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Juízo jurídico e a falsa solução dos

princípios e das regras

José Reinaldo de Lima Lopes

Sumário
1. Não há diferença de natureza lógica en-
tre princípios e regras. 1.1. O juízo. 1.2. A apli-
cação de princípios ou de regras: juízos de mes-
ma natureza lógica. 1.3. Princípios em sentido
próprio. 2. A tradição hermenêutica que
Dworkin não menciona. 3. O projeto jurídico-
moral de Dworkin. Conclusão.

Pretendo neste texto mostrar sumaria-


mente que a distinção entre princípios e re-
gras não pode propriamente dizer respeito
à natureza normativa das duas categorias e
que, portanto, o fato de se invocar princípi-
os em lugar de regras não esclarece em nada
o procedimento ou o raciocínio de quem
decide. O problema central para os juristas
coloca-se na esfera do juízo e tanto princípi-
os quanto regras apresentam a mesma difi-
culdade, nenhum deles “garante” que se
produzam decisões em um sentido ou ou-
tro. Se isso é verdade, quem quer que delibe-
re segundo normas delibera da mesma for-
ma e chamar os princípios para defender
certas conclusões práticas não altera em
nada o caráter normativo-prescritivo do pró-
prio procedimento. Um segundo propósito
do texto é mostrar que, a despeito do suces-
so e da popularização da tese de Dworkin,
sua exposição peca por ignorar a história
do problema. Os juristas da tradição germa-
no-romana já conhecem os problemas levan-
José Reinaldo de Lima Lopes é Doutor e tados por Dworkin: interpretação sistemá-
Livre-docente, Professor da Faculdade de Di- tica, histórica e literal são conhecidas e in-
reito da USP. vestigadas técnicas hermenêuticas, aborda-
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das por distintas correntes. Finalmente, o gras e que, portanto, princípios devem ser
texto ressalta que o centro do problema le- coisas diferentes de regras.
vantado por Dworkin está, como ele mesmo DWORKIN propõe de fato uma distin-
chega a reconhecer, na união entre precei- ção entre princípios e regras, sugerindo que
tos jurídicos e preceitos éticos ou morais. há diferenças de natureza entre eles. Diz
Aqui reside, provavelmente, a razão do su- mais, que o sistema jurídico norte-america-
cesso de Dworkin: todos os que têm uma no é um sistema composto de princípios e
agenda ética pretendem usá-la sob a dife- regras. Diz ainda que as regras são aplica-
rença analítica de princípios e regras. Como, das em uma situação tudo ou nada e que os
no entanto, a discussão da ética por critéri- princípios são aplicados por ponderação.
os racionais foi praticamente banida do Uma regra, para não ser aplicada, diz ele,
universo mental dos juristas, incapazes de precisa ser totalmente descartada (juízo de
explicitar fundamentos comuns à ética e ao validade ou invalidade), enquanto um prin-
direito, valem-se muitas vezes do trabalho cípio será apenas confrontado com outros
de Dworkin sem atentar para as suas difi- princípios e aplicado ou não depois de um
culdades conceituais. juízo de ponderação.
À idéia de que aplicar regras é diferente
1. Não há diferença de natureza de aplicar princípios quero contrapor a idéia
lógica entre princípios e regras de que aplicar regras e aplicar princípios é
algo semelhante. Aplicar regras ou princí-
Tornou-se lugar-comum falar em princí- pios práticos (que incluem preceitos ou má-
pios e regras desde a célebre tese exposta ximas de moral ou de direito) é perfeitamen-
por Dworkin e aprofundada em seu debate te diferente de tirar conclusões de princípi-
com H. Hart. Muitos que haviam-se acostu- os matemáticos. A tarefa desta seção é mos-
mado a falar do direito como de um discur- trar, portanto, em que consiste o juízo jurí-
so lógico-dedutivo, à moda da geometria, dico e, apenas por contraste, em que consis-
viram ali a possibilidade de eventualmente tem os juízos das ciências formais (a mate-
explicar dificuldades colocadas ao enten- mática e a lógica no sentido estrito). Em se-
dimento do que fazem os juristas quando guida, será possível concluir que aplicar
praticam o direito. Outros viram na distin- regras ou princípios é, do ponto de vista do
ção uma possibilidade de “flexibilizar” o pensamento, a mesma coisa e que, portanto,
direito, que os incomodava como se fosse dividir o sistema jurídico em regras e prin-
excessivamente rígido. Os princípios seri- cípios não elimina em nada as dificuldades
am a justificativa para a flexibilização que do processo de deliberação.
as regras – identificadas por muitos com a
lei em sentido formal (norma geral produzi- 1.1. O juízo
da pelo poder legislativo) – não lhes permi- O juízo pode ser tanto a própria faculda-
tiria. Muitos outros viram na distinção de de escolha e de distinção, quanto a ope-
“princípios-regras” uma porta aberta para ração intelectual de síntese (ABBAGNANO,
escapar das dificuldades que a análise do 2000). Por isso diz-se que alguém tem juízo e
juízo jurídico de aplicação ou de subsun- realiza juízos. O juízo (operação) consiste em
ção lhes colocava. Alguns viram ali a possi- uma predicação e se expressa em uma pro-
bilidade de dizer que certos juízos contra as posição. Isso é o básico. Há, porém, juízos
leis não são arbitrários porque são confor- normativos (predicações normativas, propo-
mes a princípios e princípios valem mais sições normativas, preceitos, máximas) e há
do que leis ou regras. Finalmente, alguns juízos assertóricos (proposições afirmativas
imaginaram que a aplicação de princípios é ou negativas sobre o que é). Para ambos os
logicamente diferente da aplicação das re- casos, porém, é preciso que haja sujeitos.

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Não há juízos sem sujeitos. Uma língua não ao qual submetê-lo. Ocorrida uma morte, por
produz falas por si, como não produz dis- exemplo, procura, por investigação das cir-
cursos por si mesma, assim como um siste- cunstâncias, saber se se trata de acidente ou
ma normativo não produz decisões por si homicídio, de morte em legítima defesa ou
mesmo. A língua é apenas o instrumento qualquer outro tipo, que exclui a pena im-
dos juízos1. O ordenamento é apenas o meio posta ao homicida. Isso é, na verdade, fazer
ou a condição para decisões. Logo, predicar um juízo.
é ato de sujeitos. Os sujeitos predicam (di-
zem o mundo) de várias maneiras. Há pre- 1.2. A aplicação de princípios ou de regras:
dicações completamente formais, ou de ob- juízos de mesma natureza lógica
jetos ideais, como é o caso das predicações Ora, no que diz respeito ao juízo jurídi-
das matemáticas e da lógica. Essas predica- co, temos uma situação bastante especial.
ções que se transformam em juízos são sim- Alguns dirão que na prática do direito é pre-
ples e devem ser entendidas por quem vai ciso distinguir os juízos de fato dos juízos de
falar de matemática ou de lógica. O que é direito, ou seja, as predicações dos fatos (se
uma reta, ou que é o espaço, o que é um alga- isto ocorreu, ou se isto ocorrer) das predica-
rismo ou o que é a unidade? São coisas (con- ções jurídicas (valerá isto, será considerado lí-
ceitos) básicas que permitem os discursos. cito ou ilícito). A situação é ligeiramente mais
Essas coisas, uma vez inteligidas, permitem complexa, mas é um bom começo.
que delas se derivem outras coisas pelo ra- Essa simplicidade é muito aparente. No
ciocínio ou silogismo: passar do que sei ao juízo jurídico, trata-se sempre de qualificar
que não sei, apoiando-me no que sei. O pro- uma situação de fato. Ou se qualifica um
blema é que nas matemáticas e na lógica o fato específico, no processo de adjudicação,
que sei tem uma natureza especial: trata-se ou se trata de criar tipos de fatos que serão
de objetos ideais – não empíricos – que per- qualificados no futuro. Mais ainda, quando
mitem o pensamento abstrato. “Não exis- se trata de qualificar um fato qualquer pas-
tem triângulos na natureza”. O objeto do sado – na decisão judicial –, esse fato tem
pensamento não são as coisas empíricas, que ser convertido em um tipo. É da essên-
mas essas relações entre as coisas, que se cia da regra que ela se refira a tipos: a apli-
convertem nas matemáticas. cação de uma regra concreta é reconheci-
Um bom ponto de partida para entender- mento que o fato específico é um fato dentro
se o juízo, a despeito das muitas discussões de uma classe, classe essa descrita por al-
sobre o caso, é ainda a definição kantiana: guma regra.
“A faculdade do juízo em geral é a Quando alguém se pergunta pela licitu-
faculdade de pensar o particular como de ou pela legalidade de uma conduta ou
contido no universal. No caso de este de um estado de coisas, está deliberando o
(a regra, o princípio, a lei) ser dado, a que fazer naquele caso e em todos os casos
faculdade do juízo, que nele subsume semelhantes (segundo regras), exercendo
o particular, é determinante. (...) Po- um juízo prático.
rém, se só o particular for dado, para Ora, na maioria das vezes a dificuldade
o qual ela deve encontrar o universal, não está em saber a regra, mas saber se o
então a faculdade do juízo é simples- fato sujeita- se a uma regra e não a outra.
mente reflexiva” (KANT, 1995, p. 23). Isso acontece da mesma forma quer se trate
Certas confusões fazem crer que o juris- de aplicar uma regra ou um principio. Di-
ta, ao deparar-se com um caso, faz um juízo zer que um fato se submete a um princípio
apenas determinante. É claro, porém, que ele significa dizer que se submete a uma espé-
se envolve em juízos reflexivos, ou seja, em cie de norma e para submeter-se a uma es-
que, dado o fato, procura o universal (regra) pécie de norma é preciso tipificá-lo.

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O exemplo de que trata DWORKIN cesso judicial, para estabelecer o juízo con-
(1986, p. 15 et seq.) é ilustrativo. Ali o caso tido na menor (A matou B). Ora, nesse juízo
diz respeito a um herdeiro ou legatário que, aparentemente simples, o que está em jogo
visando receber sua herança, mata o testa- verdadeiramente é um juízo (predicar que
dor. DWORKIN questiona como o tribunal A matou B) e esse juízo tem um caráter cons-
encarregado do caso deveria proceder. A titutivo e não meramente descritivo. Quan-
despeito do assassinato, o testamento con- do se diz que A matou B, em termos jurídi-
tinuaria válido e, portanto, o assassino vi- cos, diz-se que A matou B no sentido que in-
ria finalmente a beneficiar-se de seu ato ilí- teressa para a lei. Assim, pode ser que de
cito? Bem, no direito romano-canônico de fato um ato de A tenha causado imediata-
distintos países europeus, latino-america- mente a morte de B, mas esse ato pode ter
nos ou asiáticos, a hipótese é tratada tradi- sido praticado em legitima defesa, ou B pode
cionalmente em regras específicas (no Bra- ser tido como incapaz, ou qualquer outra
sil o caso já era previsto no Código Civil de circunstância pode ter ocorrido. Nesses ca-
1916, art. 1.595, I, e continuou previsto no sos, a afirmação fática A matou B não signi-
Código Civil atual no art. 1.814, I). O tribu- fica que A matou B no sentido da lei penal.
nal citado por DWORKIN, à falta da regra Logo, apesar de um ato de A ter provocado a
expressa no direito americano, resolveu apli- morte de B, a conclusão final do juízo será
car um “princípio”: o testamento deveria ser que A não matou B no sentido legal, logo A não
invalidado para que o assassino não se be- sofrerá pena alguma.
neficiasse de seu ilícito (regra também tra- É isto que ENGISH (1979, p. 70) esclarece:
dicional no direito romano: “nemo ex suo de- “Se agora procurarmos a funda-
licto meliorem suam conditionem facere potest”). mentação da concludência na heurís-
DWORKIN afirma que a diferença entre tica jurídica, verificamos que o centro
o principio aplicado (ninguém pode invocar a da gravidade desta fundamentação
seu favor a própria torpeza) e as regras explí- reside na chamada premissa menor –
citas sobre o testamento está em que o prin- no nosso exemplo, portanto, na pro-
cípio seria aplicado por ponderação e a re- posição: ‘A é assassino’. (...) Para a
gra seria aplicável por um juízo mais sim- natureza da menor, é indiferente que
ples, do tipo: a norma é válida e, pois, aplicá- a maior seja concebida como categóri-
vel, ou a norma é inválida e, pois, inaplicá- ca ou hipotética. Na menor se acha a
vel2. já muitas vezes mencionada subsun-
Não é isso o que de fato ocorre. Na ver- ção. Mas não só nela. Pois que, em re-
dade, tanto regras quanto princípios para gra, com ela se encontra estreitamente
serem aplicados dependem de algo mais: conexa uma verificação de factos, isto
trata-se daquilo que muito acertadamente é, dos factos que são subsumidos. A
Karl ENGISH (1979) chamava de “constru- proposição: ‘A é assassino’, contém, pois,
ção da premissa menor”. Essa premissa tanto a verificação de que A praticou aquilo
menor é aparentemente apenas a descrição que, do ponto de vista jurídico, é assassi-
de um fato. O raciocínio jurídico seria es- nato, como ainda o enquadramento dos
quematicamente o seguinte: Premissa mai- factos verificados no conceito jurídico de
or = norma (matar alguém – pena de 20 anos assassinato” [ênfase minha].
de reclusão); premissa menor = fato (A ma- O mesmo problema é apontado por
tou B); conclusão (subsunção) = A sofrerá a MACCORMICK (1995, p. 92 et seq.) ao dizer
pena. ENGISH destaca com relevo que a que o juízo jurídico lida com fatos primári-
premissa menor nunca é dada pura e sim- os e fatos secundários. Diz ele que há pro-
plesmente para o jurista. Ela deve ser cons- blemas de fatos primários no que diz res-
truída e para isso serve, por exemplo, o pro- peito à reconstrução de eventos. As pessoas

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podem aceitar que existe uma lei sancionan- nição do fato ou fatos componentes
do o adultério, diz o seu exemplo. Podem, do suporte fáctico, e prova de que
porém, discordar (a) sobre os eventos, sobre esse ocorreu; b) a da sua classifica-
se A realmente cometeu algum dos atos que ção segundo a regra jurídica, a res-
constituem o adultério. Nessa fase, discute- peito da qual alguém procede como
se a reconstrução dos eventos passados. se ela não houvesse incidido. As
Além disso, as pessoas podem até concor- duas operações são o essencial da
dar em que certos atos foram praticados ou aplicação do direito.”(p. 17)
certos eventos ocorreram, mas discordam (b) Muito embora Pontes de MIRANDA afir-
da sua “classificação” dentro do tipo (ou me que a generalidade não é uma caracte-
da classe) a que se refere a lei. Nesses ter- rística essencial das leis, mas apenas o fru-
mos, o julgador fica diante de uma questão to da evolução humana, quando explica o
de fatos secundários, ou seja, a respeito de que se passa no pensamento jurídico não se
saber se os fatos ocorridos são fatos que con- recusa a dizer que as normas são, normal-
tam para a regra (que chama de questões de mente, gerais e que descer da sua generali-
classificação). E na mesma fase podem surgir dade abstrata para sua aplicação concreta é
dúvidas (c) quanto à extensão dos termos o que cria o fato jurídico propriamente dito.
da lei (o que chama de questões de interpreta- A abstração da lei trata os fatos como clas-
ção). Mesmo assim, ele reconhece que não ses de fatos, ainda que haja classes de um
há nenhuma distinção lógica real (genuine) fato só, a classe do fato sozinho.
entre os problemas de classificação e de in- “Para que os fatos sejam jurídicos,
terpretação (p. 95). Um juízo de classifica- é preciso que as regras jurídicas – isto
ção e um juízo de interpretação são logica- é, normas abstratas – incidam sobre
mente a mesma coisa. Classificar significa eles, desçam e encontrem os fatos, co-
dizer que certo fato, evento, conduta ou in- lorindo-os, fazendo-os ‘jurídicos’.
divíduo está contido em uma classe defini- Algo como a prancha da máquina de
da em uma regra; interpretar significa dizer impressão, incidindo sobre fatos que
que a classe (o termo referente à classe) in- se passam no mundo, pôsto que ai os
clui um fato, evento, conduta ou ser que se classifique segundo discriminações
apresenta diante do sujeito. conceptuais. Só excepcionalmente a
Pontes de MIRANDA (1970) também lei cogita de um só caso, sem que êsse
chega ao ponto central da questão, quando caso seja, sozinho, a sua classe.” (MI-
trata da aplicação do direito. É necessário RANDA, 1970, p. 6).
determinar os fatos, saber se aconteceram “A incidência das regras jurídicas
ou não. É preciso também “definir” os fatos, é sôbre todos os casos que elas têm
ou seja, determinar o sentido da norma, sua como atingíveis. Nesse sentido, as re-
extensão e significado para saber do que tra- gras jurídicas são de conteúdo deter-
ta. Finalmente, diz ele, é preciso “classifi- minado, e não se poderia deixar ao
car” o fato, ou seja, saber se é da classe dos arbítrio de alguém a incidência delas,
fatos determinados pela norma, ou, na sua ou não. A regra jurídica distingue-se,
linguagem, se a norma incide sobre os fatos. pois, da arbitrariedade; e a aplicação
“Quando o suporte fáctico sufici- mesma não pode ser arbitrária, pôsto
ente ocorre, a regra jurídica incide; e que possa ser, de iure condito, errônea.”
conduta humana, de tal maneira que (MIRANDA, 1970, p. 6).
trate o fato como se não houvesse in- Em sentido semelhante, acrescenta que
cidido a regra jurídica, leva a duas as regras jurídicas incidem sempre sobre
operações indicativas de suma im- todos os casos. Os casos, porém, não são os
portância para a vida: a) a da defi- fatos, pois são uma conceitualização conti-

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da nas regras, como visto acima. Ora, pode sar do sistema de direito romano-canônico,
dar-se um problema na aplicação da nor- esclarece por que desde sempre nessa nos-
ma. A esse problema, Pontes de MIRANDA sa tradição sabe-se que a falta de uma “re-
chama de aplicação injusta, que decorre (1) gra’, nos termos de DWORKIN, sempre per-
de interpretação inesperada, ou (2) de clas- mite a aplicação de um “princípio”, ou seja,
sificação inadequada do fato. uma outra regra mais geral ou mesmo pres-
“A causação, que o mundo jurídi- suposta.
co prevê, é infalível, enquanto a regra Tanto as regras como os princípios de-
jurídica existe: não é possível obstar- pendem também de determinações de senti-
se à realização das suas conseqüênci- do que não se podem dar senão em circuns-
as; e a aplicação injusta da regra jurí- tâncias específicas. Esse processo de tensão
dica, ou porque se não haja aplicado entre as normas, por definição (e não por
a regra jurídica, com a interpretação acidente) genéricas, e os fatos, por definição
que se esperava, ou porque não se te- (e não por acidente) específicos, faz com que
nha bem classificado o suporte fácti- o sentido das regras se defina ao longo de
co, não desfaz aquele determinismo: é sua aplicação. Esse processo dá-se com qual-
o resultado da necessidade prática de quer norma, ou seja, tanto no caso de princí-
se resolverem os litígios, ou as dúvi- pios quanto no caso de regras (os termos
das, ainda que falivelmente; isto é, da usados por DWORKIN). Richard HARE
necessidade de se julgarem os desen- (1996, p. 62-66) esclarece justamente esse
tendimentos à incidência.” (MIRAN- ponto quando diz que os princípios que
DA, 1970, p. 18). podem ser ensinados têm caráter provisório
Ora, tanto regras quanto princípios de- (e geral, digo eu) que vai-se estabelecendo à
frontam-se com classificação ou interpreta- medida que se vão aplicando. A aplicação
ção. Falar que um legatário que assassina o dos princípios gera sua especificação. HARE
testador é um caso de uso da própria torpe- usa a palavra princípio para abranger as re-
za em benefício próprio, que é violação da gras e os princípios de Dworkin, ou seja, os
regra básica da boa-fé, impõe tanto no caso comandos, preceitos ou máximas práticas.
de um princípio, como no caso da regra, um “Todas as decisões, exceto as que
juízo. Evidentemente há regras mais especí- são completamente arbitrárias, se é
ficas e regras menos específicas, mas sem- que existem, são, em certa medida,
pre é necessário verificar (realizar um juízo decisões de princípio. (...) Suponha
de classificação) a pertinência do caso à clas- que temos um princípio para agir de
se. É por isso que diversas vezes MACCOR- certa forma em determinadas circuns-
MICK (1995) nega que os princípios sejam tâncias. Suponha, depois que nos de-
essencialmente diferentes das regras. O uso paramos em circunstâncias que se
da analogia, diz ele (p. 155), existe sempre enquadram no princípio, mas que têm
nos juízos sobre fatos ou indivíduos, já que determinadas características peculia-
a analogia no direito é usada para levar a res, não encontradas antes, que nos
uma decisão em casos em que a regra não é fazem perguntar ‘Pretende-se real-
expressamente aplicável. Dizer que regras mente que o princípio abranja casos
se aplicam tudo-ou-nada e princípios se como este ou ele está especificado incom-
aplicam por ponderação é, na verdade, usar pletamente – temos um caso pertencente
a palavra ponderação e peso de forma me- a uma classe que deve ser tratada
ramente metafórica. Os princípios são ape- como excepcional?” (HARE, 1996, p.
nas regras mais gerais. E essa observação 68) [ênfase minha].
de MACCORMICK, que é um escocês, por- A aplicação – ou seja, a decisão segundo
tanto familiarizado com a maneira de pen- normas, preceitos, máximas, regras ou prin-

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cípios – é sempre uma especificação. Não contraditórias convivem no ordenamento
pode ser diferente, já que regras ou princípi- porque seus âmbitos de validade material
os são sempre genéricos, relativos a classes são distintos. Convivem aplicando-se a ob-
e tipos e não relativos a eventos e indivídu- jetos diferentes. Ocorre, porém, que é neces-
os singulares (ou não seriam regras) (cf. sário saber se os casos que estão sob apreci-
WITTGENSTEIN, 1991, p. 87, 92, parágra- ação são os mesmos ou não. O juízo sobre o
fos 199, 224-225). A generalidade da lei im- caso – o juízo da premissa menor – é, por-
põe necessariamente que nos casos indivi- tanto, o objeto central da controvérsia jurí-
duais haja um esforço de determinação, mas dica. E a solução dessas controvérsias não é
de determinação não arbitrária, senão ou- dada saltando-se de regras para princípios.
tra vez por princípios. É por isso que a deci- No exemplo dado por DWORKIN, o prin-
são (por eqüidade) no caso é “uma espécie cípio aplicado para anular o testamento –
de justiça”, diz ARISTÓTELES (1973), con- ninguém pode valer-se de sua própria tor-
sistente em aplicar, nos casos de indetermi- peza – foi usado no lugar de outro princí-
nação da lei, aquilo que o legislador faria se pio: o de que as disposições válidas (os atos
estivesse no lugar do julgador . E é isso exa- jurídicos perfeitos) devem ser executadas.
tamente que o Código Civil suíço manda o Mas o que fez que se afastasse um princípio
juiz fazer em caso de lacuna: preenchê-la em lugar de outro? Foi a construção da me-
como se fosse o legislador, isto é, aplicando nor: foi a determinação dos fatos, do fato
preceitos que estejam em consonância com básico que estabeleceu que o legatário ha-
o restante da legislação. via assassinado o testador. Ora, realizar esse
Esse processo de determinação das cir- juízo tem exatamente a mesma natureza de
cunstâncias é que me parece ser exatamente qualquer outro juízo a respeito de qualquer
o mesmo tanto para as regras quanto para fato que se submeta a decisão jurídica.
os princípios. Em outras palavras, o recur- O juízo de subsunção, tão típico do di-
so aos princípios não elimina o trabalho reito, é tão problemático quanto qualquer
mental exigido para a aplicação das regras. juízo. Trata-se sempre de considerar ou
E as regras não se aplicam tão claramente subpor um caso individual a um tipo geral.
da forma tudo-ou-nada. Uma regra pode Subsunção “é o enquadramento da situa-
perfeitamente ser válida, ser levada em con- ção concreta na classe dos casos” (ENGISH,
sideração pelo julgador e ser afastada em 1979, p. 78). A subsunção “fundamenta-se
um caso concreto porque os fatos – as cir- na equiparação do novo caso àqueles casos
cunstâncias – que são transformados em cuja pertinência à classe já se encontra as-
premissa menor não se consideram do tipo sente” (ENGISH, 1979, p. 79). Isso é típico
ou da classe prevista na regra. Isso mesmo de qualquer juízo. Reconhecer uma mula
pode acontecer quando se tratar de princí- quando se vê uma e chamá-la adequada-
pios: são os fatos e suas circunstâncias que mente de mula é problema dessa natureza:
vão determinar se um princípio é o adequa- é inserir um indivíduo em uma classe.
do para a solução do caso. Há, claro, uma diferença importante no
Logo, não se pode simplesmente dizer direito: o fato concreto (individual) já é em
que os princípios podem chocar-se sem que si, não poucas vezes, um fato de natureza
seja necessário retirá-los do ordenamento normativa. Saber da validade de um testa-
enquanto as regras não podem chocar-se. mento não é saber da existência de uma
Trata-se, a meu ver, de afirmação imprecisa. mula: a mula tem uma existência factual
O choque ou contradição das regras deve diferente da existência factual do testamen-
ser resolvido em primeiro lugar pela inves- to. O fato jurídico é sempre um fato instituí-
tigação dos fatos. Determinadas as diferen- do. Uma convivência entre homem e mulher
ças entre os casos, as regras aparentemente não é necessariamente uma forma de matri-

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mônio: fatos instituídos requerem a existên- princípios de toda reflexão sobre a ação de
cia de normas e de intenções cristalizadas um sujeito consciente. São princípios mo-
em normas. O matrimônio tem existência rais e jurídicos porque são universalizáveis,
conexa aos fatos, mas também distinta dos não são simples preceitos de interesse para
fatos da pura convivência. Uma outra dife- o sujeito.
rença é que a criação de fatos jurídicos (ins- Esclareço mais este ponto. O princípio
titucionais e normativos) dá-se por meio de da isonomia é princípio em sentido próprio
ação humana ou pelo menos de interpreta- da palavra princípio. Princípios são pontos
ção humana das ações alheias ou dos fatos. de partida não demonstráveis e não demons-
Diferentemente das coisas que existem fora tráveis porque evidentes. Não se trata de
dos sujeitos, os fatos jurídicos são interpre- serem indemonstráveis porque requeiram fé,
tações de fatos. uma crença irracional em alguma coisa, ou
Fazer juízos de fato sobre fatos jurídicos a submissão à autoridade alheia, ou uma
é, pois, algo semelhante a qualquer juízo, submissão à “dogmática” porque não há
ou seja, é adequação do singular ao univer- outro jeito. Os princípios são indemonstrá-
sal, do indivíduo à classe, e é também algo veis porque são os pontos de partida para
diferente, pois tanto o indivíduo quanto a além dos quais não há o que demonstrar.
espécie têm natureza prescritiva e interpre- Os princípios são inteligíveis, mas não de-
tativa, antes que exterior ou factual sim- monstráveis. Nos pontos de partida encon-
plesmente. Ora, o juízo de subsunção de um tramos sempre definições ou hipóteses, isto é,
caso tanto a uma regra quanto a um princí- a afirmação do que é uma coisa, ou a pre-
pio é semelhante. Trata-se de um juízo nor- sunção de existência de alguma coisa. Quan-
mativo ou prescritivo em qualquer dos ca- do se define não se demonstra: estipula-se,
sos. exceto se a definição for de caráter léxico.
Definição léxica é uma resenha da forma de
1.3. Princípios em sentido próprio usar uma palavra. Se uma palavra tem vári-
Uma diferença entre princípio e regra os sentidos, seu uso deverá ser definido (de-
pode, porém, ser estabelecida quando se terminado, de-finido) pelo sujeito que a vai
afirma que os princípios são as regras supe- usar. Também é possível formular uma hi-
riores, das quais outras regras dependem3. pótese e a partir dela continuar o raciocínio:
Nesses termos, sim, pode-se aceitar a dife- enquanto a hipótese for mantida, as conse-
rença de princípios e regras. Nesse caso, no qüências da hipótese podem ser admitidas.
entanto, é preciso ainda assim aprofundar Essas coisas não se demonstram, apenas se
a análise para não cometer impropriedades entendem, já que a demonstração exige sem-
mais grosseiras. pre um ponto de partida dado para se che-
Quando se diz que os princípios são re- gar a outro ponto (raciocínio). Uma defini-
gras mais gerais e superiores é preciso de- ção não se demonstra, explica-se. Se alguém
terminar-se que os princípios são como que não entende a definição, o bom professor a
regras constitutivas de um campo (SEAR- converte, reelabora, mas não a demonstra,
LE, 1995). Isso vale em todos os campos do não pode proceder de outro ponto para che-
saber. Campos de discurso e de práticas dis- gar a ela.
cursivas são constituídos por regras. Alguns Nessa esteira de idéias, a isonomia é um
exemplos de princípios jurídicos verdadei- princípio verdadeiro do direito. Regras são
ramente fundamentais podem ser dados. O sempre preceitos de igualdade. Como disse
princípio da isonomia é dessa natureza e o WITTGENSTEIN (1991), não é possível um
princípio da boa-fé também. Quando os olha- exemplo de uma coisa só, uma vez só: não é
mos de perto, vemos que são princípios não possível que só uma pessoa tenha seguido
apenas jurídicos, mas também morais: são uma vez só na vida uma regra. A noção de

56 Revista de Informação Legislativa


regra implica a de igualdade e de repetição. que signifiquem simultaneamente coisas
É da natureza das regras sua referência à opostas ou distintas; não se pode racioci-
igualdade. Assim, ao dizer ou definir regra, nar se um termo significar simultaneamen-
diz-se ou se define preceito para atuação em te uma coisa e seu contrário; não se pode
casos iguais. Qualquer pensamento segun- entrar em relação com outro ser humano se
do regras é, portanto, pensamento a partir ele puder afirmar e negar simultaneamente
da igualdade. Nesses termos a igualdade e uma coisa, fazer uma promessa e descum-
o tratamento isonômico estão implicados no pri-la. Isso é compreensível e evidente: pode
sistema jurídico. Ou se entende isso, ou não ser explicado, mas não demonstrado. Uma
se entende o que é uma regra. Uma vez en- vez entendida a boa-fé, dela se extraem di-
tendido o que é regra, é possível então che- versas conseqüências em diversos campos.
gar a outras conclusões. Toda vez que se Várias regras específicas são concretizações
encontrar uma contradição com o princípio do princípio da boa-fé.
da igualdade, está-se diante de uma antino- Esses princípios são regras muito gené-
mia a ser sanada ou removida. Como diz ricas de uma ordem normativa porque são,
CANARIS (1996, p. 207) com propriedade, de fato, seus pontos de partida no sentido
“contradições representam uma violação da próprio, ou seja, as condições de possibili-
regra da igualdade à qual tanto o legislador dade do discurso normativo4. Não seria pos-
como o juiz estão vinculados”. Ao falar de sível falar-se de regras se elas não fossem
igualdade, porém, não se fala necessaria- universais e, portanto, não fossem aplicá-
mente em igualdade universal e homogênea. veis a todos os casos iguais: se os casos não
Crianças e adultos são iguais em algumas se constituíssem em classes de casos. Isso é
coisas e desiguais em outras e mesmo os sis- óbvio e vazio, formal e abstrato como é for-
temas mais liberais e democráticos não es- mal e vazio o princípio de identidade ou de
tenderam às crianças a capacidade de exer- não contradição. Só é possível raciocinar se
cício de todos os direitos. Há vários siste- para cada coisa, ao longo do raciocínio, o
mas sociais não-democráticos, em que as sujeito usar um termo univocamente. Se o
igualdades não são universais. Mesmo as- termo for usado plurivocamente ou equivo-
sim, se são sistemas de regras, há casos de camente já não é possível raciocinar (embo-
igualdades reconhecidas e explicitadas, de ra seja possível fazer poesia, pois a poesia
modo que dentro das diversas classes deve depende em boa parte de predicações im-
haver igualdade. Enfim, o princípio da pertinentes, como diz Ricoeur). Ora, a uni-
igualdade é um princípio propriamente dito: versalidade das regras implica a isonomia.
ou se entende o que é igualdade (e, portan- Dizendo-se isso, diz-se o óbvio, mas tam-
to, regra) ou não se pode avançar nas con- bém se determina um campo. Qualquer apli-
clusões sobre a aplicação das regras. A de- cação de regras que não consiga mostrar o
mocratização social consiste justamente no critério de igualdade que usou, ou se tiver
desenvolvimento da igualdade para esferas medo de discutir o critério de igualdade uti-
cada vez mais largas e a restrição às desi- lizado, peca no essencial e mostra o caráter
gualdades aceitas. arbitrário da decisão.
Outro princípio claro é o da boa-fé. Em Há outros sentidos para a expressão
síntese, o princípio da boa-fé diz que a men- princípio jurídico, ou princípios gerais do
tira, o engano, a ocultação de fatos e a frau- direito ou do ordenamento, entre eles o de
de, por exemplo, não podem obrigar, não finalidades gerais ou de comandos teleoló-
podem ser regras ou pontos de partida. Ele gicos ou normas finalísticas5. Esses senti-
explícita, na esfera das ações interpessoais, dos podem ser atribuídos aos princípios
o princípio da identidade e da não-contra- sem precisar fazer-se uma diferença lógica
dição: não se pode ter um sistema de signos entre a aplicação de princípios e regras. A

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diferença entre um princípio finalístico e um ricanos6. A novidade está apenas em provo-
princípio axiomático ou uma estipulação é car outra vez um debate filosófico impor-
de outra natureza. Em torno disso haveria tante.
muito o que dizer, mas não se trata, neste Olhada ainda com mais atenção, a pro-
momento, do objeto dessas notas cujo pro- posta de Dworkin ignora toda a tradição da
pósito é apenas o de mostrar que a invoca- hermenêutica, jurídica e não-jurídica, pro-
ção de princípios em um julgamento não duzida fora do âmbito norte-americano.
altera substancialmente o processo mental Assim, problemas de interpretação, também
utilizado por qualquer julgador ou sujeito tradicionais para os juristas não-america-
deliberante caso ele fizesse apelo a normas nos, parecem ser absoluta novidade na ex-
ou regras de conduta. posição de Dworkin. Qual o jurista que não
ouviu falar dos métodos interpretativos his-
2. A tradição hermenêutica que tóricos? Qual o jurista que não ouviu falar
Dworkin não menciona da interpretação literal e dos respectivos
métodos de análise textual? Quem não ou-
A tese de Dworkin que fez tanto sucesso viu falar da interpretação sistemática, cuja
padece no entanto de alguns defeitos a se- característica é inserir a norma no contexto
rem considerados. de todas as outras normas? E qual o jurista
O primeiro deles, mais de estilo que de que não ouviu falar que a boa interpretação
método talvez, fica evidente para qualquer leva tudo isso em consideração? Mais im-
leitor não norte-americano do seu trabalho. portante ainda, o desenvolvimento da her-
Uma consulta rápida aos clássicos do pen- menêutica filosófica na segunda metade do
samento jurídico europeu mostra que vári- século XX constituiu um importante marco
as das dúvidas e dos problemas que assal- intelectual, aprofundando as tarefas, méto-
tam DWORKIN já foram enfrentados. As- dos e recursos de toda interpretação. H.
sim, por exemplo, sua idéia de que o juiz, ao GADAMER (1988, p. 292-293), um dos re-
decidir os casos, deve proceder com certo presentantes mais exemplares dessa tradi-
respeito a “princípios” que dão forma a toda ção, tem longos trechos de seu Verdade e mé-
o sistema jurídico é uma expressão da boa e todo descrevendo o método dos juristas ao
velha fórmula, tradicional desde os medie- lado dos métodos da hermenêutica bíblico-
vais, da interpretação sistemática. Pressu- teológica e chamando nossa atenção para a
punham eles que as regras deveriam ter al- relevância destas duas áreas tradicionais da
gum sentido que fosse relacionado com a hermenêutica.
totalidade do Corpos luris e que não se trata- “A hermenêutica jurídica é capaz
va de indagar apenas da aplicação locali- de destacar qual é o verdadeiro proce-
zada de uma lei. Interpretação sistemática dimento das ciências humanas. Te-
quer dizer que toda vez que aplica a mais mos aí o modelo para a relação entre o
específica das regras jurídicas (imaginemos passado e o presente que estamos pro-
um artigo de uma portaria do juiz correge- curando. O juiz que adapta o direito
dor do foro) o jurista está, na verdade, apli- recebido às necessidades do presente
cando todo o ordenamento jurídico: já deve- está sem dúvida tentando realizar uma
rá ter verificado que tal regra procede de tarefa prática, mas sua interpretação
autoridade competente, que não contraria da lei não é absolutamente, por causa
regras superiores e assim por diante. Apli- disto, uma interpretação arbitrária.
car uma regra qualquer é sempre aplicar Novamente, aqui compreender e in-
todo o ordenamento. Logo, não há, na tese terpretar significa descobrir e reconhe-
de Dworkin, nenhuma novidade extraordi- cer um significado válido. Ele procura
nária, pelo menos para os juristas não-ame- descobrir a ‘idéia jurídica’ de uma lei

58 Revista de Informação Legislativa


ligando-a ao presente. É claro que se pode ser percebido de uma perspectiva in-
trata de um vínculo jurídico. É o signi- terna, de primeira pessoa, pois o sentido
ficado jurídico da lei, e não o significa- prático (normativo, guia da ação) só se des-
do histórico da promulgação da lei ou cobre de dentro, não de fora. De fora desco-
dos casos particulares de sua aplica- brem-se regularidades, de dentro desco-
ção que ele está tentando compreen- brem-se sentidos. Ora, isso foi tradicional-
der.” (GADAMER, 1988, p. 292-293). mente explorado na tradição hermenêutica
De toda maneira, como diz Charles também com o ideal da própria unidade. Há
TAYLOR (1989) com propriedade, certos unidades de sentido e todo 14 texto tem um
debates importantes na filosofia de língua sentido que lhe dá unidade. Quando se fa-
inglesa ressentem-se de um certo provincia- lava do legislador (espírito do legislador),
nismo por se restringirem justamente a cer- quando se falava do espírito da lei e assim
ta concepção de mundo que não abrange por diante estava-se a falar de uma unidade
toda a produção cultural do “ocidente”. de sentido. Na teoria de Kelsen, a norma
Referindo-se ao importante debate entre co- fundamental dá o sentido ao sistema, pois é
munitaristas e liberais, TAYLOR (p. 182) a partir dela – tomando-a como critério ou
ressalta: “A discussão, até o presente mo- medida – que se predica toda outra situa-
mento, sofreu de certo provincianismo. Ela ção normativa. Da mesma maneira, a tese
deve enfrentar-se com o mundo real da de- da “resposta correta”, ou a “integridade”
mocracia liberal, para fazer eco a um de meus (no célebre exemplo da “chain novel”, ro-
compatriotas, cuja maior parte encontra-se mance em cadeia) de DWORKIN são as uni-
fora das fronteiras dos Estados Unidos”. Na dades de sentido. A resposta correta é pres-
mesma linha, mostrando um certo provin- suposta: sem que se acredite na resposta
cianismo dos estadunidenses, Höffe ressal- correta não há como começar a buscar a res-
ta que os comunitaristas estadunidenses posta correta, ou melhor, não há como con-
não citam uma vez sequer um autor cuja frontar as repostas possíveis com a respos-
obra mais importante – e de influência in- ta correta ideal pressuposta. A aceitação de
ternacional – dedicava-se justamente à co- que há uma comunidade política e que tal
munidade: Ferdinand Tönnies. Por causa comunidade política não é meramente con-
disso, várias questões que já dispõem de um tingente na história, produto cego de forças
bom quadro analítico são tratadas outra vez sociais, mas uma comunidade de sentido,
do ponto zero (HÖFFE, 1998, p. 168). fornece aos juízes e intérpretes em geral o
Estas são, no entanto, apenas conside- critério da unidade de sentido (cf. BONARI-
rações de estilo, como observado, mais do NO, 2002, p. 176-177).
que de método. As muitas indagações de Os problemas mais conceituais apare-
Dworkin são velhas conhecidas dos juris- cem, a meu ver, em pontos de natureza real-
tas não-norte-americanos e talvez por isso mente conceitual. Para isso é preciso ver
mesmo ele tenha sido lido e discutido fora quais as intenções de Dworkin e qual o sen-
dos Estados Unidos da Inglaterra. tido mais geral de seu projeto teórico.
O que seria relevante na tradição herme-
nêutica pouco ou nada mencionada por 3. O projeto jurídico-moral de
Dworkin? A palavra-chave para essa res- Dworkin
posta está na idéia de sentido. De fato, toda
interpretação é a busca do sentido, a com- Dworkin quer dar uma definição de di-
preensão dos termos em função de um sen- reito que una conceitualmente coisas que se
tido. Sim ultaneamente toda interpretação haviam diferenciado ao longo dos últimos
pressupõe um sentido: ao buscar um senti- tempos: o direito e a moral. Creio que parte
do, pressupõe que ele exista. O sentido só essencial do projeto de DWORKIN é afir-

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mar, como faz em um de seus textos, que dido moral e direito de forma simples e (2)
existem direitos morais ao lado de direitos le- invocado como patrono dessa cisão o filó-
gais. Afirmar que das regras morais decor- sofo de Königsberg7.
rem direitos, isto é, faculdades que podem Um segundo propósito do programa te-
ser exigidas pelos respectivos titulares, quer órico de DWORKIN é o de legitimar as deci-
dizer que em algum lugar, mais especial- sões interpretativas do direito. Nesse senti-
mente no ponto de partida, direito e moral do também ele tem razão: todo ato de apli-
se unem. Os direitos morais, sendo funda- cação é um ato de interpretação que é, por
mentais, não podem ser afastados de modo sua vez, ato de criação do direito. Inserida
muito fácil dos direitos atribuídos pela le- no seu programa interpretativista, a tese
gislação. ganha destaque, mas também não é nada
Esse projeto de Dworkin é nobre e sensa- que os juristas europeus e latino-america-
to, sem dúvida alguma. E a forma de expô- nos já não tivessem dito. O próprio KELSEN,
lo é atraente e competente. Mas, outra vez, tomado como o mais exemplar representan-
não parece totalmente original. De fato, nes- te do positivismo, diz expressamente que
ses termos, a tese de Dworkin pode repor- todo ato de interpretação e de aplicação é
tar-se à boa e velha doutrina kantiana do ato de criação do direito. À diferença de
direito. Como é de todos sabido, o direito, Dworkin, naturalmente, KELSEN diz que
para KANT (1995), encontra-se com a mo- esse processo de aplicação e criação está
ral na esfera dos princípios primeiros da fadado a ser algo incontrolável por qualquer
razão prática. Um postulado de toda a ética método científico e com isso joga a interpre-
kantiana é a autonomia e a dignidade dos tação e a aplicação para um limbo de
sujeitos. Falar de moral é falar de um uni- (ir)racionalidade. DWORKIN pretende, en-
verso de fins que só pode ser imaginado tre outras coisas, salvar a racionalidade des-
entre os sujeitos humanos, livres e autôno- se processo dizendo exatamente que a raci-
mos. A vida moral é típica de sujeitos capa- onalidade da aplicação das regras precisa
zes de reflexão (crítica e autônoma) e, em ser completada por uma ponderação de prin-
função da reflexão, capazes de decidir e agir. cípios. A aplicação ponderada de princípi-
KANT afirma ainda que há um só direito os é uma tarefa racional de justificativa.
natural, ou faculdade natural que pode ge- Esse segundo tema de Dworkin parece
rar direitos, ou seja, regras heterônomas: tra- perfeitamente compatível com as grandes
ta-se da liberdade. Não é a vida o primeiro reformas sociais que os norte-americanos
direito natural, pois a vida é apenas o pres- tiveram de fazer sem mexer na sua consti-
suposto fático da existência dos sujeitos. A tuição. Tiveram que incorporar direitos mí-
liberdade, porém, é uma faculdade – dos nimos (como os direitos de integração ou da
seres humanos vivos, ça vat sans dire – que não-discriminação racial) sem alterar a cons-
pode ser reflexivamente convertida em obje- tituição federal e sem confessar abertamen-
to de regras. O direito é o sistema de regras te que pelo menos desde o final da guerra de
que permite as liberdades recíprocas e si- secessão e da emenda constitucional XIV
multâneas. O direito é, pois, em última ins- haviam vivido um paradoxo para qualquer
tância, fundado na moral. Para seres inca- democracia moderna: sustentar institucio-
pazes de moral não pode haver direitos: nalmente a licitude (constitucionalidade) de
para seres capazes de moral, o sistema jurí- regimes de apartheid explícito em vários es-
dico parte da mesma idéia que funda a mo- tados da União. Esse segundo tema serviu
ral, ou seja, a liberdade. Assim, a tese de também para todos os outros juristas que se
Dworkin pode ser reportada à tradição kan- viam diante de tarefas semelhantes em ou-
tiana. Sua originalidade, se quisermos, está tros lugares especialmente após a guerra
em afastar o senso comum que havia (1) cin- mundial de 1939-1945. Na Alemanha do

60 Revista de Informação Legislativa


pós-guerra e um pouco em toda parte nas verdade as constituições contemporâneas
duas décadas seguintes ao conflito mundi- são a rigor um repositório de regras de dis-
al e ao fim do nazismo, conheceu-se um “re- tribuição. As regras de distribuição deter-
nascimento” do direito natural (apoiado em minam o que é o seu de cada um e criam
uma filosofia idealista dos valores). Trata- certas “esferas de justiça”. Na esfera da con-
se, creio, da contrapartida americana com a tribuição para a manutenção do Estado, a
diferença de que o projeto de Dworkin é cla- regra adequada é a capacidade econômica:
ramente moderno e crítico, enquanto o mo- quem mais tem mais contribui. Na esfera da
vimento alemão, que muito cedo foi suplan- obtenção dos benefícios sociais, a regra pode
tado, era idealista não propriamente crítico, ser contrária: quanto menor a capacidade
culturalista e com tons conservadores. Ape- econômica, maior o benefício. As regras são
lava para valores como para objetos, sem contraditórias? Não se observarmos que se
maior interesse pela análise do processo dirigem a “esferas” distintas, ou melhor, que
propriamente lógico de sua aplicação. criam esferas distintas. De toda maneira, as
O atrativo das propostas de Dworkin, regras constitucionais distribuem poder e
porém, não pode impedir que seus limites posições sociais e as distribuem desigual-
sejam examinados. E seus limites encontram- mente em função de ou tendo em vista cer-
se, a meu ver, justamente na afirmação de tos objetivos. Algumas distribuem de ma-
que há entre princípios e regras diferenças neira universal e igual certas posições: por
nos próprios critérios de aplicação. Essa exemplo, a que garante a liberdade e a auto-
afirmação torna-se tanto menos adequada nomia de qualquer sujeito de direito (pes-
quando se imagina que a aplicação de prin- soa humana) no que diz respeito ao gozo
cípios abre, para os aplicadores do direito, dos direitos. Outras permitem que os sujei-
as portas da “criatividade”, dando a enten- tos sejam (e devam ser) diferenciados. Por
der que os princípios são afirmações gené- exemplo: menores de 16 anos não votam.
ricas de intenções e que cada um está auto- Significa que não têm direitos ativos na es-
rizado a ter os seus. Certamente não é essa a fera política (dos mecanismos de delibera-
intenção de DWORKIN, que escreve expres- ção sobre as coisas coletivas e das decisões
samente para afirmar, a partir de concep- coletivizadas). Menores de 16 anos preci-
ções morais fundamentais, que os princípi- sam de “representantes” legais, pois não
os funcionam como unificadores da inter- podem por si exercer seus direitos. Os exem-
pretação. Mesmo assim, da maneira como o plos poderiam ser multiplicados, mas a idéia
assunto vem sendo tratado por muitos, e importante é que nas Constituições o que se
como vem sendo vulgarizado no discurso chama muitas vezes de princípios são na
jurídico, a ressalva é necessária. verdade regras de distribuição.
Da maneira como alguns usam a expres- Essas regras de distribuição exigem, tan-
são princípio e sobretudo da maneira como to quanto as regras da comutação (a da tro-
a aplicam mostram perigos para a vida de- ca das posições e direitos), aplicação. Mas
mocrática e para as liberdades. No caso do aplicá-las é diferente não porque sejam lo-
direito constitucional, isso é particularmente gicamente coisa diferente de outras regras,
evidente. Fala-se de princípios constitucio- mas porque o objeto e o conflito sobre o qual
nais para coisas muito diferentes8. A isono- incidem é estruturalmente diferente. Esta é,
mia (igualdade perante a lei) tem uma natu- a meu ver, a verdadeira diferença. Natural-
reza bastante diferente da eficiência na Ad- mente, regras dessa natureza têm precedên-
ministração (art. 37, caput), ou da pessoali- cia sobre as regras de comutação (troca),
dade e da capacidade econômica do contri- porque só se pode trocar aquilo que já foi
buinte (art. 145, parágrafo primeiro) e assim distribuído, individualizado. Mas nem sem-
por diante. Por que isso? Bem, porque na pre a disputa é sobre uma troca. Muitas ve-

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zes, sobretudo na esfera do direito constitu- cesso de justificação. Sair disso é cair no
cional, a disputa é sobre a distribuição. Ora, gosto, no sentimento e nas boas intenções
nas disputas distributivas, uma das coisas das pessoas. Sociedades democráticas são,
mais importantes é justamente a necessida- porém, sociedades burocráticas, ou seja, so-
de de observar a classe inteira dentro da ciedades em que os critérios e aplicação de
qual se dá a distribuição. A decisão de um regras são impessoais e só podem validar-
conflito distributivo atinge a todos os que se com apelo a regras universais. Ousaria
pertencem a uma classe. O exemplo mais dizer que aplicação de princípios (regras de
óbvio é o das disputas entre sócios: a mu- distribuição) é ainda mais restritiva e mais
dança na posição de um (ou de uma classe difícil, pois, a cada vez que alguém quer
de sócios) afeta a posição dos outros. Cada aplicar um princípio com alcance assim uni-
sócio que disputa com a sociedade disputa versal, deve estar disposto a demonstrar que
necessariamente com todos os outros sóci- em todos os casos imagináveis o princípio
os. Assim, uma ação proposta contra a so- continuará válido. Como a extensão dos ter-
ciedade é um ação proposta contra todos mos em princípios gerais é por definição
os outros. Essa é a razão de ser de regras mais ampla, a tarefa de justificação é mais
que exigem unanimidade para certos ca- árdua.
sos, ou as regras que permitem que a mai- Lembro aqui uma afirmação de Cujácio,
oria volte atrás em suas decisões quando ao comentar o ofício do juiz e sua relação
a minoria resolver exercer seu direito de com a eqüidade, ou seja, aquela virtude que
retirada. permite que a regra universal seja aplicada
Ora, essas questões distributivas pres- ao caso particular: “os juizes são peritos em
supõem, naturalmente, discussões éticas. eqüidade não porque sejam juizes, mas por-
Discussões éticas podem ser feitas dentro que são jurisconsultos, porque são peritos
de parâmetros de racionalidade. Não é por em leis e costumes”. Não é pelo seu status
acaso que o mesmo DWORKIN se envolve que têm mais perícia na aplicação das leis
em várias dessas discussões, mostrando aos casos concretos: é porque sabem o direi-
que a aplicação do direito pressupõe a cons- to – por conhecerem as leis — que conse-
ciência do caráter moral em última instân- guem aplicá-lo.
cia do que se está julgando. Sua obra é re-
pleta de debates sobre a discriminação raci- Conclusão
al, o direito ao aborto, a defesa dos homos-
sexuais, a defesa da liberdade de manifes- O argumento e a tese de Dworkin podem
tação de pensamento e assim por diante. ainda ser salvos. Ele mesmo reconhece, de
Não se pode dizer que a aplicação de modo um pouco disfarçado, que as diferen-
princípios nesses termos, ou seja, a aplica- ças lógicas entre regras e princípios talvez
ção de regras de distribuição, é mais “flexí- não sejam o mais importante (DWORKIN,
vel”, escapa à “lógica formal”, é mais “ma- 1980, p. 71). Talvez o que realmente impor-
terial”, permite a “ponderação”, etc. Em to- te, segundo o próprio DWORKIN, seja a re-
dos esses casos, ao fazer aplicações dessa lação entre princípios e direitos. Assim, di-
forma, quem aplica a regra está apenas ten- reitos subjetivos e fundamentais seriam ob-
tando escapar da demonstração e da justifi- jeto de princípios e não de normas. Nesse
cação extensa do seu juízo. Seja administra- caso, porém, procederia uma objeção feita
dor ou juiz, tenta escapar de uma justifica- por MacCormick (1995, p. 259) de que
ção universal, em nome de “flexibilidade”. Dworkin está apenas estipulando um uso
Não, as regras distributivas (os princípios, da palavra princípio, e estipulando-o em con-
como dizem muitos) são aplicáveis mas exi- trário a seu uso comum, o que pode gerar
gem tanto quanto qualquer regra um pro- equívocos. Talvez o que realmente importe

62 Revista de Informação Legislativa


2
para DWORKIN é tentar demonstrar (ai sim, “Questo modo di pensare, per la veritá, sem-
contra certas versões positivistas mais sim- bra fondarsi sull’assunzione fallace che l’ applica-
zione delle norme non dia luogo a dubbi o difficol-
ples) que os pontos de partida de um siste- tá, né comporti scelte discrezionali, quase se le nor-
ma jurídico são os mesmos pontos de parti- me avessero (sempre o quasi sempre) un campo di
da de outros sistemas normativos e, pois, applicazione chiaro e ben delimitato, senza margini
da razão prática em geral. É justamente isso, di incertezza. Si deve obiettare che, al contrario,
creio, que pode ser salvo de sua abordagem. anche e norme (tutte le norme) soffrono, non meno
dei principi, di un certo grado di vaghezza, e che
Isso, porém, não é sempre o que se discute. pertanto anche l’ applicazione di norme é, nella
Para discutir, nesses termos, a tese de maggior parte dei casi, discrezionale e controverti-
Dworkin, seria preciso postular uma forma bile. Insomma, l’ indeterminatezza o elasticitá di
qualquer de unicidade da razão prática, ou formulazione non pare un criterio efficace per dis-
pelo menos da razão jurídica e da ética. Se- tinguere con netezza le norme daí principi, per la
buona ragione che é una proprietá largamente co-
ria preciso também, como me parece que foi mune alle une e agli altri: la differenza, se mai, é
demonstrado por NINO (2003, p. 6), voltar questione di grado.” (GUASTINI, 1993, p. 449).
a tratar do discurso jurídico de índole nor- 3
Ricardo GUASTINI (1993, p. 449) diz que prin-
mativa e justificatória, coisa esquecida por cípios podem ser normas que fundamentam ou-
boa parte da tradição romano-canônica tras normas de três maneiras: 1) como fundamento
lógico (uma norma mais geral contém em si outra
(continental). norma mais específica); 2) fundamento teleológico
Tudo isso, porém, só faz sentido se ad- (uma norma que indica o fim serve de fundamento
mitirmos, como o faz MACCORMICK (1995, a uma norma que determina os meios para aquele
p. XVI) no prefácio da edição de 1995 de fim); 3) fundamento de validade (uma norma dá
seu Legal reasoning and legal theory, essa as condições de competência para que outra norma
se produza).
união entre ética e direito: 4
Uso, pois, princípios no sentido próximo ao de
“Estou convencido, por Robert axioma ou postulado, sentido rejeitado por Hum-
Alexy (e conseqüentemente por Jürgen berto Bergmann de ÁVILA (1999, p. 41). ÁVILA
Habermas), que uma explicação do chama de princípios, um pouco na linha de Alexy,
discurso prático racional pode ser ela- as “normas que estabelecem diretamente fins, para
cuja concretização estabelecem menor exatidão qual
borada derivando-se uma justificati- o comportamento devido (...) e por isso dependem
va das instituições jurídicas dos re- mais intensamente da sua relação com outras nor-
quisitos de uma razão prática em ge- mas e de atos institucionalmente legitimados de
ral, submetendo a razão jurídica com- interpretação para a determinação da conduta de-
pletamente aos princípios gerais da vida”. Note-se que se ALEXY (1998) usa a expres-
são principio querendo significar regras que estabe-
racionalidade prática”. lecem fins que se podem alcançar mais ou menos,
A seu modo, no momento de formação trata-se de sentido praticamente oposto ao de
do pensamento jurídico ocidental, Bártolo Dworkin. Para DWORKIN, princípios expressam
de SASSOFERRATO (1559) afirmava a mes- direitos que não podem ser afastados, têm caráter
absoluto (um pouco como os direitos fundamen-
ma coisa, a meu ver, com propriedade e sín-
tais ou direitos naturais). Essa distinção entre Ale-
tese: “por isto é evidente que nossa ciência xy e Dworkin precisa ser realçada, pois os dois ex-
pressupõe a ética, que tem por objeto o bom pressam conceitos opostos e não complementares
e o eqüitativo” 9. na esfera da teoria geral do direito.
5
Essa parece ser a solução adotada por Robert
ALEXY (1998, p. 12).
6
Apenas para citar fontes sintéticas de nossa
Notas tradição, vale lembrar Karl Larenz e sua Metodolo-
gia da ciência do direito, ou no Brasil a obra de Carlos
1
Isso não quer dizer que a língua seja apenas a Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito. É,
expressão externa (pelos sujeitos) dos objetos da- pois, longuíssima a tradição do direito romano-
dos (do mundo). Reconheço explicitamente o cará- germânico ou romano-canônico em lidar com ques-
ter constitutivo da linguagem, à moda de Wittgens- tões de interpretação e de princípios. Na filosofia,
tein, à moda de Searle e de Paul Ricoeur. por outro lado, é enorme a produção contemporâ-

Brasília a. 40 n. 160 out./dez. 2003 63


nea em torno da hermenêutica e da interpretação, CANARIS, Claus-Wilhem. Pensamento sistemático e
bastando mencionar dois nomes europeus: H. G. conceito de sistema na ciência do direito. 2. ed. Lisboa:
Gadamer, na Alemanha, e Paul Ricoeur, na França. Calouste-Goulbenkian, 1996.
De uma outra forma, mesmo a indispensável filo-
sofia de K. Otto Apel (A transformação da filosofia) DWORKIN, Ronald. Law’s empire. Cambridge: Har-
tem sua dose de hermenêutica. Curiosamente, ne- vard Univ. Press, 1986.
nhum deles é jamais mencionado nas bases filosó- ______. Taking rights seriously. Cambridge: Harvard
ficas de Dworkin. Conferir também BONARINO Univ. Press, 1980.
(2002, p. 180-182) para uma idéia de quanto a
dogmática romano-canônica já elaborou os temas ENGISH, Karl. Introdução ao pensamento jurídico. 5.
tratado por Dworkin. ed. Lisboa: Calouste Goulbenkian, 1986.
7
KANT (1995) pressupõe que a razão prática
GADAMER, H. G. Truth and method. New York:
também tem a sua metafísica, sua teoria ou filoso-
Crossroad, 1988.
fia geral. Trata-se da metafísica dos costumes, que
é o ponto comum às duas outras formas da razão GUASTINI, Ricardo. Le fonti del diritto e
aplicada à liberdade (prática): a elaboração e a apli- l´interpretazione. Milano: Giuffré, 1993.
cação das leis (doutrina do direito) e a perfeição do
sujeito (doutrina da virtude e dos deveres morais). HARE, Richard. A lnguagem da moral. São Paulo:
Para uma introdução à tensão entre direito e virtu- Martins Fontes, 1996.
de em Kant, cf. TERRA (1995). HÖFFE, Otfried. Vernunft und Recht: Bausteine zu
8
NINO (2003) também acredita que os princí- einem interkulturellen Rechtsdiskurs. 2. ed. Frank-
pios de que fala Dworkin são princípios morais. furt: Suhrkamp, 1998.
Por isso as diferenças que ele aponta não são entre
diferentes tipos de normas jurídicas, mas entre di- KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tra-
ferentes tipos de norma práticas: morais e jurídi- dução de V. Rohden e A. Marques. Rio de Janeiro:
cas. A confusão de Dworkin, segundo NINO (p. Forense Universitária, 1995.
154), reside justamente em acreditar que essa dife-
MAcCORMICK, Neil. Legal reasoning and legal the-
rença tem repercussão no raciocínio prático.
9 ory. Oxford: Oxford Univ. Press, 1995.
“Ex hoc apparet quod Scientia nostra supponitur
ethice, in qua bonum et aequum subjectum est” (SAS- MIRANDA, Pontes de. Tratado de direito privado.
SOFERRATO, 1559). Rio de Janeiro: Borsoi, 1970, v. 1.
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