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A colonização epistemológica e a supressão do estudo de

Lenin nas Relações Internacionais

Matheus O. G. de Miranda RA 00208715

Introdução

Norbert Elias, em sua obra “O Processo Civilizador” (volume um,


capítulo um), trata da origem social das palavras alemãs Zivilisation e Kultur,
caracterizando, inicialmente, a primeira como um conceito que “expressa a
consciência que o Ocidente tem de si mesmo. (...) Ele resume tudo em que a
sociedade ocidental dos últimos dois ou três séculos se julga superior a
sociedades mais antigas ou a sociedades contemporâneas ‘mais primitivas’.”
Em seguida, o autor a “re-define”, em contraste com a palavra Kultur, como,
para os alemães, “algo de fato útil, mas, apesar disso, apenas um valor de
segunda classe, compreendendo apenas a aparência externa de seres
humanos, a superfície da existência humana.” Enquanto Kultur seria “a palavra
pela qual os alemães se interpretam, que mais do que qualquer outra
expressa-lhes o orgulho em suas próprias realizações e no próprio ser...”
(Elias, 1939). Contextualizando, Elias pretende em seu trabalho expor como a
palavra “civilização”, importada do francês, representa, em alemão, nada mais
do que uma noção geral de “Ocidente”, de “bloco desenvolvido”, de unidade
entre aqueles “sujeitos estatais” que são pioneiros no monopólio da força e, por
isso, mais “avançados”, não só no desenvolvimento de suas forças produtivas,
mas também cultural e intelectualmente, são produtores de costumes,
cortesias, etiqueta. Enquanto a palavra “cultura”, “original” do alemão, é o
símbolo do “auto-orgulho” nacional dos alemães. É aquela que se usa para
tratar das qualidades, virtudes essenciais dos próprios alemães em relação aos
outros europeus. Ou seja, enquanto a primeira demarca a fronteira da
civilização, a segunda demarca a fronteira da civilização dentro da civilização.
Se Zivilisation é o que faz dos europeus, europeus, e dos índios, índios, Kultur
é o que faz dos alemães, europeus, e dos europeus, europeus de “segunda
classe.” Em suma, nota-se aqui um processo semântico de delimitação do que
é avançado e do que é atrasado na humanidade. Ao tratar dessa questão, Elias
desenhava a caricatura local da essência de um processo - já em andamento
fora da Europa - que tomaria proporções globais e que, contemporaneamente à
data de publicação da obra de Elias, a própria Alemanha levaria a cabo dentro
do continente europeu. O processo histórico da colonização do mundo, o
colonialismo.

Colonialismo e dependência: a colonialidade do saber

O colonialismo foi o processo por meio do qual o sistema capitalista -


ainda jovem, em sua fase mercantil - se expandiu da Europa Ocidental para a
maior parte do planeta (América, África, Oceania e partes da Ásia). Entende-se
por colonização um processo de longa duração histórica, onde um povo que se
autoproclama “mais desenvolvido” domina povos que considera “menos
desenvolvidos” pelo uso da força, tomando-lhes sua terra, suas riquezas e
suprimindo sua cultura, língua e quaisquer outras particularidades desses
povos que não sejam aceitas pela cultura dos colonizadores. Esse processo é
levado a cabo em nome da “civilização”, da expansão das fronteiras do mundo
racional, pelo fim da barbárie selvagem e da “vagabundagem.” Inevitavelmente,
é central no processo colonizador a assimilação dos povos colonizados à lógica
da produção capitalista, ou seja, a transformação dos nativos de cada colônia
em máquinas vivas, seres sem vontade, sem subjetividade, cuja existência
deve se resumir no esforço pela produção de cada vez mais valor, seja pela
extração direta de riqueza naturais, seja pelo aprimoramento manual destas
(trabalho artesanal, ou especializado), para que esse valor seja transferido para
a metrópole, e gere mais valor. Os colonizadores europeus se utilizavam dos
mais diversos métodos na realização dessa tarefa, do convencimento e da
cooptação dos indígenas pela Igreja, até a tortura e a violência indiscriminada.
Quando os nativos locais já não supriam mais as necessidades dos
colonizadores na área da exploração/produção, - por sua forte resistência e
conhecimento do terreno e da mata, o que tornava-os difíceis de capturar,
resultando em poucas mãos para os europeus explorarem - chegaram em
navios os nativos da África, escravizados e transportados pelos colonizadores
brancos. Assim, o trabalho escravo passa a ser o grande motor transformador
da realidade nas colônias, e o saque, a invasão e a exploração, seu
combustível. O colonialismo é nada mais senão a transfiguração do estupro em
um processo histórico, pois nele reina a violência e a exploração de inocentes,
que permite o regozijo, o gozo, o lucro daqueles que são historicamente
conhecidos como invasores, aproveitadores, violentadores. Não é por menos
que, atualmente, enxerga-se a feminilização da figura do nativo, um ser
supostamente infantilizado, que anda sem vestes e não possui a “maldade
natural” do europeu, por ser puro, intocado pelas brutalidades do “mundo dos
homens.” Pois, se o nativo é a fêmea, o europeu é o homem que a viola. 
Agora, no campo dos estudos sobre o conhecimento e o
desenvolvimento das ciências, o peruano Aníbal Quijano, em seu trabalho
“Colonialidad y modernidad/racionalidad”, de 1992, discorre sobre as origens
cartesianas do pensamento europeu ocidental, a fundação da ciência moderna
com base na máxima “sou, logo existo”, que transforma a ciência em relações
“sujeito-objeto.” Esse aspecto basilar da racionalidade iluminista é fundamental
para a compreensão das relações entre europeus e povos colonizados. É clara
a expressão cartesiana dessas relações, uma vez que os povos nativos nunca
são sujeitos, sempre objeto de estudo dos colonizadores, e estes, o tempo
inteiro se portam como os grandes sujeitos realizadores da história, os
representantes oficiais da humanidade contra a “barbárie”. Essa noção
“reificante” do que é ciência, e da sociedade como um todo, será conservada
por toda a história do Brasil, pelas classes dominantes, como garantia de que o
sujeito colonizado jamais se enxergue como vetor de transformação da
realidade, como sujeito da sua própria vida. A lógica sujeito-objeto é
perpetuada na teoria, para que a relação sujeito-objeto mantida entre
colonizador e colonizado se mantenha na prática, perpetuando assim o
domínio colonial e a exploração do território ocupado, e de seu povo. É por
esse caminho que se produz a cultura e a intelectualidade na colônia. Como
explica Frantz Fanon, a cultura nacional nas colônias é sempre a cultura de
suas metrópoles. A verdadeira cultura, aquela dos povos nativos colonizados, é
transformada em folclore, encapsulada e enterrada debaixo dos troncos
humanos e madeiriços que o capitalismo colonial leva ao chão ao longo dos
anos. Não seria diferente com a ciência e a produção intelectual. No Brasil,
décadas de colonialismo, escravidão e dependência nos submeteram
estruturalmente à intelectualidade burguesa ocidental, ou seja, as estruturas
políticas e econômicas que fundaram os alicerces de nossa nação nos atrelam
obrigatoriamente à produção cultural e científica dos Estados centrais, pois é
quando a colônia e a metrópole começam a caminhar descompassadamente
que surge a crise e, com ela, a revolta. E se, por um lado, esse alinhamento do
pensamento brasileiro com as metrópoles estrangeiras se dá pela necessidade
de garantir a transferência de valor da periferia para o centro em todas as
esferas da sociedade, ela também se mantém como forma de blindagem contra
os divulgadores da ciência emancipatória, a ciência do proletariado. Em termos
práticos, o Brasil é, até hoje, “refém intelectual” de Europa Ocidental, Estados
Unidos e aliados (Israel, Coréia do Sul, Canadá, Austrália…) porque estes
precisam garantir a colonização do pensamento tanto pela garantia de que a
academia brasileira beba diretamente da fonte da ciência ocidental, como
também se certificando de que certas correntes teórico-práticas não se infiltrem
nas universidades e espaços acadêmicos “oficiais”. Além disso, a promessa
ocidental de que os países que seguirem os passos dos “desenvolvidos”
também se desenvolverão (ou tornarão-se “civilizados”), ajuda a nos manter
nas rédeas do Ocidente, fechando as viseiras sempre que nosso povo enxerga
um pouco mais ao longe do que o permitido. Sigamos para o exemplo prático,
que elucidará quaisquer dúvidas a respeito do que está sendo constatado
neste parágrafo.

A supressão do estudo de Lenin nas Relações Internacionais no Brasil

O século XX foi o século das revoluções. Da Península Coreana, até o


Caribe, a periferia global passou por um turbilhão revolucionário, influenciada
pelo marxismo-leninismo e pela Revolução Russa, de outubro de 1917. À
frente desta estavam Vladimir Lenin e os bolcheviques, os grandes
articuladores da Revolução, responsáveis na teoria e na prática pela elevação
da consciência de classe do povo russo, que permite sua libertação da ditadura
absolutista da família Romanov. Além de grande político e revolucionário na
prática, Lenin também possui uma vasta obra intelectual. Dentre seus escritos,
um dos mais notáveis é o livro “Imperialismo, etapa superior do capitalismo”,
onde V. I. Lenin cunha de vez o termo imperialismo como uma nova fase de
desenvolvimento e expansão do sistema capitalista, que saía de sua fase
mercantil e seguia rumo ao capitalismo monopolista, o capitalismo de nosso
tempo. Nesta obra, Lenin passa por toda a estrutura do império do capital e
explica como ela se transforma, nessa nova fase, e como essas
transformações reorganizam a sociedade internacional. É nesse livro que o
marxista russo estabelece os marcos da análise materialista histórico-dialética
da sociedade de Estados e instituições do século XX, dos mecanismos
econômicos que a regem, até o fazer da guerra num sistema em vias de
globalização. O estudo de Lenin e sua obra “Imperialismo” é fundamental para
as Relações Internacionais, pois negá-lo e suprimi-lo seria fazer o mesmo com
a própria realidade da forma que ela se apresenta para um estudante de RI,
mas o caráter marxista de seu pensamento e sua história como grande líder da
revolução socialista que inspirou revoluções anticoloniais por todo o mundo,
durante quase um século, o afastam da academia. Para os acadêmicos do
século XXI, Lenin é o equivalente ao operário que suja de graxa as finas
roupas dos intelectuais ao tocá-los. Como trata Elias na obra citada na
introdução deste texto, no microcosmo dos Estados europeus, é “civilizada”
aquela parte da população que fala educadamente, vive nas cortes e pensa a
realidade, enquanto são bárbaros todos aqueles que empunham uma
ferramenta de trabalho nas mãos, que vivem nos guetos, nas ruas, ou em
casas comuns, e que, ao invés de somente pensar numa receita de pão, fazem
o pão com suas próprias mãos, tirando assim a teoria de sua confortável e
imaculada posição nas prateleiras dos cortesãos, que nada querem mudar, e
que, como disse Marx, “limitam-se a interpretar o mundo”. Lenin, por ser a
expressão do sujeito colonizado que se emancipa, por quebrar a lógica
cartesiana de sujeito e objeto ao armar os trabalhadores com a teoria
revolucionária para que estes mudem sua própria história, se suja com as
impurezas do real. O que, para os marxistas, é exatamente aquilo que nos
diferencia dos “cientistas vulgares”, dos interpretadores, é para a academia um
perigo, uma impureza, pois instiga a pensar que a tão prometida civilização,
que viria com tudo aquilo que o Ocidente nos vende a preço de ouro, não
passa de um engodo, palavra vazia utilizada por quem domina para perpetuar
a dominação e manter no chão a autoestima do colonizado. 

Conclusão

Já me excedo em número de páginas, mas preciso concluir. Primeiro


esclarecendo que este trabalho deve se tornar uma tese de conclusão de
curso, portanto, encontra-se aqui incompleto, dado o limite de páginas
estipulado pelo professor. Feita essa ressalva, a conclusão: aos que se
encontram na Universidade estudando Relações Internacionais, é fácil
perceber o quanto os estudantes reclamam que o curso é vago, trata de muitos
assuntos interessantes, porém superficialmente, e não auxilia no dia a dia do
trabalho do profissional de RI. Pois, se a grade curricular não se esforçasse
tanto para escamotear a luta de classes na história, pela ocultação das
produções marxistas no campo, - com grande ênfase aos escritos de Lenin e
Rosa Luxemburgo - talvez fossem outros os comentários dos estudantes. Uma
área da ciência que se propõe a estudar o movimento real da sociedade
internacional para intervir nela, não pode fugir dos debates reais desta área.
Fala-se muito neste ou naquele congresso, nesta ou naquela resolução da
ONU, mas pouco se estuda sobre as forças que determinam, de fato, como se
organiza a humanidade no planeta Terra. Olhares institucionalistas não fazem
nada senão jogar os problemas estruturais da sociedade no colo de instituições
criadas pelo próprio sistema que os “internacionalistas”, interpretadores do
mundo, esperam que elas mesmas combatam. Pouco se fala sobre a fome,
sobre os milhões que morrem de sede pelo mundo, num planeta onde a água é
abundante e se produz mais comida que o necessário para que todos comam
e, quando se trata dessas questões, o fazem de forma descolada do “todo”. A
negação de Lenin nas Relações Internacionais é a negação da própria história
das lutas revolucionárias da classe trabalhadora que transformaram o século
XX, e a academia brasileira o nega ao passo em que se afirma enquanto
“civilização”. Não seria diferente, uma vez que a mais importante universidade
do país (a USP) foi fundada por intelectuais europeus, que lá lecionaram por
anos e anos, propagando ideologia liberal e antimarxista aos quatro cantos do
país. Reafirmo, o que convence a academia brasileira a jogar debaixo do
tapete autores como Vladimir Lenin segue sendo a velha promessa de que o
Brasil só se tornará parte da “civilização” quando for a perfeita reflexão do
Ocidente, negar a violência na política, negar sua posição de dependência
estrutural na sociedade internacional - e se comportar, por vezes, como se
realmente fosse um país ocidental. Optamos pelo triste caminho da obediência,
da aceitação cega, surda e muda da vida à qual nos condena o Ocidente.
Triste, pois é público o real significado da promessa da “civilização” (exploração
e genocídio). A aceitação é cega, pois se mantém mesmo que enxerguemos
toda a barbárie à que nos leva esse caminho; surda, por nos recusarmos a dar
ouvidos às vozes que nos alertam dos perigos e enganações do caminho
ocidental; muda, porque mesmo quando chegamos ao fim da linha, e nos
deparamos com toda a destruição que promovemos em prol de benesses
prometidas por nossos próprios algozes, a mão de ferro da dominação
imperialista abafa nossos gritos, com perseguição, golpe, ditadura. Como não
se ouve os gritos dos enganados, seguimos no mesmo caminho “promissor”,
de geração em geração, promovendo nossa própria exploração.

Bibliografia

Elias, N. “Da sociogênese dos conceitos de ‘Civilização’ e ‘Cultura’”. ___ O


processo civilizador. Rio de Janeiro, Zahar, 1990.

Quijano, A. “Colonialidad y modernidad/racionalidad.” Perú Indígena. 13(29):


11-20, 1992.

Fanon, F. “Os Condenados da Terra” . Editora Civilização Brasileira, 1968. 

Marx, K. “ Teses Sobre Feuerbach”. Publicação por Friedrich Engels em forma


de panfleto, 1888.

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