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POSTULADOS E CRÍTICA
INTRODUÇÃO
Se adaptação tem como base a produção de relações entre sociedade e natureza... [...].
Nesses discursos subsistem relações de trabalho e poder, conflitos de classe, formas de
posse e apropriação fundiária e de representação desdobradas histórica e contraditoriamente. A
conexão do ciclo sazonal dos rios amazônicos com mudanças físicas e com a variedade de
atividades produtivas tem sido, por vezes, interpretada segundo perspectivas que endossam a
“influência das condições geográficas” (LA BLACHE, 1985) como um problema da ordem da
“adaptação humana” ao ambiente. Este trabalho busca tratar da adaptação humana na Amazônia
tal como posta por geógrafos e antropólogos, situando-a em seus devidos contextos. Proposta
justificada pela necessidade da crítica a esses pressupostos como questionamento de formas de
mediação social que não podem ser reduzidas a respostas a necessidades externas, referenciada
nas obras dos próprios teóricos que se debruçaram sobre o tema.
De maneira que as relações de produção são reificadas como estratégias derivadas de
demandas ecológicas e econômicas, sugerimos que elas acabam por se destacar do contexto no
qual os discursos sobre a adaptação são construídos e transformados. Suscitando a importância
de revisitar as abordagens aludidas, a revisão bibliográfica é base para a exposição, através do
confronto entre as fontes. O debate assim discorrido é explicitado em seu entrelaçamento com
projetos de modernização da Amazônia, da imposição de relações assalariadas e da agricultura
intensiva pelo planejamento regional à defesa de uma espécie de autonomia cabocla, tendo em
vista as interações entre várzea e terra firme. Contudo, é preciso salientar que essas diferentes
leituras não conduzem a erros ou acertos, senão que tratam de facetas contraditórias do real,
organizadas em relações de dependência social mediadas por coisas (MARX, 2013), sob as
quais se erigem relações ecológicas.
REFERENCIAL TEÓRICO
1
Doutorando do Curso Geografia Humana da Universidade de São Paulo – USP, daniel.leal@usp.br.
As questões que correspondem à adaptação humana na Amazônia e à sua “valorização
econômica” têm-se amalgamado num mesmo rol de debates desde pelo menos as crônicas dos
viajantes de meados do século XIX, como vimos. [...]
Quando o discurso sobre a Amazônia como uma “região-problema” ganha notável força
entre as décadas de 1950 e 1960, condições econômicas identificadas com o atraso suportam
esforços de ordenamento territorial que visam corrigir essas disparidades. Na obra de geógrafos
e antropólogos da época, são elencados tópicos como a distribuição demográfica e relativos ao
isolamento, aspectos sanitários, técnicas de produção e pobreza como fatores de desequilíbrio
com frequência associados a questões de adaptação humana ao ambiente. Assim, em que pese
a prevalência de um termo de clara filiação darwiniana no que remonta à institucionalização da
Geografia e da Antropologia como ciências, uma objetividade social inconsciente (ORTLIEB,
2019) lhe confere conteúdos que variáveis. A formulação da adaptação como um problema caro
a essas ciências nem sempre corresponde à mesma questão.
Num artigo de Sorre (1984 [1952], p. 99), como expoente da assim chamada Geografia
Clássica, a noção de adaptação é intrínseca à formulação lablachiana de gênero de vida como
um complexo de atividades e técnicas de grupos humanos que são a base de sua existência. Ou
melhor, como um “conjunto de técnicas, os gêneros de vida são formas ativas de adaptação do
grupo humano ao meio geográfico” (SORRE, 1984, p. 103).
Pierre Gourou (1950) constrói uma perspectiva de adaptação, ou inadaptação, associada
à rusticidade das técnicas de produção, à produção limitada, ao isolamento e à baixa e desigual
densidade demográfica dos povos amazônicos, explicados pela possível decorrência de doenças
tropicais. Haja vista que o meio físico não é considerado suficiente para justificar esse atraso,
o autor recorre à história, de modo que o isolamento acima é imputado tanto à “fragilidade
administrativa” quanto à ação da colonização que, focada no extrativismo, também não fixou
uma população branca ou mestiça (GOUROU, 1950, p. 193). A proposta de povoação teria que
ser pensada conjuntamente à alteração das técnicas de produção, tendo em conta a “dificuldade
de valorização e explotação das terras aluviais modernas” (quaternárias) e a infertilidade dos
solos terciários na terra firme (GOUROU, 1950, pp. 207/212). Além do mais, transparece certa
insatisfação com a “inadaptação da alimentação ao meio local”, devido ao descuido com o uso
de recursos e com diferentes possibilidades agropecuárias. Descuido que favorece preferências
alimentares vindas de fora e a importação de produtos, impactada pelo isolamento da área na
conservação dos artigos e na etiquetagem dos preços, o que afirma uma relação de dependência
do caboclo para com o comerciante local (GOUROU, 1950, pp. 222-225).
A preocupação de Gourou com o que denomina de progresso da região, contudo, esbarra
em obstáculos materiais e psicológicos que o levam à formulação de um programa de ação com
base na intervenção externa do planejamento, focada na plantation racional e em projetos de
migração (GOUROU, 1950, pp. 232 e ss.). Os obstáculos materiais são atribuídos à pobreza de
solos terciários e ao latifúndio, distâncias, insuficiência energética, mediocridade econômica
das florestas, inexistência de recursos minerais e desorganização industrial e comercial. Porém,
uma vez que “do homem dependem todas as riquezas”, pois “sua habilidade em aproveitar os
recursos naturais existentes é mais importante do que estes próprios recursos”, os obstáculos
psicológicos parecem ser mais decisivos ao progresso. A começar pela “ilusão de riquezas
ilimitadas”, persiste a “mentalidade recoletora” e o “mito do trator”, isto é, a ideia de que todas
as terras amazônicas são mecanizáveis. Nesses termos, o extrativismo com técnicas primitivas
beneficiaria apenas as classes dirigentes das cidades. Numa Amazônia “mais próspera e ativa”,
em contraste, a cidade teria sua importância ampliada, mas que demandaria um “esforço de
adaptação” rumo a uma “organização rural racional”. Significa que alimentos consumidos na
região deveriam ser produzidos ali e beneficiados industrialmente antes de serem enviados ao
comércio, modificando certos laços de dependência do caboclo em relação a seus compradores
(GOUROU, 1950, p. 236).
Não resta dúvida que muitos dos impedimentos mencionados caducaram porque foram
transpostos pelo planejamento, a exemplo da descoberta e exploração de jazidas e da construção
de hidrelétricas, que, por outro lado, criaram novos problemas ou acentuaram antigos. O mesmo
se pode afirmar quanto a vicissitudes que persistiram ou recrudesceram, como aquelas ligadas
ao latifúndio. Mas tão significativo quanto os desdobramentos históricos parece ser a premissa
de um progresso inexorável a suplantar o extrativismo, como se tal se restringisse ao emprego
de técnicas rudimentares, em favor da agricultura, a fim de superar o vazio demográfico:
Os “fatores humanos”, dos quais tanto depende, são parte integrante da cultura e do
sistema social de um povo. São as tradições culturais desse povo que lhe
proporcionarão os instrumentos, o conhecimento e a técnica para enfrentar o
ambiente. É a cultura que determina os fins para os quais os homens de uma
determinada área fazem uso de sua técnica e é o sistema social que determina a
organização de trabalho e a distribuição dos produtos desse trabalho.
As principais razões que fazem do Vale Amazônico uma área atrasada e
subdesenvolvida têm que ser buscadas na cultura e na sociedade amazônica e nas
relações dessa região com os centros do poder econômico e político e com as origens
da difusão cultural (WAGLEY, 1957, p. 38).
Partindo desses postulados, o autor compreende uma cultura amazônica desenvolvida
historicamente e originalmente difundida pelo empréstimo de outras culturas, como ocorre em
toda cultura. O conhecimento do modo de vida amazônico serviria para fornecer indícios do
que deveria ser modificado para a melhoria do padrão de vida, permitindo prever as reações
provocadas pela introdução de novos elementos, quais sejam, os da “conquista científica” sobre
a cultura local, a exemplo da indústria e da colonização agrícola. Essa introjeção não é mecânica
ou externa, visto que reajustada pelas culturas em função de uma base que a torne útil. Assim,
Uma vez aceitas por um povo, as inovações tornam-se parte do sua cultura e por ela
são modificadas. Os novos elementos adquirem nova forma e significação, diferentes
das que possuíam na cultura de origem. A introdução de novos elementos, por sua
vez, provoca reajustamentos na cultura emprestada (WAGLEY, 1957, p. 40).
The caboclo is a part of Amazonian reality and its greatest human resource; his ability
to survive and make a living in tropical Amazonia with a primitive economy and
technology is great. Until the techno-economic system can be changed, the caboclo is
the optimal adaptation to life in the region. Whenever outsiders have sought to bring
about changes in the caboclo’s way of life, the caboclo has generally managed either
to ignore or to absorb those outside factors into his realm (Moran, 1974, p. 144).
The development of what has been labelled a “collecting mentality” coincides with
the decimation of traditional society along the Amazon, the transformation Indian
survivors into marginal peasants, and the domination of their economic strategies by
external market (ROSS, 1978, p. 200).
Nesse sentido, prossegue o autor, a várzea não é apenas um ambiente externo, mas algo
experienciado, vivido e relatado. A relação dos ribeirinhos com a sazonalidade dos rios não
significa que eles sabem exatamente o que acontece no ambiente, e então, por exemplo, tomam
precauções; ao contrário, eles têm apenas uma percepção desses acontecimentos, que serve mais
para organizar suas atividades do que para determinar um trabalho segundo leis precisas
(HARRIS, 2000, p. 18).
Da mesma forma, a acomodação econômica seria compreendida como a habilidade das
culturas de lidar com demandas externas, o que não se sustentaria pela etnografia de Harris.
Nesse caso, pela análise dos arranjos humanos construídos no cotidiano seria possível sublinhar
a importância de uma economia, surgida de relações informais e desenvolvida historicamente
na constituição de identidades, que não está representada nos documentos oficiais (HARRIS,
2000, p. 19). Os pesquisadores podem até acessar uma literatura a respeito das formas de
produção das poucas mercadorias de exportação da Amazônia – como a borracha, o cacau e o
pescado – mas sabem pouco sobre “o que aquelas pessoas realmente faziam” em termos de
produção, distribuição e consumo dessas mercadorias (HARRIS, 2000, p. 19). São aspectos que
deveriam incluir a diversidade de atividades econômicas de produção para mercados ou
trocados entre e dentro das comunidades; a história de migrações, casamentos e conflitos
fundiários; e formas da vida material relativa à imaginação cultural (Harris, 2000, p. 20). A
perspectiva do cotidiano permite realçar como os ribeirinhos não só estariam aptos a se
acomodar a demandas externas como também, quando elas desaparecem, poderiam se
reproduzir em novas condições. Permite, aliás, marcar a “ligação entre ‘integração’ e
‘acomodação’ com outros termos, como ‘ir levando as coisas’ [getting on with things]”
(HARRIS, 2000, p. 20).
“Ir levando as coisas” é, por sinal, uma definição medular na obra de Harris como um
todo. Aqui, economia e cultura, natureza e sociedade constituem um mesmo ritmo no fluxo da
vida e na construção identitária (HARRIS, 2000, p. 22). Decerto, cultura e identidade são
tornadas sinônimos a partir do conhecimento incorporado de práticas e das habilidades dos
ribeirinhos (HARRIS, 2000, p. 7). Ambos emergem, historicamente, do que as pessoas fazem
em suas vidas diárias e das relações intersubjetivas e com seu ambiente. A identidade é descrita
como produto da experiência histórica das pessoas e de seu engajamento pretérito e contínuo
no mundo vivido, e então não repousaria num plano étnico, de classe, ocupacional ou regional.
Ao contrário, ela é “baseada nas contradições entre a experiência da dependência histórica num
mercado global e sua construção autoconsciente de uma sociabilidade autônoma”, isto é, de
“abraçar e resistir a formas externamente impostas de existência” (HARRIS, 2000, p. 25).
Tal definição, por assim dizer, fluida da identidade, construída na prática cotidiana, pode
inclusive produzir representações próprias da várzea e da terra firme por seus habitantes, como
nota Folhes (2014), como sinônimos, respectivamente, de fartura e de segurança e estabilidade
(frente às inundações sazonais), porém de fome. O autor associa essas percepções da paisagem
às atividades desempenhadas em cada um desses lugares e em relação a áreas de transição, que
contribuem para a construção de identidades contrastantes. O uso conjugado de várzea e terra
firme evidencia relações de complementaridade ecológica e econômico-social que interagem
no povoamento, apropriação e uso de recursos, nesse caso numa faixa de transição, móvel, em
área próxima a Santarém. A observação marca uma ruptura com a noção de adaptação, na
medida em que se ocupa de uma sociabilidade “altamente dependente da circulação sazonal de
pessoas e bens entre os dois ecossistemas”, desnaturalizada ao acentuar a função das relações
de poder na situação estudada (FOLHES, 2014, pp. 26-27).
[Marx e Conclusão].
REFERÊNCIAS
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FOLHES, T. O lago grande do Curuai: história fundiária, usos da terra e relações de poder
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