesta así una cuestión esencial:
memoria del pasado, no centrada tanto en la fuerza estética de la obra de Wong Kar-
los hechos de la aventura de amor entre los Wai no se queda en el vacío trabajo sobre
protagonistas, como en lo que ha quedado la forma propio de cierto arte postmoderno;
grabado de ella, revisitado y estetizado por en su trabajo formal y estético está un sentido,
el recuerdo. un universo imaginario, una forma
Volvemos con los personajes a sus insustituible de comunicar y mostrar la
vivencias de un tiempo pasado pero ya desde realidad ensoñada. Su preocupación por la
el prisma o el punto de vista de la pérdida. forma va íntimamente unida a su reflexión
Estamos ante un relato de un amor imposible sobre el sentido de lo que está contando. Por
y ese incumplimiento tiñe con su sentido de ello creo que es especialmente interesante el
pérdida cada una de las vivencias, dotándolas estudio de la visualidad de la obra de este
de una intensidad muy fuerte. Será director, ya que trabajando sobre la materia,
precisamente el relato fílmico como tal el trabaja sobre lo indecible. Va más allá del
que deje constancia de las huellas físicas de discurso vacío y esteticista propio de la
ese tiempo que se ha escapado en la realidad postmodernidad y, en este sentido, me parece
pero que permanece de alguna forma en la necesario reivindicar su trabajo. El cine de
memoria. Wong Kar-Wai tiene una importantísima
Manteniendo a lo largo del film esta dimensión visual y filosófica.
concepción de algo que se nos escapa, la Aproximándonos a su obra desde la
presencia tenue, matizada, elegante, de la poética de la imagen podemos reflexionar
corporalidad y de la espacialidad hacen que, sobre la potencia generadora de realidad, de
como espectadores, asistamos a la fuerza de expresión y de pensamiento que subyace en
esa historia de amor y a la peculiar relación el trabajo con las imágenes y que hoy se está
pasional entre los protagonistas. En una desarrollando también en el cine.
historia en la que el director desea contar Rescato aquí las palabras de Santos
cómo se viven los secretos, la realidad se Zunzunegui relativas a esta cuestión:
nos hurta y a la vez se nos muestra; de la
misma manera que les sucede a los propios “Para las modernas poéticas
personajes protagonistas de la historia. Se estructurales, la “motivación” se
reconstruye antes nuestros ojos la memoria puede entender de manera alternativa.
del pasado. No se trata de un puro juego formal
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 497

sin trascendencia en el plano del pasado, con historias, con encuentros; esto
contenido de la obra, sino de una seguirá sucediendo a lo largo de todo el film.
manera de organizar el nivel de los Es frecuente que las imágenes estén tomadas
significantes que permite llevar a cabo a través de un marco de una ventana, una
una homologación precisa con el cortina,... El director contó, en entrevistas
plano del significado. La poeticidad posteriores a la película, que con ella
de un texto remite tanto a prácticas pretendía reconstruir un ambiente de su
de referencialidad interna (del que las infancia; un ambiente en el que eran
“rimas” visuales o de otro tipo ofrecen omnipresentes los cotilleos de los vecinos:
un buen ejemplo) como a la manera plantea su relato como una película sobre los
en que esa trabazón del tejido textual rumores. En ese sentido, parece poner al
contribuye a situar la significación de espectador a acechar a los personajes como
la obra. De esta manera se puede un vecino más, mirando desde detrás de las
proceder a valorar un texto en su cortinas o a través de las ventanas.
dimensión formal sin perder de vista Todo se desarrolla en espacios muy
la manera en que sus estrategias cerrados: la planificación de los encuadres
textuales reescriben los parámetros y el trabajo de dirección artística están
culturales y artísticos en los que se encaminados muy intensamente en esta
inserta”3. dirección. No debe dejarse de lado la
importancia de William Chang, colaborador
Este es el punto de vista adoptado en el de nuestro director en la tarea de configurar
análisis de este film. los espacios en sus films. Un ejemplo claro
Nos enfrentamos a una obra que presenta de utilización muy marcada de los espacios
de cara al espectador y al analista un gran cerrados puede ser la secuencia de la
trabajo sobre los contenidos y las formas, que mudanza, en la que las escenas están vistas
se muestran estrechamente imbricados: hasta a través de ventanas ovaladas, de cortinas,
los más pequeños detalles están pulidos, de quicios de puertas.
entran en juego, se conjugan en una En este sentido también hay un trabajo
transmisión de sentido encarnada en todos importante con el espacio en campo y fuera
sus niveles. Las referencias que anoto de campo. Son numerosas las escenas en las
seguidamente pueden ponerse en relación de que se encuentran fuera de campo algunos
diversos modos con esta cuestión; iremos de los personajes que intervienen en ella. Es
deteniéndonos en ciertos aspectos concretos llamativo en este sentido que apenas se
referentes al tratamiento de lo físico en muestran a las respectivas parejas, algo más
Deseando amar. ella, pero siempre brevemente, de refilón, una
Podríamos plantear como punto de partida mano en el marco de la puerta, su cuerpo
que en esta película, la presencia de los entrando en una habitación, dando
espacios y de los cuerpos es la materia sobre rápidamente la vuelta a la escalera.
la que se sustenta lo esencial de la narración Los espacios en los que se desenvuelven
fílmica. En ello reposa la encarnación de la son confusos y abigarrados, parece que muy
historia; una encarnación muy alejada de lo intencionadamente. Es curiosa la planificación
fácil y de los recursos que hubiera explotado desde el principio, sin planos de referencia,
un cine convencional. La importancia de esta con saltos de raccord...., muy claramente
materia se manifiesta en todos los niveles visibles en la secuencia citada en la que se
del trabajo fílmico. Veamos algunos ejemplos. nos cuenta como Chow y Su Lizhen hacen
Son abundantes las escenas que se inician la mudanza para instalarse en el mismo
con planos sobre los objetos de la casa, de edificio. Esta cuestión referente al modo de
los espacios en los que se desenvuelven los mostrar los espacios, está en clara relación
protagonistas: lámparas, cuadros, ventanas, con la ambigüedad; es otra forma de mostrar
espejos, paredes... En el inicio, la película la confusión, las idas y venidas, los cruces
se abre con unas imágenes de los lugares en de los personajes exteriormente pero también
los que se van a conocer los protagonistas, en su fuero interno. Podemos así apreciar
situándonos ya sobre una casa habitada, con cómo los distintos niveles de significación
498 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

se superponen y son generados y trabajados Camboya, con lo que nos saca del mundo
desde distintos niveles en la construcción de la intimidad al mundo común de la
fílmica. sociedad, vemos a Chow en unos espacios
Hay espacios que se repiten: la escalera, mucho más abiertos, en el templo de Angkor
la reja. Y también se repiten las situaciones Vat, cumpliendo la leyenda china que dice
que se dan en esos lugares, especialmente que si queremos que no se pierdan nuestros
los encuentros entre los protagonistas. Con secretos hemos de acercarnos a un árbol y
ello podríamos poner en relación el motivo contarlos allí, en uno de sus agujeros; él,
de las coincidencias, reflejado en el film en dando un sentido más ritual, cuenta su historia
diferentes planos: parejas que viajan, parejas a las piedras del templo. A través de unos
que se relacionan, el hecho de que también planos muy lentos, va cerrándose la narración;
surja el amor entre ellos, los regalos ... Este y a los espectadores nos va sacando poco
último motivo es utilizado para mostrar el a poco de la situación de intensidad emocional
paulatino descubrimiento de la infidelidad que y recolocándonos en el mundo. En esta
sufren. secuencia también tiene una especial
Y yendo a los detalles, también hay importancia la música melancólica que
muchos motivos de atrezzo que aparecen una subraya el tono de la escena; en ella están
y otra vez: relojes, ventiladores, cortinas, presentes algunas cuestiones clave como el
marcos, escaleras. tema de la memoria y el futuro, el tema de
No puede dejarse de lado la relevancia la dimensión más amplia que tienen los actos
que tiene el trabajo con los colores en la humanos.
representación de los lugares y los cuerpos. Pero no son sólo los espacios los que
El color dota de gran fuerza a las imágenes llenan la imagen del film sino que los cuerpos
de este film. de los personajes están omnipresentes en esta
La historia está ambientada en los años obra.
60 y es llamativo el trabajo de reconstrucción Resaltan por ejemplo las escenas en
del aspecto de ese tiempo. También puede cámara lenta de los cruces de los
resultar expresivo desde el punto de vista protagonistas, en una coreografía apoyada
estético: decoración, vestuario, aire de otra muy explícita y sugerentemente por medio
época (cercana pero ya con cargas emotivas de la música.
y estéticas de muy diversa índole), etc. La Deseando amar es una historia de
situación de la historia en esos años también soledades que se cruzan y de abandonos que
es importante en el sentido de situar los están como trasfondo. En una entrevista, el
sucesos en un momento en que los director se refiere a esta cuestión:
convencionalismos sociales eran muy
marcados y condicionaron fuertemente la “Mi gusto por la coreografía es el
relación entre los protagonistas. resultado de una confrontación con la
Son originales y muy trabajados los vida y de una experiencia del cine,
movimientos de cámara, como por ejemplo arte mudo en su origen y que no ha
en la escena en la que por primera vez salen cambiado fundamentalmente, puesto
a cenar juntos los protagonistas. Entran en que muestra ante todo a los seres en
campo sentados a la mesa en un movimiento movimiento y nos ofrece tiempo para
de cámara perpendicular y que surge desde fijar sus posturas. Las películas de
detrás de ellos. Bresson produjeron, con toda
El ambiente, el aire está presente como seguridad, un gran impacto estético
tal en las imágenes de la película. La sobre mí: un arte de la vigilancia y
presencia del humo del tabaco, por ejemplo, del acecho. En su cine, los actores son
marcando la densidad de los espacios, equivalentes a las piedras, los árboles
reforzada por los encuadres cerrados y la o los objetos. Su trabajo se sitúa al
estrechez de los lugares. lado de los elementos, del borrado
La escena final contrasta fuertemente con progresivo de su estatus, de sus
todo lo que hemos visto a lo largo del film; connotaciones, para poder reescribir
tras presentarnos la visita de De Gaulle a por debajo”4.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 499

Y plantea también lo siguiente sobre la Se trata de una historia de amor de gran


utilización de la cámara lenta: carga emocional en la que apenas vemos
ningún roce físico entre los protagonistas. De
“Todo en la película se expresa con esa manera, la escasa relación de cercanía
el cuerpo, por el movimiento de los entre sus cuerpos cobra gran intensidad. En
actores. Había detalles que quería el montaje final se descartaron escenas más
mostrar. El ralentí no expresa la explícitas de relación física entre ellos que
acción, sino el entorno. Como en las sí se habían rodado. Tiene un fuerte valor
oficinas del periódico a las que acude expresivo esta omisión, dotando de gran carga
Maggie Cheung. Era para capturar un emocional a la relación precisamente a través
cierto espacio, un determinado de la ausencia.
ambiente”5. Resulta llamativa la elegancia de los
protagonistas, en consonancia con la sutileza
Su Lizhen utiliza durante casi todo el film de la historia que se está contando. Los
el mismo vestido en cuanto a la hechura, un movimientos de la cámara acompañan en
qipao, y sólo se producen cambios en la tela peculiares encuadres ese movimiento de los
y los colores. Todo ello tiene unas evidentes cuerpos y resaltan esa elegancia y esa belleza.
finalidades estéticas, pero también se presenta Decíamos anteriormente que esta historia
como un recurso visual que le sirve al director está relatada desde la memoria; memoria
para marcar los saltos temporales y los como algo que nos lleva a mirar el pasado
cambios de situaciones. Asimismo, en a través de una ventana llena de polvo... Y
palabras de Wong Kar-Wai: sin embargo, en la última escena se nos
muestra al protagonista contando su secreto
“Quería expresar el cambio a través a las piedras, llenas de tiempo y de pasado,
de lo inmutable. La película intenta para que allí permanezca. Lo que queda al
repetir muchas cosas. La música se margen de las vivencias del sujeto. Esas
repite. Algunos espacios también: la piedras son el lugar de realización de la
oficina y el pasillo son siempre los utopía, la posibilidad de anclar en algún lugar
mismos. El cambio se expresa a través del tiempo y del espacio los secretos y los
de cosas menores, como los vestidos, recuerdos de lo ya vivido y conseguir así que
mientras la relación entre ambos va no mueran para siempre. Su discurso de fondo
evolucionando”6. habla de la lucha por atrapar, por habitar el
tiempo: una obsesión que constituye la idea
Son frecuentes los encuadres en los que nuclear de todo el cine de Wong Kar-Wai.
aparecen los personajes de espaldas, así como Isabel Coixet, refiriéndose a esta escena final
los expresivos encuadres bajos y cortados de de la película, ha planteado que a su entender,
los cuerpos. La fragmentación de los cuerpos muy pocos cineastas han utilizado con tanta
en su representación es algo muy presente elocuencia un agujero en un muro de piedra.
en esta película. En este sentido resulta Nuestro protagonista quiere dejar allí toda
interesante la reflexión sobre la representación su historia, quiere, mediante ese simulacro,
del cuerpo como fragmentación que plantea depositar en un espacio su tiempo vivido.
Vicente Sánchez-Biosca en su libro Una Había ido recogiendo restos físicos de su
cultura de la fragmentación. En él desarrolla historia de amor, como las zapatillas de Su
algunas modalidades de representación del Lizhen que se lleva a Singapur; ahora va más
cuerpo de una manera segmentada en la lejos, desarrollando todas las potencialidades
cultura audiovisual contemporánea. Sin que tiene el encarnar en un lugar un recuerdo.
embargo en el caso de la obra de Won Kar- Decía en una entrevista Wong Kar-Wai:
Wai la utilización de este modo de “Para mí, todas las historias empiezan en una
representarlo iría por unos derroteros muy habitación, siempre hay una habitación con
distintos a los casos aducidos en la obra alguien sentado en la cama, fumando”7.
citada. Frente a un uso terrorífico o gore, No hemos de olvidar que todas estas
aquí estaríamos ante un trabajo estético y con cuestiones Won Kar-Wai no se las plantea
una repercusión más bien antropológica. como un claro a priori que ha de poner en
500 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

imágenes; él concibe el rodaje de sus películas y que confía como pocos en el poder de las
como un proceso, un largo proceso en el que imágenes. Un cineasta cuya divisa
se van poniendo en pie las cuestiones y su irrenunciable es: “Filmar los lugares, fijar su
tratamiento, en una concepción de la creación memoria”.
artística como el lugar de encuentro con el Termino con unas declaraciones del
conocimiento y la recreación de lo real. Y director en el Festival de cine de Cannes:
es especialmente en su trabajo creativo con
las imágenes, en su poética de la imagen “A los actores les había dicho que
puesta en pie en su obra, donde se manifiesta no iba a ser un film hablado, verbal;
la grandeza del trabajo fílmico de nuestro que ellos iban a expresarse no sólo
autor. a través de las palabras sino, sobre
Como plantea Carlos F. Heredero en su todo, a través del cuerpo, de los
obra La herida del tiempo. El cine de Wong pequeños gestos, de las miradas; sólo
Kar-wai 8 , estamos ante un cineasta podrían expresarse a través de su
radicalmente ajeno a toda tentación discursiva cuerpo”9.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 501

Bibliografía _______________________________
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Carlos Fernández Heredero. Op. Cit., p. 233.
6
la fragmentación. Valencia, Filmoteca de la Carlos Fernández Heredero. Op. Cit.. p. 231.
7
Carlos Fernández Heredero. Op. Cit., p. 234.
Generalitat Valenciana, 1995. 8
Carlos Fernández Heredero. Op. Cit., p. 45.
Zunzunegui, Santos. La mirada cercana. 9
Entrevista incluida en la edición en DVD de
(Microanálisis fílmico). Barcelona, Paidós, la película, realizada en Cannes durante el 53 Festival
1996. internacional de cine el 21 de mayo de 2000.
502 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 503

Dibujar la forma volumétrica, matérica y espacial mediante


el uso del elemento de comunicación visual:
El plano. Experiencias didácticas innovadoras para diseño industrial
Cayetano José Cruz García1

Una de las mayores dificultades de la alumnos: la expresión volumétrica y espacial


enseñanza de la materia de Expresión (sobre todo cuando interviene el uso del
Artística, para su didáctica en las Escuelas plano), y completo dicho contenido con la
Universitarias de Diseño Industrial españolas, expresión matérica del objeto de
es el escaso tiempo y continuidad que se representación. La mencionada metodología
ofrece a esta materia; por lo que la exigencia viene amparada y completada por el programa
y el acierto metodológico de su experiencia de la asignatura que imparto, y que pretende
son fundamentales para un óptimo dar a conocer el lenguaje desde los elementos
aprendizaje, posterior evolución, y futuras que lo configuran y su sintaxis, haciendo
aplicaciones. La expresión dinámica del especial hincapié en la representación desde
lenguaje visual y estético son un referente el plano. La materia es anual y como en la
importante, sobretodo cuando está siendo el presentación os desgloso, aparece dividido en
protagonista de los tiempos actuales. tres grandes bloques:
Para la gran mayoría de los alumnos de
primer curso universitario, es complejo B. T. I.:
reflejar la expresión volumétrica de los El lenguaje estético. Conceptos para
objetos. Esta dificultad podría tener diversas su aprendizaje y uso
explicaciones: La escasa dedicación desde las B. T. II.:
enseñanzas previas; la falta de acierto en su Destrezas y procesos procedimentales
didáctica (y por lo tanto los malos modos B. T. III.:
aprendidos); o la falta de profesionalidad de Creatividad artística
enseñanzas anteriores a la educación
secundaria (impartida por docentes de Acostumbrados en mayor medida a un
primaria no especializados). aprendizaje de la geometría plana y a las
Al menos, en las Escuelas Universitarias aplicaciones desarrolladas desde el diseño
de Formación del Profesorado españolas gráfico, se ha obviado en enseñanzas
enviamos a un segundo plano el aprendizaje preuniversitarias la capacidad de representar
del lenguaje y la comunicación visual, el volumen de los objetos, tan solo en los
eludiendo el actual protagonismo de nuestro bachilleratos se imprime valor a esta
fundamental lenguaje de comunicación. De enseñanza, limitándola exclusivamente a los
modo que los alumnos formados en la sistemas de represtación, y no al lenguaje
enseñanza primaria no ejercen con el debido perceptivo y expresivo desde los elementos
acierto una docencia idónea, incluso, en que lo configuran. Así, cuando un iniciado
muchos casos, las materias sirven de plantea, espontáneamente, la recreación
relajación o se repiten labores de mimetismo. espacial de un volumen, utiliza erróneamente
Las dificultades en la Enseñanza referentes propios de la representación plana,
Secundaria ya vienen casi marcadas, y la como por ejemplo la simetría o el silueteado.
comunicación Plástica y Visual está relegada Conforme a la idea que define Menchén,
a ser una optativa, por lo cual, la dificultad 2002: 50, la percepción es un proceso de
posterior de su enseñanza preuniversitaria y relación activa con el mundo, cuyo proceso
universitaria es importante, ya que no solo tratamos de ejercitar para el desarrollo de la
se enseña sobre desconocimientos, sino sobre expresión creativa e incidir en un lenguaje
conocimientos erróneos. que podríamos denominar como perceptivo.
En esta comunicación, señalo cual es una Dicho autor también entiende que la
de las principales dificultades de nuestros educación debe ser creativa y que en ese
504 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

proceso es necesario desaprender para volver


a aprender, proceso complejo durante nuestra
metodología y que tratamos de fomentar
desde el desarrollo cognitivo.

aliciente, y seremos capaces de desarrollar


al máximo todas las posibilidades expresivas
que nos ofrezca cualquier herramienta, gracias
a nuestros conocimientos lingüísticos y de
representación previos.
No es fácil encontrar actualmente objetos
Lo explicado dificulta enormemente el de diseño industrial que identifiquen el
aprendizaje y evolución expresiva, ya que se localismo o la propia personalidad del artista.
trata de reeducar, rectificar malos modos. Por ¿Quizá porque se olvida el concepto inicial
eso, la metodología que desarrollo durante del término dibujo, diseño, design,…? ¿Es
el curso, pretende desde el primer momento el conocimiento, en muchos casos,
salvar dicho escollo, y la solución la obtuve, principalmente conceptual y poco
gratamente, mediante la enseñanza de los procedimental? También es necesario
recursos necesarios para expresar la forma desarrollar nuestra capacidad perceptiva y
volumétrica desde el elemento PLANO, desde saber dar uso a cada uno de los elementos
la cognición y las leyes descriptivas de la de expresión para la representación, la
forma y el espacio, haciendo un paralelo con comunicación, y el desarrollo creativo de
el elemento LÍNEA, elemento más cercano identidad.
y aplicado por todos. Para que sea más ilustrativo y se pueda
Partiendo de este punto, insisto en que comprender en pocas líneas en que consiste
es fundamental aprender los recursos de cada y que respuestas da la propuesta educativa
uno de los elementos del lenguaje y su vinculada al lenguaje del PLANO, identifico
interacción desde una sintaxis compositiva, de forma precisa, excesivamente normalizada,
al igual que el descubrimiento del entorno que factores debiéramos tener en cuenta,
a través de la experiencia estética. También visibles durante la exposición pública, a través
todas aquellas leyes que, libres en un principio de diferente material gráfico realizado por
de los sistemas de representación aplicables, diversos alumnos de primer curso, con sus
nos permitan explicarlo de forma directa, errores y aciertos:
rápida y personal. Uno de los objetivos es - Atención perceptiva. Una persona
la agilidad y versatilidad de nuestra expresión comienza a dibujar en cuanto analiza y conoce
para la aplicación consecutiva y la continua el objeto de representación y el entorno donde
evolución de nuestras ideas, fundamento para quiere representarlo. Por lo tanto, es
el Diseño Industrial y el conjunto de las fundamental indagar desde los sentidos para,
Enseñanzas partícipes de la Comunicación a posteriori, elegir cual es la planificación
Estética. Posteriormente,…, la herramienta más acertada en nuestra expresión:
definitiva para la concreción formal, será otro Valiéndonos de todas aquellas leyes
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 505

perceptivas, no desde el conocimiento de la los objetos para poder representarlos.


existencia de las mismas, sino desde el Identificar lo cóncavo-convexo, la arista
conocimiento de su lenguaje, haciendo uso cortante-roma, lo vertical-horizontal, lo
de las leyes de la forma (simetría – asimetría, curvo-recto, el lleno-vacío, las direcciones
cercamiento, continuidad,…) y recursos de dentro-fuera o entre objetos. Entre tanta
la especialidad que nos permitan establecer característica es importante señalar e insistir
la escena (ley de borde inferior del cuadro, en que las simetrías no favorecen. Todo
superposición,…) trazado plano que recuerde a una simetría
provoca un reflejo perceptivo que hace
referencia a lo plano, además ocasiona
continuas redundancias que densifican la
expresión. Basándonos en muchas de las
apreciaciones que conocemos, cimentadas
en la percepción y la relación entre las
partes del todo, podríamos catalogar
muchas circunstancias que debiéramos tener
en cuenta a la hora de abordar con éxito
- Expresar datos de la tercera una representación de síntesis plana, como
dimensión desde dentro. El contorno es la que comenta Arnheim, 1991: 259, en
nuestro enemigo. Cuando representamos cuanto a la convexidad y la concavidad y
formas que viven de la geometría no hay su relación figura-fondo. Junto a ésta
distorsiones, pero una forma orgánica o no apreciación hemos experimentado otras,
reconocible que aparece contorneada se como no aislar unas formas de otras.
desvincula de su entorno espacial, y por Siempre debe existir una relación de
lo tanto limita la expresión volumétrica al continuidad entre partes, al menos de un
plano o el relieve. Deberemos, por lo tanto, mismo objeto.
reflejar todos aquellos datos que también La intención didáctica de esta
hablen de la tercera dimensión, dibujando experiencia no tiene como objetivo valerse
formas interiores, y dejando solo en el de la síntesis de la luz expresada con el
contorno los rasgos fundamentales que plano, sino que aborda la materialización
definan nuestra visión frontal; así, de la forma desde un concepto
relacionaremos unos términos con otros, de constructivista. Cuando percibamos el
forma que cada plano pertenezca a
objeto debemos alejar de nuestro
diferentes estadios de la escena o del
pensamiento que está siendo visto y que
volumen de los objetos representados,
la luz ejerce sobre él (en principio vamos
utilizando planos abiertos, que describan
a eliminar todas aquellas leyes espaciales
contornos, pero que también los destruyan
mientras definen formas internas. relacionadas con la luz). Deberemos actuar
como una persona ciega ante el
reconocimiento de una forma, y tratar de
representar todos aquellos datos formales
que nos permitan decir cómo es. La
imposibilidad de hacer únicamente un
recortable de nuestro objeto, nos dirigirá,
mediante el uso correcto del lenguaje
perceptivo, a identificar la forma, el espacio
e incluso la materia de los mismos, y que
otros sepan reconocer lo representado. Si
nosotros sabemos dar las pautas correctas
(como en todo dibujo) el espectador
- Atender al ¿cómo se hace? Direcciones completará e interpretará nuestra
y trazados. Comprender cual es la forma de información.
506 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

del predominio de lo visual frente a lo táctil,


la imagen fotográfica y las representaciones
de la luz. Así y todo, en cuando fija su
atención da la solución acertada. El alumno
durante su experiencia didáctica desarrollará
la capacidad abstractiva para dar solución a
este tipo de representaciones, también para
otras menos más o menos habituales como
por ejemplo el sistema diédrico. Nuestra
experiencia debe enseñarnos a dominar su uso
como lenguaje, no nos interesan conocedores
de los hechos perceptivos, sino sabedores de
- Aplicando nuestros recursos mediante los recursos para su aplicación.
la contraposición expresiva podremos
destacar la diferenciación materia y forma:
No solo lograremos expresar características
formales como cóncavo, convexo, arista
roma, etc., sino también la propia materialidad
de los mismos: Mayor o menor transparencia,
lo líquido, sólido, metal, materia blanda o
dura, cristal, pesado y ligero,… La
contraposición de los recursos expresivos en
la aplicación de diferentes objetos o partes
de objetos, nos permite crear éstas
diferenciaciones a través del hecho cognitivo.
También el enfrentamiento entre la
expresión de lo orgánico e inorgánico Como ya mencionamos en las primeras
permitirá informar sobre la materia, líneas de la comunicación esta metodología
estableciendo comparaciones entre distintos plantea recoger unos resultados formulados
objetos. por los objetivos de la materia, y los
educandos avanzaron rápidamente en la
consecución de los mismos: El conocimiento
adquirido permitió a los alumnos reconocer
la capacidad de descripción espacial de un
volumen; y dar respuestas a posteriores
ejercicios de aplicación mediante otros
elementos del lenguaje, como el caso del
color, donde fue exitosa, sobre todo cuando
interaccionaban varios elementos. Al tiempo,
todas estas experiencias, han permitido
desarrollar la capacidad abstractiva del
alumno para dar respuesta a presentes o
futuras dificultades, como la ejercitación en
Debemos desarrollar la capacidad el sistema diédrico (parejo en algunas
comunicadora perceptiva mediante el soluciones) o la resolución de problemas
análisis de nuestra experiencia estética, hasta desde el análisis para la síntesis. Dicha
el punto que consigamos que el espectador síntesis será una herramienta de conocimiento
complete aquella información, tal y como muy importante para resolver problemáticas
nosotros queramos que la interprete, para lo posteriores hacia el desarrollo y solución de
que debemos dar las correctas indicaciones. las ideas.
Este lenguaje, en primera instancia, resulta Otro de los beneficios que conlleva esta
complicado para el espectador, que no está experiencia es la posibilidad de aplicarlos en
habituado a este tipo de represtaciones, fruto otras herramientas comunicadoras, como
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 507

programas de diseño gráfico, pensados para aplicando el de todos los elementos del
las dos dimensiones. Los alumnos lenguaje visual en singular y en plural.
descubrieron que el conocimiento de los
recursos expresivos les permitía elaborar
soluciones desconocidas hasta ahora. Es
importante reseñar que todos los ejercicios
se han realizado con alumnos de primer
curso 2002-2003 y el 2003-2004, durante
el primer cuatrimestre, y que lo aprendido
inicia a gran número de ellos, para marcar
un futuro objetivo, descubrir la propia
personalidad expresiva; los recursos
linguísticos ya se conocen (conociendo la
literatura, podremos expresar nuestra propia
identidad).
Nuestra percepción háptica y metodología
podrán igualmente hacer aportaciones en el
lenguaje y expresión de la forma para
invidentes, desde las experiencias que
Lowenfeld inició con alumnos ciegos, y que
Bordes, 2003: 594, relaciona con el dibujo También, dicho elemento expresivo indica
de memoria que Catterson-Smith proponía la viabilidad de recrear animaciones de
realizar con los ojos cerrados. imágenes provenientes de los programas de
Por las razones descritas en primera diseño gráfico, y que no usan esquemas de
estancia, el plano es el elemento de choque los sistemas de representación. El resultado
para dar el salto hacia el conocimiento obtenido no será de difícil elaboración, y
volumétrico, amparado en previos ejercicios resultará impactante y atrayente por
con la línea, pero el conociendo o sabiduría aprovechar conocimientos propios del
posterior avanza en poseer todos los recursos lenguaje del diseño. Por lo tanto, estamos
expresivos válidos para elaborar lo que hablando de un elemento literario de gran
queramos, con independencia de la valor expresivo para la comunicación
herramienta y el soporte, conociendo y tridimensional, en la actualidad.
508 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografía Menchén Bellón, F.. Descubrir la


creatividad. Desaprender para volver a
Arnheim, Rudolf. Arte y Percepción aprender. Madrid: pirámide (Grupo Anaya),
Visual/. Barcelona, Alianza, 1991. 2002.
Gómez Molina, J. J., Cabezas, L. y
Bordes J./ El Manual de Dibujo: Estrategias
de su enseñanza en el siglo XX. Madrid, _______________________________
1
Cátedra, 2003. Universidad de Extremadura, España.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 509

Diseño><Design
Eva Mª Domínguez Gómez1

1 - Introducción pidiendo que renunciemos a nuestra identidad


en pos de una globalización desorbitada o
Aunque el título de esta comunicación es que por el contrario lleva a desatar una fuerte
mínimo encierra un amplio significado, ya necesidad de diferenciación, despertando
que con él se ha querido resumir parte del sentimientos nacionalistas e incluso
sentir actual sobre los momentos de cambio sentimientos religiosos exacerbados, llevando
hacia la globalización que se nos viene, tema a algunas culturas a la sin razón para romper
que recorre diferentes foros de debate, pues con el control globalizador.
este asunto afecta y envuelve el proceso de Creemos necesario un paréntesis reflexivo
evolución y desarrollo de cualquier sociedad, en este camino hacia lo global para no
por lo que la globalización se ha convertido perdernos en él, pero ante la imposibilidad
en tema obligado de análisis y discusión, de agrupar todos los aspectos que lo
tanto en los foros políticos y empresariales constituyen nos centraremos en esta ocasión
como en el ámbito académico.2 en los aspectos culturales y comunicacionales
Con estas palabras “Diseño><Design” se del Diseño, uno de los factores que configuran
ha querido sintetizar la convivencia de lo local dicho panorama.
y lo global en un utópico equilibrio de
horizontalidad, aprovechando la diferencia 2 - Cultura y Globalización
lingüística de un mismo concepto que además
es el tema vertebral de nuestro discurso. No es fácil aclarar conceptos cuando el
Es obvio que este camino inminente hacia concepto se está fraguando en el momento
la globalización no solo afecta a aspectos presente y su configuración fluye entre hechos
económicos y empresariales, también, otros contemporáneos. Existen múltiples interpreta-
factores constituyentes de nuestra sociedad ciones del concepto “globalización”, todas
sucumben ante él, como lo social, lo ellas enmarcadas dentro de parámetros
espiritual, lo cultural, lo comunicacional, etc. ideológicos y políticos, unos más o menos
El Diseño 3 no está exento de estos rígidos, otros más o menos eclécticos,4 pero
acontecimientos incluso podemos decir que no son estas interpretaciones a las que nos
forma parte de ellos y es actor de los mismos, vamos a referir, aunque sus influencias no
ya que si entendemos el diseño como un se pueden eludir, dada la transversalidad del
proceso generador de cultura merece la pena tema.
reflexionar sobre cómo influye a la hora de Nuestra intención es centrar el discurso
configurar esta nueva sociedad, donde toman en el aspecto cultural de la globalización y
relevancia las de los países desarrollados, dentro de él distinguir el carácter
inmersas en un proceso acelerado e inevitable comunicacional del Diseño en su más amplio
de globalización condicionado por procesos espectro, ya que son conceptos estrechamente
tecnológicos y económicos. Esto nos lleva relacionados hasta tal punto que, según
a pensar que las sociedades actuales corren Leonor Arfuch:
el riesgo de perder la identidad propia y las
imágenes que hasta ahora la definieron. …ese triunfo de la comunicación
Esta comunicación pretende reflexionar parece ser también el del diseño:
sobre cómo el diseño, que ha tenido siempre desde el carácter gráfico de la
la tarea de identificar, destacar, distinguir y arquitectura hasta el diseño ambien-
diferenciar, ahora, en algunos casos, se vuelve tal, desde la clásica señalización
contra sí y nos unifica, masifica, nos aliena urbana hasta el advertising, desde la
510 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

proliferación corporativa hasta las muchos lugares en el presente, a


superficies y redes mediáticas, acatar la identidad que, recluyéndolo
parecería que ningún objeto, por en un campo de concentración del que
insignificante que sea, pudiera es imposible escapar, le imponen la
escapar a la compulsión del diseño.5 lengua, la nación, la iglesia, las
costumbres, etcétera, del medio en que
Máxime cuando las superautopistas de nació. En este sentido, la
la información se extienden a lo largo y ancho globalización debe ser bienvenida
de nuestro planeta permitiendo la difusión porque amplía de manera notable el
del imaginario social a unas velocidades sin horizonte de la libertad individua.7
precedentes. Estos nuevos soportes de
información, acentuados por el incremento Por el contrario posicionamientos
e internacionalización de medios tradicionales totalmente opuestos dicen de la globalización
como la televisión, generan un nuevo modo que constituye un fenómeno extremadamente
de vida global, que transciende los soportes amplio y complejo que sin duda representa
mediáticos y las fronteras pasando a formar una amenaza para la identidad y la
parte de la cultura, la moda, las costumbres, diversidad cultural8. Independientemente del
la música, la gastronomía; creando nuevas posicionamiento que adoptemos ante el hecho
formas y haceres que irrumpen en la identidad globalizador, lo que está claro es que este
de grupos definidos como estados, regiones, ha generado nuevos actores y factores que
pueblos, empresas, partidos, etc., generando interactúan con una gran libertad y velocidad,
contradicción y en algunos casos confusión. muy diferentes a los que hasta ahora venían
Ejemplos de situaciones de este tipo los configurando los entornos culturales de los
encontramos fácilmente, por ejemplo la estados, las regiones, los pueblos, las
Navidad, la cual se celebra en Japón aunque empresas, las personas, etc.
menos del uno por ciento de la población Cada una de estas culturas son las formas
es cristiana (Naisbitt y Aburdene, 1990), al materiales y espirituales con las que los
mismo tiempo que millones de personas en individuos que forman un grupo, conviven
occidente abrazan alguna forma de y se comunican, que a su vez es generadora
orientalismo como refugio espiritual. Las de códigos, símbolos e imágenes con los que
tiendas de ropa Benetton se extienden por esta será transmitida a las generaciones
todo el mundo y pocos son los pueblos donde siguientes. En el actual proceso de
la cultura de los jeans no se ha impuesto6. implantación de una cultura, independien-
Encontraremos posicionamientos muy temente cual sea, influyen numerosos factores
variados en torno al tema de la globalización constitutivos; uno de ellos es el Diseño, que
cultural, tanto detractores como defensores a través de su método proyectual, compendio
polemizan en cuanto a una situación que se entre técnica y estética, construye mundos,
vuelve más compleja y variable a cada imágenes, sistemas, realidades, en definitiva
segundo. Mario Vargas Llosa, uno de los nuevas formas de habitar, que es lo mismo
defensores de la globalización cultural nos que decir que, configura el macrouniverso
dice: material en donde se desarrollan y
evolucionan las culturas en las que los seres
... una de las grandes ventajas de la humanos nos desarrollamos como actores
globalización, es que ella extiende de sociales.
manera radical las posibilidades de Es el Diseño quién como pocas otras
que cada ciudadano de este planeta disciplinas, conjuga equilibradamente
interconectado – la patria de todos imaginación y razón, riesgo y rigor, arrebato
– construya su propia identidad y cálculo; surge del encuentro entre la cultura
cultural, de acuerdo a sus preferencias y la industria, los dos grandes pilares que
y motivaciones íntimas y mediante lo sustentan 9. Se puede decir que en el
acciones voluntariamente decididas. contexto cultural de una sociedad coexisten
Pues, ahora, ya no está obligado, dos posturas de abordar el proyecto de
como en el pasado y todavía en Diseño:
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 511

- La primera, proyectar a partir de este revelar aspectos irreconhecíveis do


contexto cultural que consiste en la absorción, mundo contemporâneo, e servir de
interpretación y apropiación de las ideas y guia para um futuro mais humano.
valores que componen este ambiente, seguida (…) o designer assume um papel de
de su abstracción y transposición en el destaque, como elemento de
concepto, la forma y la función del objeto intermediação entre o ser humano,
de diseño en que se materializará una cultura. sua cultura e sua tecnologia.11
- La segunda, a partir de su inserción en
el contexto cultural que consiste en su Tal vez demasiada responsabilidad para
interacción con la sociedad, la posibilidad de algunos profesionales del diseño, donde la
comunicación, entendimiento y aceptación de interdisciplinareidad y los límites imprecisos
un objeto de diseño por parte de los de esta disciplina hacen de este campo
individuos. Y, a partir de ahí, la posibilidad profesional un terreno sin ley, no obstante
de proponer una transformación en los valores este no es el tema del que tratamos hoy.
de estos individuos, reformulando su cultura Retomando el tema que nos ocupa,
y su vida. En palabras de Bomfim: añadiremos que una de las extensiones que
distingue al hombre de los otros sistemas
…design é uma atividade que biológicos es su facultad de comunicación,
configura objetos de uso e sistemas esto es, la posibilidad que tiene de actuar
de informação e, como tal, incorpora para que otros individuos u organismos,
parte dos valores culturais que o situados en otra época o lugar, puedan
cerca, ou seja, a maioria dos objetos participar de sus
de nosso meio são antes de mais nada, experiencias.
a materialização dos ideais e das Parte de este rol
incoerências de nossa sociedade e de comunicativo está
suas manifestações culturais, assim en gran medida
como, por outro lado, anúncio de reservado al
novos caminhos. (…) o Design é uma diseño, ya que el
práxis que confirma ou questiona a diseño crea
cultura de uma determinada sociedade productos que son
(…) o Design de uma comunidade interpretados en
expressa as contradições desta cuanto adaptan y
comunidade e será tão perfeito ou tão representan unos
imperfeito quanto ela.10 valores culturales,
consumidos en la
3 - Diseño y Comunicación en la era de medida en que
la Globalización permiten a un
i n d i v i d u o
Definida la amplitud de las relaciones expresar sus
entre diseño y cultura, se aprecia la gran intereses, sus
responsabilidad que está implícita en la estilos de vida o
actividad proyectiva, donde subrayaríamos el adscribirse a
papel del profesional de diseño en la determinados
formación y crítica cultural de una sociedad, espacios sociales y además son agentes
incluso atribuyéndole, nuevamente según transmisores y soporte de comunicación de
Bomfim, una capacidad visionaria: acontecimientos y hechos históricos; nos
hablan de diferentes culturas con identidades
A função primordial de artistas e concretas configuradas en entornos, espacios
designers (…) é a de vigiar a fronteira y lugares determinados. Este genera con el
cultural (…) esses profissionais têm paso del tiempo el imaginario de nuestro
cultivado sensibilidades e capacidades hacer diario, que es a su vez, la resultante
expressivas que lhes permite antecipar directa o indirecta del contexto cultural que
e interpretar padrões culturais, nos rodea. El contexto, antes citado, es cada
512 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

vez más complejo y polifacético ya que la No obstante, el Diseño, sigue siendo el


sociedad posmoderna intenta sobrevivir a la encargado de la búsqueda de identidad de las
crisis de identidad, a las imágenes mediáticas, cosas, el que debe comunicar a través de su
a la mitología de los media, del cine y de configuración la diferencia del objeto diseñado
la publicidad, a la democratización de la respecto de los de su misma categoría,
cultura sobre el dominio de la resaltándolo, acentuando valores, cargándolo
industrialización y al multiculturalismo.12 de sentido, personalizándolo y actuando
Dentro de esta nueva forma de entender coherentemente dentro del entorno cultural en
el mundo está implícita la nueva forma de el que se desarrolla. Esta actitud de identidad
relacionarse con él, de donde extraemos el fue muy extendida en el sector empresarial
concepto de “interculturalidad”, entendiendo desde 1945, donde el diseño pasa a ser una
por este termino que no es simplemente el profesión y una disciplina.15 Hoy esa búsqueda
contacto entre culturas que antes estaban de identidad es más compleja debido a la gran
separadas, sino que obliga a cuestionarse proliferación de identidades de todos los
muchos de nuestros valores y resituar nuestra géneros y a su difusión visual en los nuevos
propia cultura hacia una cultura global medios, según Bassat, una marca sin
contrapuesta a la confrontación y personalidad es una marca anónima, con muy
colonización de otras culturas diferentes y pocas posibilidades de sobrevivir en el
cercanas que, hasta hace poco, nos eran mercado16, aunque alcanzar dicha personalidad
lejanas.13 He aquí un nuevo reto para el no es tarea fácil en los momentos actuales
Diseño, pues él es quién nos facilitará estas de cambio, transición y aceleración en un
nuevas relaciones con el mundo, el que mundo cada vez mas global que genera gran
materializará las formas y las imágenes que contaminación comunicacional en el campo
lo configurarán o las que ya lo están visual, produciendo caos y desasosiego en la
maduración de los nuevos imaginarios
configurando. La interculturalidad nos viene
colectivos. Si observamos nuestro entorno la
a exigir nuevas metas para el proyecto, pues
perdida de identidad es evidente, tanto en las
dentro de esta dimensión global, a los
empresas, en los productos, en los lugares.
productos se les exige el mantenimiento de
Si paseamos por una calle de una gran ciudad
su identidad en un contexto local concreto
encontraremos todo aquello que podríamos
por lo que el diseñador deberá reinterpretar,
encontrar en otra gran ciudad de otro
en clave local los grandes fenómenos
continente, las mismas marcas, los mismos
globales, así como también desarrollar
coches, las mismas tiendas, los mismos rótulos,
aspectos locales susceptibles de alcanzar el
sin apenas notas de identidad del país o la
interés global. Es lo que Nederven ha definido región en la que nos encontramos, en palabras
como “glocalización” 14 , esto es pensar de Leonor Arfuch podríamos decir que:
globalmente y actuar localmente. ¿Es esto lo
que realmente esta ocurriendo?. Podemos en estas ciudades es quizás donde
encontrar casos en los que en mayor o menor puede apreciarse con mayor
medida sea esta la forma de hacer pero son contundencia el fenómeno, tan
tan intensas las interrelaciones de lo global mentado, de la globalización. Uno de
y lo local, debido a los grandes flujos de sus aspectos remite a nuestra escena
comunicación, que a medida que aumenta las precedente, la globalización de la
relaciones multiculturales el proceso de economía, que nos lleva a un
diseño se transforma más complejo, donde supuesto mercado “universal”, sin
valores culturales van y vienen, se entrecruzan que estos signifique obviamente un
e intercambian generando nuevos imaginarios reparto equitativo de cargas y
globales sin identidad concreta que se afincan beneficios entre los países; el otro
rápidamente ocupando un lugar que no le aspecto involucra la sociedad de la
corresponde, desalojando a otros que comunicación, cuyo imperio sin
desaparecerán y compitiendo con otros tantos límites, aun antes de la invención
imaginarios globales muy similares que “satelital” y la proliferación de las
resultan difíciles de diferenciar. redes, ya había sido anunciado.17
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 513

En este camino hacia la mundialización, social que se sitúe dentro de una dinámica
no se puede dudar, las nuevas tecnologías comunicativa.
y formas de proyectar han tenido mucho que
ver. Jordi Pericot apuntaba en su 4 - A modo de conclusión
intervención en el congreso Renovar la
tradición:

La aparición de las nuevas tecnologías


ha creado unas expectativas parecidas
a las vividas por la sociedad del siglo
XVIII con la aparición de las nuevas
formas de producción industrial. Al
igual que la revolución industrial, las
actuales tecnologías, no sólo supone
la creación de una gran cantidad de Teniendo en cuenta que los objetos y las
nuevas herramientas para facilitar el imágenes como tales configuran los sistemas
trabajo y satisfacer nuevas perceptivos del orden social y se presentan
necesidades, sino también la como fenómenos lógicos a una situación
aportación de un completísimo método cultural, deberíamos considerarlos más
de producción y planificación que está atentamente. Algunas empresas ya se han
cambiando significativamente el dado cuenta de que dotar de una imagen
comportamiento social.18 global a sus productos nos les beneficia y
buscan en el Diseño la identidad de sus
objetos, personalizándolos e incluso
retrocediendo en el tiempo en busca de una
identidad que les identificó en su momento,
para mejorar la comunicación con un público
que busca consumir imágenes que les
diferencien respecto al resto. Esa apreciación
de carácter meramente económica o
comercial debería trasladarse al sentir
general, para evitar ser meros duplicadores
Este paisaje postindustrial, que se de clichés globalizadores y faltos de
configura cada vez más informatizado y identidad, que nos llevan a una
globalizado, es una poderosa herramienta de comunicación de la indistinción.
transformación de la realidad y configurador
de nuevas realidades, en las que el Diseño Es hora de que el diseño piense en
se replantear dentro de un marco flexible, el potencial que ofrece el “juego”
lleno de incertidumbres e inestabilidades, por local/global y proyectar intervenciones
lo que debe abrirse nuevos caminos a la adecuadas al a valorización del las
consecución de metas colectivas para culturas periféricas, ya sea a través
convertirse en una estrategia de de mecanismos de transferencia de
comunicación social y cultural, capaz de escenarios, o desde la primera línea
aportar nuevas formas de interpretación del de la lucha por la preservación de la
mundo en consecuencia con el mundo identidades.20
tecnológico que se configura. Las
revoluciones tecnológicas, por las que el No queremos descargar toda la
hombre viene pasando, intensifican y crean responsabilidad de los hechos acontecidos sobre
nuevas necesidades. 19 Desde esta el Diseño por lo que queremos concluir esta
perspectiva, debemos apostar por un Diseño comunicación con las palabras de Marc Augé,
interdisciplinario, con un enfoque integral que nos ofrece cierta liviandad en la
a la vez que local, susceptible de ser aplicado responsabilidad social del diseñador, otorgándole
a cualquier ámbito siempre desde un espacio un margen razonable en su que hacer profesional.
514 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

De modo que la investigación del usuario, del consumidor, del que,


diseñador tiene que conformar la siendo artista de su propia vida,
delicada tarea de seducir sin alienar. intenta componer los fragmentos y los
Sin duda, para conseguirlo no debe objetos, a pesar de las durezas y las
olvidar que la preocupación por la monotonías de la existencia diaria.
función es la nobleza de su oficio, pero El propio diseñador sería algo menos
la función sólo se cumple socialmente. y algo más que un artista, no el
Ahora bien, al diseñador no se le inventor de universos propios, sino el
puede atribuir toda la responsabilidad demiurgo atento, modesto y astuto de
de lo social. Lo social depende, los mundos diarios de todos y cada
primero del político y luego del uno de nosotros.21
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 515

Bibliografía Vargas Llosa, Mario “Culturas y


globalización”. En: El Tiempo. Santafé de
AA.VV. Signos del Siglo. DDI. Sociedad Bogotá, junio 11 de 2000. http://
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la PYME. Ministerio de Economía y
Hacienda. Madrid 2000. _______________________________
1
AA.VV. Diseño Industrial en España. Universidad de Extremadura, Dpto. Didáctica
Dirección General de Política PYME. de la Expresión Musical, Plástica y Corporal.
2
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globalización”. Pensamiento Económico. Año 1
y de la Pequeña y Mediana Empresa. No. 1. Primer semestre 2002 http://
Ministério de Economia y Hacienda. Madrid. revistapensamiento.galeon.com/ultimaedicion/
1998. romero.htm.
AA.VV. Formas do Design. 2AB: PUC- 3
Para definir el concepto de Diseño que
Rio. Rio de Janeiro 1999. queremos abordar utilizaremos la definición
AA.VV. Revista Experimenta. Vol. 32. aportada en la Introducción por José Menal y Joan
Madrid 2000. Costa: “Diseño es, para nosotros, todo el conjunto
Arijon, Daniel. Gramática del lenguaje de actos de reflexión y formalización material que
audiovisual. Ed: Baroja. San Sebastián, 1998. intervienen en el proceso creativo de una obra
original (gráfica, arquitectónica, objetal,
Arfuch, Leonor, Chaves, Norberto,
ambiental), la cual es fruto de una combinatoria
Ledesma, María. Diseño y Comunicación. particular – mental y técnica – de planificación,
Teorías y enfoques críticos. Paidós. Buenos ideación, proyección y desarrollo creativo en
Aires 1997. forma de un modelo o prototipo destinado a su
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Didáctica. CEAC, S.A. Enciclopedia del Diseño. Barcelona,1992. p.33.
4
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Heratney, Eleanor. Pós-modernismo. 5
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2AB: PUC-Rio. Rio de Janeiro. 1999, p.152. y enfoques críticos. Piados. Buenos Aires, 1997,
12
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18
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19
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Tenerife – España. Design. “Comunicação e leitura não verbal”.
14
Concepto extraído del documento Heinz R. Formas do Design. Ed: 2AB série design. Río
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20
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15 21
Ver Arfuch,Leonor, Chaves,Norberto, Augé, Marc “El no lugar y sus objetos”
Ledesma, María. Diseño y Comunicación.Teorías Experimenta 32. (Augé, 2000:98).
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 517

Performance multimídia:
Laurie Anderson e arte feita de palavras e bits
Fernando do Nascimento Gonçalves1

Há mais de 30 anos, Laurie Anderson vem performance nos anos 80 e 90, que é, na
atuando em diversos campos da arte e realidade, a etapa atual da longa história de
operando com distintas linguagens e mídias. uma forma expressiva denominada “arte da
Tendo origem na vanguarda nova-iorquina performance”.
dos anos 70, Anderson produziu, ao longo A performance é uma expressão artística
de sua trajetória, um inédito e curioso di- típica dos anos 70, em que o corpo era
álogo com o circuito comercial de arte, a utilizado como um instrumento de comuni-
chamada mainstream. cação que tomava objetos, mídias, situações,
Seu trabalho vem mantendo, porém, uma lugares naturalizados e socialmente aceitos
qualidade essencialmente conceitual e pode -para resignificá-los. Historicamente, é pos-
ser visto como uma espécie de “vanguarda sível localizá-la como um fenômeno artístico
pop”, que parte da escultura minimalista2 e “de fronteira”,4 que representa o elo contem-
vai abraçar diversas formas expressivas (fo- porâneo de um conjunto de expressões es-
tografia, filme, música, instalações) e mídias tético-filosóficas do início do século XX -
(TV, vídeo, CD-rom e internet). Integradas da qual fazem parte o futurismo, o dadá, o
em suas performances, essas distintas lingua- expressionismo e o surrealismo – e do pós-
gens e mídias produzem uma arte feita de guerra, como o happening dos anos 60 e a
palavras e bits, capaz de produzir interessan- body art, dos anos 70 (Cohen, 1987). A
tes descosturas nos discursos e práticas li- performance representa esse conjunto de
gados à mídia e à tecnologia na sociedade experiências artísticas e consubstanciou o que
contemporânea. Glusberg chamou de um “fenômeno de arte-
Anderson vem desde o início de sua corpo-comunicação” (1987:66), que embora
carreira associando-se a artistas e músicos se apóie em formas de teatro, música e dança,
experimentais como Philip Glass, na então as retoma para desarticular seus elementos
cena alternativa do Soho, em Nova York e e se tornar outra coisa, que não é teatro, nem
seu percurso vem sendo documentado e música, nem dança.
discutido por diversos historiadores da A partir dos anos 80, com a consolidação
performance, críticos de arte e teóricos da do uso da televisão, do vídeo e de novas
cultura e da linguagem. tecnologias em suas apresentações, ao invés
Seu background familiar, suas experiên- de privilegiar a presença imediata do
cias pessoais e artísticas, os meios de co- performer, a performance passou a operar
municação, a tecnologia e a cultura ameri- frequentemente com uma presença
cana são as principais fontes de inspiração tecnologicamente mediada, como é o caso
para seus trabalhos. Sua originalidade está dos trabalhos de Laurie Anderson.
na forma como invoca reiteradamente esses Estabelecendo uma imageria visual como
elementos e os recombina, subvertendo meios parte integrante de suas performances,
e práticas, transformando-os em meios ca- Anderson ficou conhecida como uma
pazes de questionar os valores estabelecidos, “performer multimídia”, ao lançar mão de
principalmente os da cultura americana. slides, computação gráfica e outros recursos
Os trabalhos da artista se situam dentro para criar a animação de imagens que, por
do que alguns estudiosos americanos vezes, são narrativas e, por outras, simples
convencionaram chamar de contemporary fenômenos visuais. Suas criações se propõem
multimedia performance3 (MacAdams, 1996) a pensar as possíveis relações entre cultura
ou postmodern performance (Connor, 1993; e mídia na atualidade e correspondem a
Auslander, 1997), categoria típica da experimentações de linguagem na arte atra-
518 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

vés de elementos da comunicação de massa mexicana em Chiapas, no México, ou numa


e das novas tecnologias. reserva de índios americanos. Quando conta
Os trabalhos de performance da artista, histórias de “casa”, estas funcionam como
contudo, não se resumem ao uso dos dispo- um meio de indicar como o estrangeiro pode
sitivos high-tech em mega-performances, pelo estar próximo e como o que parece “fami-
qual ficou conhecida, a partir dos anos 80. liar” pode também esconder estranheza, de
Tampouco é nos surpreendentes efeitos visu- forma que é sempre possível lançar um outro
ais e sonoros propiciados por esses disposi- olhar para o que foi naturalizado no coti-
tivos que reside a força de suas criações. Seu diano, sem sair de casa.
trabalho se coloca muito além da proposta Em “The Night Flight to Houston”
comercial do pop, que é efetivamente uma (Anderson, 1994:144), por exemplo,
outra face de suas apresentações. Anderson conta que certa vez viajava de avião
No caso, as apropriações da tecnologia numa noite clara e que podia ver do alto as
e dos discursos midiáticos (reproduções de luzes de todas as pequenas cidades do Texas.
imagens da mídia, de conversas em secre- Sentada a seu lado, uma mulher de 52 anos
tárias eletrônicas e de programas de TV e que nunca viajara de avião. Seu filho, conta
o uso de aparelhos para distorcer a voz, por Anderson, lhe mandara uma passagem e
exemplo) parecem exatamente caracterizar dissera: “mãe, a senhora criou dez filhos. É
um processo de criação capaz de experimen- hora de entrar num avião”. Sentada junto à
tar novas linguagens na música, no teatro e janela, a mulher olhava fixamente para o lado
nas artes multimidiáticas. de fora e falava o tempo todo da Ursa Maior,
Paralelamente ao uso de dispositivos apontando para baixo. De repente, Anderson
técnicos, Anderson privilegia também o uso se deu conta de que a mulher achava que
da comunicação oral, da narrativa em suas estavam no espaço, olhando para estrelas lá
performances. Para Anderson, as histórias embaixo.“Acho que aquelas luzes lá embai-
funcionam como um modo de questionar os xo são luzes de cidadezinhas”, explicou
valores dominantes de sua própria cultura. delicadamente.
A artista costuma definir a si mesma como Para Jen Budney, a história é “um tocan-
uma “observadora da cultura americana” e te retrato da fragilidade humana numa so-
diz estar sempre interessada em “tentar definir ciedade tecnológica” (1997:160). Trata da
as questões que caracterizavam o americano situação de vulnerabilidade de uma mulher
do final do século XX”. Afirma ainda que, considerada forte, que se vê totalmente
como artista, sempre pensou em seu trabalho deslocada diante de uma realidade que não
como o de uma “espiã”, que, usando seus é a sua ou sobre a qual desconhece, no caso,
olhos e ouvidos, tentava encontrar algumas a experiência de andar de avião. A figura do
das respostas. Inspirada em Benjamin, um de avião (máquina) pode ser entendida como um
seus pensadores preferidos, a experiência símbolo para a tecnologia, algo que somos
narrativa em Anderson parece ocorrer numa conclamados a dominar e a achar natural em
temporalidade necessariamente incompleta, nossas vidas.5 Desse tipo de concepção poder-
onde o ato de narrar existe para ser se-ia depreender que negar a tecnologia
reencetado. Se contar histórias é “a arte de significaria tornar-se vulnerável numa cultu-
contá-las de novo” (Benjamin,1993: 205), ra apoiada nas máquinas e na mediação
então a artista vai fazer do ato de narrar um técnica, como era o caso da mulher que não
modo de questionar o que está dado: através “soube” reconhecer o que via. O inusitado
de suas músicas e histórias, Anderson torna da situação está exatamente no fato de como
“o familiar estranho e o ordinário extraor- algo aparentemente tão banal pode ser con-
dinário” (Amirkhanian,1986:229), como uma siderado tão estranho por alguém, o que nos
forma de desnaturalizar certos tipos de dis- permite, sem dúvida, pensar o que pode ser
curso e de situações socialmente aceitas. considerado “banal” e “por quem” e ques-
Curiosamente, suas histórias abordam tionar, afinal, sobre o que se espera de nós
desde fatos ocorridos em Nova York, onde numa “sociedade tecnológica”.
mora, até experiências vividas nas ilhas A narrativa, em Anderson é, portanto, um
Ponapé, no Pacífico, em uma antiga tribo poderoso canal para o qual convergem distin-
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 519

tas vozes” – culturais, políticas, econômicas, O que caracterizaria a tecnologia nesse


sociais e de gênero. Vozes que ampliam sua contexto seria então não a materialidade dos
crítica e, ao mesmo tempo, permitem que dispositivos – que diz respeito à concretização
fatos da cultura viagem, falem e sejam de um objeto técnico -, mas uma relação onde
discutidos. Finalmente, é através de sua arte a tecnologia constitui ela própria uma en-
de contar histórias que emergem questões grenagem ou parte de uma engrenagem.
caras à cultura americana, que ela vai ques- A tecnologia não seria, portanto, a essên-
tionar com humor e ironia. cia de seu trabalho, e sim, uma forma de
Porém, um dos aspectos mais marcantes estabelecer uma relação com a narrativa e
dos trabalhos da artista é que a narrativa é de problematizá-la, o mesmo acontecendo
frequentemente secundada por uma media- com as referências à linguagem, à cultura,
ção tecnológica, que a dota de um caráter aos fatos do cotidiano etc, elementos que ela
fragmentado, não-linear e, paradoxalmente, vai espalhar sobre outras constelações de
unificado. A tecnologia viabiliza estética e sentido. O importante para a artista não é
formalísticamente -a apresentação das ques- a mágica dos efeitos que a máquina pode
tões que deseja discutir. É por meio da gerar. Para ela, não há nisso nenhum mis-
mediação tecnológica – distorção eletrônica tério ou novidade. O que importa é o modo
da voz, tratamento de imagens digitalmente de agenciamento com a máquina. Daí,
que criam ambiências especiais para suas Anderson encarar a tecnologia como um teste
performances,6 uso de próteses corporais e à criatividade e como experimentação com
instrumentos sonoros que produzem sons outras formas estéticas e narrativas.
inusitados – que ela retrata o processo de Isso corrobora o pensamento de Rogério
mediatização da cultura americana e das Luz (1993:191), quando afirma que “um novo
sociedades eletrônicas, bem como a meio exige do artista uma nova prática e a
espetacularização da mídia e a banalização uma nova prática deve corresponder a uma
da comunicação e da própria tecnologia. Em nova linguagem”. Luz reconhece exatamente
suma, é por meio da técnica que Anderson que não é no meio em si que se encontrarão
investiga e desconstrói os sistemas de repre- as respostas para os desafios colocados pelos
sentação de sua própria cultura. próprios processos de criação. Antes, será a
O que chama a atenção nesse processo concepção diferenciada de como um novo
de mediação é que as narrativas encontram meio pode organizar ações que viabilizará
no fragmento uma unidade própria, consti- uma prática efetivamente nova.
tuindo uma espécie de “fabulação eletrônica”, Nos trabalhos de Anderson, o ato narra-
que só pode ser contada pela conjunção de tivo é mediado tecnologicamente e otimizado
suas distintas frações ou pedaços. Essa for- em sua capacidade de ativar, de forma sin-
ma narrativa parece remeter, de alguma gular, os elementos que remetem à fascina-
forma, ao tipo de linguagem fragmentada ção com a tecnologia, ao consumo, à retórica
presente sobretudo em meios de comunica- da liberdade e ao poder militar, caros à cultura
ção como a televisão, o vídeo e a internet.7 americana. Narrativa e técnica tornam-se,
Como resultado, temos uma arte que fala aos nesse contexto, importantes ferramentas
sentidos sem deixar de falar à razão e onde estéticas e também mecanismos de resistên-
esses dois elementos – o sentir e o pensar cia àquilo que Deleuze e Guattari chamaram
– não se opõem ou competem entre si, antes de “palavras de ordem” (1980:100), que não
se complementam. são enunciados imperativos, mas “uma re-
Mas, a tecnologia em si mesma não tem lação que palavras e enunciados têm com
o poder de incitar a criação. Nos trabalhos determinados pressupostos implícitos em sua
da artista, a tecnologia não remeterá apenas própria formulação”, ou seja, uma relação em
aos dispositivos técnicos em si, mas a todo que atos de linguagem implicam e ao mesmo
um conjunto de procedimentos que articulam tempo efetivam os enunciados e os pressu-
a produção desses dispositivos e seus modos postos que figuram implicitamente nesses
de uso com determinadas intenções estéticas. atos.
520 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

São esses modos de arranjo de sentido se inscreve nos limites de uma comunicação
que se organizam segundo determinados estandardizada.
pressupostos – pelos quais somos atravessa- A mensagem artística busca escapar a esse
dos e que nos constituem – que Deleuze e modelo e introduzir novidades na comuni-
Guattari chamaram de – “agenciamentos cação, questionando seu circuito. Não se
coletivos de enunciação”. São os constituindo nem na emissão, nem na trans-
agenciamentos ou modos de arranjo de missão, nem finalmente na recepção, como
sentido que denotam o caráter essencialmen- afirma Berger (1977:132), esse gênero de
te social da produção de discursos e das mensagem nunca é um dado totalmente pré-
práticas vividas em escala individual ou estabelecido, nem conta com critérios uni-
coletiva, produção esta que vai se tornar o versais de decodificação. Não se verifica aí
alvo preferido dos questionamentos da artis- uma questão de cifrar ou decifrar, de reco-
ta. nhecer ou dar a reconhecer, e sim, de criar
A arte de Anderson é essencialmente uma e comunicar, onde comunicar “é já parte de
arte que fala de seu próprio tempo e que busca um processo ativo de criação, que se efetiva
resistir aos arranjos banalizadores da mídia na medida que a corrente da comunicação
e da tecnologia na atualidade. Boa parte do se põe a atuar” (ibid).
material usado pela artista vem daquilo que É o que acredito ocorrer com a comu-
Philip Auslander denominou “cultura medi- nicação nos trabalhos de Anderson. Ao
atizada”. A noção de uma cultura mediati- hibridizar linguagens e mídias, Anderson
zada se associa ao princípio daquilo que atualiza os princípios da apropriação e da
Baudrillard chamou de “êxtase da comuni- colagem em suas apresentações para tentar
cação”, ou seja, de uma experiência social dizer o indizível no momento atual. O re-
de hiperpresença de um sistema relacional sultado não é nem música, nem teatro, nem
que se expressa pela “condição de se fazer multimídia: é uma arte de intervenção, de
parte de uma cultura que parece operar como potencialização de atos da língua, dos
um único e gigantesco sistema de informa- movimentos e das imagens, que se apóia num
ção” (Baudrillard, 1988: 24). rearranjo singular de elementos do cotidiano
Anderson reflete em seus trabalhos a e da cultura contemporânea.
preocupação com o fato de que muitos dos Assim, partindo da arte conceitual, pas-
processos comunicativos hoje parecem se sando pela fotografia, pela arte narrativa, até
colar a uma supercomunicação de fluxos chegar ao cinema, à performance, ao vídeo
instantâneos, que parecem trabalhar para uma e à hipermídia interativa, Anderson busca
repetição não criadora. Esses mecanismos – sempre justapor e conectar distintas referên-
nos quais a mensagem se apaga em favor cias, resignificando objetos, práticas e dis-
da informação e em detrimento de sua cursos. Reconhecendo a condição simbólica
qualidade de acontecimento –, produzem da cultura e da linguagem, a artista produz
apenas uma reverberação da informação em um corpo de obra que articula diferentes
si mesma e enquanto efeito de discurso. códigos, criando uma verdadeira rede sígnica,
Talvez por isso Deleuze afirme que hoje que ela, então, vai manipular e colocar a
“não sofremos da falta de comunicação, mas serviço da criação e da comunicabilidade.
de seu excesso” (Deleuze, 1992: 172). Por- Desde o início de sua carreira, por exem-
que também é feita de hiatos – e não apenas plo, é possível ver o uso de imagens de
de redundâncias –, a comunicação deverá ser aviões, desenhos de silhuetas de pessoas,
vista como modo de tornar possível o relógios, casas – cada qual fazendo referên-
questionamento do que está dado e de ins- cia a situações, estados de espírito e questões
taurar novas formas de viver, sentir e pensar. que busca discutir –, aparecerem várias vezes
Esse, o lugar onde comunicação e arte se em várias performances. Da mesma forma,
encontram. Perceber o funcionamento da co- músicas e histórias são frequentemente
municação no campo criador da arte pode recontadas e cantadas -eventualmente com
e deve fazer-nos refletir sobre as demais pequenas variações – tanto em eventos ao
modalidades de comunicação, sobretudo a vivo, quanto em álbuns e vídeos, formando
midiática, onde a linguagem frequentemente materiais com características distintas, ape-
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 521

sar de se apoiarem em elementos que são o amplifica e faz ressoar, porque não mais
invocados e recombinados constantemente. preso a uma individualidade, e sim, a um
Para Anderson, o que importa é coletivo de forças.
exatamente o uso daqueles elementos como Apoiado nessas idéias, acredito poder
leitmotifs que se relacionam semioticamente afirmar que o trabalho de Anderson é um
com questões que pretende discutir e com exemplo de agenciamento concreto desses
sensações que deseja provocar. Com esse processos singularizantes, onde a figura da
procedimento, Anderson vai formar um artista e seu trabalho formam uma abundân-
verdadeiro “banco de dados”, onde fatos e cia, um excesso criador que vaza e “engaja
objetos do cotidiano, de sua vida pessoal, da outras singularidades”. É por meio dessa
cultura americana podem ser recortados e articulação que Anderson realiza importantes
acionados a qualquer instante como blocos experimentações com as formas culturais,
de sensação e imaginação. Através da rei- estéticas e discursivas, alterando percepções
teração e do entrecruzamento desses fragmen- e produzindo novas sensibilidades. O con-
tos, Anderson parece querer produzir criar junto de sua obra forma uma espécie de
literalmente, através de músicas, histórias e solidariedade orgânica de natureza discursiva,
da tecnologia, uma ambiência discursiva feita onde os dispositivos técnicos parecem se
de imagens sensoriais, visuais, verbais e manifestar não isoladamente, mas fazendo
auditivas. engrenagem com outros tipos de dispositi-
O uso desses procedimentos indica um vos, como a narrativa e a performance, por
estilo e um projeto estético processuais, que exemplo, que, por sua vez, constituem, cada
se definem a partir de encontros e conjuga- qual a seu modo, uma máquina, um conjunto
ções, que vão, por sua vez, produzir outros de engrenagens.
cruzamentos criadores. Esses procedimentos Por esta razão, seria possível afirmar que
nos permitem pensar o trabalho de Anderson a tecnologia é uma das peças ou conexões
como uma espécie de “máquina estética”, no que formam máquina em sua máquina es-
sentido em que o entendem Deleuze e tética. Nos trabalhos de Anderson, o elemen-
Guattari (1977: 118). Concebida dessa for- to técnico se presta a uma experiência es-
ma, a arte funciona como uma máquina tética e sempre se associa à linguagem. Ao
produtora de novas sensibilidades: é esta mesmo tempo, o estético geralmente está
máquina que realiza, segundo Caiafa, “um impregnado de tecnicidade. Isso faz com que
trabalho criador com as formas expressivas objetos, instalações e performances se cons-
e abre brechas nas subjetividades padroni- tituam a partir de uma relação com dispo-
zadas, fazendo surgir singularidades” (Caiafa, sitivos técnicos que são importantes para
2000:66). produzir um efeito estético, mas, sobretudo,
Esse trabalho criador é precisamente um para efetivar certas condições de discurso.
exemplo do que Guattari (1993: 134-135) Portanto, os usos e as apropriações da
chamou de processos de singularização, tecnologia e dos discursos midiáticos feitas
processos que surgem desse poder da arte pela artista caracterizam exatamente um
de produzir rupturas nas significações domi- processo de subjetivação capaz de tornar
nantes e de sua capacidade de operar tam- possíveis novas escrituras, novas constitui-
bém transformações na própria subjetivida- ções de modo de vida não individuais, mas,
de, quando os segmentos semióticos que a coletivos. Assim é que Anderson parece tentar
constituem passam a formar novos campos neutralizar a “função-autor” em seus traba-
significacionais. lhos, apoiando-se na apresentação de fatos
A noção da obra de arte como uma corriqueiros falam de uma certa forma de
“máquina”, como um conjunto de conexões viver em sociedade e que são relatados
criadoras capazes de produzir diferença que aparentemente longe de um desejo de inter-
pode, por sua vez, engrenar-se a outros pretação e verdade.
conjuntos e fazer criar novas engrenagens Essa é, aliás, a base da estratégia que a
criativas – abole o princípio da inspiração artista desenvolveu para preservar-se da
e da criação geniais do artista. Essa idéia, super-exposição midiática e subvertê-la:
ao invés de apequenar o processo criativo, contra o excesso de uma “presença autoral”
522 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

absolutizadora, que muitas vezes é anexada assim que seu trabalho se comporta frequen-
pelo sistema e se torna despotencializada, temente como uma espécie de estratégia
teremos um despistamento dessa “presença” micropolítica de resistência, que cria ruptu-
através de formas particulares de aparição na ras nos padrões de percepção e sensibilidade
mídia, como os dummies e clones – que dominantes e produz singularidades. Buscan-
Anderson chama de “alter egos” ou “duplos”, do desembaraçar-se das grandes mediações,
que contracenam com ela em vídeo seu trabalho tem o poder – talvez por isso
performances veiculadas na TV,8 nas quais mesmo – de comprometer a verdade, na
realiza paródias alusivas à própria cultura medida em que evidencia certas constituições
televisiva. de modos de existência que podem então ser
Com seus dummies, Anderson parece repensados.
deslocar e diluir sua presença em cena, dando O importante para Anderson é narrar,
oportunidade a que uma série de outros criar, transformar, imprimir à tecnologia e à
discursos possam ter lugar. São esses duplos mediação outros funcionamentos, atravessá-
que lhe permitem descorporificar-se sem sair los com um outro desejo que não o de
inteiramente de cena e, assim, ceder o lugar representar ou fazer encaixar, mas de expe-
a outras presenças e vozes, os no bodies que rimentar, inventar, torná-los ferramentas para
Anderson invoca de suas experiências pes- a criação. Seus trabalhos demonstram como
soais e cotidianas. Ao manipular esses ele- a mídia e a tecnologia podem constituir
mentos, Anderson vai tornar-se uma persona, vetores de singularização que ajudem a nos
uma figura sempre deslocada, cuja constru- esquivar o quanto possível da lógica de
ção é parte de suas estratégias performáticas. padronização do capital e de suas instâncias
Finalmente, os usos e as apropriações da de modelização. Talvez possamos considerar
tecnologia e de elementos da mídia e da suas produções como indício provável daquilo
cultura de massa são formas encontradas por que Guattari chamou de “era pós-mídia”
Anderson para estabelecer experimentações (Guattari, 1992:16), caracterizada pela
com os elementos da cultura contemporânea. “reapropriação e uma resingularização do uso
Mas, ao mesmo tempo em que utiliza esses da mídia”. Nessa era, a mídia e suas
elementos, mantém deles uma certa distân- modelizações subjetivas, não teriam mais
cia, despistando-os sempre que necessário. pretensões de sobrecodificarem a realidade.
Essa apropriação com afastamento parece ser Ao contrário, teriam como objetivo serem
apenas um dos modos possíveis de interven- uma fonte de heterogeneidade e polifonia, de
ção num momento em que não apenas a arte novas formas de viver em sociedade.
e a cultura se mercantilizam, mas também Essa é, acredito, a maior contribuição do
a própria subjetividade. trabalho de Anderson para os estudos da
Ao utilizar a “cultura mediatizada” como comunicação: prover-nos, como sugere Suely
cenário e a mídia como objeto, Anderson cria Rolnik (1997:33), de recursos cartográficos
condições de possibilidade para se trapacear que nos permitam inventar novas formas de
com esses elementos. Ao invés de negá-los, sentir, de viver e de comunicar que estejam
vai realizar algo próximo daquilo que Deleuze mais de acordo com os desafios do momento
e Guattari (1980: 139) chamaram de produ- atual. Ao tratar das estratégias estéticas de
ção de “senhas”, ou seja, de contra-palavras Anderson, buscamos justamente evidenciar
de ordem, sob as próprias palavras de ordem. como é possível singularizar usando e ne-
Nisto consiste sua esperteza: Anderson se gociando com os recursos presentes na pró-
camufla nesse campo de forças de forma a pria cultura contemporânea e com eles
tentar despistar, mesmo que de forma revisitar o que está dado para fazer emergir
efêmera, os mecanismos modelizadores. É daí o diferente.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 523

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______________The Ugly One with the Universidade Federal do Rio de Janeiro.
2
Jewels and Other stories. CD, Warner Bros, Anderson cursou mestrado em escultura na
Universidade de Columbia (NY), em 1972, e
1995.
ganhou 3 títulos honorários de doutor em univer-
Auslander, Philip. Presence and sidades americanas, nos anos 90.
resistance: postmodernism and Cultural 3
As características principais desse gênero
Politics in Contemporary American artístico são a pesquisa de linguagem com mídias
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Press, 1992. que apresente e, ao mesmo tempo, discuta o
Baudrillard, Jean. The ecstasy of espírito de nosso tempo, a questão do corpo,
communication. Nova York: Autonomedia, das imagens e os modos de percepção da
1988. realidade.
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Renato Cohen (1987) à performance, designa a
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situação pela qual este gênero artístico opera
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Berger, René. Arte e Comunicação. São formalisticamente “no limite das Artes Plásticas
Paulo: Ed.Paulinas, 1977. e das Artes Cênicas, sendo uma linguagem hí-
Budney, Jen. Terra Vision. Parkett, brida que guarda características da primeira
Zurique, n.49, 1997, p.158-162. enquanto origem e da segunda enquanto finali-
Caiafa, Janice. Nosso século XXI: notas dade” (Cohen, 1987:7).
5
sobre Arte, Técnica e Poderes. Rio de Ja- A imagem do avião é um dos ícones re-
neiro: Relume-Dumará, 2000. correntes nos trabalhos de Anderson, sobretudo
no filme-performance Home of the Brave, de 1985.
Cohen, Renato. Performance como lin-
In: Anderson, Laurie. Stories from the Nerve Bible,
guagem: criação de um tempo-espaço de 1994.
criação. São Paulo: Perspectiva, 1989. 6
Em suas performances high-tech como
Connor, Steven. Cultura Pós-moderna. United States I-IV (1983), Stories from the Nerve
São Paulo: Loyola, 1993. Blble (1992) e Stories from Moby Dick (1999),
Deleuze, Gilles e Guattari, Félix. Mille Anderson canta e conta suas histórias com ajuda
Plateaux. Paris: Éditions de Minuit, 1980. de instrumentos musicais que são verdadeiros
_______________________Kafka: por aparelhos eletrônicos e com telas de diferentes
uma literatura menor. Rio de Janeiro: formatos e tamanhos onde são projetadas imagens
tratadas digitalmente, frases e citações que fun-
Imago,1977.
cionam como espécie de sub-textos para as
Glusberg, Jorge. A Arte da Performance.
narrativas, formando, em seu conjunto, uma at-
São Paulo: Perspectiva, 1987. mosfera de sonho.
Goldberg, Roselee. Performance art: 7
Mesmo que o efeito desse tipo de linguagem
desde el futurismo hasta el presente. Barce- possa ser o de reforçar essa fragmentação, a
lona: Ediciones Destino, 1996. intenção de Anderson, na verdade, parece ser a
__________________. Laurie Anderson. de justamente evidenciar esse efeito de fragmen-
Nova York: Harry N. Abrams Inc., 2000. tação e desconstrui-lo por meio da tecnologia, ou
Guattari, Félix. Caosmose. Rio de Ja- seja, Anderson tenta seguir o princípio de que é
possível questionar a representação por meio da
neiro: Editora 34, 1993.
própria representação.
Luz, Rogério. “Multimídia e linguagens 8
Em Alive from the Off-center, vídeo-
contemporâneas”. In: Comunicação e Cultu- performance apresentada no canal público de TV
ra Contemporâneas. Compós. Rio de Janei- nova-iorquino PBS, em 1986. In: Anderson, L.
ro: Notrya, 1993. Stories from tne Nerve Bible, 1993.
524 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 525

As Bandas Desenhadas brasileiras contemporâneas


Flávio de Alcântara Calazans1

Introdução Em sendo uma produção de signos con-


vencionais cujas características exigem de-
Objetiva-se realizar um levantamento terminada especificidade seu estudo clama por
panorâmico da produção de histórias em qua- abordagens interdisciplinares, pois, tal qual
drinhos (HQ) na circunscrição espacial do o cinema, a HQ apresenta-se como arte e
território brasileiro e com a delimitação indústria, meio de comunicação que é objeto
cronológica da década de 90 até o início do de teorias como a Semiótica ou Midiologia
Século XXI. bem como também da Antropologia Cultu-
Esta pesquisa exploratória empregará a ral, ou até mesmo enquanto produto
metodologia oriunda da Antropologia, Obser- mercadológico editorial.
vação Participante, na qual o autor envolve- Do mesmo modo que na indústria cine-
se e vivência o objeto na qualidade de matográfica, na HQ também pode-se perce-
desenhista e roteirista, somada à experiência ber um estilo de autor cuja personalidade
acadêmica de fundador e coordenador do imprima à obra sua visão de mundo, men-
Grupo de Trabalho dos pesquisadores de HQ sagem pessoal e sutilezas estéticas, fenôme-
do Congresso Brasileiro de Ciências da no em contraponto com a vasta produção
Comunicação de 1995 a 2000. comercial anônima que visa o lucro rápido
Justifica-se tal estudo devido a serem os e contribui para a alienação das massas
quadrinhos uma forma de expressão na qual consumidoras.
fundem-se as manifestações plásticas da arte Graças a esta peculiaridade pode-se
e literárias do roteiro e dramaturgia, inclu- encontrar no cinema de Hollywood diretores
indo-se os recursos de linguagem cinemato- oriundos do desenho animado que imprimem
gráfica, caracterizando-se como produção um estilo pessoal nas obras, como Terry
cultural da nação brasileira e, como tal, parte Gillian e Tim Burton; o mesmo percebe-
integrante do universo lusofônico da cultura se na indústria dos Comics com um Frank
portuguesa. Miller e Alan Moore, que foram precedidos
Deste quadro poderá advir uma melhor pelos Comix de contracultura de Robert
compreensão das características da manifes- Crumb e sua liberdade de expressão (enfren-
tação cultural HQ por meio dos produtos tando o famigerado Comics Code, o código
autorais ou comerciais oferecidos ao merca- de ética macartista inspirado na obra de
do consumidor dos leitores, cujo nível de Fredric Wertham A sedução do inocente que
exigência e qualidade pode vir a ser inferido acusava a HQ de incentivar a criminalidade
deste panorama. e delinquência juvenil.).
Uma condição histórica diversa faz sur-
2. A produção do patrimônio cultural das gir na Europa a HQ de autor ou de arte,
histórias em quadrinhos no Brasil dirigida a um consumidor mais exigente e
de maior nível cultural, tal qual o álbum Saga
Os quadrinhos apresentam-se como uma de Xam ou a obra de autores como Druillet,
manifestação cultural de um povo, Caza, Moebius, Crepax, Manara, Bourgeon
equiparáveis às festas folclóricas populares, e outros.
à dramaturgia, cinema, literatura e artes Entretanto, no Brasil, as primeiras nar-
plásticas, e em assim o sendo, podem e devem rativas desenhadas em sequência com diá-
ser considerados como bens culturais, parte logos são publicadas em periódicos (revista)
do patrimônio artístico de uma nação. com cunho eminentemente político e dirigidas
526 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

a um leitor adulto, sendo que um dos mais Produções” propicia emprego a diversas
antigos registros históricos é a data de 30 equipes de desenhistas e roteiristas anônimos
de Janeiro, considerada como o Dia do que seguem um padrão de desenho e roteiro
Quadrinho Nacional, quando é entregue o em linha de montagem sob a marca registrada
troféu Ângelo Agostini aos melhores au- “Maurício de Souza”, a exemplo da linha
tores e revistas; isto porque, em 1869, nas Disney.
páginas da revista Vida Fluminense, na ci- Estas tiras e revistas em “formatinho”
dade do Rio de Janeiro, Ângelo Agostini primam pela ausência de símbolos, cenários
começa a publicar seu personagem fixo em ou temáticas brasileiras, os personagens são
quadrinhos de uma página, o Zé Caipora, tipos planos, não chegam a estereótipos, e
um fazendeiro simples que visita a corte do os temas simplórios dos roteiros garantem
Imperador, seguido por uma galeria como o ampla margem de leitores de todas as idades
Nhô Quim e outros. que lêem as revistas em ônibus, trens e praças
Marcados pela charge política surgem a título de passatempo e entretenimento, e
autores cuja obra prima pela crítica de cos- seus risos demonstram o acerto da equipe
tumes e o regionalismo ou mesmo um acen- Maurício que conhece muito bem o nível
tuado bairrismo; sendo um registro histórico, intelectual e emocional dos seus leitores.
foram verdadeiros cronistas de sua época O lucro em merchandising de brinque-
autores como J. Carlos no Rio e suas dos, jogos, produtos de higiene infantil e todo
“Melindrosas”, ou Belmonte em São Paulo tipo de publicidade mantém os lucros e ajuda
criticando Hitler, até Henfil denunciando a a exportação das tiras para diversos países.
ditadura militar com seus quadrinhos já clás- Ao mesmo tempo a editora Abril, pos-
sicos, os Fradins, estes bem menos datados suidora de um enorme parque gráfico, ad-
e alcançando uma dimensão mais atemporal. quire direitos de produção dos desenhos
Esta predominância do aspecto adulto e
animados, séries de televisão ou esportistas
politizado não cerceou o surgimento de obras
populares e produz HQ comercial visando o
infantis como o trio Reco-reco, Bolão e
consumidor infantil ou de mentalidade sim-
Azeitona do autor Luiz Sá na revista infantil
plória e baixa expectativa ou nula exigência
O Tico-Tico, por volta do ano 1905-1907.
de qualidade, feita por equipes anônimas.
Até então, a produção é marcadamente
Assim surgem revistas em formato pequeno
autoral e pessoal: é quando começa a esbo-
(formatinho) e baratas, com tiragens
çar-se uma indústria da HQ, e a partir do
astronômicas nunca exatamente reveladas,
surgimento da produção em linha de mon-
mas que alegam ser de 200 mil exemplares.
tagem pode-se perceber o surgimento de
padrões, os quais podem ser agrupados em São títulos como: He-Man, Xuxa, Os Tra-
duas categorias: 1-Comercial e 2-Autoral. palhões, Seninha, etc...
Toda esta produção oscila conforme a
2.1. Comercial audiência (ou sucesso do esportista) e tem
o objetivo despretensioso de entretenimento
Foi no decorrer da ditadura militar, ao passageiro, tendo os títulos vida muito curta.
término dos anos 60,que começaram a surgir Não pode-se omitir também a existência
as tiras de jornal do gênero infantil de de um incomensurável mercado de HQ
Maurício de Souza em São Paulo, que ateve- pornográfica que dá emprego a centenas de
se à oportunidade de produzir desenhos desenhistas trabalhando sob pseudônimos em
animados com seus personagens para publi- dúzias de títulos sem qualidade ou periodi-
cidade de molho de tomates enlatado, e estes cidade e com uma distribuição irregular, sem
comerciais de televisão trouxeram notorie- nome da editora ou endereço (sobre este tema
dade e sucesso às revistas da Turma da específico com maiores detalhes e aprofun-
Mônica que superam até mesmo a linha damento ver meu artigo: “As Histórias em
Disney em vendas, um fenômeno presente Quadrinhos do Gênero Erótico”. In: Revista
até os anos 90-2000 no mercado brasileiro. Brasileira de Ciências da Comunicação. São
A indústria de “Comic Strips” cuja de- Paulo, INTERCOM, v. XXI, nº 1, jan/jun
nominação comercial é “Maurício de Souza 1998. p. 53-62.).
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 527

Continuando a tradição da charge polí- têm a oportunidade de ter seu desenho


tica local, em 1972 surge na Universidade publicado no Brasil, ocultos sob pseudônimos
de São Paulo (USP) a revista underground e despercebidos, sem destaques ou incentivo,
(que muitos consideram o primeiro fanzine nas revistinhas de super-heróis da editora
universitário) Balão, com HQ bairrista sobre Abril. Assim, Deodato Borges Filho torna-
os problemas em pegar carona e outras se um Mike Deodato, Benedito Nascimento
atribulações dos estudantes: é o período da em Joe Bennet, Rogério Cruz em Roger Cruz
ditadura e a charge subversiva está na moda. e outros.
Os jovens chargistas formam a Escola Segundo a revista Wizard número 06, de
Paulistana de Humor, presente nos jornais janeiro de 1997, página 27, estes têm um
diários até os anos 90, retratando problemas lamentável papel na indústria dos Comics.
da Grande São Paulo, megalópole com 17 Uma nota que vale transcrever da seção As
milhões de habitantes, em um humor que é dez maiores decepções de 1996:
marcadamente municipal, bairrista.
Os autores retratam prédios e monumen- “Desenhista brasileiro não é estepe...
tos das praças públicas (Luis Gê) ou um dos o que vimos foi uma sucessão de ar-
rios que cruza os bairros, o rio Tietê, com tistas brasileiros de talento cobrindo
a série Piratas do Tietê (Laerte) ou a fauna férias de desenhistas americanos ou
noturna dos bares em um traço que orgulha- servindo como quebra-galho a possí-
se da influência de Crumb, a Rebordosa veis problemas de prazo das editoras
(Angeli), todos da revista Balão. nos EUA. Esta situação precisa se
O Brasil prima pela importação, seja de inverter e rápido! Ou nossos
tiras de jornal (e cabe a Maurício de Souza quadrinhistas ficarão rotulados apenas
o mérito de ter criado sua distribuidora e como mão-de-obra”.
quebrado o monopólio norte-americano), bem
como de revistas de super-heróis para o leitor 2.2. Autoral
pré-adolescente do sexo masculino, com
cortes no texto e arte para adaptá-las ao Cabe aqui reiterar que a HQ brasileira
“formatinho” de menor custo. apresenta características autorais desde sua
Ocasionalmente alguns autores obtém origem em 1869, sendo a produção em linha
sucesso no exterior, os quais serão aborda- de montagem uma forma comercial relativa-
dos na próxima categoria, pois sua obra é mente recente em termos históricos, um modo
autoral; cabe aqui observar um fenômeno de produção industrial que remonta aos anos
desta década em particular. 60-70 da ditadura militar, consolidada nos
Editoras norte-americanas como Marvel anos 80 e pode-se considerar uma de suas
e DC produzem “comics” de super-heróis em conseqüências a ambição dos desenhistas em
linha de montagem, com equipes no semi- exportar seu trabalho nos moldes descritos
anonimato de créditos - colocados em cantos anteriormente, sendo partes semi-anônimas da
da página -, que raríssimos leitores perce- engrenagem do sistema de produção de
bem. editoras como Marvel e DC.
Uma geração de desenhistas brasileiros A produção cultural, quer sob a forma de
aprendeu a desenhar imitando Batman e obras musicais, literárias, manifestações fol-
Capitão América. Uma agência local (Art clóricas ou Quadrinhos, surge como manifes-
Comics) conseguiu trazer roteiros para se- tação inconsciente e espontânea mesmo em
rem desenhados aqui, porém o fez para que ambientes adversos, decorrente de pulsões
o desenhista apenas imitasse o estilo do psicológicas que não cabe aqui analisar;
desenhista cujo trabalho fosse modismo de contudo, esta necessidade humana de expres-
momento na editora. sar-se é uma constante cujo resultado é o
Estes desenhistas passam pela “experiên- patrimônio de bens culturais de cada povo.
cia” de ter seus nomes latinos adulterados As Histórias em Quadrinhos já atingiram
para que os poucos leitores a ler os créditos um nível técnico e de conteúdo que permite
não se ofendam em ver desenhos de igualá-las às Artes Clássicas como a Pintura,
“cucarachas”2, e assim diversos brasileiros Escultura/Arquitetura, Literatura e Cinema.
528 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

A HQ assimila toda uma tradição histó- uma estrutura rica e desafiadora com dese-
rica de narrativa em imagens que remonta nho expressivo (meio mangá, meio
aos pictogramas das cavernas, aos hieróglifos caricatural) e diagramação planejada como
egípcios com texto e ilustração juntos, à Via movimentos de câmera (enquadramentos)
Crucis das paredes das igrejas da Idade cinematográficos e uma composição de pran-
Média, com o texto saindo da boca dos santos cha por vezes sem uma única linha de lei-
(filactera, o avô do balão),etc.. tura, coordenada ou paratática.
Tal evolução das Artes Visuais é assimi- Um fator por si só comprobatório das
lada pela HQ, cujo baixo preço de custo e características autorais da HQ brasileira é o
velocidade de produção permitem a realiza- reconhecimento internacional de diversos
ção de experiências gráficas como os planos autores, e uma amostragem aleatória demons-
gerais/panorâmicas de um “Little Nemo” e tra esta história recente:
a narrativa de um Will Eisner, cujo movi- Jô de Oliveira, adapta a linguagem
mento de câmera antecede o “Cidadão Kane”, gráfica das xilogravuras que ilustram os
de Orson Welles. livretos populares de literatura de cordel
Caminhando junto com o cinema, influ- nordestinos, e em 1973 publica na revista
enciando e sendo influenciada por todas as Linus (Itália) sagas de cangaceiros e do
artes, fazendo parte da Aldeia Global, a HQ folclore que envolve o já mítico Lampião,
alcança a maturidade estética ao tratar dos angariando diversos prêmios e sendo publi-
grandes temas e anseios da humanidade, cado em álbum no Brasil.
refletindo o humano do seu autor - que Sérgio Macedo, nascido no estado de
encontra eco no humano leitor que se iden- Minas Gerais, migra para a cidade de São
tifica, emociona-se com a obra. Caetano (Grande São Paulo) em 1970. Já em
Um ser humano comunicando-se, reve- 1972 publica pela revista Grilo seu álbum
lando-se, encontrando-se com outro ser Karma de Gaargot para em 1974 emigrar para
humano. Isto é a suprema emoção estética. a França, onde publica em revistas como
Isto se sente ao ler um livro de autor, Métal Hurlant e Linus, depois na americana
ao ver um filme de autor, ao ler um qua- Heavy Metal, raras vezes publicado no Brasil,
drinho de autor. desenvolve uma visão pessoal do misticismo
Ao ver o nome de Fellini ou Kurosawa, índio que mescla com ficção científica em
já se sabe o que terá no filme, os temas que um estilo personalizado a cores vivas em
preocupam o cineasta. O mesmo acontece ao aerógrafo.
se lerem na capa do álbum os nomes de Cynthia e Ofeliano, do Rio de Janeiro,
Moebius, Crepax, Manara, Eisner, Miller. publicam a série de aventura Leão Negro em
Este quadro proposto por mim serve como tiras no Jornal do Brasil e em 1990 em álbum
parâmetro para classificar as características colorido pela editora Meribérica de Portu-
da hq autoral ou de Arte, diferenciando-a da gal, para em 1996 saírem na coletânea
comercial feita anonimamente: Brasilian Heavy Metal. Misturam harmoni-
Estes dez itens não são fixos. Pode-se osamente elementos de traço europeu com
encontrar um quadrinhista que tenha todas recursos do Mangá japonês e dos Role
as características de arte publicando em Playing Games.
revista de banca ou diagramando tiras em Em 1990 a agência belga Commu recru-
jornais. ta desenhistas de diversos estados para
O que identificará, caracterizará o Qua- publicar álbuns na Europa, versando sobre
drinho de Autor é o estilo, o toque pessoal os bandeirantes paulistas que cruzam a linha
do autor refletido nos temas, na psicologia do tratado de Tordesilhas, lendas indígenas,
dos personagens e na estrutura narrativa. aventuras sexuais no Carnaval, fantasias
O Quadrinho adulto é inteligente, com- futuristas sobre o Rio de Janeiro e a floresta
plexo e sofisticado, exige um público ma- amazônica, etc.. Autores consagrados nas
duro e um quadrinhista competente, que saiba revistas de sexo explícito em quadrinhos no
escrever bons roteiros, com argumentos que parque industrial do eixo Rio-São Paulo são
sobreponham vários núcleos narrativos (ro- editados em álbuns pessoais e autorais,
mance, novela), arquitetados e articulados em como:
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 529

2.2.5. Tabela Comparativa: Autoral e Comercial

HQ de Arte (Autoral) HQ Comercial (Linha de montagem)


Desenho personalizado, estilizado; Desenho padrão, impessoal, acadêmico;
Diagramação de página elaborada Tiras, Quadrinhos em fila indiana, empilhados
como parte da mensagem; na página formando um muro de tijolos;
Roteiro complexo, gêneros literários
Roteiro linear (conto), clichê previsível;
(Romance, Poesia, Novela);
Personagens densos, Personagens planos,
com psicologia, passado e sexo; tipos/estereótipos assexuados;
Diálogos elaborados, Mais ação que diálogos, todos resolvem
ação decorrente da história; problemas com violência física;
Um foco narrativo (ponto de vista do herói),
Narrativa pluri-focal e alinear, complexa;
narrador onisciente e mensagem maniqueísta;
Posições político-filosóficas, do autor,
Apolítico, inofensivo/conservador, alienado;
questionamento sócio-ecônomico;
O autor tem direito autoral e pode até O personagem pertence à editora, que pode
matar o personagem que lhe pertence; mudar o roteirista e o desenhista;
O autor envolve-se com cada HQ e demora A equipe produz dúzias de páginas por mês
a fazer (pouca quantidade e muita qualidade); (muita quantidade para pouca qualidade);
Vendido em álbuns anuais em livrarias
Revista mensal vendida em bancas de jornal,
ou em revistas underground de
grande tiragem, vendas em massa.
Vanguarda para público restrito.

Antônio Amaral, do Piauí, publica o cias da Comunicação (Intercom). Ele é um


álbum Hipocampo (com apoio da Onix Jeans dos representantes de uma nova tendência
e da Fundação Cultural do Piauí) em 1994. emergente na HQ de autor do Brasil, aliando
Tal qual Henfil, seu traço é econômico e sua prática como artista consagrado e com
veloz, criando um padrão estético de reconhecimento no exterior a uma reflexão
abstração único, rompendo com a tradição universitária que abrange uma dissertação de
plástica figurativa e concreta da HQ, seu Mestrado, artigos em Congressos e a edição
texto, como o poeta Augusto dos Anjos, de um fanzine (uma publicação independen-
emprega terminologia científica da física, te impressa em fotocopias xerox e distribu-
medicina, artes e literatura que muito habil- ída pelo correio e à venda em livrarias
mente mistura com folclore indígena (jabutí, especializadas). Ivan dedica igualmente es-
jacaré) flora e fauna local, crítica social e forços e investe seu tempo a estes múltiplos
poesia visual e verbal, criando um universo níveis de atividade e teve roteiro publicado
pessoal e autoral que é impar na história da no álbum Brazilian Heavy Metal em 1996,
HQ do Brasil; um trabalho de vanguarda em 1999 ganha diversos troféus de melhor
exemplar. (Como afirmo no prefácio que fiz roteirista, como “Angelo Agostini” “HQMIX”
para este álbum e para a segunda edição e outros.
colorida em 2000), Amaral fez o desenho que Devido aos preconceitos e desinformação,
abre a coletânea Brazilian Heavy Metal. somados aos interesses perniciosos de alguns
Ivan Carlo de Oliveira, sob o cartunistas consagrados, no Brasil as publi-
pseudônimo Gian Danton, publica pela cações alternativas, “subterrâneas”, indepen-
editora Fantagraph dos EUA roteiros dese- dentes de casa publicadora nas quais circu-
nhados por Benedito Nascimento (que hoje lam trabalhos sem oportunidade no mercado
assina Joe Bennet) em 1995. O mesmo Ivan editorial descrito acima, recebem a pecha de
também edita o fanzine Sequência, com textos fanzine, termo de sentido dúbio e vago que
de análise e crítica de Quadrinhos de Autor. já perdeu qualquer poder de significação ou
É jornalista e cursou pós-graduação descrição e que tornou-se pejorativo, depre-
(Mestrado), apresentando artigos no Grupo ciativo. Um exemplo desse preconceito
de Trabalho Humor e Quadrinhos que co- acontece com os tantos textos de crítica
ordeno no Congresso Brasileiro de Ciên- apresentados em nossos Congressos ou
530 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

publicados em revistas científicas universi- denador do Grupo de Trabalho em HQ no


tárias: uma vez reproduzidos em fanzines Congresso Brasileiro de Ciências da Comu-
passam a ser menosprezados e até mesmo nicação desde 1995 até 2000, selecionando
rejeitados. Em outros casos, revistas que pesquisas de professores doutores universi-
publicam HQ inédita são denominadas de tários do Brasil e exterior.
fanzines para, propositadamente, confundir Tenho observado este quadro da HQ
obras desenhadas com textos de crítica e brasileira e sinto esta tendência crescente de
reflexão acadêmica. autores que começam adolescentes em
No movimento de fanzines há iniciativas fanzines e depois de universitários (artistas,
cuja persistência torna-se simbólica da resis- jornalistas, arquitetos, cineastas, publicitári-
tência cultural nacional, como a super-hero- os, etc), passam a teorizar e refletir sobre
ína Velta de Emir Ribeiro (Paraíba), His- o objeto HQ com uma franca vantagem sobre
torieta de Oscar Kern, ou a revista que edito gerações anteriores somente acadêmicas, pois
desde 1979 em Santos, litoral de São Paulo, somam a seus argumentos a vivência prática
Barata, citada como tal no livro O que é da produção, quer em fanzines, revistas ou
fanzine, de Henrique Magalhães (p. 27 e álbuns no Brasil e exterior.
59) e no Almanaque de Fanzines (p. 39, 55,
67). 3. Considerações finais
Todos estes são exemplos aleatórios de
autores que teorizam sobre HQ seguindo uma Percebe-se deste quadro, que não preten-
tendência internacional iniciada por Will de ser uma descrição exaustiva e sim um
Eisner (EUA) e representada nos anos 90 por breve panorama do final do Século XX e
Scott McCloud, ambos autores que escrevem início do Século XXI e traçar o quadro de
e teorizam sobre a estrutura e signagem da cuja situação histórica surge o mercado da
HQ a partir de uma perspectiva tanto interna qual são decorrentes os hábitos de consumo,
e de vivência autoral quanto de pesquisador a problemática brasileira e as peculiaridades
e crítico. que os autores desenvolveram para dar vazão
Pessoalmente, não posso permitir-me à produção do bem cultural que são as
omitir minha reflexão baseada em experimen- Histórias em Quadrinhos.
tação muito semelhante, uma espontânea A HQ sofre do mesmo problema que a
Observação Participante deste recorte his- literatura, ambas impressas em suporte papel
tórico e seus processos. (grafosfera midiática) que tem pouco pres-
Edito HQ de vanguarda de diversos tígio devido a preconceitos academicistas
autores junto a minha própria em sistema de arcaicos, lutando para sobreviver em um país
cooperativa na revista-fanzine Barata desde de dimensões territoriais continentais, com
1979. Após ter organizado a Primeira Ex- um problema de analfabetismo não assumido
posição de HQ de Santos em 1985, fui eleito pelas autoridades, alta densidade demográfica
diretor executivo da Associação dos no parque industrial do eixo Rio de Janeiro-
Quadrinhistas e Caricaturistas de São Paulo São Paulo, migração em massa com choque
em 1986, onde escrevi a Cartilha de Direito cultural rural-urbano, etc...
Autoral da HQ. Fui jurado da I Bienal de Esta população semi-alfabetizada e sub-
Quadrinhos do Rio de Janeiro (1991), pu- empregada ouve rádio, vê televisão, não
bliquei em cerca de 200 fanzines, além da compra HQ quando pode comprar comida,
publicação independente dos álbuns alterna- e as editoras acostumaram-se a ter menos
tivos: Guerra das Idéias (1987 com a quarta prejuízo e problemas com a censura da
edição em 2001), Guerra dos Golfinhos ditadura publicando material americano, o que
(1991) - também publicado em capítulos na criou uma cultura de repúdio à produção local
revista Porrada Special e Absurdo (sob que somou-se ao espírito colonial de valo-
hipnose em 1992). Participei da coletânea rizar o que é estrangeiro, sendo louvável o
Brazilian Heavy Metal (1996) e “Hora da fenômeno Maurício de Souza, que é a exceção
Horta” com HQ histórica sobre os “Outros para confirmar a regra.
500” do descobrimento e colonização do Autores, cujo espaço para publicação é
Brasil, em 2000; e sou o fundador e coor- cada vez mais reduzido, aproveitam-se da
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 531

charge e cartum dos jornais para divulgar uma que muitos destes são universitários que
tira bairrista como a Escola Paulistana de cursam pós-graduação e participam de con-
Humor, outros sujeitam-se a desenhar super- gressos, realizando pesquisas onde unem a
heróis cobrindo férias dos americanos ou teoria à prática.
desenhando HQ comercial baseada em es- De todo o universo dos quadrinhos bra-
portistas ou programas de televisão, ou ainda sileiros, cerca de 70 autores profissionais e
expor-se como curiosidade mórbida à mídia de fanzines participam da coletânea
rotulando sua própria obra como arte-tera- Brazilian Heavy Metal, dando um panorama
pia, ou desenhando sexo explícito. da produção brasileira nos anos 90.
Porém, centenas de fanzines atuam como Futuras pesquisas poderão detalhar me-
resistência cultural em um movimento alter- lhor este horizonte do quadrinho brasileiro,
nativo que chega a ter distribuidoras atuando identificando os padrões dos estilos autorais
pelo correio, e deste universo surgem autores e as redes de influências internacionais destes
com uma obra autenticamente autoral, sendo e outros autores.
532 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

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Cirne, Moacy. História e crítica dos Wizard, Número 6, jan. 1997, São Paulo,
quadrinhos brasileiros. Fundação Nacional de Editora Globo.
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Eisner, Will. Quadrinhos e arte
seqüencial. São Paulo, Martins Fontes, 1989. _______________________________
Ikoma, Fernando. A técnica universal das 1
UNESP.
histórias em quadrinhos. São Paulo, EDREL, 2
Gíria pejorativa usada pelo norte-america-
[s.d.]. nos para designar os latino-americanos.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 533

Vê isto, ou antes, escuta


José A. Domingues1

Como interrogarmos a apresentação plás- a não-figuratividade das obras na sua apre-


tica de um quadro? Pelo que se oferece ao sentação plástica. A escuta assinala a queda,
olhar, as suas linhas, as cores, o formato, a a quebra de relação da obra à comunicação
escala, o material? Que serve de princípio porque testemunha o que lhe é incomensu-
regulador ao comentário? O ver? O quadro rável, engendra inscrição, retenção, engendra
diz: «vê-me, ou melhor, escuta-me» (e cito rasto de nada; embora lhe pertença um género
Lyotard)2. Para Lyotard é um ver que nos de pensar ambíguo.
desperta a atenção de escutar. Para compreender como esta posição do
Lyotard dá à apresentação plástica de um pensar se organizou em termos de oposição
quadro uma interpretação que é consecutiva Construção/Doação, Lyotard resume o con-
à pesquisa da vanguarda, desde Delaunay ou flito que, de Galileu e Descartes a Heidegger,
Malévitch, sobre os constituintes mínimos do tem envolvido o pensamento e as formas de
espaço do quadro pictórico: o que será ser ou de não ser que o envolvem. As posições
necessário para haver quadro, pelo menos um do positivismo lógico e da ontologia poética
suporte para a tela, cores, um objecto, um sintetizam perfeitamente o conflito na actu-
lugar, qual o pensamento que acompanha esta alidade: ou situar o pensamento nessa acti-
estética minimalista?3. Lyotard pesquisa com vidade de reduzir e construir a linguagem
a vanguarda aquilo a que chama a comuni- sintáctico-formal como propunha Carnap5; ou
cação de nada do espaço do quadro. Isso virar para esse pensar cujo único objectivo,
significa que o que define a pintura não é através dos diversos modos de linguagem,
a existência pictural que permanece sob a é a geratividade de ocorrências antes de
hegemonia do olhar, mas é esta que apre- determinar as regras dessa geratividade6. Estas
senta a privação, interrogando-se visual e tec- duas formas têm em comum o facto de o
nicamente: é uma ascese visual e técnica que pensamento receber e se mostrar acessível
tenta estabelecer a relação entre alguma coisa ao acontecimento. Uma pergunta fundamen-
perceptível e outra coisa que ultrapassa o tal se coloca a partir destas duas posições
perceptível. É para esta relação que é im- filosóficas: a da complexidade da actividade
portante a escuta. do pensamento ou a da passibilidade, a
Segundo este aspecto, se a matéria plás- descrição. Na primeira situação é a lingua-
tica está virada para essa relação ao som, gem que define o pensador, a consistência
ao som que aqui está como mínimo de uma do pensar, a sua actividade espiritual. A
presença que não é presença para o espírito operatividade do sistema é aqui a única
activo, no sentido de não produzir dados evidência que resta ao espírito. Uma lingua-
apreensíveis pela articulação da sensibilida- gem somente pode comunicar-nos. Porque
de e inteligência, necessariamente deve ser nos pode combinar com outras linguagens
imaterial – na evanescência da matéria plás- (Wiener). Na segunda situação: «se pensar
tica permanece o som. consiste mesmo em receber o acontecimen-
Qual a importância do pintar para a to», segue-se daqui que o pensamento se tem
privação? Qual a importância de qualquer de encontrar em posição de resistência dos
arte? processos de controlo do acontecimento, em
Toda a criação artística será tematizada pensamento, ou seja, em posição de ques-
no abismo. O que significa tematizar a arte tionar tudo, questão e processos de controlo
no abismo?4. A criação artística acabará o seu da questão, logo requer que algo se apre-
testemunho no campo de apresentação que sente como algo diferente e cuja razão ainda
reúne o visível e o invisível para representar não tenha sido conhecida, aceita o que é como
534 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

vem, «ainda não» determinado (é isso que no instante plástico. A apresentação plástica
significa a passibilidade: se suster pela indica apenas que alguma coisa existe. A
meditação), sem o pré-julgar nem apreender7. simplicidade dos elementos manifestados
Desta atitude, desta inquietação diante de uma neste quadro corresponde à categoria do
realidade que requer ser tratada como uma sublime, isto é, a expressão pictórica é uma
mensagem obscura enviada por uma instân- testemunha do inexprimível (The sublime is
cia desconhecida, ou mesmo inominável, vai now). Um quadro de Newman diz respeito
nascer o génio: «uma natureza que actua no a este inexprimível enquanto ocorre na
próprio espírito»8. Mas como? Testemunhar determinação da arte pictural, dado que a
um acontecimento não é um poder do pen- matéria cromática, a sua disposição, faz
samento que aparece como primeira «causa» sentido por si, sem remeter para outra coisa
de explicação de uma inquietação e que e sem aceitar o seu plausível sentido15.
implica a capacidade de memória e de re- Se, portanto, o tema mais importante
tenção. Um acontecimento não é um objecto sobre a apresentação plástica é o tema
determinado (válido enquanto «causa» da «acontecimento», a irrupção deste tema vem
questão). O seu sentido não está nem no é sobretudo pôr em causa as tendências
pensamento nem à frente dele, mas para além gramatológicas do pensamento. Que terá
dele, na apresentação que o acontecimento provocado este acontecimento à inscrição?
de si fizer. E porquê? O acontecimento, diz Lyotard explica-o no texto Conservation e
Lyotard: «é a presença enquanto algo não couleur cuja temática abarca a inscrição.
apresentável ao espírito»9. Nihil, nada, ne- Trata-se de uma reflexão inspirada na pro-
gação, para o pensamento10. blemática da matéria pictórica conservada
Em apoio desta ideia de a arte implicar como obra museológica. Logo na abertura
uma passibilidade do acontecimento (dada na a tese é posta em evidência: «’Inscrição’
resposta do expressionismo abstracto: o tempo significa que a coisa pode passar, não pode
é o próprio quadro), Lyotard faz referência não passar, permanecendo ali todavia os sinais
aos trabalhos de Barnett Baruch Newman11. que mostram que existiu. E, quando dizemos
Não é porém isolada a sua investigação levada que ‘permanecem ali’, pressupomos com este
a cabo entre os anos 1940 e 1970. Confron- ‘ali’ a salvação que qualquer memorização
ta-a com as transformações do dadaísta espera do espaço»16. O espaço, inclusivamente
Duchamp – propriamente, a relação/não- o espaço colorido, um quadro, permanece na
relação de um acontecimento e a sua figura.– sua posição, ou aquando da operação do opus,
Le Grand Verre, por exemplo, não é nem convertido em signos, transformando, pelo
figurativo nem não-figurativo, mas dado que seu arquivo que resiste ao tempo, uma
apresenta uma figura que não pode ser conservação de signos, o olhar do observa-
intuída, figura o infigurável12. Trata-se de dor sobre a cor no substituto. Pressupondo-
fazer a crítica de uma obra que se inscreve se como um museu de signos, transcrevendo
entre o ainda não (La Mariée) e o já não e mantendo o que então foi dito e pensado
(Étant donnés) temporal13. Nos quadros de de outras vezes para outrora, o espaço «passa»
Newman aparece a imagem aqui-agora (a sua uma actualidade do novo em função da
apresentação essencial): o dizer fundamental repetição, do seu património cultural, da sua
é o dizer aqui estou, liberto de modo de- comunicabilidade e da sua reserva. Mas há
finitivo do dizer vê isto, a narração14. O dizer também nele um inacabamento, esse entretien
fundamental é o dizer do infinito, do abso- infini (Blanchot) que define a transmissão
luto, de uma diferença, e que se simbolizará como espaço do tempo presente ou vivo que
como criação artística por intermédio por a inscreve no futuro, ao diferido (Derrida),
vezes até da tela inacabada. O quadro é um à difusão. Inscrever é, assim, retomar espa-
espaço orientado para a ideia de começo ços-tempos, transportando nesse retorno o que
segundo uma apresentação que não apresen- de separação entre o acto e a sua passagem
ta nada, é uma apresentação negativa, uma à reserva faz o arquivo, a escrita, a técnica.
apresentação a partir do princípio de que algo Se estamos sempre e em todo o lado
será possível, tem lugar, sendo o quadro o diante do diferido, se a cultura é sempre uma
meio desse lugar, onde acontece, condensado arquivologia (Stiegler), é porque um meio
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 535

algo expõe da obra espontânea, dessa relação do componente clássico da pintura, o dese-
deslocada entre o espírito e o tempo e o nho (Dioptrique de Descartes), para a linha,
espaço desde o opus, seja qual for o meio a cor, o relevo, a profundidade, o movimen-
onde a obra tem lugar. Em relação à ins- to, o contorno19. A «estrutura do aconteci-
crição da obra como organização espacio- mento»20: «O começo do traço estabelece,
temporal a título de repetição e transmissão instala um certo nível ou modo do linear…Em
na concepção da função de um museu, relação a ele, toda a inflexão que segue terá
Lyotard mostra alguma reserva na exigência valor diacrítico, será uma relação a si da linha,
que tem de levar a obra de volta à situação formará uma aventura, um sentido da linha»21.
original. Já a reserva que o aspecto de Linha-forma. A percepção estética que o
arquivo, o dispositivo, ultrapasse, na expo- artista traça num entrelaçado de linhas equi-
sição das obras, o aspecto do diferido é vale a um pensamento: um pensamento será
completa17. uma percepção estética, designa, assim, o ser
A exposição escrita de Diderot (Salon, nas suas surdas operações. O ser visa-se,
1767) – em que a reflexão de Lyotard se justamente, nas estruturas de carácter
inspira – das paisagens pintadas por Vernet perceptivo que apresentam o enigma da
simula esse meio por onde se «passa»: o visibilidade. Dele resulta uma apresentação
passeio fictício na paisagem das cores com sem conceito do ser, apresentação imediata22.
o Abade abre, por escrito, as superfícies dos L’oeil et l’esprit é uma reflexão que segue
quadros como se fossem as portas de uma na direcção indicada pela descrição da pas-
exposição. A cor move o olhar, acontece sividade da síntese perceptiva introduzida por
diante do olhar, mas também é uma paisa- Husserl: oposta ao procedimento de origem
gem que o olhar não domina. A escrita torna- racional na Dioptrique de Descartes, em que
se paisagem da cor porque lhe damos um o cogito concebe o visível segundo o modelo
lugar no nome, desarmamo-la do olhar. O que a si se dá: «vidência que nos torna
que faz uma cor é a presença material que presente o que está ausente»23. Portanto a
subtrai a intriga dominada e afecta o sen- pintura em Descartes não é um meio que
timento: não é, assim, a forma ou figura determina o ser, é, antes, um meio simbólico
apresentada numa disposição inteligível ou da evidência do cogito de um espaço sem
sensível que faz a cor18. Porque aqui a estética restrição, profundidade ou espessura. Espaço
da matéria é anterior à da forma: o que se que a perspectiva ensina a produzir. Daí, a
apresenta é anterior e suspende o que se quer pintura é um artifício que organiza a ilusão
apresentar: a libertação também sentida pelo de uma forma verdadeira das coisas. Em
observador. Por isso, o que o museu expõe Descartes a visão é pensamento ontológico.
é a própria matéria cromática: o amarelo do Com Merleau-Ponty as elaborações
Delft de Vermeer, por exemplo, pendurado perceptivas feitas pela pintura são elabora-
no museu de Mauritshuis, na Holanda, de- ções sintéticas, partindo de um entrelaçamen-
volve a presença para si mesma como de- to, troca, reciprocidade, entre coisas e corpo:
fecção do lugar que tem (não tem, pelo facto «elas estão incrustadas na sua carne»24. Para
de recorrer à presença). Como acontecimen- compreender a visão, o corpo deve passar
to, não como quadro. E acontecimento in- da carne de sentinte para a de sentido. Esta
visível porque Cézanne, diante da sua comunicação supõe um acordo sobre a
montanha, o que vê é o seu próprio limite. definição das coisas e do corpo: «o mundo
O que testemunha Cézanne? Para é feito do mesmo estofo que o corpo»25. O
Merleau-Ponty, em L’oeil et l’esprit, Cézanne que quer dizer que o corpo que vê aparece
o mínimo que requer do acontecimento é a como corpo que é visto e a visão devém
percepção de pequenas diferenças, da mu- visível por si mesma. Uma visão de tipo
dança – a cor, a linha, a luz, o espaço. Esta ontológico activo passivo. Efectivamente, é
posição dita que o acontecimento não resulta o sentir que manifesta o estofo (a carne) quer
de uma mediação, mas que a procura. Como ao que vê, quer ao que é visto. É ele que
«pequena sensação» (José Gil). A única desempenha na visão o papel do traço de
preocupação do pintor é, pois, a de um meio união: o que remete o espírito para a passivi-
que tem que ver com o incomensurável: fuga dade, o desapossa da sua autonomia própria,
536 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

recua ao pré-lógico, e apaga uma distância, tagem experimental de novos modos da


de um vidente sobre o visível de um outro. sonoridade que é toda a libertação. Qualquer
Isto é, para Merleau-Ponty, Cézanne ocupa que seja o constrangimento a que esteja
uma posição também de reconciliador do submetido o som, como as novas tecnologias
sensível em relação ao inteligível que inclui contemporâneas, para se tornar apresentável
doação e linguagem. musicalmente, pode dizer-se: «o seu domínio
Em Lyotard o conceito temporal de prático pressupõe o seu isolamento fora do
acontecimento faz dele um som trémulo. ‘contexto’ da sua libertação»30.
Escuta, é a observação de Freud: o psica- Porque não é razoável reduzir o funda-
nalista não pode escutar o discurso do pa- mento da obra musical a uma «intuição» das
ciente sem ascese26. Na relação Cézanne/ dimensões do som, o «minimalismo» (pro-
montanha, se é a montanha que executa posta do happening, da performance, da
«movimentos» com material cromático, música de Cage, Morton Feldman), nem a
Cézanne não pode observá-la sem ascese: uma «axiomática» (tendência da experimen-
«algo» ocorre perante ou em seus olhos, a tação estrutural complexa de Pierre Boulez,
menos que estes não consigam ser receptivos Nono, Xenakis, Stockhausen ou Grisey),
perante ele. «Algumas vezes um movimento Lyotard segue por uma via que apresenta esse
deixa a descoberto um violáceo, outras vezes sentimento que é uma presença no tempo,
filtra-se uma modulação amarela da atmos- na orientação de uma arte do som e/ou do
fera»27. Como uma cumplicidade como riva- tom: Tonkunst31. Se este sentimento é uma
lidade do olhar interminável do pintor e uma presença atribuída a algo que soa, cria um
presença pura de cores, permitindo explorar som ou um tom, tönt, que obriga, torna-se
a aurora de uma nuvem de pensamento no necessário compreender a sua competência
horizonte cujo nome é Montaigne Sainte- para o sonoro, as suas possibilidades, e
Victoire através de pinceladas de óleo ou retomar o tema da escuta, a obediência, em
aguarela sobre a tela. Nesta perspectiva, a princípio possível com o encontro da música
visão da montanha terá de definir-se para o e da tecnologia contemporânea32. Então a
pintor Cézanne não como forma, mas como meditação artística (o estudo dos timbres
matéria oculta, jogo enigmático de cores e impostos pela instrumentação, das alturas,
não definição essencial de cores. segundo as próprias intensidades) converge
A questão da recepção desta matéria é para fazer aparecer a materialidade elemen-
tratada em Lyotard como uma questão de tar de um som (a vibração do ar com os seus
obediência. Lyotard descobre-a do lado da componentes da frequência, amplitude, du-
música com Adorno28. Em Adorno a escuta ração e timbre) e a sensibilidade do ouvido
do som musical é tratada sob o domínio da em relação ao ritmo de uma música concre-
técnica. A técnica é um aspecto constitutivo ta33. Como se o som entre pesquisas e in-
da arte, é esse «mais» que garante o seu venções (no seu passado clássico, barroco e
conteúdo, ou seja, a arte torna-se arte por moderno) fizesse e continuasse a fazer a sua
intermédio do «mais»29. A análise de Adorno anamnese, a sua travessia de estratos de
diz respeito, no entanto, à arte enquanto «evidências».
redução ao seu material imediato. É uma Permanecer através de um «contexto»
análise cujo sentido é muito semelhante ao complexo das formas musicais o som será,
de Lyotard, onde a aparição artística é a então, atingir a interioridade de uma escuta,
unidade do que inclui intenção humana e do a sua obediência, através da sua exposição
que não inclui. Para Lyotard a libertação do anacrónica. Se a estruturação de uma obra
material musical, do som, é obra de controlo musical lhe vem do timbre, se a sua forma
tecnológico que se questionaria se a possi- lhe vem dessa materialidade, só através da
bilidade aumentada da figuração desse mesmo diferenciação dele se descobre a sua diferen-
material dominasse a escuta e se discrimi- ciação – as suas cores, o seu tempo, quer
nasse em durações. A libertação do material dizer, o seu limite nunca ouvido –, aquilo
sonoro, assim, implica a ruptura da causa em a que Varèse chama, de acordo com Lyotard,
relação ao efeito que é o desconcerto con- o «radical impensado» do ouvido34. A forma
tinuado do ritmo e a pesquisa numa mon- da obra assenta nesta matéria sonora própria
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 537

– é um som, criado a partir do «tempo de que a audição se torna uma refém) da rede
acontecimento sonoro» (que não se ouve)35. A que liga a escuta à pertença: é da obrigação
obra musical pode transmitir esse tempo so- (Lyotard diz: «de uma passividade que
noro porque o transmite com um conceito – gostaria de traduzir por passibilidade»)36 desta
o conceito da encarnação do som na tecnologia. escuta que ouvimos sons, melodias ou har-
Inserida numa tecnologia do som e do monias de acordo com uma música enigmá-
impensado-som, numa anamnese, a experi- tica37. Assim não há arte tecnológica que se
ência estética do som, como escuta, proce- não funde em pressupostos ontológicos, o da
dendo como campo de apresentação, acaba doação, que é uma comunicação do espaço-
por engendrar um sentimento através do som. tempo invisível, o inaudível. Isto é válido
Nos termos de Lyotard, nesse caso julgar de para a música como para a pintura, as duas
forma determinante deixa de ser diferente de artes temporais (L’Acinéma é dedicado a outra
julgar de forma reflexionante. Podemos ligar arte temporal importante, o cinema). É a
à arte a ciência – a crítica da representação defecção do espírito que dá lugar a uma
do som e abertura do campo sonoro. O que estética de «antes» da representação da forma,
faz a Tonkunst essencialmente energética, ao a que Lyotard chama alma – alma mínima38.
contrário da Musik, que se inscreve numa Esta alma, diz: «Longe de ser mística, é, de
atenção ao quadro musical, à forma musical. preferência, material»39. Concluindo, o que
Nesta perspectiva, as músicas são correspon- está no princípio da sua estética da presença
dências (na teosofia swendenborgiana a material antes da visão das formas é o que
música é uma convocação de uma voz de resume o som.
538 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

4
Bibliografia Abismo que Casimiro de Brito concretiza
no seguinte fragmento: «Escrever como quem pinta
(…) refazendo a cor desfazendo a matéria sonora
Adorno, Theodor, 1993, Teoria estética
com novos afluentes do mesmo rio (…) a me-
[1970], trad. Artur Morão, Lisboa, Ed.70. mória do país silencioso (…) a nuvem de pedra
Barthes, Roland e Havas, Roland, 1987, que se instala nas cavernas vorazes da noite (…)
«Escuta» in Enciclopédia Einaudi, Vol.11, a ciência circular do poder, palavras infectas que
Oral/Escrito, Argumentação, TRAD. Teresa não sei manipular (…) um homem de palavras
não é um homem de mão (…) um rio sem margens
Coelho, Lisboa, IN-CM.
como se o tempo (a respiração) não existisse (…)
Blanchot, Maurice, 1984, O livro por vir nómada viagem imóvel ao interior de ilhas sem
[1959], trad., Lisboa, Relógio d’Água. memória (…) inesperado sul surdo (…) alimento
Brito, Casimiro de, 1982, «Da poesia: ars quem me alimenta (…).» (Casimiro de Brito: 1982,
combinatoria – fragmentos de um diário» in p.27, fragmento 12 citado tal qual).
5
Cadernos de Literatura, Centro de Literatura Alberto Pasquinelli: 1983, p.47, cita Carnap:
«A parte do labor filosófico que pode ser con-
Portuguesa da Universidade de Coimbra, siderada de natureza científica… não é senão a
nº12. análise lógica».
Deleuze, Gilles, 1980, Mille Plateaux, 6
Marta, minha filha, na idade de 3 anos: «Se
Paris, Les Éditions de Minuit. está escuro, o meu dói-dói está no meio do escuro.
Descartes, René, 1996, «Dioptrique» Se está dia, o dói-dói está no meio do dia. (Está
escuro!) Vês o meu dói-dói? Não vês!»
[1637] in Oeuvres de Descartes, Vol.VI, Paris, 7
Lyotard, op.cit., p.85.
Vrin, pp.79-228. 8
Ibidem, pp.84-86.
Gil, José, 2001, Movimento total, o corpo 9
Ibidem, p.154.
10
e a dança, Lisboa, Relógio d’Água. Ibidem, p.25. A diferença que se nega a
Lyotard, Jean-François, 1988, L’Inhumain, Derrida, a nomadização de Deleuze ou o eu de
causeries sur le temps, Paris, Galilée. Lévinas podem ver-se numa perspectiva «herme-
nêutica» que seja a audição dessa passibilidade
1990, Duchamp’s trans/formers [1977], do pensamento com o acontecimento, outra forma
trad. I.Mcleod, Venice, The Lapis Press. de aproximação ao tempo.
1992, Peregrinations, ley, forma, 11
À sua poética plástica e à sua ensaística.
12
acontecimientos [1988], trad. Maria Coy, Ibidem, p.90; Idem, 1990, p.87.
13
Madrid, Ediciones Cátedra. Idem, 1988, p.91.
14
Ibidem, p.92.
1998, Moralidades Postmodernas [1993], 15
A interpretação da determinação pictórica
2ª ed., trad. Agustin Izquierdo, Madrid decorre fundamentalmente de elementos religio-
Tecnos. sos hebraicos, desde a Paixão de Cristo que é o
2002, Discours, Figure [1971], 5ª ed., sinal do necessário recomeço, e, ainda, desde Adão
Paris, Kliencksieck,. ou Abraão. Na Paixão de Cristo (Bíblia) diz-se
que o desespero da pergunta de Jesus crucificado
Merleau-Ponty, Maurice, 1964, L’œil et a Deus atormenta os que o adoram, quer dizer,
l’esprit, Paris, Gallimard. é a pergunta original. A tela Be (sê) é a única
Pasquinelli, Alberto, 1983, Carnap e o resposta ouvida, retomada com os títulos Be I e
positivismo lógico, trad. Armindo José Be II. O risco rectilíneo nos quadros e as cores
Rodrigues, Lisboa, Ed.70. colocadas sobre uma superfície como se fosse o
universo são uma representação para conotar os
silêncios de Deus. Qual é o silêncio que se anuncia
sob a imagem de Broken Obelisk? A ponta virada
_______________________________ do obelisco toca o cimo da pirâmide, é o dedo
1
Universidade da Beira Interior. de Deus que tocará os que acolhem o desconhe-
2
Lyotard: 1988, p.92. cido. O meio em que se terá a tarefa ontológica
3
A problemática dos constituintes mínimos é o aqui e agora do quadro. Esta representação,
do espaço do quadro opera no declínio da ideia que se tornou uma preferência para significar o
clássica de espaço do quadro como espaço de texto choque da ocorrência no judaísmo, inspira-se no
(Greimas), com uma organização pragmática: sublime – este sentimento contraditório que a
mensagem, destinador, destinatário, referente (ins- vanguarda abstracta caracteriza recua ao antigo
tâncias responsáveis por um processo de comu- Dionísio Longino e ao modernismo de Edmund
nicação). Burke e Kant, de modo particular.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 539

16 30
Ibidem, pp.157-158. Lyotard, op.cit., p.179.
17 31
Ibidem, p.118: «Loucura devida a um Ibidem, p.188: «existe um minimalismo do
esquecimento ontológico: omite-se que o que muito complexo… Além do mais existe um
acontece é diferido e separado, que lhe pertence conceptualismo inevitável, até na escrita de obras
o esquecimento… Esquecer este esquecimento é ‘pobres’, feitas de ruídos obtidos a partir da
a sua maior ameaça». Trata-se de fazer saber do percussão de quaisquer objectos: o ‘indefinido’
secreto desejo de remissão que encena o «museu [qualunquisme] sonoro exige a maior reflexão e,
imaginário» de Malraux: «a escrita da escrita, o por vezes, uma verdadeira axiomática.»
32
artístico do artístico» (123), concretamente, o facto Ibidem, p.179: «…(digo destinação para
ontológico da autografia, a arte reduzida ao valor retomar um termo que cobre a área da reflexão
de si mesma. dita estética desde Kant até Heidegger)…».
18 33
Ibidem, p.151: «Já que a ideia de uma Ibidem, p.181: «O ritmo é devolvido à única
concordância natural entre a matéria e a forma escuta imóvel que podemos então qualificar de
está em declínio… a aposta das artes, sobretudo interior.» (Ib.): «Daí o interesse das coreografias de
da pintura e da música, só pode ser a de apro- Merce Cunningham, sobre ou ao lado das músicas
ximar-se da matéria». Oposição ao tema de John Cage. O ritmo sonoro não se inscreve nas
aristotélico da matéria e da forma: a matéria é capacidades ‘naturais’ ou ‘culturais’ do corpo. O
um poder concebido enquanto potencial, enquan- domínio deste último sobre o ‘seu’ espaço (ou o
to estado indeterminado da realidade, a forma, inverso), por meio de movimentos, é desconcerta-
segundo o seu modo de causalidade, é pensada do». Resta ver o que desencadeia as séries de gestos
como acto que figura o poder material. Este de Cunningham: «Perante o vazio está só, de uma
dispositivo metafísico é colocado sob o regime solidão que o arranca para fora de si. Está só e fora
do princípio de finalidade. de si. O seu gesto vai na direcção dos outros corpos.
19
Descartes: 1996, p.113: «um pouco de tinta Como dançar esse gesto? Como fazer? ‘Fazendo-
deitada sobre um papel» é um artifício do espaço o’, diz Cunningham» (José Gil: 2001, p.29).
34
em si. Representa-nos o que veríamos propria- Ibidem, p.183.
35
mente em presença das coisas. Ibidem, p.184.
20 36
Merleau-Ponty: 1964, p.61. Ibidem, p.190.
21 37
Ibidem, p.74. Roland Barthes: 1987, p.144-145: «o que
22
Ibidem, p.52. Podemos ver aqui uma es- normalmente se ouve (…) não é a presença de um
tética das qualidades puras à maneira do Filebo, significado, objecto de reconhecimento ou de
como nos ensina Deleuze (1980, p.376-377): há decifração, é a própria dispersão, o jogo de es-
um segredo de um devir que o meio contém, o pelhos dos significantes, incessantemente reproposto
que o faz funcionar como arquétipo e ser um por uma escuta que os produz incessantemente, sem
género de reminiscência. fixar nunca o sentido: este jogo de espelhos chama-
23
Merleau-Ponty, op.cit., p.41. se significância (distinta da significação): ao ‘es-
24
Ibidem, p.19. cutar’ um trecho de música clássica, propõe-se ao
25
Ibidem, p.21. ouvinte que o ‘decifre’, ou seja, que reconheça
26
Roland Barthes: 1987, p.142: «A partir desta (servindo-se da cultura, da atenção, da sensibili-
deslocação (que não deixa de lembrar o movi- dade) a construção, tão codificada (pré-determina-
mento de que provém o som) surge ao psicana- da) como a de um palácio em dada época. Mas
lista como que uma ressonância que lhe permite ao ‘escutar’ uma composição (…) de Cage, escuta-
‘orientar o ouvido’ para o essencial: o essencial se um som a seguir a outro, não na sua extensão
aqui é não perder (e fazer perder ao paciente) o sintagmática, mas na sua significância bruta e como
acesso à insistência singular, e extremamente que vertical». Apreciação análoga na pintura
sensível, de um elemento prevalecente do seu (Lyotard: 1988,153): «O que está assim em jogo,
inconsciente». A escuta do psicanalista consiste na tarefa de pintar não é, de modo algum, cobrir…
neste ouvir o inconsciente do outro e ela só existe o suporte… A aposta é pelo contrário, começar ou
com a suspensão do escudo teórico: «navegação tentar começar, aplicando um ‘primeiro’ toque de
feliz, infeliz que é a da narrativa, o canto já não cor, deixar chegar outro e outro matiz, deixando-
imediato, mas contado» (Blanchot: 1984, p.13). os associar-se segundo uma exigência que é a sua
A escuta que se revela na teoria deixa de ser e que deve ser sentida, não ser dominada».
38
imediata para ser diferida. Lyotard, op.cit., p.169: «Representa-se sem
27
Lyotard: 1992, p.36 continuidade, sem memória e sem espírito (nem
28
«L’obedience» (idem, 1988, pp.177-192) imagens nem ideias) com o objectivo de limitar
baseia-se neste sinal aberto sobre a técnica da arte, ao mais possível o mistério da sensação...somente
que se pode ver em Adorno: Filosofia da Nova quiçá uma arqui-epochê da sensação pudesse
Música e Teoria Estética. enunciar essa proposição.»
29 39
Adorno: 1993, p.95. Ibidem, p.163.
540 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 541

O estético como compensação


José Manuel Gomes Pinto1

1. Habitar a palavra significa permanecer decompunha em fragmentos que por sua vez
dentro dela. Corresponde a uma miniatu- se fragmentavam, e nada se deixava possuir
rização do sujeito dentro do espaço que esta por um conceito. As palavras isoladas na-
ocupa. O espaço que ela descreve. Significa davam à minha volta; coagulavam e eram
alojar-se nela, ocupar o tempo todo em ela, olhos que me fixavam e sobre os quais era
não com ela. Morar lá. Quer dizer: demorar- forçado a fixar os meus: remoinhos que me
nos em ela. Isto não corresponde a uma dão vertigens quando neles mergulho o olhar,
mudança de perspectiva, de deslocação do que giram incessantemente e através dos quais
lugar de tematização. Àquela, por certo, se chega ao vazio»2.
pertence sempre uma mudança na percepção Esta experiência coloca-nos frente a duas
do mundo, mas não uma alteração do mesmo, aporias irresolúveis desde o ponto de vista
daquilo que permanece de fora. O mundo teórico. Primeiro, ou nos encontramos de tal
permanece. Demora-se. forma afastados da linguagem, que unicamen-
Habitar a palavra, significa, antes, vol- te a vemos como veículo. Posição
ver-se para dentro da própria perspectiva. Não diametralmente contrária à que anteriormen-
querer sair, demorar-se nos espaços que esta te descrevemos. Aí tudo é exterior, perma-
marca, delimita. Resumindo: elisão de toda necendo o nosso olho – ainda que falsamente
a intencionalidade. Isto constitui, precisamen- – como um limite da realidade. Claro que
te, o que filosoficamente cabe no vocábulo aí já não importa como dizer, apenas nos
indizível. Tudo o aquilo para o qual não entretemos em tentar apresentar o que está
encontramos uma palavra que emprestar, que aí, o objecto. Neste ponto, encontramo-nos
se manifesta inexpressável – ou que parece no domínio instrumental da utilização da
não encontrar expressão alguma –, não linguagem, onde perdura uma certeza
permanece fora dos limites da linguagem: inviolável: seja o que for, não conseguire-
habita em ela. Ou melhor, o indizível cons- mos nunca comunicar. Permaneceremos no
titui-se no limite das possibilidades do dizer, domínio simples da apresentação. Por outro
a saber, na experiência desses limites. Por lado, a linguagem ensina-nos o não esgota-
isso ele é assinalável. Existente. Ele aparece mento do querido dizer nas formas possíveis
sempre como uma possibilidade estética. O de o dizer. Remete-nos para os limites dessa
indizível corresponde ao estranhamento com experiência, por certo, os limites da expe-
que nos surpreendemos em a linguagem ao riência mesma. Isto é, alude às possibilida-
tentar comunicar algo. A que se deve esse des últimas que ela mesma nos oferece. E
estranhamento? Às possibilidades que nos sem prejuízo: nela somos obrigados a encon-
oferecem os modos de dizer. Mas no não trar-nos. Não há exercício da linguagem que
esgotamento destes. Essa estranheza devém não corresponda, também, a um encontro
angústia no momento em que os modos de connosco. Jacques Derrida é claro sobre este
dizer, na comunicabilidade, nos surgem ponto: «a auto-afecção é uma estrutura
dotados com o mesmo valor. Qualquer palavra universal da experiência. Todo o que é vivo
sobra na expressão; toda a palavra se ma- tem a potência de auto-afecção. E somente
nifesta deficiente. Ou calamos ou falamos um ser capaz de simbolizar, quer dizer, de
indefinidamente. As hierarquias derrubam-se, se auto-afectar, se pode deixar afectar pelo
qualquer forma é legítima, apresenta-se como outro em geral. A auto-fecção é a condição
legítima. O emudecimento de Lord Chandos, de uma experiência em geral»3. Aí, a dis-
na célebre carta de Hugo von Hofmannsthal, tância relativamente ao querido dizer –
corresponde a essa perplexidade: «tudo se imagine-se uma infinidade de ‘objectos’ – é
542 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

de tal forma ínfima, que sucumbimos no uni- pois corresponde, de princípio, a um único
verso de significação para o qual nos qui- indivíduo –, que se abra em direcção ao seu
sermos remeter: o outro. Na síntese que a centro, quer dizer, em direcção ao silêncio.
palavra nos apresenta, não está dada a soma E nisto consiste o movimento da leitura:
das suas partes: ela é menos do que isso, penetrar-nos pelo discurso, habitar, no modo
não chega. Mas na mínima distância que pro- de dizer, nas palavras fixadas, o querido dizer:
voquemos, emergirá dela essa síntese como aquilo que não se deixa apreender. Entre leitor
diferida: a palavra é mais, agora. Devolvida e autor, estabelece-se como que um elo
a nós, extravasa aquilo que se quis dizer. Esta mágico. Ao ensejo do primeiro, corresponde
tensão estabelecida entre o excesso e o defeito uma exigência do segundo: saber que as
da palavra, no querido dizer, abre as portas palavra se lhe dirigem, dar conta disso: «[…]
do silêncio. E neste, no emudecimento, a as palavras, os livros, os monumentos, os
necessidade de o fazer calar, de o anular. símbolos, os risos são apenas caminhos desse
E é no silêncio (e da necessidade de a ele contágio, dessas passagens. Assim, não so-
nos juntarmos) de onde ressurge, novamente, mos nada, nem tu nem eu, junto das palavras
a palavra. Aquilo que aqui chamamos «ha- ardentes que poderiam ir de mim para ti,
bitar as palavra». Insuficiência e simultane- impressas em uma folha: pois eu só teria
amente excesso diante da experiência que a vivido para escrevê-las e, se é verdade que
funda. Quer dizer, insuficiência da palavra, elas se endereçam a ti, tu viverás por ter tido
excesso de experiência. a força de escutá-las»7.
Aquela experiência não pode ir mais além 2. A tensão que acima descrevemos,
da linguagem. Semelhante suposição afirma- existe, de forma absoluta, num texto de
ria a existência de um pensamento fora dos Bataille A experiência interior. Mas isso não
limites da nossa linguagem, o que sem se dá de uma forma velada, como seria de
qualquer esforço acrescido se manifestaria esperar. Pelo contrário, ela emerge como a
como uma contradição. De facto, não há sua condição de possibilidade, como a sua
pensamento sem (fora) linguagem4. A estru- origem. Desde o início desse texto, logo a
tura do pensamento é, necessariamente, partir da primeira linha, somos alertados de
logocêntrica. Toda a experiência, bem como que todo o esforço que aí se realiza tem uma
todo o pensamento, se efectivam em a lin- motivação ruinosa: procura purgar-se a si
guagem. O silêncio mostra-se, desta forma, mesmo. A sua única razão: mostrar que o
e a despeito da sua estrutura ambígua, como querido dizer do texto é, precisamente, a
uma possibilidade de linguagem. Ou cons- tensão que abre todo o exercício do pensar,
titui-se como uma luta em a linguagem, ou todo o exercício linguístico: a de narrar o
como um reenvio da linguagem a ela mes- inenarrável, a de comunicar o indizível.
ma: «O silêncio é uma palavra que não é Experiência, porque vai até aos limites do
uma palavra, e o sopro um objecto que não possível do homem. Porque se abre à auto-
é um objecto»5. De qualquer das formas, o afecção e à diferença, para utilizarmos con-
silêncio permanece também por entre as ceitos de Derrida. Disso Bataille nos quer
palavras. O silêncio, por assim dizer, habita dar conta. Interior, porque a própria expe-
todo o discurso. Por isso, podemos afirmar riência deve, necessariamente, habitar a
que todo o movimento de leitura é eterno, palavra, diferi-la, reconduzi-la a si. Silêncio
infinito. Mas também é o da escrita, exac- que foi quebrado para que volte a emudecer,
tamente pelas mesmas razões6. Nesta encer- mas na leitura. Interior, porque permanece
ramos o querido dizer – na forma de o fazer dentro dos limites do indivíduo, única forma
–, mas libertamos a palavra, pela fixação, ao de procurar atingir o universal. Em suma,
mesmo tempo, da sua prisão, da volatilidade interior porque visa a comunicação. O enig-
da oralidade. Deferimos o discurso, procu- ma fica patenteado, exposto até. Esse é o
rando que este se abra, procurando que este esforço de Georges Bataille. Mas não é o
se deixe penetrar, numa tentativa de mostrar enigma em si mesmo, apenas a forma do seu
o que se quis dizer. Este é o sentido mais deixar-se ver. Quer dizer, todo o esforço da
alargado da comunicação: procurar que o escrita em Bataille consiste em fazer apare-
fechamento que todo discurso pressupõe – cer a forma do enigma. E a única perplexi-
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 543

dade que nos causa é precisamente essa: que mundo. É isso que também quer apontar
o enigma se deixe ver. Diz Derrida que o Jacques Derrida quando põe em jogo a
esforço de Bataille se concentra no «dever «estrutura geral da auto-afecção»12. Uma
de encontrar um discurso que mantenha o experiência – em forma de constatação – que
silêncio»8. E isto significa que enigma fica é obviada propositadamente. Como dissemos,
por resolver, que tampouco se queira resol- ela é só apresentada em tangente. Dificilmente
ver. O discurso de Bataille, não se apresenta, poderá ser apresentada doutra forma. As
desta forma, um texto propedêutico – ele não palavras tocam–lhe ao de leve13. A descrição
habilita. Tampouco é um texto iniciático – exaustiva e totalizante deste confronto, con-
ele não prepara. Surge somente como um duzir-nos-ia a uma suspensão – e a uma
texto descritivo. Um esforço de descrição consequente dispersão – daquilo que realmen-
daquilo a que chama a expérience interieur. te importa: habitar já dentro do enigma14. Sem
Experiência que necessariamente é sua, lhe quaisquer mediações o problema aparece
pertence interiormente, permanecendo nele, assim formulado: «Se perguntar face a um
não fosse a palavra... E é, exactamente, nesse outro: por qual via se acalma nele o desejo
esforço da descrição simples que a tensão de ser tudo?»15. Contingência, discontinuum
da sua escrita se concentra. Apresentação do no processo de constituição do mundo,
deserto, de um espaço infinito onde devemos particularidade do sujeito frente à universa-
habitar a palavra9. lidade da experiência, tudo isto surge como
Não há habilidade, no autor, em nos o prelúdio de uma longa viagem a percorrer,
prender com fáceis compromissos morais. uma viagem que se quer feita dentro dos
Tampouco se quer dar um valor acrescido limites traçados pelo confronto entre desejo
ao texto, como se as palavras estivessem e razão, entre vontade e poder. Renunciar,
mortas e a narração acabada. Existe, sim, uma como nos diz, as essas ilusões nebulosas16,
responsabilidade dada ao leitor, uma exigên- que tornam a vida, por outro lado suportável,
cia que lhe é feita. Sem lhe fazer qualquer funda o ‘objecto’’– aquilo que este quer visar,
concessão, diz: «Este livro é a narração de aquilo que se pretende nomear, ainda que sem
um desespero»10. Nada mais podemos espe- nunca o conseguir – do texto: a confissão
rar. Ou por outra, devemos querer e poder de um sofrimento: «O sofrimento, que se con-
esperar tudo. Narração de um desespero… fessa, do desintoxicado é o objecto deste
Haverá alguma outra experiência humana livro»17. Ou, melhor, a confissão progressiva
onde a experiência do emudecimento melhor e lenta desse sofrimento. É, pois, a narração
se faça sentir? O desespero é, por necessi- de um desespero, cujo objecto se constitui
dade lógica, inenarrável. Lá, onde não existe como uma confissão, ou um confessar-se
esperança, a palavra dissipa-se. O que ela lento, do sofrimento aí sentido. Sofrimento
quer aí apresentar não tem qualquer valor. que emerge perante o grande enigma com
O desespero é um estado de ausência total o qual já experienciámos o mundo, mas que
de palavras, de lugares, de movimentos, de também é o mundo. Enigma que nos torna
esperanças. Um espaço infinito e deserto. conscientes das possibilidades que ao homem
Também por essa razão ele é o que melhor lhe são dadas de apreender o mundo, ou os
permite tomar a palavra, andar em seu redor, seus múltiplos modo de ser. Consciência que
falar dela continuamente, mas num movimen- nos faz cair – que nos faz reduzir – ao no
to de irreferência pura. É ele que alimenta, silêncio, habitando apenas as palavras: «Tudo
também, todo o discurso. Esse desespero desabava! Acordei diante de um enigma novo,
nasce duma experiência que Bataille apre- e este, soube logo que era insolúvel: este
senta em forma de uma enorme obviedade: enigma era tão amargo que me deixou numa
que o mundo se nos manifesta como um impotência tão abatida, que eu o senti como
enigma a resolver11. Uma vez mais nos re- se Deus, se ele existe, o teria sentido»18. Esta
encontramos com o esforço da escrita, com impotência constitui a própria experiência, a
a tensão da comunicação. Porque toda a surpresa, o tudo pôr em causa. Impotência
experiência consiste nesse confronto discreto que constitui o cerne próprio do desespero
e directo com o enigma. Porque toda a que o livro quer e deseja narrar. O esforço
experiência evidencia o descontínuo do da escrita no texto de Bataille é, precisamen-
544 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

te, esse: o de nunca permanecer na indife- experiência interior responde à necessidade


rença, no não distinguir nada – que só essa em que me encontro – e comigo a existência
viagem nos pode causar19 –, mas em pros- humana – de colocar tudo em jogo (em
seguir no esforço de o dizer, no esforço por questão), sem repouso admissível. (…) Os
mostrar que se habitou o deserto. Que, apesar pressupostos dogmáticos deram limites
disso, não nos rendemos20, prosseguimos, indevidos à experiência: aquele que já sabe
aceitamos. Querer voltar a tomar a palavra. não pode ir além de um horizonte conhe-
Voltar da experiência que nos fez emudecer, cido»23. Existe uma correspondência clara
tomando de novo a palavra. Duas passagens entre a «renúncia a querer ser tudo» – da
deste fragmentário texto mostram aquilo que qual ainda desconhecemos todo o seu valor
tentámos expressar. Assim: «Da firmeza do – e a necessidade humana de «colocar tudo
desespero, experimentar o prazer lento, o rigor em questão» a que a experiência interior nos
decisivo, ser duro, e antes fiador da morte remete. A primeira conduz-nos à experiência
que vítima. A dificuldade, no desespero, é dos possíveis; a segunda, aos possíveis da
a de ser inteiro: no entanto, as palavras, à experiência. A primeira tem uma função
medida que escrevo, faltam-me […] O destrutiva; a segunda uma função fundadora:
desespero é simples: é a ausência de espe- mostra que os limites apresentados pela
rança, de qualquer engodo. É o estado das primeira não são senão limites espectrais24,
vastidões desertas e – posso imaginar – do falsos, ou melhor, aparentes, efémeros. E isto
sol»21. Mas já antes nos dá o acorde para dá-se assim que experienciabilidade dos
todo o desenrolar da viagem na experiência possíveis lhe mostre –ou lhe possa mostrar–
da crise da palavra: «Chamo experiência uma tudo o que de novo existe, assim que lhe
viagem ao término do possível do homem. restitua todas as possibilidades da experiên-
Cada um pode não fazer esta viagem, mas cia. A experiência última das possibilidades
se a faz, isso significa negar as autoridades, (dos possíveis) visa a abolição de todo o
os valores existentes, que limitam o possível. confronto espistemológico: entre sujeito e
Por ser negação de outros valores, de outras objecto já não ‘deve’ mediar a categoria que
autoridades, a experiência tendo uma exis- o subsume – prescrevendo-lhe assim uma
tência positiva, torna-se positivamente o valor limitação –, limitando o objecto, instituindo
e a autoridade»22. –o. Essa divisão deve ser substituída por uma
3. Se no ponto anterior nos concentramos fusão entre eles, uma fusão que não esteja
em tentar decifrar o ‘carácter’ do texto em mediada por algo que o homem prescreve
Bataille, mais aporético e fragmentário que de antemão a todo o contacto ‘possível’ com
apodíctico e homogéneo, pretendemos agora o objecto. Já que aí o ‘possível’ não passaria
centrar-nos na análise da seguinte afirmação, de uma pura categoria formal. É apenas uma
procurando que nos conduza ao cerne da sua categoria mais com a qual subsumimos
significação. Eis a expressão: a experiência qualquer objecto. Este é o sentido da «evi-
no extremo do possível pede… dência» que no texto de Bataille se nos mostra
Lá, em ele, devemos dizer. Ou seja, a como uma das formas do enigma. Por outro
renúncia que nos anuncia só se dá no limite lado a experiência interior – «essa viagem
do possível, enquanto ela for experiência ao fundo do possível do homem» – tem como
desse limite último. Isto é, o «pedido» devém objecto o próprio homem. Ele é o seu ponto
exigência, a «vontade» devém, em última de partida (enquanto sujeito) e o seu terminus
instância, necessidade. Mais tarde a própria a quo. O homem observando-se a si mesmo,
renúncia vai-nos aparecer como um método, procurando conhecer-se, buscando quanto de
melhor, o próprio método. Assim, devemos si existe nele. Este sujeito que faz a busca,
dirigir a nossa atenção para o sentido do procura o universal no particular. O sujeito
fragmento: extremo do possível. Aí, a renún- que se procura determinar, deseja saber do
cia a «querer ser tudo» tem lugar. Compre- que é capaz. Essa viagem, uma viagem ao
endido e determinado o sentido do primeiro, centro do próprio sujeito. No fundo, um
estará assegurada a compreensão do texto. processo de reflexão, de meditação. Mas a
Pelo menos a partir do lugar desde onde lhe estrutura própria do sujeito exige um pro-
dirigimos a nossa atenção. Vejamos: «A cesso não mediado, ou seja, sem qualquer
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 545

artifício que lhe seja exógeno. No interior supremo auto-conhecimento. Toda a experi-
do sujeito encontra-se, desta forma, a origem ência interior estaria condenada ao esforço
e disposição de toda a procura, pelo que de indagar dentro de uma estrutura que não
nenhuma categoria lhe pode servir. Estas, pelo lhe pertence, a do indizível. Quer dizer,
contrário, constituem já um limite dele se apresentar-se-ia, para nós, como objecto a co-
compreender a si mesmo, dele se entender nhecer, como o limite do possível, anulando
consigo mesmo. Toda a crítica de Bataille tudo o resto. Ainda que a evidência estivesse
ao pensamento moderno, assenta precisamen- assegurada. Bataille observa que esta
te neste ponto: que seja útil iniciar uma circularidade cai por terra, já que o sujeito
viagem de encontro ao de si mesmo quando que suporta e fundamenta a ‘procura’ é, em
se já vai munido de artefactos construídos si mesmo, incognoscível. Deus não pode se
pelo sujeito. Melhor, que a razão consiga unir constituir-se como objecto. E esta constitui
aquilo que a experiência mostra como a única via dele tomar conhecimento. De
descontínuo, que a discursividade consiga Deus não há experiência. Pelo que a unidade
relatar (universalizar) a individualidade da pressuposta é ilusória. De outra forma per-
experiência, que a evidência se mostre en- maneceria, também, o homem afastado do
quanto tal. Artefactos que permitem uma apa- conhecimento de si. Condenado sempre ao
rentemente focagem do homem. Utensílios fracasso nos seus esforços. É esta a ressalva
que apenas servem para separar o sujeito dele que nos faz Bataille – logo desde o início–
mesmo, procurando a todo o momento que na utilização da palavra «mística», quando
este se institua como objecto, impossibilitan- faz equivaler a «experiência interior» com
do que este se realize na plenitude do ser «aquilo que habitualmente se chama expe-
o que é, não dando lugar à negatividade: «O riência mística…»27. «Livre de amarras»,
movimento recomeça a partir daí; o saber significa livre de todo o fundamento, livre
novo, posso elaborá-lo (acabo de fazê-lo). de todo elo mediador estranho ao próprio
Chego a esta noção: sujeito e objecto são homem, estranho a toda a experienciabilidade
perspectivas do ser no momento da inércia; humana. Nenhum objecto, que por natureza
o objecto visado é a projecção do sujeito ipse seja incognoscível se pode constituir como
querendo tornar-se tudo, e toda representa- um objecto de experiência: ele não é nunca
ção do objecto é fantasmagoria resultante do domínio de experiência, do contacto, de
desta vontade ingénua e necessária (se co- conhecimento. Permanece sempre de fora,
locamos o objecto como coisa ou como afastado de toda a experiência possível. Não
existente, pouco importa); é preciso chegar pode, desta forma, constituir-se como um dos
a falar de comunicação, compreendendo que possíveis da experiência, já que não se institui
a comunicação suprime tanto o objecto quanto como um limite28, mas apenas como um
o sujeito (é o que se torna claro no auge vazio. O contrário significaria a aniquilação,
da comunicação, quando, na verdade, há em verdade, de todos os modos de ser do
comunicação entre sujeito e objecto de mesma homem, de todas as figuras humanas. Ora,
natureza, entre duas células, entre dois in- pelo contrário, o possível abre-se no domínio
divíduos)»25. A distância criada por semelhan- restrito29 da experienciabilidade; tudo o que
te processo é bem patente em toda a filosofia jaz para lá desta linha, encontra-se no do-
cartesiana26. Afinal, a dúvida é resolvida mínio da impossibilidade: permanece enquan-
mediante o recurso a uma instituição to ausência de possibilidade30. Para este não
inominável, relativamente à qual a existência existe nem palavra, nem figura; não constitui
humana – e com ela toda a experiência – qualquer modo de ser. A atenção prestada
fica adscrita e fundamentada. Desta forma relativamente ao conhecimento desse ser
justifica-se e simultaneamente erige-se todo supremo – ou da sua mera possibilidade –
o campo da experiência possível, já que o deve deslocar-se, por necessidade intrínseca,
sem nome surge como o último possível da em direcção a um novo conceito: o de não-
experiência. Quer dizer, estaria justificada a conhecido. Este com contornos bem distin-
unidade e continuidade do mundo. Desta tos daquele que anteriormente referimos. O
forma, a necessidade de conhecimento ine- não-conhecido remete para a plurivocidade
rente ao Ser, corresponderia ao último e dos modos de ser, aponta para uma figura
546 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

possível, mas também para a possibilidade da experiência assegurada, a experiência do


de uma figura, uma vez que abre o espaço tédio, fundada. Esse seria o perfeito estado
para a sua própria consumação. No não-co- de «ociosidade». Esse prazer de ignorar
nhecido está já dada figura do seu desva- funda em nós o pôr em obra das nossas
necimento. Constitui-se como possibilidade possibilidades. Este abre a experiência, não
pura. O desconhecido não postula um elo do mundo, mas de nós em ele. Por esta razão
transcendente de união, já que emerge, ele se nos comunica, ele fala em nós. Mas
somente, de uma possibilidade de experiên- não se manifesta como transcendência, como
cia. Podíamos ler aqui o fundamento de todo condição de possibilidade, mas sim uma
o princípio de razão. Nesta perspectiva, tudo imanência pura, como constitutivamente
o que (ainda) não tem um princípio presente, inominável. É este o peso que
explicativo pertence ao domínio do (ainda) arrasta a escritura do texto. Diz Bataille numa
não experienciado. Na verdade é da supo- pequena passagem: «Eu carrego em mim,
sição deste – enquanto ponto de partida – como um fardo, o cuidado de escrever um
que surge toda a acção humana; é da sua livro. Em verdade, eu sou agido»33. É agido,
origem que emerge toda a possibilidade: «O para voltar a tomar a palavra. O sentimento
conhecimento em nada é distinto de mim de aborrecimento que mora na presunção da
mesmo: eu sou-o, é a existência que sou»31. existência de Deus e da possibilidade de
O não–conhecido é, ele mesmo, a origem e acesso a ele – cuja única verosimilhança
condição de possibilidade de toda a expe- somente a podemos encontrar na ideia de uma
riência interior, que se mostra como a única linguagem adâmica – é clarificado na seguinte
experiência fundadora. No desejo de o querer passagem: «Não sei se Deus existe ou não,
anular, o sujeito inicia o percurso que o mas, supondo que exista, se lhe imputo o
conduzirá aos seus próprios limites, à «ex- conhecimento exaustivo de si mesmo, e se
periência nua, livre de amarras» de que há ligo a este conhecimento os sentimentos de
pouco nos falava. satisfação e de aprovação que se somam em
Nas poucas páginas que Bataille dedicou nós à faculdade de apreender, um sentimento
a Descartes faz o seguinte comentário: novo de insatisfação essencial apodera-se de
«Descartes imaginou o homem como tendo mim»34. Como um todo acabado, na pres-
um conhecimento de Deus prévio ao que ele suposição da existência de Deus, a nossa
tem de si mesmo (do infinito antes do finito). miséria seria ainda maior e menos suportá-
Todavia, ele próprio era tão ocupado que não vel, pois teríamos de compreender o mundo
pôde representar-se a existência divina – para como superfície, como pele sem carne. Aí
ele, a mais imediatamente conhecível – no toda a nossa existência estaria descarnada:
seu estado de total ociosidade. No estado de «Se nos é necessário, em algum momento
ociosidade, esta espécie de inteligência da nossa miséria, colocar a existência de
discursiva que se liga em nós à actividade Deus, é sucumbir em uma fuga bem vã
(como o diz, com rara felicidade, Claude submeter o incognoscível à necessidade de
Benard, ao “prazer de ignorar” que obriga ser conhecido. É dar à ideia de perfeição
a buscar) não passa de uma trolha inútil, uma (onde prende a miséria) a preponderância
vez o palácio acabado. Por pior colocado que sobre toda a dificuldade representável e, ainda
eu esteja para isto, gostaria de ressaltar que, mais, sobre tudo o que existe, de modo que,
em Deus, o verdadeiro saber só pode ter por fatalmente, cada coisa profunda desliza, do
objecto o próprio Deus. Ora, este objecto, estado impossível em que a existência a
qualquer que seja o acesso que Descartes percebe, para facilidades tirando a sua pro-
imaginou, permanece ininteligível para nós»32. fundidade daquilo que elas têm por finali-
Permanece ininteligível, precisamente, por- dade suprimir»35. O que se joga é a digni-
que não se pode constituir como o «objec- dade. Apreender o fundamento como que
to». Todo o objecto deve fazer frente, é inerte, corresponderia à mediocridade pura.
possibilidade pura. De outra forma, se fosse Inércia pura, anulação de toda a experiência,
possível um conhecimento de Deus, do absoluta indiferenciação. Já não se trata de
fundamento, tudo permaneceria, em nós, apontar para, de determinar a meta para a
inalterável. Ele seria o suporte. A unidade qual nos dirigimos, mas sim de habitar o
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 547

problema, de permanecer nele, deixando que como e na relação imediata que sujeito e
essa tensão se constitua como a fundadora objecto mantêm. Mas numa relação em que
de todo o caminhar. Não se trata de resolver o sujeito se despoja de si mesmo, anulando-
o problema, mas de deixar que o problema se, caminhando em direcção à renúncia,
nos dissolva a nós. De recuperar a palavra36. aceitando o desconhecido como ponto de
Toda a tensão se centra no binómio conhe- partida e como ponto de chegada; pois só
cido/desconhecido, uma tensão «nua, livre de este se pode configurar como sendo o ex-
amarras, mesmo de origem». Porque o des- tremo do possível. Onde existe a certeza de
conhecido é a condição de possibilidade do que o caminhar se tem de realizar, onde
conhecido, portanto, origem de toda a acti- estamos certos de que ganhamos algo, de que
vidade, de toda experiência possível: «A vida não perderemos nada, onde nos podemos
vai se perder na morte, os rios no mar e o constituir como homens. A renúncia a querer
conhecido no desconhecido. o conhecimento ser tudo assenta, justamente, na consciência
é o acesso ao desconhecido. o contra–senso de que podemos ser tudo, de que a expe-
é o resultado de cada sentido possível. É uma riência se constitui, precisamente, aí. No
tolice esgotante que, quando visivelmente limiar a experiência interior estabelece-se
faltam todos os meios, pretenda-se entretan- como uma luta da razão consigo mesma. O
to saber, em vez de conhecer a sua igno- projecto que ela cria somente ela tem o poder
rância, de reconhecer o desconhecido. Mais de destruir. Servindo-se dos seus artifícios,
triste, porém, é a enfermidade daqueles que, a razão discursiva, ao estabelecer o sujeito
se não têm mais meios, confessam que não como pedra angular de todo o edifício, erige
sabem, entrincheirandolse, no entanto, tola- o objecto seu único correlato; instituindo-se,
mente, naquilo que sabem. De qualquer modo, ela própria, como objecto. Mostrando desta
o facto de que um homem não vive com o maneira a falha que a constitui, e portanto:
pensamento incessante do desconhecido faz «A experiência interior é conduzida pela razão
ainda mais duvidar da inteligência, na medida discursiva. Só a razão tem o poder de desfazer
em que ele mesmo é ávido, mas cegamente, a sua obra, de destruir o que ela edificara.
de encontrar nas coisas a parte que o obriga A loucura não tem efeito, deixando substituir
a amar, ou o sacode com um riso inesgo- os destroços, atrapalhando, com a razão, a
tável, a do desconhecido. O mesmo acontece faculdade de comunicar (talvez ela seja, antes
com a luz: os olhos só possuem dela refle- de tudo, ruptura da comunicação interior).
xos»37. É na determinação do «desconheci- A exaltação natural ou o embriagamento têm
do» como possível que assentam os modos a virtude dos fogos de palha. Sem o apoio
de compreensão do texto. A experiência do da razão, nós não atingimos a “incandescência
emudecimento surge da constatação dos li- sombria»39.
mites que se traçam nessa experiência 4. Um projecto com estrutura semelhante
fronteiriça. A abertura de toda a experiência encontramo-lo em Ludwig Wittgenstein e no
desemboca, precisamente, na experiência dos Tractatus. Este texto constitui a prova de que
possíveis. Estes, por outra parte, constituem- toda incursão no domínio da razão discursiva,
se na nas possibilidades dos modos de ser se deve apresentar como a aniquilação dela
que a figura do «desconhecido» assume. A própria, como a sua superação. Também em
«autoridade» – que também pode ser lida Wittgenstein o projecto não é o de desfazer
como um compromisso ético – deve enten- a noção de objecto, anulá-lo. Mas a de
der-se como o encontro do indivíduo consigo procurar mostrar, como faz Bataille, que aí
mesmo, isto é, num reencontro que tem lugar – no limite da objectualidade – se constitui
nos limites dele mesmo, que por isso se deve a abertura aos possíveis. Pretende mostrar,
anular a cada momento, reconhecendo–se nas pelo contrário, que num edifício já construído,
múltiplas formas de ser, ou tal e como nos nada tem valor. Não se quer derrubar toda
diz: «Supressão do sujeito e do objecto, único a estrutura racional, mas sim superá-la, pondo
meio de não chegar à possessão do objecto a nu todas as suas brechas e utilizando para
pelo sujeito, quer dizer, de evitar a absurda tal a sua própria estrutura. Duas posições
corrida do ipse querendo tornar-se o tudo»38. distantes entre si, mas que procuram mostrar
A comunicação, assim, deve ser entendida que, nos limites estritos da racionalidade, da
548 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

lógica, do pensamento discursivo, o que fica pode haver uma hierarquia das formas das
de fora, constitui, de facto, o que realmente proposições. Só daquilo que nós próprios
importa. Queremos mostrar que estes dois construímos se pode ter uma antevisão. A
autores coincidem no projecto, que se dão realidade empírica é limitada pela totalidade
conta de que aquilo a que temos acesso fica dos objectos. Este limite revela-se de novo
para lá dos limites que traça a discursividade. na totalidade das proposições elementares. As
Que as palavras nos falham, mas que por hierarquias são e têm de ser independentes
isso mesmo devemos permanecer nelas, da realidade»44. Porém, a Lógica assume uma
habitando-as. Como nos diz Bataille: «a outra «função», um outro criterium que se
comunicação é um facto que não se acres- apresenta como uma «negatividade positiva».
centa de modo algum à realidade humana, Isto é, na sua tarefa de delimitar as fron-
mas a constitui»40. Também o Tractatus marca teiras, mostra o que é místico45; e traz ao
de forma clara o «fim da razão»41, entendida mundo toda a «expressividade» que nele não
esta como a possibilidade de conhecer e da cabe, nem pode, por definição, caber. Aqui
sua expressão. Para Wittgenstein, a a metáfora da fronteira mostra-se pertinente,
enunciação só pode referir «o que é o caso», pois aponta para o outro lado. A fronteira
para além dessa linguagem possível, não há não limita obscurecendo, mas sim clarifican-
qualquer «significatividade». Nada do que do. É o outro que se institui como fenda na
podemos «sentir» se constitui como objecto homogeneidade do domínio da comunicação
para o pensamento. Aquilo que se manifesta, e do conhecimento, mas que, por outro lado,
logo num primeiro momento, é a tentativa se manifesta como imanente nessa
de marcar os limites, de humanizar, de uma transcendência. Não são veladas as palavras
vez por todas, o homem. O «sentido» da- de Bataille a este propósito, pelo contrário,
quilo que realmente importa não está dado as suas palavras mostram uma coincidência
pelo simples contacto com o mundo. Não luzida: «a tua vida não se limita a esse
existe possibilidade de a ele poder aceder, inapreensível fluxo interior; ela também se
pelo menos, não com as estruturas racionais derrama para fora e abre-se incessantemente
tradicionais. A capacidade discursiva do ser ao que escorre ou jorra da tua direcção»46.
humano cinge-se, agora, ao finito mundo do Não existe qualquer possibilidade de comu-
«que é o caso». Só no acontecer se pode nidade de interesses, não há como conhecer
manifestar a razão. A razão mostra-se como o «sentido» da totalidade de um acontecer
a capacidade de tomar conta do mundo, não e, se o há, é meramente lógico, nunca te-
de um mundo «unitário» – o medium huma- ológico ou histórico e, como tal, completa-
no – mas sim do «mundo-totalidade-dos-fac- mente desenraizado da emergência da «ori-
tos-no-espaço-lógico»42, isto é, um mundo gem»: o que existe, o que realmente se pode
ausente de qualquer valor, um mundo onde intentar, não é mais que um esforço de
tudo vale o mesmo. Em suma, onde não expiação, um esforço de auto-expiação. A
existem hierarquias43. O que é afirmado, em haver uma História – uma unidade na co-
última análise, é uma impossibilidade de municação – teria de estar completamente
«comunicação», a impossibilidade de um fora do mundo, e por isso, da linguagem.
operador comum a todos o seres humanos. Isto é, teria de estar para além dos limites
Comunicar é pôr em espaço público aquilo da lógica. A História constitui um problema
que é, por essência, privado. Este, no transcendental, isto é, ela é a marca de uma
Tractatus, pertence ao domínio do indizível, forma de imanência. As dificuldades de
ao domínio daquilo que não «é o caso». A Bataille obtêm aí o seu fundamento, já que
Lógica, o limite da razão, é a tangente que a anulação de toda a transcendência deixa
limita toda essa possibilidade: todo o pen- o sujeito perante a perplexidade de não poder
samento é pensamento lógico e como tal, deixar de ver a História como uma imensa
completamente desprovido de todo o valor. acumulação de factos sem qualquer sentido:
Não há um pensamento – uma realidade s– «posso cada vez menos evocar um facto
que assuma mais valor que outro; as hierar- histórico sem ser desarmado pelo abuso que
quias são fantasmas construídos, são abso- existe em falar de coisas apropriadas ou
lutamente alheias ao que realmente é: «Não digeridas. Não que eu fique chocado com a
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 549

parte de erro: ela é inevitável»47. O que sim apresenta-se como uma forma de «revelação»:
parece claro é que essas análises lógicas dão da linguagem ao silêncio não há «ponte», o
passo a uma completa fragmentação da que existe é somente um salto, uma trans-
comunidade extralinguística, mas onde per- gressão dos limites. Os limites da razão são
manece, ainda que seja como uma miragem aqui os limites do mundo dizível. Para o que
desejada, esse impulso para as origens. A realmente importa não há, nem pode haver,
fragilidade da unidade de uma existência, no qualquer teoria. A ciência não esgota todo
texto de Bataille, tem correspondência com o campo «absoluto» do homem, apenas lhe
esse frágil enraizamento da sua origem, marca uma possibilidade de o chegar a
enraizamento que é consumado pela expe- conhecer. A consciência de Bataille mostra-
riência interior: «O que se chama um “ser” se na distinção que realiza entre «experiên-
não é nunca simples, e só ele tem a unidade cia interior» e «filosofia», mostrando que à
durável, somente a possui imperfeita: ela é primeira, as palavras apenas a tocam em
trabalhada pela su profunda divisão, perma- tangente, mostrando o progressivo silenciar,
nece mal fechada e, em certos pontos, mas conduzindo, nesse caminho à palavra:
atacável de fora»48. Se a Lógica é a lei que «a diferença ente a experiência interior e a
rege todo o pensamento, se ela é a forma filosofia reside principalmente no facto de
da legalidade 49 , é também, enquanto que, na experiência, o enunciado não é nada,
paradigma, o símile de como as «coisas» senão um meio, e ainda, não somente meio,
funcionam em a Ética; ou melhor, coincide mas obstáculo; o que conta não é mais o
com a estrutura50 da própria Ética. A Lógica enunciado do vento, é o vento»55. Assistimos
é o limite estrutural interno e externo (in- a uma inversão completa da ordem mundo.
terno enquanto marca o pensável e o não– O que parecia ser a base, mostra-se, neste
pensável, externo porque aponta para o que momento, como uma falha de sentido: é o
está) do mundo e da linguagem. Mas, en- abismo que se manifesta perante a impotên-
quanto estrutura de necessidade é exemplo51, cia do homem enquanto habitante do «mun-
analogon, de como as coisas devem ser no do-totalidadedos-factos-no-espaço-lógico».
domínio ético. A Lógica dá-nos assim a LudwigWittgenstein é peremptório, tal como
possibilidade de poder, por analogia, julgar o foi Georges Bataille: «Como posso ser um
eticamente: do absolutismo necessário das lógico se ainda não sou um homem! Antes
suas leis, podemos compreender o absoluto de tudo tenho que aclarar-me a mim mes-
juízo ético52 (ou o absoluto juízo da ética). mo»56. É o que Jacques Derrida chama de
A lógica converte-se num critério que pos- «interioridade pura da auto-afeccção», da qual
sibilita um juízo absoluto53. Noutra termino- diz que «não cai na exterioridade do espaço
logia, a lógica revela-se, em o domínio ético, e naquilo que chamamos o mundo, que não
como a possibilidade de uma linguagem é outra coisa que o fora da voz»57. Toda e
negativa, não uma linguagem que refira o qualquer manifestação humana é sempre uma
que é o caso, mas sim uma forma de ex- manifestação de «vida», uma manifestação
pressar que, de todo em todo, pode «apon- daquilo que não se deixa pensar; por isso,
tar». «Aponta» para uma teoria negativa, para a Ética e a Estética são, elas próprias, trans-
uma forma de presença: a transcendência da cendentes (mas em tangente) à Lógica. Na
Ética, revela-se, seguindo estas directivas, base de tudo não está a Lógica, mas sim
uma forma de imanência. Esta não permite, aquilo que não se deixa dizer: o fundamento
contudo, a possibilidade de uma enunciação da lógica é a ética, na base da linguagem
positiva: «Se o bem e o mal alteram o mundo está o silêncio58, na origem da ciência está
então só alteram os limites do mundo, não o misticismo. O fim da razão revela-se, pois,
os factos, não o que pode ser expresso na na necessidade existente de uma ruptura com
linguagem. Em resumo, o mundo tem que um sistema que tudo contenha. É aí onde
tornar-se de todo num outro, por meio do ela não pode chegar: o seu fundamento não
bem e do mal. Enquanto todo tem de ter, cabe dentro dela mesma, é o seu limite. A
por assim dizer, um crescente e um minguan- razão sucumbe ao seu fundamento. O que
te. O mundo dum homem feliz é diferente possibilita não pode, por princípio interno,
do dum homem infeliz»54. O limite interno possibilitar-se a si mesmo. É neste mistério
550 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

que a experiência surge como o único ele- Paris: Gallimard: 1973, pp. 7-187, p. 113. a partir
mento catártico: «purificar a linguagem é de agora sob a sigla EI.
6
purificar-se a si mesmo»59. A ruína da razão «Tudo se passa como se aquilo que nós
chamamos linguagem não pudesse ter na sua
é, numa palavra: a certeza de que só pode
origem e no seu fim mais que um momento, o
falar do que não interessa. Ou na formulação modo essencial mas determinado, um fenómeno,
de Bataille: «Na experiência, não há mais um aspecto, uma espécie de escritura (l’ecriture)»,
existência limitada»60. A reconciliação entre Jacques Derrida, op. cit., p. 18.
razão e experiência dá-se do domínio da 7
EI, p. 113.
experiência estética. É a estética que fornece 8
Jacques Derrida, «From Restricted to Ge-
a ligação, que se manifesta como compen- neral Economy: A Hegelianism without Reserve».
sação. Se recordarmos Friedrich Schiller In Fred Botting & Scott Willson, Bataille: A
depressa nos daremos conta que assim é. O Critical Reader. Oxford: Blackwell, 1997, pp.102-
138, p. 114.
acesso à beleza constitui o modo de chegar 9
Há um texto de Michel Foucault que não me
a unir as experiências e de possibilitar, de resisto aqui a citar: «o olho extirpado ou invertido
novo, uma nova união. Numa palavra: ela é o espaço da linguagem filosófica de Bataille, o
possibilitará a palavra, já que é ela que vazio que se verte e se perde, mas de que não
possibilita sempre a esperança no dizer. Diz cessa de falar – um pouco como o olho interior
Schiller: «através da beleza, o homem sen- dos místicos ou espirituais, diáfano ou iluminado,
sível vê-se conduzido à forma e ao pensa- marca o ponto onde a linguagem secreta da oração
mento; através da beleza, o homem espiritual se fixa e se aferra numa comunicação maravilhosa
que o faz calar. Igualmente, mas de uma maneira
vê-se reconduzido à matéria e devolvido ao
invertida, o olho de Bataille desenha o espaço de
mundo dos sentidos. […] A beleza estabe- pertença da linguagem e da morte, ali onde a
lece a ligação entre os dois estados opostos linguagem descobre o seu ser na transposição dos
da sensação e do pensamento, e contudo não limites: a forma de uma linguagem não dialéctica
existe nenhum meio-termo entre ambos. da filosofia». Michel Foucault, «Préface à la
Aquela é apreendida através da experiência, transgression». In Michel Foucault, Dits et Ecrits
este directamente pela razão»61. Existe forma I (1954-1975). Paris: Gallimard, 1994, pp. 261-278,
mais simples de justificar a necessidade das p. 275.
10
palavras e de compensar a sua futilidade? EI, p. 11.
11
Idem.
12
Cfr., op. cit., p. 235ss.
13
Diz Michel Foucault, «Talvez ela defina o
_______________________________ espaço de uma experiência na qual o sujeito que
1
Universidade Lusófona de Humanidades e fala, em lugar de se expressar, se expõe, onde
Tecnologias. Departamento de Ciências da Comu- vai ao encontro da sua própria finitude e onde,
nicação, Artes e Tecnologias da Informação. sob cada palavra, se encontra remetido para a sua
2
Hugo von Hofmannsthal, A Carta de Lord própria morte», loc. cit., op. cit., p. 277.
Chandos. Lisboa: Hiena, 1990, pp. 31/1. 14
Giorgio Agamben, nesta direcção, diz-nos:
3
Jacques Derrida, De la grammatologie. Paris: «Isso significa que o enigmático se refere ex-
Les Éditions de Minuit, p. 236. clusivamente à linguagem e à sua ambiguidade,
4
Esta ideia encontramo-la presente em «So- mas não àquilo que se entende na linguagem, o
bre a linguagem em geral e sobre a linguagem qual em si não só está privado de mistério, mas
dos humanos» de Walter Benjamin: «Uma existên- inclusive é totalmente indiferente à linguagem que
cia que não tenha qualquer relação com a lin- o deveria expressar». «Idea del Enigma». In
guagem é uma ideia, mas esta ideia ainda que Giorgio Agamben, Idea de la Prosa. Barcelona:
permaneça ela mesma no círculo das ideias, cuja Península, 1989, pp. 91-94, p. 91.
circunferência marca a ideia de Deus, não pode 15
EI, p. 10.
frutificar». Walter Benjamin, «Über Sprache 16
Idem.
überhaupt und über die Sprache des Menschen». 17
Idem.
In Gesammelte Schriften, II. 1. Frankfurt am Main: 18
EI, p. 11.
Suhrkamp, 1978, pp., 140-157, p. 141. Quer dizer, 19
Esta experiência do emudecimento podemos
mostra-se infrutífera precisamente porque teria de encontrá-la em diversos autores, ainda que apre-
ser pensada em a linguagem, como não perten- sentada de uma forma completamente distinta. O
cente a ela. Um esforço inútil. mais emblemático parece-nos ser o de
5
Georges Bataille, «L’expérience intérieur». Wittgenstein. Mais adiante tentaremos confrontá-
In Georges Bataille, Oevres Complétes (vol. V). los, não tanto para mostrar as duas concepções,
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 551

mas para elucidarmos a estrutura de um problema necessário achar uma palavra que encontre o si-
comum. lêncio. Necessidade do impossível: dizer na lin-
20
EI, p. 48: «Mas em mim tudo recomeça, guagem do servilismo o que não é servil. Se a
nada, nunca, está feito» palavra silencio é, “entre todas as palavras, a mais
21
EI, p. 50/1. perversa ou a mais poética” é porque, quando finge
22
EI, p. 19. que cala o sentido, diz o sem-sentido, desliza-se
23
EI, p. 15. e apaga-se nela mesma, não se mantém, mas cala-
24
Quer dizer, que lhe vêm de fora, que não se ela mesma, não como silêncio, mas sim como
constituem, realmente, um limite da experiência fala. Esse escorregar trai, ao mesmo tempo, o
ou uma experiência desse limite, mas que são discurso e o não discurso. É impossível que se
impostos ao sujeito, exteriormente, limitando a seu imponha sobre nós, mas também a soberania pode
experienciar, quer dizer, obstruindo todas as suas intervir aí para trair rigorosamente o sentido no
possibilidades. sentido, o discurso no discurso. “Temos de encon-
25
EI, p. 68. trar”, explica Bataille, quem escolhe o “silêncio”
26
EI, 124: «esse espírito de contestação, que como “exemplo da palavra escorregadia”, “pala-
foi o génio atormentado de Descartes». vras” e objectos que, desta maneira, “nos façam
27
O que nos diz a este respeito é claro, EI, escorregar”. Para onde? Sem dúvida que para outras
p. 15: «Entendo por experiência interior aquilo palavras, para outros objectos que anunciam a
que geralmente se chama de experiência mística: soberania». Jacques Derrida, «From Restricted to
os estados de êxtase, de arrebatamento, pelo menos General Economy: A Hegelianism without Reser-
de emoção meditada. Mas penso menos na ex- ve». In Fred Botting & Scott Willson, Bataille:
periência confessional, à qual foi preciso ater-se A Critical Reader. Oxford: Blackwell, 1997, pp.102-
até agora, do que numa experiência nua, livre de 138, p. 114.
37
amarras, mesmo de origem, a qualquer religião EI, p. 119.
38
que seja. É por isso que não gosto da palavra EI, p. 66.
39
mística». EI, p. 60.
28 40
A ser assim, ainda se poderia falar de uma EI, p. 36.
41
experienciabilidade, que haveria experiência des- Sobre o tema, cfr., Isidoro Reguera, La
se limite enquanto limite. miseria de la razón. El primer Wittgenstein.
29
Referimo-nos, claro está, ao domínio que Madrid: Taurus, 1980. Especialmente o capítulo
lhe cabe, não que esse domínio seja restrito, senão IV «La Trascendentalidad del lenguaje.
que ela se restringe a ele, só dentro dos seus limites Recuperación de la teoría descriptiva: objeto y
tem lugar. sujeto.», pp. 141-180.
30 42
Jacques Derrida afirma: «E já se pressente, A expressão é de Isidoro Reguera.
43
neste prelúdio, que o impossível meditado por Ludwig Wittgenstein, Tractatus Logico-
Bataille terá sempre esta forma: como, depois de Philosophicus. Madrid: Revista de Ocidente, 1957,
ter esgotado o discurso da filosofia, inscrever no 6.4. A partir de agora sob a sigla TLP.
44
léxico e na sintaxe de uma língua, a nossa, que TLP, 5.556 e 5. 5561 respectivamente.
45
foi também a da filosofia, aquilo que excede, Entenda-se como um estar para além do
contudo, as oposições dos conceitos dominados domínio da expressão.
46
por esta lógica comum? Necessário e impossível, EI, p. 111.
47
este excesso deveria abrir o discurso numa es- EI, p. 155.
48
tranha figura». Jacques Derrida, «From Restricted EI, p 110.
49
to General Economy: A Hegelianism without Diz Wittegenstein: «O livro trata dos pro-
Reserve». In Fred Botting & Scott Willson, blemas da Filosofia e mostra – creio eu – que
Bataille: A Critical Reader. Oxford: Blackwell, a posição de onde se interroga estes problemas
1997, pp.102-138, p. 103/4. repousa numa má compreensão dos problemas da
31
EI, p. 128. nossa linguagem». TLP, Prólogo.
50
32
EI, pp. 125. O sublinhado é nosso. Falamos da estrutura limite, isto é, da legal-
33
EI, p. 75. formalidade. Também na Ética as coisas não são
34
EI, pp. 126. acidentais. Cfr. Ludwig Wittgenstein, «Lecture on
35
EI, pp. 126. Ethics». The Philosophical Review (Vol. LXXIV),
36
Diz Jacques Derrida «Mas é necessário falar. 1965, p. 3ss. A partir de agora LE. O vocábulo
“A inadequação de toda a palavra… pelo menos «ética» remete para aquilo que está para além do
deveria ser dita”, conservar a soberania, quer dizer, expressável e é o que faz com que a vida «mereça
de certo modo, para a perder, para reservar ainda ser vivida», loc. cit., p. 5.
51
a possibilidade, não do seu sentido, mas do seu É representação reguladora; não nos pode-
sem-sentido, para distribui-lo, mediante esse “co- mos esquecer que a linguagem, ainda que não
mentário” impossível, de toda a negatividade. É possa referir o que está para lá do domínio da
552 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

58
Lógica, pode, no entanto, apontar para o que está A referência – que já aparece comentada
fora desse domínio. Cfr. TLP, 5.62 e 6.522. em Derrida – é mais que explícita, EI, p. 28. «Darei
52
Cfr. LE, p. 5ss. um exemplo de palavra escorregadia. Digo pa-
53
Sobre o tema, cfr., Isidoro Reguera, op. cit, lavra: pode ser também a frase onde se insere
p. 67: «A lógica é transcendental, constitui o a palavra, mas limito-me à palavra silêncio. Essa
mundo, a linguagem e a ciência, cuja estrutura palavra já é, eu disse, a abolição do ruído que
interna e limite externos coincidem em todos os é a palavra; entre todas as palavras é a mais
pontos com os seus. É a lógica quem os esta- perversa, ou a mais poética: ela é a garantia da
belece ou a razão desde a sua formalidade lógica, sua morte. (…) Este segredo não é senão presença
por assim dizer. Nestes âmbitos de sentido raci- interior, silenciosa, insondável e nua, que uma
onal, toda a essência é lógica e não pode não atenção constante às palavras (aos objectos) nos
sê-lo, já que a lógica é o tratado de toda a furta, e que ela nos devolve na pior das hipóteses
possibilidade. De toda a possibilidade e de toda se nós a damos a um ou outro objecto, entre os
a legal formalidade, de maneira que a necessidade mais transparente».
59
lógica tem a ver com o dever ético». Isidoro Reguera, El feliz absurdo de la ética,
54
TLP, 6.43. op. cit, p. 20.
55 60
EI, p. p. 25. EI, p. 40.
56 61
L. Wittgenstein, Briefwechsel. Frankfurt: Friedrich Schiller, Sobre educação esté-
Shurkamp, 1980, p. 47. tica do ser humano numa série de cartas e
57
Jaques Derrida, De la grammatologie, op. outros textos. Lisboa: IN/CM, 1994, carta XVIII,
cit., p. 236. p. 69.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 553

Em busca de paisagens sonoras: polioralidade, a voz midiática


Marcos Júlio Sergl1

No Princípio era a Voz... O curandeiro, nas tribos aborígines, re-


aliza suas curas proferindo palavras cujo
“O homem cumpre um dever sentido é desconhecido. A pronúncia de certas
essencial ao agradecer aos deuses palavras tem o poder de realizar curas de
que lhe outorgaram o privilégio doenças, atrair chuva ou sol. A ênfase
da voz...” empregada em tal discurso não deixa mar-
(Plutarco) gens de dúvida sobre seu encantamento. Pela
prática da magia oral, os espíritos atraem ou
O primeiro enunciado da Bíblia é uma repelem bondade, vingança ou cólera.
citação vocal: Deus disse: “Faça-se a luz!” Surgida da necessidade de comunicação,
(Gênesis 1.3). A ação aconteceu pela comu- a voz humana é um elemento fundamental
nicação oral. “A habilidade de falar é tão na confecção de ambiências sonoras. Seja
importante que se torna difícil conceber a transmitindo informações, por intermédio de
vida sem linguagem” (Piccolotto, 1991: 7). textos pré-produzidos ou criados no momen-
Lendas e mitos de criação dos povos antigos to da gravação, seja lançando mão de uma
são unânimes em representar a criação do vasta gama de possibilidades onomatopaicas.
mundo como resultado do som da voz dos Ela é o mais rico veículo de potencialidades
deuses. O homem pré-histórico manifestou- expressivas, “... uma espécie de impressão
se primeiramente por sons e gestos. No digital sonora”. (César, 2001: 31).
processo de evolução, ele descobriu que os Essa identidade única começa a ser
sons emitidos na luta, na dor e no esforço moldada já no feto, que cresce impregnado
exprimiam sentimentos. Dessa consciência pela audição dos batimentos cardíacos e de
surgiram as primeiras sílabas, numa imitação certas freqüências de voz que ressoam no
do mundo ao seu redor. (Nunes, 1971: 1). líquido amniótico, em particular da voz da
A voz, para o homem primitivo, tem um mãe que ele já consegue distinguir das demais
poder sobrenatural, pois é o instrumento de a partir do sétimo mês. “Essa voz poderia
comunicação com os espíritos. Ele transmite não apenas ser ouvida, mas reconhecida entre
seus sentimentos de temor, louvor, misticis- outras devido à percepção do ritmo e da
mo pela manifestação grupal, pelo canto entonação...” (Castarède, 1991: 75). Perce-
cultual (entende-se aqui toda e qualquer bemos, então, que todo o mecanismo vocal
manifestação falada, gritada, e talvez até é organizado e controlado pelo ouvido.
cantada). Essas invocações mágicas têm o
poder de encantamento, quando realizadas Para o recém-nascido, a voz da mãe
com paixão, sobretudo, se cantadas. é puro elemento de localização no
mundo circundante, antes e depois do
“Através da iniciação e dos rituais, nascimento. Esta voz, que constitui o
as comunidades arcaicas estabelecem primeiro elemento sonoro de sua
culturalmente a origem da condição paisagem sonora doméstica confe-
humana... e, ao se fazerem existentes, rirá ao bebê a capacidade de construir
através do canto mítico, produzem o espaço físico e dele se apropriar,
quase-signos em que o aparelho simbolicamente (Valente, 1999: 102).
fonador produz, equivalentemente, um
som tão analógico quanto o do atri- A voz da mãe, que primeiramente exerce
buto do Ente Sobrenatural.” (Manguel, as funções de alerta, defesa e segurança para
1997: 298) o bebê, é também sua identidade linguística
554 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

verbal. O bebê possui seu próprio código emocional muito maior do que em outras
lingüístico, ativado pelo reconhecimento do línguas. Essa concentração da carga emoci-
código utilizado pela mãe.2 onal na sílaba tônica tende à queda de
intensidade nas sílabas átonas, resultando
Até os 6 meses o bebê desenvolve um numa “certa moleza, ou uma espécie de
repertório de vocalizes que compre- carícia (titia, que beleza, etc) do objeto
ende todos os sons de todas as lín- designado, ou uma carga explosiva concen-
guas humanas; de outra parte, nos 6 trada” (Kiefer, 1979: 40). Esse jogo rítmico
meses seguintes, o bebê não produz gera ondas, curvas melódicas que passam
sons além daqueles próprios à comu- despercebidas após o domínio do código
nidade linguística em que se encontra linguístico. Há que se considerar ainda o
(Castarède, 1991: 74). tonema,6 que, se bem articulado, define a
intenção da frase. Podemos então afirmar que
Esse caráter sonoro da língua vai se o ritmo em si é uma linguagem dentro da
perdendo a partir do momento em que a língua. Nele há, portanto, uma melodia
criança começa a dominar o complexo có- embrionária. As nuances fônicas, ao calor da
digo verbal. Ela passa a usar as sonoridades oratória, transformam-se em verdadeiros
vocais de forma secundária, inconsciente, intervalos musicais.
sendo agora prioritárias a concisão e a cla- O homem antigo tinha consciência disso.
reza da comunicação. Dessa maneira, as Jean Jacques Rousseau (1978)7, expoente do
nuances de cada palavra vão ser enfatizadas naturalismo, afirma que “num passado remo-
apenas em momentos especiais. to, o homem teria vivido em estado de
Cada língua tem sua musicalidade par- natureza, onde música e palavra constituiri-
ticular implícita. Algumas mais, outras menos, am um todo indivisível, podendo o homem
de acordo com seu processo de
expressar suas paixões e sentimentos plena-
culturalização.3 “Quanto mais a língua se
mente: as línguas carregariam os acentos
torna civilizada, tanto menor a quantidade de
musicais, índices vocalizados das paixões”
exclamações e interjeições, menos os risos
(Valente, 1999: 108).8
e inflexões que a voz adota” (Schafer, 1881:
Interessa-nos o fato de que, com a
235). Da mesma forma, a língua falada pelo
inflexão das frases, influenciadas pelo efeito
povo é a sua melhor força de expressão.4
das emoções intensas, ocorrem variações de
intensidade, andamento, subidas e descidas
A entoação geral do idioma, a acen-
do som, numa fala mais apaixonada e agi-
tuação e o modo de pronunciar os vo-
cábulos, o timbre das vozes é que re- tada que a nossa, fala que é canto. (Jaspensen,
presentam os elementos específicos da in: Schafer, 1991: 270/271)
língua de cada povo. Essa música Nós, homens da era da máquina, perde-
racial da linguagem corresponde, em mos as sutilezas de modulação na voz.
harmonia perfeita, aos outros carac- Certamente os homens primitivos, medievais
teres da raça”. (E. Dupré e M. Nathan, e renascentistas tinham na voz um instrumen-
in: Andrade, 1965: 122).5 to vital. Todas as novidades eram lidas em
voz alta pelo arauto. Cabia a ele expressar,
Cada língua tem um ritmo próprio, que por intermédio da leitura, a intenção do texto.
“desempenha um papel expressivo de suma “Não precisávamos que McLuhan9 nos con-
importância” (Kiefer, 1979: 39). Uma mes- tasse que, do mesmo modo como a máquina
ma frase dita com ritmo e inflexão antagônica de costura... criou a longa linha reta nas
altera completamente o sentido dela. Uma fala roupas... o linotipo achatou o estilo vocal
em tom marcial significa ordem a ser cum- humano”. Murray Schafer10 propõe ser fun-
prida; a mesma ordem dada em tom mater- damental trabalhar com o som vocal bruto,
nal, terá sentido diverso. A variação na altura, “recomeçar como os aborígines, que nem
a acentuação e uma maior duração dada à mesmo sabem a diferença entre fala e canto,
sílaba tônica, aspectos característicos da significado e sonoridade”. (Schafer, 1991:
língua portuguesa, conferem-lhe uma carga 207/8).
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 555

A caverna sonora O som produzido somente pela vibração


das pregas vocais é muito tênue. Para ad-
Onde a palavra cessa, começa a quirir brilho e amplitude, deve passar pelos
canção, exultação da mente, ressonadores12, assim como o som produzido
explodindo adiante, na voz. pela corda de um violino deve ressoar na
(Tomás de Aquino, caixa de madeira do instrumento para tornar-
Comment in Psalm, Prólogo) se musical. Os ressonadores são numerosos
e quase poderíamos dizer que o esqueleto
A voz, para ser produzida, toma de inteiro toma parte na ressonância vocal. Os
empréstimo alguns órgãos do corpo, cuja ressonadores mais importantes são os faciais:
função primordial é diversa do ato de falar. o palato ósseo, o véu palatar, o palato mole,
Nosso instrumento vocal se divide em três a região da faringe e todos os seios, cavi-
partes bem definidas: a) aparelho respirató- dades ósseas disseminadas por detrás do rosto
rio, onde se armazena e circula o ar; b) entre a mandíbula superior e os olhos. Essa
aparelho fonador, onde o ar se transforma região, que muitos chamam máscara, é a mais
em som ao passar entre as pregas vocais; c) importante na ressonância vocal. A articula-
aparelho ressonador, onde o ar transformado ção de todos os sons da linguagem falada
em som se expande, adquirindo qualidade e efetiva-se pela língua.
amplitude. No entanto, os órgãos formadores do
O aparelho respiratório é formado pelo aparelho fonador por si só não produzem o
nariz, pela traquéia, pelos pulmões e pelo som. A voz é resultado da emanação de energia
diafragma. Ele é responsável pela oxigenação de todo o corpo, “uma forma arquetípica no
de nosso corpo. O ar que penetra pelo nariz inconsciente humano, imagem primordial e
ou pela boca passa pela traquéia, espécie de criadora, energia e configuração de traços que
tubo largo que se divide em dois à entrada predispõem as pessoas a certas experiências,
dos pulmões. Os pulmões, massas esponjo- sentimentos e pensamentos” (Zumthor, in:
sas e essencialmente dilatáveis, constituem Valente, 1999: 119). Toda fala pressupõe uma
nosso receptáculo de ar e estão contidos na performance, dirigida a alguém ou algo. O
caixa torácica. nível de intensidade dela é determinado pelo
Esta caixa óssea é formada, em cada lado, receptor, elemento ativo desse processo.13
por doze costelas (ossos curvos e chatos), Sendo a voz o corpo executante e meio
fixadas atrás da coluna vertebral. Na inspi- de execução ao mesmo tempo, não dispõe
ração, ao encher-se os pulmões, as costelas de referências externas para sua emanação
se separam e a caixa torácica se dilata. A energética. É necessário mentalizar determi-
elasticidade da caixa torácica é garantida nado som que se deseja emitir. Para que essa
pelos músculos intercostais, pelas cartilagens emissão esteja correta é necessário, além
que unem as costelas e pelo diafragma.11 desse ouvido interno, que os pilares da
O aparelho fonador é constituído pela impostação14 – retenção, apoio e projeção –
laringe, pregas vocais, boca e língua. A la- sejam assimilados. Para que isso ocorra, é
ringe é um conduto de formação cartilaginosa, preciso dominar tecnicamente todos os pa-
situada na parte anterior do pescoço. Os râmetros da emissão (respiração, relaxamen-
ingleses lhe dão o nome de voice box (caixa to, impostação, projeção ou ressonância,
de voz), pois ela é, com efeito, a fonte da articulação), sem perder de vista a forma mais
voz. Na sua parte interna, recoberta por uma natural do ato de falar.
mucosa, acham-se as pregas vocais, em Da voz humana podemos extrair infinitas
número de duas. O espaço existente entre as possibilidades de nuances: quebras rítmicas,
pregas vocais é chamado glote, que nada mais gamas de intensidade e mudanças de tom,
é do que a abertura da laringe circunscrita pelas da posição da língua na boca ao articular
pregas vocais inferiores. Sobre elas estão palavras e frases, diferentes maneiras de usar
outros dois pequenos lábios, as falsas pregas os lábios, a abertura da boca, a posição da
vocais. Estas não produzem som. Sua função língua e do véu palatino, sutilezas na velo-
é proteger as pregas vocais. A glote se abre cidade da emissão, mudanças de timbre e de
para a inspiração e se fecha para a fonação. altura, nas regiões grave, média e aguda.15
556 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Às vezes, um leve titubear no momento O coro já existia na Grécia Antiga, in-


de emitir determinadas palavras muda com- troduzido por Arion, que o retirou do canto
pletamente o sentido da mensagem; a imi- cultual. Ele determinava o que o coro can-
tação pela voz caricata nos reporta ao per- tava e introduzia sátiros que falavam em
sonagem imitado; ou, a força emocional versos. Aliás, o drama grego consistiu, pri-
empregada ao expressar uma ação ou sen- meiramente, de odes cantadas por um coro,
timento nos leva a “ver” esses estados que também executava movimentos rítmicos.
oralizados. A voz é o meio reprodutor mais
eficiente da paisagem sonora. “Em sua forma, a tragédia grega com-
Esse termo, empregado pela primeira vez partilhava ao mesmo tempo do
por Schaffer (1991: 90) para designar os espetáculo dramático e da composi-
elementos constituintes do universo sonoro: ção musical, numa mistura de diálo-
ruído, silêncio, som, timbre, amplitude, go, canto e dança, distribuídos entre
melodia, textura e ritmo, é amplamente os atores propriamente ditos e o coro,
utilizado hoje em dia pelos profissionais de este acompanhado por instrumentos
áudio para identificar “uma composição musicais, ora intervindo diretamente
sonoplástica em que elementos constituintes no jogo cênico e contracenando com
da sonoridade e da oralidade são selecionados os intérpretes, ora participando isola-
e associados como interface de um mesmo damente em passagens líricas ou
texto, realizado como um mesmo ambiente coreográficas”. (Araújo, 1978: 68)
acústico”. (José, 2002: 6) A paisagem sono-
ra, ao unir os efeitos e trilhas da sonoplastia, Doze ou vinte e quatro participantes
confecciona uma estética do rádio, preenche compunham o coro da tragédia em sua fase
e configura o tempo/espaço radiofônico, áurea (chegaram a cinqüenta coristas, origi-
expande-se para o design sonoro e finca-se nariamente). Eles eram a representação do
como um ícone para as ambiências sonoras, povo grego.
em especial para a mídia radiofônica. As falas do coro no drama grego eram
Uma busca de ampliação de recursos na tão importantes quanto as falas dos prota-
paisagem sonora tem levado alguns docentes gonistas, fazendo parte do enredo do drama.
do curso de Radialismo da Universidade São No coro (acreditamos que suas intervenções
Judas Tadeu a realizar experiências orais/ sejam mais uma fala cantada, um
sonoras. A disciplina Projeto Experimental Sprechgesang18, do que propriamente me-
possibilita essas buscas. lodias entoadas) predominam os sentimen-
tos e as ponderações. O corista atua como
A polioralidade16 espectador articulado, motivado pelo “phatos
da ação”, enquanto as falas dos protagonis-
Tomando como referência o coro ou tas discutem e desenvolvem o enredo, o
jogral 17, encontrado com freqüência nas tema.
sociedades clássicas, procuramos criar uma Essas diferenças são expostas com muita
nova textura, uma nova forma de volume oral/ clareza no drama Os Persas, de Ésquilo. Esse
sonoro dentro da peça radiofônica. drama é iniciado com a entrada do coro de
O jogral sempre foi um ícone da soci- conselheiros persas, cujo canto expressa a
edade, do seu modo de pensar, de sentir e preocupação com a sorte reservada ao exér-
de agir. Em todas as manifestações que cito persa. Em Édipo Rei, de Sófocles, o povo
envolvem muitas pessoas, elas atuam, de grita sua dor e sua miséria, roga e leva seus
forma inconsciente, como um grande jogral. lamentos ao rei. Em Medeia, de Eurípides,
Nas partidas de futebol, nos shows musicais, o canto do coro tem a função de fazer a
nos discursos políticos e nas cerimônias protagonista refletir sobre sua decisão de
religiosas, a assistência interage com os matar os filhos.
personagens principais, ovacionando, vaian- Cabe ao coro descrever situações, narrar
do, cantando. Sempre que duas ou mais as “partes do drama, acontecidas em outro
pessoas estão reunidas, a manifestação tempo ou outro lugar (a técnica do flashback
polioral está presente. no cinema pode ser comparada a ele)”
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 557

(Schafer, 1991: 243), lembrar a importância clima festivo. A mistura pensada de vozes
da celebração dos cultos, da tradição, decla- conflitantes emitidas de forma defasada cria
rar a culpa e sua expiação, refletir sobre o a paisagem sonora do caos, da metrópole.
destino ou descrever peculiaridades, famili- O uso do jogral amplia o espectro sonoro
arizando o ouvinte com o ambiente da ação. em possibilidades quase ilimitadas em torno
(Lesky, 1971) Esse costume se estendeu pelo de paisagens sonoras.
Império Romano e atravessou a Idade Média, O jogral na peça radiofônica tem a função
quando tomou um aspecto mais religioso. de aconselhar, alertar, advertir, sinalizar,
Essa técnica é utilizada até os dias de hoje. localizar o ouvinte dentro do conto. O jogral
A montagem da tragédia grega Medeia, possibilita ainda tornar oral a consciência dos
sob a direção de Antunes Filho, em cartaz personagens, narrar a história, produzir efei-
na cidade de São Paulo, no ano de 2003, tos onomatopaicos, aconselhar, torcer, tornar
nos mostra a utilização plena das nuances público o inconsciente coletivo e as cobran-
vocálicas para criar uma dimensão dramá- ças da sociedade19.
tica. Com o uso de um cenário enxuto, a O jogral dá ritmo e movimento à peça
atenção volta-se para a exploração de vasta radiofônica e propicia volume e equilíbrio
gama dos itens que passamos a analisar a sonoro, por meio de contrastes, de
seguir. contrapontos entre as vozes femininas e
O coro grego, do qual se deriva o jogral, masculinas, entre as vozes graves e agudas,
é a forma mais eficiente de treino da entre os diferentes timbres vocais. O número
sincronia, da precisão rítmica e da dosagem de doze participantes, habitual na tragédia
da intensidade de sentimentos para transmitir grega, é ideal para se obter peso, massa
determinada idéia. O leque de possibilidades sonora, possibilitando toda gama de possi-
se amplia na mesma proporção do número bilidades de timbre.
de integrantes envolvidos. É apoio fundamen-
tal para se criar uma paisagem sonora, uma A caverna das infinitas possibilidades
ambientação para determinados textos.
A junção de vozes permite a utilização Para utilizar adequadamente a voz nos
de recursos como a similaridade rítmica moldes das propostas acima descritas, suge-
(quando todos falam na mesma tomada de rimos alguns passos na elaboração dos tex-
respiração, ao mesmo tempo, na mesma tos. Cada palavra tem uma intenção, um
velocidade) ou a similaridade tímbrica (quan- sentido, uma curva psicográfica, que se vale
do se escolhem vozes com características das vogais e das consoantes para sua cons-
semelhantes). Podemos afirmar que essas trução. Dessa união, utilizando-se uma
opções propiciam gamas sonoras de emissão correta, a palavra ganha sentido.
homogeneidade ou heterogeneidade, Descobrir esse sentido e transformá-lo em
homofonia ou polifonia vocal. voz é o nosso grande desafio.
Vozes com características semelhantes, “As vogais, como diziam os antigos
faladas ao mesmo tempo, produzem efeitos humanistas rabínicos, são a alma das pala-
homofônicos. A mistura de vozes diferenci- vras, e as consoantes, seu esqueleto. Em
adas timbristicamente, vozes de prata unidas música, são as vogais que dão oportunidade
a vozes de bronze, vozes graves unidas a ao compositor para a invenção melódica,
vozes agudas, vozes fortes a vozes fracas, enquanto as consoantes articulam o ritmo. Um
suaves a roucas, aspiradas a nasalizadas, foneticista define a vogal como o pico sonoro
agressivas a receosas, acanhadas a dinâmi- de cada sílaba. É a vogal que fornece asas
cas, sobretudo se emitidas defasadas, possi- para o vôo da palavra” (Schafer, 1991: 224).
bilitam uma polifonia oral. A vogal é o som puro, sem obstáculo, que
Para cada clima desejado, monta-se um empresta cadência e ritmo, que projeta a voz.
grupo vocal específico. Vozes masculinas O uso da prosódia20 vem em auxílio da
graves de timbre bronze possibilitam a descoberta da força interna de cada sílaba
emissão de uma fala lúgubre, criando-se dessa dentro da palavra. A emissão correta exige
forma uma paisagem sonora de mistério, de a observação rigorosa do acento tônico nos
horror. Vozes femininas agudas criam um vocábulos de mais de uma sílaba. A sucessão
558 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

de sílabas tônicas e átonas intercaladas e delicada; trechos declamados, na tragédia


constitui a cadência e o ritmo das frases. e na oratória, pedem vozes de bronze, graves
É essencial que se experimente reprodu- e volumosas, além de fortes; textos que
zir, por meio de inflexões, o significado da exploram aspectos de ternura, tristeza e
palavra, e, ainda, que se estabeleça o peso nostalgia, pedem vozes de veludo, doces e
que esta palavra deve ter no contexto da frase. macias, graves e tranquilas; mistério, medo,
As inflexões são a música das palavras, o pavor, pedem vozes cavernosas, muito gra-
vetor que lhes dá relevo e interesse. Mas, ves.
é preciso que essas inflexões sejam verda- Ao buscar essa interação, é preciso falar
deiras, sinceras e ditas com naturalidade, para de tal maneira que cada som ganhe vida. Se
serem convincentes. As inflexões ascenden- conseguirmos isso, podemos até fazer com
tes traduzem interesse, curiosidade, entusi- que seu sentido original definhe e morra,
asmo ou cólera; as descendentes, indiferen- dando lugar a um novo sentido, a uma nova
ça, desdém, raiva; as diretas, sentimentos sintaxe dentro do contexto da frase. Criamos,
tranquilos ou enunciações. assim, poemas sonoros, nos quais a oralidade
Ainda, cada palavra ganha um peso dentro e a sonoridade estão de tal forma imbricadas,
da frase, realçando o seu significado. As que se torna difícil dizer se emitimos uma
palavras de valor e os acentos de insistência fala cantada ou um canto falado.
podem ter caráter afetivo ou intelectual. Os Todas as proposições de Schafer para
acentos afetivos recaem sobre palavras que redescobrir a voz humana, cantando, reci-
nos comunicam uma emoção; os acentos tando, rugindo, gritando, apregoando, ento-
intelectuais dão ênfase a determinadas pa- ando, usando melismas, sons onomatopaicos,
lavras importantes no contexto. sussurros, emissões somente com vogais, ex-
Há várias maneiras de destacar essas clamações, inflexões, glissandos, efeitos de
palavras: articulá-las com maior nitidez, eco, entre tantas outras possibilidades,
acentuar certos termos, retardar a palavra que podem ser aplicadas à fala em grupo, ao
antecede a principal, subir ou baixar a voz, jogral.
ou mudar o seu tom, sempre sem exageros, Esta proposta da união de possibilidades
naturalmente. O movimento também deve ser ilimitadas do uso da voz, multiplicada pelo
observado. Tranqüilidade e desânimo pedem número de participantes, amplia de forma
movimentos lentos; agitação e pressa, mo- espantosa o leque do espectro sonoro, pro-
vimentos rápidos. piciando a criação de verdadeiros poemas
O colorido na dicção, definido pelo tim- sonoros, resgatando a plenitude da oralidade
bre das vozes, é outro fator a se considerar. empregada pelo homem antes do achatamen-
Alegria e arrebatamento pedem um timbre to imposto pela sociedade industrial, tornan-
brilhante, de voz de ouro; textos calmos do mais ricas as ambiências sonoras, em
pedem voz de prata, de tonalidade suave, clara particular, da mídia radiofônica.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 559

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2000. as mães a terem uma gestação tranquila, a falarem
560 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

11
em tom médio e calmo, a cantarem músicas suaves. O diafragma é um grande músculo trans-
Para mais detalhes a respeito da voz materna versal que tem a forma de uma abóbada e que
exercendo influência fundamental no código separa a cavidade torácica da cavidade abdomi-
linguístico do bebê, ver: Tomatis (1991); Casterède nal. É constituído de fibras musculares que se
(1991); Nunes (1993); Valente (1999). fixam na base da caixa torácica, convergindo para
3
Fernando Lopes Graça (s.d: 165) afirma que o centro frênico. Os pulmões e o coração apóiam-
“há línguas naturalmente musicais, como o ita- se sobre a sua face superior; sob a face inferior
liano e, de certo modo, o espanhol; outras, cuja estão: fígado, estômago, rins e intestinos.
12
constituição oferece uma tal ou qual resistência Ressonador é cada uma das cavidades que,
à música, como o francês e o alemão”. Heloísa na fonação humana, se produzem no canal vocal
Valente (1999: 108) cita Rousseau, dizendo que pela disposição que os órgãos assumem no
“certas línguas serviriam para serem lidas e escritas momento da articulação (Houaiss, 2001: 2441),
(o francês, o alemão, o inglês, por exemplo), aumentando as vibrações na voz.
13
enquanto outras, para serem cantadas (árabe, persa, As nuances da voz humana, o único ins-
italiano)”. trumento que reúne no mesmo corpo executante
4
Características específicas do modo de falar e meio de execução, são quase infinitas, depen-
de cada povo, ou mesmo de cada região de um dendo da situação do palco de ação. Uma con-
determinado povo, formam essa gama de sono- versa a dois exige um nível diferente de um
ridades implícitas na fala. É o popular sotaque, discurso de palanque, de uma conferência cien-
que possibilita que identifiquemos, por exemplo, tífica, de uma discussão. Zumthor (1985) distin-
um brasileiro do Rio Grande do Sul, do Rio de gue quatro níveis de oralidade: a) primária,
Janeiro, do Nordeste. desvinculada da escrita: b) secundária, precedida
5
Diversos musicólogos têm se dedicado ao pela escrita, a partir da qual a oralidade se re-
estudo da musicalidade inerente a cada língua. Ver: compõe; c) mista, na qual oralidade e escrita
Kiefer, 1979; Mâche, 1983; Valente, 1999. coexistem; d) mediatizada, pelo rádio, televisão,
6
Tonema é a inflexão final, a cadência de discos, etc.
14
um grupo fônico ou os “traços entoativos Impostar é emitir corretamente a voz. “A
localizáveis em determinados pontos do discurso. voz assemelha-se ao jato de um chafariz que se
A afirmação, a resignação e a constatação impli- eleva desde o diafragma, passando pela solida-
cam no movimento melódico descendente, enquan- riedade da garganta, chegando até seu alto-falante
to contentamento, exclamação e surpresa deter- que é a boca e se projetando numa ducha de sons
minam o movimento melódico ascendente” (Va- para toda a platéia” (Beuttenmüller, 1992).
15
lente, 1999: 110). Os parâmetros básicos da linguagem musical
7
Jean Jacques Rousseau (1712-1778), filó- podem clarear essas possibilidades: a) altura – é
sofo e romancista suíço de língua francesa, via pelo registro vocal que podemos identificar os
uma estreita relação entre política, moral e edu- vários matizes entre o agudo e o grave. As vozes
cação. Naturalista convicto, Rousseau proclama- são classificadas, de acordo com esse parâmetro,
va que a sociedade corrompia o homem, natu- em soprano (voz feminina aguda), contralto (voz
ralmente bom, mostrando-se, dessa forma, um feminina grave), tenor (voz masculina aguda) e
crítico implacável da organização social, do baixo (voz masculina grave). Essas quatro cate-
racionalismo progressista e do Estado despótico. gorias vocais possuem nuances, que escapam do
8
A frase a seguir esclarece o pensamento de objeto deste artigo. Ainda, o peso das sílabas
Rousseau: “Os sons simples saem naturalmente tônicas e átonas evidencia a inflexão melódica;
da garganta, permanecendo a boca mais ou menos b) timbre – permite reconhecer as qualidades de
aberta. Mas as modificações da língua e do palato, cada voz: ouro, bronze, gutural, nasalada, etc. É
que fazem a articulação, exigem atenção e exer- determinado pelo sexo, pela idade, pela caixa óssea
cícios... Os gritos e os gemidos são vozes sim- craniana e pela espessura das pregas vocais; c)
ples” (1978: 165). modos de ataque – formas de emitir o som
9
Herbert Marshall McLuhan (1911-1980), determinam a clareza da pronúncia (articulação
pedagogo e filósofo canadense, é autor de diver- fonética) e do fraseado, da textura vocal; d)
sos livros, destacando-se: A Galáxia de Gutenberg intensidade –– é determinada pela maior ou menor
(1962), e Os meios de comunicação como exten- energia empregada na fala. Essa gradação vai do
sões do homem (1964). grito até o sussurro; e) duração – estabelece o
10
Murray Schafer, compositor e artista plás- maior ou menor tempo de cada sílaba na palavra,
tico canadense nascido em 1933, tem se dedicado ou da palavra na frase. O modo de alongar sílabas
ao ensino da música. Ele propõe um novo “olhar” tônicas dá à palavra um valor expressivo muito
sobre o mundo pelo viés da escuta, apontando grande. A esses parâmetros podemos aplicar outros,
novos caminhos para a atuação sobre o ambiente tais como a velocidade da fala, ritmo, acentos e
sonoro. pausas. (Valente, 1999: 105).
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 561

16
A polioralidade é a junção de várias vozes, para designar uma espécie de declamação musi-
especialmente escolhidas por semelhança ou dis- cal, entre o canto e a fala.
19
tinção de timbre. Trechos das tragédias de Sófocles e
17
Jogral é o grupo de pessoal que lê textos, Eurípides são ideais para treino da polioralidade.
alternando partes individuais e partes coletivas. Também, a sua utilização em contos, por meio
Não confundir com o artista medieval que ganha- da inserção dos aspectos descritos acima nos textos
va a vida divertindo o público ou o divulgador originais, auxiliam na prática do jogral.
20
da poesia trovadoresca. A prosódia é a parte da gramática que trata
18
Técnica de emissão vocal muito usada por da correta acentuação e pronúncia das letras,
Schoenberg e outros compositores de sua escola sílabas e palavras.
562 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 563

Nietzsche, Arte e Estética


Marisa C. Forghieri1

Muitos pensadores, de diferentes épocas, A história monumental deve restituir os


origens e formações dedicaram-se a interpre- cumes do devir e, segundo Foulcault, fazer
tar e pesquisar a obra nietzscheana. Esse aparecer todas as descontinuidades que nos
interesse que desafia o tempo pode ser atravessam (1979: 37). Ele afirma que a
compreendido de diversas formas. Entre elas história deve interrogar-se, interrogando a
incluo a possibilidade do conjunto da obra, consciência científica, questionando as opi-
por seu caráter aforismático, denso e poé- niões pré-concebidas acerca de tudo o que
tico, não poder ser desvelado em sua tota- há de inquietante na pesquisa e de perigoso
lidade. Da mesma forma, não me parece na descoberta.
possível unificar as compreensões dos diver- Em “A origem da tragédia” (1871),
sos e numerosos pesquisadores que até hoje Nietzsche expõe a fragilidade da ciência para
dedicam-se a interpretar uma tal composição. apreender os fenômenos artísticos. Apolo e
Parece-me que a obra nietzscheana requer, Dioniso podem ser compreendidos, para além
também, interpretações que se inspirem no da Mitologia, como forças polares que de-
terreno da arte e, nesse sentido, possam limitam nossos conflitos e vazios. Apolo é
produzir livres representações a partir dos luz que não vive sem as sombras de Dioniso.
universos pessoais. A aparente necessidade de compreender
Giacoia (2000), em publicação que ce- tendências opostas como expressões de bem
lebra o centenário da morte de Nietzsche, e mal é suprimida pela possibilidade de
observa que sua filosofia está para além dos alternância dos sentidos. Como forças, se
limites da razão, se entrelaça às vivências, estabelecem pela oposição, os polos se cho-
à existência como projeto estético. cam e se sustentam, simultaneamente.
Machado (1999 : 27) observa que a arte
Nietzsche, o filósofo-artista, um po- é capaz de proporcionar experiências
eta que só acreditava numa filosofia dionisíacas, sem que se seja aniquilado por
que fosse expressão das vivências elas, possibilitando embriaguês sem perda da
genuínas e pessoais, vendo na expe- lucidez. Compreende que o dionisíaco
riência estética uma espécie de êx- nietzscheano implica o apolíneo, por ser
tase e redenção, é, por isso mesmo, necessariamente artístico.
um precursor da crítica a um tipo de As relações que se estabelecem no in-
racionalidade meramente técnica, fria terior de cada homem a partir do jogo
e planificadora. (Giacola, 2000: 13) estabelecido entre a pulsão dionisíaca e a
apolínea são descritas por Vattimo. Ele afir-
O caminho para se aproximar do pensa- ma que dionisíaco e apolíneo não definem
mento nietzscheano perpassa aquilo que apenas uma teoria da civilização e da cultura,
somos, tudo o que poderemos deixar de ser, mas também uma teoria da arte (1985 : 18).
o que seremos. A arte trágica representa o conflito entre
Uma passagem pelo incerto que suspira Apolo e Dioniso. Expressa resistência ao
em nós, pela frágil transitoriedade, pelo devir. sofrimento a partir de uma intensificação da
A racionalidade como frio instrumento técni- vida.
co não é capaz de engenhar tais pensamentos. Vattimo observa que Nietzsche abre
caminho para uma relação renovada com a
O ser próprio procura também com classicidade, o que comporta uma radical
os olhos dos sentidos, escuta também atitude crítica nos confrontos com o presente
com os ouvidos do espírito. (1985: 20). A transformadora noção de in-
(Nietzsche, 1885: 51) terpretação proposta por Nietzsche já apa-
564 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

rece em “A origem da tragédia”. Vattimo A arte afirma a vida em seu conjunto.


compreende que a partir do jogo estabele- A luta entre Apolo e Dioniso, que dá origem
cido entre o apolíneo e o dionisíaco entende- à arte trágica, suprime a unilateralidade. Dois
se a possível atualidade do pensamento princípios antagônicos não dão lugar a re-
nietzscheano. conciliação. A tensão que sustenta Apolo e
Dioniso como forças polares justifica a
O jogo do apolíneo e do dionisíaco, existência e a magnitude de ambos. Tal tensão
e o ambíguo significado que a tra- desafia o círculo da ciência (Nietzsche, 1871:
gédia possui, de libertação do e pelo 115), fazendo-o abrir-se ao acaso, ao pen-
dionisíaco na bela imagem apolínea, samento paradoxal que percorre dois senti-
permanecem elementos decisivos na dos ao mesmo tempo.
obra de Nietzsche e constituem ainda O desejo de ultrapassar o próprio des-
a base de sua possível atualidade tino, enfrentando-o, leva os heróis trágicos
teórica. (Vatimo, 1985 : 20) a transgredirem os limites da existência,
desafiando os valores estabelecidos.
A palavra Dioniso significa mais para No pensamento nietzscheano os valores
Nietzsche, de acordo com interpretação de estabelecidos surgiram em algum momento,
Müller-Lauter. Para ele a experiência em algum lugar; novos valores podem ser
dionisíaca deve permitir respirar na mais estabelecidos a qualquer momento, em qual-
monstruosa paixão e altitude (1999: 26). quer lugar. A realidade, eternamente mutante,
Um tal exercício requer uma saúde só pode ser compreendida a partir do devir.
peculiar, que para além de perigosas esca- O devir desfaz o conjunto de normas,
ladas, possibilite a aventura de percorrer os métodos e sistemas, lança o homem no vazio,
limites da alma. obrigando-o a compreender a existência como
experiência. Nada além disso. A preciosidade
A saúde pertence a quem tem sede está na impermanência de fórmulas capazes
na alma de percorrer com sua vida de apreender a existência como ponte, pas-
todo o horizonte dos valores e de sagem.
quanto foi desejado até hoje, quem
tem sede de circum-navegar as costas O que há de grande no homem é
deste idealn “mediterrâneo”. serponte, e não meta. O que pode amar-
(Nietzsche, 1882: 280) se no homem, é ser uma transição e
um ocaso. (Nietzsche, 1885: 31)
A experiência dionisíaca propõe a inten-
sificação da vida em condições extremas. A justificada necessidade de lançar a
A inesgotabilidade do fundo dionisíaco do existência na correnteza turva e incerta do
mundo (FINK, 1983: 20), permite que o devir contrapõe-se à necessidade apolínea de
fenômeno da arte seja colocado no centro, a luz e segurança suprema. Os contrastes mais
partir dele se torna possível decifrar o mundo. perfeitos produzem a existência mais fecun-
Giacoia observa a importância da antí- da. A luta entre Apolo e Dioniso intensifica-
tese metaforicamente figurada na oposição se, desaguando em transmutação, criação.
entre Dionysus e o Crucificado (1997: 185). No pensamento nietzscheano o fenôme-
Comenta a necessidade de compreender de no da criação é considerado a partir de uma
forma mais ampla as implicações dessa perspectiva nômade, a serviço da liberdade.
oposição. As tramas de permanência do mundo, dos
conceitos, das idéias, rasgam-se à partir das
O essencial dos cultos dionisíacos máximas que apresentam a transitoriedade de
consiste, para Nietzsche, num mergu- todos os fenômenos. O devir é proposto como
lho redentor na imanência, onde não imagem fundamental da criação.
se trata mais de instaurar um juízo
que divide, condena, renega, mas de Cada instante devora o precedente,
proclamar um sim à vida em sua crua cada nascimento é a morte de
integridade. (Giacola, 1997: 187) incontáveis seres, gerar, viver e
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 565

morrer são uma unidade. (Nietzsche, Mas dizei, que poderá ainda fazer
1872: 45) uma criança, que nem sequer pôde
o leão? (...)
Criação e destruição apresentam-se de Inocência é a criança, e esquecimen-
forma justaposta, estabelecendo contornos e to; um novo começo, um jogo, uma
vazios. Para criar é necessário, por assim roda que gira por si mesma, um
dizer, também morrer. Morte ampla, meta- movimento inicial, um sagrado dizer
fórica e parcial; a morte de nossas próprias “sim”.
cascas e seivas. Sim, meus irmãos, para o jogo da cri-
As três metamorfoses, anunciadas por ação é preciso dizer um sagrado
Zaratustra em seu primeiro discurso (1885: “sim”; o espírito, agora, quer a sua
43), propõem infinitas mortes e renascimentos vontade, aquele que está perdido para
de aspectos e essências. Propõem crescimen- o mundo conquista o seu mundo.”
to irregular, intensificação da vida. Nelas (Nietzsche, 1885: 44)
também é possível observar uma saga atra-
vés da qual só é possível libertar-se a partir A riqueza metafórica com que os
de ações. Em cada etapa observa-se aspectos
movimentos são descritos permitem aproxi-
decisivos para uma compreensão sobre a
mações com a própria existência e incluem
existência criadora.
a possibilidade de observar em si tais trans-
formações e tremores de terras.
O espírito de suportação, para além de
Como o espírito se torna camelo e
pesadíssimas cargas, carrega os fardos de
o camelo, leão e o leão,
por fim, criança. (...) um tipo de moral que requer o cumprimento
“O que há de pesado?”, pergunta o de deveres. Mas a marcha para o próprio
espírito de suportação; e ajoelha deserto, uma tal solitude parece engenhar
como um camelo, e quer ficar bem o espaço necessário à transformação. O de-
carregado. serto como metáfora de vazio e de desterro
“O que há de pesado, ó heróis”, per- pode ser capaz de inspirar uma salutar con-
gunta o espírito de suportação, “para frontação consigo mesmo. Pode inspirar,
que eu o tome sobre mim e minha ainda, vontade de potência, dominação; o
força se alegre?”(...) desejo de ser senhor em seu próprio deserto,
pesadíssimos fardos toma sobre si enfim.
próprio o espírito de suportação; e Quando ocorre a segunda metamorfose
tal como o camelo, que marcha observa-se a necessidade do estabelecimento
carregado para o deserto, marcha ele de uma luta para a conquista da liberdade.
para o seu próprio deserto. Uma luta que requer força selvagem. Tal
Mas, no mais ermo dos desertos, dá- força, que não carrega fardos, é livre para
se a segunda metamorfose: ali o se impor como vontade; para estender seus
espírito torna-se leão, quer conquis- domínios.
tar, como presa, a sua liberdade e ser Criar para si a liberdade de novas
senhor em seu próprio deserto. (...) criações talvez seja um exercício necessário
Qual o grande dragão, ao qual o e uma luta diária. Nesse sentido, as meta-
espírito não quer mais chamar senhor morfoses se realizariam com possibilidades
nem deus? “Tu deves” chama-se o quase infinitas de reincidências. Mas tais
grande dragão. Mas o espírito do leão fenômenos não seriam propriamente repeti-
diz: “eu quero”. (....)” ções, pois encontrariam no homem outro
Criar novos valores – isso também campo de experiência, profundamente alte-
o leão ainda não pode fazer; mas rado pelas metamorfoses anteriores. A idéia
criar para si a liberdade de novas de eterno retorno aqui, é compreendida
criações - isso a pujança do leão pode apenas como possibilidade transitória, a partir
fazer. (...)” de observação de Nietzsche.
566 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

(...) o mecanismo tem que valer para Inocência e refinamento. O esquecimento


nós como hipótese imperfeita e ape- como hábito elegante é capaz de inaugurar
nas provisória. (Nietzsche, 1889: 117) novas impressões, compreensões. Ao mesmo
tempo, tal hábito enfurece os mais velhos e
A hipótese de que existem ciclos a serem os eruditos, que passam a ser entendidos
percorridos durante a existência não cristaliza como perspectivas, e podem até ser ignora-
os estados de passagem, tampouco estabelece dos.
compreensões definitivas sobre o fenômeno. As três metamorfoses representam, para
As noções de inocência e esquecimento Fink, a modificação do homem a partir da
propostas pela terceira metamorfose são morte de Deus, isto é, a transformação de
importantes para que as transformações tam- sua alienação na liberdade criadora que se
bém possam ser compreendidas em seu sabe autônoma (1983: 76). Ele observa que
conjunto. Conjunto que traz como elemento tal fenômeno põe em evidência o caráter
um novo começo. Um sim e um não; um jogo lúdico e arriscado da existência, bem como
de criação e morte. problematiza todos os sistemas de interpre-
Na conquista do próprio mundo afirma- tação do mundo que se fundam na metafísica.
se a vontade. Ela é o elemento através do
qual a existência pode fluir. Com o jogo da avaliação criadora,
A relação fluida entre percepção e porém, torna-se problemático todo o
racionalidade revela-se como linguagem da esquema metafísico do mundo sensí-
própria vida. O discurso de Zaratustra pode vel e do mundo inteligível, (...) do
ser entendido como argumento racional e obra aquém e do Além; os devaneios da
poética; requer a compreensão da vida como metafísica, tal como a transcendência
fenômeno estético. dos valores repousa no Deus vivo.
Mas após a morte de Deus tais dis-
A existência considerada como fenô-
tinções caducaram. (Fink, 1983: 77)
meno estético sempre nos parece su-
portável e através da arte nos são
A intensa transformação existencial pro-
dados o olho e a mão e antes de mais
posta no primeiro discurso de Zaratustra é
nada a boa consciência para poder
compreendida por Fink como princípio de
criar, com nossos recursos, tal fenô-
todos os outros discursos (1983: 78). Ob-
meno. (Nietzsche, 1882: 120)
serva que antes da morte de Deus, a natureza
criadora do homem encontrava-se adorme-
Na confrontação entre o homem científico
e o homem artístico proposta por Nietzsche, cida, prisioneira nas malhas de divinas
Fink observa que o homem artístico é o tipo certezas.
superior em comparação com o lógico e o Vattimo entende que a morte de Deus não
cientista (1983: 35). Para o homem artístico é uma enunciação metafísica da não existên-
o questionamento e destruição dos velhos cia de Deus; tem de ser tomada à letra como
limites impostos pela dureza dos conceitos o anúncio de um acontecimento (1985: 56).
pode ser uma resposta criadora da intuição. Anunciar um acontecimento não significa,
Nesse sentido, a criança como metáfora de entretanto, demonstrar alguma coisa. Mas a
inocência e esquecimento nega um certo tipo simples anunciação é capaz de provocar
de tradição do conhecimento, que se constrói outros acontecimentos. A anunciação da morte
apenas a partir de uma criteriosa memorização de Deus possibilita que se instaure uma
e ordenação de saberes. profunda suspeita, de que não se pode mais
Nietzsche considera que para ser artis- considerar uma verdade sem seus véus.
ta, também é necessário esquecer, ignorar! Se não é mais possível crer em uma
(1882: 14). Para além do esquecimento, ele verdade que não possua véus (Nietzsche,
observa que é possível experimentar uma 1882: 15), há que se abrir espaço para as
segunda inocência, que torna o homem diversas e talvez infinitas interpretações da
mais infantil e, ao mesmo tempo mais existência. Espaço para a criação de novos
refinado. sentidos.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 567

Bibliografia ____________. Cinco prefácios para


cinco livros não escritos. (1872). Rio de
Fink, E. A filosofia de Nietzsche. Lisboa: Janeiro: 2000.
Editorial Presença, 1983. ______________. A gaia ciência. (1882).
Foucault, M. Microfísica do poder. Rio São Paulo: Hemus, 1981.
de Janeiro: Graal, 1979. ______________. Assim falou Zaratustra.
Giacoia jr., O. Labirintos da alma. (1885). Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
Campinas: Editora da Unicamp, 1997. ra, 1987 .
_________ . Nietzsche. São Paulo: ______________. Obra incompleta.
Publifolha, 2000. (1889). São Paulo: Nova Cultural, 1987.
Machado, R. Nietzsche e a verdade. Rio Vattimo, G. Introdução a Nietzsche.
de Janeiro: Graal, 1999. Lisboa: Editorial Presença, 1985.
Müller-lauter, W. “Décadence artística
enquanto décadence fisiológica”. In
MARTON, S. (org.) Cadernos Nietzsche. São _______________________________
Paulo: GEN, 1999. 1
Instituto de Filosofia da Linguagem,
Nietzsche, F. W. A origem da tragédia. UNL / Escola Superior de Comunicação
(1871). Lisboa: Guimarães, 1988. Social, IPL.
568 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 569

Paraísos artificiais: autoria partilhada na criação


contemporânea e na era dos jogos em rede1
Patrícia Gouveia2

The new artist, equipped for acting questão que se propõe debater é a possibi-
in the ambit of net economies, will lidade da criação de matrizes abertas à acção
necessarily be a social agent belonging de um utilizador/criador de interfaces. O autor
to the sector of immaterial labour, that controla a matriz de construção como obra
of the production of knowledge. He aberta e reconfigurável, e prepara-a para a
shall never more be a shaman, a lay acção de diferentes criadores num espaço
preacher, or a bohemian living outside amplo de múltiplas possibilidades. Para que
the productive economic sphere. a obra seja emergente, o autor abdica de parte
Rather, she or he will qualify as“know do controlo da matriz, permitindo ao
workers. utilizador desenvolver um conjunto de ac-
net.art and the coming culture ções possíveis da sua autoria, nomeadamen-
– José Luis Brea te, a manipulação e samplagem do design,
do software e da arquitectura do sistema. O
Podemos imaginar uma cultura em software, por seu lado, como engenho de
que os discursos circulassem e fos- inteligência artificial, automatiza-se e é capaz
sem recebidos sem que a função autor não só de replicar o processo iniciado pelo
jamais aparecesse. Todos os discur- autor e utilizador como também de introdu-
sos, qualquer que fosse o seu esta- zir na obra decisões ao nível do cenário,
tuto, a sua forma, o seu valor e permitindo ainda a incursão de novas per-
qualquer que fosse o tratamento que sonagens e espaços em resposta às acções
se lhes desse, desenrolar-se-iam no do jogador.
anonimato do murmúrio. Deixaríamos Dos inúmeros exemplos de autoria par-
de ouvir as questões por tanto tempo tilhada possíveis escolhi seis que me pare-
repetidas: “Quem é que falou realmen- cem exemplificar bem o tipo de relações que,
te? Foi mesmo ele e não outro? Com no futuro, se vão desenvolver em termos de
que autenticidade, ou com que origi- autoria multimédia. O primeiro é um jogo
nalidade? E o que é que ele exprimiu à volta da economia mundial do colectivo
do mais profundo de si mesmo no seu de artists etoys. O Segundo é um site: 1001
discurso?” Nights in Manhattan: Mapping Sex in New
O que é um autor? York City que permite a inscrição de histó-
– Michel Foucault rias na rede. O terceiro, um programa de
software de nome FMOL (Faust Music On
Where once art was at the center of Line) desenvolvido por Sergi Jordà para o
moral existence, it now seems possible espectáculo Fausto v3.0 dos Fura dels Baus.
that play, given all its variable O quarto, o trabalho digital do colectivo Jodi
meanings, given the imaginary, will à volta da descontrução do código e do
have that central role. mapeamento das representações em rede. O
The Ambiguity of Play quinto, um exemplo retirado da tese de
– Brian Sutton-Smith mestrado do designer e editor Gonzalo Frasca.
Por último, um jogo de arcada, desenvolvido
Os jogos em rede, ao apelarem à parti- pelos artistas alemães Furs, que inflige dor
cipação e criação colectivas, permitem a aos utilizadores.
construção em tempo real, de histórias
emergentes, de dispositivos de programação (...) we, as readers, may become not
abertos, elaborados por diferentes autores. A the masters of the text, but
570 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

collaborators in its writing, partici- presa que os tinha tentado aniquilar com uma
pants in the process of our own campanha absolutamente desleal. Porque os
becoming. (Keep, 1999: 180) etoy ousaram entrar e introduzir o vírus
artístico no espaço do comércio, como nos
Que objectos são estes que, através de conta Birgit Richard, a eToys tentou “reenviá-
uma colaboração dinâmica de diferentes los para o gueto”. Por intermédio dos etoy
autorias e proveniências, questionam o papel a arte concorre com a economia não somente
do autor e do utilizador/leitor? O hipertexto no plano visual mas também estrutural e,
como medium de escrita metamorfoseia o segundo a autora, engendra num corpo
autor num editor ou produtor multimédia, colectivo, a partir de uma estética geral, a
como nos diz George P. Landow 3 ? O sua identidade como empresa. Mais resisten-
hipermédia, como o cinema, o vídeo e a ópera te às pressões económicas do que um artista
será um trabalho de equipa para o qual individual, o corpo virtual redefine o jogo
contribuem inúmeros especialistas de dife- informático como uma toywar e, utiliza a arte
rentes áreas? A quem atribuir a autoria destes na internet, através de um jogo em rede, para
objectos: ao argumentista interactivo? Ao resistir a uma forma invisível de violência
designer de interfaces? Ao designer de económica. A transferência de modelos
software? Ao programador? O utilizador/leitor comerciais para o domínio da arte é também
colabora com o autor da obra através das suas uma forma de fugir ao sistema artístico
escolhas? Não existirá, no entanto, uma convencional. E, neste caso, a uniformidade
qualidade obscura no hipertexto que, através colectiva torna-se subversiva.
da sua estrutura organizacional, força dese-
jos no utilizador/leitor, tal como o super- The virtual presence of other texts and
mercado força desejos no consumidor, como other authors contributes importantly
refere Chistopher J. Keep, e, neste contexto, to the radical reconception of
nos fornece uma ilusão de liberdade ao propor authorship, authorial property, and
um utilizador que escolhe e toca as coisas collaboration associated with
que melhor lhe assentam? Não poderá tam- hypertext. Within a hipertext
bém o hipertexto e a hiperficção, incutir environment all writing becomes
desejos, sofrimentos, vontades? Um compra- collaborative writing, doubly so.
dor/leitor livre que se move num mundo (Landow, 1997: 104-05)
infindável de comodidades lexicais?4
A autoria partilhada nos objectos multi-
Le collectif etoy représente la future média é definida por George P. Landow
generation artistique: basée sur le web, mediante quatro formas de produção distin-
élitare et creative. Il réunit différentes tas. Em primeiro lugar, o objecto revela-se
tendencies du net art, du net activisme, através das decisões e escolhas de percurso
et les traditionnels modèles artistique efectuadas pelo receptor; o autor não existe
et commerciaux. Préférant à la sem que exista um potencial utilizador da
rebellion classique l’assimilation des sua obra. Em segundo lugar, o autor tem
armes commerciales, il engage um consciência da existência de outros poten-
combat structurel pour l’occupation ciais autores na rede; o criador tem a cons-
esthétique des espaces. (Richard, 2002) ciência da presença virtual no sistema de
outros autores, que embora tenham escrito
Uma polémica interessante foi gerada pela em tempos diferentes, com ele dialogam
empresa eToys com o colectivo de artistas através de links e estruturas abertas. Em
etoy.com5. A empresa americana de venda de terceiro lugar, alguns projectos promovem a
brinquedos online, promoveu uma persegui- segmentação de tarefas dos diferentes
ção aos artistas para conseguir o URL da etoy, intervenientes no processo de criação. Exis-
tendo colocado o colectivo em tribunal para te, neste caso, no final, uma assemblage em
além de os insultar inúmeras vezes publica- que as contribuições individuais se agrupam
mente. Os artistas organizaram um interes- num só objecto. Por último, uma quarta forma
sante jogo em rede para destruírem a em- de produção revela-se como uma combina-
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 571

ção de aspectos provenientes das anteriores, a matriz é obra de dois artistas e de um


combina-se, neste caso, a presença de outros museu.
textos e de outros autores numa interacção
cooperativa. Assim, os documentos deixam Myths are stories that are
de ter uma existência em si para estarem au- distinguished by a high degree of
tomaticamente em estreita relação com todos constancy in their narrative core and
os documentos existentes no sistema da rede. by an equally pronounced capacity for
Existe, neste contexto, uma colaboração em marginal variation. (Blumenberg,
potência em que todos os documentos, 1990: 35)
conectados electronicamente, colaboram uns
com os outros, sendo que as diferentes A diluição do papel do autor, a autoria
autorias e formatos estão em estreita ligação partilhada e até o anonimato na cultura digital,
entre si. remetem-nos para uma configuração próxi-
A possibilidade de cada ponto poder estar ma das histórias contadas mitologicamente?
conectado com outro ou com uma infinidade George P. Landow lembra-nos Lévy-Strauss
de outros pontos, permite que o princípio de ao explicitar que a apresentação do pensa-
multiplicidade se revele através da expansão mento mitológico é um sistema complexo de
das suas conexões, ou seja, que a natureza transformações sem centro, uma rede de
rizomática da estrutura funcione de forma textos (Landow, 1997: 93). As histórias
dinâmica e aberta. O objecto digital, feito mitológicas apresentam simultaneamente uma
de pedaços de textos, composições musicais, estrutura constante e uma possibilidade para
ilustrações, imagens fotográficas, pixeis, li- a variação marginal. Assim, diferentes nar-
nhas de código e intervalos de tempo e de radores/autores reproduzem uma composição
espaço, forma um rizoma com o mundo da pré-definida, introduzindo variações ao seu
rede. Ao introduzir uma descentralização do estilo e medida. A constância produz um
autor em múltiplas “vozes que falam”, au- reconhecimento do mito como representação
torias diversas num sistema complexo em artística ou ritual. A variação, uma possibi-
permanente reconfiguração, o objecto digital lidade de novas e pessoais formas de apre-
solicita ao leitor/utilizador que não seja sentação. A transmissão oral favorece, segun-
apenas um mero receptor mas que se revele do Hans Blumenberg, a vitalidade do que é
autónomo e independente na construção de transmitido: a disposição dos materiais para
sentidos. Este objectos formam uma a deformação, para a improvisação. A tra-
assemblage com o exterior ao introduzir e gédia grega adapta-se à sua audiência, para
reproduzir, nos meandros da rede, dados a qual estas variações eram uma sequência
provenientes do mundo em que vivemos, de continuações que estavam sempre predis-
como referem Deleuze e Guattari.6 postas a desenvolver um novo elemento de
O site 1001 Nights in Manhattan7, de- excitação. O público deparava, a cada actu-
senvolvido para o Museu de Sexo em Nova ação, com performances renovadas em vez
Iorque, permite a inclusão de textos e his- de mais uma imitação (Blumenberg, 1990:
tórias no dispositivo criado. Este trabalho, 149-173). A simulação nos videojogos, atra-
pertence ao colectivo de artistas SFMOMA, vés de um engenho dinâmico, permite a
do qual fazem parte Michael Samyn e Auriea incursão de variações e múltiplas dimensões
Harvey, e foi construído de forma a permitir na história, adaptando-se ao “corpo” do
a incursão das histórias sexuais dos diferen- utilizador. Os jogos actuais promovem no-
tes utilizadores/leitores em diversos locais da menclaturas narrativas clássicas em que a
cidade. Estes relatos, que aparecem sobre- ideia de princípio, meio e fim está muito
postos no mapa geográfico dinâmico da presente. Alguns projectos artísticos, de que
cidade, são os próprios utilizadores/leitores falaremos mais à frente, tentam contrariar esta
que os inserem na base de dados do site tendência adoptando estruturas abertas e não-
através de um back office. A inscrição no lineares, mais caraterísticas da cultura da
plano é feita das histórias de inúmeras hiperficção e do hipertexto. Mas, para alguns
pessoas. A cidade inventariada serve de traço autores, o caso da narrativa nos media di-
às diversas narrativas que a compõem, mas gitais está para além do mito e da metáfora8.
572 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Mas será que os realizadores de júri 1200 composições. Posteriormente, foi


videojogos e os criadores digitais são assim desenvolvido um CD com 300 temas de 20s
tão anónimos? E estarão estes criadores assim que foi oferecido a alguns dos compositores
tão preocupados em dar ao utilizador a li- anónimos de FMOL para trabalharem por
berdade que este tem a ilusão de deter? Não cima e assim desenvolverem novas compo-
existirá sempre, como na saga Matrix, um sições10.
arquitecto do sistema que decide que acções
o jogo permite ou não desenvolver, um autor Jodi forces us to question the
que condiciona os passos do utilizador e lhe representation of data, its translation,
transmite a ilusão de que este é co-autor da its mapping, its conventional
obra, um leitor escravo dos livros que não application for visualizing and
consegue concluir como em Se numa noite decoding the language of
de inverno um viajante de Italo Calvino? programming into metaphors and
signs we can interpret and utilize.
La creación colectiva, una de las más Ultimately, Jodi.org is Code stripped
interessantes possibilidades que ofrece of all functionality, Code for its
la red, es otro de los aspectos aesthetic value, Code as abrasive
fundamentales del proyecto. Cada language, Code as hallucination, Code
participante que accede al servidor con as theater.11
la intención de componer, pude tam-
bém modificar/enriquecer temas an- A desconstrução das “regras do jogo”, tal
teriores, con lo que se potencia un como se verifica em colectivos como os
juego a modo de cadáver exquisito Jodi12, integrado por Joan Heemskerk and
musical, en el es posible conocer en Dirk Paesmans, é uma das principais ques-
cada momento los autores de cualquier tões que os artistas propõem ao utilizador
tema, y en que porcentaje se dividirían pois, para além de ser um dos maiores
la autoria en caso de la pieza en atractivos da cultura lúdica de entretenimen-
cuestión fuera selecccionada. De esta to, está presente nas artes digitais. Quando
forma, una idea o germe musical confrontados com a ideia: quando olhamos
generado por un autor, puede para o vosso trabalho não há hipótese de saber
evolucionar paralelamente em quem está por trás de tal construção. Uma
múltiples direcciones, siendo todas companhia? Uma organização? Um gang? É
ellas igualmente accesibles al estar or- isto a possibilidade de anonimato na internet?
ganizadas en forma de árbol. (Jordá, Os Jodi respondem: “nós apresentamos ecrãs
Sergi, 19989) e coisas que estão a acontecer nesses ecrãs.
Evitamos explicações. Olhem para qualquer
O software de criação musical freeware exposição: as pessoas procuram as placas de
FMOL foi especialmente concebido para que informação ao lado dos trabalhos artísticos,
criadores de todo o mundo pudessem par- antes de olharem para os trabalhos. Querem
ticipar através da internet na composição saber quem fez a peça, antes de terem uma
musical de parte da banda sonora do espec- opinião sobre esta. É o que tentamos evi-
táculo dos Fura Dels Baus. Este software foi tar”13.
patrocinado pela Sociedad General de Au- O processo de triagem e mapeamento do
tores y Editores (S.G.A.E.) espanhola. Esta jogador na matriz é sempre um processo de
sociedade, comprometeu-se em simplificar descodificação e apropriação do espaço vir-
todas as formalidades necessárias para que tual. Nos first person shooters deparamos com
os compositores que utilizaram o software uma maior possibilidade de agir, embora neste
para a criação digital de pequenos e breves tipo de performances a narratividade seja
fragmentos para o espectáculo, ficassem menor do que nos role playing games em
automaticamente inscritos e recebessem os que encarnamos uma personagem e encena-
seus direitos de autor. Foram seleccionados mos um drama. A imersão na primeira pessoa
pelos Fura Dels Baus 60 temas de 20 se- privilegia uma maior performance em detri-
gundos cada e submetidas para avaliação do mento da narratividade. Nos jogos de acção,
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 573

o palco do “drama” é de tiros e sobrevivên- Augusto Boal took Brecht’s ideas


cia, para nos role playing games encontrar- much further and created a new form
mos um modo de fazer mundos repleto de of theater that literally blurred the
histórias e experiências. O artista, tal como “fourth wall”, by allowing the
o realizador de cinema, pode tomar decisões audience to become actively involved
sobre a história ou histórias, a jogabilidade on the play. (Frasca, 2001: 61)
e as acções possíveis do sistema, o tipo de
design, a tecnolologia a utilizar... mas não Estranhamente, com tanta ficção e ima-
pode deixar de abdicar, na cultura digital ginação o autor apela ao realismo e teatro
contemporânea, da evolução da sua obra por da vida, socorrendo-se de Bertold Brecht e
caminhos que se bifurcam, misteriosos e dos brasileiros Augusto Boal e Paulo Freire
inesperados. para propor os seus videojogos dos oprimi-
Gonzalo Frasca, na sua tese de mestrado14, dos 15. Não deve ser alheio a este facto
propõe como cenário a possibilidade futura Gonzalo Frasca ter nascido no Urugai. E, é
de, num jogo de simulação como os Sims, curioso notar, como nos diz, que Augusto
ser não só possível escolher a roupa e a cor Boal, quando exiliado na Europa, encontrou
dos cabelos como também manipular as uma audiência muito diferente daquela a que
personagens em termos de carácter. O autor estava habituado no Brasil, isto é, se no Brasil
imagina uma Agnes fictícia que joga há as pessoas resolviam mesmo as suas ques-
bastante tempo aos Sims e conhece as regras tões pessoais no palco, na Europa, a simu-
básicas da simulação. Agnes sente que seria lação era bem mais abstracta e as suas
importante que as relações familiares fossem técnicas foram dificeis de adaptar aos pro-
mais realistas no jogo, por isso escolhe uma blemas burgueses dos países ricos. Será que
mãe para a sua familia virtual no menu ainda algum dia o designer se vai deparar com um
miúdo que lhe pede que desenhe jogos menos
imaginário e potencial: “mudança de carác-
realistas porque das misérias da vida está ele
ter”. “Dave’s Alcoholic Mother version 0.9”
farto? Como certo adolescente, que uma
foi elaborado por um outro internauta e
semana depois de propor à professora de
escolhido por Agnes para manipulação.
português ler Alves Redol, lhe entrega o livro
Depois de feito o download 2Agnes insere
com a seguinte frase: “sabe, professora, é
a personagem na sua casa Sims constituída
melhor ler outro livro porque para misérias
por um casal, três crianças e um gato. A mãe
já basta a minha vida”.
é substituída por esta mãe alcoólica e depois
de algum tempo a jogar Agnes conclui que
(...) in solitary or private play children
esta personagem não se coaduna com a create cultures of play that are virtual
realidade. A personagem vai buscar as suas worlds not mundane worlds, and often
bebidas alcoólicas ao armário da sala em vez with not much obligation to the latter.
de as esconder, o que Agnes considera ser (...) The unreal worlds of play and
um comportamento pouco realista, do seu festival are like that of the novel or
ponto de vista. Assim, e ainda no domínio the theater. They are about how to
da ficção, Agnes faz o download de outra react emotionally to the experience of
personagem: “Dorothy Alcoholic Methodist living in the world and how to
Mother version 3.2”. Ao fim de algum tempo temporarily vivify that experience by
percebe que esta mãe também não é credível transcending its usual limits (Sutton-
e decide, através de um editor, fazer algumas Smith, 1997: 155-59).
alterações no código e gravar a sua versão
modificada para manipulação no menu de per- Os jogadores de personagens analisados
sonagens. Temos desta forma uma “Agnes pelo sociólogo francês, Laurent Trémel,
Alcoholic mother 1.0” inspirada na “Dorothy preferem o mundo da fantasia, a capacidade
Alcoholic Methodist Mother version 3.2”. A dramática à tirania da realidade. A ideia é
imaginação de Gonzalo Frasca é prodigiosa improvisar uma boa história, seja ela um
mas este, parece-me, é o caminho para o qual drama, uma comédia... A coerência e reali-
se dirigem muitos videojogos. dade envolvidas são absolutamente secundári-
574 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

as: misturam-se épocas e fases históricas num o computador. Para Rodney Brooks do MIT,
mesmo caldeirão lírico. O potencial teatral citado por N. Katherine Hayles, uma vez
de tais actuações colectivas é enorme e, tal descoberta a essência do ser e da sua forma
como um livro, é capaz de transportar para de reagir, os problemas de comportamento,
o seu interior o leitor. Estes jogos apelam linguagem, aplicação e conhecimento apli-
à temática da evasão, promovendo nos seus cados tornam-se fáceis de simular. Da essên-
participantes a ideia de possibilidade de fuga cia, para os estudiosos da vida artificial,
à realidade. Uma voz constante nestes fazem parte a habilidade para o movimento
fazedores de mundos: “quando eu leio algu- num ambiente dinâmico, a capacidade de
ma coisa, é geralmente um pouco para sair sentir a envolvente e os arredores e um grau
da realidade”16. Da mesma forma a simula- suficiente para se chegar à preservação da
ção das diferentes personagens mágicas, que vida e à reprodução.
vão adquirindo competências no jogo, são es- O que resulta deste sistema? Primeiro: não
colhidas de acordo com imaginários extra- há uma representação central. Segundo: o
terrestres, da ficção científica, paranormais controlo está distribuído pelas várias com-
e afins. Não se reproduzem os diferentes ponentes. Terceiro: os comportamentos de-
papéis da vida real, como nos Sims e à senvolvem-se em directa interacção com o
maneira da comédia da vida, como nos relata ambiente em vez de se basearem num modelo
Erving Goffman, mas antes se utilizam estes abstracto. Quarto: comportamentos comple-
para um ensaio de potencialidades mágicas xos emergem espontaneamente através de um
e rituais. processo de auto-organização emergente. A
possibilidade de um sistema integrado que
What is this changed way of thinking? aprende a pensar através das experiências do
To summarize: first, there is no cen- corpo, resolvendo progressivamente objecti-
tral representation; second, control is vos abstractos, leva-nos a repensar as nossas
distributed throughout the system; noções sobre a inteligência, diz-nos N.
third, behaviors develop in direct Katherine Hayles. O que é que permite ao
interaction with the environment sistema envolver-se num processo de orga-
rather than through an abstract model; nização auto-regulada? Diferentes níveis de
and fourth, complex behaviors emer- organização sistémica, conexão por loops de
ge spontaneously through self- feedback, regras locais que, através de re-
organizing, emergent processes petidas aplicações, desencadeiam estruturas
(Hayles, 1999: 213) globais emergentes. O utilizador tem, neste
contexto, a capacidade de desencadear no
Criar dispositivos e engenhos de inteli- sistema uma mutação espontânea adquirindo
gência artificial que estudam e replicam as um status quase semelhante ao do autor
acções do sujeito e permitem capturar a inicial.
estrutura lógica do processo não é uma forma
de criar modelos de evolução mas a evolu- (But then, consciousness itself may be
ção em si, diz-nos N. Katherine Hayles17. Os an emergent phenomenon arising from
agentes artificiais, incorporados no meio das distributed systems no more
nossas marionetas e personagens nos jogos enlightened than the computer
que jogamos, descobrem o mundo através das program.) Cog [o robot] meets cogi-
suas interacções com o ambiente. Estes to. (Hayles, 1999: 219)
autómatos vão sendo criados sem deterem
qualquer representação central do mundo, sem Um sistema que aprende a pensar através
imagens nem comportamentos pré-programa- das experiências de um corpo? Mas não
dos. Estes programas não imitam mas antes estamos perante o programa da Fenome-
simulam comportamentos, interacções, mo- nologia da Percepção, de Merleau-Ponty?
mentos. O jogo sofre um processo de mutação Não é a fenomenologia o estudo das essên-
e o nosso corpo reorganiza-se para acolher cias? O estudo da essência da percepção e
novos padrões tactéis, quinestésicos, visuais da consciência?18 Partindo do pressuposto que
e sonoros, provenientes da interacção com o real é um tecido sólido e que o mundo
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 575

não é aquilo que se pensa mas aquilo que É necessário passar das teorias de um conhe-
se vive, a unidade do objecto/mundo funda- cimento dos factos psicológicos e fisiológi-
se no pressentimento de uma ordem eminen- cos, ao reconhecimento do evento anímico
te que dá resposta a questões apenas latentes como processo vital inerente à nossa expe-
na paisagem. É num processo de captura do riência. A união da alma e do corpo não é
mundo que o índividuo constrói e resolve os resolvida através de um decreto arbitrário entre
seus problemas. Os estímulos e sensações dois termos exteriores (objecto e sujeito), está
provenientes do exterior fornecem a este explícita em cada instante no movimento da
corpo uma vaga inquietude, organizam os ele- existência (Merleau-Ponty, 1945: 105). Este
mentos que até aí não pertencem ao mesmo corpo, não é mais um objecto do mundo mas
universo e que por essa razão não podem um meio na nossa comunicação com ele. O
ser associados (Merleau-Ponty, 1945: 24-25). mundo deixa de ser a soma de objectos do pen-
Eliminamos, na nossa relação com o mundo, samento cartesiano para se transformar no
segundo Merleau-Ponty, criticando detalha- horizonte latente da nossa experiência. Um
damente a escola empirista e intelectualista, a presente sem pensamento determinante. O
ideia de que a atenção, a atenção ao que nos espaço corporal é um espaço interior, um fundo
rodeia, não cria nada. Considera-se, neste caso, sobre o qual pode surgir o objecto como
que a atenção cria um campo perceptivo ou princípio de acção. O homem, tal como o actor,
mental que o homem pode dominar através dos não toma como reais situações imaginárias mas
seus movimentos e explorações. A atenção não inversamente serve-se do corpo real e da sua
é, uma associação de imagens, a memória situação vital para o fazer respirar, falar e cheirar
“forrada” com os seus objectos, mas antes a no imaginário (Merleau-Ponty, 1945: 110-22).
constituição activa de um objecto novo que Cada estimulação corporal acorda no
explicita e constrói o que ainda não tinha sido homem não um movimento efectivo mas um
oferecido ao corpo senão como horizonte tipo de movimento virtual. A parte sensibi-
indeterminado (Merleau-Ponty, 1945: 36-39)19. lizada sai do anonimato e anuncia através de
uma tensão particular e com a força da acção,
Je peux donc m’installer, par le moyen o quadro do dispositivo anatómico. O corpo
de mon corps comme puissance d’un é, neste contexto, um centro de acção virtual,
certain nombre d’actions familières e a existência espacial uma condição primor-
dans mon entourage comme ensemble dial de toda a percepção viva (Merleau-Ponty,
de manipulanda, sans viser mon corps 1945: 126). A percepção e o movimento
ni mon entourage comme des objects formam um sistema que se modifica como
au sens kantien, c’est-à-dire comme um todo e é através de uma concertação de
des systèmes de qualities liées par une gestos e sentidos que os orgãos do corpo
loi intelligible, comme des entités próprio exploram o mundo como um sistema
transparentes, libre de toute adhérence integrado, em que o controlo está distribuido
locale ou temporelle et prêtes pour la pelos diferentes membros. O táctil puro ou
dénomination ou du moins pour un a visão pura seriam sempre, para Merleau
geste de désignation (Merleau-Ponty, -Ponty, experiências e fenómenos patológi-
1945: 122). cos, pois não há um gesto táctil e uma ex-
periência visual per si, mas antes uma ex-
O campo fenomenal não é um mundo periência integrada onde é impossível
interior, o fenómeno não é um estado de discernir os diferentes estímulos e proveni-
consciência ou um facto psíquico, a reali- ências sensoriais.
dade existe para ser percepcionada. A expe-
riência dos fenómenos não é uma increase ball speed 3x… doubles pain
instrospecção ou uma intuição, como dizia execution time… almost unblockable
Berkeley20. Merleau Ponty apela-nos para a ricochet… quadruples pain execution
destruição da ideia de exterior como time… Pain execution time? What
conceptualização prévia, como projecção na kind of pain? What kind of execution?
mente, através da experiência do corpo como It’s really about getting the body
representação (Merleau-Ponty, 1945: 90-99). involved (Lockridge, 200221)
576 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

PainStation é uma consola e um software do acto, e da experiência de jogar, algo de


que inflige dor ao jogador. A ideia partiu de mais realista. Os jogadores que não se
dois designers alemães, Tilman Reiff e Volker importam com um pouco de dor acham este
Morawe, enquanto estudantes da Academy of projecto absolutamente viciante... e as suas
Media Arts de Colónia. O jogo é uma versão mãos podem sair da experiência com nódu-
do Pong dos anos 70, jogo electrónico de los e queimaduras reais22.
ténis de mesa. O conceito é simples. Dois
jogadores atiram bolas um ao outro na mesa How far has self-organization
da consola. A mão esquerda posiciona-se em proceeded? I no longer know which
cima de um sensor, de nome PEU, isto é, voice is speaking. (Hayles, 1999: 213)
Pain Execution Unit. Quando ambos os
jogadores posicionaram a sua mão esquerda Ora, não é esta a essência que o robot,
no contacto eléctrico, o jogo começa. O tipo o autómato, o software, e os estudiosos da
de dor infligida no Painstation, e a sua vida artificial pretendem simular? Não é este
duração, varia consoante o lugar onde as bolas o processo de apreensão e captura do homem
batem. Assim, tanto pode ser uma lâmpada no mundo? Não é esta a forma ou fórmula,
que queima a mão, como um circuito eléc- de que nos fala N. Katherine Hayles, com
trico que lhe dá electrochoques ou “sacões”. a qual o nosso corpo toma consciência da
Neste jogo, dois jogadores oponentes tentam, sua envolvente em interacção com o ambi-
por um lado, defender-se e sofrer o mínimo ente? Seria talvez necessário estimular toda
de dor possivel, por outro, infligir ao seu uma discussão à volta do conceito de inte-
oponente o máximo de dor possivel. Uma ligência e consciência, o que está fora do
relação sado-masoquista entre oponentes na âmbito deste texto, mas uma coisa me parece
mesa? O jogo acaba quando um dos joga- mais ou menos evidente é que um dia, algures
dores decide que a dor é demasiado insu- neste século, o jogo vai tomar conta das
portável e tira a mão do PEU. A intenção nossas existências, e propor-nos um palco de
dos autores deste projecto era fazer um simulação e não a simulação da realidade,
objecto artístico que juntasse as suas voca- de que nos fala Jean Baudrillard no livro
ções para o jogo e para a tecnologia, fazendo Simulacros e Simulação.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 577

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19
“Entre le sentir et le jugement, l’expérience
Trémel, Laurent, Jeux de rôles, jeux
commune fait une différence bien claire. Le
vidéo, multimédia, les faiseurs de mondes, jugement est pour elle une prise de position, il
Presses Universitaires de France, Paris, 2001. vise à connaître quelque chose de valable pour
moi-même à tous les moments de ma vie et pour
les autres esprits existants ou possibles; sentir, au
_______________________________ contraire, c’est se remettre à l’apparence sans
1
Este documento foi elaborado no quadro do chercher à la posséder et à en savoir la verité
projecto de investigação Trends on Portuguese (Merleau-Ponty 1945: 42-43). A percepção é, neste
Networks Culture, projecto financiado pela FCT/ contexto, a interpretação dos sinais exteriores e
POCTI/33436/com.1999. estímulos corporais. A imaginação é, para
2
Bolseira de doutoramento da FCT na Uni- Merleau-Ponty, uma forma de julgar e não um
versidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências estado imanente do sensível antes de todo o
Sociais e Humanas. julgamento. A sensação pura, define-se pela acção
3
Landow, George P., Hypertext 2.0, The Johns dos estímulos sobre o nosso corpo, e sentir é esta
Hopkins University Press, 1997, p. 114. comunicação vital com o mundo que nos possi-
4
Keep, J. Christopher, “The Disturbing bilita a sua presença como lugar familiar da nossa
Liveliness of Machines”, in Ciberspace Textuality, vida. Sentir é, neste contexto, um tecido inten-
578 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

cional que o esforço do conhecimento procura de- 21


Lockridge, Rick, “PainStation: gaming till
compor (Merleau-Ponty, 1945:65). it hurts, a video game that’s literally a pain to
20
Berkeley critica a estranha doutrina das play” 2002, in http://abcnews.go.com/sections/
ideias abstractas e a matéria prima em Aristóteles,
scitech/TechTV/techtv_paingame020422.html
pois considera que a matéria não “vive” indepen- 22
dentemente da mente. Para Berkeley, tanto as http://www.painstation.de/.
qualidades primárias como secundárias da maté- h t t p : / / w w w. w i r e d . c o m / n e w s / g a m e s /
ria, são criações da mente e não existem fora desta. 0,2101,50875,00.html?tw=wn_story_related.
Ver Treatise Concerning the Principles of Human http://www.techtv.com/extendedplay/story/
Knowledge (Berkeley, 1970:15-17). 0,24330,3382064,00.html.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 579

O Museu Virtual:
as novas tecnologias e a reinvenção do espaço museológico
Rute Muchacho1

Un nouveau type d’artiste apparaît, “es un labor clave, que exige un planeamen-
qui ne raconte plus d’histoire. to diario y hasta una invención y redefinición
C’est un architecte de l’espace des de la calidad de sus servicios, acrecentada
événements, un ingénieur de mondes esta necessidad por el protagonismo que há
pour des milliards d’histoires à venir. adquirido el visitante y su entusiasmo
Il sculpte à même le virtuel. creciente por el consumo que le ofrecen estas
(Levy, 1998: 145) instituciones culturales” (Fernandez,
1999:126). O museu tem de se adaptar às
O desenvolvimento das Tecnologias da necessidades da Sociedade actual, em cons-
Informação e da Comunicação (TIC) e as con- tante mutação. As novas correntes
sequências da sua massificação na Sociedade museológicas não surgem como um substi-
actual são cada vez mais ponto de análise tuto à Museologia tradicional, mas como uma
e reflexão. O potencial social das TIC e os nova forma de entender o espaço museal.
efeitos que produzem na forma de pensar e Como afirmou Mário Moutinho “não foi a
de agir de cada indivíduo são, de acordo com Museologia tradicional que evoluiu para uma
alguns autores (Castells, 2002), indiscutíveis. Nova Museologia mas sim a transformação
Este trabalho tem dois objectivos essen- da sociedade que levou à mudança dos
ciais: parâmetros da Museologia” (1989:102).
- definição e discussão do conceito de O museu da actualidade está a enfrentar
museu virtual; um desafio constante e primordial:
- definição das formas possíveis de - a comunicação com o seu público.
materialização desse conceito através do O espaço fechado em si próprio, criado
recurso às TIC. com o objectivo principal de preservar e sal-
A sua apresentação desenvolve-se ao vaguardar um património,4 está a alterar-se
longo de dois aspectos centrais para a para ser capaz de transmitir um conceito e
temática: de possibilitar aos diversos públicos expe-
- utilização das TIC como instrumento riências sensíveis através da interligação com
de comunicação entre o museu e o seu o objecto museal. Como defende Varine “é
público; no contacto sensorial entre o homem e o
- utilização das TIC como instrumento objecto que o museu encontra a sua justi-
de transformação do espaço expositivo ficação e por vezes a sua necessidade”
material e imaterial do museu. (1992:52).
O museu, como importante meio de O discurso expositivo tem de possuir uma
comunicação, tem de aproveitar todo este de- relação clara com aquilo que se expõe. O
senvolvimento comunicacional e tecno-lógi- novo pensamento museológico veio trazer
co, no sentido de satisfazer as novas corren- novos desafios à expografia, criando a ne-
tes da museologia que se estão a debruçar cessidade de novas formas de expor, “o
sobre o papel do museu na sociedade actual.2 desafio que se coloca é o de introduzir no
A instituição museológica sofreu grandes museu o utensílio da forma ( não herdada,
alterações e foi alvo de salutar discussão3 que mas constituída como obra de arte, enten-
motivou novas formas de pensar o museu, dida nos sentidos referidos) como suporte
havendo agora a consciência de que neces- para a comunicação das ideias” (Moutinho,
sita de se libertar do espaço tradicional e 1994:20).
limitado, para se tornar acessível ao grande A exposição é vista como uma ambiência,
público. A atenção e a educação do público na qual os objectos são colocados num
580 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

determinado contexto, de forma a se poder pectivas das TIC face aos museus, em es-
comunicar determinada mensagem ao visi- pecial na forma como expõem os objectos
tante. O sentido do objecto é exteriorizado e comunicam com o público.
pelo seu contexto. O conceptor da exposição Ao visitar um museu, via Internet ou CD-
vê o percurso expositivo como um conjunto ROM, fica-se com nova visão do espaço
de objectos colocados de forma concreta, museológico. A visita desenrola-se num ecrã
tendo como fim a trans-missão de determi- e é comandada pela escolha do visitante
nada mensagem, mas, no entanto, cada visi- virtual, de acordo com as suas necessidades.
tante integra experiências prévias e as suas As barreiras físicas entre os objectos e os
próprias expectativas e interesses em relação visitantes são dominadas, o mesmo aconte-
determinada exposição.5 cendo à obrigatoriedade de seguir determi-
O museu tradicional não consegue trans- nado percurso. Como defende Alison Griffiths
mitir todo o seu valor através da visita, “such technologies have changed the physical
fechado sobre si próprio e preocupado so- character of the museum, frequently creating
bretudo com a colecção e salvaguarda de striking juxtapositions between nineteenth-
objectos, não conse-gue desempenhar a sua century monumental architecture and the
função mais enriquecedora e fundamental: electronic glow of the twenty-first century
comunicar com o público. computer screen. Via the World Wide Web,
As TIC são um instrumento precioso no the museum now transcends the fixities of
processo de comunicação entre o museu e time and place, allowing virtual visitors to
o seu público. A sua utilização como com- wander through its perpetually deserted
plemento de uma exposição vem facilitar a galleries and interact with objects in ways
transmissão da mensagem pretendida e cap- previously unimagined”. Na verdade, quase
tar a atenção do visitante, possibilitando uma que podemos afirmar que se realiza uma nova
nova visão do objecto museológico. visita, abrangendo determinados objectos e
Esta nova realidade levanta uma questão percursos expositivos que não foi possível
pertinente: “the tension between the museum realizar no museu tradicional. Quando se passa
as a site of uplift and rational learning as para o campo virtual, o campo de acção alarga-
opposed to one of amusement and spectacle” se, dando origem a múltiplos percursos
(Griffiths, 2003: 376). Os museus podem ser interactivos. O visitante assiste à “imposição
mais atractivos para o público se disponibili- de um espaço tecnológico, ou melhor, do
zarem mais informação e entretenimento, ou tecnológico como espaço, como palco, por
a combinação dos dois – edutainment – excelência, da abertura dos possíveis da
constituindo um espaço atractivo, com ca- experiência – o ciberespaço” (Cruz, 1998:12).
pacidade para alargar e multiplicar as expe- O objecto museológico abre-se à expe-
riências sensoriais e cognitivas que cada riência estética através do virtual, através de
sujeito pode usufruir. um artifício: a imagem virtual.
As instituições museológicas estão a A expressão “imagem virtual” engloba as
esforçar-se por possuir um site institucional imagens numéricas e a ideia de simulação
de forma a transmitir ao grande público do real. Como afirma Jean Baudrillard “já
informação sobre o conteúdo do seu acervo não existe coextensividade imaginária: é a
e sobre as actividades culturais desenvolvi- miniaturização genética que é a dimensão
das no seu espaço. O museu está a ser da simulação. O real é produzido a partir
democratizado, tornando-se facilmente aces- de células miniaturizadas, de matrizes e de
sível em qualquer parte do mundo. memórias, de modelos de comando – e pode
O museu virtual é uma realidade nova ser reproduzido um número indefinido de
na museologia, mas existem poucos estudos vezes a partir daí. (...). Na verdade, já não
sobre esta temática, embora se tivesse assis- é o real (...) é um hiper-real, produto de
tido nos últimos anos a uma proliferação do síntese irradiando modelos combinatórios
uso do conceito. Muitas vezes o que é num hiperespaço sem atmosfera” (1981: 8).
intitulado de museu virtual é apenas um site O museu virtual vai dissociar o objecto
informativo sobre as actividades do museu, museológico da sua aura, materializando-o
esquecendo as potencialidades e novas pers- sob a forma de imagem virtual, ou seja, de
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 581

artifício. Como defendeu Walter Benjamin “o Os objectos museológicos estão todos


que murcha na era da reprodutibilidade da acessíveis, constituindo um gigantesco arqui-
obra de arte é a sua aura.(...) Poderia vo ao qual se pode aceder por um compu-
caracterizar-se a técnica de reprodução tador ligado à WWW. A possibilidade de ter
dizendo que liberta o objecto reproduzido do objectos em exibição on-line proporciona que
domínio da tradição. Ao multiplicar o repro- toda a colecção esteja acessível, em qualquer
duzido, coloca no lugar de ocorrência única momento, podendo ser utilizada de várias
a ocorrência em massa. Na medida em que formas e através de diversos meios de co-
permite à reprodução ir ao encontro de quem municação. O controlo da informação em
apreende, actualiza o reproduzido em cada redes permite aceder à totalidade do arquivo,
uma das suas situações” (1992: 79). constituindo-se uma nova memória artificial.
Esta realidade sugere um novo meio de Para a obra de arte transmitir a sua
contemplação. Os pincéis e as cores são mensagem, tem de existir uma relação re-
substituídos pelo rato e pelos pixels. O virtual cíproca entre três conceitos fundamentais: a
renova o estatuto da imagem e a sua relação estética, o museal e o virtual.
com a arte. Este museu, sem muros nem A estética ocupa-se da experiência do
colecções, sustém-se na manipulação de sensível, o museal expõe esse objecto que
artifícios. A progressão faz-se de página em irá desenvolver essa experiência sensorial e
página, como se andasse de galeria em o virtual, através de artifícios, consegue
galeria, interagindo com os objectos e comunicar com o sujeito (receptor da obra).
mudando o percurso expositivo. As TIC apresentam-se como mediadoras
O museu virtual cria uma nova realidade entre o museu e a obra de arte, no entanto,
na comunicabilidade estética entre o museu tanto o mediador, como o mediado, conver-
e o seu público. A utilização das TIC para gem no artifício. A obra de arte é representada
a criação desta nova realidade museológica pelo artifício e as TIC utilizam-no de forma
integra o conceito de interactividade no per- a possibilitar a experiência estética. Como
curso museológico e possibilita ao visitante defende José Bragança de Miranda “a arti-
várias alternativas de fruição. Ao poder culação da técnica e da estética são duas faces
escolher e interagir tem uma experiência do mesmo processo de linearização do real
própria do espaço museológico. Como ex- pelo código digital” (2003: 300). O sujeito,
plica Ruth Perlin “works of arts, their como fruidor de toda a experiência estética,
contexts, and their display arrangements are é, ao mesmo tempo, produtor de realidade.
being electronically transported out of the A arte, o museu e o virtual interagem de
exhibit spaces to be examined and visited in forma a criar uma nova realidade. O virtual
homes and other settings by individual who surge como gerador de um novo real. Como
may never enter the art museum” (1999:84). afirmou Deleuze “le virtuel ne s’oppose pas
O visitante deixa de ser um sujeito passivo, au réel, mais seulement à l’actuel. Le virtuel
que apenas reage à mensagem que lhe é posséde une pleine realité, en tant que virtuel”
transmitida, passando a ser incentivado a (1968: 269). O museu virtual existe para além
participar e interagir com o espaço. Cada do museu tradicional, como seu complemen-
visitante pode criar o próprio percurso to, como “theâtre d’operations extêrieurs”
expositivo de acordo com a sua experiência, (Deloche, 2001: 234).
gostos pessoais e a sua cultura. O criador A experiência do museu virtual tem os
do projecto expositivo tem a sua forma ideal seus críticos. Para alguns, esta nova reali-
de percurso para compreensão de uma obra dade pode ser encarada como espaço de
ou transmissão de determinado conceito, mas diversão que dispersa os visitantes e dificulta
cada visitante tem o direito de fazer uma a transmissão da informação. Contudo, não
experiência própria da obra. A tecnologia vem será correcto pensar, que através da técnica,
desafiar o visitante a participar, a intervir a intervenção do sujeito possa desvalorizar
fisicamente, originando interpretações parti- o espaço museológico virtual, pois continua
culares do espaço museológico. A exposição disponível a possibilidade de escolha de
virtual vem facilitar a recepção informativa, vários percursos expositivos, gerando outras
pedagógica e estética do objecto museal. interpretações e experiências pessoais.
582 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

O museu virtual é essencialmente um o espaço expositivo. Ao tentar representar o


museu sem fronteiras, capaz de criar um real cria-se uma nova realidade, paralela e
diálogo virtual com o visitante, dando-lhe coexistente com a primeira, que deve ser vista
uma visão dinâmica, multidisciplinar e um como uma nova visão, ou conjunto de novas
contacto interactivo com a colecção e com visões, sobre o museu tradicional.
ESTÉTICA, ARTE E DESIGN 583

Bibliografia Miranda, J. B. (2003). “O Design como


Problema”. In Autoria e Produção em Te-
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Cadernos de Sociomuseologia, nº10, Univer- dade: reflexões sobre a função social do
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logias. mónio, ULHT.
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Deleuze, G. (1968). Difference et
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1
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Paris: Presses Universitaires de France. Tecnologias.
2
Nos nossos dias a função social do museu
Fiona, C. (2003). The Next Generation
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— ‘Knowledge Environments’ and Digital museológica é vista como instrumento educaci-
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3
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Giuliano, G., Morgana C. & Stefania B. mo de carácter profissional, institucional e gover-
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(2003). Make Your Museum Talk: Natural
o desenvolvimento dos museus em todo o mundo.
Language Interfaces for Cultural Institutions. 4
Entenda-se património como “o conjunto dos
Consultado em 23 de Janeiro de 2004, em bens identificados pelo homem, a partir de suas
Museums and the Web: http:// relações com o meio-ambiente e com os outros
www.archimuse.com/mw2003/papers/gaia/ homens, e a própria interpretação que ele faz
gaia.html dessas relações” (Bruno, 1996: 19).
5
Griffiths, A. (2003). “Media Technology Na perspectiva do visitante a experiência
museal pode ser vista de três perspectivas:
and Museum Display: a Century of
- perspectiva pessoal – relacionada com a
Accommodation and Conflict”. Rethinking experiência pessoal, conhecimento e motivação;
Media Changes. London: MIT Press, pp. 375- - perspectiva social – de acordo com o
389. ambiente social em que a visita se realiza;
Lévy, P. (1998). Qu’est-ce que le virtuel?. - perspectiva física – relacionada com a ar-
Paris: La Découverte. quitectura do edifício e com os objectos que contém.
584 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 585

Capítulo V

COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL
586 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 587

Apresentação
Manuel Damásio1

O audiovisual constitui hoje um campo Mas se no passado era relativamente


essencial de produção tecnológica e uma área simples enquadrar estes meios sob a pers-
importante de reflexão e crítica para as pectiva do fenómeno da comunicação de
Ciências da Comunicação. O audiovisual é, massas, actualmente já não podemos cata-
antes de mais, um espaço de encontro de logar com a mesma facilidade o conjunto dos
várias formas de expressão sensorial e de dispositivos que classificamos como
tecnologias que lhe estão associadas. Pode- “audiovisuais”. A própria expressão já car-
mos olhar para o audiovisual, não como uma regava uma forte carga pejorativa na medida
disciplina científica ou uma técnica especí- em que também passou a denominar os meios
fica, mas antes como uma expressão que de transmissão em tempo real de informação
nomeia uma das áreas centrais de construção visual, como por exemplo o retroprojector
da nossa experiência efectiva de mediatização ou o projector de slides, e deixou claramente
do relacionamento com os outros e com as de ser a mais adequada a partir do momento
coisas. Essa área constrói-se com o contri- em que, com o advento do vídeo e o de-
buto de cada um dos meios que denomina- senvolvimento cada vez mais acelerado de
mos de “audiovisuais”, o conjunto das téc- estruturas de metadata de representação da
nicas que permitem produzir e transmitir a informação, já não podemos com segurança
distância conteúdos visuais e sonoros. afirmar que estes meios só representam
No passado era relativamente simples informação visual e sonora.
isolar cada um desses meios e estudar os seus Ao acrescentarmos a palavra “comunica-
respectivos efeitos sobre o indivíduo e a ção” à expressão “audiovisual” estamos im-
sociedade. Esses eram os tempos das teorias plicitamente a assumir que estas tecnologias
dos efeitos, uma lógica de trabalho durante evoluíram no sentido de possibilitar formas
muito tempo dominante nas ciências da co- cada vez mais aprofundadas de experiências
municação, que enquadrava cada uma destas subjectivas multimodais que se adaptam às
tecnologias no âmbito de um modelo de circunstâncias específicas de tempo e espaço
transmissão e recepção massificada de infor- do sujeito e às limitações dessas circunstân-
mação e procurava detectar neste meios e nos cias e não dos equipamentos ou formatos em
seus mecanismos de controle e produção de causa.
mensagens, os princípios da organização social O audiovisual evoluiu ao longo da sua
de novas formas de produção e distribuição história, e isto quer nos refiramos aos meios
do conhecimento e da informação. de massa ou aos mais corriqueiros disposi-
O advento de cada novo meio audiovisual tivos de transmissão local em tempo real, no
de comunicação de massas anunciava um sentido de aprofundar o carácter cada vez
aumento na capacidade de persuasão da menos passivo da experiência que o meio
tecnologia, e desde o público que fugia em possibilita ao sujeito. De um conjunto de
pânico da sala durante as primeiras projec- tecnologias desenhadas e construídas para
ções dos irmãos Lumiére, passando pelos facilitar o acesso, passámos a um conjunto
cidadãos aterrorizados com o relato, emitido de tecnologias desenhadas e construídas para
através das ondas da rádio, de uma suposta facilitar experiências.
invasão extra-terrestre, não faltam na apesar O conjunto dos trabalhos apresentados
de tudo curta história dos meios audiovisuais, nesta mesa do congresso reflecte esta dupla
factos que nos recordem da enorme capaci- preocupação com os problemas do acesso e
dade que estes meios têm de replicar partes com os problemas da natureza cada vez mais
da nossa experiência do real. interactiva da experiência possibilitada pelo
588 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

meio. Quer estejamos a discutir as novas em que nos preocupávamos com a análise
formas híbridas de comunicação audiovisual, da infra-estrutura de transmissão, terminais
como é o caso da televisão interactiva, ou de recepção e natureza do canal, devemos
as tecnologias mais tradicionais, como a rádio agora passar a um novo período, em que as
ou a televisão, o que está sempre em causa ciências da comunicação se concentrem mais
é a capacidade que o meio demonstra de nas práticas individuais e colectivas de uso
destas tecnologias e menos na forma e
fornecer ao seu utilizador uma experiência
natureza das mensagens que elas produzem.
cada vez mais credível e adaptada às suas
necessidades e condições reais.
Hoje já não podemos isolar o audiovisual
_______________________________
do conjunto das tecnologias que lidam com 1
Universidade Lusófona. Coordenador da
a criação destas experiências subjectivas cada Sessão Temática de Comunicação Audiovisual do
vez mais ricas e personalizadas. De um tempo VI Lusocom.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 589

Apresentação
Francisco Rui Cádima1

Em primeiro lugar diria que, numa in- cas da recepção específicas atinentes ao
trodução à temática da ‘comunicação campo do telespectador.
audiovisual’, importa contextualizar a emer- Repare-se que as práticas culturais dos
gência da Televisão no âmbito do dispositivo portugueses, nomeadamente no que diz res-
histórico-cultural e comunicacional do sécu- peito ao consumo de televisão têm vindo a
lo passado e procurar compreender esse mudar nos últimos anos. Desde a chegada
fenómeno no plano societal, no contexto da televisão por cabo, foram conquistados
jurídico-político e cultural do tempo. cerca de três milhões de telespectadores à
Compreender, por exemplo, os mecanis- televisão hertziana, boa parte dos quais
mos de apropriação dos media por parte dos tornaram-se progressivamente telespectado-
diversos campos de dominação, transforman- res de canais temáticos, nas suas diferentes
do-os, por vezes em máquinas de propagan- tipologias.
da, ou em aparelhos ideológicos de poder, Claro que uma visão actualizada do
através da imposição de lógicas de consenso dispositivo televisivo implica problematizar
social, cultural e político. a própria inflexão tecnológica do presente e
Explicitar os contextos mass-mediáticos, nessa perspectiva implica introduzir as pro-
quer enquanto processo de enunciação
blemáticas da evolução das linguagens e dos
subsumido num fluxo unívoco de comuni-
conteúdos específicos da transição do ambi-
cação, quer enquanto fluxo bidireccional em
ente analógico para o novo contexto digital.
transição para um dispositivo matricial pon-
Vejamos para já a anterior lógica de
to-a-ponto, interactivo.
difusão ponto-multiponto, específica do
Pensar, enfim, as relações entre a tele-
modelo tradicional de televisão generalista,
visão e a sociedade, sistema complexo ao qual
a investigação científica não tem dado a que ainda se mantém, apesar da cada vez
devida importância, apesar de se tratar de uma maior fragmentação do audiovisual. Neste
complexa temática, porventura decisiva para modelo de ‘pirâmide’ a comunicação é
uma percepção mais clara da contempora- unívoca, integra uma complexa rede
neidade. discursiva vinculante, legitimadora, uma nova
Ora é sabido que um meio de comuni- ordem simbólica, de certa forma dissuasora,
cação, isto é, os seus principais actores, or- unilateral, estabelecendo-se assim um mode-
ganizam e enunciam o seu discurso em função lo contratual, no fundo, uma ordem política
das relações de poder e das representações e um quadro normativo-cultural, com impac-
que se configuram num determinado campo to também no plano dos comportamentos e
social e num contexto epocal. No sentido de das condutas.
se poder pensar o modo como se constitui Poder-se-ia referir aqui o texto clássico
o sentido dessa dinâmica discursiva, importa de Casetti e Odin, onde se problematiza a
conhecer e compreender a noção de dispo- oposição entre Paleo e Neo televisão. Para
sitivo mediático, nas suas diferentes dimen- estes autores, a televisão foi desde logo
sões, que do ponto de vista do emissor – apropriada por uma experiência de comuni-
através das dimensões técnica, instrumental cação pedagógica, processo que se configu-
e performativa –, quer do ponto de vista da rou, nas primeiras décadas da sua história,
recepção, percebendo-se a lógica de inflexão num ‘contrato’ com o telespectador, trans-
de modelos comunicacionais e dos respec- formando-se assim, claramente a televisão
tivos campos de mediação a partir da emer- como uma ‘empresa’ de escolarização
gência do conceito de audimetria e das práti- alargada o todo o social.
590 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

A televisão prolongava assim a família dramento crítico, reflexivo, epistemológico e


e a escola, era uma sua extensão, sendo que ainda jurídico-político às práticas, discursos
nessa altura ‘ver TV’ era como que um e procedimentos específicos do objecto
respeitável ‘acto social’ em que todos que- televisivo, quer em referência aos conteúdos,
riam estar comprometidos. Nesta fase a quer no plano histórico e jurídico, configu-
emissão é segmentada de forma muito óbvia rando e problematizando as tecnodiscursivi-
nos diferentes géneros tradicionais e a gre- dades, a instrumentalidade, a performa-
lha, o velho «mapa-tipo» tem de facto um tividade, as estratégias e os contextos de
papel estruturante na emissão. enunciação, e, enfim, as políticas públicas.
Mas a esta lógica específica do início da Pretende-se assim aprofundar neste de-
televisão, designadamente na Europa, rompe bate e nas intervenções da mesa de Comu-
com o anterior modelo relacional, ao qual nicação Audiovisual algumas questões em
sucede um modelo de ‘contacto’, caracteri- torno de dispositivos de informação de pro-
zado por um novo modo de estruturação do gramação da era da televisão clássica, das
fluxo e pelo esbatimento do fluxo contínuo respectivas mediações simbólicas, discursivas,
clássico, configurado no estereótipo dos tecnológicas, históricas e jurídico-políticas.
fluxos de programação, dos alinhamentos, das Do mesmo modo se procurará fazer a análise
formas de representação do real. É como se de contextos, práticas e regularidades
o mundo se tornasse fábula. O discurso discursivas e das condições de produção
televisivo conduz ao espectáculo de histórica do real comunicacional, não só no
ritualização do acontecimento e à efabulação plano de agenciamento ‘televisivo’ do mun-
sempre violenta do real. Um modelo que se do, como também da lei dos sistemas que
manifesta através da criação de uma cultura- orientam o aparecimento de enunciados como
mosaico e de um contrato de visibilidade e acontecimentos singulares no campo da
de legitimação com o telespectador. videocultura televisiva.
Mas é também o tempo da emergência A analítica destes ‘fragmentos’ do fluxo
de processos de interactividade entre o televisivo, claramente mais específicos da neo-
emissor e o receptor. A relação com o te- televisão, é extensiva à questão dos modelos
lespectador torna-se mais próxima, mais televisivos, do serviço público de televisão,
familiar e mais convivial. Apesar disso, é passa pelo âmbito sociológico, onde se po-
claro que o tipo de representação do mundo dem evidenciar designadamente tópicos rela-
que a televisão dá a ver é ainda assim li- tivos a uma estética e uma política da recep-
mitada pelo dispositivo clássico, sendo, em ção, sendo que aqui importa cuidar da inter-
geral, mais conservadora do que as próprias pretação de dados quantitativos através de uma
possibilidades técnico-discursivas do meio estratégia de investigação onde os estudos
permitem. qualitativos possam esclarecer o que a
A televisão generalista confronta-se ago- audimetria esconde, na sua lógica determina-
ra com os seus híbridos interactivos, sendo da pelas dinâmicas de mercado e comercial.
este claramente um sintoma de um novo ciclo Na abordagem das diferentes séries e
em relação ao qual, aliás, quer os produtores «acontecimentos monumentos», específicos
de conteúdos, quer o campo da recepção, se da narrativa televisiva e bem assim das
estão a adaptar progressivamente, ainda que modalidades enunciativas e fluxos que se
a formatação de conteúdos no domínio do estruturam na emissão de ar, procurar-se-á
multimédia interactivo tenha aqui uma dificul- problematizar a emergência de lógicas de
dade maior. De facto, a era digital e a pós- mediação do dispositivo, designadamente a
televisão assentam num novo modelo de co- partir da configuração de campos, simbóli-
municação audiovisual que nos fará progres- cos, culturais e políticos criados a partir da
sivamente esquecer esse primeiro modelo interacção entre a televisão e a sua recepção.
unívoco e, de certa maneira, autista, da era Por fim, refira-se que a análise acima
analógica. referida das relações complexas entre te-
Nesta mesa procurar-se-á então, nas levisão e sociedade só poderá ter as suas
diferentes investigações, dar um enqua- consequências através de uma analítica
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 591

porfiada, arqueológica, do contexto, discur- no âmbito da actual dualidade entre ser-


sos, modo de recepção e condições de pro- viço público e mercado, para além natu-
dução do sentido do objecto televisivo. Essa ralmente da fragmentação do modelo
analítica é naturalmente enquadrada tam- audiovisual e da multiplicidade da oferta,
bém pelas lógicas públicas e privadas e com base nos novos dispositivos
ainda pela questão da regulação sectorial, tecnológicos interactivos.
592 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia pragmatique», Communications, nº 51, Pa-


ris,1990.
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- O Fenómeno Televisivo, Círculo de 1
Director do Obercom. Coordenador da Sessão
Leitores, Lisboa, 1995. Temática de Comunicação Audiovisual do II
Casetti, Francesco e Odin, Roger, «De Ibérico.
la Paléo à la néo-télévision. Approche sémio-
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 593

El protagonista del nuevo mercado de la


información y la comunicación: el consumidor
Carmen Fernández Camacho1

1. Introducción desarrollo de programas informáticos. Los


avances en el área de telecomunicaciones y
El siglo XXI se define como la Era de el desarrollo de Internet está modificando la
la Comunicación. Vivimos en un mundo cuyo organización empresarial, las relaciones de
destino es la globalización iniciada a finales las organizaciones con el mercado,
del siglo anterior y caminamos hacia la distribuidores y consumidores.
Sociedad de la Comunicación. Período más Este cambio tecnológico, entre otros, que
competitivo y eficaz en lo que respecta a la caracteriza el sector de las telecomunica-
comunicación que épocas anteriores. En ciones, de los medios de comunicación social
primer lugar, porque la introducción de y de las tecnologías de la información, indica
medios audiovisuales y nuevas tecnologías el surgimiento de un nuevo paradigma: el
ha implicado la entrada en juego de capitales Paradigma de la Convergencia.3
industriales interesados en potenciar nuevos La evolución de diferentes aspectos de
bienes de consumo, en la medida en que tales la convergencia y de las relaciones que se
medios se apoyan en una amplia oferta establecen entre quienes la asumen, ha dado
comercial. Y, en segundo lugar, porque en lugar a tres dimensiones:
relación a la prensa, en lo que atañe a su • Convergencia tecnológica de redes y de
estructura económica, la aceleración con que equipos;
se producen los cambios resulta mucho mayor • Convergencia industrial, y
con la entrada de la televisión y, • Convergencia de mercados y servicios.
principalmente, de los satélites de comunica- Estas convergencias se basan en una
ciones. infraestructura, constituida por sistemas de
Por otra parte, la evolución del mercado componentes, redes y servicios así como
de consumo de la microinformática hacia el asociaciones de los sectores citados,
sector de las comunicaciones anticipa una telecomunicaciones, medios de comunicación
nueva reconversión de los sistemas social y tecnologías de la información, que
tradicionales de comunicación a formas más contribuyen a la mejora en la entrega de los
modernas de comunicación integral, que servicios de las sociedades de la información
mediante el uso de la tecnología de cable a los clientes.
construido con fibra óptica permite la Los cambios que se están produciendo
transmisión y recepción por un mismo en Internet, no obstante, son definidos y
vehículo, el teléfono, de los mensajes y considerados como símbolo y principal motor
señales más diversos como radio, televisión, de la convergencia. Internet ofrece servicios
telefax, télex, teleconferencia, programas, a empresas y al público en general tales como
etcétera. el correo electrónico, procesadores de texto,
Esto ha dado lugar a que, en la actualidad, dictado y generación de voz, sistemas
ya hablemos de un nuevo sector económico, expertos, todos ellos considerados como las
INFOCOM,2 cuya referencia inmediata son formas más modestas de la inteligencia
las nuevas tecnologías de la comunicación artificial, corrección ortográfica y gramatical,
y de la información. INFOCOM incluye todo autoedición, conferencia online, videoconfe-
aquello referente a las telecomunicaciones rencia o teleconferencia, uno de los usos más
desde los sectores más tradicionales hasta espectaculares en la transmisión vía satélite
sectores como la producción de información en el ámbito de las relaciones públicas, giras
y contenidos, pasando por la fabricación de de promoción vía satélite, conferencias en red,
equipos, terminales y redes así como el entre otros.4 Precisamente, la simultaneidad
594 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

que caracteriza a World Wide Web es una de (descodificadores digitales a analógicos), o


las características más destacada de la adquirir receptores integrados de televisión
convergencia. digital.
Asimismo, la codificación digital es la Respecto a la radio digital, España sí que
base de la convergencia tecnológica. La destaca en la cobertura del territorio nacional.
tecnología digital convierte en bits la imagen, A finales de 2003, el 50% de la población
el sonido y los datos; compacta la ya puede escuchar radio digital. Ahora hacen
información; aumenta la velocidad de falta campañas de promoción que den a
transmisión y disminuye la frontera entre los conocer la tecnología digital entre todos los
equipos y las redes. No obstante, la tecnología públicos, ayudas y condiciones especiales
digital no sólo hace posible la rapidez en la para fomentar la migración y un cambio de
transmisión sino que también facilita la mentalidad en los radiodifusores que deben
edición de esos materiales. Las redes de invertir en el desarrollo de nuevos formatos
televisión, se están convirtiendo en estructuras de programación que den un nuevo valor a
bidireccionales y de elevada capacidad, es la radio del futuro.
decir, en redes interactivas de banda ancha. La convergencia de las redes fijas y
En España, el Plan Técnico Nacional de móviles representa una parte de la plena
la Televisión Digital Terrenal, aprobado en integración de tecnologías con el objetivo de
1998, dispuso que las estaciones de televisión generar sistemas de comunicaciones digitales
con tecnología analógica cesasen en sus y móviles. Esto es posible si se utiliza la
emisiones antes de 2012 y, además, estableció misma plataforma para recibir un conjunto
que, si las entidades concesionarias del de servicios de voz, datos, multimedia y
servicio de televisión privada lo solicitaban, audiovisuales. Este cambio supone
como así ocurrió, les sería ampliado el importantes implicaciones de todos los
contenido de la concesión para permitirles sectores que engloban la convergencia.
la explotación de su programación con Asimismo, como resultado de la
tecnología digital. Con este objetivo, el convergencia de redes, equipos y servicios
Acuerdo del Consejo de Ministros de 10 de asistimos a la entrada de grupos empresariales
marzo de 2000, por el que se renovaron las en diferentes áreas de negocio o en diferentes
concesiones de esas entidades privadas, sectores, esto es en la práctica, la
amplió el contenido de sus concesiones con convergencia de mercados donde el
la finalidad de permitir simultanear sus consumidor ha de ser el protagonista.
emisiones con tecnología analógica y con
tecnología digital, estableciendo la obligación 2. El valor del consumidor
de emitir empleando la tecnología digital en
un plazo no superior a dos años desde la Las telecomunicaciones, junto a la
renovación. informática y el área audiovisual, conforman
De esta manera, las sociedades privadas un nuevo hipersector, el de la Información,
de televisión, Gestevisión Telecinco, Antena caracterizado por su fuerte dinamismo y su
3 de Televisión y Sogecable (Canal Plus) influencia como factor de desarrollo
comienzan las emisiones de su programación económico en las sociedades avanzadas. Ante
con tecnología digital el 3 de abril de 2002 la nueva situación global de competencia y
en un canal múltiple compartido en el que, desde todos los frentes los operadores de
además, se incluye la programación de comunicaciones han comprendido que su
Radiotelevisión Española (La Primera y La negocio no puede ser en el futuro el de meros
2), en la denominada Red Global de cobertura distribuidores de la información.
Nacional (RGN). Por lo tanto, desde esa fecha No obstante, ignorar las necesidades y
se inicia en España la transición hacia la deseos del consumidor, es decir, el campo
tecnología digital que finalizará en 2012. del comportamiento del consumidor el cual
Hasta entonces, los usuarios disponen de estudia cómo seleccionan, compran, utilizan
tiempo suficiente para adaptar sus televisores y desechan bienes, servicios, ideas o
para la recepción de las señales digitales experiencias los individuos, grupos y
mediante el uso de equipos convertidores organizaciones con el fin de satisfacer sus
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 595

necesidades y deseos, sería un error profundo impacto en el mercado de bienes


considerable ya que el nuevo milenio habla de consumo dando rienda suelta y
de los consumidores de tecnología. aumentando el pujante poder de los
Sin duda, los consumidores cada vez más consumidores. Con interfaces fáciles y
exigentes e informados, junto con las accesibles, y un acceso global, los
innovaciones tecnológicas, están transforman- consumidores pueden ya:
do todos los paradigmas empresariales • Obtener acceso directo a múltiples
mediante la creación de una nueva ruta hacia fuentes de productos, ya sea a través de
el mercado: la venta electrónica. De lo que comerciantes, fabricantes o distribuidores,
la mayoría de las empresas no son conscientes cambiando el lugar y la manera de tomar
es que, como consecuencia de esto, aparece decisiones de compra.
una batalla por la posesión y control de este • Tener elevada conciencia y conocimiento
nuevo y prometedor canal de distribución: antes de comprar.
las nuevas tecnologías. • Sustituir los canales tradicionales por
Desde un punto de vista economicista, las las crecientes opciones on-line.
redes representan al menos, tres grandes • Elevar sus estándares de calidad y
niveles de transformaciones: servicio, a menores precios.
1. La aparición de nuevos modelos CIBER implica, fundamentalmente, un
organizativos: la empresa en red. consumidor con más poder siendo, además
2. El establecimiento de alianzas en red; una estructura nueva, poderosa y llena de
3. La gestión y el desarrollo de los información que está cambiando la forma en
negocios (productividad, competencia y que los consumidores realizan sus decisiones
cliente) a través de la red de redes: Internet.5 de compra.
Unos consumidores cada vez más Igualmente, la televisión digital, trabaja
exigentes e informados, reforzados por los en dar al usuario un nuevo concepto de
avances tecnológicos, están dando lugar a un televisión: la televisión personal. Ofrecer a
creciente reto para fabricantes, distribuidores cada uno de los consumidores la posibilidad
y minoristas. Hoy en día, los consumidores de diseñar su ocio de una forma totalmente
son capaces de ejercer más influencia, e personal, facilitándole para ello la oferta más
incluso, controlar la cadena de consumo. De completa y diversificada, segmentada en
hecho, la industria está transformándose de paquetes básicos, paquetes temáticos, canales
la era de caveta emptor a la era de caveta a la carta, pago por visión y cine por encargo.
vendor. La televisión es la forma de comunicación
La venta electrónica surgió a finales de visual en la vida de hoy en día. A finales
los años ochenta, con los quioscos y con la de los noventa, surgió la World Wide Web
compra en casa por televisión. Pero en ningún de Internet como comunicador visual en
momento llegó siquiera a amenazar la competencia con la televisión. Este hecho ha
posición de venta por catálogo como el provocado el aumento de horas que dedica
segundo canal de distribución en términos de el consumidor, como media, al uso de los
volumen. El motivo es evidente, su tecnología medios de comunicación, y ha causado un
era aún muy limitada. Sin embargo, la versión claro trasvase a la búsqueda en Internet de
de los años noventa de la venta electrónica parte del tiempo que antes se dedicaba a ver
basada ésta en interacciones informáticas la televisión.
(Computer/Interactive-Based Electronic No obstante, los programas de televisión
Retailing) sobrepasa a la venta por catálogo viven y mueren según su nivel de audiencia.
como el segundo canal de distribución más La selección de programas y de sus
importante después de la venta en comercio contenidos está dominada por una mentalidad
tradicional, una fuente de preocupación entre competitiva, especialmente, entre las grandes
los comerciantes tradicionales. cadenas. Los hábitos televisivos determinan
CIBER nace a partir de la combinación qué programas van a poder ver todos los
de consumidores con un alto nivel de telespectadores. La razón de esto es el dinero.
conocimientos provistos de las tecnologías Las grandes cadenas y los canales locales
clave. Esta combinación está provocando un determinan el precio de la inserción de la
596 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

publicidad según el tamaño de la audiencia electrónica o EPG y a la posibilidad de elegir


estimada del programa en que vaya a aparecer cada usuario la que quiera, una vez superada
el anuncio. Por tanto, cuanto mayor sea la la limitación cuantitativa de los sistemas
audiencia, mayor será el precio del espacio analógicos. Estos elementos constituyen por
publicitario y mayores los beneficios. Incluso sí mismos una muestra real del cambio
los canales sin ánimo de lucro conceptual que se está produciendo, en
norteamericanos siguen con cuidado el síntesis, calidad versus cantidad.
tamaño de su audiencia, ya que parte de sus Por otro lado, los usuarios de Internet
ingresos proceden de las subvenciones que intercambian mensajes con cualquier lugar del
reciben de algunas organizaciones por emitir planeta electrónico y “navegan” por la red
determinados programas. explotando las cantidades masivas de
La fidelización del público es importante información y de comunicación que ofrece
por lo que se ofrece todo tipo de productos un sistema entrelazado de redes informáticas
de información y comunicación para que el virtualmente libre de ataduras espacio-
consumidor pueda acceder cuando le temporales. A través de la World Wide Web
apetezca. Dicho esto, el contenido caracteriza de Internet, la red, miles de empresas,
el negocio. La confusión abrió un enorme organizaciones y otros medios de
potencial de programación, con el comunicación e individuos hablan de sí
consiguiente crecimiento de las oportunidades mismos, venden sus productos y promocionan
para las relaciones públicas. Cuando un sus ideas. Internet es la herramienta más
sistema de televisión por cable ofrece más fascinante de entre los múltiples nuevos
de cien canales, como de hecho en Estados métodos electrónicos que con sus
Unidos muchos son capaces de ofrecer, la innovaciones está cambiando las
necesidad de material para la programación comunicaciones de masas en general y las
es voraz. relaciones de las empresas con el mercado
Los Grupos de Comunicación intentan en todos los aspectos.
conseguir un público fiel y para ello recurren Asimismo, los consumidores mensuales de
a diversas plataformas tecnológicas. Ahora se radiodifusión vía Internet, cuyo perfil
negocia el tiempo teniendo en cuenta a la corresponde a la escala superior de ingresos,
audiencia y al espacio público. A partir de representan una gran oportunidad para los
los años 90, los negocios de comunicación anunciantes y las compañías que desean ofrecer
se definen por sus relaciones, es decir, por nuevos dispositivos y contenidos digitales.6
la ocupación de un espacio público en busca Durante los tres últimos años, la cantidad de
de la fidelización así como ofrecer todo tipo norteamericanos que escuchan las
de productos de información y comunicación transmisiones de audio vía Internet se ha
para que los consumidores puedan acceder a triplicado, mientras que la cantidad de aquellos
éstos cuando les apetezca. Por este motivo, que ven los videos por Internet ha aumentado
es fundamental que los grupos de lentamente. El uso de los vídeos a través de
comunicación mantengan seguidores ligados Internet aún no muestra signos de un uso
a sus ofertas, es decir, a ese conjunto de habitual, aunque va, progresivamente,
servicios que sólo el consumidor puede acceder avanzando.
a él gracias a la oferta del grupo empresarial. Sin duda, las nuevas tecnologías abren
Para ello, podemos distinguir distintas la puerta a la sociedad de la Información y
plataformas tecnológicas como las ya constituyen la clave para hacer negocios en
mencionadas, la televisión e Internet, pero sin una economía mundializada. La sociedad de
olvidar, los periódicos, los teléfonos móviles, la Información que está construyendo la
la radio o las revistas. Desde esta perspectiva Unión Europea debe aprovechar este potencial
empresarial, negocio más tiempo, se crea la económico, social y cultural para aunar los
base necesaria para conseguir un consumidor aspectos tecnológicos, económicos y sociales
fiel y un determinado espacio público. en la creación de nuevas oportunidades para
Desde esta perspectiva, en los próximos todos los ciudadanos.
años asistiremos al final del zapping, que será Los consumidores hoy, se muestran más
sustituido por la guía de programación dispuestos a pagar una tarifa de suscripción
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 597

por acceder a contenidos y programación aplicación del autoservicio web permite al


únicos, no accesibles de otra manera. En la consumidor cambiar su información de
decisión de pago de una tarifa, la ausencia contacto o demográfica; dar parte de
o menor transmisión de publicidad y mejor incidencias o reclamaciones; consultar
calidad de audio son factores de menor catálogos de productos o servicios; solicitar
importancia. que la compañía se ponga en contacto con
El sector INFOCOM ofrece la posibilidad él; solicitar ayuda on-line de un agente en
de utilizar múltiples redes y plataformas tiempo real; iniciar pedidos y consultar el
tecnológicas con el fin de responder a las estado de envíos, recogidas e incidencias.
necesidades de los consumidores o clientes Lógicamente, el autoservicio web supone
a través de sus servicios. INFOCOM aumenta unas ventajas para el consumidor tales como:
el nivel de satisfacción y fidelidad del cliente ahorro en costes gracias a la ausencia de
al tiempo que se reducen costes y intervención de agentes; capacidad de
complejidad. personalizar las acciones automáticamente
En la actualidad, los medios desempeñan, desde la web y la posibilidad de ofrecer a
en particular la televisión, cuatro funciones cada consumidor/cliente unas posibilidades
básicas: entretenimiento y ocio; información de servicio dependiendo de su valor.
y conocimiento del mundo; contacto social Las necesidades de entretenimiento e
proporcionando temas de conversación e información son los aspectos más destacados
identidad personal y autodefinición debido en la originalidad y calidad del contenido,
a la comparación de experiencias.7 coste y facilidad de utilización de interface.
Asimismo, podemos distinguir cuatro Respecto a los servicios de transacciones,
tipos de necesidades de los consumidores o los atributos más semejantes a los servicios
clientes de una empresa del sector de comunicaciones son: seguridad y
INFOCOM: necesidades de comunicación fiabilidad, así como poder efectuar una
escrita (correo electrónico), oral y visual (la transacción de forma simple a cualquier hora
teleconferencia); necesidades de información y cualquier lugar.
financiera en forma de noticias; necesidades
de entretenimiento (música y juegos) y 3. Conclusiones
necesidades que implican transacciones,
compra-venta de bienes o servicios.8 El panorama actual del hipersector apunta
Desde la perspectiva de la demanda, cada a que vivimos ya bajo la sombra de la
tipo de necesidad tiene adscritas comunicación ciberespacial. La convergencia
características diferentes. Para conseguir una entre las Telecomunicaciones, la informática
adecuada segmentación de las demandas y y los contenidos auguran futuro a las
necesidades, el producto y servicio ha de iniciativas que, durante la última década del
prepararse de acuerdo a aquellos atributos pasado siglo, vertieron su contenido a la red.
más destacados para el consumidor. En cada Las redes telemáticas afectan,
tipo de necesidad podemos determinar qué positivamente, cada vez a más personas en
atributos son los de más valor para el el mundo. Incluso las empresas confían en
consumidor y por eso, más relevantes. sus posibilidades y buscan fórmulas para
Los servicios de comunicación y los aumentar su tamaño a fin de afrontar las
atributos más destacados para el consumidor grandes inversiones y competir con éxito. Las
son la integración entre los diferentes principales industrias culturales consideran
formatos de comunicación, por ejemplo, que el paradigma de la nueva empresa es
correo electrónico, telefonía móvil, telefonía multimedia y tratan de liderar los mercados
fija, entre otros. Ahora bien, es necesario tener de prensa, radio, Internet, multimedia,
en cuenta para la fiabilidad del servicio, la discografía, cine, etcétera. Para todos, el
disponibilidad en el tiempo y espacio. mundo global es su zona de actuación y
El autoservicio web permite al buscan acuerdos con empresas informáticas
consumidor gestionar algunas de sus u operadores de telefonía, es decir, con
relaciones a través de la web sin la empresas de la nueva economía. Todos
intervención directa de un agente. Así, la comparten con las tecnologías el interés por
598 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

el contenido y buscan fórmulas que aporten consiste en construir todos los procesos de
más capitalización y liquidez. la empresa tomando como primera referencia
En este escenario caracterizado por la al cliente/consumidor. El objetivo es construir
revolución tecnológica en marcha y por la relaciones duraderas mediante la comprensión
concentración empresarial, con grandes de las necesidades y preferencias individuales
desafíos comunicativos, el consumidor/cliente añadiendo un valor a la empresa y al
se ha convertido en el protagonista de una consumidor. La estrategia de negocio se
nueva era, la era digital, y de una nueva utiliza como base para mejorar la capacidad
sociedad, la Sociedad de la Información. de innovación de la empresa u organización
Los consumidores no sólo han modificado asegurándose que las mejoras y renovaciones
de manera radical sus hábitos en los últimos de productos y servicios satisfagan al
años, sino que se han vuelto cada vez más consumidor. Para ello, las empresas utilizan
exigentes. De esta forma, el cliente del tercer más de un canal para llegar a sus clientes:
milenio aparece como una persona informada, representantes de ventas, atención telefónica,
sensible a los precios, que cuenta con una internet, extranet,9 cadena de minoristas,
amplia gama de opciones donde elegir, tiene mayoristas, etcétera.
gustos sofisticados y está acostumbrada a La estrategia de negocio se anticipa a esas
altos niveles de calidad y de servicio. Ante necesidades de los consumidores, incrementa
este nuevo paradigma, las empresas se su fidelidad y rentabilidad, ahorra en costes
esfuerzan más para gestionar adecuadamente de venta gracias a la selección del público
las relaciones con sus clientes con el fin de objetivo y mejora su grado de satisfacción.
satisfacerlos y retenerlos. Esto es debido a un incremento en la
Las relaciones entre el cliente y la eficiencia de la atención al cliente, a la
empresa en la Sociedad de la Información reducción del tiempo en la resolución de
y de las Comunicaciones, pasan a ocupar un problemas, en el incremento de frecuencia
lugar privilegiado. El consumidor/cliente se de contacto con el consumidor y en su
ha convertido en el centro y objetivo de todas satisfacción así como en la conversión de
las actividades, procesos, personas, estrategias centro de costes a centro de beneficios.
y sistemas de la empresa. Conseguir un nuevo Emerge, así, una nueva forma de entender
cliente y mantener a los actuales supone para el papel del cliente o usuario por la mayor
las organizaciones una gran dificultad. De capacidad de decisión en periodos de tiempo
hecho, captar a un nuevo cliente cuesta entre cada vez más reducidos y por la
cinco y diez veces más que fidelizar a uno personalización característica de este contexto
ya existente. Estos parámetros son aplicables donde se combinan los usuarios individuales
a todo tipo de empresas, independientemente e institucionales. Al mismo tiempo se
del sector en el que se muevan. requieren estudios concretos sobre qué
Este nuevo mercado de la información información es solicitada y cómo se pide, si
y de la comunicación ha dado lugar a una bien se debe recordar que el criterio
nueva estrategia, la estrategia de negocio que predominante ha de ser el economicista.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 599

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9
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colaboración que utilizan también la tecnología
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Internet. Para algunos es una parte de las
Gestión 2000, S.A., 2003.
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consumidor - o caso da televisao por cabo entre empresa y proveedores, de empresa a
em Portugal, Cascais, Principia, 2001. empresa, de empresas a consumidores.
600 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 601

Televisão Digital e Interactiva: o desafio de adequar


a oferta às necessidades e preferências dos utilizadores
Célia Quico1

0. Introdução - as pessoas querem cada vez mais


participar e estar próximo dos Media,
Televisão Digital é sinónimo de melhor - as pessoas consomem cada vez mais
qualidade de imagem e som e de mais canais diversos Media em simultâneo,
de televisão – é ainda sinónimo de novos - as pessoas querem partilhar conteúdos
serviços interactivos de informação e entre- – vídeo, música, etc – com outros pares.
tenimento. Para além dos guias de progra- “A indústria da televisão está a começar
mação, filmes em pay-per-view, jogos e outros a perceber que a imagem tradicional da
serviços tipicamente disponibilizados pelos família reunida à volta do televisor está
ultrapassada”, afirmou o director de novos
operadores de Televisão Digital, é necessário
Media e tecnologia da BBCi Ashley Highfield
oferecer novos serviços que tragam valor aos
na conferência Next MEDIA que decorreu
espectadores, bem como aos operadores de
em finais de 2003, acrescentando que as
televisão, canais e produtoras de televisão.
empresas de Media com sucesso serão as que
No caso concreto dos operadores e dos canais compreenderem que o contexto mudou e que
de televisão, confrontados actualmente com os espectadores querem consumir Media de
os elevados custos da transição do analógico formas diferentes.
para o digital e com uma forte concorrência,
a oferta de serviços de Televisão Digital e 1. Evolução da televisão digital e
Interactiva tem a dupla vantagem de poder interactiva em Portugal desde 2001
gerar receitas adicionais e de permitir a
demarcação da oferta relativamente aos seus Em Junho de 2001, a TV Cabo tornou-
concorrentes, mantendo ou capturando novos se um dos primeiros operadores no mundo
subscritores e espectadores. a lançar um serviço de televisão digital e
O objectivo desta comunicação é o de interactiva, tendo sido o primeiro a nível
explorar os seguintes tópicos: mundial a oferecer a funcionalidade de
- Evolução da Televisão Digital e gravação de vídeo digital numa set-top box
Interactiva em Portugal desde 2001, por cabo com bi-direccionalidade, com base
- Caracterização do Consumo de Televi- na plataforma Microsoft TV Advanced. Dois
são Digital e Interactiva no Reino Unido e anos depois, em Junho de 2003, a TV Cabo
em Portugal, lançou oficialmente o seu serviço e caixas
- Adequação da oferta de Televisão descodificadoras de televisão digital e
Digital e Interactiva às necessidade e pre- interactiva low-end – designadas Power Box
-, disponível para clientes de satélite e cabo.
ferências dos utilizadores.
A maior novidade em termos de serviços
A importância de se proceder ao levan-
digitais e interactivos foi o pay-per-view –
tamento e estudo das necessidades e prefe- que a TV Cabo decidiu comercializar sob a
rências dos utilizadores será abordada, apre- designação “Video-on-Demand”. Este novo
sentando-se dados que demonstram que a serviço permite aos utilizadores da Power Box
forma como consumimos televisão está a alugar filmes através da descodificação de
mudar de forma irreversível, como é o caso quatro canais dedicados, bem como
de estudos recentes tornados públicos pela descodificar os filmes dos canais de adultos
BBC, que revelaram existir quatro novas e “PlayBoy” e “Sexy Hot”. A Power Box não
importantes tendências: tem canal de retorno próprio, pelo que”o
- as pessoas estão a assumir o controlo telemóvel funciona como canal de retorno
do seu consumo de Media, pelo envio de SMS.
602 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Em Junho de 2003, a TV Cabo lançou gital, o destaque vai para o operador de


a aplicação “TV Digital Mobile”, Televisão Digital Satélite Sky Digital, que
desenvolvido para A WP – GPRS, que per- ultrapassava os 7.200.000 subscritores em fins
mite a interacção do telespectador com um de 2003. Já os operadores de cabo NTL e
conjunto de serviços interactivos através do Telewest atingiram respectivamente os
telemóvel, nomeadamente: aceder ao guia 2,009,700 e os 1,258,549 subscritores com
de programação dos principais canais do acesso a televisão digital no final de 2003,
pacote da TV Cabo, ver trailers de filmes, enquanto que o operador de Televisão Di-
ver vídeos de notícias exibidas nos canais gital Terrestre Freeview aproximou-se da
generalistas, ver vídeos da principais joga- fasquia dos 3 milhões de subscritores, estan-
das dos desafios de futebol da Super Liga, do disponível em 2,996,700 lares na mesma
agendar alertas de programas, votar em data4.
sondagens e participar em fóruns, entre O Reino Unido não só é líder em termos
outras funcionalidades. de penetração de Televisão Digital como
Em finais do ano de 2003, a TV Cabo também em termos do impacto e desenvol-
lançou novos serviços de Televisão Digital vimento de serviços de Televisão Interactiva.
e Interactiva, dos quais se destaca o serviço No arranque desta década verificou-se uma
de Multi-Jogos da Champions League – que “explosão de actividade” no sector da Te-
possibilita ver quatro jogos em simultâneo, levisão Digital e Interactiva, tal como aponta
e o SMS-TV – um novo canal de televisão Mark Gawlinsky da BBC, tendo sido criadas
em que os espectadores têm a oportunidade diversas empresas especificamente com a
de interagir via SMS com a programação. finalidade de desenvolver diferentes tipos de
Assim, verifica-se que a oferta de novos soluções para este novo media emergente. No
canais digitais e a interacção via SMS é o entanto, em inícios de 2003 muitas destas
foco das novas ofertas da TV Cabo. Desta empresas tinham encerrado as portas ou
forma, a empresa segue de perto receitas já realinhado a sua estratégia, como foram os
testadas com sucesso em outros mercados casos do operador de Televisão Digital
internacionais, sobretudo nos mercados Terrestre ITV Digital ou do portal da Sky
Europeus. No caso particular da interacção Digital conhecido por “Open…” (Gawlinsky:
via SMS com a Televisão, nos últimos anos 2003):
os operadores e canais de televisão passaram
a recorrer ao telemóvel como “canal de “infelizmente, os primeiros três anos
retorno” em alternativa ou em complemento do novo milénio no Reino Unido pro-
às aplicações disponíveis por intermédio de varam que, a não ser que se acertasse
uma plataforma de televisão interactiva, tal na mosca com a fórmula, as receitas
como refere a analista de novos media Ferhan e outros benefícios da Televisão
Cook2. Interactiva não são fáceis de obter”5.

2. Caracterização do consumo de televisão Apesar de ser difícil conseguir a formula


digital e interactiva no Reino Unido e em mágica em Televisão Digital e Interactiva,
Portugal não é impossível, como demonstram os
seguintes exemplos de serviços evidenciados
Na Europa registam-se algumas das ta- por Gawlinski, que têm vindo a gerar recei-
xas mais elevadas de penetração de Televi- tas para as empresas e a ganhar popularidade
são Digital e, consequentemente, de Televi- junto dos espectadores:
são Interactiva. O destaque vai para o Reino - os guias de programação electrónica
Unido que possuía a maior taxa de penetra- são muito populares, de acordo com a Sky
ção de Televisão Digital da Europa em finais Digital a percentagem de utilização atinge
de 2003: 50,2% de lares segundo dados do os 90% os seus subscritores, enquanto que
Ofcom, o órgão que regula a televisão o operador de Teelvisão paga Francês
comercial no Reino Unido3. Relativamente Canal Satellite reporta 80% de taxa de uti-
aos principais operadores de Televisão Di- lização;
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 603

Figura 1: Electronic Programme Guide, Sky diferentes canais de áudio (comentários e som
do estádio) e repetições dos jogos;

Figura 3: Mundial de Futebol 2002, BBC

- os melhores serviços de Televisão


Digital e Interactiva podem ser mais popu-
lares do que os próprios canais de televisão,
como é o caso do portal de jogos PlayJam
que atraiu em média 250.000 espectadores - e ainda que os modelos de negócio neste
por dia, através do operador de Sky Digital sector ainda não estejam totalmente defini-
em 2002. De acordo com dados da empresa dos e provados, alguns serviços interactivos
de audience research BARB, o PlayJam já estão a gerar receitas significativas, como
conseguiu ser mais popular do que a MTV é o caso do Channel 4 que graças ao pro-
e o Sky Sports One durante alguns meses, grama Big Brother 2002 obteve em votações
situando-se entre o oitavo e o décimo quinto via plataformas de Televisão Digital e
canal mais visto na Sky Digital; Interactiva mais de 1 milhão de libras6.
Ainda de notar que o operador Sky Digital
Figura 2: Portal de Jogos Playjam, Sky tem vindo a ser um dos players mais activos
neste sector, quer como produtor de serviços
(Sky Sports Active, Sky News Active) quer
como distribuidor de serviços interactivos.
Desde Agosto de 1999 que a Sky tem vindo
a oferecer serviços interactivos, com o lan-
çamento da Sky Sports Active, que permitia
a selecção de diferentes câmaras no decorrer
de um jogo de futebol, bem como um canal
com os melhores momentos dos jogo e as
respectivas estatísticas. Posteriormente, em
Outubro de 2001, de forma a agrupar todos
os serviços interactivos debaixo de uma
marca, a Sky lançou Sky Active, que oferece
- alguns programas interactivos atraiem
um vasto leque de serviços como apostas,
uma vasta proporção os espectadores, como
jogos, home banking, envio de SMSs, envio
foi o caso de Wimbledon 2001 e 2003 da
de emails, t-commerce, entre muitos outros
BBC, que deu a possibilidade aos especta-
dores de seleccionarem e acompanharem os exemplos7.
desafios de tenis do torneio que decorriam A pergunta agora é: oferta parece não
em simultâneo – cerca de 50% dos espec- faltar, mas os espectadores estarão a utilizar
tadores da BBC com Sky Digital utilizaram todos estes serviços de Televisão Digital e
esta funcionalidade. Ainda, em Julho de 2002, Interactiva? A resposta do representante da
3,8 milhões de espectadores acederam à Sky na conferência Future Media Events “The
aplicação interactiva dos jogos do Mundial Evolution of Digital TV” foi dada em nú-
de Futebol para aceder a multi-câmaras, a meros:
604 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

• 8 milhões de apostas colocadas através - se necessário, fazer uso de outros media


do serviço Sky Bet, como parte do pacote - Internet e Telemóveis,
• 3 milhões de mensagens SMS enviadas por exemplo)11.
para telemóveis, No entanto, também há ter em conside-
• 13 milhões de jogos acedidos, ração outros dados que apontam para que o
• 4 milhões de votos em sondagens do efeito de novidade dos produtos e serviços
Sky News Active, de Televisão Digital e Interactiva se esteja
• 47% dos utilizadores da Sky Digital já a desvanecer, como notou Gary Austin,
acederam ao serviço Sky News Active, director da BMRB Internacional, na confe-
• 32% dos utilizadores da Sky Digital já rência Future Media Events “The Evolution
acederam ao serviço Gamestar, of Digital TV” realizada em Setembro de
• 60% dos utilizadores da Sky Digital já 2003:
- é cada vez mais difícil fazer com que
acederam a pelo menos um programa
os espectadores utilizem serviços interactivos
interactivo8.
stand-alone,
Relativamente às receitas geradas através
- há problemas relativamente ao desem-
destes novos serviços, as apostas, os jogos,
penho dos serviços,
a programação interactiva e a interacção - os espectadores devem ser educados
SMS-TV são as principais fontes de receitas. sobre os serviços que têm ao seu dispor;
A título de exemplo, refira-se que as receitas - porém, continua a crescer a
dos serviços interactivos disponibilizados pela interactividade relacionada com os progra-
Sky Digital atingiram, em 2002, os 186 mas12.
milhões de libras, quase o dobro do valor De referir ainda o recente estudo Attitudes
de 2001. Ainda, metade deste valor foi to Digital Television – preliminary findings
proveniente de apostas, tendo os restantes 93 on consumer adoption of Digital Television,
milhões de libras vindo das participações em para o Digital Television Project no Reino
programas interactivos, jogos e passatempos Unido, o qual chama a atenção para que
tipo trivial9. Já em relação aos dados apu- metade da população do Reino Unido ainda
rados em 2003, os serviços interactivos da não tem acesso a Televisão Digital, sendo
Sky geraram 218 milhões de libras, o que necessário incentivar de forma particular os
representa um aumento signiticativo em 13 por cento da população que não querem
comparação com 200210. Ao analisar estes migrar do analógico para o digital13.
e outros exemplos de produtos e serviços de Quanto a Portugal, de momento há poucos
Televisão Digital e Interactiva bem sucedi- estudos disponíveis na área da Televisão
dos, podemos identificar certas característi- Digital e Interactiva. No entanto, a Autori-
cas comuns (Gawlinski: 2003): dade Nacional das Comunicações (Anacom)
- a existência de um grupo suficientemen- tornou públicos dados de um estudo de
te vasto de utilizadores/ espectadores de forma mercado sobre Televisão Digital Terrestre
a gerar receitas significativas ou outros (TDT), realizado pela consultora AT Kearney,
que estima em 474 mil o número de lares
benefícios;
que em Portugal irão aderir espontaneamente
- alinhamento com os comportamentos
à TDT até 2007, ou seja apenas 13,4 por
dos utilizadores/ espectadores;
cento de todas as residências com televisão14.
- uma proposição de valor clara para os O estudo realizado a pedido da Anacom
utilizadores/ espectadores; revelou ainda que a qualidade da imagem na
- promoção e marketing eficaz, que faça TDT funcionará como um incentivo à
uso dos programas de televisão e dos canais; mudança para 27 por cento da população,
- flexibilidade, para que os elementos enquanto que dez por cento valoriza como
possam ser retirados ou adicionados de acordo factor de adesão a oferta de mais do que nove
com a forma como são recebidos pelos canais (cinco novos mais os quatros existen-
utilizadores/ espectadores; tes em sinal aberto). De notar que, segundo
- se necessário, envolver parceiros no o mesmo estudo, 75 por cento do total de
desenvolvimento dos services; lares com televisor será já cliente do serviço
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 605

pago de cabo ou de satélite, na altura em das e que, quando encontram tempo para
que decidir migrar para a TDT15. ver Televisão, encaram-na como um meio
útil de relaxar, interagir com outras pessoas
3. Conclusões: adequar a oferta às neces- e estar a par dos acontecimentos nacionais
sidades e preferências dos utilizadores e internacionais do mundo “real”, bem como
dos eventos dos mundos da “ficção” ofe-
Como medium, a Televisão Interactiva recidos pelas novelas, seéries e filmes18. “A
ainda mal começou a dar os primeiros passos, indústria da televisão está a começar a
defende Scott Gronmark, que foi o principal perceber que a imagem tradicional da fa-
responsável da BBC pela área de desenvol-
mília reunida à volta do televisor está ul-
vimento de programação interactiva até
trapassada”, afirmou o director de novos
Janeiro de 2004 (Gronmark, cit. Gawlinksi:
Media e tecnologia da BBCi Ashley
2003):
Highfield, na conferência Next MEDIA que
“Alguns grandes acontecimentos, decorreu em finais de 2003, acrescentando
como Wimbledon, “Big Brother”, que as empresas de Media com sucesso serão
“Walking With Beasts” e “Test The as que compreenderem que o contexto
Nation”, trouxeram luz à grande ques- mudou e que os espectadores querem con-
tão”– o que querem os espectadores sumir Media de formas diferentes19.
da interactividade? Em lugar de re- De acordo com os recentes estudos tor-
petirmos infinitamente estes formatos nados públicos pela BBC, existem quatro
iniciais, necessitamos de continuar a novas e importantes tendências sociais que
experimentar e criar novos forma- demonstram que a forma como consumimos
tos”16. televisão está a mudar de forma irreversível.
Daí que a BBC tenha começado a mudar os
No entanto, a inovação e a experimen- seus conteúdos e a procurar esbater as fron-
tação só fazem verdadeiramente sentido teiras entre novos e “velhos” Media de
através da adequação às necessidades e maneira a que todos saiam beneficiados, como
preferências dos utilizadores/ espectadores. referiu Ashley Highfield. Assim, há a assi-
Num estudo da reponsabilidade do British nalar as seguintes tendências de fundo:
Film Institute, no qual cerca de 500 parti- - as pessoas estão a assumir o controlo
cipantes completaram diários detalhados do seu consumo de Media,
sobre as suas vidas e a Televisão durante um - as pessoas querem cada vez mais
período de cinco anos, a maior parte das
participar e estar próximo dos Media,
pessoas consultadas mostrou-se aberta a
- as pessoas consomem cada vez mais
desenvolvimentos futuros nas áreas da Te-
diversos Media em simultâneo,
levisão e Home Entertainment – embora, a
- as pessoas querem partilhar conteúdos
generalidade das pessoas não esteja tão
ansiosa por novos produtos e serviços quan- – vídeo, música, etc – com outros pares20.
to o desejado pelas empresas fornecedoras Margherita Pagani, investigadora do I-Lab
de equipamentos e serviços nestes sectores Research Center on Digital Economy da
(Gaunlett and Hill: 1998): Universidade de Bocconi em Itália, defende
o seguinte ponto de vista (Pagani: 2003):
“até mesmo aqueles que eram mais
entusiastas das novas tecnologias eram “Hoje os líderes da indústria da te-
cautelosos em três pontos essenciais levisão enfrentam o dilema de esco-
– custo, estética e tempo disponível”17. lher qual o papel que querem desem-
penhar no panorama da Televisão
Este mesmo estudo – que serviu de base Digital nos próximos cinco a dez anos.
ao livro TV Living de David Gaunlett e Essencialmente, resume-se a uma
Annete Hill - revelou que os participantes questão simples: querem ser princi-
não estão propriamente colados ao televisor, palmente detentores de conteúdos ou
antes que levam vidas preenchidas e anima- detentores de consumidores?”21
606 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

O mesmo será dizer, que a primeira opção A. Norman enfatiza que é fundamental in-
envolve desenvolver e explorar conteúdos vestigar as reais necessidades dos utilizadores.
através de uma série de canais de distribui- Um exemplo desta orientação para as
ção para os consumidores, uma estratégia necessidades reais das pessoas, bem como da
sumarizada na conhecida expressão “content importância de simplificar a utilização dos
is king”. Já a segunda opção envolve cons- novos media e das novas tecnologias é o serviço
truir o negócio com base na relação com o de Áudio-Descrição. Este serviço consiste em
consumidor, em que o “consumer is king”. adicionar uma faixa de áudio a um programa
O grande desafio é o de compreender de televisão de forma a descrever por palavras
profundamente o que os consumidores/ o que se passa na imagem, destinado a pessoas
utilizadores querem, tal como aponta Ben com deficiências visuais. Este tipo de serviço
Schneiderman, um dos maiores especialistas já existe em diversos países, como é o caso
mundiais na área do Interface Homem- da Inglaterra, através dos operadores de TV paga
Máquina, já que as tecnologias bem suce- como a Sky e de canais como a BBC. No fundo,
didas são as que estão em harmonia com as trata-se neste caso de proporcionar a pessoas
necessidades dos utilizadores (Schneiderman: com necessidades especiais uma experiência
2003): mais rica de televisão, auxiliando na compre-
ensão do programa através das descrições de
“Estas devem apoiar relações e acti- um narrador. Simples e útil, projectos como
vidades que enriquecem as experiên- este podem e devem ser acarinhados por ope-
cias dos utilizadores”22. radores de televisão, canais de televisão, pro-
dutoras de televisão e outras entidades com
De igual modo, Donald Norman, uma responsabilidade nas áreas dos Media e das
autoridade mundial no campo da usabilidade, novas Tecnologias de Informação e Comuni-
tem por mandamento “know your customer” cação.
– conhece o teu cliente, já que não interessa Em resumo, a próxima vaga de inovação
ser o primeiro, ser o melhor ou mesmo estar deverá ser impulsionada pelas necessidades
certo, o que interessa é o que os clientes humanas em vez de o ser pela tecnologia,
pensam23. Definindo human-centred product assim o defende Ben Schneiderman, para
development como o processo de desenvol- quem a “excelência técnica deve estar em
vimento de um produto que se inicia com harmonia com as necessidades dos
os utilizadores e com as suas necessidades, utilizadores” e para quem “as grandes obras
em vez de começar pela tecnologia, Donald de Arte e da Ciência são para todos”24.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 607

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15
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23
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24
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16
Gawlinski, Mark, Interactive Television Human Needs and the New Computing
Production, Focal Press, 2003, pag. 242. Technologies, MIT Press, 2003.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 609

Tv comunitária no Brasil: histórico e participação


popular na gestão e na programação
Cicilia M. Krohling Peruzzo1

Introdução a inserção das pessoas nos meios de comu-


nicação comunitária, tomando por base os
Este texto apresenta uma síntese dos níveis possíveis de envolvimento, por nós já
resultados da pesquisa denominada “Tele- trabalhados2 (Peruzzo, 2004a), que em sín-
visão Comunitária no Brasil”, realizada de tese são: participação nas mensagens (nível
1999 a 2001, que teve como objeto central mais elementar de participação, no qual a
a investigação sobre as modalidades de par- pessoa dá entrevista, pede música etc.);
ticipação popular efetivadas nos canais co- participação na produção de mensagens,
munitários no sistema cabo. materiais e programas (consiste na elabora-
Os objetivos foram: fazer um breve ção e edição dos conteúdos a serem trans-
resgate do percurso histórico da TV comu- mitidos); participação no planejamento
nitária no Brasil levantando os seus diferen- (envolvimento das pessoas no estabelecimen-
tes tipos; conhecer o sistema de gestão e as to da política dos meios, na elaboração dos
formas de sustentação adotadas por cada um planos de formatos de veículos e de progra-
desses canais comunitários pioneiros na TV mas, na elaboração dos objetivos e princí-
a cabo no Brasil: Canal Comunitário de Porto pios de gestão etc.); participação na gestão
Alegre, TV Comunitária do Rio de Janeiro (participação no processo de administração
e o Canal Comunitário de São Paulo; e e controle de um meio de comunicação).
analisar as estratégias de programação dos Em suma “a participação das pessoas pode
referidos canais, especialmente no que diz tanto concretizar-se apenas em seu papel
respeito à participação das organizações da como ouvintes, leitores ou espectadores,
sociedade civil na grade de programação. quanto significar o tomar parte dos proces-
Há no Brasil uma variedade de interesses sos de produção, planejamento e gestão da
na estruturação TVs comunitárias. Podem ser comunicação. Os níveis mais avançados
interesses educativo-cultural, organizativo-co- postulam a permeação de critérios de
munitário, comercial (meio de captação de representatividade e de co-responsabilidade,
inserções publicitárias locais) ou de protesto já que se trata de exercício do poder e forma
aos sistemas de funcionamento e de controle democrática ou compartida” (Peruzzo, 2004
da mídia. Nesta perspectiva se levantou a a:59).
existência de TVs comunitárias de diferentes
matizes até a emergência daquelas constitu- 1. Origem da TV comunitária no Brasil3
ídas no formato de canais comunitários como
um dos canais básicos de utilização gratuita, A TV comunitária surge no Brasil no
no sistema de cabo a televisão. formato de uma TV Livre, também denomi-
A pesquisa foi realizada com base em nada de TV de Rua, caracterizada pela
estudos bibliográfico e documental, análise produção de vídeos educativo-culturais, que
de material audiovisual produzido pelas TVs são exibidos em circuito fechado ou em praça
de Rua e entrevistas semi-estruturadas. As pública, destinados a recepção coletiva. As
entrevistas foram feitas pessoalmente junto primeiras experiências ocorrem nos anos de
aos coordenadores dos canais investigados no 1980 no contexto das lutas pela redemocrati-
mês de julho de 2001. Apenas uma delas, zação do Brasil.
a com o coordenador do canal do Rio, foi Trata-se de uma espécie de TV móvel,
feita por e-mail. mais exatamente de vídeo móvel. Com um
Teoricamente a pesquisa baliza-se pelos vídeo-cassete, um telão (ou monitor de TV),
conceitos de participação que permitem captar amplificador de som e microfone sobre um
610 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

meio de transporte (caminhão ou Kombi), de um sistema que outorga permissão de uso


exibem-se produções em vídeo em praça (não concessão) e está sob a égide da Se-
pública ou em salões de entidades sociais. cretaria Nacional de Comunicações, no qual
A exibição é itinerante. Ou seja, dentro de é permitido que 15% da programação sejam
determinada programação percorrem-se al- produzidos localmente. Nesse espaço são
guns locais previamente escolhidos para inseridos programas, em geral chamados de
exibição e debates do audiovisual. “comunitários” e apoio cultural local7. São
Os processos de produção e de exibição canais preferencialmente destinados a Prefei-
têm propósitos educativos. Normalmente são turas, Universidades e Fundações.
experiências comandadas por ONGs (Orga- Outro tipo de TV comunitária que se
nizações não governamentais), Igrejas, Uni- conhece no Brasil é a de baixa potência
versidades e Sindicatos. No entanto, na transmitida na televisão aberta, ou seja na
maioria desses viabiliza-se a participação das frequência VHF (Very High Frequency)8. São
pessoas nas várias etapas do processo de transmissões televisivas de aproximadamen-
elaboração de um audiovisual. Em outros te 150 watts, que atingem comunidades
casos a equipe, após estudo sobre as temáticas específicas. Não está regulamentada em lei,
demandadas pela população local, grava portanto são transmissões clandestinas. En-
(áudio + imagens) debates ou depoimentos tram no ar em caráter ocasional, até pelos
das pessoas para posterior exibição. Há riscos decorrentes de sua ilegalidade. A
também a sistemática de abrir-se o debate primeira transmissão televisiva pirata em
após a exibição de algum programa para que VHS foi da TV Cubo no dia 27 de setembro
as pessoas possam falar sobre o que tinham de 1986, às 18:45 h., pelo canal 3, na região
visto, e em seguida o exibe. Trata-se da do Butantã, zona sul da cidade de São Paulo,
técnica chamada de “Câmera Aberta”. com um transmissor de um watt de potência
Várias experiências bem sucedidas de TV que cobria apenas um raio de 1,5 km9.
de Rua vem acontecendo ao longo das úl- Teriam ocorrido também experiências de
timas três décadas, entre elas a da TV Viva transmissão em VHS no Rio de Janeiro, como
(Recife-Olinda), TV Mocoronga (Santarém- a da TV Lama, na Baixada Fluminense; a
PA), TV Liceu (Salvador-BA), TV dos Tra- da TV Vento Levou (1998), que transmitiu
balhadores (São Bernardo do Campo-SP), TV para a Gávea, Leblon, Ipanema e Copacabana;
Maxambomba (Rio de Janeiro-RJ), TV Ta- a da TV Canaibal (1990) e da TV 3Ante-
garela (Rio de Janeiro-RJ), TV Mangue na(1990) (Amaral, 1995).
(Recife-PE), TV Memória Popular (Natal- Foram experiências que funcionaram de
RN), TV Mandacaru (Teresina-PI) e a da TV forma pouco estruturada e levadas a cabo por
Pinel (Rio de Janeiro-RJ)4. entusiastas da comunicação através de meios
No conjunto das experiências de TV de eletrônicos e da democratização da mídia.
Rua, através da participação popular no Não tinham uma periodicidade regular de
processo de produção dos audiovisuais, al- transmissão como forma de despistar, ou
meja-se desmistificar a televisão, discutir dificultar, sua localização pelos órgãos
assuntos de interesse público candentes aos fiscalizadores do Governo. Apesar dos riscos
grupos locais e motivar o envolvimento das demandados pelas transmissões ilegais, tais
pessoas na democratização dos meios de experiências ousaram criticar o sistema
comunicação de massa através da apropri- televisivo vigente no País demonstrando
ação pública das tecnologias da informação. possibilidades de uso social do mesmo.
Porém, registra-se também outras mo- Houve ainda uma experiência de trans-
dalidades de TV comunitárias como aquelas missão pelo sistema aberto de TV que tinha
no sistema UHF (Ultra High Frequency). São como objetivo principal a democratização das
“repetidoras não simultâneas” de televisões técnicas de produção e transmissão de sons
educativas5. Funcionam em nível local. Elas e imagens para grupos populares, que ocor-
retransmitem parte da programação de algu- reu durante a oficina de capacitação em
ma Televisão Educativa, mediante convênio6. comunicação comunitária dentro do Projeto
São conhecidas com TVs Comunitárias, mas CODAL – Comunicação para o Desenvol-
de fato são TVs locais educativas. Trata-se vimento da América latina, realizado no
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 611

Brasil, através da ABVP – Associação Bra- primeira transmissão no dia 15 de agosto de


sileira de Vídeo Popular, realizada em pa- 1996, pelo canal 14 da NET Sul (Grupo
receria com a TV Sala de Espera. A expe- Globo). Em seguida, em 30 de outubro de
riência ocorreu na cidade de Belo Horizonte, 1996, estreou a TV Comunitária do Rio de
Minas Gerais, no período de 26 de maio a Janeiro, inicialmente chamada de TV Cari-
4 de junho de 199510. Foram realizados e oca, transmitindo pelo canal 41 da NET/Cabo
transmitidas através do canal 8, na freqüência Rio. O Canal Comunitário de São Paulo está
VHF, uma série de programas para a popu- entre os que entraram no ar na terceira leva14
lação local. São experimentos que objetivam e realizou sua primeira transmissão no dia
exercitar a liberdade de expressão e contes- 01 de novembro de 199715. Transmite pelos
tar o sistema de concessão de canais de canais 14 da Multicanal, 14 da NET16 e 72
televisão no país, bem como sua programa- da TVA. O presente estudo se desenvolve a
ção essencialmente marcada por interesses partir da investigação destes três canais, os
mercadológicos. Em casos específicos, como quais passaremos a analisar.
o Projeto CODAL, a finalidade é democra-
tizar técnicas de produção e de canais de 2. Gestão coletiva17
transmissão televisiva junto a grupos popu-
lares. Os canais comunitários na TV a Cabo
No Brasil somente na década de 1990 é despontam não só como um novo modo de
que surge a TV comunitária propriamente fazer televisão, e de fazer televisão comu-
dita, ou seja aquela com transmissão regular nitária, como também de gestão da comu-
e que participa do espectro televisivo naci- nicação. São estruturados formalmente como
onal, na modalidade de canal comunitário, organizações de propriedade e gestão
na TV a cabo. A televisão a Cabo é um dos coletivas, a partir de associações ou conse-
sistemas de transmissão das chamadas TV lhos gestores sem fins lucrativos, legalmente
por Assinatura, ou TVs Pagas. Consiste na registrados e instituídos.
transmissão de sinais por meio físico: o As três experiências de canais comuni-
cabo11. tários no Brasil aqui analisadas são bastante
Os canais comunitários foram viabilizados diferentes entre si, porém partilham aspectos
pela Lei 8.977 de 6 de janeiro de 1995, comuns, desde o histórico18 até os sistemas
regulamentada pelo Decreto-Lei 2.206 de 14 de gestão e programação, conforme será visto
de abril de 1997, que estabelece a ao longo no texto.
obrigatoriedade das operadoras12 de TV a Os canais comunitários na TV a Cabo vêm
Cabo, beneficiárias da concessão de canais sendo criados como resultado de processos
para, na sua área de prestação de serviços, de mobilização popular, mais especificamen-
disponibilizar seis canais básicos de utiliza- te de organizações não governamentais e sem
ção gratuita13, no sentido dos canais de acesso fins lucrativos, principalmente aqueles liga-
público, como denominados em outros pa- das a democratização da comunicação e
íses. Atualmente são sete os canais de acesso entidades do âmbito dos movimentos soci-
gratuito, pois a partir de maio de 2002 o ais, além de setores de Igrejas, sindicatos e
Judiciário também tem direito a um canal, entidades filantrópicas.
a TV Justiça, coordenada pelo Supremo O processo, desde a origem, envolve a
Tribunal Federal. participação da população, desde cidadãos
Os canais gratuitos se institucionalizaram individualmente até sua representação atra-
em decorrência das negociações ocorridas vés de entidades civis. O que varia é a
entre várias forças que controlam os meios intensidade e a amplitude, ou numa palavra,
de comunicação de massa no Brasil (Gover- a qualidade desta participação, de uma
no e empresas de comunicação), parlamen- experiência para outra. O que quer dizer que
tares e entidades da sociedade civil, entre enquanto em algumas experiências há gran-
elas o Fórum Nacional pela Democratização de participação na gestão, em outras chega
da Comunicação. a ser quase nula. Ou seja, existem casos em
O primeiro canal comunitário instalado que poucas pessoas, que são ou se dizem
foi o de Porto Alegre-RS que realizou sua representantes, conduzem o processo de
612 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

implantação e gestão de canais comunitários A associação da TV comunitária do Rio


de modo isolado e autoritário, com baixíssima de Janeiro, também é constituída por enti-
participação das organizações comunitárias dades não governamentais e sem fins lucra-
locais. Seja por falta de envolvimento e tivos. É administrada pelos seguintes órgãos:
interesse das pessoas ou dessas entidades, por Assembléia Geral – instância máxima de de-
falta de oportunidade de participação ativa ou liberação, Conselho Executivo, Conselho
por discordâncias político-operacionais, o fato Fiscal e Conselho de Ética.
é que existem canais comunitários, não muito O Conselho Executivo, composto por 15
comunitários19, no sentido de falta de um membros, com mandato de um ano, permi-
processo partilhado de ação, embora possam tindo a reeleição. Ao Conselho Executivo
se estar agindo em favor da “comunidade”. cabe cuidar do funcionamento da TV
Nas três experiências em questão são os comunitári em todos os seus aspectos
seguintes os principais aspectos denotativos gerenciais de planejamento e operacionais.
da participação social na gestão: Em suma, todos os conselheiros são
eleitos pela Assembléia Geral, dentre os
Canal Comunitário de Porto Alegre representantes indicados pelas associadas. Os
cargos são exercidos em caráter de gratuidade.
O canal comunitário de Porto Alegre está
sob a direção de uma associação, denomi- Canal Comunitário da Cidade de São
nada “Associação de Entidades Usuárias do Paulo
Canal Comunitário em Porto Alegre”.
Qualquer entidade não governamental ou sem O Canal Comunitário da Cidade de São
fins lucrativos pode fazer parte da associ- Paulo está sob a direção do “Conselho Gestor
ação. Para participar a entidade contribui com do Canal Comunitário da Cidade de São
uma taxa variável de acordo com as possi- Paulo”, instituído por um “Acordo Institucional
bilidades de pagamento de cada organização. Provisório para fins de Implantação do Canal
Somente entidades podem participar da as- Comunitário”, de 05 de junho de 1997, cujos
sociação, não permite portanto, a participa- termos são complementados pelo “Termo
ção de pessoas isoladamente, segundo os seus Aditivo ao Acordo Institucional Provisório para
estatutos. Fins de Implementação do Canal Comunitário
A Associação de usuários está estruturada da Cidade de São Paulo”20, assinado em 04
através dos seguintes órgãos: Assembléia de agosto de 1999, legalmente registrado.
Geral, Conselho Deliberativo, Coordenação Três entidades são signatárias do Acordo
Executiva e Conselho Fiscal. A Assembléia e do termo Aditivo, a saber, TV Interação,
Geral é o órgão deliberativo máximo. Ordem dos Advogados do Brasil-Seção São
A gestão efetiva do canal está a cargo Paulo e Associação Vida e Trabalho21, que
de um Conselho Deliberativo e de uma por sua vez são as únicas representadas e
Coordenação Executiva, formados respecti- constituintes do Conselho Gestor do Canal
vamente por 15 (quinze) e 7(sete) membros. Comunitário da Cidade de São Paulo 22.
À coordenação executiva compete adminis- Contudo, há que se ressaltar que uma destas
trar a associação segundo as regras entidades, a TV Interação representa um
estabelecidas nos Estatutos e no Regimento grupo de outras associações. Foi constituída
Interno. O mandato é de dois anos. Não há na época em que se discutia a formação de
remuneração pelo o exercício dos cargos. um canal comunitário em São Paulo.
A gestão do Canal Comunitário de São
TV Comunitária do Rio de Janeiro Paulo está a cargo do referido Conselho Gestor,
uma Diretoria Executiva, Conselho Fiscal,
A TV Comunitária do Rio de Janeiro está Conselho de Ética e Comissão de Grade.
sob a direção da “Associação de Entidades O Conselho Gestor é a instância máxima
Canal Comunitário de TV’s por Assinatura deliberativa. Ele é formado por um repre-
do Rio de Janeiro”. Somente pessoa jurídica sentante de cada uma das três entidades
pode se associar, como no Canal de Porto signatárias do Acordo Institucional, ou seja
Alegre. 3 (três) membros.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 613

A Diretoria Executiva é constituída por Porém, a maior diferença se verifica entre


12 (doze) membros. Há ainda um Conselho o Canal Comunitário de São Paulo em re-
Fiscal, uma Comissão de Ética e Comissão lação aos do Rio e de Porto Alegre, no que
de Grade. Em resumo, o Conselho Gestor diz respeito à criação, gestão e ocupação da
é formado a partir da indicação formal de grade de programação.
nomes pelas três entidades signatárias do
Acordo, que dentre os integrantes elege quem 3. Estratégias de sustentação23
o preside, com mandato de um ano, permi-
tida uma recondução. O Conselho Gestor é Os canais comunitários surgem de ma-
quem elege todos os integrantes da Diretoria neira autônoma e são obrigados a encontrar
Executiva, Conselho Fiscal, Comissão de suas próprias alternativas para viabilização
Grade e da Comissão de Ética para mandatos econômico–financeira. Com o agravante de
de um ano, renováveis uma única vez. que por lei, nos mesmos moldes dos veículos
Numa visão de conjunto dos canais, pode- de comunicação de propriedade pública, como
se dizer que as decisões são tomadas em Rádio e TV educativas, não podem vender
assembléias gerais e em reuniões de conse- espaços para anúncios comerciais, a princi-
lhos ou coordenações, cujos membros são pal fonte de receita dos canais privados. É
eleitos pela Assembléia Geral ou Conselho permitido apenas o apoio cultural (menção
Deliberativo, conforme a instância, como no ao patrocínio de programas), o qual tem se
caso dos canais de Porto Alegre e do Rio revelado insuficiente, pelo menos na forma
de Janeiro. No Canal Comunitário de São como vem sendo aplicado e até o presente
Paulo as decisões são tomadas em Plenária momento.
do Conselho Gestor e em reuniões de diretoria A Lei de TV a Cabo também não esta-
e dos conselhos. Sendo que estes últimos são beleceu outros mecanismos de contribuição
designados pelo Conselho Gestor. que pudessem ajudar na viabilização dos
Os canais comunitários vêm desenvolven- canais, como por exemplo o estabelecimento
do um tipo de autogestão, com caracterís- de um fundo a partir da destinação, pelas
ticas peculiares, já que as entidades partici- operadoras de TV a Cabo, de um percentual
pantes não são representativas de todas as sobre o que arrecada dos assinantes. Afinal,
organizações não governamentais e sem fins elas acabam usufruindo de um canal com
lucrativos em seus municípios, mas apenas programação autônoma, sem custos e outros
daquelas que espontaneamente decidiram se encargos. Outra lacuna na lei é não obrigar
envolver no processo de implantação dos as operadoras destinarem um suporte téc-
canais. Quanto mais democrática for a to- nico para produção e edição de sons e
mada de decisão, respeitando as instâncias imagens – por mínimo que fosse – para
decisórias, inclusive a partir da eleição dos potencializar a produção de programas pelos
membros, mais próximo à autogestão se próprios canais comunitários e suas entida-
encontra o canal. des associadas sem condições de dispor de
Nas experiências analisadas, situadas em seus próprios estúdios.
três importantes capitais do país, verifica-se Os canais comunitários no Brasil são
a existência de pressupostos gerais comuns, jogados à própria sorte, no entanto é deles
no entanto há variações nos modelos e formas que mais se espera e mais se cobra uma
de gestão. programação de cunho educativo e cultural.
Em nível dos pressupostos em comum, À sociedade civil é colocada a possibilidade
encontrados nos três canais, estão o sentido de acesso a canais de televisão, o que é um
de interesse público como força motriz; não grande avanço, mas não lhe são asseguradas
ter fins lucrativos; propriedade coletiva (e não formas de apoio para os tornar viáveis e
individual); base de sustentação em entida- competentes. Fazer TV exige conhecimento
des civis e sem fins lucrativos, entre outras especializado, os custos de produção são altos,
dimensões. sem falar nos altos preços dos equipamentos
As variações mais significativas estão nos para se montar os estúdios.
modelos de gestão e nas estratégias de O Canal Comunitário de Porto Alegre se
ocupação da grade de programação adotadas. mantém através de contribuições das associ-
614 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

adas, taxa que varia de 10 a 200 reais mensais, participação popular desenvolvidas em cada
de acordo com as possibilidades de pagamen- canal.
to de cada entidade; patrocínios (apoio
cultural) a programas; trabalho voluntário; Canal Comunitário de Porto Alegre
doações; pagamento de taxas pelo uso do
estúdio de gravação e edição (não de O Canal Comunitário de Porto Alegre
veiculação). permanece no ar de 1 a 4 horas, numa média
O canal está relativamente bem instalado de 2 horas diárias, exceto domingo, sempre
com sede própria e possui um modesto após às 19 horas25. Sem contar o “Jornal
estúdio de gravação e centro de transmissão. Eletrônico” 26 que permanece no ar
A TV Comunitária do Rio de Janeiro ininterruptamente durante o restante do tem-
sobrevive com as mensalidades das associ- po.
adas; doações; trabalho voluntário; colabo-
Segundo o coordenador geral do Canal
ração de terceiros através do empréstimo de
Comunitário de Porto Alegre, Jorge Vieira27,
sala para a sede pelo Movimento Viva Rio
os objetivos do canal foram traçados com base
e do centro de transmissão que funciona a
em ampla discussão entre os representantes
partir dos estúdios da Universidade Estácio
de Sá. de mais de uma centena de entidades que
Vem encontrando muitas dificuldades de participaram da assembléia de criação do
avançar, dispõe de poucos recursos até porque canal. Em respeito aos parâmetros da Lei de
as associadas não pagam regularmente suas TV a Cabo que institui os canais comuni-
mensalidades. tários, acordou-se que o Canal deveria ter
O Canal Comunitário da Cidade de São como princípios o respeito à pluralidade, à
Paulo se mantém a partir de apoio cultural; democracia e à igualdade.
cobrança de espaço para transmissão de Pelo que se depreende da fala do seu
programas; doações; e apoio financeiro das coordenador, o Canal Comunitário de Porto
signatárias do Acordo Institucional. Alegre procura colocar em prática esses
O canal está bem estruturado com estú- princípios garantindo a participação de todas
dio e centro de transmissão, sede própria, tem as entidades, independente de seu pensamen-
quase duas dezenas de funcionários. to político e do valor pago em mensalidades.
Nas suas palavras: a proposta é que não haja
4. Participação popular na programação24 nenhuma ingerência da mantenedora do canal
[a Associação de Entidades Usuárias] na
A televisão comunitária tem entre suas ocupação do espaço do canal. “O objetivo
diferenças, uma que é fundamental para o dela é coordenar a programação, fazer valer
entendimento de sua programação. Trata-se o direito de todas as associadas [...]. Mas
da possibilidade de ser um canal produtor o Canal Comunitário não é da instituição
ou um canal provedor. O canal é produtor mantenedora. O Canal Comunitário é públi-
quando ele mesmo produz os programas que co [...]. Nós temos a posse dele. Nós ocu-
coloca no ar. Já um canal provedor é aquele pamos e só”.
que apenas abre e organiza o espaço para
A Associação de Usuários do canal de
transmissão de programas produzidos por
Porto Alegre conta atualmente com 187
terceiros, no caso as próprias entidades que
entidades cadastradas e outras 70 associadas28.
partilham a grade de programação. Trata-se
Está aberta a receber novas entidades que
de uma decisão básica a ser tomada pela
direção de um canal comunitário, a qual queiram se associar, desde que se enquadrem
definirá a estratégia de ocupação da grade. nos parâmetros da lei e dos Estatutos.
Ela depende da concepção de canal comu- A participação das entidades associadas
nitário idealizado pelo grupo dirigente e das na vida do canal sempre se caracterizou como
condições técnicas e de infra-estrutura dis- uma preocupação estratégica do Canal Co-
poníveis. munitário de Porto Alegre, tanto no processo
A seguir apresentamos os principais de criação, no seu planejamento, na gestão
aspectos da programação e as formas de e na programação.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 615

No que se refere ao acesso à programa- “Atividades SIMERS” – Sindicato dos


ção, estatutariamente e na prática, todas as Médicos do Rio Grande do Sul; – “Programa
entidades associadas – e somente as asso- Paiva Netto” – Legião da Boa Vontade;
ciadas, que por lei devem ser não governa- “Programa da ADHONEP” – Associação dos
mentais e sem fins lucrativos, têm o direito Homens de Negócios do Evangelho Pleno;
de veicular gratuitamente seus programas. A “Cristo é a Resposta” – Associação Evan-
ocupação da grade contempla a distribuição gélica Cristo é a Resposta; “Mama África”
igualitária do espaço, independente do valor – Fundação Senghor; “Mensagens do
da mensalidade paga como sócia à associ- EVRED” – Evangelho do Reino de Deus;
ação. As entidades podem também participar –“Mensagem de Fé” – Associação Serviço
de programas produzidos pelo próprio Ca- Cristão; “O Sol Nasce para Todos” – Igreja
nal. Evangélica Nova Jerusalém; “Fora de Foco”
Atualmente há 11 (onze) entidades trans- – Associação dos Acionistas Minoritários das
mitindo seus programas29 pelo canal. Ao todo Empresas Estatais; “Norte em Ação” –
são veiculados 13 programas, sendo dois, o Associação Zona Norte.
Telenotícias Comunitárias” e o “Livre Ex- Cada entidade é responsável por seu
pressão”, produzidos pelo próprio canal. programa e pelos conteúdos ali divulgados.
Mais o “Jornal Eletrônico” que também é Deve se comprometer a respeitar as normas,
produzido pelo canal, tem duração de 20 o código de ética e os princípios estabele-
minutos, é atualizado diariamente e se es- cidos pela Associação.
trutura em editorias que dão conta de infor- Os programas Livre Expressão e
mações do tipo: datas comemorativas e Telenotícias são produzidos pelo próprio canal
feriados, eventos culturais, guia de oportu- visando favorecer a participação das entida-
nidades (cursos, empregos, estágios), man- des sem condições de produzir os próprios
chetes de jornais de bairros e de entidades programas, como forma de democratização
etc. do acesso à grade e ampliar a difusão de
O Telenotícias Comunitárias é um pro- conteúdos de cunho comunitário
grama jornalístico, de 15 minutos e vai ao Ainda sobre o quesito “quem” pode
ar duas vezes por semana. Consiste num bloco participar da grade de programação, o Canal
de notícias e outro de entrevista, cujo espaço Comunitário de Porto Alegre permite a
é aberto à participação das associadas para participação apenas de entidades associadas.
divulgação de suas realizações. Estreou em Ou seja, as pessoas individualmente não têm
11 de janeiro de 1999. O programa divulga espaço no canal comunitário, a não ser na
informações envidas pelas associadas, além forma de trabalho voluntário32.
de entrevistas, imagens de eventos e de outras Como se pode depreender das informa-
atividades produzidas pelas mesmas (JOR- ções precedentes, o Canal Comunitário de
NAL..., 2002). Porto Alegre optou em ser um canal produtor
O Livre Expressão é um programa rea- e provedor. Chegou-se à definição desse
lizado com a participação das entidades que formato, pelo que diz Jorge Vieira, após
enviam um representante para discorrer sobre intensa negociação entre dois segmentos de
assuntos relevantes. Somente as associadas associados.
podem participar do programa.
O programa funciona como uma tribuna Televisão Comunitária do Rio de Janeiro
livre. É utilizado por entidades impossibi-
litadas de produzir seus próprios programas, A TV Comunitária do Rio de Janeiro vai
que pagando R$ 25,00 reais por semana30, ao ar de segunda a sexta, das 12:30 às 22:30
podem divulgar seus eventos, chamar para horas (10 horas), e nos sábados e domingos,
assembléias etc. (Rodrigues, 2000:97). das 17:30 às 22:30 horas (5 horas), num total
Os programas veiculados atualmente pelo de 60 horas por semana.
canal e suas respectivas entidades são os Nas palavras do seu coordenador geral,
seguintes: “Programa da CEPA” – Comuni- Alberto López Mejía33, são basicamente duas
dade Evangélica de Porto Alegre; “Portal as finalidades na TV Comunitária do Rio de
Cósmico” – Templo do Espírito Universal31; Janeiro: “uma diz respeito à democracia e
616 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

ao exercício da cidadania, à democratização Canal Comunitário de TVs por Assinatura


dos meios de comunicação, ao livre acesso do Rio de Janeiro.
público e à tentativa permanente de superar De acordo com as informações fornecidas
uma contradição expressa na Lei: o livre pelo coordenador geral do Canal na entre-
acesso num canal de TV por assinatura34. A vista já mencionada, na época de realização
outra finalidade é constituir-se num centro da pesquisa, aproximadamente 12 (doze)
de experimentação televisiva, da leitura crítica entidades ocupam espaços regulares na gra-
dos meios, valorizando a diversidade da de de programação para transmissão de seus
produção cultural sem estar subordinada às próprios programas. Outras 30 (trinta) a
leis do mercado”. ocupam de maneira esporádica.
López Mejía diz que o Canal valoriza Alguns dos programas transmitidos regu-
especialmente as “experiências de TVs larmente e as respectivas entidades respon-
Comunitárias locais realizadas nos morros sáveis são: “Debate Brasil” 35 (programa
cariocas desde meados da década de 80, as semanal de entrevistas com 60 minutos de
TVs de Rua. Busca desta forma superar a duração, o conteúdo debate o modelo de
contradição entre o princípio de livre acesso desenvolvimento brasileiro) – AEPET- As-
e a limitação desse mesmo acesso à TV por sociação dos Engenheiros da Petrobrás; –
assinatura”, que exclui os setores populares. “Espaço Comunitário (produzido por estudan-
Fazem parte do quadro associativo do tes de comunicação das Faculdades Integra-
Canal Comunitário do Rio de Janeiro 166 das Hélio Alonso, produtores independentes
(cento e sessenta e seis) entidades, destas 68 ou TVs Comunitárias localizadas em morros
(sessenta e oito) participam efetivamente. e favelas) – FACHA (Faculdades Integradas
Pelo que consta de seus documentos, a Hélio Alonso); “Agenda Nacional” (Progra-
TV Comunitária do Rio de Janeiro desen- ma de debates sobre a realidade brasileira
volveu como preocupação central a demo- a partir da ótica de uma ONG de assessoria
cracia comunicacional. Pretende ser um pólo a movimentos sociais em várias regiões do
aglutinador e difusor de produções país) – FASE (Federação de Órgãos para
audiovisuais voltadas para a construção da Assistência Social e Educacional); “A Cida-
cidadania e não encontram espaço de difusão dania está no Ar” (programa de entrevistas
na mídia convencional. Portanto, a estratégia e debates sobre a participação popular na
inicial que marcou a programação do Canal gestão das cidades) – Rio Cidadão (Movi-
foi a de servir de uma espécie de arena para mento de Participação Cidadã); – “Estácio
difundir a produção audiovisual de caráter no Ar” – (Telejornal diário de 15 minutos
educativo-comunitário. produzido pelos alunos de Comunicação da
O acesso à grade de programação é Estácio de Sá, divulga os principais fatos e
garantido a todas as entidades associadas que agenda cultural da cidade) – USESA (Uni-
têm os mesmos direitos de veicular suas versidade Estácio de Sá). A maioria dos
produções audiovisuais, independentemente programas acima tem transmissão semanal36.
dos valores de suas contribuições como A grade de programação do Canal do Rio
sócias. Ou seja, as entidades têm acesso à de Janeiro está formatada em quatro segmen-
grade de programação para transmitir seus tos: programação regular (programas das
próprios programas ou outras produções associadas); interprogramas (vinhetas e ou-
(vídeo, por exemplo), que no conjunto for- tras mensagens produzidas pelo próprio canal;
mam a programação regular do canal. intercâmbio (produções de outros canais
Contudo, também faz parte da programação comunitários); e programação de livre acesso
a exibição de vídeos de produtores indepen- público (mensagens de qualquer entidade não
dentes, em espaço específico da programa- associada, sem fins lucrativos, com sede do
ção, denominado “Livre expressão”. Rio de Janeiro, e de vídeos encaminhados
Para se conseguir um horário fixo para e/ou produzidos por pessoas físicas, sem fins
veicular programa próprio é preciso que a de lucro, com sede dentro ou fora do Rio
entidade seja não governamental e sem fins de Janeiro).
lucrativos, tenha sede no Rio de Janeiro e Além de participar veiculando seus pró-
seja associada à Associação de Entidades prios programas, as associadas tem mais um
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 617

espaço de participação na programação, que diariamente. Durante 4 horas do dia, de


é o espaço do interprogramas. madrugada (de 1 às 5 ou de 2 às 6 horas),
Como diz Alberto López Mejía, na pro- é transmitido um letreiro rotativo com in-
gramação de livre acesso público “o acesso formes de utilidade pública (telefones de
é completamente livre: não precisa pagar, nem hospitais especializados, de plantões da
ser filiada. Basta apresentar a fita com madrugada etc.).
antecedência de 72 horas, de modo a ser A TV Comunitária da Cidade de São
monitorada e inserida na planilha de progra- Paulo, dentro dos parâmetros da lei de TV
mação da semana. O monitoramento prévio a cabo, “tem fins educativos, é da socieda-
tem vários objetivos: a) cadastramento da fita de”, como diz o seu diretor presidente, Carlos
no acervo da TVCRJ; b) verificação do Meceni38. E acrescenta: “o objetivo é que a
material em relação aos limites da lei, no sociedade tenha espaço, tenha vez. (...) Que
que se refere aos princípios constitucionais a sociedade organizada em associações possa
(não ter conteúdo racista, pornográfico ou usar o canal comunitário para transmitir as
com finalidade de lucro)”. suas ações de origem”.
Do nosso ponto de vista, o espaço de Diferentemente dos outros canais estuda-
“livre acesso público”, como o instituído pela dos neste texto, o Canal Comunitário da
TV Comunitária do Rio de Janeiro, é uma Cidade de São Paulo está aberto à partici-
inovação importante porque significa uma pação, na sua grade programação, de qual-
abertura na programação para livre manifes- quer entidade não governamental e sem fins
tação também às entidades não associadas, lucrativos e não apenas às associadas. Na
a produtores independentes e a cidadãos sem verdade nem existe o sistema de “entidades
vínculos institucionais, mas que têm quali- associadas”, até porque não foi criada uma
ficação técnica e interesses em contribuir para associação de usuários.
o desenvolvimento da cidadania37. As entidades são convidadas a se inscre-
Esta estratégia e outros mecanismos de ver pleiteando espaço para veicular seus
participação incrementados pela TV Comu- próprios programas no canal através de edital,
nitária do Rio demonstram suas opções, publicado no Diário Oficial do Estado de São
historicamente favoráveis, aos princípios da Paulo, duas vezes por ano, em janeiro e julho.
democracia e do pluralismo como alicerces As propostas são analisadas por uma comis-
de sua prática organizativa e comunicacional. são, que analisa o projeto e o programa piloto.
A tendência predominante da TV Comu- O contrato de veiculação é de 6 (seis) meses,
nitária do Rio de Janeiro tem sido a de ser renovável.
um canal provedor do acesso público à São pré-requisitos para veicular progra-
programação e não produtor de conteúdos. mas: ser associação de classe, filantrópica,
Ultimamente, tal posição vem sendo revista, cultural etc.; ter no mínimo 2 (dois) anos de
pois já há propostas de produção de progra- atividades comprovadas; ter documentação
mas pelo próprio canal. Ele está se tornando em ordem; apresentar um projeto e de pro-
um canal ao mesmo tempo provedor de grama piloto condizentes com as finalidades
acesso e produtor de conteúdos, transforman- do canal (Carlos Meceni).
do sua política inicialmente traçada. Neste momento 125 (cento e vinte e
Apesar de ainda não dispor de programa cinco) entidades ocupam a grade de progra-
regular próprio, o canal já vem produzindo mação transmitindo os seus próprios progra-
conteúdos para o interprogramas (vinhetas, mas, segundo informou seu Diretor Execu-
chamadas etc). Também produziu programas tivo. Os programas podem ser de 15 ou 30
especiais, como o da inauguração do canal. minutos ou de uma hora de duração. Além
Há ainda a proposta de produzir um telejornal. dos 125 programas de entidades, há mais dois
que são produzidos pelo Canal: Em cartaz
Canal Comunitário da Cidade de São e Comentando a Notícia.
Paulo Entre as instituições que veiculam pro-
gramas no Canal Comunitário de São Paulo,
O Canal Comunitário da Cidade de São estão: Ministério Público39; APAE40- Associ-
Paulo permanece no ar durante 20 horas, ação de Pais e Amigos dos Excepcionais;
618 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

UBE – União Brasileira dos Escritores; A taxa é igual para todos. Assim, por um
AACD - Associação de Assistência à Cri- programa semanal de 15 minutos, a entidade
ança Defeituosa; APETESP - Associação dos usuária paga R$ 30,00 (trinta reais)41.
Produtores de Espetáculos Teatrais do Esta- Segundo Carlos Meceni, diretor presiden-
do de São Paulo; OAB-SP - Ordem dos te do Canal, o valor não deve ser conside-
Advogados do Brasil – Secção São Paulo; rado uma “venda de espaço”, pois é como
Sindicato dos Jornalistas; Sindicato dos se fosse um condomínio que tem uma des-
Advogados. pesa, que é rateada entre os usuários. Orçou-
Os programas Em Cartaz e Comentando se que os gastos do Canal somam cerca de
a Notícia, de responsabilidade direta do R$50.000,00 (cinqüenta mil) por mês, quan-
Canal, podem ser considerados de livre tia que cobriria as despesas operacionais,
acesso público. Os dois programas são feitos incluindo funcionários”– e sobraria uns cin-
ao vivo no estúdio do Canal e são consi- co mil para a compra de equipamentos e
derados de sucesso. Com estes programas o fundo de reserva42.
Canal Comunitário da Cidade de São Paulo A cobrança de taxa de veiculação para
visa oferecer espaços de participação direta veiculação de programas tem sido bastante
na programação a cidadãos e entidades que criticada por lideranças do universo da TV
não tem possibilidades de produzir seus Comunitária. Ela é entendida como “venda
próprios programas. de espaço”, o que reproduziria as práticas
Carlos Meceni esclarece que qualquer da TV comercial. No entanto, a perspectiva
cidadão – mesmo que não faça parte de colocada por Carlos Meceni para tal cobran-
associação alguma – e queira usar o canal ça merece ser analisada. Afinal, tal cobrança
ao vivo para dar seu recado, pode fazê-lo além de poder ser vista por outro ângulo”–
através dos dois espaços mencionados. Para como rateio de custos, vem demonstrando que
Meceni o programa Em Cartaz, que vai ao é uma maneira de viabilizar a
ar das 13 às 14 horas, “atende as manifes- operacionalidade (melhoria na qualidade de
tações culturais que estão acontecendo em som e imagem, produção de programas,
determinado bairro, na zona leste por exem- aquisição de equipamentos, pagamento de
plo, que nenhum outro canal de TV divulga. mão de obra etc.) e o avanço do canal.
O cidadão “vem aqui e divulga a quermesse, Ele comenta, por exemplo, que não existe
o cantor local, o grupo de teatro etc. (...). veiculação “de graça” e que as entidades
[São informações] que não cabem dentro de associadas a uma associação de usuários de
uma emissora aberta [que opera em nível um canal, ao pagarem suas mensalidades,
nacional]. É como se fosse uma TV foca- também estão indiretamente pagando pelo uso
lizada (...) na cidade de São Paulo (...). [O do canal.
que] acaba sendo um super serviço de di- Apesar da validade do raciocínio, não
vulgação da produção da cidade de São Paulo. convém menosprezar o senso de partilha e
Já no final da tarde, das 18 às 19 horas, tem de igualdade explícito na proposta de uso
um programa jornalístico[Comentando a gratuito da grade de programação pelas
Notícia]. O indivíduo que quiser fazer recla- associadas, haja vista que todas pagam e usa
mação sobre saúde, segurança etc., pode fazê- quem quiser e que qualquer uma tem direito
lo (...), ele telefona e vem”. de veicular programas independente se a
Voltando a questão dos programas das entidade paga R$10,00 ou R$100,00 reais de
entidades com espaços regulares. Como já mensalidade43.
foi dito, são programas produzidos pelas Pelos conceitos já explicitados anterior-
próprias entidades e que são de inteira res- mente nota-se que o Canal Comunitário da
ponsabilidade das mesmas. A direção não Cidade de São Paulo é ao mesmo tempo um
interfere no conteúdo, segundo o diretor. Às canal provedor e produtor, mas com ten-
vezes apenas ajuda na captação de imagem dência maior a ser um canal provedor de
para garantir um certo padrão de qualidade. espaço para a transmissão de programas por
O acesso à grade para veicular progra- um leque grande e variado de entidades. Na
mas implica no pagamento de uma taxa de gestão de Carlos Meceni, se frisa muito o
veiculação de R$ 2,00 (dois reais) por minuto. interesse do Canal em ser um “canal cida-
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 619

dão” . “É a sociedade falando para a soci- Há participação no planejamento, na


edade”, diz ele. produção, na transmissão e na recepção dos
conteúdos veiculados. Tal processo revela que
Conclusões a prática de participação na programação dos
nos canais comunitários se realiza em nível
Normalmente são feitas severas críticas elevado, em que o poder de decisão sobre
ao fato da TV comunitária pertencer ao o conteúdo, a linguagem, o formato do
sistema cabo de televisão por ser elitista. programa está no grupo, na entidade, e não
O que não deixa de ser real, mas a criação na equipe técnica ou de direção do canal.
dos canais comunitários na TV a Cabo A gestão dos três canais comunitários é
também significa um passo significativo na de caráter coletivo. Contudo, variam o grau
democratização do acesso das organizações de representatividade social e as práticas
civis sem fins lucrativos aos meios de co- democráticas relativas à eleição dos dirigen-
municação na condição de protagonistas de tes e a tomada de decisões.
mensagens e programas, além de gestoras de Os canais apresentam alguns sentidos em
canais de televisão. Facilita também o acesso comum, mas na realidade têm suas
do cidadão a um tipo de mídia na condição especificidades que tornam cada um, único.
emissor. A particularidade de cada canal é construída
Trata-se de um processo que incentiva em função da história vivida por cada um;
organização popular, experimenta um modo das políticas de ação delineadas pelos grupos
de gestão coletiva de meios de comunicação que o constitui; da experiência e perspectiva
e possibilita um modo de uso partilhado da democrática de suas lideranças; da conjun-
grade de programação televisiva. tura em que está inserido44; do grau de
As experiências estudadas perfilam dife- interesse pelo uso público dos meios de
renças de concepções e de estratégias, porém comunicação; do nível de consciência e
tem semelhanças quanto aos propósitos em organização dos movimentos sociais da re-
relação aos conteúdos e ao uso coletivo e gião; do tipo de correlação de forças postas
partilhado do espaço televisivo por entidades em contato quando da criação e gestão de
sem fins lucrativos. No conjunto, se pautam cada canal; das condições infra-estruturais
por colocar no ar uma programação de disponíveis; do tipo de gestão e de estratégia
interesse social visando contribuir para a traçada para arrecadação de recursos, entre
ampliação da cidadania. outros fatores.
Tomando por base os conceitos de par- Por fim, há que se reconhecer que a TV
ticipação popular na comunicação, observa- comunitária no Brasil está em processo de
se que nos canais comunitários de televisão construção. Não há um modelo único, nem
estudados, vem se desenvolvendo em níveis um modelo que seja o melhor. Garantidos
bastante elevados de participação no âmbito os princípios, as finalidades e as práticas que
da programação desses meios de comunica- assegurem o acesso democrático à gestão e
ção. a programação, além do desenvolvimento de
Não se trata de uma participação even- conteúdos condizentes com os interesses de
tual, de uma participação controlada pelas desenvolvimento da cidadania e do controle
equipes de direção, como ocorre na grande coletivo da gestão, todas as experiências são
maioria da grande mídia. Pelo contrário, as válidas e tendem a ser aperfeiçoadas
entidades obtém – sob condições definidas gradativamente.
legitimamente por cada canal comunitário - Há que se dizer ainda que os canais estão
espaços para veiculação de programas de sua sendo organizados em várias cidades brasilei-
autoria, os quais são produzidos segundo a ras e que vêm se articulando nacionalmente,
linha de ação e a perspectiva político-ide- como demonstra a criação da ABCCom -
ológica de cada entidade. Associação Brasileira de Canais Comunitários.
620 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia Manuales didácticos. Quito: CIESPAL,


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Amaral, Irene C. Gurgel do. A movi- no Brasil: aspectos históricos. Apresentado
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27 a 30 de abril de 2000.
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Associação de Entidades Canal Comu-
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São Bernardo do Campo: UMESP, 1999. do pela INTERCOM, de 3 a 7 de setembro
(Dissertação de mestrado-Comunicação So- de 2001.
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Botão, Paulo R., Zaccaria, Rosana B. tos populares: a participação na construção
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de S. Paulo. 15 ago.1985. p.40 – Ilustrada. de mestrado-Comunicação Social)
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Alegre.18.ago.1997. (mimeo). de S. Paulo. 15 ago.1985. p.40 - Ilustrada.
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22/out/2002. nicações. São Paulo: 1995. (mimeo.)
Lima, Rafaela & Britto, B. Cartilha do
acesso. Belo Horizonte: UFMG, 1997.
Manual de diretrizes: orientações aos in- _______________________________
teressados em participar do canal comunitá- 1
UMESP - Universidade Metodista de São
rio da cidade de São Paulo. São Paulo: Paulo, Brasil.
CCCSP, s/d. 2
Com base os níveis apontados por Merino
Merino Utreras, Jorge. Comunicación Utreras (1988), que sistematiza os princípios da
popular alternativa y participatória. participação na comunicação aprovados em reu-
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 621

16
nião sobre autogestão, realizada em Belgrado em A partir de janeiro de 2004 passou a ocupar
1977, e em Seminário do CIESPAL/UNESCO, em o canal 6 por imposição da operadora.
17
1978: participação em nível da produção, do Parcialmente extraído do texto “Gestão dos
planejamento e da gestão. canais comunitários no Brasil” (Peruzzo, 2001).
18
3
Parcialmente extraído do texto “Gestão dos Sobre o histórico dos canais ver Peruzzo
canais comunitários no Brasil” (Peruzzo, 2001). (2001).
19
4
Para detalhamento e mais informações sobre Veja por exemplo o caso de Brasília e de
algumas destas experiências ver Cicilia M.K. Belo Horizonte.
20
Peruzzo, TV comunitária no Brasil: aspectos Apresentado como Estatuto e trata-se do
históricos (2000), Irene C. Gurgel do Amaral, A documento mais completo sobre a estrutura in-
Movimentação dos Sem Tela (1995) e Cassia terna do Conselho.
21
Chaffin, O Circo-Eletrônico – TV de Rua (1995). Ligada à Federação dos Empregados do
5
Ver sobre maior aprofundamento do tema Comércio.
22
em (Peruzzo, 2000). Na época de realização desta pesquisa havia
6
Cada estado brasileiro tem um canal de o pedido de mais uma entidade para compor o
televisão educativa, sediado nas capitais, perten- Conselho gestor: a Associação dos Amigos do
cente ao Governo Estadual. Os canais educativos Canal Comunitário de São Paulo. Algumas das
que tem obtido uma maior expressividade em nível entidades que participam da Associação de Amigos
nacional são a TV Cultura de São Paulo e a TV do Canal Comunitário veiculam programas no
Educativa do Rio de Janeiro. Canal, como é o caso do Ministério Público.
23
7
Ver Botão & Zaccaria, 1996. Parcialmente extraído de Peruzzo (2001).
24
8
A mesma da TVs abertas, tais como TV Parcialmente extraído do texto “As estra-
Globo, TV Record, SBT etc. tégias de programação dos canais comunitários no
9 Brasil” (Peruzzo, 2004b, inédito)
Ver Serva, 1986, p.27. 25
10 O número de horas varia em função da grade
Ver Peruzzo (2000) e Wainer (1995).
11 de programação que reflete o interesse de horário
Outros sistemas de transmissão de TVs por
das entidades associadas. Tem dia que tem uma
assinatura são: MMDS – Multichannel Multipoint
hora e meia, outro 3:00h ou 4:00 horas.
Distribution System, através de antena microon- 26
Consiste num letreiro “rotativo” com in-
das (por ar e terra); DBS – Direct Broadcasting
formações de utilidade pública.
Satellite, por satélite e exige parabólica para 27
Em entrevista concedida à autora no dia
recepção; STV – Subscription Television, por
09 de julho de 2001. As demais citações de falas
satélite; DTH – Direct To Home, o satélite (di- de Jorge Vieira também foram obtidas na mesma
gital), utilizados pela Sky e Direct TV. Ver Duarte, entrevista.
1996. 28
Segundo os estatutos, até seis meses, mesmo
12
Pessoa jurídica que atua mediante conces- não pagando a mensalidade, é considerada asso-
são que através de seus equipamentos e instala- ciada.
ções recebem, processa e geram programas e 29
Os programas das entidades são de 30
sinais. minutos e transmitidos uma vez por semana, com
13
Pelo Artigo 23 são três canais legislativos reprises.
(destinados ao Senado Federal, Câmara dos 30
A taxa é para cobrir os custos de gravação
Deputados e Assembléias Legislativas/Câmaras de e edição. Para os demais programas não é co-
Vereadores). Um canal universitário (para uso brado nenhum valor. A condição de participação
partilhado das universidades sediadas na área de é ser associada do Canal, pagando uma mensa-
prestação do serviço), um educativo–cultural lidade como sócia.
(reservado para uso dos órgãos que tratam de 31
Os dois primeiros programas da lista operam
educação e cultura do governo federal, governos no canal desde o início e nunca se afastaram e
estaduais e municipais) e um comunitário (aberto raramente reprisam.
para utilização livre por entidades não gover- 32
O trabalho voluntário é permitido – apenas
namentais e sem fins lucrativos). Em 2003 por para colaborar em atividades -, mas não tem dado
incluída TV Justiça (STF). muito certo porque “só aparecem desempregados”
14
O Canal Comunitário de Belo Horizonte e o pessoal do Canal não se sente bem em
teria entrado no cabo no início de 1997. O Canal aproveitar tal mão-de-obra que no fundo tem a
Comunitário de Brasília começou a operar em expectativa de ser contratada – o que não ocor-
julho de 1997. reria -, além de ser preciso oferecer pelo menos
15
O canal de São Paulo foi escolhido para vales refeição e transporte.
este estudo porque optamos em trabalhar com um 33
Esta e outras citações de Alberto López
canal de uma grande cidade, além dos dois Mejía foram obtidas por meio de entrevista
primeiros a serem instalados no País. concedida à autora no dia 18 de julho de 2001.
622 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

34 39
Refere-se à discriminação do acesso em Programa “Trocando Idéias”.
decorrência dos preços cobrados pelas assinaturas 40
Que é uma das sócias da TV Interação.
que a torna proibitiva aos mais pobres. 41
Em se tratando de TV e comparativamente
35
É exibido em 22 TVs Comunitárias em nível aos valores cobrados pelos canais comerciais, este
nacional. valor é irrisório.
36
Informações fornecidas por Alberto López 42
Segundo Meceni, a diretoria presta conta
Mejía, por e-mail. dos gastos aos usuários mensalmente.
37
Basta o Sindicato que exclui o não sindi- 43
Por outro, é importante ficar bem claro
calizado, a Associação que exclui o não associ-
que a adoção de mecanismos de cobrança, como
ado... Não faz muito sentido uma TV Comunitária
os do Canal de São Paulo, pressupõe a exis-
excluir o cidadão e o movimento social ainda não
associado. A exigência de criação de uma tência de políticas expressas e formas de con-
Associação de Usuários do Canal, para poder trole que assegurem a aplicação dos recursos
operar operá-lo é necessária, mas a lei não é tão com finalidade pública, ou seja apenas para
rígida a ponto de impedir o acesso do não as- operação, manutenção e investimentos do pró-
sociado à programação. prio canal.
44
38
Todas falas de Carlos Meceni, citadas neste Se a cidade é grande ou pequena, se existem
trabalho, foram obtidas em entrevista concedida ou não organizações sociais fortes e mobilizadas
à autora no dia 20 de julho de 2001. etc..
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 623

Identificando um género: a tragédia televisiva


Eduardo Cintra Torres1

As grandes transmissões televisivas as- Spencer (1997) e o ataque de Al Qaeda em


sociadas no Ocidente a eventos inesperados Madrid (2004).
e considerados pela sociedade como críticos Estes acontecimentos do mundo real são
ou catastróficos apresentam semelhanças caracterizados pela sociedade como trágicos
entre si por mais diferentes que sejam os e são apresentados pela televisão de acordo
factos ocorridos e as circunstâncias em que com estruturas e características que tornam
ocorrem. O objectivo deste trabalho de in- as emissões sucedâneos vernáculos do género
vestigação é o de estabelecer as semelhanças trágico, quer como texto quer como espec-
estruturais, textuais e da recepção dessas táculo. As emissões respeitam a acontecimen-
emissões no sentido de se identificar um tos mobilizadores intensos de toda a soci-
género televisivo a que chamamos tragédia edade e apresentam-se ao investigador como
televisiva.2 os «factos sociais totais» de Marcel Mauss,
As catástrofes são, nas sociedades, recor- os factos sociais que «abalam a totalidade
rentes, apesar de inesperadas, e são marcantes, da sociedade e das suas instituições» e são
apesar de efémeras. O mesmo sucede com fenómenos «ao mesmo tempo jurídicos,
as suas emissões televisivas. Daí que sejam económicos, religiosos, e mesmo estéticos»4.
um objecto esquivo de análise e identifica- Impôs-se uma aproximação pluridiciplinar
ção. A presente análise partiu de dois acon- para analisar um texto televisivo grudado a
tecimentos muito diferentes ocorridos em um facto trágico total, impôs-se estudar, não
2001: em 4 de Março, a queda da Ponte apenas a televisão de per se, mas «restituir
Hintze Ribeiro, entre Castelo de Paiva e um conjunto em que apareça a coerência
Entre-os-Rios, em Portugal, arrastada pela interna da sociedade observada»5. Para ana-
fúrias das águas do Douro; em 11 de Se- lisar a televisão, objecto de estudo que se
tembro, os ataques terroristas nos Estados apresenta como «colossal, caótico, comple-
Unidos. Num estudo de recepção junto de xo», nas palavras de John Hartley, a apro-
espectadores, acrescentou-se um terceiro ximação pluridisciplinar limita a «injustiça»
evento, os ataques de milícias pró-indonésias que pode resultar de uma linha de investi-
em Timor-Leste após o referendo de 1999 gação única6. É este, afinal, o cerne dos
consagrando a independência. Não compa- Estudos Televisivos, «disciplina jovem»7 que
ramos aqui estes eventos ocorridos em três se tem estabelecido nos países anglo-
continentes, antes as emissões televisivas que saxónicos como ramo dos estudos culturais
os acompanharam, uma delas nos Estados mas não ainda em países como Portugal.
Unidos, as outras duas em Portugal, tendo Para esta nova disciplina têm concorrido
sido estudada a emissão integral da ponte de aproximações a partir de conceitos e
Castelo de Paiva. enquadramentos teóricos e métodos de ou-
Retrospectivamente, este género teve tras disciplinas, como os estudos literários
origem aquando do assassínio do presidente e fílmicos, psicologia social, filosofia, psi-
norte-americano, John Kennedy, em 1963. canálise, etnografia e antropologia, sociolo-
Edgar Morin chamou então à emissão gia, história e economia, contribuindo todas
«teletragédia»3. Eventos que cabem no mesmo as abordagens para criar um «corpo de
género são, por exemplo, o terramoto nos investigação reconhecível e legítimo sobre a
Açores (1980), a explosão do vaivém espa- televisão enquanto fenómeno cultural»8.
cial Challenger (1986), o terramoto de San Nesta investigação, procurou-se identifi-
Francisco, EUA (1989), as mortes do Rei car o género da tragédia televisiva através
Balduíno dos Belgas (1993) e de Diana de três linhas: a análise textual, a análise
624 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

sociológica do «facto social total» e do seu mais ainda, a dinâmica dos acontecimentos
impacto nas audiências, e ainda, mas em subsequentes ao facto trágico fundador es-
menor grau, o enquadramento institucional tabelece-se principalmente em função da
e técnico das emissões televisivas, aproxi- televisão.
mação ao objecto que motivou uma aborda- Na identificação do género da tragédia
gem multidisciplinar com recurso aos estu- televisiva sublinhamos:
dos literários, culturais, jornalísticos, socio- - a acessibilidade dos meios técnicos, a
lógicos e outros. concorrência entre operadores e ainda a
A queda da Ponte e o 11 de Setembro facilidade de atingir uma grande audiência,
são eventos que dizem respeito a toda a verificando-se de facto um acompanhamento
comunidade e que são como tal vividos por das emissões muito superior ao normal.
ela. Explorando ideias de Ferdinand Tönnies - O uso intensivo do directo, tornando-
e de Max Weber, pode dizer-se que, em caso o a essência do fluxo televisivo interrompen-
de catástrofe vivida como nacional, em caso do e sobrepondo-se à emissão normal.
de tragédia televisiva, a comunidade sobre- - O recurso a arquétipos, símbolos e
põe-se à sociedade9 e os afectos sobrepõem- mitos recorrentes no mundo trágico, como,
se à acção social inspirada «numa compen- por exemplo, a transformação dos eventos
sação de interesses por motivos racionais».10 em dramas trágicos, a tipificação dos even-
Estes eventos abalam as instituições e ins- tos em ficções pré-existentes (violência, inun-
talam o conceito de crise. O discurso comum dação) e dos intervenientes em personagens
e jornalístico identifica de imediato estes dramáticos.
acontecimentos como tragédias, criando-se - O recurso às configurações acerca do
uma correlação entre a tragédia texto e destino e do divino no acontecido, vividas
espectáculo teatral e a tragédia catástrofe do nos eventos e pelos espectadores, ou ima-
mundo real. Quer dizer, a correlação resulta ginadas por estes.
de a realidade se organizar, explicar e aceitar - A assunção da tragicidade dos eventos
através de um modelo milenar da literatura e da condição humana que lhe é própria.
e do espectáculo. - Elementos do texto trágico como as
O facto de a sociedade se transformar em unidades de acção, de tempo e de lugar.
comunidade que se sente em crise torna - A morte e o destino dos cadáveres, bem
possível a comparação entre eventos de como da sua eventual exibição, como ques-
proporções tão diferentes quanto a queda da tão central da evolução do evento, enfren-
Ponte e o 11 de Setembro, pois o que conta tando a televisão problemas e soluções pró-
é a estrutura do evento quando narrado e ximos do que ocorreram aos autores da
mostrado. Daí que se possa criar uma tragédia clássica.
genealogia da tragédia televisiva começando - Mudança do jornalismo televisivo em
no assassínio de John Kennedy até ao 11 de tempo de catástrofes, adoptando estratégias
Março madrileno. semelhantes às da tragédia clássica, incluin-
O que hoje mais identifica este tipo de do o discurso emocionado, sem o qual em
eventos catastróficos é o papel central da vez de tragédia televisiva haveria apenas a
televisão na cristalização do modelo trágico. dimensão espectacular da televisão, o que
A televisão coloca-se no centro do aconte- contrariaria a ética de muitos espectadores
cimento pela sua omnipresença nas casas, num acontecimento dizendo respeito à co-
lugares de trabalho e convívio, pelas suas munidade nacional.
qualidades audiovisuais, por ser o principal - A transformação dos intervenientes em
meio informativo de acompanhamento dos personagens de tipos semelhantes aos que
eventos e pela forma como permite ao es- encontramos nas tragédias clássicas; tal como
pectador questionar as relações de poder num acontece nestas, verifica-se ainda que os
momento de crise. Dadas as crescentes fa- papéis assumidos pelas personagens resultam
cilidades técnicas e a concorrência entre da própria acção da tragédia televisiva. Nos
operadores, a televisão participa no/do even- casos estudados, destacam-se os heróis in-
to. Por causa dela, a visão e a interpretação dividuais (os presidentes das câmaras) os
do evento pelo espectador modificam-se, mas, heróis colectivos (os salvadores e as vítimas,
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 625

heroicizadas), os familiares como porta-vo- índices emocionais; a relação entre as dimen-


zes das vítimas e motores da acção, as sões cognitiva e emotiva na recepção das
testemunhas como narradores que restituem mensagens televisivas; semelhanças das
os eventos sem intermediação dos jornalis- experiências teatral e televisiva, ao nível do
tas, os portadores de oráculos, os bodes palco e da plateia; a divisão dos espectadores
expiatórios e os culpados (reais ou imagi- de acordo com a emotividade sentida; as
nados), os dirigentes políticos e religiosos, condicionantes sociais dos tipos de
as personagens inanimadas, e o essencial coro emotividade, bem como a dimensão política
da tragédia (pessoas presentes nos locais, das emoções; a influência das transmissões
mirones, testemunhas, sobreviventes, famili- impregnadas de emotividade na efervescência
ares, colegas, amigos e vizinhos das vítimas, colectiva; as emoções socializadas e
todos representando a cidade mas sem subs- maioritariamente aceites, vividas e espelhadas
tituir a legalidade), coro que funciona como nas transmissões televisivas, a aproximação
espelho do espectador. Surgem ainda como entre as emoções presentes na tragédia
personagens os jornalistas e a televisão televisiva e as emoções presentes na tragé-
enquanto entidade colectiva. dia-espectáculo, aproximação que entrevemos
- O género da tragédia televisiva mani- em Aristóteles a respeito de narrativas
festa-se ainda na necessidade sentida por ficcionais e de narrativas de realidade.11
intervenientes, poder político, operadores Para compreender estes fenómenos na sua
televisivos e espectadores de dar um desfe- aplicação às tragédias televisivas, realizou-
cho à tragédia, para o qual todos concorrem, se um inquérito de conveniência a 1329
com a intervenção da instituição religiosa e pessoas que se dividiram em três sub-amos-
de novas instituições laicas dominantes, como tras estanques ao escolherem livremente entre
as do entretenimento e desporto. O estabe- referir-se às emissões televisivas de Timor-
lecimento do desfecho revela-se em algumas Leste, Ponte ou 11 de Setembro; disseram
das tragédias uma preocupação fundamental qual o grau sentido de 17 emoções e res-
do poder para a retoma do equilíbrio após ponderam a questões de comportamento e
a crise. opinião sobre essas emissões trágicas.
- Contribui poderosamente para a carac- Ao realizar-se a análise factorial, encon-
terização destas transmissões como tragédias trou-se uma importante semelhança na dimen-
televisivas a sua dimensão emocional. As são emocional de cada uma das três sub-
emoções têm vindo a surgir como tema no amostras independentes. A emoção de horror
jornalismo e na televisão e, tal como noutros aparece sempre associada ao medo e à raiva,
campos de investigação, vão deixando de ser pena e tristeza em dois dos três eventos.
um tema incómodo. No caso da tragédia Alegria, felicidade e indiferença aparecem
televisiva, a análise do facto social total teria associadas nas três sub-amostras, o mesmo
de abordar as emoções, pois elas são parte sucedendo com solidariedade, partilha e
integrante do objecto. Há uma manipulação interesse. Finalmente, vergonha, culpa e
e uma vivência de emoções por parte dos desprezo tendem a surgir associados (ver
intervenientes (emissores, protagonistas, re- Quadro 1; os quadros estão no final do artigo).
ceptores) e há, como se provou, uma relação A pena e o horror, que desde Aristóteles
directa e indestrutível entre razão e emoção se apontam como o objectivo do texto e da
que leva o espectador a formular juízos a representação trágicos, apresentam uma das
respeito de eventos sobre os quais recebe mais fortes correlações estatísticas, ou mes-
informação factual e emocional. mo a mais forte, no caso da sub-amostra
Estudando a emotividade impregnada nas Timor, e estão no núcleo duro das emoções
emissões e a emotividade dos espectadores mais sentidas. O inquérito provou a existên-
de televisão, e dos espectadores das tragé- cia de um padrão emocional muito semelhante
dias televisivas em particular, esta investi- entre as três sub-amostras independentes (ver
gação procurou a compreensão de várias di- Quadro 2).
mensões do fenómeno televisivo: o grau de As cinco emoções mais sentidas são
emotividade sentido pelos espectadores; a exactamente as mesmas nos três eventos:
mistura na informação de mais ou menos pena, horror, interesse, tristeza e solidarieda-
626 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

de, excepto na sub-amostra do 11 de Setem- sentido pelo espectador da tragédia televisiva


bro, em que a solidariedade troca com a e o seu comportamento e opinião. Ao mesmo
surpresa. Apesar das diferenças de ‘conteú- grau e tipo de emotividade corresponde,
do’ entre os três eventos, os seus especta- grosso modo, a mesma opinião e o mesmo
dores têm comportamentos emocionais seme- comportamento. Quer dizer, as variáveis
lhantes. Estas semelhanças são marcantes e sócio-demográficas contribuem para a distin-
suficientes para criar uma categoria comum: ção entre os inquiridos em situação de
ao nível da recepção, a tragédia televisiva normalidade quotidiana, mas essa distinção
provoca a manifestação das mesmas emoções esbate-se quase por completo quando se
e destaca-se pela inexistência das mesmas vivem situações-limite como as de tragédias
emoções. Há uma ampla comunhão de televisivas, quando se criam o que chama-
emoções e uma ampla identificação a nível mos de telemultidões.
emocional: a tragédia televisiva une as As tragédias televisivas cumprem precei-
pessoas através das emoções. Mas essa tos que, há 160 anos, Almeida Garrett pro-
categoria comum ganha ainda mais consis- punha para o drama quando apresentou a sua
tência quando se prova que também o com- tragédia Frei Luís de Sousa: num «século
portamento e a opinião dos espectadores de democrático», escreveu, «os leitores e os es-
cada uma das teletragédias é muito semelhan- pectadores... querem pasto mais forte, menos
te (ver Quadros 3 a 15). condimentado e mais substancial: é povo,
As três variáveis sócio-demográficas do quer verdade. (...) No drama e na novela da
inquérito, sexo, idade e grau académico, não actualidade oferecei-lhe o espelho em que se
apresentam suficientes diferenças expressivas mire a si e ao seu tempo, a sociedade que
dentro de cada sub-amostra para constituí- lhe está por cima, abaixo, ao seu nível – e
rem razões explicativas da emotividade e não o povo há-de aplaudir, porque entende: é
é possível encontrar um padrão uniforme preciso entender para apreciar e gostar.»13
entre os três eventos quando se comparam Também as tragédias televisivas fornecem
os resultados nas três variáveis referidas. Este espectáculo trágico ao público, com acção,
facto pode confirmar que em momentos de verdade e emoção, compreensível, construído
«efervescência colectiva»12, diluem-se ele- como uma narrativa ficcional em pedaços e
mentos como a classe social e o nível permitindo fruição imediata ao vivo pelo
educacional e mesmo a idade e o sexo, maior número numa sociedade democrática.
estando os elementos determinantes do com- Sublinhemos: a tragédia televisiva, tal como
portamento e opinião a montante desses, a tragédia clássica, é um género dum sistema
como a língua, a nacionalidade e mais a democrático, sendo reprimida em regimes
montante, a emotividade. Daí que tentásse- autoritários (cheias na região de Lisboa, 1967;
mos dividir os espectadores de teletragédias afundamento de submarino russo Kursk,
não pelas variáveis mas quanto à sua própria 2000; ataque checheno em teatro de Moscovo,
emotividade, seguindo o método de clusters 2002). As consequências para o poder da
k-Means, isto é grupos com o máximo de própria existência da tragédia televisiva são
afinidades internas a partir do grau de um tema em debate nas sociedades abertas,
emotividade expressa. Resultaram quatro preocupação central de Tamar Liebes ao
clusters, que definimos como o de mais alta identificar o género da tragédia televisiva com
emotividade, o de média emotividade, o de o nome de «maratonas de catástrofes»14.
baixa emotividade e finalmente um grupo de Como Goethe previa há dois séculos, a
emotividade baixa e diferenciada que inici- imprensa, com as notícias do mundo real,
almente nos confundiu para depois o iden- retirava impacto aos enredos trágicos nas
tificarmos com um comportamento salas15. Que dizer hoje, quando um fluxo
alexitímico, que consiste na confusão de ininterrupto de notícias se instalou no quo-
emoções, em especial em casos de eventos tidiano de um mundo pós-sagrado? O espec-
traumáticos, como é o caso dos aqui ana- táculo da tragédia literária tornou-se menos
lisados. necessário à sociedade saturada de eventos
A categorização em clusters revelou uma trágicos no mundo real e foi substituída por
clara relação entre o nível de emotividade outras formas de espectacularidade trágica,
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 627

ou imbuídas de tragicidade, como o são as Se, na sua origem, a tragédia resultou de


tragédias televisivas. O que antes a sociedade um ritual e se relacionava com o sagrado,
incorporava em si através da transcendência hoje, a tragédia televisiva, sua herdeira
artística do texto trágico transfigurou-se no corrompida, é também um ritual, agora pós-
texto vernáculo – quer dizer, actual e vivo, sagrado, que se inscreve na necessidade de
coloquial, informal e vulgar – do directo afirmação da coesão social e comunitária. Tal
televisivo dos cenários reais de tragédias reais. como na tragédia, «a verdadeira matéria» da
Em vez de viverem o «sofrimento hipotético» tragédia televisiva pode também ser «o
dos dramas mitológicos, as pessoas passaram pensamento social próprio»17 da sociedade,
a viver, como na arena romana, o «sofrimento razão pela qual ambas são próprias e ine-
real», reprimindo, porém, o prazer que even- rentes à sociedade democrática.
tualmente retirem desse «sofrimento à distân- Ambas, a tragédia e a tragédia televisiva,
cia». A catarse transferiu-se da sala de espec- discutem o seu tempo, apenas o fazem com
táculo para a sala de estar. barros diferentes: a tragédia transfigura os
Que importa – não de um ponto de vista temas actuais em ficção, e a tragédia
estético ou literário, mas sociológico – que televisiva sai da sala de espectáculos para
«quando a hipótese descamba em realidade fazer do lugar da catástrofe real o palco da
se tem de facto uma corrupção de tragédia»?16 nova tragédia.
As emissões de eventos trágicos recorrem aos Assim, a televisão cria a nova tragédia,
arquétipos trágicos e à mesma paleta emo- a tragédia televisiva: ela faz do evento trá-
cional mobilizada pela tragédia; remetem para gico do mundo real uma reality tragedy, uma
inquietações individuais e colectivas seme- tragédia de realidade, um género esquivo que
lhantes às da tragédia; e recorrem a estra- marca as vidas dos cidadãos e telespectado-
tégias discursivas, estruturais e espectacula- res.
res que conhecemos da tragédia. Em E, assim, usurpando um género dramá-
consequência, as tragédias televisivas permi- tico, uma vez mais a televisão cumpre-se nos
tem à sociedade aceitar o inaceitável e tornar seus desígnios tanto histórico-sociológicos
o inverosímil verosímil, integrar na experi- como técnicos de imediatismo, directo, ac-
ência social a ruptura de valores e de ins- tualidade e de «realidade», uma das poucas
tituições, permitem ainda, pelo desfecho, a palavras que, segundo Vladimir Nabokov,
retoma do equilíbrio anterior ao evento. «nada significa sem aspas»18.
628 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

9
_______________________________ Ferdinand Tönnies, Comunidad y Asociación,
1
Doutorando no ICS. Docente na UCP e no Barcelona, Edicions 62, 1979.
10
ISCEM. Crítico no Público e Jornal de Negócios, Max Weber, Economia y Sociedad, México,
autor. Fondo de Cultura Económica, 1983, p.27.
2 11
Esta comunicação ao LUSOCOM (Covilhã, Aristóteles, Poética, Lisboa, INMC, 6ªed.,
22.04.2004) apresenta as conclusões da disserta- s.d., e The Art of Rhetoric, Londres, Penguin
ção de Mestrado em Comunicação, Cultura e Classics, 1991.
12
Tecnologias da Informação, apresentada ao ISCTE Émile Durkheim, Les Formes Élémentaires
sob orientação científica do Professor Doutor de la Vie Religieuse, Paris, PUF, 5ª ed, 1968.
13
Manuel Villaverde Cabral e aprovada em prova Almeida Garrett, «Ao Conservatório Real»,
pública em 3 de Dezembro de 2003. Da bibli- Memória lida em conferência do Conservatório
ografia consultada referem-se aqui, em pé de Real de Lisboa em 6 de Maio de 1843, in Obras
página, apenas as obras citadas. Completas, Vol. I, Empresa de História de Por-
3
Edgar Morin, «Une télé-tragédie américaine: tugal da Sociedade Editora, 1904, p.773.
14
l’assassinat du Président Kennedy», Tamar Liebes, «Television’s Disaster
Communications, nº3, 1964, p.81. Marathons: A Danger for Democratic Processes?»,
4
Marcel Mauss, Manuel d’Ethnographie, in Tamar Liebes e James Curran (eds.), Media,
prefácio de Denise Paulme, Paris, Payot, 2ª ed., Ritual and Identity, Londres, Routledge, 1998,
2002, p.13. pp.71-84.
5 15
Ibidem. Johann W. Goethe, Fausto, Lisboa, Relógio
6
John Hartley, Uses of Television, Londres, d’Água, 1999, pp.30-36.
16
Routledge, 1999, p.19. A. D. Nuttall, Why Does Tragedy Give
7
Charlotte Brunsdon, «What Is the ‘Television’ Pleasure, Oxford, Clarendon Press, 1996, p.77.
17
of Television Studies»,’in Horace Newcomb (ed), Jean-Pierre Vernant, e Pierre Vidal-Naquet,
Television. The Criticial View, New York, OUP, Mythe et Tragédie en Grèce Ancienne, Paris, La
6ªed., 2000, p.625. Découverte, vol. I, 2001, p.15.
8 18
Bernadette Casey, Neil Casey, Ben Calvert, Vladimir Nabokov, «On a Book Entitled
Liam French e Justin Lewis, Television Studies. The Lolita», in Lolita, Londres, Penguin, 1995,
Key Concepts, Londres, Routledge, 2002, p.vii. p.312.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 629

Quadro 1. Análise factorial

TIMOR PONTE 11 DE SETEMBRO TOTAL


Horror 0,83 Horror 0,50 Horror 0,66 Horror 0,63
Medo 0,47 Medo 0,65 Medo 0,66 Medo 0,61
Raiva 0,65 Raiva 0,61 Raiva 0,66
Pena 0,71 Pena 0,61 Pena 0,43
Tristeza 0,69 Tristeza 0,62 Aversão 0,58
Aversão 0,61 Surpresa 0,55 Ansiedade 0,45 Ansiedade 0,53

Alegria 0,80 Alegria 0,73 Alegria 0,67 Alegria 0,81


Felicidade 0,74 Felicidade 0,85 Felicidade 0,75 Felicidade 0,80
Indiferença 0,38 Indiferença 0,61 Indiferença 0,60 Indiferença 0,56
Supresa 0,42 Culpa 0,58
Vergonha 0,38

Solidariedade 0,49 Solidariedade 0,82 Solidariedade 0,80 Solidariedade 0,81


Partilha 0,73 Partilha 0,71 Partilha 0,80 Partilha 0,79
Interesse 0,71 Interesse 0,45 Interesse 0,46 Interesse 0,44
Tristeza 0,68 Tristeza 0,50
Pena 0,47
Ansiedade 0,43

Vergonha 0,80 Vergonha 0,67 Vergonha 0,66


Culpa 0,64 Culpa 0,55 Culpa 0,58
Desprezo 0,58 Desprezo 0,66 Desprezo 0,38
Aversão 0,60 Aversão 0,60

Ansiedade 0,50 Raiva 0,64


[desprezo] [surpresa] [surpresa]
Legenda

Horror comum às três amostras

Raiva comum às duas sub-amostras

Aversão Exclusiva a uma sub-amostra

[desprezo] Não considerada


630 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Quadro 2. Emoções ordenadas por média (média central: 2,50)

Total Ord Timor Ord Ponte Ord 11Set Ord


Pena 3,36 1 3,32 1 3,42 1 3,34 3
Horror 3,34 2 3,11 5 3,25 3a 3,40 1
Interesse 3,33 3 3,26 2 3,25 3a 3,37 2
Tristeza 3,28 4 3,20 4 3,26 2 3,30 4
Solidariedade 3,14 5 3,21 3 3,11 5 3,14 6
Surpresa 3,13 6 2,30 10 2,98 6 3,28 5
Raiva 2,75 7 2,84 6 2,39 9 2,87 7
Partilha 2,64 8 2,63 7a 2,60 7 2,65 8
Ansiedade 2,56 9 2,63 7a 2,45 8 2,60 9a
Aversão 2,50 10 2,60 9 2,25 10 2,59 11
Medo 2,45 11 2,03 11 2,17 11 2,60 9a
Vergonha 1,91 12 1,95 13 2,15 12 1,81 12
Desprezo 1,71 13 1,97 12 1,49 13 1,75 13
Culpa 1,34 14 1,55 14 1,37 14 1,31 15
Indiferença 1,32 15 1,30 15 1,31 15 1,33 14
Felicidade 1,18 16 1,29 16 1,12 16 1,19 16
Alegria 1,13 17 1,28 17 1,08 17 1,13 17

Q.6. Perdi interesse por outras


Q.3. Tempo de visão de TV notícias durante evento
Vi menos TV O mesmo Vi mais TV Não Nem... nem Sim
Timor 21,5 22,4 56,1 Timor 29,6 31,5 38,9
Ponte 18,7 29,4 51,9 Ponte 29,4 31,5 39,2
11Set 13,3 22,6 64,1 11 Set. 24,4 28,0 47,6
Total 15,3 24,3 60,4 Total 26,1 29,2 44,7

Q.4. Preferência por directo ou diferido Q.7. Sensação de estar presente no local
Diferido Nenhum Directo Nada, pouco Nem... nem Bastante, total

Timor 10,2 29,6 60,2 Timor 25,0 41,7 33,3


Ponte 10,1 36,2 53,7 Ponte 30,6 37,4 32,0
11 Set. 8,2 23,9 67,9 11 Set. 27,3 31,6 41,1
Total 8, 8 27,5 63,7 Total 27,9 33,9 38,2

Q.5. Importante acompanhar,


apesar de desagradável Q.8. Poderia ter-me acontecido a mim
Não Nem... nem Sim Nada, pouco Nem... nem Bastante, total

Timor 7,4 21,3 71,3 Timor 27,8 30,6 41,7


Ponte 6,2 21,8 70,9 Ponte 10,4 20,8 68,8
11 Set. 3,3 16,5 80,2 11 Set. 11,9 21,9 66,1
Total 4, 4 18,5 77,1 Total 12,8 22,3 64,8
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 631

Q.9. Assistir só ou acompanhado Q.12. Confiança no trabalho objectivo da TV


Só Nem... nem Acompanhado Nada, pouco Nem... nem Bastante, muito

Timor 35,2 40,7 24,1 Timor 14,8 37,0 48,1


Ponte 37,7 39,5 22,8 Ponte 20,2 31,5 48,4
11 Set. 30,6 41,1 28,3 11 Set. 16,6 34,3 49,1
Total 32,8 40,7 26,6 Total 17,3 33,8 48,9

Q.10. Partilhar momentos e emoções


com outros espectadores Q.13. Exagero sensacionalista da TV
Nada, pouco Nem... nem Bastante, muito Nada, pouco Nem... nem Bastante, muito

Timor 16,7 37,0 46,3 Timor 30,6 41,7 27,8


Ponte 15,1 32,9 51,9 Ponte 33,5 34,4 32,0
11 Set. 11,9 29,6 58,5 11 Set. 35,2 37,2 27,6
Total 13,1 31,1 55,8 Total 34,4 36,9 28,7

Q.11. Contactar de imediato outras pessoas Q.14. Os jornalistas devem mostrar emoções?
Nada, pouco Nem... nem Bastante, muito Nada, pouco Nem... nem Bastante, muito

Timor 40,7 29,6 29,6 Timor 33,3 34,3 32,4


Ponte 37,7 28,2 34,1 Ponte 35,0 31,5 33,5
11 Set 28,1 28,0 43,9 11 Set. 32,7 33,4 33,9
Total 31,6 28,2 40,3 Total 33,3 33,0 33,7

Q.15. Cobertura pela RTP, SIC e TVI


RTP SIC TVI
Mto má, má Boa, mto boa Mto má, má Boa, mto boa Mto má, má Boa, mto boa
Timor 7,5 92,5 7,5 92,5 14,2 85,9
Ponte 10,2 89,8 9,5 90,5 15,5 84,5
11 Set. 6,9 93,1 5,2 94,8 10,9 89,1
Total 7,8 92,2 6,5 93,5 12,3 87,7
632 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 633

La desaparición del héroe: espacio y épica en el reality


Edysa Mondelo González, Alfonso Cuadrado Alvarado1

Desde hace varios años las televisiones su formato debemos, y éste el propósito del
de todo el mundo han dado con un nuevo presente trabajo, rastrear los cambios
filón que parece haber revitalizado el prime producidos en un grupo de factores
time ampliamente consolidado con los interdependientes que han cambiado su peso
espacios dramáticos en forma de teleseries y naturaleza en la red que sustenta la
y con los eventos deportivos. Nos referimos estructura de la ficción clásica. Nos referimos
al reality show o simplemente reality. Su a las relaciones creadas entre los
repercusión trasciende horarios y medios. El protagonistas, el papel del espacio y el tiempo
estreno de un reality es algo que va mas allá en el drama y el lugar que ocupa la mirada
de la franja horaria en la que se exhibe y del espectador en este conjunto.
hace que otros programas, como por el efecto
de una onda expansiva, incluyan en sus El héroe clásico y la aventura
contenidos personajes, temas, revisiones de
lo sucedido, etc.2 Los protagonistas de estos La narración clásica presupone un
programas abundan en las páginas de las determinado estado de esta red: eleva al héroe
revistas del corazón y consiguen, gracias a como el elemento más poderoso de la ficción,
su participación, el aval como tertulianos y cuyo trabajo se produce en lucha contra el
comunicadores populares en el medio. espacio y el tiempo, y mantiene al espectador
¿Qué ofrece este nuevo formato para en un nivel inferior, de contemplación
cautivar audiencias en todas las televisiones admirativa.
del mundo, como un formato universal por Cuando se habla del HÉROE el referente
encima de cualquier singularidad nacional? más inmediato es nuestro imaginario cultural,
Una aproximación empírica y coloquial normalmente las narraciones épicas clásicas.
nos permite describir este tipo de reality, Pero, ¿a qué o a quién nos referimos cuando
sobre el que nos centraremos, también hablamos de héroe?, ¿cuáles son sus
denominado docu-show, docu-game, características, sus atributos? Desde
televerdad, telerrealidad,..., como un formato planteamientos narrativos, que son aquellos
televisivo donde unos personajes cotidianos, de los que aquí partimos, debemos precisar
corrientes, conviven en un espacio cerrado que con este término podríamos aludir a dos
para conseguir una cantidad económica que aspectos diferentes, según sea considerado
se ofrece como premio. Los personajes no como función narrativa o como cualidad del
son atractivos, a veces ni quiera físicamente, personaje. En la narración clásica, el héroe
ni tienen profesionalidad como actores (no es aquel personaje sobre quien recae el peso
olvidemos que son “reales”), no hay un de la acción y que manifiesta la orientación
conflicto dramático lo suficientemente del relato, pero, al mismo tiempo, es aquel
sugestivo como en cualquier film o serie de que desempeña funciones que están pautadas
éxito, no hay grandes pasiones ni intrigas. como heroicas. Por lo tanto acción y atributos
Y el escenario es cerrado y enormemente son las dos caras de una misma moneda: no
parecido a cualquier casa del teleespectador. existen cualidades sin acción, ni acción sin
¿Dónde está entonces el poder de seducción cualidades.
de estos programas para que se conviertan Donde el héroe clásico aparece con todos
en el formato de más éxito en los últimos sus atributos es en el reino de la aventura,
años de la televisión mundial? o mejor dicho, es en la aventura donde se
Para entender en buena medida el éxito forja el héroe. Podríamos, sin pretender ser
del reality y la novedad que se esconde en exhaustivos, mencionar una serie de rasgos
634 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

relacionados entre si, que pueden entenderse explícitamente su intención de alcanzar algún
como señales que acompañan y anuncian la objetivo concreto (material o no: salvar al
aventura del héroe: mundo o rescatar a la chica, alcanzar
a) Por un lado debemos hacer referencia reconocimiento, encontrar algún ser, algún
a la ruptura vital que supone el cambio del objeto o algún conocimiento, resolver un
tiempo cotidiano, rutinario, por otro al que enigma o alcanzar algún bien) y para ello
podríamos denominar dramático, en el que se ve lanzado a recorrer un camino cuyo final
ocurren cosas diferentes a las habituales y es el logro de lo perseguido. Pero también
que exigen por parte de quien lo vive acciones puede ocurrir que accidentalmente se vea
y reacciones que son las que lo convierten obligado a recorrer ese camino sin que exista
precisamente en héroe. un objetivo previo. En cualquier caso, lo
b) Ligado a esta cuestión de ruptura con importante es el itinerario recorrido, la
el tiempo cotidiano podríamos destacar un aventura, donde, a través de múltiples y
segundo rasgo que sería la suspensión o arriesgadas pruebas, obtendrá quizá lo
incluso la desaparición de la normalidad. buscado, pero siempre experiencia y
Nuestra vida cotidiana se sustenta por frágiles conocimiento. Y es ese conocimiento el que
mecanismos que defienden nuestra transforma al individuo, el que hace que la
tranquilidad. Un entorno familiar, costumbres persona que partió y la que vuelve ya no
entre las que nos movemos con soltura, sean la misma. El itinerario es el espacio de
escasas agresiones naturales, instituciones la aventura por oposición al espacio
teóricamente encargadas de impedir la doméstico, el lugar de la no-aventura, de la
violencia entre los individuos, rituales rutina por excelencia, el lugar donde es
amorosos culturalmente codificados... Pero la imposible investirse con los atributos del
aventura es el ámbito de lo inseguro e héroe, donde no es posible realizar pruebas
imprevisible, donde no se puede anticipar qué heroicas, donde no existe un camino que nos
ocurrirá o cómo reaccionaremos sin puntos permita alcanzar experiencia o conocimiento,
de referencia que se hacen más remotos o porque todo es sabido: es el espacio opuesto
acaban por desvanecerse: países extranjeros, a la narración. Por eso el héroe abandona
costumbres desconocidas, naturaleza el espacio doméstico, espacio aislado del
indómita, violencia interpersonal frente a la tiempo, porque nada ocurre en él que no sea
que no tenemos otra defensa que nuestros previsible, no hay movimiento, y se lanza
propios recursos, amores que rompen con la al camino para lograr una trayectoria vital
moderación o la “decencia” debidas… En que confirme o cambie una identidad
esas situaciones de inseguridad son las estancada. Y sin embargo, si el héroe supera
acciones que realiza las que convierten al las pruebas, vuelve (como Ulises) al hogar,
individuo en héroe. En la narración épica principio y fin de su aventura, donde, tal vez
clásica, el héroe estaba hasta cierto punto ni siquiera sea reconocido o haya sido
destinado a serlo, incluso antes de su olvidado. Un hogar que, por su inmovilidad
nacimiento en muchos casos (Rank, 1991); espacial y temporal pueda ser considerado,
sin embargo, en las narraciones épicas como antes apuntábamos, como una especie
contemporáneas, son muchos los individuos de muerte: el héroe vuelve a casa para morir
corrientes que, enfrentándose a situaciones (metafóricamente o no) entre los suyos, pero
ajenas a su cotidianeidad, se ven obligados pidiendo el reconocimiento de su nueva
a comportarse como tales. identidad. Cuando esta nueva identidad ha
c) Otro de los rasgos fundamentales es sido domésticamente reconocida se cierra la
el itinerario, el trayecto que debe recorrer posibilidad de continuación narrativa.3
el héroe en el transcurso de su aventura. Este d) En la aventura siempre está presente
camino tiene un inicio y tiene un final, la muerte: la muerte es lo desafiado. Es
generalmente el mismo, doméstico, cotidiano, precisamente el protagonismo de la muerte
en un movimiento circular en el que se lo que diferencia a la aventura del juego, o
regresa al punto de partida, con la salvedad bien lo que convierte ciertos juegos en
de que no es el mismo individuo quien aventuras. Pero, ¿qué es la muerte en la
regresa. Puede que el héroe manifieste narración épica? El héroe puede
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 635

efectivamente perder la vida en su recorrido, género busca formatos y dramas que se


al enfrentarse a las pruebas correspondientes adapten a tan estrecho margen técnico y serán
y, tal vez, sea precisamente esa muerte la el teatro y la comedia de vodevil las fuentes
que lo invista con los atributos del héroe. que con el paso del tiempo y con la
Pero hay otra posibilidad y es que puede indispensable evolución darán lugar a un
ocurrir que el héroe considere que la rutina, género específico: la sitcom.
lo cotidiano, la falta de riesgo, son una forma Si el hogar se presenta en el relato clásico
de no-vida, de muerte, y que sea precisamente como el punto de referencia constante,
su intento de huida lo que de origen al añorado, recordado y deseado como meta
recorrido, a la aventura en busca de la vida. final, pero elidido en cuanto no conocemos
e) La mirada en la aventura está más que someramente la vida el héroe en
supeditada al héroe y su trayecto. ese antes y después del cuerpo principal de
Acompañamos a éste a lo largo de su la aventura, en los relatos producidos
recorrido como si se tratara de un pequeño específicamente para la televisión la tendencia
genio que viaja instalado en su hombro. es la contraria: el hogar se constituye en el
Vemos lo que él ve y podemos casi escuchar territorio por excelencia de la ficción desde
sus pensamientos. Compartimos su esfuerzo, los orígenes de los dramas televisivos de los
sus luchas y dolor y finalmente quisiéramos años cincuenta.
reconocer en nosotros mismos alguno de El espacio abierto e indefinido, el camino
aquellos valores positivos que ha desplegado de la narración clásica se cambia por un
el héroe. El cine pone al servicio de esta espacio doméstico en el que los personajes
actitud una cámara móvil tan libre como la y las acciones que desempeñan tienen el
acción del protagonista y un lenguaje atractivo de lo conocido, de lo ya visto, de
cinematográfico que hace posible la lo sabido, porque precisamente lo que se trata
identificación del espectador con el héroe. de evitar es el cambio. Estamos ante
La gratificación que obtiene el espectador personajes perfectamente reconocibles porque
reside en la sabiduría y la experiencia que son únicamente la encarnación de sus
le aporta el héroe en su aventura como en atributos, héroes sin acción, donde lo
una donación sobrenatural, una enseñanza que importante es la reiteración de sus
nos remonta a los más primitivos ritos en comportamientos, cómo van a reaccionar en
los que lo sobrenatural (dioses, mitos y cada momento, ante cada situación: siempre
chamanes intermediarios) se comunicaba con igual.
los hombres para trasmitirles su Este estatismo espaciotemporal impide
conocimiento. radicalmente el itinerario del héroe: no hay
camino que recorrer porque estamos siempre
Subversión contemporánea: de la acción en el mismo punto del espacio y del tiempo,
a la situación no puede haber conocimiento porque no hay
cambio; no hay un final porque no hay trayecto,
Las relaciones entre estos elementos el principio y el final se confunden; no hay
cambian ya con la sitcom. Los condicionantes regreso al hogar porque nunca se salió de él.
técnicos y económicos van a dar lugar a un La épica clásica ofrecía personajes que
tipo de ficción que rebaja el aura mítica de personificaban virtudes, comportamientos y
acciones y personajes y coloca al espectador valores que se proponían como exempla para
en otro lugar y lo gratifica de otra forma. la sociedad, tenían una función ética. En algún
La compleja tecnología en la que se sustenta momento llegábamos a identificarnos con
la televisión hace imposible la autonomía que ellos, o al menos aprendíamos de forma
posee la cámara cinematográfica, por lo que vicaria con sus aventuras: todos hemos
la variedad de escenarios que necesita la querido ser de alguna forma el espadachín
aventura se torna ya inviable. Hasta la justiciero, el pirata generoso, el príncipe
aparición de los primeros sistemas de edición valiente, el aventurero sin miedo y todos de
en los años setenta el tiempo televisivo era alguna forma hemos aprendido con ellos, o
el directo, con limitadas posibilidades de a través de ellos, lo que era la justicia, la
intervención. Ante este panorama, el nuevo generosidad, el ingenio, el valor.
636 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Este nuevo tipo de relato no presenta al con amigos que conoce, un grupo donde
héroe clásico ni siquiera al héroe ambiguo, nada va a cambiar, revelar sorpresas ni poner
descreído y un tanto cínico de la modernidad en cuestión las bases de la relación. Los
sino que lo que se nos propone es el tipo sucesos, las situaciones que mueven la
corriente, la persona devenida en personaje, ficción son externos y provocan la reacción,
alguien cotidiano, alguien como nosotros, al más que la acción de los protagonistas, todo
que le ocurren las mismas cosas y que ello con el fin no de alterar o cambiar un
reacciona de manera similar a como nosotros estado, ni descubrir algún sentimiento
lo haríamos en parecidas situaciones. recóndito, sino de volver a exteriorizar lo
La sitcom o comedia de situación toma conocido: la forma de ser de esos personajes
como constante un grupo de personajes y unos (sus maneras que provocan la risa y la
escenarios. Las tramas son débiles complicidad) y el mensaje final que predica
comparadas con la gran narrativa propia del constantemente la sitcom y es lo que se
cine. La necesidad de la continuación a la obtiene como saldo del episodio, no la
que obliga la serialidad hace bascular el experiencia sino la repetición constante de
proceso dramático del trabajo con la un tema con mensajes positivistas y
experiencia a los atributos de los personajes,
convencionales del estilo: es posible la
y de la acción como motor del héroe a la
convivencia aún entre personas dispares
reacción de personajes cotidianos frente a
(Doctor en Alaska) o podemos ser buenos
situaciones cercanas a la vida cotidiana, casi
padres aunque seamos estúpidos o fracasados
siempre en tono humorístico.
(Los Simpson).
Si el héroe actúa sobre un espacio y
La imposibilidad del cambio en los
tiempo a través de un trayecto físico externo
y un trayecto moral y emotivo interno que personajes anula por completo la capacidad
le hace saldar la aventura con un cambio, de aprendizaje, de experiencia y por lo tanto
es decir con una experiencia, en la comedia ésta no se ofrece como saldo final al
de situación cambio, acción y trayecto espectador, no hay “mensaje” ni marco de
desaparecen. Los personajes no pueden valores que aprender, como sucedía con el
cambiar porque alterarían el planteamiento héroe. El espectador busca una identificación
de la comedia y de los escenarios, estos deben con personajes semejantes en actitudes y
de permanecer inmutables porque el perfil social. La serie y la situación tiñen
presupuesto no podría permitir construir de valores positivos a estos personajes y el
decorados nuevos para cada episodio. Así el drama en el que se insertan. De esta forma
espacio se convierte en un condicionante lo que el espectador consigue con su
narrativo. La trama se transmuta en situación, fidelidad como público es una revalorización
pequeño conflicto que hace reaccionar a los de sí mismo, un refuerzo a su vida, sus
personajes con su habitual repertorio de costumbres, sus creencias, etc.
respuestas, gags, chistes verbales, etc. es ¿Y qué ocurre con la muerte, ese otro
decir, los atributos que les caracterizan como elemento fundamental en la narración
personajes singulares. clásica? El héroe podía morir tras ver
La sitcom se construye como un cumplida su misión, tras llegar al fin de su
planteamiento de relaciones entre personajes hazaña, no sin antes dejar claro la enseñanza
singulares, que predican un tono o una visión que su acción debe transmitir: la muerte se
más o menos original de un tema. Los encuentra omitida, el héroe como cualquier
guionistas y productores de una sitcom saben dios desaparece de escena y regresa o ingresa
que, más que tramas y conflictos poderosos, en el olimpo mítico. En la sitcom no puede
la base de una telecomedia son unos haber muerte porque al igualarnos nosotros
personajes bien caracterizados, a los que como espectadores con sus protagonistas la
adecuar actores con carisma, dentro de una muerte de ellos implicaría nuestra propia
red de relaciones bien coordinada. El muerte como espectadores, sería un corte
espectador asiste a una telecomedia como el sin balance positivo, equivaldría a una
buen compañero que se reúne una y otra vez simple interrupción de la emisión.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 637

Realismo fin de siglo: hacia la mirada observados, en una palabra, nuestra mirada
omnipotente aplica un deseo narrativo.
Lo que los realizadores de los realitys
La tecnología audiovisual de los años ofrecen al espectador es convertirse en
setenta puso al alcance de artistas y mirones privilegiados ya que otorgan el poder
aficionados las primeras cámaras de vídeo de observar cualquier espacio y en cualquier
para uso domestico. Dejaron de ser pesados momento. El realizador tradicional construye
y costosos artefactos que sólo se utilizaban el espacio dirigiendo la mirada con la cámara.
en el terreno profesional. Reducidas en Aquí la realización parece inexistente gracias
dimensiones y asequibles económicamente, a la sensación de que no hay dirección y por
salieron a la calle para otros usos ajenos al reacción campo oculto sino que todo es
ámbito televisivo. Uno de ellos es el circuito visible.
cerrado de televisión que se generalizó en Ciertos formatos del reality show nos
centros educativos, culturales, empresariales, ofrecen una mirada permanente sobre un
etc. La miniaturización de las cámaras espacio acotado, generalmente una casa
permitió que se utilizarán bajo un nuevo uso compartida por unos seres extraídos de la
heredado del circuito cerrado: la realidad, ya ni siquiera personajes con
videovigilancia. Bancos, locales, centros atributos cercanos a nosotros, a nuestra
oficiales, calles y carreteras se han llenado cotidianeidad, son ciudadanos con nombres
de cámaras. Nos hemos acostumbrado a y apellidos reales. No han sido seleccionados
convivir con este ojo omnipresente y no sólo precisamente por su carácter heroico, bien
a ser mirados sino también a mirar. Y este sea por haber realizado acciones que les
es un factor fundamental para entender el avalan o por atributos dignos de un héroe.
cambio hacía una nueva actitud en el Tampoco podrían representar lo que llamamos
espectador que sustenta la atracción del estereotipos del hombre de la calle. Muchos
reality. de ellos ni son atractivos físicamente, se
Cuando miramos la pantalla cinemato- expresan verbalmente con dificultad, no saben
gráfica o televisiva para contemplar una moverse o no tienen gracia dialogando.
ficción quedamos seducidos por los hábiles Estos personajes, seguiremos llamándolos
mecanismos del drama que con su intriga, así por convención aunque su caracterización
el poder de identificación con los dista cada vez más de lo que entendemos
protagonistas, etc. atrapan nuestra atención. como agentes de un drama, se mueven por
Sin embargo en el reality lo observado carece, el espacio cerrado de la casa y sus aledaños
de forma calculada por los autores, de la (patio, piscina, etc.) sin aparente motivación,
construcción artificiosa y seductora de la sin casi objeto ni conflicto, su móvil no es
ficción. La realidad en su estado más otro que el del común de los espectadores:
cotidiano deviene en objeto de interés gracias levantarse, ir al baño, cocinar, lavarse la ropa,
a que el hecho de nuestra observación nos etc. en una palabra vivir. Y para ello los
eleva a un rango de poder sobre lo observado. productores y técnicos del programa han
Mirar a los demás con el deseo de revelar desplegado una infraestructura tecnológica de
secretos que ocultan y no ser descubierto por cámaras que situadas estratégicamente nos
ello es una de las pasiones más antiguas del permiten observarlos en cualquier rincón de
hombre. Mirar entre los visillos al vecino de su cómoda cárcel. Pero el alcance de la
enfrente intentado descubrir en sus actos mirada no sólo es físico sino también
cotidianos un algo de extraordinario, y si es temporal. El reality dinamita las largamente
posible censurable, es un pequeño pecado consolidadas estructuras temporales de la
común. Nuestra mirada no es neutra ni ficción: los actos dramáticos del cine y el
meramente registradora como la cámara que teatro, el tempo del gag con su juego de
da fe de los clientes que pasan por un cajero réplicas y contrarréplicas que es la base del
automático o de los coches que se agolpan éxito de muchas sitcom, las pausas en
en un cruce en hora punta. Miramos buscando momentos de tensión que elevan el interés
penetrar la apariencia de la realidad, urdir de la acción, etc. Todo ello queda suspendido
tramas con las acciones inconexas de los por una retrasmisión que suministra acciones
638 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

cotidianas sin casi estructura dramática, sin vedado: el poder de la mirada sobre la
tensión, sin ritmo. Y, además, en ocasiones realidad y en cierta forma el control de la
durante 24 horas al día. muerte.
Los protagonistas de los realitys son gente Retomando la red de factores mencionada
real, de la que, a veces, llegamos a saber más arriba podemos concluir señalando la
que de los que nos rodean en nuestro entorno. evolución de cada uno de sus componentes:
En estos formatos, más o menos híbridos, a a) Del héroe al individuo real. Los dioses
los que denominamos televerdad o dejaron de ser los protagonistas de los relatos
telerrealidad, se plantea la recuperación de la ejemplares de la ficción. De ahí pasaron a ser
mirada omnisciente del relato decimonónico, mortales dignos de cariño, compresión y
nos convertimos en el ojo que todo lo ve afecto, aunque fueran mezquinos y calvos o
(espacio) en todo momento (tiempo). con kilos demás; eran los individuos tipo con
Desaparece el tiempo de la representación para los mismos defectos que nosotros, un espejo,
dejar paso (aparentemente) a un tiempo real en definitiva, en el que mirarnos y
en el que evolucionan seres (aparentemente) reafirmarnos. Y los protagonistas del reality
reales. El carácter realista de la emisión pierden su carácter tipificador y ya son seres
produce la impresión de que el programa es reales, con nombres y apellidos, no representan
meramente un “espejo” que muestra clases sociales ni prototipos familiares, no
directamente lo real, que el programa abre las tienen atributos singulares, se les reduce a su
ventanas de la casa para que el espectador mera condición biológica: seres que viven,
pueda ver lo que allí ocurre tal cual sucede4. comen, duermen, interactúan, pelean y mueren.

GENERO PERSONAJE TIEMPO ESPACIO ESPECTADOR


La lucha contra el Enigma o
Narración Héroe. Cercano a tiempo es un laberinto que Se encuentra por
clásica los dioses. triunfo sobre la esconde la debajo del héroe.
muerte. sabiduría.
Espacio sin
Personajes El formato
enigma ni A la misma altura
prototipo, seriado suspende
Sitcom conocimiento. Es que los
cercanos al el tiempo. No hay
el hogar personajes.
espectador. final ni muerte.
conocido.
Tiempo
permanente. El
Por encima de los
Personajes reales espectador elige Contenedor. No
protagonistas, los
Reality sin virtudes ni la muerte o representa nada
observa y
atractivo. salvación reconocible.
domina.
simbólica de los
protagonistas.

Conversión del espectador en héroe: el b) Del espacio y la mirada como continuo


reality del drama al contenedor de vida. El laberinto
como arquitectura de un enigma con sus
De lo expuesto hasta ahora se puede recorridos falsos y sus obstáculos y trampas
deducir que el reality es, desde un punto de es uno de los espacios modélicos y más
vista dramático, muy banal, y en su puesta antiguos de la ficción. El devenir que supone
en escena retrocede a una televisión primitiva la exploración de este espacio se congela en
que ignora los depurados recursos del montaje la sitcom, no hay nada que explorar porque
y el manejo temporal por el que habían el territorio es conocido, podríamos cerrar los
luchado durante largo tiempo los realizadores ojos y reconstruir el escenario donde se
televisivos. Lo que el reality ha restado al mueven los personajes como en nuestra
drama narrativo clásico y a la telecomedia propia casa andamos a oscuras y encontramos
de fuerza narrativa lo compensa otorgando sin problemas la llave de la luz. La casa,
por primera vez al espectador algo que hasta el bar, la oficina, son los espacios sin misterio,
ahora cualquier programa de ficción le tenía sin conflicto, tan acogedores y poco peligrosos
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 639

como pretendemos que sea nuestra casa. En imbuidos de su gracia. A los personajes de
el reality los personajes viven en contenedores. la sitcom los miramos cara a cara, de frente,
Su espacio muchas veces es artificial, no son el nosotros de la realidad, y a los que
pretende reproducir un lugar habitual, ni las participan en un reality los miramos desde
habitaciones o salones están personalizados, arriba, son demasiado vulgares para que les
sólo se disponen y articulan en función de consideremos nuestros semejantes, los
las necesidades vitales: dormitorios, cocina, observamos como si fuéramos los artífices de
baños, etc. Este diseño redunda en la sensación un experimento antropológico5, como cobayas
de experimento y laboratorio que tienen este en un laboratorio, más aún, con la misma
tipo de programas. El espacio ahora no es superioridad y curiosidad de niño ante la boca
narrativo ni cotidiano, es transparente. Los de un hormiguero que, sabedor de su poder
antecedentes de la casa transparente y el deseo vacía una botellita de agua en la entrada y
de mirar a través de las paredes es un viejo observa sus efectos.
sueño de la cultura occidental. Las nuevas tecnologías se alían para
Ya la en la literatura española de aumentar el poder de la mirada y gracias a
principios del siglo XVII podemos encontrar dispositivos como el teléfono móvil decidimos
un claro antecedente en El diablo cojuelo, el destino de sus vidas. La muerte, inherente
Vélez de Guevara. En esta sátira social, el a toda aventura, tiene en este tipo de narración
diablo lleva al estudiante a un vuelo por la una forma muy distinta a la del héroe épico:
ciudad que le permite ver (sólo ver, no actuar es el espectador quien, actuando como
sobre ellos) los interiores y las vidas de los demiurgo, decide la vida y la muerte de los
vecinos de Madrid, poniendo al descubierto personajes, es decir, decide quién debe
y criticando los vicios, miserias y engaños abandonar el relato con una simple llamada
generales de la sociedad del momento. telefónica. Pero lo paradójico es que, para el
individuo real que se ha convertido en personaje,
La arquitectura se esforzó en el siglo XX
esa muerte es el comienzo de una vida diferente,
por romper el modelo clásico y llegar a una
igual que ocurría en el caso del héroe clásico.
fórmula pura que convirtiera el diseño en una
No es una muerte real evidentemente, pero
simple combinatoria de módulos básicos
tampoco la muerte metafórica de volver a la
habitables. La progresiva incorporación de
cotidianeidad, al anonimato, ya imposible. El
materiales como el cristal y el aligeramiento
camino empieza en el final del relato, porque
de las estructuras hicieron que el sueño de
se inicia un nuevo itinerario vital en el que
una casa libre de divisiones interiores pudiera el individuo ya es personaje, ya es héroe y,
dar lugar a un espacio diáfano con grandes manteniendo sus atributos, comienza a recorrer
ventanales, es decir a una casa transparente. el camino. Y el olimpo en el que ingresa no
Esta labor de la arquitectura se ve es un cielo intemporal del que emanan todo
correspondida en el tiempo por la que ejerció tipo de virtudes y valores, es el terrenal mundo
la pintura con la muerte de la hegemonía de mediático, los otros programas a los que asistirá,
la perspectiva clásica. El cubismo y las ya como invitado o como tertuliano en nómina,
vanguardias buscaron la posibilidad de como cronista cuya voz ya es legítima. Le
contemplar la realidad desde varias permitimos por lo tanto, eso que antes se
perspectivas para establecer un diálogo entre llamaba el salto a la fama.
formas y espacios que aportaran una nueva El espectador entonces ha dejado de ser
visión de la realidad. La tecnología fotográfica el miembro de un grupo que asiste a un ritual
y televisiva vino a potenciar este deseo que dramático en el que conecta con los dioses
culmina con esa red de cámaras de la para convertirse en un solitario dios en el salón
videovigilancia que da luz a un ojo poderoso de su casa que, gracias al poder de la mirada
gracias a la multiplicidad de la visión. y su móvil, decide sobre la realidad de unos
c) La muerte en manos del espectador. personajes reales, con un cierto grado de
Decíamos que el espectador asistía a las estremecimiento y con el placer que supone
aventuras del héroe y a su mensaje como fieles jugar con un destino que no es el propio. Con
ante un rito religioso. Mirábamos a los héroes el reality la épica desaparece. Lo que el reality
desde abajo, porque tras su muerte ascendían nos ofrece cómodamente en el sillón de casa
al cielo. Y nosotros quedábamos en al tierra es la sensación de poder sobre la realidad.
640 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia _______________________________
1
Universidad Rey Juan Carlos, Madrid.
2
Abril, G.: “La televisión hiperrealista” Una forma de referirnos a este fenómeno
es denominarlo “efecto salpicadura”, puesto que
C.I.C., nº 1, 1995.
se expande por toda la programación de la cadena
Aladro, E.: “De la telenovela a la que lo emite. Algunos teóricos del medio van más
televigilancia. “Gran Hermano” y la nueva allá y hablan de “killer formats”, llegando a
era del perspectivismo relacional en plantearse que la onda expansiva es tan potente
televisión” C.I.C, nº 5, 2002. que no sólo contamina sino que asesina el resto
Berciano, R.: (1999). La comedia de la programación de la cadena que emite el
enlatada. De Lucille Ball a Los Simpson, programa que deja de tener entidad por sí misma
Barcelona, Ed. Gedisa. y depende absolutamente del reality.
3
Bou, N. & Perez, X.: (2000) El tiempo Podemos señalar como excepción los cuentos
populares rusos, donde las historias de princesas
del héroe, Barcelona, Ed. Paidós.
salvadas por héroes tienen en muchos casos
Bueno, G.: Televisión: Apariencia y continuación en el desarrollo de su vida doméstica.
verdad, Barcelona, Gedisa, 2000. 4
Por ejemplo, Gran Hermano muestra acciones
Castañares, W.: “Géneros realistas en y situaciones que no podríamos calificar como
televisión: los reality shows”, C.I.C., nº 1, reales puesto que no existirían fuera del medio,
1995. pero tampoco podríamos calificarlas como ficción
Castañares, W.: “Nuevas formas de ver, porque ocurren en la realidad y, sobre todo, porque
nuevas formas de ser: el hiperrealismo están protagonizadas por personas que existen en
la vida real. Son acontecimientos generados,
televisivo”, Revista de Occidente, 170-171,
construidos por el medio, pero con apariencia de
1995. realidad porque están protagonizados por sujetos
Mondelo, E. y Gaitán J. A.: “La función comunes y porque (aparentemente) no existe nadie
social de la televerdad”, Telos, nº 53, Madrid, detrás que los dirija, nadie crea el relato porque
octubre-diciembre 2002. este se va creando solo (aparentemente) ante la
Rank, O.: (1991) El mito del nacimiento vista de todos.
5
del héroe, Barcelona, Ed. Paidós. Este es quizá el argumento que más se ha
Savater, F.: (1992) La tarea del héroe, manejado para justificar Gran Hermano, y también
Barcelona, Ed. Destino. el más contestado y criticado.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 641

“Big Brother”:
um programa que mapeou a informação televisiva
Felisbela Lopes1

Poder-se-á dizer que há uma informação designação de “paleotelevisão” e de


televisiva “pré” e “pós” “Big Brother”? “neotelevisão”, Veron revela alguma cautela
Detendo-nos nos programas de informação no que diz respeito às características que quer
não-diária dos canais generalistas portugue- Eco quer Casetti e Odin lhes atribuem. Na
ses, procuraremos perceber de que forma o sua perspectiva, a televisão generalista foi,
horário nobre, nomeadamente dos canais desde sempre, construída a partir do “con-
privados, se esvaziou desse tipo de progra- tacto” que se dá através da relação do olhar,
mação. Esta é uma pequena parte de uma recusando, por isso, as visões de Eco que
investigação que estamos a desenvolver no vê aí a singularidade da “neo-TV” e as de
projecto de doutoramento e, por outro lado, Casetti e Odin que associam à “paleo-TV”
integra-se num trabalho do grupo certos “contratos de comunicação”. Para
Mediascópio que recentemente analisou casos Eliseo Veron, o que permite diferenciar as
que, no início deste século, alteraram o modo etapas da televisão generalista “são os
de encarar/fazer jornalismo. Tendo aqui como interpretantes que caracterizam os contratos
referência os anos de 1999 (altura em que de comunicação e não o laço estrutural que
ainda não estavam no ar as chamadas “no- passa sempre pelo contacto indicial”. Assim,
velas da vida real”) e de 2003 (ano após o na fase inicial, o interpretante fundamental
qual todos os canais generalistas já tinham era fornecido por um “contexto socio-
emitido esse tipo de programas), procedere- institucional extra-televisivo” (o Estado-
mos a uma análise da informação não-diária Nação), sendo o contrato de comunicação
no segmento do “prime time”, salientando consubstanciado não pela transparência, mas
as tendências do jornalismo televisivo que, através da metáfora da “janela”. Ao
nos últimos anos, se vem desenhando no interpretante-nação correspondia, ao nível da
pequeno ecrã. recepção, um interpretante-cidadão que ab-
sorvia o que lhe era proposto pela grelha
1 – Da “pós-neotelevisão” televisiva, construída segundo uma lógica que
escapava ao próprio medium. Na segunda
Ainda que sucinto e com algumas fra- fase, a televisão afasta-se do plano político,
gilidades, o texto que Umberto Eco escreveu tornando-se, ela própria, a “instituição-
em 1983 constitui-se como uma referência interpretante”, resultando daqui a visibilida-
para vários investigadores. Intitulado “A de crescente das estratégias enunciativas, a
transparência perdida”, o artigo assinala dois multiplicação de “talk-shows” ou o encurta-
períodos distintos no audiovisual: a mento dos programas. A passagem do século
“paleotelevisão”, a do tempo do monopólio; trouxe, na opinião de Eliseo Veron, um novo
e a “neotelevisão”, a da era da desregulamen- modo de encarar a enunciação televisiva.
tação. Esta designação é retomada por vários Aqui, “o interpretante dominante consiste
teóricos, principalmente em Itália com os numa configuração complexa de colectivos
trabalhos de Francesco Casetti e Roger Odin2 definidos como exteriores à instituição tele-
(1990), de Sandra Cavicchioli e Isabella visão, atribuídos ao mundo não-mediatizado
Pezzini (1993) ou de Maria Pia Pozzato (1995). do destinatário”, representando os novos
Recentemente, Eliseo Veron (2001) veio “reality-shows” (tipo “Big Brother”) progra-
acrescentar uma nova fase à dupla periodização mas de base deste novo contexto de mudan-
proposta por Umberto Eco, dando outra lei- ça de paradigma. Pela primeira vez na sua
tura aos conceitos apresentados. Apesar de não história, a TV integraria no ecrã o processo
manifestar um desacordo relativamente à de mediatização do qual ela é a fonte e o
642 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

principal actor, concedendo à realidade ex- dor toma-o como paradigma da transforma-
tra-mediática quotidiana, na qual se movi- ção gradual de esquemas existentes, como
mentam os receptores, um espaço estratégico uma espécie de montra de programas diver-
tão importante como aquele que se encontra sos que fizeram sucesso nos últimos anos.
dentro do pequeno ecrã. Nas palavras de Afirmando que “o programa é ele próprio
Eliseo Veron, este tipo de programa “coloca a publicidade”, Jost vê nos novos códigos
em cena uma semiótica do laço social estruturantes desse formato o esbatimento da
quotidiano extra-mediático”, através do qual fronteira que separava o campo publicitário
se completa aquilo que o programador pla- dos programas televisivos. A sua posição
neou. Nesta fase, a programação fica em marcadamente semiótica é, no entanto, in-
aberto, dando-se aos receptores o poder de fluenciada pelas apreciações mais de natu-
decidirem o desfecho dos programas. Veron reza sociológica e cognitiva de Serge Tisseron
pensa que esta será a última etapa da TV que, no ano anterior, havia publicado L’
generalista. Intimité Surexposée. Nesse livro, o psicana-
Outro dos investigadores que tem vindo lista assinala a passagem para um novo
a reunir elementos pertinentes para o estudo período da história da intimidade. Para trás
da evolução da comunicação televisiva é ficavam duas etapas distintas. A primeira onde
François Jost. Elegendo a imagem como “a individualidade e a interioridade apare-
vector estruturante das suas análises, o ceram como um luxo dos privilegiados
académico francês assinala a passagem da- enquanto a maioria tinha de seguir a exi-
quilo a que chama “imagem espírito” que ca- gência do grupo” e uma segunda onde se
racterizaria a TV dos anos 50 para a “ima- “exaltou a individualidade de um grande
gem corpo” intrínseca aos programas da número de pessoas”5. Actualmente, a intimi-
actualidade, misturando-se essa mudança com dade situar-se-ia onde cada um quer que ela
outras de idêntica natureza: “a câmara já não esteja. Poucos meses antes da publicação
é um pássaro que desliza na superfície do desse livro, a investigadora Dominique Mehl
mundo, mas um peixe que emerge no meio reafirmara-nos exactamente isso numa entre-
daqueles de quem capta a vida”3. Faltará aqui vista que publicámos na revista “Jornalistas
a referência a uma terceira etapa, apenas e Jornalismo”. Confrontada com o que
aludida na conclusão do livro La Télévision entende hoje por vida privada, a investiga-
do Quotidien, quando se enfatiza a actual dora francesa afirmava o seguinte: “Cada um
necessidade (de quem produz e de quem vê deve definir o que reserva para si próprio,
televisão) de “tocar o vivido”. Para Jost, é o que guarda no espaço privado e o que
aí que a imagem “encontra o seu pleno valor mostra aos outros através do debate públi-
de índice”. No ano seguinte, no livro dedi- co”. Seria este um outro modo de vivermos
cado ao “Loft Story”, há outro espaço para o dia-a-dia, mas esta alteração
falar no novo patamar da comunicação comportamental tem também profundas in-
televisiva: aquela que é inaugurada por fluências no modo como a televisão organiza
programas que misturam imagens reais e a sua comunicação, certamente porque tam-
fictícias, que apagam as últimas fronteiras bém houve a tal mudança de “interpretante”
(ainda) existentes: aquelas que separam os de que nos fala Veron, adquirindo o quoti-
programas da publicidade. Percorrendo ca- diano extra-mediático uma força que não
minhos diferentes de Eliseo Veron, François tinha num passado recente. Se numa primei-
Jost também vê no surgimento dos chamados ra época o Estado criava através do pequeno
“programas da vida real” a emergência de ecrã uma janela por onde pretendia fazer olhar
uma nova fase da televisão. A eles dedica os telespectadores; se num segundo momen-
um livro que intitula L’Empire du Loft, es- to a televisão reorganizava a realidade com
crevendo aí que esse tipo de emissão “apa- códigos que eram os seus, fazendo a audi-
rece na convergência de três modos: o da ência acreditar estar ali um espelho daquilo
autenticidade, aberto pelos reality-show; o que era; actualmente são os próprios teles-
ficcional das sitcoms; e o do lúdico” 4. pectadores que levam para dentro do ecrã
Detendo-se no “Loft Story”, o formato mais aquilo que são e como a sua identidade é
conhecido como “Big Brother”, o investiga- uma construção cada vez mais instável a
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 643

televisão deixa de controlar a sua própria lismo, sem propriamente se converterem em


enunciação. emissões de diversão. Reunindo um “share”
Na verdade, neste início do século XXI, médio anual de 45.5%, neste ano é a SIC
a enunciação televisiva é substancialmente que condiciona a oferta televisiva do Pano-
diferente daquela que foi construída na rama Audiovisual Português, nomeadamente
segunda metade do século XX. Porque se da RTP1 onde se nota uma certa clonagem
alteraram os enunciadores, porque os dos formatos propostos no canal de maior
enunciatários descobriram novas formas de audiência, sem, com isso, conseguir resul-
identidade, porque outros enunciados entra- tados muito optimistas, na medida em que
ram dentro do pequeno ecrã. Tudo isto chega ao final do ano com um “share” médio
configura um novo discurso televisivo. No de 27%. Esse mimetismo é menos visível ao
nosso caso, procuraremos analisar em que nível dos programas de informação. Sem
medida os programas de informação não- adoptar uma engenharia de programação de
diária emitidos, em 1999 e em 2003, no identificação com os canais concorrentes, a
segmento nocturno dos canais generalistas TVI apresenta, ao longo desse ano, bastantes
reflectem essas mudanças. A TV terá sido estreias. Apesar de ser o canal que reuniu
conquistada pelo “interpretante-telespecta- menos telespectadores, foi o único que re-
dor” ou manterá ainda espaços de autonomia gistou uma subida em relação a 1998, reu-
que lhe garantem um certo controlo em nindo 16.4% de “share” contra os 13.1% do
relação àquilo que mediatiza? ano anterior.
No que diz respeito à informação não-
2 – A era pré-“Big Brother”: as fronteiras diária emitida na franja nocturna dos ca-
que a informação (ainda) consegue deli- nais generalistas, encontramos em 1999 um
mitar número razoável de programas (cf. Quadro
1). Alguns deles mantêm-se há alguns anos
É um espaço consagrado ao entretenimen- em antena, registando uma longevidade as-
to o que as grelhas dos canais generalistas sinalável. O mais antigo é “Casos de
constroem no horário nobre de 1999. Mas Polícia” que surgiu na SIC em 1993;
nele, e nas diferentes estações, encontram- “Domingo Desportivo” estreou, na RTP, em
se tempos específicos para programas de 1995; “Maria Elisa” e “Esta Semana”
informação, ainda que alguns façam emergir apareceram em 1996 na RTP e na SIC,
traços que os afastam do campo do jorna- respectivamente.

Quadro n.º 1: Informação não-diária do primeiro semestre de 1999

2ª feira 3ª feira 4ª feira 5ª feira 6ª feira Sábado Domingo


Maria
Conversas Já que
Elisa Domingo
RTP Rotações de Mário Falamos
Grande Desportivo
Soares6 de Sexo7
Entrevista
Casos de Esta Donos
SIC
Polícia Semana da Bola
Em
Quero
TVI Golo! Legítima
Justiça
Defesa

Integrados num segmento horário em que vidados, refere-se a esse espaço como de
vingam conteúdos essencialmente vocacio- “análise” dos temas em destaque8; Marga-
nados para o entretenimento, os apresenta- rida Marante, apresentadora e coordenadora
dores dos programas de informação emitidos de “Esta Semana”, afirma ser “uma defen-
em 1999 fazem questão de delimitar fron- sora bastante séria da fronteira entre a
teiras. Maria Elisa, no período de lançamen- informação e o entretenimento”9; Conceição
to do seu programa, apesar de reconhecer que Lino, apresentadora e coordenadora de “Casos
ressaltará o lado “emocional” dos seus con- de Polícia”, assegura que há “uma aborda-
644 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

gem cuidadosa de modo a evitar o espec- cada estação opta por colocar as respectivas
táculo gratuito”10; Vítor Bandarra, apresen- emissões em dias diferentes. O que vem
tador de “Quero Justiça”, recusa para si o acontecendo desde 1993, altura em que
papel de “advogado, Provedor de Justiça e “Grande Área” (RTP) ia para o ar ao do-
Procurador”, assegurando ser “apenas um mingo; “Prolongamento” (TVI), à segunda-
jornalista que trata de casos que merecem feira; e “Donos da Bola”, sexta-feira. Seis
justiça”11. É, na verdade, à classe jornalística anos depois mantém-se o mesmo modelo de
que se entrega, em 1999, a apresentação da programação. No primeiro semestre, temos
maior parte dos programas que se querem “Domingo Desportivo” na RTP; “Donos da
informativos. Quando se opta por outro perfil Bola” nos serões de sexta-feira da SIC; e
profissional, a escolha recai em apresenta- “Golo” nas noites de terça-feira da TVI. No
dores que têm um saber/experiência que se segundo semestre de 1999, há uma
cruza com aquilo de que se fala, o que, de reformatação dessas emissões que aparecem,
certa forma, retém as emissões no campo da consequentemente, com outros nomes e surge
informação. No primeiro semestre de 1999, também um novo programa de informação
h dois casos que ilustram esta situação: desportiva no canal público generalista. Ao
“Conversas de Mário Soares” (RTP) da “Domingo Desportivo”, juntam-se na TVI,
responsabilidade do ex-Presidente da Repú- a partir de 19 de Agosto, “A Bola é Nossa”;
blica e “Já que Falamos de Sexo” (RTP) na SIC, a partir de 20 de Agosto, “Jogo
conduzido pelo psiquiatra Allen Gomes12. Limpo”; na RTP1, a partir de 23 de Agosto,
Ainda que vejamos em Mário Soares um “Jogo Falado” que transita da RTP-2. Os três
entrevistador que faz entrar as suas vivências têm em comum a presença em estúdio de
pessoais na formulação das perguntas, as suas um painel de comentadores fixos que repre-
conversas circunscrevem-se a factos do sentam os três maiores clubes de futebol, uma
domínio público, não enveredando pela fórmula que fez escola com “Donos da
exploração da esfera privada dos seus entre- Bola”14.
vistados. Mesmo tratando temáticas que Apesar de vários programas de informa-
facilmente poderiam convocar a exposição da ção não-diária integrarem a actualidade
vida íntima das pessoas, o psiquiatra Allen noticiosa nos temas que abordam, a maior
Gomes, antes de ir para o ar a primeira parte deles amplia e reformata uma realidade
emissão, assegurava que procuraria “tratar nem sempre muito visível no trabalho diário
os temas com rigor e frontalidade”13. dos jornalistas. A televisão assume, deste
O mimetismo que, em 1999, se nota ao modo, uma função mais estruturante do que
nível dos conteúdos de entretenimento entre estruturada do espaço público contemporâ-
as grelhas da RTP e da SIC apenas tem neo. Incidindo a sua atenção na realidade quo-
transposição no que diz respeito à informa- tidiana, as emissões de informação não-di-
ção não-diária nas noites de quinta-feira. Aí, ária deram, em 1999, particular atenção à so-
enquanto a SIC transmite “Esta Semana”, um ciedade civil, representada por especialistas
programa que integra uma entrevista e um de diversos campos de saber ou pelo cidadão
debate, a RTP1 alterna quinzenalmente esses comum ouvido a propósito de experiências
géneros jornalísticos em “Maria Elisa” e paradigmáticas. Esta última franja social est
“Grande Entrevista”. Estes dois últimos mais presente nos ecrãs da TV privada,
programas perdem alguma força em termos encontrando aí diferentes representações,
de audimetria não só porque se inserem num construídas segundo regras jornalísticas.
canal com um “share” global mais baixo, É o cidadão anónimo no papel de vítima
como também devido ao facto de terem uma ou de agressor que encontramos em grande
emisso quinzenal, o que dispersa a atenção parte das reportagens emitidas em “Casos de
do público. Poder-se-á ainda encontrar uma Polícia” (SIC). Por outro lado, este programa
certa concorrência noutro tipo de programa- presta também atenção ao funcionamento
ção informativa não-diária: nos programas irregular de certas instituições, nomeadamente
que debatem assuntos desportivos, nomeada- daquelas a quem compete zelar pela ordem
mente o futebol. No entanto, neste domínio, pública. Como frisa a respectiva coordenadora
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 645

e apresentadora, a jornalista Conceição Lino, foram padres, historiadores, um médico, um


abordam-se “coisas que não deveriam acon- dirigente desportivo, um futebolista, um eco-
tecer num Estado de Direito”15. Esta emissão nomista e um alpinista. No mesmo período
reserva ainda espaço para três especialistas do ano, Margarida Marante, em 23 emissões
residentes que, em estúdio, procuram de “Esta Semana”, preencheu apenas cinco
contextualizar os casos apresentados. Em vezes o espaço da entrevista com políticos21.
1996 – altura em que Conceição Lino subs- Nos restantes programas, a jornalista falou
tituiu Carlos Narciso – houve uma renova- com pessoas ligadas ao futebol, à saúde, à
ção desse painel que passa, então, a integrar televisão e ao cinema22. O critério seguido
o advogado João Nabais, o psiquiatra Carlos para a escolha dos entrevistados foi quase
Amaral Dias e o padre José Luís Borga. sempre a actualidade, havendo aqui uma apro-
Dispensando essa parte de contextualização, ximação do jornalismo televisivo aos factos
“Quero Justiça” (TVI) também privilegia a com maior projecção pública. Mais despren-
denúncia de casos de inoperância das ins- dido da noticiabilidade do momento, mas
tituições, ou seja, “histórias de pessoas elegendo a política como fio condutor do seu
injustiçadas ou cujos problemas a justiça não programa, “Conversas de Mário Soares”
consegue resolver a tempo e horas”, como (RTP) colocou no centro das suas emissões
sublinha Vítor Bandarra16. Embora tenham personalidades com relevo internacional no
traos diferenciadores (“Casos de Polícia” campo político. Para além de Presidentes da
mais diversificado nos temas, mais variado República e de primeiros-ministros de países
no perfil das fontes e mais rigoroso no tra- estrangeiros, Mário Soares entrevistou o
tamento jornalístico dos factos), nestes dois Secretário-Geral da ONU (5 de Março), o
programas emerge uma televisão que, ao Secretário-Geral da UNESCO (12 de Março)
colocar no espaço público um discurso e o ex-Secretário-Geral do PCE Santiago
denunciador de irregularidades sociais, Carrillo (16 de Abril) que fechou a 1ª série
redesenha uma ideia de sociedade com fortes deste programa, suspenso em Abril devido
desequilíbrios. a Soares ser candidato ao Parlamento Euro-
Nos debates promovidos em “Maria peu, mas retomado na grelha de Agosto.
Elisa” e em “Esta Semana”, dá-se maior Percorrendo os programas de informação
relevo a problemáticas sociais17. Maria Elisa emitidos em 1999, encontra-se uma forte
garante que “é nas políticas sociais que se atenção a temas sociais. Num ano marcado
faz hoje verdadeira política”, acrescentando por duas eleições – para o Parlamento
que “as pessoas não estão muito interessa- Europeu (13 de Junho) e Legislativas (10 de
das nas políticas partidárias”18. Também Outubro) – a engenharia de programação
Margarida Marante optou por descentralizar adoptada nos três canais desviou a oferta
os debates do campo político. Em 23 emis- informativa não-diária da agenda política e
sões que foram para o ar de Janeiro a Julho mesmo nos formatos onde esse campo po-
de 1999, discutiram-se na maior parte das deria ser facilmente introduzido – como o
vezes temas relacionados com o quotidiano. caso das entrevistas – os respectivos respon-
“Em Portugal” – afirma Margarida Marante sáveis optaram por outro perfil de convida-
– “mudou tudo: mudou a política e mudou dos. São essencialmente assuntos do quoti-
o nível do interesse dos espectadores pela diano que estruturam grande parte das
política e eu inevitavelmente mudei ao mesmo emissões semanais. Para falar deles, os canais
ritmo”19. No entanto, o campo político não generalistas socorreram-se frequentemente do
esteve totalmente ausente da informação não- cidadão comum que, tornado visível no es-
diária, apesar de não conseguir força sufi- paço público mediatizado, adquire uma outra
ciente para se sobrepor aos actores sociais importância na vida pública. Detendo-se em
que, em 1999, ocuparam mais espaço nos experiências pessoais, o convidado que emer-
ecrãs de televisão. No primeiro semestre do ge do anonimato tende a construir o seu
ano, das 14 emissões de “Grande Entrevista” discurso num registo mais emotivo do que
(RTP) apenas quatro tiveram polticos como racional, o que pode facilmente converter a
convidados 20. Os restantes entrevistados emissão num espaço aberto ao “voyeurismo”
646 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

e, consequentemente, ao entretenimento. ça na audimetria. Se em 2002 a sua


Tendo consciência deste eventual vantagem em relação à TVI foi apenas de
deslizamento de fronteiras, os apresenta- 0.1 pontos percentuais (o que representou
dores dos vários programas sublinham um empate técnico), este ano alarga essa
reiteradamente o cuidado que têm em cir- distância para 1.8 pontos. No horário
cunscrever o seu trabalho à esfera do jor- nobre, a SIC aumenta o “share” de 29.5%
nalismo. A presença de especialistas no para 29.8%, conseguindo ultrapassar o
“plateau” de certas emissões também aju- quarto canal nos dois últimos meses do
dou a re-centrar as discussões em aspec- ano. No entanto, a TVI – que perde 2.4
tos que se relacionavam com a “impor- pontos percentuais a nível global, ficando
tância” ou “interesse público” dos temas. com um “share” médio de 28.6% – con-
Extravasou desta lógica o “Especial TVI”23 tinua a registar o resultado mais alto em
que ganhou visibilidade com uma repor- “prime-time”: 33.4%, ainda que tenha
tagem sobre a estância brasileira de nu- perdido 4.4% em relação a 2002.
distas Colónia do Sol, um trabalho que No que diz respeito à informação não-
obrigou o jornalista do canal português a diária emitida no primeiro semestre de
também assumir essa prática. Este progra- 2003, contam-se apenas cinco programas
ma – feito em colaboração com o canal estritamente jornalísticos: quatro estão
brasileiro SBT – apostou em reportagens integrados na grelha da RTP1, o outro
sobre emissões televisivas que, no Brasil, pertence à SIC que o coloca sempre num
tentavam, à custa da violação da digni- segmento horário bastante tardio (depois
dade/intimidade dos respectivos convida- da meia-noite). Enchendo o horário nobre
dos 24 , destronar as audiências da TV com séries de humor, com telenovelas por-
Globo. tuguesas e brasileiras e com formatos tipo
“Big Brother”, as estações privadas não
3 – Quando o entretenimento conquista
têm espaço para inserirem emissões infor-
o horário nobre
mativas. Neste período, emerge, na franja
horária nocturna (tardia) dos canais pri-
Em 2003, a programação nocturna das
vados, um género de programas que se
estações generalistas, nomeadamente das
concentra em casos de denúncia de injus-
privadas, apresenta uma oferta televisiva
tiças sociais. Não se trata, é certo, de uma
substancialmente diferente daquela que foi
temática inovadora, mas a forma encon-
desenhada em 1999. Também houve algu-
trada para retratar essas situações –
mas alterações ao nível da audimetria.
Tendo reunido mais 2.7% de “share” do apresentadas prioritariamente pelo lado das
que no ano anterior, a RTP continua em vítimas que encontram no apresentador um
terceiro lugar, com 22.4%, mas foi a única opositor ou um coadjuvante de acusações
estação a apresentar uma subida em 200325. a terceiros ausentes dos “plateaux” – retira
Tendo deixado de ser a televisão com mais esses formatos do campo da informação,
telespectadores em 2001, a SIC, embora situando-os na área do entretenimento que
tenha perdido 1.2 pontos percentuais a estrutura, desse modo, o período televisivo
nível global, consolidou este ano a lideran- nocturno como um bloco homogéneo.

Quadro n.º 2: Informação não-diária do primeiro semestre de 2003

2ª feira 3ª feira 4ª feira 5ª feira 6ª feira Sábado Domingo


Grande
Prós Fora
Repórter
RTP e de
Grande
Contras Jogo
Entrevista
SIC Hora Extra
TVI
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 647

Como se constata no Quadro nº 2, a RTP1 Não contando com a concorrência horá-


foi a estação generalista que somou mais pro- ria de um formato do mesmo género, “Hora
gramas de informação não-diária em período Extra”, que estreara em Janeiro de 2002,
nocturno, quando comparada com os outros continua em antena na primeira metade de
canais: emissões especiais de informação 2003, sem, no entanto, conseguir uma gran-
ditadas pela actualidade (que não constam de valorização na grelha da SIC. Atirado para
deste quadro por não terem uma periodicida- um horário tardio, este programa, o único de
de fixa), um debate (“Prós e Contras”), um informação não-diária em segmento noctur-
programa de desporto (“Fora de Jogo”), um no das estações privadas, percorre o primeiro
programa de entrevista e outro de reportagem semestre do ano mostrando semanalmente
que se alternam 5ª feira (“Grande Entrevista” diferentes realidades de campos sociais di-
e “Grande Repórter”). Este último género viria versos, através de uma reportagem alargada
a ser substituído, a partir de Novembro, por seguida de um debate em estúdio que junta
um outro debate, intitulado “Estado da Na- à volta de uma mesa interlocutores que dão
ção”. Correspondem estas emissões a um in- testemunho de vivências pessoais ou que são
vestimento acrescido na informação não-di- especialistas nos assuntos em destaque. Não
ária? Não, porque, antes de 2000, houve é com pessoas de grande projecção pública
sempre um número considerável de progra- que se faz “Hora Extra”, mas, acima de tudo,
mas no horário nobre do canal generalista pú- com situações que ilustram realidades nem
blico26. Se a RTP1 se torna agora mais visível sempre muito visíveis. Não naquilo que usu-
neste tipo de programação, tal acontece de- almente constitui notícia que este programa
vido ao forte desinvestimento das estações encontra o mote para os seus temas. Ultra-
privadas aí. Excepto “Estado da Nação” que passando agendas mediáticas e fontes insti-
aparece em Novembro de 2003, os restantes tucionais, as emissões da jornalista Concei-
programas transitam da grelha do ano ante- ção Lino centram-se nas margens do espaço
rior. Ainda que sejam alvo de modificações público, fazendo daí emergir casos que,
pontuais, todos mantêm a mesma linha edi- descobrir-se-á depois, são vividos por milha-
torial, que se caracteriza por uma ligação res de pessoas. Casos que afectam públicos
estreita aos factos que fazem a actualidade segmentados, que se estendem a classes com
noticiosa e por uma dependência vincada das diferentes estatutos, que se circunscrevem ao
fontes políticas. Mais do que promotora de nosso país ou que ultrapassam as fronteiras
novas configurações sociais, a RTP tende, em nacionais, que retratam situações de difícil
2003, a reproduzir uma certa ideologia do- resolução ou que reflectem exemplos de
minante, garantida pela presença em estúdio sucesso. Olhando para o Quadro n.º 2, será
das chamadas fontes oficiais que nem sempre este o programa que deveremos ver como
coincidem com aquelas que apresentam um estruturante de um verdadeiro espaço públi-
grau de especialização naquilo de que se fala. co televisivo: é diversificado nos temas,
Mais do que um espelho do espaço público variado nos convidados e nele inserem-se dois
contemporâneo, a RTP, na informação não- géneros jornalísticos – a reportagem e a
diária de horário nobre, inclinou-se por fazer entrevista – que nos fornecem duas aborda-
reflectir dentro do pequeno ecrã uma certa gens dinâmicas do assunto em destaque. No
ideia de espaço parlamentar, aberto a várias entanto, num tempo em que a oferta televisiva
sensibilidades políticas, mas, tal como o é homogeneizada pelo entretenimento, este
hemiciclo português, demasiado concentrado formato não consegue força suficiente para
no género masculino e espartilhado entre percorrer todo o ano de 2003. Interrompido
posições políticas do Governo e do maior em Junho para férias, “Hora Extra” já não
partido da oposição. Esta tendência foi mais regressou na temporada de Outono. No seu
notória nos debates do que nas entrevistas. lugar, apareceram “Grande Reportagem” e
No entanto, esses espaços, apresentados sem- “País Real” que se alternam semanalmente
pre por jornalistas, delimitavam uma linha clara no mesmo horrio, mas que desaparecem da
entre aquilo que lhes era intrínseco (a infor- grelha antes do ano terminar, sendo inseri-
mação) e a oferta televisiva de entretenimento dos, com algumas alterações, no “Jornal da
que lhes estava contígua. Noite” do fim-de-semana.
648 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

É em emissões que se centram em pes- “plateau” convidados que revelam compor-


soas a quem se reconhece o estatuto de tamentos pessoais reprováveis, confrontando-
vítimas, em relação às quais a televisão se em estúdio com os visados pelas acções
pretende assumir uma função reparadora de relatadas. Todavia, não são estes últimos que
injustiças sociais que encontramos as prin- se destacam, mas aqueles que, através de uma
cipais novidades da SIC para o horário noc- palavra fortemente perturbadora e pronunci-
turno do início de 2003. Em Janeiro, apa- ada de forma veemente, expõem em público
recem o “Bombástico” (dia 10), “Escândalos episódios sobre os quais recai uma punição
e Boatos” (dia 21) e “O Crime não Com- judicial ou moral. “Eu Confesso” surge para
pensa” ”27 (dia 28), programas feitos por dar visibilidade a autores de crimes graves
produtoras externas que levavam semanal- que, em estúdio, são confrontados com
mente a estúdio pessoas que, ouvidas no aqueles que agrediram ou com os respecti-
estatuto de vítimas, expunham casos pesso- vos familiares. A compreensão daquilo que
ais, apontando abertamente aqueles que se retrata é construída com base nos senti-
julgavam serem os culpados por situações mentos que agressores e vítimas constroem
que, a maior parte das vezes, diziam respeito em público. Porque são as emoções que
a um espaço privado intrínseco ao actor do importam em primeiro lugar, a produção do
relato ou pertencente a terceiros. Não se trata programa secunda esses actores por um painel
aqui de uma oportunidade para “pensar” casos constituído por especialistas ligados à psi-
de injustiça social, mas procura-se, sobretu- cologia que, no entanto, ocupam um lugar
do, ressaltar o “sentir” daqueles que falam bastante secundário. Por seu lado, “Vidas
e daqueles que assistem a esse “espectáculo Reais” constrói-se através de depoimentos de
da palavra”, exposta com dramatismo. Ape- convidados que falam essencialmente de
sar de não ter uma longevidade assinalável, vivências privadas que se cruzam com a
este género de programação, enquanto se intimidade de terceiros que, em estúdio, são
manteve em antena, suscitou uma acesa (ou aparentam estar) surpreendidos pelos
polémica, nomeadamente o “Bombástico” que relatos que ouvem. Frequentemente os tes-
encontrou na classe dos juízes uma severa temunhos são expostos por pessoas que
oposição quanto à forma como era conduzido representam outras que preferem no aparecer
o programa. Estas emissões, apresentadas por em público. É, sobretudo, o insólito, o es-
profissionais da televisão sem carteira de tranho e o escândalo que essas narrações
jornalista, não poderão naturalmente integrar- criam, sem que os respectivos autores ma-
se naquilo que se entende por informação nifestem grande dificuldade em verbalizar
televisiva: não seguem critérios jornalísticos, comportamentos que emergem não só da sua
violam sistematicamente o princípio do con- vida privada (ou daqueles que representam)
traditório e ultrapassam com bastante frequên- como também se estendem à intimidade de
cia princípios éticos, nomeadamente quando terceiros. Em “Vidas Reais”, reserva-se um
incitam os convidados a falarem de experi- espaço para o público que é incitado a reagir
ências íntimas, acusando terceiros que estão efusivamente aos testemunhos do “plateau”.
ausentes dos “plateaux”. No entanto, foram
estes formatos que a SIC pôs no remate do 4 – Notas Finais
horário nobre, subtraindo com eles o espaço
para outro tipo de realidade: aquela que o É para uma “zona de bastidores” que
jornalismo constrói com regras específicas. remetem as novidades da programação da SIC
Em 2003, a TVI coloca igualmente em e da TVI em 2003. Violando o espaço íntimo
horário nocturno dois programas que operam dos convidados, os novos programas de que
nesta linha de uma denúncia social que des- falmos no ponto anterior colocam em cena
valoriza a parte visada. “Vidas Reais” (que pessoas que representam um papel que lhes
estreara a 16 de Setembro de 2002 e que está previamente configurado: o de vítimas.
a 10 de Janeiro de 2003 passa para os serões Essa visualização da “extimidade”, ou seja,
de sexta-feira e de sábado com uma emissão “o movimento que leva cada um a exteriorizar
em directo) e “Eu Confesso” (que surge a uma parte da vida íntima, física e psíqui-
25 de Janeiro de 2003) trazem para o ca”28, poderia ser uma oportunidade para
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 649

multiplicar espelhos numa tentativa de se nocturno que se segue aos noticiários diá-
conseguir perceber melhor a respectiva iden- rios? Porque há outros conteúdos mais do
tidade. Não é exactamente isso que se passa interesse do público? Porque (ainda) não se
nesses programas. Sabendo que encontram descobriram meios que introduzam o espec-
no apresentador da emissão um coadjuvante tador nessas emissões? Porque a realidade
ou um opositor àquilo que expõem, os encontrou formas mais espectaculares de
convidados sentem-se na obrigação de repre- mediação?
sentar um papel. Não é para a verdade que Em 2003, SIC e TVI criaram novos
os depoimentos se orientam, mas para uma formatos para retratar a realidade. Com um
autenticidade que se pretende que comova novo perfil de convidados, com uma atitude
aqueles que assistem a isso: apresentador, participante do apresentador e com um
público no estúdio e, sobretudo, as audiên- público em estdio mais activo. No caso da
cias. Tal como acontece com as “novelas da SIC, as estreias que surgiram não perdura-
vida real”. Entre todos estes programas, não ram por muito tempo. Na TVI, “Vidas Reais”
há muitas diferenças. Em 2003, a TVI avança e “Eu Confesso” tiveram uma longevidade
com a quarta edição de “Big Brother”, mais maior, sem, no entanto, conseguirem força
arrojada do que as anteriores, cujo slogan é suficiente para vingarem em horário nobre.
a garantia de que os concorrentes “vão pôr Em qualquer dos casos, ficou por cumprir
tudo a nu”. Numa resposta à TVI, a SIC aquilo que estrutura a terceira fase de que
estreia a 5 de Setembro um formato da nos fala Eliseo Veron: o centralismo do
“Fremantle Media” chamado “Ídolos”, um telespectador no desenvolvimento dessas
programa bastante semelhante à “Operação emissões. Todavia, acompanhando o discur-
Triunfo” da RTP1. Numa entrevista à “TV so dos responsáveis pelas estações privadas,
7 Dias” (nº 863, de Outubro de 2003), o essa aproximação às audiências é uma pre-
director de Programas da SIC, Manuel da
ocupação constante. Ao comemorar a 20 de
Fonseca, refere as razões inerentes à escolha
Fevereiro de 2003 os dez anos da TVI, o
deste tipo de conteúdos: “Os ‘Ídolos’ per-
respectivo director-geral, em entrevista á Lusa
mitem-nos estabelecer uma relação directa
citada pelo “Público, apresenta a sua tele-
com os espectadores. É uma porta aberta à
visão como “próxima do cidadão”, com
opinião e ao voto, o que, no final, fará com
programas que “vão ao encontro dos gostos
que alguns milhões de espectadores sintam
dos espectadores” e com “uma informação
que foram eles a fazer o programa. É essa
a aposta: fazer uma estação de mãos dadas desengravatada”. Numa conferência sobre”
com o telespectador”. Eis aqui o exemplo “Cultura e Comunicação” realizada no Porto
da terceira fase da televisão de que fala Eliseo a 7 de Outubro de 2003, o presidente do
Veron. Se das audiências se espera uma Conselho de Administração da SIC, Francis-
participação que complete a produção de co Pinto Balsemão, defendia que “os pro-
determinado programa, torna-se obrigatório gramas têm de agradar ao maior número de
construir permanentes elos de ligação com pessoas e não têm necessariamente de ser
os diversos públicos, o que será facilitado enriquecedores, têm de divertir, entreter e
se os conteúdos se desenvolverem num libertar”29. Na base de tudo isto, estará aquilo
registo que promova a afectividade. É tam- que o director de programação da SIC, em
bém isso que se pretende em programas como entrevista à “TV Guia” (nº 1251, Janeiro de
o “Bombástico” e “Vidas Reais”, apesar de 2003), considerava “a melhor definição da
isso ser aí mais ilusório do que real. televisão privada”: “um negócio que tem
Será, então, que atingimos a terceira fase como único cliente os anunciantes a quem
da televisão? Ao nível do entretenimento, a vende o número da audiência alcançada”,
oferta televisiva dos canais privados da era concluindo, assim, que “servir o público é
“pós-Big Brother” sela as previsões de Eliseo inevitável”. No caso das televisões privadas,
Veron e de François Jost. Na programação o passado recente demonstra que a fórmula
emitida em horário nobre, evidenciam-se de sucesso se concentra em conteúdos de
sinais que atestam modificações profundas. entretenimento, onde é mais fácil levar a
Por que será que os canais privados expul- audiência a (acreditar que pode) determinar
saram a informação semanal do segmento o desenvolvimento das emissões. Neste
650 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

contexto, o jornalismo não terá espaço para programas de informação não-diária do


se desenvolver. operador público, apesar de, em 2003, terem
Ainda que na oferta televisiva do canal estado excessivamente concentrados nos
público generalista se encontrem programas mesmos convidados (quase sempre homens)
com alguns traços do dispositivo das “no-
e dependentes de uma agenda política, pre-
velas da vida real”, a informação da RTP1
tem persistido em delimitar fronteiras entre servaram espaços que tornam (ainda) possí-
o seu campo e o do entretenimento. Produ- vel falar de um campo de informação
zidos e apresentados por jornalistas, os televisiva.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 651

Bibliografia _______________________________
1
Departamento de Ciências da Comunicação
Casetti, Francesco; Odin, Roger, “De la da Universidade do Minho.
2
paléo la néotélvision. Approche sémio- Francesco Casetti e Roger Odin retomam
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partir desse conceito, um número da revista
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Cavicchioli, Sandra ;Pezzini, Isabella, La que é publicado em 1990.
TV veritá. Da finestra sul mondo a 3
François Jost, La Télévision do Quotidien,
panopticon. Torino: Nuova Eri, 1993. Bruxelles, Ed. De Boeck Université, 2001, p.74.
Eco, Umberto, Viagens Na Irrealidade 4
François Jost, L’ Empire du Loft. Ed. La
Quotidiana. Difel, 1993. Dispute, 2002, p.70.
5
Jost, François, La Télévision du Serge Tisseron, L’Intimité Surexposée. Ed.
Quotidien: entre réalité et fiction. Bruxelles: Ramsay, 2001, p.76.
6
Ed. De Boeck Université, 2001. Este programa, apresentado pelo ex-Presi-
Jost, François, L’ Empire du Loft. Ed. La dente da República Mário Soares, não segue pro-
Dispute, 2002. priamente os critérios jornalísticos de uma entre-
vista, mas também não se configura como um
Lopes, Felisbela, “O Panorama
espaço de entretenimento.
Audiovisual Português: o passado recente e 7
Este programa é apresentado por psiquiatra
o futuro próximo”. Comunicação apresenta- e partilha as limitações assinaladas na nota an-
da na sessão “Indústrias Audiovisuais” do 4º terior.
Encontro Lusófono de Ciências da Comuni- 8
“TV Guia”, 5 de Outubro de 1996.
cação, sob o tema “Comunicação 9
“Expresso”, 15 de Novembro de 1997.
Intercultural: 500 anos de mestiagem”, São 10
“TV Guia”, 29 de Novembro de 1997.
11
Vicente, 19-22 de Abril de 2000. “TV Mais”, 19 de Fevereiro de 1999.
12
Lopes, Felisbela. “As políticas, as estra- “Já que Falamos de Sexo” estreou a 6 de
tégias e as tácticas do prime-time do PAP”. Março de 1999 e marcou o regresso de um género
Comunicação apresentada no I Congresso de programação que a RTP já experimentara em
1993 com “Sexualidades”, apresentado por outro
Ibrico de Comunicação, Málaga, Espanha, 7-
psiquiatra, Júlio Machado Vaz.
9 de Maio de 2001. 13
“TV Mais”, 26 de Fevereiro de 1999.
Pinto, Manuel (dir), A Comunicação em 14
“A Bola é Nossa” da TVI tinha como painel
Portugal: 1995-1999 – cronologia e leitura fixo os seguintes comentadores: o jornalista
de tendências. Colecção Comunicação e António Tavares Telles pelo Futebol Clube do
Sociedade, Universidade do Minho, 2000. Porto, o actor Henrique Viana pelo Benfica e o
Pozzato, Maria Pia, Lo spettatore senza fadista João Braga pelo Sporting. “Jogo Limpo”
qualità. Competenze e modelli di pubblico escolheu para comentadores residentes o advoga-
rappresentati in TV. Torino: Nuova Eri, 1995. do Lourenço Monteiro a representar o FCP, o
Tisseron, Serge, L’intimité surexposée. médico Alfredo Barroso como voz do Sporting
Ed. Ramsay, 2002. e Cinha Jardim como representante do Benfica.
“Jogo Falado” da RTP compunha o seu painel com
Veron, Eliseo, “Les publics entre
Pôncio Monteiro pelo FCP, Fernando Seara pelo
production et réception : problèmes pour une Benfica e Santana Lopes pelo Sporting.
théorie de la reconnaissance”. Conferências 15
“TV Mais”, 22 de Maio de 1998.
da Arrábida, 27 a 31 de Agosto de 2001(tex- 16
“TV Mais”, 19 de Fevereiro de 1999.
to policopiado). 17
Em 14 programas, a jornalista abordou temas
ligados ao “modus vivendi” de determinadas faixas
Jornais e revistas etárias ou categorias de pessoas (6 emissões),
saúde (4 emissões), aos problemas afectivos (3
“Expresso”: 15 de Novembro de 1997. emissões) e à situação económica dos portugue-
ses (uma emissão).
“Público”: 20 de Fevereiro de 2003; 3 18
“TV Guia”, 31 de Julho de 1999.
de Janeiro de 2004; 9 de Outubro de 2003. 19
“TV Mais”, 8 de Outubro de 1999.
“TV Guia”: 5 de Outubro de 1996; 29 20
Judite de Sousa entrevistou os seguintes
de Novembro de 1997; 31 de Julho de 1999. políticos: Maria de Belém, ministra da Sade (14
“TV Mais”: 22 de Maio de 1998; 7 de de Janeiro), Durão Barroso, ex-ministro dos
Agosto de 1998; 19 de Fevereiro de 1999; 26 Negócios Estrangeiros (11 de Fevereiro), Manuel
de Fevereiro de 1999; 8 de Outubro de 1999. Dias Loureiro, ex-ministro da Administração
652 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Interna (8 de Abril); e Álvaro Cunhal, ex-Secre- ção de Joana Prado, conhecida por “feiticeira”,
tário-Geral do PCP (6 de Maio). contratada para levar à loucura os concorrentes
21
Margarida Marante teve como polticos os homens (Lopes, 2000).
25
seguintes convidados: o primeiro-ministro António Os dados aqui apresentados são da Marktest
Guterres (14 de Janeiro), o ministro António e foram publicados na edição de 3 de Janeiro de
Vitorino (4 de Fevereiro), o ex-Presidente da Re- 2004 do jornal “Público”.
26
pública Mário Soares (11 de Fevereiro), o pre- Recuando, por exemplo, uma década, a
sidente do PSD Marcelo Rebelo de Sousa (25 de 1993 (primeiro ano de coabitação da RTP com
Fevereiro), e Durão Barroso (6 de Maio). a SIC e com a TVI), encontramos na grelha
22
Em várias emissões, o espaço dedicado à de primavera do Canal 1 dois debates que
entrevista foi substituído pela reportagem. alternam quinzenalmente nos serões de 3ª feira
23
Este programa foi criado para a emissão de (“Marcha do Tempo” e “De Caras”), um “talk-
uma reportagem sobre a operação de dois gémeos show” (“Conversa Afiada”) e um programa de
siameses moçambicanos. Como as audiências respon- desporto (“Grande Área”). Na grelha de Ou-
deram positivamente, decidiu-se pela sua continui- tono, mantém-se o “De Caras”, aparece um
dade. programa de entrevistas (“Maria Elisa”) e
24
A 6/7, fala-se do Programa do Ratinho – surgem dois “talk-shows” que se alternam 5ª
emitido pelo SBT e apresentado por Carlos Massa feira (“Você Excepcional” e “Raios e Coris-
(conhecido pelo nome de Ratinho) –, uma emis- cos”).
27
são que explora o lado mais execrável do quo- “Escândalos e Boatos” e “O Crime Não
tidiano de certos grupos sociais e que conseguiu Compensa” alternavam-se quinzenalmente no
quebrar o monopólio de audiências da TV Globo. mesmo horário, ambos era produzidos por Ediberto
A 3/8, foi a vez de A Tiazinha um verdadeiro Lima, o mesmo produtor do “reality show “O Bar
fenómeno de erotismo da Rede Bandeirantes – da TV”, e faziam parte de um projecto que se
reacender as expectativas. A 24/8, destaca-se a intitulava “Tera em Grande”.
28
apresentadora do “Programa H”, da Rede Ban- Serge Tisseron, L’Intimité Surexposée. Ed.
deirantes, que até poderia ser um vulgar espaço Ramsay, 2001, p.52-3.
29
de música e passatempos, se não tivesse a atrac- “Público”, 9 de Outubro de 2003.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 653

Os sons das cidades, o céu de Lisboa


Fernando Morais da Costa1

1. Introdução musicólogo canadense Murray Schafer, por


exemplo, defende a tese de que as grandes
A análise de O céu de Lisboa (Lisbon metrópoles caminham para ser envoltas em
Story. Dir.: Wim Wenders, Alemanha/Portu- uma massa de sons que cada vez mais é
gal, 1994) que apresentamos, privilegiando comum a todas elas, deixando menos espaço
como seu eixo o som do filme, procura pensar para manifestações sonoras que possam ser
sobre três questões, para este espectador, consideradas específicas de cada lugar.
bastante claras no decorrer da projeção: a O Céu de Lisboa coloca ainda uma
primeira delas, a redefinição dos parâmetros proposição interessante, nossa terceira pre-
de nacionalidade a partir do fenômeno da ocupação, esta relativa ao próprio processo
organização dos países em blocos continen- de filmagem: é possível se construir um filme
tais, supranacionais. O filme se passa na então a partir dos sons, tentando criar uma nar-
recém-criada União Européia, na verdade no rativa que se origine nos registros sonoros,
ano seguinte à sua fundação, em 1993, e sua desconsiderando, neste primeiro momento, as
longa sequência inicial, que mostra o per- imagens? Se for possível, estará acontecendo
sonagem alemão seguindo de carro de sua uma reversão do processo de criação cine-
terra natal até Lisboa, expõe claramente os matográfica, uma vez que, via de regra, a
questionamentos próprios do cidadão que imagem precede o som em todos os momen-
passa a viver segundo novos paradigmas que tos, desde a decupagem até a finalização.
reconfiguram a sua nacionalidade, ou, a
recente supra-nacionalidade. A partir daquele 2. Os sons das cidades
momento, se é alemão, mas também habi-
tante da comunidade européia, e, por con- Antes de nos determos no filme, convém
seguinte, ao atravessar a Europa, se está dar um espaço um pouco maior ao raciocínio
saindo do seu país, mas ao mesmo tempo de Murray Schafer, quando afirma que o
não se sai da nova comunidade criada. ambiente sonoro caminha para se tornar
O personagem, técnico de som direto, está idêntico no mundo todo (Schafer, 1992,
indo a Lisboa, a pedido de um diretor, captar p.198). Esta afirmação, alarmante para o
sons para um filme a ser rodado lá. Na insólita próprio autor, partiu de uma viagem ao
condição de lá se encontrar sozinho, tem que Oriente Médio que fazia parte de sua ampla
procurar por sons característicos da cidade, pesquisa de mapeamento da “paisagem so-
o que dá nova forma a seus questionamentos nora”, sua denominação particular para o
sobre a identidade européia que está sendo ambiente sonoro, de vários lugares espalha-
reafirmada. Este desdobramento também nos dos pelo mundo, partindo de seu Canadá
leva à segunda questão: em que medida nos natal, Vancouver especificamente. Ao desco-
centros urbanos, como Lisboa, se encontram brir que os sons nas ruas das grandes cidades
sons particulares do lugar, que sejam signos do oriente médio em grande parte eram
de uma cultura local; por outro lado, quanto similares àqueles de cidades européias ou
os sons das grandes cidades contemporâneas americanas, ou ainda, que estavam se tor-
são similares, indistintos? Certamente, a nando gradativamente mais parecidos, Schafer
música portuguesa, pela qual o personagem entende a construção diária, cotidiana do
alemão literalmente se apaixona, é uma marca ambiente sonoro nas grandes cidades do
identitária. Mas em que medida sons urba- terceiro mundo como mais um efeito da
nos, ruídos da cidade como o tráfego de globalização homogeneizante. “Também os
Lisboa, são característicos do local? O imensos ruídos de nossa civilização são mais
654 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

uma continuação cruel da mesma ambição contado dezessete aviões passarem sobre o
imperialista”, diz o canadense (ibdem). prédio e sobre o silêncio dos visitantes.
No seu Diário de sons do Oriente Médio É evidente que o relato do canadense
(idem, p. 196-205) Schafer dá vários exem- sobre Istambul, Teerã e Atenas, e as conclu-
plos de como sons urbanos comuns a qual- sões tiradas dessas visitas, se aplicam ao caso
quer metrópole fazem submergir, por sua de qualquer grande cidade, e o Rio de Janeiro,
maior potência, manifestações sonoras que onde é produzido este texto, assim como
podem ser identificadas como marcas locais. Lisboa, onde será lido, não são exceções. Do
Segundo sua descrição, sons característicos sexto andar de um edifício localizado em uma
de Istambul, como os pregões dos vendedo- rua de um bairro central de uma cidade
res nas ruas, brigam por espaço com o tráfego vizinha ao Rio de Janeiro, ouvem-se, enquan-
cada vez mais intenso, com “o número to se escreve, onze da manhã de uma quarta-
inacreditável de carros”, como diz o cana- feira: os mais variados motores dos carros
dense, cuja poluição sonora é exacerbada pelo e motocicletas que passam lá embaixo, na
hábito de buzinar de forma inclemente. Aos rua; um ou outro avião; uma buzina no
sons do trânsito turco Schafer faz uma res- momento em que escrevia a palavra avião;
salva, lembrando que uma tradição perma- o trânsito mais longínquo, que na verdade
nece em meio aos carros, e abranda a vi- envolve o ambiente como uma massa uni-
olência de seus ruídos: trata-se do transporte forme, de menor intensidade, mas
a cavalo, em cujas carruagens ouvem-se não onipresente, ao fundo; mais ao longe, um cão.
buzinas, mas sinos, certamente menos vio- São pouquíssimas as manifestações vocais de
lentos do que aquelas, e que servem como quem passa, posto que em uma rua ruidosa
lembretes de que os sons nas ruas têm ficado a maioria das pessoas passa em silêncio, ou
mais intensos, mais volumosos e mais agres- por estar desacompanhada, ou por preguiça
sivos com o passar do tempo. Um sino tinha, de fazer o esforço suficiente para competir
e ainda tem, a mesma função da buzina, com os motores, utilizando o instrumento
porém soando com menos rudeza. mais frágil que são as cordas vocais. Quantos
Visitando construções basilares da cultu- desses sons podem ser considerados carac-
ra do oriente próximo, Schafer descreve como terísticos do lugar onde vivo, marcas
o som de seus interiores ainda escapa, com identitárias do Rio de Janeiro? Quantos
maior ou menor sucesso, da interferência dos poderiam estar, indistintamente, em qualquer
ruídos externos. Ou seja, como o silêncio grande cidade?
projetado para ser o receptáculo da tradição
no interior dos lugares sagrados consegue 3. O céu de Lisboa
permanecer imaculado, ou não, pelos ruídos
apátridas dos motores, do tráfego, etc. O Na sequência inicial do filme, espécie de
canadense, em visita à famosa mesquita Shah prólogo no qual o personagem se dirige em
em Isfahan, no Irã, é testemunha do prazer seu carro para Lisboa, temos sobre as ima-
auditivo de se poder ouvir, estando gens das estradas e das alfândegas, todas
exatamente sob a cúpula principal, o eco sete vistas do que seria o ponto de vista do
vezes repetido de qualquer som que ali se motorista, uma grande colagem de sons,
produza. Já a relíquia arquitetônica que é o apresentados como se estivessem vindo do
antigo capitólio persa de Persépolis, situado rádio do carro, e que mudam à medida que
no alto de uma colina, se encontra envolta o motorista passeia pelas estações. Ouve-se
no zumbido constante de motores de gera- de início um noticiário em alemão. Mais à
dores e dos caminhões que passam nas frente, notícias em francês; música eletrônica;
montanhas próximas. No caminho de volta, música pop, em inglês; música clássica; hip
na Grécia, Schafer comenta ironicamente que hop francês. Já no fim da viagem, música
na Acrópole de Atenas há um aviso no qual pop em espanhol. Por duas vezes, entram
se lê: “Este é um lugar sagrado. É proibido brevemente canções do grupo português
cantar ou fazer barulho de qualquer tipo”. Madredeus, personagem do filme. Sobre essa
Enquanto a visitava, o canadense diz ter colagem do rádio, duas observações: primei-
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 655

ro, enquanto as imagens das estradas, vistas de música pop em inglês. Não é de se
de dentro do carro, não oferecem indicações imaginar que um carro no seu trajeto da
de onde o personagem está, uma vez que Alemanha para Portugal tenha passado pela
grandes rodovias e postos de pedágio ou Inglaterra, portanto este também não é um
alfândega são uniformes em quase qualquer caso de correspondência geográfica e sono-
lugar, a ordem a partir da qual os sons são ra. O que ocorre é que a música pop feita
montados corresponde ao trajeto da viagem. em língua inglesa tem, e isso não é novidade
Ou seja, os sons das rádios são responsáveis nem fenômeno recente, alcance mundial. Pode
por uma sutil construção do espaço geográ- ser facilmente ouvida em rádios não só de
fico da viagem. Um carro partindo da Ale- países da Europa ocidental, mas em rádios
manha para Portugal deve, seguindo o ca- da maioria dos países do mundo. Assim,
minho mais lógico, sair da Alemanha, cortar dentro da colagem sonora arquitetada por
a França, passar pela Espanha, e, deixando Wenders para o prólogo de seu filme, há um
esta, entrar no território luso. Enquanto vemos embate, ocorrendo no centro da Europa, em
imagens que do ponto de vista da identifi- 1994, entre sons, transmitidos via rádio, que
cação dos lugares são praticamente aleató- trazem forte marca nacional, reconhecíveis
rias, a ordem das estações de rádio corres- no primeiro instante de audição, e sons que
ponde à seqüência lógica das estradas: ou- não se enquadram tão facilmente na idéia de
vimos notícias em alemão, ainda não deixa- pátria, sendo, ao contrário, mais simples de
mos a Alemanha; escutamo-las em francês, se diagnosticar neles a ausência dessa noção.
e ouvimos música francesa, o carro está em Além da colagem a que nos referimos,
rodovias francesas; a rádio toca música um som é proeminente nestes primeiros
espanhola, já estamos na Espanha, e em breve minutos de filme, a voz over do personagem
estaremos em Portugal. Dentro desse raci- principal, o motorista, Phillip Winter, técnico
ocínio, a segunda observação, que na ver- de som para cinema a caminho de Lisboa.
dade são duas ressalvas: as duas inserções As palavras de Winter tratam de explicitar
de músicas do Madredeus não obedecem a as questões propostas sutilmente pelas esta-
esta lógica, e sim a outra, também aferível. ções de rádio. Winter começa sua narração,
Elas simplesmente aparecem quando os em alemão: “Europa sem fronteiras. Os
créditos iniciais, que atravessam a sequência, guardas nos deixam passar com facilidade.
mencionam o grupo, uma vez pela autoria Ninguém quer ver meu passaporte? Ou pelo
da trilha musical, outra pela presença de sua menos minha mala?”. Ouve-se algumas das
vocalista, Teresa Salgueiro, como atriz. A rádios já mencionadas, passam alguns planos
outra ressalva, mais complexa e mais inte- de estrada, e, após algum tempo, Phllip
ressante, se deve ao fato de haver inserções retoma: “A Europa está crescendo. Virou um
musicais que não traduzem claramente uma só país. As línguas, as músicas, os notici-
idéia de nacionalidade. Repare-se que este ários são diferentes. Mas e daí? A paisagem
é um pressuposto que acompanhou a lógica é sempre a mesma. Conta sempre a mesma
que expusemos: tratava-se de rádios alemãs, história de um velho continente cansado de
francesas, espanholas, transmitindo notícias guerra.” Terminará sua narração em voz over
e músicas de seus respectivos países. A carregado de ironia: “Sinto-me em casa. Esta
música eletrônica instrumental, porém, não é minha pátria.” Estas últimas palavras, as
permite ao primeiro contato dizer de onde pronuncia em vários idiomas, a começar pelo
ela vem, posto que está habilmente inserida seu alemão natal: “Das hier ist mein
nos pressupostos gerais de mercadoria que heimatland. Ma patrie. La mia patria. My
relativiza a idéia de fronteiras nacionais. A home country… My home country”, repete
música que se ouve no rádio do carro poderia, o inglês ao fim. Corre o primeiro ano da
sinceramente, ser produzida na Inglaterra, União Européia, e a viagem que atravessa
onde o fenômeno da música eletrônica da parte dos países que constituem o Mercado
década de 1990 eclodiu, na França, na Comum Europeu é o pretexto para que um
Alemanha, em qualquer nação da Europa cidadão alemão, Wenders através de Winter,
ocidental, ou mesmo nos Estados Unidos ou externe a estranheza de ter tido as fronteiras,
no Brasil. Da mesma forma funciona o trecho dentro das quais ele se entende parte de uma
656 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

nação, alargadas. Um habitante de um país Chegando ao seu destino, a casa de Fritz,


central da Europa experimenta os novos o diretor que lhe convidara a Lisboa para
limites de sua cidadania, que agora se es- captar os sons de seu filme, encontra-a vazia.
tendem à ponta do continente, ao Oceano O alemão não está lá. Aparece-lhe um menino
Atlântico, onde desemboca, como ele está português, que foi designado pelo diretor
para notar, o Tejo. Um rio que não lhe diz ausente para ser seu guia. O jovem portu-
muito, embora, como ele também está por guês, Zé, fala um bom inglês e registra tudo
perceber, seja fundamental para a formação a sua volta em sua câmera de vídeo. Ao andar
da identidade de seus mais novos co-irmãos, até a varanda, percebe que dela se vê o Tejo.
os portugueses, e não só para eles. Está no coração de Lisboa. De volta ao lado
O longo prólogo chega ao fim, marcado de dentro, descobre que junto com Zé estão
pela inversão do eixo da câmera, que a partir outras crianças, para distraí-lo durante a
de agora enquadra o motorista dentro de seu espera pelo alemão. A comunicação com as
carro. De forma correspondente, sua voz crianças por palavras não é fácil, misturando
também passa a estar em quadro, deixando o pouquíssimo português de Winter, com os
de ser uma voz over, para estar em diálogos em inglês dele com Zé, e a falta
sincronismo com o personagem que agora de comunicabilidade mais ampla com as
vemos. Ao se aproximar da fronteira da outras crianças. Uma ou outra fala uma ou
Espanha com Portugal, Winter ouve fitas outra palavra em inglês, mas não dominam
cassete com aulas de português. A fita tem a língua. Lembre-se que o inglês não é a
um diálogo de perguntas e respostas para que primeira língua de nenhuma daquelas pes-
o aluno o repita: “É português? Sou estran- soas. A comunicação se dá com mais sucesso
geiro” (Winter repete a pergunta, e repete que por meio de outros sons, que não palavras.
é estrangeiro, forçando o chiado dos esses, Por trás de uma parede, para mostrar suas
como é habitual nos estrangeiros que come- habilidades de sonoplasta, e para testar a
çam a aprender português). “É inglês?” inteligência das crianças, o alemão produz
Pergunta a fita, e Winter repete a pegunta. sons através dos quais conta uma história,
“Não, sou francês”. Winter: “Não, sou franc... a ser compreendida pelos jovens: há um
Não! Sou alemão!” Percebendo a cavalo, sobre ele um caubói, que acende um
intencionalidade no diálogo em português. fósforo, que faz uma fogueira, que frita um
“Assim não vou aprender nunca”, irrita-se. ovo, quando aparece um leão, ao que o caubói
Os primeiros planos de Lisboa se apre- foge. Tudo adivinhado sem problemas pelas
sentam antes da chegada do personagem. crianças, que gritam as respostas misturando
Vemos, em alguns planos do mesmo lugar, português e inglês. Pela ausência de fron-
o amanhecer no cruzamento de ladeiras em teiras no significado dos ruídos, a comuni-
que Winter descerá do caminhão. Passam cação ultrapassa os limites nacionais da língua
elétricos sobre os trilhos, e logo, o alemão falada. Winter e as crianças estão agora
está pondo os pés em Lisboa. Essas ladeiras, próximos o suficiente para que elas o ajudem
com as construções antigas, e com os trilhos na espera por Fritz, Friedrich, ou Frederico,
dos elétricos constituem a primeira imagem como o chamam os jovens portugueses.
onde se percebe signos portugueses, imagens Na casa se encontra a moviola onde Fritz
pelas quais é possível, caso o espectador tenha já editou parte do material filmado. São
o manancial para tanto, reconhecer Portugal. imagens características do que permanece de
Até este momento, as paisagens interioranas antigo em Lisboa. O elétrico, uma estação
retratadas poderiam ser de quase qualquer de trem, os bairros antigos. Phillip Winter
interior rural da Europa. Curiosamente, tam- precisa ver as imagens para saber quais sons
bém o som não tinha tratado de inserir no deve captar, uma vez que o diretor, que lhe
filme a especificidade da língua portuguesa, explicaria como trabalhar na misteriosa vi-
posto que os dois personagens lusitanos que agem, não se encontra. É interrompido em
tinham cruzado o caminho de Winter tinham seu exame das imagens por uma música que
permanecido mudos, tanto o camponês quan- lhe parece estar próxima, que aparenta vir
to o dono do caminhão. de dentro da própria casa. Wenders constrói
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 657

com sucesso alguns instantes de suspense, Quando seu aparato está montado e o técnico
enquanto Winter anda lentamente pelos de som está pronto para começar a gravar
cômodos escuros da casa semi-fechada, pela primeira vez, Wenders faz com que
demorando-se em descobrir a fonte do som, ouçamos o que o técnico de som ouve através
uma canção facilmente identificada como de seus fones. Estamos ouvindo o que ele
tendo raízes na música tradicional portugue- ouve e grava. Nosso ponto de escuta é
sa. Winter chega ao outro lado da grande casa, exatamente o mesmo do personagem, e, ainda,
onde está ensaiando o grupo Madredeus, cujos o mesmo de seu microfone.2 De início, são
integrantes representam a si mesmos no filme. sons indistintos de cidade grande: um certo
Ouvira pela casa o instrumental onde se ruído de tráfego, um avião, passos, pombos,
sobressaiam os violões de Pedro Ayres burburinhos de pessoas. Neste último grupo
Magalhães e José Peixoto. Chegando à porta de sons há pelo menos uma marca identitária:
do cômodo onde o ensaio acontece, ouve a língua, posto que a conversa entreouvida
também a voz de Teresa Salgueiro. Teresa acontece em português.
cumprimenta a meia luz, em um intervalo, Phillip se interessa por sons que tragam
seu único espectador. A fascinação se esta- em si particularidades de Lisboa: o elétrico,
belece em Winter. Descobre que a casa em com seu som complexo, composto pelas
que está instalado é onde o Madredeus ensaia, campainhas, pelo passar pesado sobre o trilho,
e que o grupo está trabalhando na música pelos estalos ao deslizar pelo cabo; um barco
do misterioso filme. O Madredeus continua que dá a partida Tejo afora. Mais tarde,
seu ensaio, e Phillip está fascinado. Seu encontrará um belo exemplo de som tradi-
fascínio tem um centro: a voz e a presença cional: um amolador ambulante, que se faz
de Teresa Salgueiro. anunciar com sua bicicleta e seu apito ca-
Essa sequência do primeiro contato do racterístico, que antecede o pregão em por-
técnico de som alemão com a música por- tuguês. Gravará os sons da água em uma
tuguesa é ilustrativa do seguinte pressuposto, fonte, de um engraxate. Está tentando encon-
um tanto quanto óbvio: é mais fácil iden- trar nos ruídos o que encontrara na música:
tificar na música sons que tragam marcas manifestações intrínsecas a Lisboa. Gravará
identitárias da cultura de um lugar do que ainda, dentro de casa, um momento de si-
em outras matizes sonoras, como, por exem- lêncio, identificado na gravação como “o som
plo, nos ruídos (a gravação dos sons de Lisboa de Fritz ausente”. Habilmente, na seqüência
por Winter, que no filme começa na próxima a esse silêncio há os sons intensos do bonde
sequência, demonstrará essa dificuldade com em primeiro plano, correspondentes a um
relação e eles). Se os sons de cada grande plano de detalhe das mãos do condutor, com
cidade trazem cada vez menos as marcas o qual se inicia uma sequência de Winter
culturais do lugar, e, portanto, fascinam cada dentro do veículo. Pelo contraste com o ruído
vez menos o ouvido atento, a música, por volumoso, Wenders chama atenção para o
sua vez, sempre que traga elementos da silêncio do momento anterior.
tradição local, é um depositário dos sons De volta à casa, vê mais imagens de
específicos de cada lugar, dos sons que Lisboa captadas por Fritz: um aqueduto, e
garantem a resistência da identidade, no caso, uma obra, os homens trabalhando com suas
portuguesa. E por marcarem essa identidade, marretas, britadeiras, picaretas. Em sua es-
essa diferença da produção homogeneizada, pera ociosa por Fritz, está lendo o que
fascina os ouvidos que ainda não a conhe- encontra na casa: uma antologia de Fernando
cem, os ouvidos estrangeiros, os ouvidos de Pessoa traduzida para o inglês. Detêm-se
Winter. sobre um verso, o verso inicial de um poema:
Phillip Winter sai para trabalhar. Sem um “I listen without looking and so see”3. Numa
roteiro do que gravar, procurará gravar sons das paredes, há outro verso, pichado no
de Lisboa quase a esmo, guiado apenas pelo original em português, que no início de sua
que viu das imagens de Friedrich. Neste estada pedira para Zé, o menino, traduzir:
momento, Wenders engendra uma forma de “Ah, não ser eu toda a gente e toda a parte”4.
estabelecer uma grande identificação entre o Winter vira um aqueduto nas imagens
espectador e seu personagem principal. feitas por Fritz, e, com a ajuda de seu guia
658 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

juvenil, Zé, vai até ele, para ouvir quais sons sem controle. A voz de Friedrich que agora
do local pode captar. Lá no alto, Zé o informa passa a estar presente no filme instaura uma
que o interesse de Fritz em filmar aquela dubiedade na narrativa. O personagem de
região estava em registrar, lá de cima, as casas várias formas ainda não está presente, Phillip
e vilas antigas que estavam para ser postas segue sem encontrá-lo, ainda não o vimos,
abaixo com a construção de uma nova ro- mas ele já está presente pela sua voz,
dovia (a tal obra que vinha na sequência da acusmática, segundo o conceito de Michel
montagem do alemão). Fritz queria guardar Chion, ou seja, a voz que se ouve sem que
em imagens a memória das casas. Descendo o corpo que a produz esteja em cena.5 Após
às vilas, Phillip encontra um morador essa introdução do personagem apenas pela
registrado em plano próximo nas imagens que voz gravada nas fitas, Wenders segue fazen-
vira, e, reconhecendo-o, decide pegar um do a apresentação de seu misterioso perso-
depoimento seu, acabando por gravar, em nagem de forma inusitada. Winter acha tê-
português, a sua história de vida (tinha sido lo visto em um café. Começa uma persegui-
sapateiro, eram muitos irmãos, por isso tra- ção em planos gerais das ladeiras pelas quais
balhara desde muito novo, etc). Grava seus o suposto Fritz caminha. Antes de termos um
próprios passos numa escadaria, que, supõe, plano próximo, que identificaria o persona-
pode deixar de existir. Seus passos são gem, ouvimos sua voz colocada sobre os
invadidos por uma buzina do trânsito pró- planos gerais, voz que, entenderemos em
ximo, o que o irrita. Quer preservar os sons breve por meio de um plano de detalhe, ele
do bairro antigo, mas eles já estão invadidos próprio grava enquanto anda. Seguimos
pelos ruídos impessoais do tráfego. Verá, e durante um tempo ouvindo a voz sem ter
ouvirá, na sequência, que no fim da esca- certeza de sua fonte, se está sendo pronun-
daria passa um trem, moderno, barulhento. ciada naquele momento da história ou se é
Winter descobrirá, após novo encontro uma voz over, se está em quadro ou não.
com o Madredeus, que Fritz tem editada uma Winter o alcança, e percebemos que o que
seqüência sobre o bairro da Alfama, e que ouvimos vem sendo pronunciado, e gravado,
para aquela sequência o Madredeus compôs pelo alemão naquele mesmo momento. Ten-
uma canção homônima ao bairro. Tendo lhe do funcionado a brincadeira de Wenders,
sido dada esta pista de roteiro, gravará sons estivéramos ouvindo, por vários planos, uma
característicos das pequenas vilas e ladeiras voz sincrônica, em quadro, tratada como voz
do bairro, correspondentes às imagens que over, graças à diferença de escala entre os
vira na moviola de Fritz. Ali, no bairro antigo, sons e as imagens. Ouvíamos a voz em
os sons nos quais uma certa essência da velha primeiro plano, enquanto o personagem era
Lisboa, em seu raciocínio romântico, parece mostrado à extrema distância. Essa relação
emanar são mais fáceis de encontrar. Grava, de voz em primeiro plano com imagens em
por exemplo, as lavadeiras, que esfregam a plano geral caracteriza um uso padrão da voz
roupa suja em tanques nas calçadas. Phllip over, e é com a inversão desse procedimento,
Winter segue fiel à sua procura dos sons ou seja, uma voz sincrônica tratada dessa
característicos da cidade, mas parece forma, que Wenders brinca.
desconsiderar a sugestão de Fernando Pessoa Finalmente havendo o encontro entre o
que interessou Fritz a ponto deste destacá- diretor e o técnico de som, Fritz explica
la no livro: ouvir sem olhar. Desligar os sons melhor o seu projeto, assim como a falha
da, tentadora por que fácil, correspondência deste. Pretendia captar em imagens a velha
com as imagens. Winter tem como roteiro Lisboa, encarando a tarefa como um projeto
dos sons que deve gravar apenas as imagens assumidamente político, tomando a cidade
que já vê prontas. Mais ainda, tentará, sem antiga como um paradeiro da resistência
qualquer sucesso, fazer a sonoplastia da contra a modernização do velho continente.
imagens, dublando as ações enquanto vê as Não conseguira. Rodara, rodara e não cap-
imagens na moviola. tara, como ele a chama, a essência da cidade.
Mais tarde, descobrirá fitas gravadas onde “A cidade parecia se afastar”, diz ele. Cha-
Fritz fala de seu projeto. Sua premissa está mara Winter pois alimentava a ilusão de que
em andar a esmo com a câmera gravando o som daria conta da empreitada, onde as
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 659

imagens pareciam falhar. Como Winter Winter, revertendo a situação anterior. Vol-
percebera, também com o som não era tão tarão a fazer filmes da forma tradicional,
simples. A tese de Fritz era de que as imagens como mostram as sequências finais. Mas e
cada vez mais passaram a estar a serviço de quanto ao som? O que pode fazer a gravação
vender, e não de mostrar, e que esse modo de sons pela representação da, assim chama-
mercantil de produzi-las já estava assimilado da, essência da velha Lisboa, e a que con-
de modo quase irrefutável. Assim, chegara clusão chega a busca de Winter pelas ruas
à radical conclusão de que apenas uma da capital portuguesa? Wenders parece apro-
imagem produzida sem que se visse o que veitar o fechamento da porção romântica do
estava sendo captado estaria livre desse seu enredo, um último encontro, ainda
potencial de ser um instrumento de venda, platônico, de Phllip com Teresa Salgueiro,
pois não se pode vender aquilo que não se ela de volta da longa ausência provocada por
sabe o que é. Filmara a cidade sem ver o uma turnê no Brasil, para reafirmar o que
que filmava, com a câmera nas costas, virada a própria presença do Madredeus no decor-
para trás enquanto andava. A referência a rer do filme já fizera intuir. Antecipando o
Dziga Vertov, com relação à confiança de- encontro, como se dissesse que Teresa está
positada na câmera quanto ao registro do por aparecer, a música do grupo é colocada
cotidiano, é tornada explicita: “achava que sobre as imagens de Winter descendo uma
podia andar filmando em preto e branco por escadaria. Essa última presença da música
esta cidade velha, como Buster Keaton em parece dizer mais uma vez: mais fácil e mais
The cameraman. O homem com a câmera. direto é encontrar na música tradicional os
E viva Dziga Vertov!”6 sons que guardam e reverberam a história
Winter se mostra menos cético com de um lugar. Porém, Wenders mostra no
relação à presumível morte da essência decorrer do filme, através das gravações de
informativa da imagem, que haveria cedido Winter, que ruídos também podem, ainda,
lugar à exploração inexorável suas propri- produzir o mesmo efeito, embora haja uma
edades mercantis. Grava sua própria voz em disputa pelo espaço que sons tradicionais de
uma fita para Fritz, na qual aconselha-o a um lugar conseguem ocupar frente a uma
voltar a produzir imagens olhando-as de uniformização crescente dos ambientes so-
frente. Agora é Fritz quem apenas ouve noros das cidades.
660 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Bibliografia Junho de 1914, e que narra o fascínio do poeta


com a velocidade e com a pluralidade de estí-
Chion, Michel. Audio-vision: sound on mulos da metrópole moderna.
5
Acusmática, ou acusmático, é uma tradução
screen. New York: Columbia University
nossa para acousmatiques, o termo usado por
Press, 1994.
Chion em francês. A palavra francesa significa
________. The voice in cinema. New “sons invisíveis”, e viria do grego akousma. Sua
York: Columbia University Press, 1999. origem estaria ligada aos pitagóricos. Os segui-
Pessoa, Fernando. O eu profundo e os dores daquela Ordem ouviriam os ensinamentos
outros eus. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, do mestre por trás de uma cortina, para que sua
1980. imagem não os distraísse da mensagem. (Chion,
Schafer, Murray. O ouvido pensante. São 1999, p.18-19) Assim, haveria no cinema várias
Paulo: Edusp, 1991. situações em que um som poderia ser classificado
Vertov, Dziga. “Nascimento do Cine- como acusmático, sua fonte não estando visível.
No caso desse som ser uma voz, o personagem
Olho”. In: XAVIER, Ismail. A experiência
que fala pode estar simplesmente escondido em
do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1991. p. algum lugar onde se passa a ação; pode estar
260-266. presente, como Fritz, por meio de aparelhos de
__________. “Resolução do conselho dos reprodução da voz; ou pode não estar naquele
três em 10-04-1923”. In: XAVIER, Ismail. espaço diégetico, caso de vozes over, apenas para
A experiência do cinema. Rio de Janeiro: citar situações mais comuns.
6
Graal, 1991. p. 252-259. Realmente, lembrando os pressupostos que
guiavam o “Cine-olho” de Vertov, percebe-se que
a semelhança é grande, bem como a importância
_______________________________ do legado do polonês (sim, polonês e não russo)
1
Departamento de Cinema da Universidade para Wenders na construção da narrativa. Em
Estácio de Sá; doutorando em Comunicação pela Resolução do conselho dos três em 10-04-1923,
Universidade Federal Fluminense. Vertov ressalta a importância da câmera “que se
2
Michel Chion comenta o conceito de ponto recusa a usar o olho humano como lembrete”.
de escuta, como fenômeno análogo, no que diz No cinema, antes do Cine-Olho, dizia ele, “a
respeito ao som de um filme, ao de ponto de vista. câmera era uma imitação imperfeita do olho”.
Assim como escuta subjetiva estaria para o plano Sua confiança no aparato mecânico é tal que
subjetivo (Chion, 1994, p.89-91). chega a propor que o aparelho funcione “liberto
3
Primeiro verso do poema: Ouço sem ver, do cérebro estratégico do homem que dirige”.
e assim, entre o arvoredo /Vejo ninfas e faunos O Cine-Olho propunha, em seus termos, o seu
entremear/As árvores que fazem sombra ou medo próprio “eu vejo”, e a organização estrutural das
E os ramos que sussurram de eu olhar/Mas que imagens se daria apenas na montagem. (in:
foi que passou? Ninguém o sabe/.Desperto, e ouço Xavier, 1991, p. 252-259). Em outro documento,
bater o coração – Aquele coração que não cabe/ Nascimento do Cine-Olho, Vertov cunha uma
O que fica da perda da ilusão. Eu quem sou, que frase que parece poder ter inspirado diretamente
não sou meu coração? 24/09/1932. Fritz, o diretor dentro do filme de Wenders: “Por
4
Verso final do longo, eis por que não o Cine-Olho entenda-se o olho que não vê (idem,
transcrevo, Ode Triunfal, escrito em Londres, em p. 261).
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 661

Personalização de Conteúdos Multimédia.


Análise aos atributos relevantes para a sua anotação
Inês Oliveira1

Organização do Documento
Introdução
Na secção 2 são apresentadas as defini-
Com o aparecimento dos acessos de banda ções de conteúdo e contexto, segundo a pers-
larga, a globalização da informação multi- pectiva da análise de conteúdos. Na secção
média tornou-se uma realidade incontestável. 3 é discutida a sua aplicação actual no âmbito
No entanto, embora se verifiquem avanços da multimédia, e no seu seguimento, a secção
tecnológicos significativos, nomeadamente 4 apresenta algumas sistemas e abordagens
nas taxas de compressão, na velocidade e actualmente existentes. Na secção 5 é ana-
capacidade das redes, persistem dificuldades lisada a aplicabilidade da contextualização à
na recuperação da informação audiovisual recuperação de conteúdos multimédia. Final-
[Qun 2001, Dimitrova 2002]. mente, nas secções 6 e 7, encontram-se as
A complexidade é introduzida por algu- conclusões e as referências.
mas das qualidades intrínsecas à informação
audiovisual, nas quais se incluem a elevada Conteúdos e contextos – Os conceitos da
quantidade de dados, a diversidade de estru- análise de conteúdos
turas e heterogeneidade de tipos de media,
mas sobretudo pela própria subjectividade da A necessidade de contextualização dos
indexação. Na verdade, embora exista um conteúdos é apresentada por Krippendorff
conjunto diversificado de convenções e for- [Krippendorff 2004] a partir da sua definição
matos com meta-dados [Koenen 2001, AAF de conteúdo como algo que emerge do
2002, Pro-Mpeg 2002] que abrangem um processo de análise de um “texto”2 relativa-
leque alargado de atributos, a indexação mente a um contexto particular. Esta abor-
mantém-se subjectiva, quer seja manual ou dagem fundamenta-se essencialmente nos
automática: seguintes aspectos que caracterizam os “tex-
• quando é manual, reflecte frequente- tos”:
mente a subjectividade de quem anota; • os seus significados são sempre rela-
• quando é automática, espelha as pro- tivos a contextos, discursos e objectivos par-
priedades da informação consideradas rele- ticulares;
vantes por quem programa. • não têm qualidades independentes dos
Por esta razão, a probabilidade da “leitores”, e portanto não têm um significado
indexação reflectir os critérios pelos quais único que possa ser descoberto, identificado
os utilizadores pesquisam e personalizam os ou descrito;
seus conteúdos torna-se reduzida. • não “contêm” ou “possuem” os signi-
Uma alternativa para aumentar a relevân- ficados, uma vez que estes informam os
cia dos atributos utilizados para indexar vídeo leitores, invocam sentimentos e provocam
passa pela sua contextualização e mudanças comportamentais.
personalização. A questão da contextualização O contexto é aliás parte integrante da
dos conteúdos tem vindo a ser estudada com framework para a análise de conteúdos
algum detalhe no âmbito das técnicas de sugerida por Krippendorff (Figura 1).
análise de conteúdo, sendo considerada uma
componente importantíssima da análise. Par- Conteúdos e contextos em multimédia
tindo deste conceito, será discutida neste artigo
a sua aplicabilidade no âmbito da anotação Na área de multimédia o entendimento
e recuperação de conteúdos multimédia. de conteúdo é sobretudo que este é inerente
662 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Figura 1 - A framework da análise de conteúdo por Kripendorff

ao formato, dai ter-se apostado no desenvol- contendo segmentos de vídeo textualmente


vimento de algoritmos de processamento e anotados.
extracção de características da informação
audiovisual [Oliveira 1997, Zhao 2002]. O Abordagens e sistemas existentes
esforço efectuado tem-se centrado em con-
seguir uma representação objectiva e Nesta secção descrevem-se algumas
consensual do conteúdo do vídeo [Davis aproximações que de formas diversas permi-
1995]. tem reduzir a distância entre os contextos da
No que se refere à questão propriamente anotação e pesquisa.
dita da contextualização, esta tem sido abor-
dada por diversas vezes na área de multi- Ontologias
média, mas sobretudo relativamente à
temporalidade do vídeo. Davenport et al. A criação de ontologias (http://
[Davenport 1991], por exemplo, apresentam www.w3.org/2001/sw/WebOnt) procura no
já o contexto como o significado adicional âmbito da anotação garantir que conteúdos
representado no shot 3 com base na sua semanticamente semelhantes sejam cruzados,
adjacência com outros shots ou relacionado mesmo quando descritos por sujeitos distin-
com o domínio de conhecimento. Posterior- tos com vocabulários distintos. Isto permi-
mente, Davis [Davis 1995] fala do tiria por exemplo que uma anotação fosse
distanciamento do contexto de utilização pesquisada por critérios semanticamente
relativamente à anotação utilizada pelos semelhantes, mas não iguais.
editores de vídeo. Este autor sublinha a No entanto, as ontologias não resolvem
influência da montagem na semântica do a questão dos diversos grupos de interesse
vídeo, e constrói uma linguagem para ano- que podem criar e pesquisar meta-dados
tação icónica, mas que se destina unicamente segundo conceitos e objectivos distintos.
a representar os aspectos semanticamente Neste âmbito Shabajee et al. [Shabajee 2002]
invariantes da informação, isto é, indepen- apresentam uma abordagem com base em
dentes de contexto. comunidades de interesse, descrita no ponto
Butler et al., [Butler 1996] definem tam- seguinte.
bém contexto, ordem e significado no sen-
tido temporal do termo, apresentando o Anotação comunitária
sistema LIVE. Este sistema destina-se à
construção de sequências de vídeo com A identificação das várias comunidades
significado a partir de uma base de dados de interesse, que poderão aceder ao um
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 663

determinado repositório de informação irá A qualidade da informação a que os


permitir ajustá-lo melhor às suas necessida- utilizadores terão acesso, estará dependente
des específicas. Shabajee et al. [Shabajee do tipo de anotação.
2002] propõem ainda que essas comunidades
efectuem as suas próprias anotações. Para Normas e formatos com meta-dados
resolver o problema da qualidade, fiabilidade
e relevância permitem quatro modos de Apresentam-se de seguida algumas nor-
anotação, relacionados com diferentes tipos mas e formatos com meta-dados, que con-
de acesso: tribuem de forma importante para a unifor-
• Comunidades de Confiança (Trusted): mização da anotação.
organizações que fornecem e validam infor-
mação e que se consideram seguras sob o DCMI - Dublin Core Metadata Initiative
ponto de vista da validade e relevância. O DCMI (http://dublincore.org) é um
• Comunidades Moderadas: organiza- fórum aberto para o desenvolvimento de
ções que fornecem e validam informação, normas interoperáveis de meta-dados que
sendo responsáveis pela sua própria mode- suportem um conjunto alargado de objecti-
ração e administração, por exemplo através vos e modelos de negócio.
de um moderador de forma similar a um Um dos princípios pelos quais esta norma
fórum moderado. se rege faz alusão à problemática dos con-
• Anotações Abertas: Podem ser feitas por textos de utilização e anotação: “As boas
qualquer utilizador, e ser moderadas ou não. práticas para um dado elemento ou
• Anotações de Terceiros: Possibilidade qualificador podem variar com o contexto,
dos utilizadores produzirem sites externos com [...] O requisito de utilidade para a sua
as suas próprias anotações, sobre os conteú- pesquisa não deve por isso ser esquecido”.
dos do sistema, não existindo neste caso um Os termos principais que são utilizados pelo
controlo efectivo sobre essa informação. DMCI são os seguintes:

MPEG - Moving Picture Experts Group rentes tipos de conteúdo e formas de nave-
O MPEG é uma família de normas não gação, permitindo dependências do contexto
proprietárias de compressão de vídeo. Den- em termos de temporais e espaciais.
tro destas, o MPEG-7 convenciona mecanis- O formato MPEG-21 tem como objec-
mos para descrever a estrutura e a semântica tivo principal permitir o acesso universal aos
de conteúdos multimédia. O objectivo desde conteúdos multimédia. Esta norma unifica a
formato é aumentar a eficiência do acesso descrição dos ambientes de utilização, englo-
à informação audiovisual e tornar possível bando-se aqui redes, terminais e condições
a sua pesquisa e filtragem. A informação que de acesso, permitindo que um dado conteúdo
pode ser guardada pelo MPEG-7 é a seguinte se adapte dinamicamente face a determina-
[Salembier 2001] (Figura 2): das circunstâncias de consumo [Koenen
O contexto de utilização é suportado por 2001].
este formato, através do descritor para O MPEG-21 permite ainda expressões
Interacção do utilizador com o conteúdo. As sobre os direitos relativamente à propriedade
preferências podem ser descritas para dife- intelectual, completando o MPEG-7, razão
664 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

Figura 2 - Informação que pode ser guardada nas descrições MPEG-7

Tipo de Descritor Exemplos de Informação


Processo de criação e produção director, título, etc.
Utilização do conteúdo copyright, história de utilização, horário de
transmissão,...
Armazenamento do conteúdo Formato e codificação
Componentes espacio-temporais Cortes, segmentação espacial, detecção do
movimento,...
Propriedades de baixo nível Cor, texturas, timbres, descrição da melodia
Realidade capturada Objectos, eventos e a interacção entre eles
Formas de navegação alternativas Sumários, variações,...
Colecções de objectos
Interacção do utilizador com o conteúdo Preferências e história de utilização

pela qual existem já sistemas que utilizam ciários televisivos para segmentar e identi-
ambas as normas [Steiger 2003, Tseng 2004]. ficar os vários segmentos vídeo que os
compõem. Isto foi feito com base em co-
AAF - Advanced Authoring Format nhecimento sobre a estrutura espacial e
O AAF [AAF 2002] foi lançado em 2000 temporal típica deste tipo de informação.
e é uma norma para a pós-produção e autoria Fisher et al. [Fisher 1995] procuraram
de conteúdos multimédia. Este formato classificar programas televisivos com base
permite que os criadores dos conteúdos tro- nos chamados perfis de estilo, um género de
quem facilmente informação audiovisual e assinatura contendo aspectos característicos
meta-dados entre aplicações e plataformas. de uma determinada classe de programas.
O modelo do AAF suporta as seguintes Mais recentemente, Xie et al. [Xie 2003]
categorias de meta-dados (Figura 3). apresentam algoritmos para a análise da
estrutura de vídeos de jogos de futebol
MXF - Material eXchange Format utilizando conhecimento do domínio. É com
O MXF [Pro-Mpeg 2002] é um formato base nestes algoritmos que estes autores
não proprietário muito recente, fundamental- efectuam a segmentação temporal da infor-
mente direccionado para a troca de conteú- mação e a classificação automática dos
dos audiovisuais associados com dados e segmentos obtidos.
meta-dados.
Como a informação que pode ser guar- Pesquisas e anotações em formato
dada sob a forma de meta-dados é infindável, audiovisual
este formato permite filtrar o que é relevante
para um determinado contexto operacional. Vários autores referem as limitações das
Inclui os seguintes tipos de meta-dados: a anotações textuais quando utilizadas para
estrutura de ficheiros, os próprios conteúdos, representar uma série de aspectos que exis-
palavras-chave ou títulos, notas de edição, tem nos conteúdos multimédia [Davis 1995,
localização, tempo, data, versão, etc. Elmagarmid 1997], pelo que existem alguns
sistemas que optaram por permitir anotações
Modelos de domínio e pesquisas em formato audiovisual.
Davis et al. [Davis 1995], por exemplo,
Os modelos de domínio procuram repre- criaram uma linguagem de anotação icónica
sentar a informação multimédia com conhe- para o sistema MediaStreams, para descrever
cimento acerca do seu domínio. Estes mo- os aspectos objectivos do conteúdo do vídeo.
delos restringem o contexto de utilização, Na área do áudio, Ghias et al. [Ghias 1995]
sendo sobretudo utilizados para a permitem a recuperação de uma dada melodia
segmentação e/ou classificação. simplesmente cantarolando-a (by humming).
Zhang et al. [Zhang 1994], por exemplo, Na área da imagem, o sistema QBIC da
utilizaram o modelo do domínio dos noti- IBM (Query By Image Content) permite
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 665

Figura 3 – As categorias suportadas pelo modelo do AAF


Categoria Descrição
Identificação e Localização Permite identificar e localizar um dado
elemento seja ele dados ou meta-dados.
Administração Permite definir os direitos, o nível de acesso,
classificações de segurança, etc.
Interpretação Permite anotação manual, incluindo por
exemplo artistas, organizações, etc.
Processual Permite descrever a forma como os dados são
"montados".
Relacional Permite descrever relações entre dados e
meta-dados.
Espacio-temporal Permite descrever ugares e tempo, incluindo
ângulos, coordenadas, datas, etc.

pesquisar bases de dados de imagens (http:/ é que terá sido o contexto da sua anotação?
/wwwqbic.almaden.ibm.com/). Esta pesquisa Arquitectura? Ciências? O ideal seriam as
é efectuada quer por objectos, quer por duas, mas qual será o número de contextos
imagens, utilizando propriedades como: cor previsível para os utilizadores do nosso
média, histogramas, textura, forma, esboço, sistema?
localização e desenho.
Abordagens para a aproximação dos con-
Contextos na recuperação de conteúdos textos

Aplicando o conceito de contextualização Existem algumas abordagens que se


à recuperação de conteúdos observa-se logo podem conjugar para aproximar os contextos
à partida a existência de três contextos de anotação e utilização, nomeadamente:
distintos: • contextualizar o utilizador no contexto
• o do criador dos conteúdos, que os cria da anotação,
num dado contexto e com determinado • contextualizar a anotação no contexto
objectivo; do utilizador,
• o do anotador dos conteúdos, que os • e de acordo com a framework da análise
anota num dado contexto e com determinado de conteúdo, validar aos resultados obtidos
objectivo;
• e o do utilizador final que os pesquisa Técnicas para Contextualizar o Utilizador
num dado contexto e com determinado no Contexto da Anotação
objectivo.
Para a recuperação ser bem sucedida é A contextualização do utilizador na ano-
preciso que exista pelo menos um contexto tação pode acontecer em momentos distin-
de anotação que coincida com o contexto de tos:
utilização, podendo considerar-se irrelevante • antes da pesquisa, reforçando, por
o contexto do criador dos conteúdos. Este exemplo, as mensagens visuais do nosso
processo é contudo complexo, veja-se por sistema e disponibilizando manuais on-line.
exemplo um caso simples ilustrativo: diga- Partindo novamente do caso da pesquisa
mos que o nosso utilizador, que por acaso por “planta”, uma das alternativas seria, por
é arquitecto, pesquisa a palavra “planta”. A exemplo, acrescentar uma breve introdução
primeira interrogação que surge é: Será que sobre os objectivos da anotação (biologia ou
é uma planta de um edifício ou uma planta arquitectura), para o utilizador perceber logo
no sentido biológico do termo? à partida o seu contexto e aquilo que pode
Mas as dificuldades não terminam por esperar como resultado.
aqui. Será que o anotador teve em conta a • durante a pesquisa, por exemplo,
possibilidade de os utilizadores do sistema encaminhando o utilizador com base num
pesquisarem as plantas dos edifícios? Qual dicionário de sinónimos e sugerindo-lhe
666 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

alternativas, ou mesmo utilizando mecanis- sistema. Neste âmbito, podem-se por exem-
mos de personalização. plo:
No caso da pesquisa por “planta”, por • realizar inquéritos para avaliação dos
exemplo, se a anotação do sistema incluir resultados periódicos ou mesmo on-line;
de facto os contextos de Arquitectura e • solicitar a colaboração dos utilizadores
Biologia, podem-se sugerir ao nosso no enriquecimento da anotação;
utilizador as alternativas de pesquisa “vege- • e analisar a historia de utilização do
tal” e “planta de edifício”, direccionando-o sistema, verificando, por exemplo, as tenta-
e permitindo-lhe compreender melhor o tivas dos utilizadores e os caminhos por estes
contexto da anotação. adoptados.
• depois da pesquisa (Ver secção).
Conclusões e trabalho futuro
Contextualizar a anotação no contexto do
utilizador A definição de contexto e conteúdo
apresentada no ponto é aplicável à recupe-
A contextualização da anotação pode ração de conteúdos multimédia. O contexto
também processar-se em três momentos: é aflorado no âmbito da multimédia, mas
• antes da anotação: Isto requer, por sobretudo no que se refere à sua
exemplo, a prévia identificação dos tipos de temporalidade. Actualmente existem várias
comunidades existentes e das suas necessi- abordagens que permitem de formas diversas
dades de anotação, e construir a anotação com aproximar os contextos de utilização e ano-
base nesta informação. A identificação das tação, mas em geral nesta área o conteúdo
comunidades e a classificação dos utilizadores continua a ser tido como uma coisa inerente
numa dessas comunidades, pode ser ao formato.
conseguida por exemplo através de inquéri- A combinação destas abordagens com
tos prévios e fazendo com que todos os alguns dos mecanismos referidos no ponto
utilizadores sejam registados. anterior pode efectivamente aproximar os
Neste âmbito, podem-se ainda fazer uso contextos de utilização e anotação, e deste
de mecanismos de personalização e também modo melhor os resultados das pesquisas. A
permitir que os próprios utilizadores colabo- validação dos resultados obtidos e a utiliza-
rem na anotação. ção desta informação para refinar e afinar
• durante a pesquisa, por exemplo, o sistema é, neste âmbito, um aspecto im-
solicitando de forma explicita ao utilizador portante a considerar.
os objectivos da sua pesquisa. Neste âmbito, Com base nisto, e como trabalho futuro,
podem-se ainda utilizar dicionários para que, pretende-se desenvolver um protótipo para
com base no perfil de utilizador, se tenha o arquivo de vídeo da faculdade utilizando
acesso a um conjunto termos relacionados. algumas destas técnicas. A comunidade será
• depois da pesquisa (Ver secção). fechada consistindo numa primeira fase nos
professores e alunos da licenciatura de
Validar os resultados da recuperação Cinema, Vídeo e Multimédia. Pretende-se
deste modo elaborar inquéritos prévios para
A validação dos resultados obtidos pelo identificar as suas necessidades de anota-
sistema permite não só aferir o sucesso da ção, verificar os resultados obtidos e soli-
pesquisa, mas também afinar e enriquecer a citar a sua colaboração para a anotação do
anotação, possibilitando a aprendizagem do sistema.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 667

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668 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 669

La eficacia del relato narrativo audiovisual


frente al discurso persuasivo retórico
Jesús Bermejo Berros1

La eficacia publicitaria se define por el no como fenómeno de la cultura sino como


grado de cumplimiento de los objetivos de pura herramienta del marketing, sin tomar en
comunicación de la campaña o el anuncio. consideración la eventualidad de que
Entre estos objetivos cabe citar el conseguir profundizando en el sentido cultural y
que la audiencia vea, procese y recuerde psicológico de los textos que pone en
nuestra publicidad; lograr posicionar la marca circulación obtendría una mayor eficacia
en la mente del receptor o persuadirle en comercial. Le ha interesado desde esta
beneficio del producto entre otros. perspectiva la medida del recuerdo, de las
Las variables que se han manipulado hasta actitudes en superficie (medidas a través de
ahora para alcanzar esos objetivos persuasivos escalas de actitudes, el diferencial semántico
han sido muy variadas y de diferente y otros).
naturaleza: variables de ejecución del anuncio En este tipo de publicidad destacan los
(tamaño; color; posición;..); variables de textos no narrativos que utilizan las fórmulas
contenido (publicidad comparativa; humor; clásicas de apoyo en recursos visuales y
música; tipo de fuente y de mensaje;...); sonoros y desde el punto de vista del
variables del receptor (implicación; contenido, comunican mera información sobre
motivación; habilidad; memoria;...). el producto, presentan retazos de vida o en
Sin embargo, la investigación publicitaria muchos casos se construyen como puros
no se ha ocupado hasta ahora del estudio de ejercicios retóricos y poéticos interesados en
la eficacia de un tipo de contenido emergente explotar elementos meramente de recuerdo
en la actualidad: el spot narrativo. Este tiene e impacto emocional por condicionamiento
el interés de articular el texto audiovisual clásico.
publicitario como propuesta que pretende Veamos tres ejemplos de spots No
conectar con los esquemas narrativos del Narrativos:
receptor. En la presente investigación
presentamos el grado de eficacia de esta NoN4: Nokia:
variable independiente en comparación con Vemos la imagen de unas motos por
el de los spots no narrativos construidos éstos un circuito en un espacio no natural,
a partir de elementos retóricos. Como variable abstracto, de videojuego. A
dependiente hemos considerado la actitud del continuación vemos unas figuras
sujeto hacia el anuncio que se ha manifestado animadas recorriendo un laberinto en
como una variable moderadora que incide un videojuego. Después, la imagen de
favorablemente hacia la actitud desarrollada un teléfono Nokia y una voz en off:
hacia la marca2. <<Nokia, descarga tus juegos>>.

1. Publicidad no narrativa vs publicidad NoN9: Amena: Un jóven va por la


narrativa calle bailando al ritmo de una música
en off. Tiene un cartel en la mano
Durante muchos años la publicidad, a la con el color verde corporativo de la
vanguardia en el mundo audiovisual en la compañía de telefonía Amena. Le da
exploración y utilización de los recursos la vuelta y lo muestra. Se ve una
tecnológicos (efectos especiales; infografía; persona animando con una camiseta
etc.), ha privilegiado el uso de éstos para crear de fútbol. Se oye la frase <<¡España,
impacto visual y sonoro de sus códigos. Todo campeona del mundo!>>. En el plano
ello desde una concepción de la publicidad siguiente, en otro lugar, una chica
670 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

también bailando. Muestra un cartel reiteradamente contra un muro de tal


con una foto de Marte. Se oye <<El manera que se va deformando. Lo
hombre llega a Marte>>. En el plano hace con la intención de darle un
siguiente otro joven bailando. Muestra aspecto al coche bien preciso. Abre
en su cartel tres embarazadas. Se oye: una revista en la que aparece la
<<España triplica su índice de fotografía de un Peugeut 206 y vemos
natalidad>>. En el último plano vemos en segundo plano el coche deformado.
un teléfono móvil. Se oye: <<A partir El joven sonríe mostrando su
de hoy Amena te trae todo lo que pase satisfacción pues hay una gran
cuando pase>>. similitud entre el aspecto que ha
adquirido su coche tras los golpes y
NoN15: Cortefiel: Una mujer sentada la fotografía. Entendemos entonces
en un sofá mira a cámara y dice que la intención que guiaba la acción
<<¿Qué hay detrás de la moda?>> del joven no era la de abollar su coche
Vemos una serie de planos estéticos sino que su motivación podemos
(telas al viento; imágenes del mar; formularla como <<ya que no puedo
jóvenes saliendo en la noche;...). Una tener un Peugeut 206 me “construyo”
voz en off va diciendo <<hay misterio, uno>>.
equilibrio; hay color, y diseño para (3) Enunciado de estado (S’).
llevar>>. En el último plano volvemos Situación de llegada para el Sujeto
al sofá del principio donde la mujer A, transformado ahora en A’.
dice <<hay un lugar donde sólo cabe Vemos al joven paseándose orgulloso
la moda: Cortefiel y tú>>. por la concurrida ciudad con su
“nuevo” coche acompañado de un
Estos tres spots estas construidos por grupo de amigos. Aparecen contentos
medio de elementos retóricos que nos y se mueven al ritmo de la música.
presentan una ventaja producto o/y un
beneficio consumidor. Los teléfonos En este breve relato, el Sujeto A tiene
móviles Nokia incorporan juegos; Amena un deseo (conducir un Peugeut 206). En su
te permite estar informado desde internet. situación de partida (1) no tiene un Peugeut
En Cortefiel tienes todo aquello que tú 206 pero lo quiere. Para ello pone en marcha
necesitas en moda. una acción intencional. La acción
En los últimos tiempos asistimos a la transformativa (Tr) de abollar la chapa de
aparición de un número, en significativo su coche le lleva a un nuevo estado (3) que
aumento, de spots construidos como textos cierra el ciclo narrativo por cuanto ha
narrativos, es decir, dotados de una permitido alcanzar el objetivo de partida
estructura narrativa mínima (en el sentido como lo indica su muestra de satisfacción
greimasiano). con el nuevo estado. Ahora “si tiene un
Los spots narrativos tienen como Peugeut 206”. Por tanto la acción que se
propuesta central un relato susceptible de produce en (2) tiene el estatuto de
conectar con el receptor mediante la Acontecimiento narrativo pues ha
evocación de algún esquema narrativo engendrado, entre (1) y (3), una
referido bien a algún relato vivido, bien transformación que ha afectado al Sujeto A
imaginado o/y posible, bien deseado. haciéndole cambiar de un estado (S) a otro
Veamos un ejemplo de spot narrativo: (S’), siendo éste último la satisfacción de su
Objeto de deseo. En el paso del Sujeto A
N3: Peugeut 206. (de insatisfacción) a su nuevo estado
(1) Enunciado de estado (S). transformado de Sujeto A’ (de satisfacción)
Situación de Partida para un Sujeto el producto ha tenido un papel mediador
A. fundamental.
Un joven indio tiene un coche. Este tipo de spots narrativos, al utilizar
(2) Enunciado transformativo (Tr): tanto mecanismos inductores ya presentes en
El joven golpea su coche la vida y cultura cotidianas del hombre
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 671

(desear, querer, poder,...) que le llevan a 2.2. Sujetos.


proyectar su acción en estados futuros más
completivos, como situaciones asimismo 185 sujetos, chicas y chicos, estudiantes
susceptibles de producirse en nuestro mundo universitarios. Edades: 19-25 años.
diegético, resulta pertinente para inducir y
activar un proceso de elaboración cognitiva 2.3. Técnicas y procedimientos experimental.
en el receptor que puede conducirle a elaborar
los argumentos contenidos en el mensaje Los sujetos participan en dos sesiones
publicitario. De esta forma, al provocar en experimentales de 1 hora y 30 minutos cada
él un aumento de la elaboración del texto, una de ellas5. La segunda sesión tiene lugar
la probabilidad de influir sobre sus actitudes una semana después de la primera.
es mayor, como se postula desde las teorías
2.3.1.- Primera sesión:
de la persuasión actuales (por ejemplo, el
ELM de R.E. Petty y J.T. Cacioppo)3. En
a) Visionado de un bloque de 23 spots.
este caso, los spots narrativos, desde la óptica
La duración total del bloque es de 9’16”.
publicitaria y marketiniana serían un buen
Nomenclatura y número de orden de
recurso para mejorar la actual eficacia presentación de los spots del Bloque I:
publicitaria. No obstante, no nos
interesaremos aquí por esta vertiente de S = Spot narrativo de Seducción;
interés para el márketing, sino por aquella
que se interroga por las razones NoN = Spot No narrativo.
epistemológicas que afectan al conocimiento S1 = Sandoz
del texto, al funcionamiento de sus NoN 2 = Samsung TV
estructuras, al sujeto, en la construcción de NoN4 = Nokia 3410
la persona (de su self, de sus representaciones, S5 = Martini
su imaginario, etc.). Nos interesa así la No N6 = Pontomatic
eventual eficacia del spot narrativo por cuanto NoN7 = Kinder
sería una forma privilegiada de conectar el S8 = Buckler sin
mundo del texto y el mundo del lector (de NoN9 = Amena
sus creencias, opiniones, representaciones, N10 = Saab 93
scripts y comportamientos). Postulamos NoN11 = Caldo Gallina Blanca
asimismo que es, en los intersticios de ese
encuentro, donde aparecen y pueden ser N = Spot narrativo excluidos los de
observadas las diferencias hombre/mujer en Seducción;
general, y la diferencia sexual en particular.
Partiendo de esta hipótesis general diseñamos S12 = Panasonic
una investigación en la que exploramos NoN13 = Big Mac McDonald’s
alguno de los componentes de ese encuentro NoN15 = Cortefiel
S16 = Crunch
y configuración textual.
NoN17 = Patés de jabugo Sanchez Carbajal
N18 = Flex
2. Metodología4
NoN19 = Contexta A3
S20 = Nescafé
2.1. Hipótesis NoN21 = Mascara Maybelline
N22 = Galletas bisc & Twik
1. Los spots narrativos se recuerdan mejor NoN23 = Antenas telefonía móvil
que los no narrativos.
2. Las actitudes hacia los spots narrativos La duración total del bloque I es de 9
son más positivas que hacia los no narrativos. minutos y 16 segundos.
3. Existen diferencias entre hombres y La duración del bloque de spots narrativos
mujeres en la percepción de los spots (S+N1) es la misma que la del bloque de
narrativos. spots No narrativos (NoN).
672 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

b) Tras el visionado del bloque de spots presentando al hombre y a la mujer en


I, los sujetos cumplimentan un cuestionario actividades en igualdad como en el spot R25
en el que se incluyen una serie de cuestiones donde hombre y mujer compiten entre sí en
referidas al bloque de spots I que acaban de una actividad deportiva sin destacar el uno
ver. Con ellas se pretenden indagar los sobre el otro. El interés aquí es conocer si
siguientes indicadores: recuerdo inmediato; esas presentaciones publicitarias provocan
gustos; preferencias y rechazos. reacciones en los sujetos por cuanto estos
spots rompen con los estereotipos clásicos
2.3.2.- Segunda sesión (una semana después): de género.
Los spots narrativos N se caracterizan por
a) Prueba de recuerdo diferido del bloque narrar cualquier tipo de relato exceptuando
I de spots. los de contenido R o S. He aquí dos ejemplos
b) Visionado del bloque II de spots, en de spots narrativos N:
el que hay 7 spots de tres categorías (R, S,
N). La duración total del bloque es de 3’29”. N14 (Adidas): unas zapatillas de
Nomenclatura y número de orden de deporte Adidas corren solas por la
presentación de los spots del Bloque II: calle. Se oyen los gestos de esfuerzo
de alguien. Las zapatillas se detienen
R = Roles de género y sale un caracol. Vuelve a meterse
S = Spot narrativo de Seducción en la zapatilla y sigue corriendo. El
N = Spot narrativo excluidos los de “personaje” al que oíamos resoplar de
Seducción. esfuerzo era el caracol.
R24 = Scotch Brite N18 (Flex): El dependiente de una
R25 = Nike
tienda de cámara de fotos dice “usted
R26 = Fairy Ultra
lo que necesita es una cámara de fotos
S27 = Chicle Orbit
Reflex”. Al decir esto todo el mundo
N28 = Fanta
cae en un profundo sueño. Una voz
S29 = Breil
en off dice que todas aquellas palabras
N30 = Coca-cola.
que evocan la marca Flex provocan
un profundo y placentero sueño.
c) Por último, los sujetos cumplimentan
Aparece impreso el slogan: Un
en esta Segunda sesión experimental un
dos,”Flex”(Descansa).
cuestionario referido al bloque de spots II:
actitudes, categorización y opiniones.
La distinción, en el bloque II de esta Por último, la seducción, una categoría
investigación, dentro de la categoría genérica muy utilizada en publicidad desde hace varias
de spots narrativos, entre las categorías de décadas, también aparece abundantemente
spots R (Narrativos de Roles de género), S hoy en forma de relatos audiovisuales. El
(Narrativos de Seducción) y N (Narrativos análisis de la seducción presenta un interés
excluidos los de Seducción y los R), especial en la indagación de la diferencia
encuentra su justificación tanto en el hecho sexual si tomamos en cuenta los datos que
de la significativa presencia en la publicidad habíamos recogido en una investigación
actual de cada uno de ellos, en sus diferencias anterior y que indicarían que se trata de uno
de contenido, como en los resultados e de los territorios en los que aparecen
hipótesis de investigaciones anteriores. diferencias entre el hombre y la mujer en
En los spots R, se intentan neutralizar los la configuración de los textos narrativos
roles de género tradicionales. En unos casos audiovisuales (Bermejo y Couderchon,
se procede mediante la presentación de los 2002)6.
roles invertidos. Tal es el caso de los spots La seducción la entendemos aquí en
R24 y R26 donde es el hombre quien lava sentido amplio en esa relación hombre/mujer
la vajilla y la mujer quien sanciona el en la que interviene la atracción del otro, el
resultado. En otros casos se anula la diferencia erotismo, etc. Sin ser una clasificación ni
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 673

mucho menos exhaustiva, he aquí tres tipos emite sus gruñidos y hace gestos de
de los que incluimos en esta investigación: satisfacción. Ella le da un tortazo. En
a) Seducción compartida o bidireccional. la publicidad que aparecía en el
He aquí tres ejemplos: autobús se anunciaba la cerveza
Buckler. Los gestos de él estaban
S5: (Martini): Una seductora mujer asociados al placer de la cerveza que
aparece en un balcón regando un le evocaba la visión del anuncio en
limonero. Abajo, en la calle, sentados el autobús. Ella, sin embargo, los
en la terraza de un bar, un grupo de había interpretado como intentos de
amigos, chicos y chicas miran a la establecer un contacto de naturaleza
joven. Se incorpora al grupo un chico. sexual.
El también dirige su mirada hacia ella.
En ese momento ella le hace un gesto. S16: (Crunch): Un hombre está
Ambos se sonríen. Los otros les miran. haciendo pesas en su piso. En el piso
El joven les muestra un limón. Vemos de enfrente hay dos chicas. Él les
unos vasos de Martini con limón. Los guiña un ojo y les hace gestos
jóvenes brindan con Martini entre mientras sigue con las pesas. Ellas no
ellos. Se ríen y disfrutan del momento. se sienten atraídas por él. De repente
Aparece el slogan: Viva la vita. una de ellas coge los cereales Crunch
Alguien coge un limón de un y al comer una cucharada el crujido
limonero. es tan fuerte que las ondas sonoras
rompen algo en la casa de él. Al darse
S27: (Orbit): En una cafetería. En una cuenta de ese efecto las dos comen
mesa dos chicas miran a un chico y comen Crunch de tal modo que todo
sentado en otra mesa. Una le dice a en la casa de él se rompe y salta en
la otra <<ves no está nada mal. Voy mil pedazos. Él ya no aparece seguro
a decirle algo>>. Se levanta y se dirige y fuerte como al principio sino frágil,
hacia el chico. Le dice algo al oído. débil y atemorizado. Ellas ríen y
Sonrisas de complicidad. Elle le pasa disfrutan con la situación.
por debajo de la mesa un paquete de
chicles Orbit. Él lo abre y coge uno. En los spots de seducción rechazada o
malinterpretada, a diferencia del caso
En los spots de seducción compartida la anterior, o bien el que inicia la seducción
acción es bidireccional en el sentido de que no es correspondido o bien hay una mal
ambos participan y responden a la acción interpretación de las acciones del otro de
seductora del otro. modo que la seducción compartida no sólo
no se produce sino que hay un rechazo
b) Seducción rechazada o malinterpretada. explícito de alguna de las personas implicadas
He aquí dos ejemplos: en las acciones de seducción.

S8: (Buckler): Una mujer espera el c) Seducción no compartida o


autobús en la parada. Llega un hombre unidireccional. He aquí un ejemplo:
y espera también cerca de ella. En
silencio, ambos miran hacia el frente S20 ((Nescafé): Es de noche. Un joven
sin cruzar sus miradas. De repente un se prepara un café Nescafé. Sale a la
autobús pasa delante de ellos. Él terraza de su casa. Hay un patio muy
comienza a emitir gruñidos de grande con las ventanas de muchas
satisfacción que van en aumento a casas en silencio. Todas las luces están
medida que el autobús se desplaza apagadas. Mira hacia una ventana
delante de ellos. El sigue con la precisa. Su café está humeante y sopla
mirada al autobús, de tal modo que en dirección hacia esa casa como para
va girando su cabeza lo que hace que dirigir su aroma hacia ella. El efecto
pase su mirada por ella al tiempo que inmediato es que la luz se enciende
674 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

y el chico puede ver a una chica de forma estadísticamente muy significativa


desplazarse por la habitación y (Nivel de significación <.001).
dirigirse al cuarto de baño donde se b) Respecto al spot que más gusta, el N3
desnuda para entrar en la ducha. Él (Peugeut 206), tanto hombres como mujeres
está contento. Sonríe. De repente las lo destacan porque <<narra una historia
luces de las otras casas también original y divertida>>.
comienzan a encenderse una tras otra. c) Justificación de las Preferencias: Las
Aparece gente. Vuelve el ruido y las categorías más citadas por hombres y mujeres
voces. Él deja de sonreír. Parece para elegir los spots son (en porcentajes de
contrariado. Esconde su café. Su mayor a menor): original; divertido;
aroma ha sido el “responsable” de gracioso; buena música; buena idea.
haber despertado también al d) Los spots que menos gustan, tanto a
vecindario. La chica, en ningún hombres como mujeres, son aquellos no
momento, se había apercibido de la narrativos que se limitan a presentar un
presencia de él. No hay ningún tipo ventaja producto (NoN19; NoN11) o utilizan
de contacto entre ellos. una retórica clásica (NoN15). El spot que
menos gusta es el de Contexta A3 (NoN19),
En los spots de seducción unidireccional seguido del spot de Caldo de Gallina Blanca.
la acción seductora de un sujeto no recibe El de Cortefiel (NoN15) aparece en tercer
respuesta alguna (ni de aceptación ni de lugar junto al NoN Antenas de telefonía móvil.
rechazo) del otro sujeto al que dirige su acción. Con relación a todos ellos los sujetos dicen
que no les gustan porque <<son los de
3. Resultados siempre>> <<no aportan nada>>
<<aburren>>.
Sin entrar en el detalle de los datos y e) Justificación de los Rechazos: Las
análisis estadísticos, presentaremos solamente categorías más citadas por hombres y mujeres
aquí los resultados globales que se desprenden para rechazar los spots son (en porcentajes
de ellos para cada una de las tres hipótesis: de mayor a menor): poco original; aburrido;
simple; soso.
3.1. Recuerdo inmediato y diferido:
3.3. Diferencias entre hombres y mujeres:
Tomados en conjunto, es decir, todos los
spots narrativos por un lado y todos los no a) Hombres y mujeres no difieren en la
narrativos por otro, ambas categorías de spots percepción de los spots no narrativos.
generan índices de recuerdo similares, tanto b) En cuanto a los spots narrativos de
en recuerdo inmediato como diferido (una género (spots R), hay una similitud entre
semana después). Dicho de otro modo, los hombres y mujeres en la percepción de las
spots no narrativos están construidos con categorías y estereotipos diferenciales
claves que también generan recuerdo. tradicionales (en cambio, hace años, los
Sin embargo, considerados de forma hombres estaban más inclinados por spots de
individual, es decir, tomando los índices de coches y las mujeres por moda o perfumes,
recuerdo de cada uno de los spots por etc., lo que provocaba efectos diferenciales
separado, observamos que algunos spots en el recuerdo).
narrativos concretos destacan muy Este resultado indicaría que las diferencias
significativamente sobre los no narrativos. Por en los estereotipos de género tiende a
ejemplo, el spot N3 (Peugeut 206) es el más mitigarse en esta nueva generación, de la que
recordado tanto en hombre como en mujeres. los estudiantes universitarios representan una
de sus categorías (y una de las “avanzadillas”
3.2. Gustos y preferencias (actitudes): en el cambio de estereotipos).
c) Sin embargo, si aparecen diferencias
a) Las actitudes hacia los spots narrativos significativas entre hombres y mujeres en la
son mucho más positivas que hacia los no percepción de los spots narrativos de
narrativos tanto en hombres como en mujeres seducción. Así, las mujeres recuerdan más
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 675

spots narrativos de seducción que los 2. Esta investigación arroja también


hombres. resultados interesantes sobre las diferencias
hombre/mujer en su manera de procesar la
4. Discusión y conclusiones publicidad.
Dos resultados podrían hacernos pensar
1. La conclusión fundamental de esta que las diferencias de género no existen por
investigación es que los spots narrativos cuanto:
tienen un alto grado de eficacia publicitaria a) No se manifiestan en la percepción de
comparados con los spots no narrativos los spots no narrativos.
basados en construcciones retóricas cuyo b) Si comparamos los resultados de esta
objetivo es la presentación de una ventaja- investigación con aquellos de décadas pasadas
producto o un beneficio-consumidor. observamos que las diferencias entre hombres
El grado de recuerdo ha sido y mujeres, en cuanto a los estereotipos
tradicionalmente uno de los índices utilizados clásicos de género, tienden a mitigarse con
para evaluar la eficacia publicitaria. Podría el paso de los años. Los jóvenes estudiantes
argumentarse que, en la presente universitarios, que constituyen una
investigación, los spots narrativos no serían avanzadilla de los cambios sociales en los
tan eficaces por cuanto los niveles de recuerdo estereotipos de género, muestran claramente
global que provocan son similares a los de esta tendencia.
los spots no narrativos. Sin embargo, el Ahora bien, el que las diferencias
recuerdo no es el mejor indicador para evaluar tradicionales se desdibujen no quiere decir
la eficacia publicitaria por cuanto es un que tiendan a desaparecer. Bien al contrario,
indicador de superficie. No obstante, los spots se mantienen a lo largo del tiempo pero
individuales más recordados son los transfiguradas unas veces, modificadas otras
narrativos. Dicho esto, los argumentos que (lo que no excluye incluso la aparición de
muestran el interés publicitario de los spots nuevas diferencias). Un ejemplo de que la
narrativos se manifiesta en dos indicadores diferencia sexual persiste hoy lo hemos
de mayor profundidad. Por un lado, en los hallado en la percepción diferencial de los
grados de elaboración cognitiva superiores spots narrativos.
a los que da lugar. La publicidad no narrativa, Puede parecer sorprendente que en esta
con el uso de recursos retóricos visuales y investigación las mujeres recuerden más spots
sonoros, con el despliegue de una atractiva de seducción que los hombres. La explicación
estética, recurriendo al clincher, obtiene del de esa diferencia hay que buscarla en la
sujeto que siga preferentemente una ruta de diferente concepción que existiría entre ellos
procesamiento periférico2 y, gracias a la respecto a las relaciones de seducción. Como
repetición publicitaria, crear condicio- apoyo a esta interpretación cabe citar una
namiento y recuerdo simple. En cambio, los investigación anterior con relatos
spots narrativos al conectar con los esquemas cinematográficos en la que habíamos
previos del sujeto, de su vida y cultura descubierto que, en la relación entre los
cotidiana, son susceptibles de provocar un hombres y las mujeres, siendo un tema
procesamiento más central y por tanto más importante para los jóvenes de estas edades
profundo de los argumentos del mensaje entre 18 y 25 años, había una concepción
publicitario. distinta de esa relación entre hombres y
En segundo lugar, un argumento mujeres. En la seducción se incluyen, para
suplementario en beneficio del spot narrativo, ellas, sobre todo componentes afectivos de
es el grado de eficacia publicitaria de los spots romanticismo, de relación de pareja, (etc.),
narrativos que se manifiesta en que generan mientras que para ellos sobresale un
claramente actitudes significativamente más componente fundamental de sexo (Bermejo
positivas que para los spots no narrativos. Ello y Couderchon, 2002). Este factor diferencial
es relevante si tenemos en cuenta que conseguir sería el que también se estaría manifestando
que el sujeto tenga una actitud positiva hacia en este otro tipo de relato audiovisual como
la marca es una vía privilegiada para que genere es el publicitario de la presente investigación.
a su vez una actitud positiva hacia la marca7. En los spots narrativos de seducción
676 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

seleccionados aquí aparecen situaciones que intervienen en otras formas de relato


propias de seducción y no de carácter sexual presentes en los media. A nuestros sujetos
explícito. Por tanto, su contenido narrativo los spots que les gustan son aquellos que les
está más cerca de las percepciones y las sorprenden, les entretienen, les cuentan algo
representaciones de la seducción de las que tiene que ver con ellos mismos, con su
mujeres que las de los hombres, según la vida, con sus deseos, sus anhelos y sus
distinción que hemos establecido a partir de esperanzas. Si rechazan un determinado tipo
la investigación anterior. Ello explicaría el de spots No narrativos es porque les parecen
que ellas tuvieran un nivel de elaboración aburridos y no les cuentan nada que les afecte.
cognitiva mayor de los spots de seducción La retórica y el clincher que manejan, en
y por tanto mayores índices de recuerdo. una cultura saturada de todo ello, no les
3. Los relatos y las narraciones son parte sorprende ni atrae. Buscan otra cosa y los
de nuestra cultura, de nuestros intercambios relatos cumplen en parte esa función.
sociales. El relato aparece cuando el acontecer Por tanto, el spot narrativo es eficaz por
de la cotidianeidad se ve alterado en algún cuanto consigue conectar con los aspectos
sentido y aparece el interés por dar cuenta culturales del espectador, siendo definida la
de ello, bien porque transgrede lo habitual, cultura no como algo colectivo que
bien porque lo enriquece de algún modo. Los transciende al individuo sino, por el contrario,
relatos de la realidad, que encontramos en como la manifestación en cada sujeto
los intercambios sociales (las anécdotas, los individual de unos patrones de vida que nos
“chismes”), las narraciones que nos presentan identifican como miembros de un colectivo
los informativos o los relatos del cine o la y que al mismo tiempo nos construyen como
publicidad, comparten todos ese principio de personas.
alteración de lo “normal” para dar paso a En definitiva, el spot narrativo nos ha
algo “nuevo”, “distinto” o incluso revelado aquí su eficacia e interés porque
“excepcional”. Cuando alguien asiste a una permite conectar, a través del relato que
sala de cine desea que el relato que ve en exhibe, con el mundo narrativo previo del
la pantalla le sorprenda, le emocione, le haga sujeto. Si el relato publicitario es una ficción,
salir, de alguna forma, de su cotidianeidad. una puesta en escena del producto, y el
Pues bien, lo que muestran los sujetos en mundo del espectador en cambio está
la presente investigación es que los spots ubicado en lo real, la narración audiovisual
narrativos tienen eficacia publicitaria porque permite un encuentro e intercambio entre
ponen en marcha mecanismos similares a los ambos mundos.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 677

2
Bibliografía Bermejo Berros, J. (2001) La influencia de
la cultura y la personalidad en la respuesta
Bermejo Berros, J. La influencia de la publicitaria del sujeto. Publifilia. Revista de
Culturas Publicitarias. 4-5, 23-35.
cultura y la personalidad en la respuesta 3
Petty, R.E. y Cacioppo, J.T. (1986)
publicitaria del sujeto. Publifilia. Revista de Communication and persuasion. Central and
Culturas Publicitarias. 2001, 4-5, 23-35. Peripherical Routes to Attitude Change. New York:
Bermejo Berros, J. Los límites de la Springer Verlag.
persuasión publicitaria: entre la seducción y Bermejo Berros, J. (2004). Los limites de la
la propaganda. In R.Eguizábal Maza (Ed.). persuasión publicitaria: entre la seducción y la
Perspectivas y análisis de la comunicación propaganda. In R.Eguizábal Maza (Ed.).
publicitaria. Sevilla: Comunicación Social Perspectivas y análisis de la comunicación
Ediciones y Publicaciones. 2004 publicitaria. Sevilla: Comunicación Social
Ediciones y Publicaciones.
Bermejo Berros, J. Los marcadores de 4
Equipo de Investigación que participó en la
la diferencia entre hombres y mujeres en su aplicación de las pruebas del procedimiento
encuentro con los relatos audiovisuales experimental y en una parte del análisis de
publicitarios. Actas del II Congreso de resultados: Esther Sampol Bibiloni; Ana Espinosa
Análisis Textual La Diferencia Sexual. de Frutos; Mar Coca Ulloa; Marta Ruiz Peña;
Madrid. Universidad Complutense. 15-19 de Benedicto de Miguel Rodríguez; Jaime Rodríguez
noviembre. CD-ROM. 2004 Sosa; Miguel Usera Ballester; Laura Castillo
Bermejo Berros, J. y Couderchon, P. Sánchez.
Agradezco a Elias García Ledo su apoyo
Cine, género e identidad: encuentros y
técnico en la edición de los vídeos de la
“desencuentros”. Trama & Fondo. 2002, 13, investigación.
95-105. 5
Todos los spots citados en esta investigación
MacKenzie, S.B. y Lutz, R.J. An pueden verse en: Bermejo Berros, J. (2004). Los
empirical examination of the structural marcadores de la diferencia entre hombres y mujeres
antecedents of attitude toward the ad in an en su encuentro con los relatos audiovisuales
advertising pretesting context, Journal of publicitarios. Actas del II Congreso de Análisis
Marketing, 1989, vol.53, 48-65. Textual La Diferencia Sexual. Madrid. Universidad
Petty, R.E. y Cacioppo, J.T. Complutense. 15-19 de noviembre. CD-ROM
6
Bermejo Berros, J. y Couderchon, P. (2002)
Communication and persuasion. Central and
Cine, género e identidad: encuentros y
Peripherical Routes to Attitude Change. New “desencuentros”. Trama & Fondo. 13, 95-105.
York: Springer Verlag. 1986. 7
MacKenzie, S.B. y Lutz, R.J. (1989) An
empirical examination of the structural antecedents
of attitude toward the ad in an advertising
_______________________________ pretesting context, Journal of Marketing, vol.53,
1
Facultad de Ciencias Sociales, Jurídicas y 48-65.
de la Comunicación, Universidad de Valladolid. Bermejo Berros, J. (2001). Cf. nota 1.
678 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 679

Portugal / Brasil: a telenovela no entre-fronteiras


Maria Lourdes Motter, Maria Ataide Malcher1

A “colonização pelo colonizado” acon- questão que nos propomos: registrar a recep-
teceu fortemente na exportação de telenove- ção desse novo produto ficcional quanto à
las brasileiras para a Europa. Em Portugal inserção de um novo horário na grade
não foi diferente. Há registros que apontam televisiva (16h), e observar o quanto ela traz
essa passagem e interesse por parte dos por- imbricada ou não a linguagem da telenovela
tugueses pelo produto ficcional brasileiro. Em brasileira.
uma descomprometida verificação de turis- Olhos D’Água, estréia no Brasil no dia
tas brasileiros nota-se, em restaurantes e 19 de janeiro, na TV Bandeirante (BAND),
hotéis, a televisão ligada e a telenovela sendo às 16h. Faz parte da nova estratégia da
assistida pelos locais – os índices de audi- emissora, iniciada em 2000, com o objetivo
ência comprovam esse interesse. de disputar posições de liderança2. No Brasil,
Não há como desprezar o rompimento de o ranking de audiência das emissoras tem
barreiras favorecido pelas facilidades como líder a Rede Globo de Televisão
tecnológicas (grandes redes de comunicação, (Globo) desde a década de 70, seguida pelo
transmissão via cabo/ satélites) a dados e Sistema Brasileiro de Televisão (SBT). Nesse
programações que transitam em tempo real, contexto, a disputa pelo terceiro lugar é algo
incluindo os noticiários, mas também as almejado pelas demais emissoras que inte-
ficcionais e de lazer. gram as televisões de canal aberto no Brasil.
A intenção deste estudo é investigar o No caso da BAND, sua estratégia na
quanto a cultura local reage frente à presença busca de audiência recai na diversificação,
de produtos importados em termos de acei- já que durante anos, apostou em um único
tação e/ou rejeição, influência e estímulo para segmento: o esporte. Ao decidir pela mudan-
criação e comercialização da programação ça com o objetivo de tornar-se mais com-
ficcional televisiva. Se no passado o Brasil petitiva percebe a necessidade de apostar em
exportava telenovelas para Portugal, e me- outros segmentos e é isso que tem feito:
taforicamente era o ‘colonizado colonizando investido em contratações de apresentadores,
o colonizador’, hoje temos uma proposta diretores e estabelecido parcerias com pro-
concreta que tenta reverter essa situação, dutoras como a NBP3.
quando o Brasil põe no ar uma telenovela Tendo se caracterizado como emissora
portuguesa. voltada aos esportes resgata sua participação
Tomamos conhecimento da emergência da na teledramaturgia em 2004. Apesar de ter
telenovela Olhos D´Água em Portugal, in- inaugurado sua participação no gênero
clusive do seu sucesso, obscurecendo a, até teledramatúrgico em 1967, suas investidas
então, hegemônica telenovela brasileira. foram assistemáticas a exemplo das demais
O que torna um produto hegemônico? O emissoras nacionais, que não possuem tra-
local tem preferência para os nativos? Qual dição na produção e mesmo veiculação sis-
o interesse que poderá gerar uma telenovela temática de telenovelas. Isto, se comparado
portuguesa, num país que se caracteriza pela à emissora líder que é hegemônica nesse
excelência do produto? Que inovações pro- segmento. Para esse retorno escolheu duas
mete a telenovela portuguesa? Que trocas ela obras de ficção de grande audiência em
promove com a brasileira? Ou, que apropri- Portugal, país de origem da produção, Olá
ações ela faz do formato brasileiro? Pai! e Olhos D’Água. A primeira,
Fazer uma análise da telenovela Olhos categorizada como série, estreou no dia 18
D’Água, nestas primeiras semanas de exibi- de janeiro (2004), às 19h. Já a segunda, objeto
ção no Brasil, seria precipitado, mas é a principal deste texto, refere-se a uma teleno-
680 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

vela e teve, como mencionado anteriormen- em outra cultura que apesar de mãe se vê
te, sua estréia no dia seguinte a essa série4. invadida pela presença marcante da
Como parte da estratégia, ou por precau- brasilidade. São vários os exemplos da
ção, a BAND pretendendo atrair outro pú- apropriação do cotidiano brasileiro no dia-
blico que não aquele cativo do horário nobre5, a-dia português.
lança Olhos D’Água no horário vespertino Mas o tempo foi passando e a hegemonia
lembrando o início da telenovela no Brasil. das telenovelas brasileiras foi interrompida.
Início marcado pela veiculação dessa ficção Em 2001, com a estréia de Olhos D’Água
em faixas horárias propícias a donas-de-casa na TVI portuguesa, as telenovelas brasileiras
quando ainda a telenovela era considerada perdem a liderança. A repercussão e a
como produto de menor prestígio na grade manutenção dessa obra como líder de audi-
das emissoras e, portanto, restrita ao horário ência foi um dos objetos que mereceu a
vespertino não comprometendo assim a investigação de Ferin-Cunha.6
programação da emissora. Era o começo de Já no Brasil, é interessante registrar o
uma história ainda distante do hábito coti- momento que a televisão brasileira dá espa-
diano, inaugurado em 1963, com a primeira ço na grade de programação para uma te-
telenovela diária 2-5499 Ocupado, uma lenovela genuinamente portuguesa, por uma
adaptação de obra argentina que respeitou o de suas emissoras (BAND). O que se pode
texto de origem. perceber desse momento de experimentação?
A história da teledramaturgia no Brasil Será que o fluxo se inverterá? Será que as
é rica em tentativas, erros e acertos. Até a raízes lusas florescerão e se identificarão com
sua consolidação foram várias as investidas a trama apresentada? É prematuro responder
nesse gênero que, no começo, seguia os a esses questionamentos, mas poderíamos
moldes das produções latino-americanas arriscar algumas observações.
tendo seus textos origem na Argentina, no O processo desencadeado pela BAND
México e em Cuba. Mesmo quando escritos poderia ser enquadrado como uma das ex-
aqui, seus roteiristas, muitas vezes proveni- perimentações promovidas por outras emis-
entes desses países, mantinham forte ligação soras em busca de audiência. Ainda sem muita
com o estilo cunhado por esses textos lati- certeza do caminho a seguir, investiram com
nos. Tais fatores determinavam a produção comprometimento comedido na
das telenovelas como obras distantes da teledramaturgia. Evidente que esse não é um
realidade brasileira. campo fácil para ousadas incursões, já que
Nessas mais de quatro décadas, o Brasil no Brasil a tradição se fez pela TV Globo,
já possui uma teledramaturgia consolidada e líder de audiência durante todas essas déca-
essencialmente nacional, o que lhe vale estar das. Difícil até mesmo ter uma posição
entre os respeitados produtores e exportado- expressiva, principalmente se concorre no
res desse gênero ficcional. Exportando, com horário nobre, destinado aos produtos de
grande sucesso, suas telenovelas para inúme- maior audiência da TV, com as telenovelas
ros países, Portugal figura entre um dos da Rede Globo, o que não é o caso. Cautela
maiores consumidores, o que provocou um respeitada pela equipe que montou a estra-
movimento contrário à colonização. De tégia da BAND. Ao optar pelo horário
colonizados, através das obras ficcionais vespertino tentou garimpar um “novo públi-
brasileiras, passou a “colonizar” o país co”, no que parece não ter obtido sucesso
descobridor e colonizador do Brasil. De já que Olhos D’Água, no horário das 16h,
colônia que se mirava nos modelos vindos esteve na faixa de 1 a 2% de audiência, não
da matriz européia, as telenovelas brasileiras ultrapassando os programas apresentados por
levaram para Portugal os costumes, a fala, outras emissoras no mesmo horário.
o ritmo, o jeito próprio brasileiro. Esse É muito provável que o horário não deve
momento pode demonstrar o esforço de ter sido o único elemento a provocar
inversão do fluxo de consumo cultural, já que insucesso dessa tentativa. Uma das razões
esse cotidiano totalmente brasileiro toma que, com certeza, provocaram a não adersão
conta dos lares portugueses e torna-se modelo a esse produto foi o distanciamento de ele-
para os hábitos lusitanos. Interferência direta mentos de identificação do público receptor.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 681

Ou seja, o que determinou seu sucesso no A interação que a telenovela estabe-


país de origem foi a identificação dos por- lece entre os cotidianos da ficção e
tugueses com sua herança histórica. Ao da realidade constitui uma das pecu-
resgatar momentos históricos da vida dos por- liaridades da telenovela brasileira,
tugueses Olhos D’Água configurou-se para que, ao desenvolver um cotidiano em
aquela cultura7 como documento histórico e paralelo, dialoga com o real, numa
lugar de memória. E sua aceitação e incor- dinâmica em que o autor colhe, a
poração foram determinadas por uma visita partir de suas inquietações, aspectos
ao passado, um retomar das tradições, um da realidade a serem tematizados ou
reconhecimento e para muitos um conheci- tratados como questões de importân-
mento das origens.8 cia em sua ficção. ... A simples fa-
Nesse sentido, a telenovela, enquanto miliaridade do telespectador com
produto cultural, passa a ser entendida não discussões bem orientadas sobre pre-
apenas como um gênero, uma mercadoria, conceitos, drogas, alcoolismo, violên-
um entretenimento, mas principalmente como cia, hábitos de higiene e saúde sina-
um componente do quadro histórico das liza um avanço da telenovela e da
forças que se correlacionam no meio social sociedade que incorpora novos dados/
– força econômica, cultural, política – e como informações/conhecimentos e/ou com-
parceira de um jogo social mais amplo, portamentos.
agindo sob diversos aspectos, que Munõz
(1992: 235) assim organiza: As convenções verbais produzidas em
comum acordo pela sociedade constituem o
a) A telenovela tem sido, sobretudo, quadro mais elementar e mais estável da
um espaço social e cultural. Um espaço memória coletiva.
de apropriação de saberes, uma vez O instrumento decisivamente socializador
que as pessoas se relacionam em da memória é a linguagem. Ela reduz, unifica
diferentes grupos, e ela é componente e aproxima, no mesmo espaço histórico e
social dessas relações; cultural, a imagem do sonho, a imagem
b) Ela também surge como um espaço lembrada e as imagens da vigília atual
de sedução, de interações. Assim, essa (Bosi,1994: 56).
sedução da telenovela pode ser um Motter (2001) acrescenta que é possível
caminho de ida ao passado, às remi- delinear uma história das transformações da
niscências, de retomar e/ou reconstituir vida cotidiana através da telenovela, ao longo
imagens, desejos e sonhos; desses anos de sua existência, e de sua
c) A telenovela pode ser também um apropriação pela cultura brasileira. Nesse
espaço de identificação pessoal e sentido, afirma:
social. As necessidades reais, quando
expostas às respostas que os meios ...a telenovela constrói uma memória,
de comunicação social oferecem em ao mesmo tempo documental – por
nível de imaginário, não significam sua permanência física como produto
que trazem sempre a desilusão, a audiovisual gravado, mas, sobretudo,
impossibilidade de concreção de por sua vinculação com o presente,
sonhos e desejos em nível real; que a impregna com suas marcas –
d) Ela desempenha também um es- e coletiva, pelo compartilhamento dos
paço importante no jogo social de saberes que ela difunde para seu
poder. Seria difícil não aceitar que amplo público.
o componente ideológico está presen-
te em toda a sua narrativa, e que o Diferente da recepção em telas brasilei-
caráter mercadológico é sempre fun- ras, o drama vivenciado pelos personagens
damental. de Olhos D’água estava distante dos apelos
históricos, do cotidiano brasileiro e mais ainda
Sobre essa questão, Motter (2000: 43) do ritmo ficcional das telenovelas brasilei-
complementa: ras. Não se estabeleceu o protocolo ficcional
682 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

e não houve elementos que permitissem o ano brasileiro e inseridos nas tramas, nos dramas
que podemos chamar de verossimilhança. A sociais, políticos, culturais vividos e vivenciados
narrativa não envolveu aqueles que assisti- pelos habitantes desses tantos brasis.
am, distanciando-se até mesmo dos que A mudança em nossa teledramaturgia
poderiam encontrar nela pontes de identifi- decretada por Beto Rockefeller determinou
cação como é o caso das inúmeras colônias os rumos dessas obras ficcionais no Brasil.
portuguesas que vivem no Brasil. Difícil é para um leitor experiente de tele-
Nesse momento é relevante considerar a novela brasileira se enredar por outras obras,
narrativa como fator determinante nesse que mantenham distanciamento considerável
processo. Conforme destacado anteriormen- das fortes raízes da teledramaturgia nacional.
te, o Brasil tem uma forte tradição na criação Difícil, mas não impossível. É importante
dessas obras televisivas e os diferentes brasis, acompanhar essas experimentações como o
durante décadas, se especializaram em assis- início de um processo deflagrado pelo
tir telenovelas. Os telespectadores daqui momento de contínua expansão da
possuem acuidade especifica sobre esse globalização. Nesse desmontar de barreiras,
produto pela forma do fazer brasileiro, que os produtos de outras culturas cada vez mais
caracteriza a produção da telenovela brasi- visitam outros portos e muitas vezes a re-
leira. Essa telenovela brasileira reconhecida jeição inicial, após ajustes e reajustes, se torna
por apresentar inúmeras tramas em uma um elemento que se aclimata à cultura local.
mesma obra, com forte apelo no ficcional, Já em outros momentos, em uma adaptação
mas usando e “abusando”9 do cotidiano real menos invasiva, pode assumir novo signifi-
cria, assim, em muitos momentos intersec- cado a partir das concessões, negociações e
ções que dificultam a separação entre real entendimentos com a cultura que visita.
e ficcional. Explora ao máximo as riquezas Na visita realizada por Olhos D’Água ao
naturais do meio ambiente, da sensualidade Brasil já houve a concessão ao acordo tácito
e do erotismo próprios do povo brasileiro, ditado e permitido pela especificidade pró-
prendendo o telespectador em tramas que são pria desse tipo de produto que se caracteriza
desvendadas pouco a pouco, o que exige sua como obra em aberto (Pallottini: 1998), o
assistência diária ou pelo menos periódica, que propicia, dessa forma, mudanças em seu
por seu forte caráter de pauta para as con- desenvolvimento. Foi o que aconteceu com
versas do dia-a-dia, sobretudo por sua reper- essa visitante, que teve sua trama modificada
cussão nas diferentes mídias. Difícil concor- na forma de apresentação ao público brasi-
rer com essa experiência acumulada. Essas leiro, diferenciando-se do original veiculado
são hipóteses, apenas incursões exploratórias em Portugal. Telenovela, como produto da
para futuras investigações, que serão consi- comunicação, também é questão de cultura,
deradas no aprofundamento deste estudo. culturas e não só de aparatos, conforme
A telenovela importada de além-mar tem alerta Martín-Barbero.
sua narrativa centrada em uma única trama. É impossível conhecer novas praias sem
Seu apelo é tênue até mesmo para o mote identificar seus contornos, suas nuances, os
principal que conduz à trama: duas irmãs locais de perigo e o melhor lugar para o
gêmeas separadas na infância reencontram- mergulho tranquilo e o emergir seguro. Ou
se anos depois – uma pobre e outra rica. Esse seja, é preciso entender a especificidade do
posicionamento relembra mais uma vez o público. Principalmente de um público que
início da teledramaturgia no Brasil, pela tem, gostando ou não, forte tradição em ver
preocupação em distanciar-se de questões e fazer telenovela, sendo essa uma das
contemporâneas. Com narrativa leve, sem pre- maiores expressões dessa cultura.
ocupação em amarrar as ações dramáticas, Pensar a telenovela portuguesa nos pro-
acaba distanciando o telespectador que picia um olhar amoroso para nossa própria
mesmo de origem ou de descendência lusi- cultura, na medida em que faz ver como a
tana foi alfabetizado pela produção brasileira nossa formação multicultural nos abre para
e, portanto, escolarizado em assistir teleno- as diferentes culturas e, ao mesmo tempo,
vela. A diferença está no ritmo do contar a nos alerta para a especificidade resultante da
história, nos elementos resgatados do cotidi- miscigenação e o grau de consolidação dessa
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 683

mescla. A multiplicidade da subjetividade resultado no mais desgastado (por sua rei-


nacional consolidou nossa identidade teração no curso do tempo) dos temas ex-
multifacetada em harmonia com seu próprio plorados pelo gênero, tal como é praticado
ritmo de mudança. Assim, somos portugue- na maioria dos países que produzem teleno-
ses, indígenas, africanos, italianos, árabes, vela. É neste sentido que também podemos
japoneses, judeus, alemães, franceses, espa- remeter a telenovela portuguesa Olhos
nhóis, holandeses, em outra faixa etária, em D’Água aos primórdios da introdução do
outra clave, em outro espaço. gênero novela no Brasil.
Somos todos e nenhum, no Brasil do 2. O horário em que a telenovela está
terceiro milênio. Portanto, não a soma, mas sendo exibida - cuidado decorrente de se
a síntese transformada. É nossa brasilidade, proceder à experimentação em um espaço
como essa síntese transformada, que rejeita ficcional vazio na grade geral de programa-
o que representa apenas o passado puro de ção das emissoras brasileiras – pode ter
uma raiz conservada, que evoluiu segundo sua contribuído para o baixo nível de audiência,
própria história. Nossa portuguesidade é a de seja por ter-se de criar tradição, seja por não
ontem, guardada como um elemento cultural encontrar telespectadores, principalmente
importante, mas apenas um dos traços cul- telespectadoras, num mundo transformado,
turais de nossa formação. Não a onde o público feminino – alvo preferencial
portuguesidade européia de hoje, com a pureza do gênero/estilo escolhido – já não pode estar
de sua tradição e com o lastro histórico que disponível para assistir televisão.
é só seu. Vivendo distante do mundo colonial 3. Ainda pensando a partir de nossas
africano, sem nunca termos sido um país considerações iniciais, seria de se esperar que
colonizador não temos razões histórico-afetivas a colônia portuguesa no Brasil pudesse cons-
para nos envolver com uma semente de história tituir um alvo preferencial. Um elo fundamen-
que nasce de relações colonialistas. tal para atar essas pessoas a elementos de sua
Também a linearidade narrativa da tele- própria cultura, como aspecto primordial não
novela portuguesa se distancia da agilidade seria através da identidade lingüística? A te-
assumida por nossas próprias narrativas e pela lenovela é dublada em português. Mantê-la com
dinâmica multiplicidade de tramas, sons, a fala de origem não seria a melhor opção.
ritmos, cores, tons em meio à também Mas, os brasileiros já resolveram este proble-
múltipla e exuberante paisagem. Nossas ma mesclando duas línguas. No caso, ao
dimensões continentais, nossas diferenças português do Brasil se acrescentaria um pouco
climáticas e topográficas caracterizam regi- da pronúncia do português de Portugal. Afinal,
ões com marcas identitárias que se expres- teríamos a marca linguística de portuguesidade,
sam nos tipos humanos, nos seus hábitos e ao mesmo tempo em que não se impediria a
nos costumes como marcas que individua- compreensão das falas. Na história da teleno-
lizam, ao mesmo tempo em que concorrem, vela brasileira existem exemplos de sobra. É
com seus traços genuinamente brasileiros, bom lembrar que os portugueses que moram
para integrar e fortalecer a mescla síntese de no Brasil não chegaram ontem e que sua língua
nossa brasilidade. já sofreu influência local.
Se não localizamos elementos identificadores 4. Se antes pensamos nos portugueses que
de partida em nossa primeira exploração das vivem no Brasil, temos que lembrar, à luz
razões que poderiam afastar ou não aproximar de nossas considerações anteriores, que nós
o telespectador brasileiro da telenovela portu- brasileiros temos um traço forte da cultura
guesa, outras hipóteses podem ser arroladas: portuguesa e que a musicalidade da língua
1. Como consequência do que acabamos daquele país na nossa língua de hoje poderia
de expor, não havendo razões de ordem resgatar, reavivando, lembranças arquivadas
histórico-sentimentais ou de caráter cultural pelo tempo nos porões de nossa memória.
para motivar o interesse do telespectador Este poderia ser um forte apelo à nossa
brasileiro, a novela pode ter se reduzido ao sensibilidade e uma forte motivação para
melodrama e o grande drama que motivou restaurar nossa herança portuguesa no contato
a separação das irmãs gêmeas, despojado de com a telenovela, capturando nossa atenção
sua vinculação com uma realidade vivida, para a audiência.
684 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

5. Uma outra hipótese possível é a do projeto maior. Se não agora, é provável que
natural estranhamento frente a algo novo. o caminho será encontrado. Não há nada que
Estranhamento que tem se manifestado quan- a associação de tempo, talento e persistência,
do se processam mudanças na receita do que não seja capaz de resolver.
denominamos telenovela brasileira, ou seja, Afinal, como dizem experientes roteiristas
no jeito de ser da produção dramatúrgica da de cinema e televisão, e que já se constitui
TV Globo, que construiu e impôs seu modelo, um aforismo, todas as boas histórias já foram
através de sucessivas experimentações. Espe- contadas. Assim, o desafio criativo desloca-
rar que um produto diferente possa gozar de se do o que contar para o como contar. É
uma pronta aceitação, uma entrega sem re- o como que deve ser buscado na mescla do
sistência, nos parece ingenuidade. A própria dinamismo da telenovela brasileira, manten-
TV Globo trava uma permanente luta entre do-se a marca da diferença, que entendemos
os modelos no ar e os índices de audiência. deve consistir em manter a integridade da
Não há como prever o êxito, que às vezes história (sem excesso de permeabilidade
ocorre por obra do puro acaso, como o que mercadológica) com apelos que podem nas-
fez com que o exotismo buscado por Glória cer da própria história. A inclusão de uma
Perez ao construir um núcleo muçulmano em cenografia que mostre ao Brasil um pouco
O Clone ganhasse proeminência graças à da cultura portuguesa ou do mundo portu-
tragédia provocada pelos atentados às torres guês, para além do cotidiano dramático vivido
gêmeas do World Trade Center em Nova York pelas personagens, pode ser um exemplo. Ou,
e ao Pentágono. As Filhas da Mãe, de um dito de outro modo, a ação dramática deveria
roteirista experimentado como Sílvio de Abreu, se desenvolver, enquanto ficção, com apoio
não alcançou a audiência esperada, assim como na concretude de um mundo real pleno de
Torre de Babel, do mesmo autor, encontrou atrativos, de encantos e peculiaridades, que
resistência por parte do público e teve que podem ser dados a conhecer associando-se
ser modificada. É bom lembrar, voltando no à viagem ficcional a viagem pelo país real
tempo, que Beto Rockefeller só foi um su- recortado pelo fazer ficcional.
cesso depois de uma experimentação fracas- Tais considerações têm apenas o objetivo
sada de outra telenovela que tentou inovar na de abrir um debate. Afinal, para além dos
linguagem. Outras tentativas de inovação motivos dramatúrgicos estão os de caráter
também foram rejeitadas como a elaborada mercadológico, de importância capital, em duplo
Espelho Mágico, de Lauro César Muniz. sentido, quando sabemos, de há muito, sobre
6. Por outro lado, não se pode negar a ambivalência da indústria cultural, onde
qualidades à telenovela Olhos D’Água, que viabilidade do negócio e lucratividade estão em
representa um modelo de qualidade incompa- tensão dialética com o caráter artístico e a
rável se tomamos como parâmetro as teleno- capacidade de inovar do bem produzido. Achar
velas mexicanas que têm audiência suficiente a fórmula é questão de interesse para os que
para mantê-las no ar. Talvez, o maniqueísmo pensam sobre e para os que produzem teleno-
das personagens e o desempenho excessivamen- vela, independentemente de onde se situam as
te dramático dos atores, beirando ao caricato, raízes do local na proposta que visa a trans-
esteja mais próximo do gosto de certos seg- posição de fronteiras, sejam das culturas in-
mentos do que a ingênua e suave novela Olhos ternas (ao nacional) ou das culturas externas
D’Água, mais contida como interpretação, mais (ao nacional) em direção ao transnacional.
elaborada enquanto produto audiovisual e que Como pesquisadores, nosso interesse está
ainda luta pela captura da audiência. na maior diversidade e na maior competi-
Mas, estamos apenas formulando hipó- tividade para que se depure o gênero e se
teses. Talvez se possa, futuramente, identi- apure a qualidade e a capacidade da ficção
ficar quais são pertinentes, quais são mais para que ela possa cumprir, enquanto histó-
determinantes. Pode ser ainda que cada qual ria, seu velho papel de a um só tempo nos
concorra a seu modo para dificultar a via- distrair e nos tornar melhores, explicação dos
bilidade da proposta. Afinal, há brasileiros habitantes de Marrakech para seu interesse
envolvidos na roteirização e na produção da em se reunirem na praça e ouvir, por horas
novela, certamente estamos diante de um a fio, o contador de histórias.
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 685

Bibliografia _______________________________
1
Professora e doutoranda na ECA-USP, res-
Bosi, E. (1994). Memória e sociedade: pectivamente.
2
Entrevista concedida por Marcelo Parada,
lembranças de velhos. São Paulo, Cia das
vice-presidente da BAND, à revista Contigo de
Letras, 1994. p. 56. 12 fevereiro de 2004, p.50.
Canclini, N. (1997). “Cultura y 3
Segundo material de divulgação da Emis-
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4
Periodismo y comunicación nº 9. Obras produzidas pela NBP.
5
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Brasileiras em Portugal: Indicadores de maiores audiências e são mais caros os preços de
propaganda; compreendido, em geral, entre 19 e
aceitação e mudança (no prelo).
22 horas e, no período diurno, entre 7 e 10 horas
Martín-Barbero, J. (1997) Dos Meios às (em ing., ‘prime time’).” Rabaça, C.A.; Barbosa,
Mediações: comunicação cultura e G.G. Dicionário de Comunicação. 2. ed. rev. e
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Federal do Rio de Janeiro. 6
Conforme artigo apresentado no Seminário
Motter, M. L. (2000). “Ficção e reali- Telenovela: internacionalização e intercultura-
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& Comunicação – FIAM, São Paulo, n. 2, novelas Brasileiras em Portugal: Indicadores de
aceitação e mudança” (no prelo).
p. 43, ago/dez. 7
Entendida como conjunto dos processos
______ (2001). “A telenovela: documen- sociais de produção, circulação e consumo da
to histórico e lugar de memória”. Revista USP, significação na vida social. Ver, por exemplo,
n. 48. Canclini, N. Cultura y comunicación: entre lo global
Muñoz, S. (1992). Mundos de vida y y lo local. La Plata, Buenos Aires, Argentina:
modos de ver: Televisión y Melodrama. Ediciones de Periodismo y comunicación nº 9, 1997.
8
Colombia: Tercer Mundo Ed. Conforme observação da direção da NBP,
quando do lançamento da telenovela no Brasil.
Pallottini, R. (1998). Teledramaturgia de 9
Excesso de temáticas sociais com tratamen-
Televisão. São Paulo: Moderna. to superficial como, por exemplo, a recente
Rabaça, C.A.; Barbosa, G.G. (2001) Di- Mulheres Apaixonadas, telenovela de Manoel
cionário de Comunicação. 2. ed. rev. e Carlos veiculada em horário nobre na Rede Globo
atualizada. Rio de Janeiro: Campus. de Televisão.
686 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 687

Regras de usabilidade para a produção


de aplicações em televisão interactiva
Valter de Matos1

1. Introdução préstimo dos meios de distribuição que a


primeira goza, mas também através do não
Historicamente, os dois grandes obstácu- tão novo e muito característico problema de
los à implementação de um modelo bem produção de televisão: os seus conteúdos
sucedido de iTV têm sido a insuficiência da sempre foram exigentes nos orçamentos, e
plataforma técnica que a suporta, demasiado uma nova camada de interactividade implica
lenta ou demasiado cara, e a natureza dos sempre um acréscimo do custo financeiro,
conteúdos que esta deveria suportar. Grande ao ponto que por várias vezes não são os
parte dos anteriores problemas técnicos preços proibitivos do hardware necessário que
encontra-se hoje ultrapassada, em parte gra- ditam o fracasso da iTV, mas os valores
ças ao paradigma Web onde a actual iTV se envolvidos na produção de programas
baseia. A usabilidade, enquanto disciplina interactivos. Nos novos tipos de conteúdos
promotora da utilização com eficiência de acedidos via WEB, a iTV encontra um
aplicações e sistemas, ganha nesta área uma modelo de produção barato, capaz de jus-
importância acrescida, já que os novos pro- tificar a tão necessária mais valia que lhe
motores da iTV não se podem dar ao luxo atribua um sentido de existência.
de os seus potenciais utilizadores não com-
preenderem as novas funções apresentadas, 2 – Definição de usabilidade
que em última análise serão as principais res-
ponsáveis pelo aliciamento para o serviço Tradicionalmente, associamos ao estudo
prestado. Grande parte dos estudos de da usabilidade de um determinado projecto
usabilidade em iTV pode ser facilitada pela a maximização da eficiência da sua utiliza-
experiência adquirida no domínio da Internet: ção em contextos de trabalho individual ou
a aproximação destes dois meios facilita a colectivo. Assim, uma das áreas mais estu-
transposição dos princípios enunciados há já dadas na última década terá sido a Internet
largos anos para a produção de interfaces e as interfaces desta e do computador para
Web, uma área largamente explorada e com o seu utilizador humano (Nielsen, 1993).
exaustivamente documentada. No entanto, a A profundidade deste estudo deve-se à de-
criação de conteúdos iTV segundo as regras mocratização do meio e à sua massificação,
de usabilidade retiradas do contexto Web, que obrigaram os diversos intervenientes
deverá ter em consideração as diferenças deste mercado altamente competitivo a
existentes entre as duas plataformas, que a optimizar toda a sua relação com o cliente/
actual convergência não esmoreceu. utilizador. Todos esses estudos legaram à
actual versão de iTV uma herança rica em
1.1 – Convergência iTV – Web guidelines de usabilidade e processos de
verificação e avaliação de interfaces, que além
Na sua metamorfose de acompanhamen- de optimizar a relação com o utilizador final
to das tecnologias existentes, a iTV reajusta- e reduzir a margem de erros, poderão servir
se à WEB, tanto no que respeita à plataforma para precipitar a consolidação de modelos de
tecnológica que a suporta como aos serviços produção de conteúdos e serviços.
que disponibiliza. A actual aproximação ao Na avaliação de usabilidade de qualquer
modelo WEB, protagonizada por plataformas sistema existem dois factores chave a con-
como a MSTV da Microsoft baseadas no siderar: o conhecimento das funções desem-
Advanced Television Enhancement Forum penhadas pelo utilizador, e a adequação às
(ATVEF), pode-se explicar, não só pelo em- diferenças e características de cada utilizador
688 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

individual. Esse conhecimento e adequação 3 – Guidelines de Usabilidade


ao utilizador final é a base essencial do estudo
da usabilidade aplicada à iTV. Diferentes O modelo de iTV actualmente em desen-
utilizadores realizam diferentes utilizações da volvimento é razoavelmente novo, e possui
mesma aplicação. A mesma aplicação apre- características que indicam a possibilidade de
senta diferentes curvas de aprendizagem para se poder aplicar ao mesmo muito do que se
utilizadores diferentes. Essas diferenças têm aprendeu sobre o design de aplicações Web.
de ser reflectidas no design do interface, com É deste processo que se podem retirar muitas
opções para iniciados e experts, opções essas das conclusões aqui apresentadas sobre a
que por vezes podem resultar na criação de melhor forma de estruturar informação em
mais do que um interface. iTV, bem como proceder à sua avaliação.
A usabilidade de determinado sistema Os utilizadores Web caracterizam-se por
pode ser avaliada de diversas formas, um vasto conjunto de características hetero-
seleccionadas em função do que se pretende géneas, que dificultam uma medição exacta
avaliar. As duas abordagens mais usuais das suas expectativas e reacções. Quando se
podem ser enquadradas em dois grandes fala de iTV, a dimensão e diferenças internas
grupos: testes de performance e questioná- desse grupo aumenta de tal forma que o
rios de atitude. No primeiro caso, os anterior grupo de utilizadores Web se asse-
utilizadores são convidados a efectuar deter- melha agora a um grupo bastante homogé-
minadas tarefas onde é avaliada a sua neo e coeso, essencialmente caracterizado
performance em termos de velocidade, erros pela sua relação de conhecimento e
e precisão. No segundo tipo de avaliação, a manuseamento das novas tecnologias e
percepção dos utilizadores sobre o sistema objectivos a alcançar. Neste novo nível da
utilizado é registado em entrevistas e ques- relação telespectador – televisão, muitos dos
pressupostos técnicos e comportamentais
tionários.
anteriormente tomados como base elementar
Uma das dificuldades do estudo da
da relação entre utilizador e sistema pura e
usabilidade reside na identificação de aspec-
simplesmente desaparecem, tornando ainda
tos que possam ser generalizados de um
mais difícil a avaliação e medição do suces-
sistema para outro. Na área concreta da Web,
so ou fracasso da usabilidade da aplicação,
têm sido sugeridos vários modelos de ava-
e, por conseguinte, a qualificação de um bom
liação. Por um lado, alguns autores defen-
ou mau interface de iTV.
dem a identificação de critérios como o apelo
Ainda na Web, além dos utilizadores deste
visual, a compreensão, navegação e utilidade
tipo de sistema serem vários e diferentes nas
do website, entre outros, como factores suas motivações, experiências, conhecimen-
importantes na avaliação da sua usabilidade. tos prévios, e objectivos a alcançar, também
Estes autores afirmam que esses critérios os produtores de conteúdos resultam de um
devem primeiro ser catalogados em catego- conjunto variado e heterogéneo de indivídu-
rias que permitam identificar critérios mais os. Esta particularidade resulta da facilidade
fidedignos de avaliação (Schneiderman 1997). do processo de produção para a Web que a
Essa categorização pode ser bastante variada massificação de ferramentas WYSIWYG
e dependente de vários factores, como a possibilitou, aliada à própria natureza open-
identidade do originador dos conteúdos, a source da net. A diversidade dentro deste
quantidade de informação do site, os objec- grupo tende no entanto a ser nivelada por
tivos do originador dos conteúdos depois de práticas entretanto estabelecidas de constru-
interpretados pelo webdesigner e, finalmen- ção e manutenção de conteúdos. Extrapolando
te, pelo que determina a medida de sucesso esta realidade para a iTV, poderemos dizer
do site. Outras correntes de investigação que o grosso número de pessoas que desen-
optam por identificar o que separa a Web volvem interfaces para a televisão interactiva
dos demais sistemas (Laskowski & Downey, provém de um background Web, ao invés do
1997), salientando as características próprias restrito circuito profissional da edição vídeo.
desta que a afasta dos interfaces tradicional- Um último aspecto particular a ter em conta
mente considerados. no estudo de usabilidade Web, deriva do facto
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 689

desta resultar de um conjunto também he- de confiança que se estabelece entre este e
terogéneo de tecnologias, que engloba as mais o aparelho. Com os novos conteúdos
diversas soluções proprietárias para além da interactivos disponibilizados, a confiança
já referida natureza open-source da net que estende-se aos restantes intervenientes do
não limita o leque de opções à disposição processo, desde a emissora à operadora do
do produtor de conteúdos. Esta proliferação serviço, consequentemente resultando numa
de formatos e tecnologias invade agora o mais valia às empresas envolvidas, quando
domínio dos audiovisuais, onde inúmeras comparadas com outras que prestam um mau
plataformas lutam entre si para se tornar o serviço aos seus subscritores (que não terão
standard da televisão interactiva do futuro. dificuldade em lhes apontar responsabilida-
Uma aplicação de iTV não deve ser vista des).
como uma aplicação stand-alone que obe- Assim é importante compreender que as
dece a certos critérios de apresentação de falhas que nos habituamos a menosprezar
conteúdo, mas como o culminar de uma série quando navegamos na WEB assumirão um
de experiências que o utilizador possui sobre peso diferente na televisão e não passarão
este, a sua motivação para o utilizar, e o despercebidas. O espectador de hoje já não
contexto em que o faz. Ou seja, a sua se lembra da última vez que viu a sua
construção deverá ter em conta factores de programação interrompida por motivos téc-
comportamento humano, e como os espec- nicos, e também não espera encontrar o erro
tadores interagem com a televisão e o con- 404 quando tenta aceder a um conteúdo
trolo das suas opções. interactivo ou reiniciar a sua televisão quan-
A primeira grande dificuldade ao traba- do esta bloqueia. Mas a distinção entre iTV
lhar para televisão interactiva reside na e o PC eleva-se muito além das considera-
mudança de atitude que representa para com ções tecnológicas: o contexto de utilização
é radicalmente oposto, essencialmente domi-
o modelo de televisão tradicional. Conside-
nado pela temática do entretenimento, e de
rado um meio “sit back”, termo que refere
carácter extremamente social.
a passividade com que o espectador participa
Essas diferenças do contexto de utiliza-
no processo, espera-se que a multiplicidade
ção têm de ser levadas em conta no desenho
de opções e serviços que a iTV proporciona
dos interfaces, pois um espectador de tele-
ao seu subscritor lhe confira uma atitude mais
visão não será tão facilmente “absorvido”
activa, referida pelo conceito de “lean
pelo que se passa no seu ecrã como uma
forward”. Por isso, além das principais
pessoa sentada em frente a um PC, que
guidelines no que respeita ao desenho de
activamente interage com este, à procura de
interfaces para iTV que se centram em torno algo e voluntariamente conduzindo todo o
de questões técnicas (a resolução do ecrã, desenrolar de acções que se produzem no
uso da cor, distancia de visionamento, etc.) monitor a uma distância não muito maior do
existem questões sociais ou comportamentais, que alguns centímetros de si. Ao contrário
como a expectativa sobre os conteúdos desta proximidade e intensidade de partici-
fornecidos e o modo de interagir com eles pação, a relação TV/espectador é bastante
a ser considerados. mais volátil. Ver televisão é um processo
Mais uma vez podemos retomar a dife- normalmente desleixado, marcado pela cons-
rença entre TV e PC para melhor compre- tante mudança de canais, e isso apenas
ender essas implicações. Ao longo dos anos, quando o espectador efectivamente se senta
desenvolveu-se um elo de confiança entre os à frente desta para lhe dar o mínimo de
espectadores e a televisão, que deriva do facto atenção, já que não é anormal a televisão
de sempre que estes carregam num determi- apenas cumprir as funções de produzir ba-
nado botão, a televisão responde com o rulho de fundo enquanto o suposto espec-
resultado pretendido e no tempo adequado. tador desenvolve uma série de actividades
A introdução da interactividade na televisão paralelas.
deve respeitar essa relação, sobre risco de Mesmo quando existe uma intenção
destruir as expectativas do utilizador. E não declarada do espectador de se deixar absor-
é apenas o espectador que beneficia da relação ver pelo conteúdo do aparelho, esta é em boa
690 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

parte das vezes uma acção colectiva, onde Possibilitar aos utilizadores mais frequen-
mais do que uma pessoa partilham do even- tes a utilização de shortcuts, que os leve
to. O carácter social da televisão contrasta directamente ao conteúdo procurado sem
bastante com o hábito normalmente solitário terem de passar por todas as fases intermédias
da relação utilizador – computador. Parado- que eles já não precisam de ver. Este é um
xalmente, a própria interactividade dita iTV aspecto essencialmente problemático no que
pode ser outra causa de distanciamento entre respeita à aplicação à iTV, dada a necessi-
os dois ambientes. No computador o dade não menos importante de reduzir a
utilizador está habituado a um constante vai utilização do teclado ao mínimo e mesmo
e vem de informação, e mesmo a desenvol- do controlo remoto a uma combinação fixa
ver várias actividades paralelas no seu PC, de botões.
com duas, três ou quatro aplicações abertas Possibilitar e evidenciar o feedback de
e saltando livremente entre elas como se de informações entre as aplicações e o utilizador.
um todo se tratasse. Já na iTV, o fluxo do É necessário tornar óbvio ao utilizador que
vai e vem de informação não depende in- as suas acções provocam reacções no siste-
teiramente de si, pelo menos no estado actual ma, e assim levá-lo a compreender como este
de desenvolvimento que nos é apresentado funciona. Mesmo quando a sua acção não
pelas plataformas existentes. A emissão desencadeia nenhum processo de
contínua não é interrompida pelo novo nível interactividade, seja porque é “ilegal” no
de interactividade oferecido ao espectador, contexto em que se encontra, ou porque os
para este mais tarde poder retomar ao seu conteúdos não estão lá, ou por qualquer outro
momento inicial, pelo que terá de dividir a motivo, mesmo assim deverá haver algum
sua atenção entre a emissão e os serviços feedback do servido para que não hajam
que entretanto activou. Este novo problema dúvidas no espectador que o seu comando
pode-se ainda somar ao anteriormente des- foi recebido pela televisão. Este feedback
crito carácter social do visionamento da também permite a quem assiste ao processo
televisão: se ao espectador que desencadeou mas não está na posse do controlo remoto
a interactividade é exigida uma duplicação perceber e acompanhar o que se passa.
da sua atenção, a quem se encontra ao seu Representação contínua é importante para
lado é necessário oferecer uma explicação do compreender:
que está a acontecer, quais os passos que estão a) o que se passa no ecrã e criar no
a ser dados, etc. espectador a sensação de controlo dos even-
Das guidelines tradicionalmente herdadas tos e dos elementos mostrados. Os objectos
dos estudos do Human -Computer Interaction não devem simplesmente posicionar-se na
aplicados ao desenho de interfaces para iTV posição x ou y como o espectador comanda,
podem-se salientar os seguintes: mas deslocar-se até essa posição, fortalecen-
Consistência: as sequências de acções do o sentido da acção. Tal como os menus
necessárias, os tipos de opções, termos uti- não devem simplesmente possuir um estado
lizados, cores, objectos, layouts, etc., devem aberto e fechado, mas “crescerem” gradual-
todos manter-se regulares ao longo da apli- mente quando solicitados, para o espectador
cação, para que o utilizador não tenha de nunca ter dúvidas de onde veio aquele menu
constantemente reaprender a navegar pelas e porque de repente apareceu no ecrã. Estes
opções possíveis. Esta regra não implica no comportamentos animados podem ser enten-
entanto que todas as aplicações sejam iguais: didos muito à luz do ponto anterior. Boas
não é o aspecto delas que se pretende em representações contínuas tornam claro ao
última análise sempre igual, mas a sua espectador que o botão que pressionou pro-
utilização. Num ambiente onde a atenção do duziu um efeito no fluxo de informação do
utilizador é constantemente exigida em dois ecrã, mesmo que se tal efeito se reduz a um
streamings de informação separados, e com breve piscar de cores sobre a opção pres-
um interface físico limitado como o controlo sionada. Essa correspondência reforça a
remoto (e o teclado extra quando esse exis- relação entre o controlo remoto e a imediata
te), o modelo de navegação deve manter-se resposta do sistema, que por sua vez ajudam
simples. o seu utilizador a compreender a aplicação
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 691

e a aprender com as suas acções. Não será que não deveria ter necessidade de parar para
totalmente despropositado colocar mesmo pensar no que lhe é pedido ou proposto, ou
uma espécie de histórico de botões pressi- ter de olhar para o objecto que tem na mão
onados, tal como será bastante vantajoso (mas à procura do botão A ou B. Este conceito
dependerá sempre do tipo de projecto em pode ser descrito com termos tão caros ao
questão) representar de alguma forma no ecrã HCI como “familiaridade”, “generalização”
o botão pressionado. Dado que a aplicação “consistência”, “aprendizagem”, “relevância”,
interactiva “concorre” com a emissão normal “eficiência” ou “atitude”, etc.…
da televisão pela atenção do espectador e a Existem obviamente diferenças entre o
sua compreensão, estas animações e feedback que se aprendeu com a Web e este novo meio,
das acções do utilizador ajudam ao processo. pelo que os próprios especialistas de avali-
Mas por outro lado, quando demasiado ação da utilização de interfaces não podem
intrusivas, e sobretudo se simplesmente transitar os seus conhecimen-
b) o espectador não estiver interessado tos sem primeiro os modificar para englobar
no conteúdo ou serviço que oferecem, po- os novos objectivos que se pretendem alcan-
dem ser irritantes, acabando por alienar o seu çar. Nesse sentido, o estudo da usabilidade
público. Um mecanismo de temporização que para televisão interactiva deve ter em aten-
automaticamente desactive essas funções deve ção outros elementos como o uso do remoto
por isso ser tido em conta. e do teclado, inclusive o passar destes entre
Oferecer formas simples de lidar com indivíduos, as mudanças de atenção que
erros. Idealmente dever-se-ia eliminar qual- ocorrem entre o televisor e o remoto (e
quer possibilidade deles existirem, mas tal teclado), os comentários dos intervenientes
tarefa quando muito apenas pode ser levada activos no processo sobre as opções dispo-
a bom termo ao nível técnico. Haverá sem- níveis e a sua interacção com essas opções
pre erros na compreensão e manuseamento e as interacções que se desenvolvem entre
do sistema por parte do utilizador, por mais si, além dos comentários comparativos entre
simples e óbvia que esta seja. E dado que o que estão a utilizar e outras tecnologias,
se trata de uma audiência pouco habituada nomeadamente através da nomenclatura que
a lidar com erros, devem ser criados meca- utilizam para descrever funções e conteúdos.
nismos de os ultrapassar ou anular. Tendo em conta as especificidades
Possibilidade de voltar atrás. Este aspec- identificadas anteriormente na iTV, um es-
to prende-se muito com o ponto anterior. Para tudo de usabilidade em iTV levado a cabo
qualquer acção que o utilizador possa desen- num laboratório montado para o efeito de-
cadear, a este deve-lhe ser sempre possibi- verá ter em conta as seguintes características
litado o “voltar atrás”, tenha essa acção sido (Pemberton-Griffiths, 2003):
um erro ou uma opção intencional. Opções Características físicas da interacção:
de navegação como “undo”, “back” e deverá ser criada a distância típica a que o
“forward” ajudam os utilizadores a navegar telespectador vê televisão, num ambiente
e a anular erros. A sua importância aumenta tradicionalmente relaxado e confortável. Dado
com a complexidade da aplicação em si. Se que nesta plataforma, ao contrário da Web,
tratar de um serviço como o EPG, que mostra muita da informação mais importante é
uma listagem de programas e permite ao apresentada na forma de áudio, o espaço em
utilizador aceder a um deles clicando sobre que os testes de avaliação são realizados deve
ele, deveria haver a possibilidade de retornar captar todos os sons produzidos pela apli-
ao último ecrã do EPG mesmo depois de o cação e pelos indivíduos que estão a ser
utilizador entrar no programa por si esco- observados no teste, além de vistas claras dos
lhido, sem ter que reiniciar o EPG do seu interfaces utilizados e respectivos periféricos
ecrã inicial. (controlo remoto mais teclado se for caso
Transparência: a capacidade de o disso).
utilizador usar a ferramenta sem pensar nela Alguns estudos apontam que as mais
ou sequer olhar para ela. O utilizador de iTV relevantes descobertas na utilização de apli-
deverá estar tão à vontade com o seu con- cações de iTV resultam de co-descobertas,
trolo remoto e as opções que lhe são dadas onde várias pessoas que partilham laços de
692 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

amizade ou família se ajudam mutuamente durante a sua aplicação real é que esta poderá
num processo de “pensar em voz alta”, e que ser devidamente estudada e avaliada, pois as
deve ser documentado na avaliação da apli- reacções do individuo serão bastante mais
cação. genuínas e menos forçadas do que quando
Múltiplos canais de informação a cor- em laboratório é instruído que faça isto e
rerem sobre o mesmo aparelho: a divisão aquilo com antecedência. Quando o tipo de
cognitiva que os utilizadores fazem entre o usabilidade a testar não depende do momen-
stream normal da programação e a peça to da sua transmissão, pode-se recorrer a
interactiva a que acabam de aceder deve ser protótipos para simular a interactividade.
levada em conta. Tradicionalmente, esta Estes podem ser protótipos em papel, que
divisão reflecte-se na disposição dos objec- se debruçam sobre elementos relacionados
tos ao longo do layout apresentado, onde se com tarefas, e onde a fidelidade com o
reserva normalmente uma área para a colo- produto final não tem que ser a mais precisa,
cação do objecto tv. No entanto, por ques- ou protótipos funcionais, recorrendo a apli-
tões de facilidade, este objecto é quase sempre cações como o Powerpoint ou o Director.
representado por uma imagem estática du- Apesar das vantagens acrescidas de utilizar
rante as fases de teste, pelo que o compor- uma aplicação funcional mais próxima da
tamento do utilizador final poderá ser bas- aplicação final, com alguns custos adicionais
tante diferente da presenciada no laboratório. em relação ao protótipo em papel nomeada-
A natureza embebida dos serviços mente no custo de execução e elaboração,
interactivos: a interactividade de um progra- mas mesmo assim inferiores ao produto
ma não pode ser dissociada deste, pelo que acabado, é necessário ter em atenção que este
nos testes de usabilidade levados a cabo não protótipo pode funcionar melhor que a apli-
se pode ignorar o facto de que se o programa cação interactiva, pelo que pausas e demoras
não for convidativo, dificilmente alguém na apresentação de conteúdos devem ser tidas
acederá à parte interactiva do mesmo, ao em conta e adicionados ao protótipo.
contrário do que se passa no laboratório, onde A televisão não é obrigatória: como já
o utilizador sabe à partida que deve e tem foi dito anteriormente, a nossa atitude para
de participar no processo. Da mesma forma, com a tv influencia a nossa relação. Enquan-
é necessário ter em conta que o fã incon- to no pc estamos habituados a realizar ta-
dicional de uma qualquer série ou programa refas conotadas como trabalho, motivo pelo
sujeitar-se-á a um nível de interactividade que qual nos sujeitamos a determinado tipo de
outros utilizadores optarão por ignorar. situações sem sequer as questionarmos, essa
Aspectos relacionados com a transmis- atitude é inexistente actualmente na sala de
são do programa: embora certos serviços estar frente ao televisor. Por esse motivo, é
possam ser testados com maior fidelidade sem necessário repensar a estratégia de definir x
qualquer dependência à altura exacta em que tarefas ao utilizador do sistema de iTV
serão disponibilizados, outros estão fortemen- quando este entra no laboratório para testes,
te ligados com o momento em que vão para sobre risco mais uma vez das operações e
o ar. É impossível testar com toda a segu- comportamentos ai observados em nada se
rança um serviço que depende da motivação assemelharem à realidade, já que a vontade
do utilizador, quando esse depende por sua de perseverança do utilizador está à partida
vez do momento real da sua exibição na condicionada pelo contexto em que se en-
televisão. Poder-se-á testar e apresentar contra.
cenários de uma aplicação interactiva a ser Características sociais da interacção: este
desenvolvida para uma final de um campe- será o aspecto mais complexo de reproduzir
onato europeu de futebol, mas apenas no dia num laboratório de iTV, já que as situações
deste jogo todas as condições que motivam em que os telespectadores assistem a pro-
os utilizadores do programa estarão reuni- gramas de televisão na companhia de pes-
das, com a dificuldade acrescida de que é soas desconhecidas são bastante reduzidas e
impossível repetir o evento. O exemplo mais pontuais, e normalmente ocorrem em lugares
ilustrativo desta situação prende-se com a públicos nos quais não possuem qualquer
interactividade dependente do tempo-real. Só possibilidade de domínio sobre o processo
COMUNICAÇÃO AUDIOVISUAL 693

de interactividade. Quando não assistem de sistemas interactivos, pelo que não é de


sozinhos, estão normalmente rodeados de estranhar que estas mesmas sejam utilizadas
amigos ou familiares, motivo pelo qual os aplicadas à iTV quando esta começa a incor-
testes de usabilidade devem tentar reproduzir porar os mesmos elementos interactivos da
essas relações em laboratório. As pessoas têm Web. Numa indústria como a de broadcast,
tendência a realizar outras acções enquanto habituada aos seus próprios testes de
vêm tv, acções essas que podem depender “usabilidade” baseados nos ratings dos pro-
de quem lhes faz companhia nesse momento. gramas, o estudo da relação do telespectador
Também dependendo da presença específica com o seu televisor preenche uma lacuna
que quem as acompanha, é possível assistir anteriormente marginalizada. O novo desafio
a diferenças no tipo de interactividade de é que se coloca sobre o produtor de conteúdos
desencadeado: os géneros de conteúdos a que de iTV obriga-o a ir além dos tradicionais
se acede ou quem possui o domínio sobre questionários e sondagens sobre a aceitação
o controlo remoto. de um programa, para o estudo detalhado das
Na escolha dos elementos que compõem interacções que ocorrem entre o telespectador,
estes grupos de teste, também devem ser o televisor e o ambiente em que essa relação
levadas em conta as suas experiências e é consumada. Não basta saber se o indivíduo
atitudes para com outras tecnologias, como vê o canal A ou B, ou se vê o que gosta ou
os telemóveis e a internet. Características apenas o que está a ser difundido naquele
económicas: finalmente, quem paga a momento: é preciso saber se ele compreende
interactividade também a influencia. Os a interactividade que lhe é apresentada e se
resultados obtidos em laboratório poderão ser faz uso dela ou não. Questões como avaliar
bastante diferentes daqueles que os se o controlo remoto que é fornecido ao
utilizadores finais realizam em casa, onde o utilizador responde às suas necessidades ou
custo da interactividade lhes é retirado da se é demasiado esotérico para dele tirar al-
sua conta bancária, ao contrário de ser guma vantagem, constituem uma das áreas de
suportado pela empresa que realiza os testes. investigação actual. Não podemos no entanto
esquecer, que mais do que este ou aquele
4 – Conclusão medium, o que está em causa é uma expe-
riência subjectiva que determina em última
As técnicas de observação tornaram-se instância o sucesso ou insucesso de cada nova
ferramentas base na avaliação da usabilidade inovação tecnológica que é introduzida.
694 ACTAS DO III SOPCOM, VI LUSOCOM e II IBÉRICO – Volume I

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