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A ADAPTAÇÃO ECOLÓGICA NA AMAZÔNIA:

POSTULADOS E CRÍTICA

Daniel Nunes Leal1

INTRODUÇÃO
Se adaptação tem como base a produção de relações entre sociedade e natureza... [...].
Nesses discursos subsistem relações de trabalho e poder, conflitos de classe, formas de
posse e apropriação fundiária e de representação desdobradas histórica e contraditoriamente. A
conexão do ciclo sazonal dos rios amazônicos com mudanças físicas e com a variedade de
atividades produtivas tem sido, por vezes, interpretada segundo perspectivas que endossam a
“influência das condições geográficas” (LA BLACHE, 1985) como um problema da ordem da
“adaptação humana” ao ambiente. Este trabalho busca tratar da adaptação humana na Amazônia
tal como posta por geógrafos e antropólogos, situando-a em seus devidos contextos. Proposta
justificada pela necessidade da crítica a esses pressupostos como questionamento de formas de
mediação social que não podem ser reduzidas a respostas a necessidades externas, referenciada
nas obras dos próprios teóricos que se debruçaram sobre o tema.
De maneira que as relações de produção são reificadas como estratégias derivadas de
demandas ecológicas e econômicas, sugerimos que elas acabam por se destacar do contexto no
qual os discursos sobre a adaptação são construídos e transformados. Suscitando a importância
de revisitar as abordagens aludidas, a revisão bibliográfica é base para a exposição, através do
confronto entre as fontes. O debate assim discorrido é explicitado em seu entrelaçamento com
projetos de modernização da Amazônia, da imposição de relações assalariadas e da agricultura
intensiva pelo planejamento regional à defesa de uma espécie de autonomia cabocla, tendo em
vista as interações entre várzea e terra firme. Contudo, é preciso salientar que essas diferentes
leituras não conduzem a erros ou acertos, senão que tratam de facetas contraditórias do real,
organizadas em relações de dependência social mediadas por coisas (MARX, 2013), sob as
quais se erigem relações ecológicas.

REFERENCIAL TEÓRICO

1
Doutorando do Curso Geografia Humana da Universidade de São Paulo – USP, daniel.leal@usp.br.
As questões que correspondem à adaptação humana na Amazônia e à sua “valorização
econômica” têm-se amalgamado num mesmo rol de debates desde pelo menos as crônicas dos
viajantes de meados do século XIX, como vimos. [...]
Quando o discurso sobre a Amazônia como uma “região-problema” ganha notável força
entre as décadas de 1950 e 1960, condições econômicas identificadas com o atraso suportam
esforços de ordenamento territorial que visam corrigir essas disparidades. Na obra de geógrafos
e antropólogos da época, são elencados tópicos como a distribuição demográfica e relativos ao
isolamento, aspectos sanitários, técnicas de produção e pobreza como fatores de desequilíbrio
com frequência associados a questões de adaptação humana ao ambiente. Assim, em que pese
a prevalência de um termo de clara filiação darwiniana no que remonta à institucionalização da
Geografia e da Antropologia como ciências, uma objetividade social inconsciente (ORTLIEB,
2019) lhe confere conteúdos que variáveis. A formulação da adaptação como um problema caro
a essas ciências nem sempre corresponde à mesma questão.
Num artigo de Sorre (1984 [1952], p. 99), como expoente da assim chamada Geografia
Clássica, a noção de adaptação é intrínseca à formulação lablachiana de gênero de vida como
um complexo de atividades e técnicas de grupos humanos que são a base de sua existência. Ou
melhor, como um “conjunto de técnicas, os gêneros de vida são formas ativas de adaptação do
grupo humano ao meio geográfico” (SORRE, 1984, p. 103).
Pierre Gourou (1950) constrói uma perspectiva de adaptação, ou inadaptação, associada
à rusticidade das técnicas de produção, à produção limitada, ao isolamento e à baixa e desigual
densidade demográfica dos povos amazônicos, explicados pela possível decorrência de doenças
tropicais. Haja vista que o meio físico não é considerado suficiente para justificar esse atraso,
o autor recorre à história, de modo que o isolamento acima é imputado tanto à “fragilidade
administrativa” quanto à ação da colonização que, focada no extrativismo, também não fixou
uma população branca ou mestiça (GOUROU, 1950, p. 193). A proposta de povoação teria que
ser pensada conjuntamente à alteração das técnicas de produção, tendo em conta a “dificuldade
de valorização e explotação das terras aluviais modernas” (quaternárias) e a infertilidade dos
solos terciários na terra firme (GOUROU, 1950, pp. 207/212). Além do mais, transparece certa
insatisfação com a “inadaptação da alimentação ao meio local”, devido ao descuido com o uso
de recursos e com diferentes possibilidades agropecuárias. Descuido que favorece preferências
alimentares vindas de fora e a importação de produtos, impactada pelo isolamento da área na
conservação dos artigos e na etiquetagem dos preços, o que afirma uma relação de dependência
do caboclo para com o comerciante local (GOUROU, 1950, pp. 222-225).
A preocupação de Gourou com o que denomina de progresso da região, contudo, esbarra
em obstáculos materiais e psicológicos que o levam à formulação de um programa de ação com
base na intervenção externa do planejamento, focada na plantation racional e em projetos de
migração (GOUROU, 1950, pp. 232 e ss.). Os obstáculos materiais são atribuídos à pobreza de
solos terciários e ao latifúndio, distâncias, insuficiência energética, mediocridade econômica
das florestas, inexistência de recursos minerais e desorganização industrial e comercial. Porém,
uma vez que “do homem dependem todas as riquezas”, pois “sua habilidade em aproveitar os
recursos naturais existentes é mais importante do que estes próprios recursos”, os obstáculos
psicológicos parecem ser mais decisivos ao progresso. A começar pela “ilusão de riquezas
ilimitadas”, persiste a “mentalidade recoletora” e o “mito do trator”, isto é, a ideia de que todas
as terras amazônicas são mecanizáveis. Nesses termos, o extrativismo com técnicas primitivas
beneficiaria apenas as classes dirigentes das cidades. Numa Amazônia “mais próspera e ativa”,
em contraste, a cidade teria sua importância ampliada, mas que demandaria um “esforço de
adaptação” rumo a uma “organização rural racional”. Significa que alimentos consumidos na
região deveriam ser produzidos ali e beneficiados industrialmente antes de serem enviados ao
comércio, modificando certos laços de dependência do caboclo em relação a seus compradores
(GOUROU, 1950, p. 236).
Não resta dúvida que muitos dos impedimentos mencionados caducaram porque foram
transpostos pelo planejamento, a exemplo da descoberta e exploração de jazidas e da construção
de hidrelétricas, que, por outro lado, criaram novos problemas ou acentuaram antigos. O mesmo
se pode afirmar quanto a vicissitudes que persistiram ou recrudesceram, como aquelas ligadas
ao latifúndio. Mas tão significativo quanto os desdobramentos históricos parece ser a premissa
de um progresso inexorável a suplantar o extrativismo, como se tal se restringisse ao emprego
de técnicas rudimentares, em favor da agricultura, a fim de superar o vazio demográfico:

apesar da mentalidade de coleta estar ainda profundamente enraizada [...], é inevitável


que a agricultura se desenvolva progressivamente, em detrimento da simples
economia recoletora. A agricultura é o futuro da Amazônia representando, para esta
região a civilização (GOUROU, 1950, p. 232).

A vinculação dessa economia recoletora ao atraso e a fatores psicológicos, fatalmente


substituída pela agricultura racional, não torna estranha a condenação à civilização como parte
da Geografia esboçada por Gourou. Noutra ocasião, fica mais explícito que se o meio físico não
é determinante, a civilização opera mediando a relação humana com a natureza, como conjunto
de técnicas para a organização espacial:
“Por civilização” entendo unicamente o que é diretamente útil ao geógrafo, isto é, de
início, as técnicas de exploração da natureza, técnicas agrícolas e técnicas industriais
e, em seguida, a maior ou menor aptidão para a organização do espaço [...] O homem
utiliza, portanto, o meio físico, mas por intermédio de uma certa civilização. Os
elementos físicos exercem inegavelmente uma ação sobre os elementos humanos, mas
essa se coa através dos prismas deformados da civilização (GOUROU, 1948, pp. 297-
298).

A acepção de civilização como possível amálgama de técnicas de adaptação humana,


por assim dizer, se por um lado permite situar as técnicas dos chamados caboclos como parte
de uma civilização, por outro concebe a psicologia destes e suas técnicas, em vez de embasadas
numa forma social objetiva, numa marcha linear ditada pelo progresso. Daí a função fulcral da
do planejamento na obra de Gourou. Fica nítido como as implicações de uma tal declaração
conformariam uma teoria do subdesenvolvimento e um projeto estatal de intervenção.
Nessa linha, Wagley (1957 [1953], pp. 17-18) vai formular seu estudo do “modo de vida
regional” nos termos da historicidade da “adaptação do homem ao ambiente tropical”, numa
“área ‘retrógrada’ e subdesenvolvida”, economicamente marginal. Endossando a doutrina
Truman, o antropólogo considera que a condição de vida dos povos dessas áreas “primitivas e
estagnadas” pode melhorar se lhes são estendidas os conhecimentos técnicos daquela parcela
desenvolvida do mundo. Como Gourou, a premissa é de fronteiras pouco povoadas, com
“recursos inexplorados e terras virgens”, à qual se somam vicissitudes como analfabetismo,
proliferação de doenças tropicais, alimentação insuficiente e técnicas rudimentares. Mais
precisamente, a pergunta do autor se revela ser sobre a viabilidade do desenvolvimento da
Amazônia como área tropical, desde já descartada qualquer argumentação na senda do
determinismo geográfico, ao qual ele chama de extremista, e racial, definida como racismo
tropical. É retrucado que a adaptação a qualquer ambiente se deve ao fato de o homem ser um
animal passível de cultura, pois doenças tropicais, por exemplo, dever-se-iam menos ao clima
do que a uma consequência do atraso. Sendo assim, “o ambiente físico em que vivem [os povos]
é apenas um dos muitos fatores que determinam o completo ajustamento do homem à sua
ambiência” (WAGLEY, 1957, p. 37), que a despeito da imposição de limites, vai sendo, por
assim dizer, reformulado pela ciência. Nas palavras do autor:

Os “fatores humanos”, dos quais tanto depende, são parte integrante da cultura e do
sistema social de um povo. São as tradições culturais desse povo que lhe
proporcionarão os instrumentos, o conhecimento e a técnica para enfrentar o
ambiente. É a cultura que determina os fins para os quais os homens de uma
determinada área fazem uso de sua técnica e é o sistema social que determina a
organização de trabalho e a distribuição dos produtos desse trabalho.
As principais razões que fazem do Vale Amazônico uma área atrasada e
subdesenvolvida têm que ser buscadas na cultura e na sociedade amazônica e nas
relações dessa região com os centros do poder econômico e político e com as origens
da difusão cultural (WAGLEY, 1957, p. 38).
Partindo desses postulados, o autor compreende uma cultura amazônica desenvolvida
historicamente e originalmente difundida pelo empréstimo de outras culturas, como ocorre em
toda cultura. O conhecimento do modo de vida amazônico serviria para fornecer indícios do
que deveria ser modificado para a melhoria do padrão de vida, permitindo prever as reações
provocadas pela introdução de novos elementos, quais sejam, os da “conquista científica” sobre
a cultura local, a exemplo da indústria e da colonização agrícola. Essa introjeção não é mecânica
ou externa, visto que reajustada pelas culturas em função de uma base que a torne útil. Assim,

Uma vez aceitas por um povo, as inovações tornam-se parte do sua cultura e por ela
são modificadas. Os novos elementos adquirem nova forma e significação, diferentes
das que possuíam na cultura de origem. A introdução de novos elementos, por sua
vez, provoca reajustamentos na cultura emprestada (WAGLEY, 1957, p. 40).

Em tese de cátedra defendida em 1956, Sternberg (1998, p. 125) descreve a paisagem


na várzea do Careiro, ilha próxima a Manaus, como “resultado de diferentes gêneros de vida”,
ou ainda, do “trabalho geomórfico da água” e do homem no meio. O emprego do aparato
conceitual da geografia clássica é frequente no texto, de modo que a variação sazonal dos rios,
como diz o autor, “ajusta” a riqueza das técnicas humanas (ibid.: 244). Nesses termos, as águas
“influem” no padrão de ocupação da terra, no tamanho e formato dos lotes e na distribuição
justafluvial das moradias. Mesmo no arranjo da criação “a água serve de vaqueiro”, limitando
o número e a distribuição das reses (ibid.: 174; caps. 3-4).
Também em 1956, Pinto publica um estudo pioneiro sobre a pesca na ilha de Marajó,
atividade encarada como “elemento de importância para a riqueza regional”, embora com
“grandes defeitos e lacunas”. A pesca teria progredido pouco, devido a métodos e processos
primitivos que impediriam o desenvolvimento da indústria. A autora descreve a época da pesca,
processos e materiais e o comércio do pescado, a indústria incipiente (abreviada à fabricação
de grude de gurijuba e à salga e beneficiamento, que seriam mais “processos de indústria” do
que industrialização), a ação das colônias de pesca e o gênero de vida dos pescadores. O texto
conclui com um diagnóstico “pouco animador” sobre a pesca, dada a escassez ictiológica que
começava a se manifestar na área por ação predatória de barcos frigoríficos (“geleiras”), que
ainda encetavam a subordinação dos pescadores a esse tipo de comércio, baseado na dívida,
reiterando o uso de métodos rústicos e o baixo padrão de vida local (PINTO, 1956).
O problema da adaptação não está diretamente exposto na análise de Pinto, mas em
comparação com as obras anteriormente mencionadas, talvez seja possível extrair um problema
semelhante no que concerne a determinados fatores, que não deixam de ser reproduzidos como
constituinte do gênero de vida dos pescadores, responsáveis por seu baixo padrão de vida. Essa
rusticidade dos métodos de captura, comercialização e industrialização, bem como a crescente
escassez de peixes, poderiam configurar um diagnóstico de, digamos, inadequação desse gênero
de vida a seu ambiente? A pergunta traz uma série de implicações: [...]
Nos anos 1970, as considerações de Moran (1974) interessam sobretudo porque se
engendram sobre uma noção propriamente de “adaptação humana” a habitats, mas alternativa
– e poderíamos dizer: crítica em alguns pontos – às formulações anteriores. Nesses termos, o
caboclo teria se desenvolvido como “o mais importante sistema adaptativo humano encontrado
na região” amazônica (MORAN, 1974, p. 136), por suportar com sucesso desvantagens
ambientais e históricas. Adaptação que implica manejar mudanças ecológicas e econômicas,
externas, para submetê-las a um sistema mediado pela cultura cabocla:

The caboclo is a part of Amazonian reality and its greatest human resource; his ability
to survive and make a living in tropical Amazonia with a primitive economy and
technology is great. Until the techno-economic system can be changed, the caboclo is
the optimal adaptation to life in the region. Whenever outsiders have sought to bring
about changes in the caboclo’s way of life, the caboclo has generally managed either
to ignore or to absorb those outside factors into his realm (Moran, 1974, p. 144).

Similarmente, ao questionar a validade de perspectivas que qualificam a pobreza como


disfuncionalidade em si mesma, Ross (1978) redireciona seu foco para as respostas adaptativas
que conformam o repertório cultural do campesinato amazônico. A crítica se desdobra sobre
uma ideia de pobreza que atribui ao caboclo uma “mentalidade coletora”, ausente da indústria
e das técnicas ocidentais, e que omite o surgimento do campesinato através da “comercialização
sistemática da ecologia cultural do vale amazônico”. Posto isso, o autor parte das configurações
ecológicas da terra firme, com solos pobres em recursos, e da várzea, rica em nutrientes, que
permitiu às populações aborígenes pré-colombianas manter uma vida sedentária e encorajou
uma complexa divisão do trabalho. Por outro lado, uma vez que o campesinato tradicional local
é herdeiro das populações indígenas que sobreviveram à colonização, a agricultura seria pouco
praticada, por resultado das demandas da colonização por produtos extrativistas. Tendência que
é reputada, entretanto, a uma “preponderância do sangue indígena” do caboclo ou a fatores de
ordem psicológica, de uma “mentalidade coletora”:

The development of what has been labelled a “collecting mentality” coincides with
the decimation of traditional society along the Amazon, the transformation Indian
survivors into marginal peasants, and the domination of their economic strategies by
external market (ROSS, 1978, p. 200).

Alternativamente, pois, o autor advoga que as origens da chamada mentalidade coletora


estão enraizadas historicamente. Elas não são produtos fortuitos ou atávicos, à medida em que
a dominação comercial da Amazônia, ao longo dos séculos de colonização, teria criado a família
nuclear camponesa, isolada, como a “unidade de produção mais adaptada” à economia extrativa
(ROSS, 1978, p. 216).
No argumento aí tecido, o aparente estabelecimento de uma linha de continuidade entre
as populações caboclas e os indígenas pré-cabralinos tende, a meu ver, a reduzir a complexidade
do processo colonizador na constituição de um novo campesinato, de outra natureza. Raciocínio
que, com efeito, é coerente com um postulado central ao artigo em discussão, ou seja, de que o
campesinato amazônico evolui a partir de demandas externas, sejam ecológicas ou de mercado.
A interpretação sugerida pelo autor consiste numa alternativa às matrizes desenvolvimentistas
majoritárias entre os anos 1950 e 1970, que pela rotulação da “pobreza” imputam caracteres de
atraso às técnicas, sobretudo extrativas, executadas pelo campesinato amazônico. Em contraste,
no entanto, as respostas adaptativas que configuram uma cultura cabocla podem ficar limitadas,
por assim dizer, a uma certa margem de ação e de representação muito restrita. No limite, o que
é designado como “cultura” pode circunscrever algo reificado.

Sugerimos que tais compreensões, no contexto do desenvolvimentismo que então se


constituía em seu “regime de representação” próprio (ESCOBAR, 1995), exprime um anseio
de homogeneização das formas de reprodução das relações sociais de produção, na produção
de um território do Estado nacional a ser unificado pelo planejamento (OLIVEIRA, 2008).

Harris (2000) também critica a literatura em torno do problema da adaptação ecológica


e da acomodação econômica em função de uma percepção, por parte daqueles autores, calcada
num sistema construído como resposta a demandas externas. Dessa maneira, em primeiro lugar,
a adaptação funcionaria segundo uma mecânica na qual o ambiente impõe um desafio e o
organismo o responde, mediado pela cultura. Na citação de Moran (1974) reproduzida acima,
por exemplo, cultura cabocla significa adaptação porque designa como um ambiente deve ser
explorado: ao mesmo tempo que o sistema resiste à mudança externa, prescreve aos recém-
chegados como explorar o ambiente. Para Harris, a proposição é desnecessariamente paradoxal,
pois a cultura não pode ser simultaneamente um sistema adaptativo e uma prescrição, da qual
as pessoas dependem para interpretar ou construir o que percebem e como agem. Pois aí restaria
pouca margem para mudanças e flexibilidades geradas nas atividades concretas dos indivíduos
(HARRIS, 2000, p. 16). Ou melhor,

The notion of ecological adaptation is insufficient to comprehend fully people’s


continual engagement with the floodplain locality. It depersonalises the mutuality
[entre pessoas e seu ambiente], the nature of an ongoing unpredictable relationship. It
ignores the details of quotidian arrangements, the trials and errors. In short, adaptation
has no space for the practical “livedness” of floodplain life (HARRIS, 2000, p. 18).

Nesse sentido, prossegue o autor, a várzea não é apenas um ambiente externo, mas algo
experienciado, vivido e relatado. A relação dos ribeirinhos com a sazonalidade dos rios não
significa que eles sabem exatamente o que acontece no ambiente, e então, por exemplo, tomam
precauções; ao contrário, eles têm apenas uma percepção desses acontecimentos, que serve mais
para organizar suas atividades do que para determinar um trabalho segundo leis precisas
(HARRIS, 2000, p. 18).
Da mesma forma, a acomodação econômica seria compreendida como a habilidade das
culturas de lidar com demandas externas, o que não se sustentaria pela etnografia de Harris.
Nesse caso, pela análise dos arranjos humanos construídos no cotidiano seria possível sublinhar
a importância de uma economia, surgida de relações informais e desenvolvida historicamente
na constituição de identidades, que não está representada nos documentos oficiais (HARRIS,
2000, p. 19). Os pesquisadores podem até acessar uma literatura a respeito das formas de
produção das poucas mercadorias de exportação da Amazônia – como a borracha, o cacau e o
pescado – mas sabem pouco sobre “o que aquelas pessoas realmente faziam” em termos de
produção, distribuição e consumo dessas mercadorias (HARRIS, 2000, p. 19). São aspectos que
deveriam incluir a diversidade de atividades econômicas de produção para mercados ou
trocados entre e dentro das comunidades; a história de migrações, casamentos e conflitos
fundiários; e formas da vida material relativa à imaginação cultural (Harris, 2000, p. 20). A
perspectiva do cotidiano permite realçar como os ribeirinhos não só estariam aptos a se
acomodar a demandas externas como também, quando elas desaparecem, poderiam se
reproduzir em novas condições. Permite, aliás, marcar a “ligação entre ‘integração’ e
‘acomodação’ com outros termos, como ‘ir levando as coisas’ [getting on with things]”
(HARRIS, 2000, p. 20).
“Ir levando as coisas” é, por sinal, uma definição medular na obra de Harris como um
todo. Aqui, economia e cultura, natureza e sociedade constituem um mesmo ritmo no fluxo da
vida e na construção identitária (HARRIS, 2000, p. 22). Decerto, cultura e identidade são
tornadas sinônimos a partir do conhecimento incorporado de práticas e das habilidades dos
ribeirinhos (HARRIS, 2000, p. 7). Ambos emergem, historicamente, do que as pessoas fazem
em suas vidas diárias e das relações intersubjetivas e com seu ambiente. A identidade é descrita
como produto da experiência histórica das pessoas e de seu engajamento pretérito e contínuo
no mundo vivido, e então não repousaria num plano étnico, de classe, ocupacional ou regional.
Ao contrário, ela é “baseada nas contradições entre a experiência da dependência histórica num
mercado global e sua construção autoconsciente de uma sociabilidade autônoma”, isto é, de
“abraçar e resistir a formas externamente impostas de existência” (HARRIS, 2000, p. 25).
Tal definição, por assim dizer, fluida da identidade, construída na prática cotidiana, pode
inclusive produzir representações próprias da várzea e da terra firme por seus habitantes, como
nota Folhes (2014), como sinônimos, respectivamente, de fartura e de segurança e estabilidade
(frente às inundações sazonais), porém de fome. O autor associa essas percepções da paisagem
às atividades desempenhadas em cada um desses lugares e em relação a áreas de transição, que
contribuem para a construção de identidades contrastantes. O uso conjugado de várzea e terra
firme evidencia relações de complementaridade ecológica e econômico-social que interagem
no povoamento, apropriação e uso de recursos, nesse caso numa faixa de transição, móvel, em
área próxima a Santarém. A observação marca uma ruptura com a noção de adaptação, na
medida em que se ocupa de uma sociabilidade “altamente dependente da circulação sazonal de
pessoas e bens entre os dois ecossistemas”, desnaturalizada ao acentuar a função das relações
de poder na situação estudada (FOLHES, 2014, pp. 26-27).

[Marx e Conclusão].

Palavras-chave: adaptação humana; acomodação; planejamento; Amazônia.

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