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descredo sociologicus opus 2021/2


lemuel guerra
e quem + quiser

1 . a sociologia é inseparável de um certo mal estar com a época, de um gegenzeitgeist,


mas também de certo preparo/treinamento/aparelhamento para jogar/viver no olho do
furacão do presente. ela não é uma potência, como são as religiões, as escolas, o
capitalismo, a ciência, o direito, as mídias. suas batalhas são interiores e, como todas as
batalhas, risíveis (positivismo x dialética; construcionismo x realismo, teoria x empiria
etc). na medida em que não é uma potência, a sociologia não pode lutar contra as
potências, mas pode guerrear sem batalhas, pode fazer guerras de guerrilha. não pode
dizer-lhes nada, não pode lhes falar. no máximo mantém, atravessando-nos, cada um
que assim deseja, conversações e inquietudes. é em cada um, habitado pela sociologia e
habitando a sociologia, que acontecem conversações e guerrilhas: nele, consigo mesmo.

2 . a sociologia entra sem pedir licença, sem piedade, sem complacência! quando ela
circula em nossas veias, aprendemos que não temos que esperar ler isto ou aquilo, e
aquilo sobre isto, e isto sobre aquilo para nos atrever a falar em nossos nomes. nossa
relação com autores, teorias, discursos autorizados, com dogmas, é de assalto, como
alguém que invade, que ocupa, que entra e sai sem permissão, que rouba o beijo, o sexo,
o prazer, sem respeito sacralizante, sem prestar continências, nem seguir scripts. tudo
bem que os autores falem pelas nossas bocas de sociólogos, mas o que lhes fazemos
dizer tem algo de monstruoso, porque envolve a força do fluxo e agenciamento deles,
mas potencializa também descentramentos, deslizes, deformações, usos imprevistos,
traições, trocas de fluxos discursivos, que são apenas fluxos, sem primazia sobre outros
fluxos como os de merda, sangue, esperma, saliva, suor, medos, correntes políticas,
ação e contra-ação, de subjetivação, de trabalho de suspensão de si e do naturalizado, ao
sabor da corrente e da contracorrente.

3 . a sociologia permite um gozo em certa medida perverso: o gosto de todo ser dizer as
coisas que quer dizer em nome próprio: não como um sujeito, um eu, uma pessoa que
fala respeitosamente em seu nome, mas quando, através de um rigorosíssimo exercício,
nos despersonalizamos, nos abrimos de ponta a ponta para sermos atravessados pelas
multiplicidades e intensidades que nos percorrem. é quando aprendemos a falar do
fundo do que não sabemos, de dentro da nossa ignorância desejante, interessada, armada
com uma atenção dificultada, como aquela exigida dos que habitam pântanos e se
acostumam com nenhum chão firme nunca. quando nos tornamos uma legião, um
conjunto de singularidades soltas, de nomes, sangue, unhas, respiração dos pequenos
acontecimentos, de estrias do magma dos fenômenos é que somos mesmo sociólogos.
quando somos atravessados, enrabados de assalto por um estilo, um jeito, um modo de
olhar e ser as coisas que queremos ver e entender.

4 . não tenhamos ilusões: o peso e palidez da linguagem universitária, carregamos


como cadáveres inescapáveis. mas sob o peso deles nos sacudimos, nos mexemos,
seguimos linhas de fuga, saímos e voltamos para a corda bamba, nossa casa inabitável –
para a instabilidade do fluxo, do pântano, do corpo sem órgãos, da linguagem acesa que
fica tão mais hermética, quanto mais cultos e lidos são os que nos ouvem ou leem. a
ideia é aprender a escrever e fazer sociologia para os que deixam de lado o que não
entendem sem preocupação, abrindo-se para um não entendimento que não envergonha,
não atrapalha. o que ouvimos ou lemos não será entendido a partir de um livro ou
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discurso que já lemos ou ouvimos, como se tudo fosse igual às bonecas russas, uma
contendo a outra.

5 . o lance agora é considerar os discursos que produzimos e com que nos deparamos
em termos do que funciona ou do que não funciona; do como funcionam para mim,
para você, para outros. se não funcionam, passemos para outra coisa. nosso encontro
com os discursos escritos, lidos, desenhados, tocados, mostrados, nossa produção de
comentários, descrições, associações, todo nosso exercício da sociologia é regido pela
intensidade, ao modo das correntes elétricas: passa ou não passa. trata-se menos de
explicar, compreender, interpretar e mais de sentir, de se deixar atravessar, de se
permitir afetar. todo discurso será colocado imediatamente com o fora dele, algo como
uma engrenagem menor contida em engrenagens maiores e mais complexas, a serem
entendidas nelas, com elas e contra elas. em que medida os nossos discursos serão
compreendidos e compreendemos os dos outros depende das correntes que ativamos e
que são em nós ativadas, da funcionalidade delas para nós próprios e para os outros.

6 . trata-se de adotar o registro da intensidade, da clandestinidade, da relação com o


fora, da experimentação, dos reflexos dos nanoacontecimentos e megamovimentos em
grupos, indivíduos, cursos de fenômenos, maquinações que incluem o humano e o não-
humano, sem concessão alguma, exceto a de encontrar aliados que queiramos e que nos
queiram.

7. no exercício da sociologia não importam os títulos autorizativos para a produção de


discursos: é quase como falar de algo como se fôssemos um cão com olhos e olfatos
reveladores, sem respeito ao realismo raso dos que exigem que alguém seja drogado,
para falar sobre drogas, que tenha visitado a austrália, para falar sobre os cangurus. para
quem faz sociologia não funciona o argumento do loteamento, da feudalização da
experiência, a reserva de domínio do real, do experimentado. nossas leituras dos
autores e dos fenômenos são corsárias, com base na pirataria e na apropriação, as quais
quanto mais imprevistas e escandalosas, mais valiosas.

8. a aposta da sociologia não é na ontologia dos fenômenos, dos grupos, das identidades,
das instituições, mas nas relações transversais em que esses e outros traços e efeitos da
vida social são produzidos, sem se preocupar em estabelecer com certeza que se
pretende científica o ser e o estar no mundo – nenhuma bicha, nenhum hétero, nenhum
professor, aluno, ou qualquer coisa em que pensemos e pelo que nos definamos, embora
existindo, jogando os jogos da inteligibilidade, nas dobras dos sistemas hierarquizantes
e de controle, poderá saber ao certo o que se é: ao dizer eu sou uma bicha, eu sou
hétero/homem, eu sou hétero/mulher, eu sou hetero/homo-transx/y/z, eu sou professor,
eu sou aluno etc. mobilizamos jogos de linguagem em cujo âmbito e a partir dos quais
pinçamos conceitos, categorias, com as quais antes de querer oferecer fórmulas
explicadoras aos moldes das ciências duras, construímos interpretações de subterrâneos
e mecanismos invisíveis em atuação nas camadas figuracionais (metonímicas,
metafóricas, fantasmagóricas) e não ontológicas. a sociologia opera em um regime do
incerto, dos improváveis, do devir universal, pensando como os grupos, indivíduos,
instituições, nações, descobrem, simbolizam, definem, usam, encenam, narrar os vários,
as populações, as espécies, os materiais, sentimentos, símbolos, discursos e práticas
diversos que os habitam, em que habitam e que os atravessam.
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9. a análise sociológica de discursos, de fenômenos sociais, define-se como a produção


profissional de dissonâncias desestabilizadoras das harmonias pretendidas pelos
conjuntos de atores mobilizados para a produção da vida social. essas dissonâncias se
produzem quando o sociólogo recua da posição lhe outorgada biograficamente, pela sua
inserção em sistemas de socialização e moldagem de si, no fora e dentro da sua própria
formação de sociólogo, ativando os modos antirreduplicação, antinaturalização do seu
lugar e do lugar dos outros sociais, introduzindo uma espécie de ‘desafinação no coro’,
algo a ser evitado pelos que se interessam em apagar os vestígios dos golpes e
contragolpes, com o objetivo escroto de manter a aparente inescapabilidade das coisas
socioculturais, pela proteção das forças com que se exercem as correntes sociogênicas
que nos arrastam, poderosas.

10. a sociologia se coloca diante de discursos, de fenômenos sociais de quaisquer das


ordens, transcendendo o objetivo de registro, da mera descrição, da apresentação neutra
dos fatos; através das suas chaves analíticas se executam tarefas definidas pelo olhar
sociológico – recortar, questionar, de modo suspeitativo, suspendendo e focalizando
com luz e sombreamentos os agenciamentos de subjetividades, os silêncios, as
metáforas, as encenações, a eloquência e plausibilidade dos discursos, dos cursos de
ação performatizados, instaurando uma certa capacidade e perspicácia irônicas e
iconoclastas, exercitando, ao modo de um psicanalista ou detetive do social, uma
atenção difícil ao que se lhe apresenta como a realidade dos fatos, a arrumação
convincente das aparências e essências intervinculadas, praticando a análise dos
raccords, das continuidades e descontinuidades e seus paradoxos.

11. o/a sociólogo/a faz seu trabalho de revolver os jogos de tensões, as tensões dos
jogos, montando, através de sua paixão antidocumental, aquela que desconfia de sua
potência de ‘registro do verdadeiro’, maquinações antimaquínicas, assumidas em seu
caráter pluriperspectivístico, parcial, contaminado, resultante do deixar-se
atravessamento pela legião de autores, de sujeitos que falam pela sua boca e são por
ele/ela falados, gaguejados, silenciados, distorcidos, empoderados, desentendidos,
estendidos, traídos, usados, parafraseados, negados, atravessados – os léxicos em cujos
fluxos e contrafluxos somos forjados, constroem-nos como falantes, constroem nossos
lugares de fala e não o contrário.

12. depois que passa pelas mãos, pelos olhos, pelo nariz, pelo desejo do sociólogo, tudo
parece seu. depois que passa pelas suas mãos, olhos, desejo, nariz, nada parece seu! a
tarefa do sociólogo: dar aos fenômenos uma voz, uma imagem, uma fantasmagoria
elaborada, sem medo de perdê-los, traí-los! ao contrário, só interessa ao sociólogo o
que teve força, caráter, para se perder dele. o sociólogo não trancafia afetos, cheiros,
memórias, paisagens, funcionamentos, fluxos e contrafluxos, imagens que ele criou. o
sociólogo é parteiro desanestesiador do mundo, que o marca e que é por ele
ousadamente reconstruído.

13. a análise sociológica nunca é um simples resultado da aplicação de modelos teóricos


que se conhecem a si mesmos com toda a clareza. a interpretação sociológica de um
fenômeno é menos construída a partir de teorias, conceitos, categorias externas a ele do
e mais o resultado do encontro sistemático com o funcionamento insólito de
mecanismos objetivos que afetam modos de agir, de sentir, jogos de linguagens e
subjetividades narrativas interproducentes dos sujeitos em suas interações, cenários em
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que atuam os indivíduos em seus agenciamentos, contra-agenciamentos, fluxos e


contrafluxos ativados.

14. o olhar/o ouvir/o sentir/o imaginar/o adivinhar sociológico serão tão mais
interessantes e flamejantes quanto mais capazes de perceber modulações, consonâncias,
dissonâncias, cadências, pausas, silêncios, vagarosidades, acelerações, variações nas
espessuras fenomênicas e epifenomênicas, o contraponto espesso dos sentidos e dos
não-sentidos da complexa rede de acontecimentos que formam a vida social, oferecendo
para os indivíduos interessados modos de tradução do que vivem e deixam de viver, aos
quais eles eventualmente sejam indiferentes ou mesmo resistentes.

15. a sociologia tem como objetivo compreender/interpretar/explicar os sentidos das


ações sociais, mas ainda mais os não-sentidos observados no nível dos fenômenos e no
nível dos epifenômenos – o não senso na profundidade e o não senso na superfície.
superfície e profundidade têm não-sentidos diferentes: na superfície os fenômenos se
oferecem como cintilâncias dos não-sentidos dos ‘acontecimentos puros’, esses que
nunca terminam de chegar nem de se retirar. os não-sentidos dos ‘acontecimentos
puros’, ao modos de vapores magmáticos, sopram sobre as superfícies seus sinais,
oferecendo-se apenas de modo oblíquo, ao modo da luz que, à medida que tem suas
partículas ou ondas alteradas, revela a existência, a densidade, a extensão dos corpos
celestes, suas forças de atratividade e repulsão, seus modos de existência nos pontos das
malhas dos espaços-tempos considerados.

16. a interpretação sociológica não apela a um a priori teórico/lógico. ela emerge de


uma ação oblíqua e em aprendizados frequentemente baseados na ‘alteração’ dos
fenômenos a serem explicados bem como dos seus intérpretes. ela é forjada através de
uma atuação não claramente raciocinada/intencionada, na qual os analistas são sujeitos e
objetos simultaneamente. trata-se de uma abordagem que implica uma atenção
especializada à linguagem indireta e às vozes dos silêncios dos (epi)fenômenos
socioculturais focalizados. o exercício do olhar sociológico implica em uma espécie de
produção de deformações com tanto mais potencial revelador dos fenômenos, quanto
mais conscientes desse modus operandi.

17. nos que fazem sociologia, o pensamento/razão e as emoções não dirigem ‘de fora’ a
interpretação exercitada: sociólogos são eles mesmos, enquanto analistas, fenômenos e
devires a serem analisados. eles sujeitos se constroem à medida que reconstroem os
seus objetos, criando meios de expressão, idiomas analíticos que se moldam de acordo
com sentidos e não-sentidos fenomênicos e epifenomênicos, tomados como pontos a
serem iluminados, dobrados, redobrados.

18. toda análise sociológica é também uma fonte de recriação dos instrumentos teórico-
metodológicos através dos quais se exercita e passam a ser manejados segundo sintaxes
novas, despertadas pelas relações sujeito-objeto ativadas. o senso comum limita-se a
abordar por signos convencionais as significações dos fenômenos já instaladas na
sociedade/cultura. a sociologia é a arte de captar sentidos e não-sentidos não dantes
objetivados, tornando-os acessíveis aos sujeitos que os ativam/experimentam, como se
fosse a produção em prosa de uma poética das relações humanas – em suas implicações
com o não-humano – através da qual emerge o apelo arriscado de liberdades e
aprisionamentos particulares a conjuntos de outras liberdades e aprisionamentos –
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referidos a outras espacialidades e temporalidades – em cuja presença o ‘a ser


explicado/descrito/interpretado’ é colocado.

19. a maneira mais interessante de entender uma época e seus fenômenos não é se
concentrando nas características explícitas que definem seus edifícios sociais e
ideológicos, mas sim nos seus fantasmas renegados, que assombram das profundezas,
que habitam uma região misteriosa de entes cuja visibilidade nos é negada, os quais, no
entanto, persistem e continuam a ser eficazes na afetação das dinâmicas da vida social.
fazer sociologia é intercruzar imagens especulares do simbólico/imaginário (mitos,
narrativas, atos fundacionais reconhecidos e disseminados pelas sociodiceias
disseminadas pelas instâncias socializadoras legítimas) com o material que compõe a
história secreta dos grupos, instituições sociais, aquela referida à ordem do substrato
obsceno do tecido social, a zona fantasmática, ‘espectral’, que sustenta efetivamente o
caráter explícito do que dizemos, fazemos e dizemos fazer, tão mais poderosos quanto
permanecerem implícitos, habitando o espaço tateante das entrelinhas, do segredo que
não ousa sequer se pensar, das fantasias traumáticas que se transmitem nas lacunas, nas
fraturas, naqueles momentos nos quais se olha sem saber para onde ou o quê.

20. é quando somos tomados pelo não entendimento, atravessados pelas falhas dos
jogos de linguagem, pela gagueira que nos desconcerta e embaraça, quando criamos
uma língua estrangeira a partir da matéria-prima do léxico da nossa língua materna, nas
suas veias e artérias e no meio dela, para falar, sentir, ouvir e ler os fenômenos do
mundo, que podemos ser mais radicalmente socioantropolitólogos. quando toda língua
continua sempre estrangeira.

21. uma sociologia pós-realismo/ortorrepresentacional irrompe como um ramo


bastardo, um galho torto, uma estrada clandestina. não apenas assim considerada pelos
socializados nas escolas sociológicas estabelecidas, mas pelos seus próprios
formuladores, define-se como um estilo de praticar o olhar/a escuta/a afetação
sociológicos que se pretende o minimamente fixo, forjado por entre as franjas da
teorização sobre o social, aos moldes de uma linha de fuga em espiral, dobrada sobre si
mesma. a maior parte do exercício do estilo sociológico de abordar as coisas sociais é
concebida como ortorrepresentações delas, quer da objetividade, quer da subjetividade
construída e constituinte da vida social. isso implica em pensar que existe algo
(subjetividade, objetividade) e a representação sociológica desse algo, geralmente
cobrada em termos de exatidão, correspondência, lógica, cogência interna/externa e
sentido. a sociologia pós-realismo/representacional propõe conceber os fenômenos
sociais em termos de textos e linguagens, com inspiração paraláxica de certo modo
desconstrutivista, mas a partir de um exercício, uma ativação de uma língua estrangeira
cuja fonte e materiais são formados a partir da sintaxe e do léxico da língua materna em
que praticantes da sociologia foram forjados, fora e dentro da aquisição e práticas do
ofício da análise sociológica. isso implica pensar os constituintes da vida social,
interpretá-los, focalizá-los como algo da ordem do ‘n-1’, sendo ‘n’ o que é construído
como realidade social, e o ‘n-1’ algo que transita entre a concretude e a representação da
vida social, abolindo a distinção entre elas, colocando em curso um exercício da
sociologia a partir da ordem de contextos extradiscursivos suspensivos de gramáticas
cognitivas, emocionais, interpretativas, com base nas quais atores sociais comuns e os
que se dedicam à análise sociológica operam. uma abordagem intersticial que não se
pretende ciência: a relação entre realidade e representação é colocada em suspensão e o
que se pretende é a produção de análises, interpretações que se oferecem como
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deformações montadas a partir de pontos de vistas, ressonâncias de trajetórias, das quais


seus produtores procurar estar o máximo autoconscientes, colocando-se à altura das
feridas a partir das quais elas emergem, em quanto mais de susto e de poesia se for
capaz.
22. o olhar sociológico – esse estilo de se debruçar sobre as coisas, de pretender habitá-
las como um tipo de voz que experimenta os seres, as coisas, as relações, de modo
teratorrepresentacional – não trata os elementos do que emerge dos esforços de
pesquisa como produtos – descrições, interpretações, explicações – que se pretendem
depurada pelas evidências decorrentes da experiência, mas como arranjos de
significantes em sua relação com o que se esconde de radical nas estruturas e modos de
seu funcionamento e desdobramentos interacionais. O que o olho sociológico faz é
descobrir permutabilidades entre as coisas, os agenciamentos, os cursos dos fenômenos
e seu modo de incidência no que se coloca diante de seu mistério, de modo que se possa
uma coisa ser colocada no lugar da outra, operando-se o que pode funcionar como uma
teratorrepresentação do que se pretende focalizar.
23. sociólogos oferecem teratorrepresentações do que estudam, uma modalidade de
representação que não tem nada a ver com eventuais strip-teases que o real faria graças
aos nossos esforços intelectuais de pesquisadores. Sem abdicar do cuidado e do
exercício maximizado de uma atenção difícil, o que os analistas da vida social
ambicionam é a produção de representações dos objetos que escolhem, produzidas no
registro de um certo tipo interessante de construção fantasmagórica, refratada pelas
lentes e pupilas que ecoam nossas estórias e o que elas produzem como interesses
conscientes e inconscientes.
24. o aspecto teratológico do exercício do olhar sociológico sobre as coisas trafega no
potencial de deformação, no potencial de erro que ele implica. o que o registro da
análise produzida através da mediação desse estilo sociológico de olhar permite e pode
ser cultivado e gozado, é a chance de que nossas mentes experimentem a si mesmas, no
ato de produzir essas teratorrepresentações das coisas, à medida que, partindo da
superfície plana da linguagem comum, do olhar anestesiado pelas aparências com que
vamos nos deparando, construa-se espaço para que alguma ruptura aconteça, emerja o
inesperado e possamos então perceber que além das coisas serem diferentes do que
aparentam, e por isso nos equivocamos, podemos aprender e experimentar através do
equívoco e da percepção da justaposição entre o que é e o que não é. a aposta dos
instantes é no devir do que olha e do que é olhado.
25. uma socioanropolitologia teratorrepresentacional exercita justamente o que um
bom equívoco oferece: dá a chance para que as mentes de quem a produz e a de quem a
encontra pronta se experimentem a si mesmas, o que pode se desdobrar em eventuais
estados de lucidez inadvertida. alguém que quer mesmo fazer socioantropolitologia
aceita prontamente que aquilo com o que se comprometerá ao fazê-la é com a
deformação com potencial desvelador possível de oferecer, que intensifica a
continuação da busca, livrando-se de sentimentos comuns associados a errar, tais como
a vergonha, o medo, a ansiedade, na medida que aceita em si o que tudo atravessa de
modo inescapavelmente constituinte: a imperfeição, a precariedade, o turvo e a
incompletude.
26. a socioantropolitologia teratorrepresentacional não é nunca uma receita, uma
cartilha, um mapa para a revolução, para a normalidade ou para ‘melhorar’ a sociedade.
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ela é apenas um estilo cultivado, especializado em propor outros termos para os debates
e questões que as coletividades e quem se debruça sobre a vida social vão fazendo
emergir ao longo do tempo e do espaço, sempre subvertendo as interpelações que
sistemas, grupos dominantes e dominados, os próprios fenômenos sociais ativam. esse
estilo é sempre excessivo, metacientífico, radical, estremecente, pantanístico, abjeto,
teratológico, obversivo, instaurando estranhezas para dentro e para fora dos sujeitos,
deslocamentos, dilemas, nomadismo, entrangeiridades, singularidades universalistas,
desenraizamentos desprovincializantes.
27. o que se busca com a terato-socioantropolitologia são as estruturas elementares
das ignorâncias que nos atravessam em agenciamentos e contra-agenciamentos.
socioantopolitólogues aprendem logo que conhecer teorias, metodologias, filosofias de
quaisquer que sejam os autores não significa saber sobre o mundo nada além do que as
teorias, as filosofias, as metodologias deles, que estiveram ou estão nos mundos que
lhes foram possíveis. sociólogos têm compromisso existencial com o mundo e interesse
e curiosidade estético-heurística/epistemológica em ideias/teorias/epistemologias und so
weiter.
28. a terato-socioantropolitologia é um combate a toda pretensão de que seja possível
conhecer os fenômenos sociais assim como se pensa que 2+2=4. contra a arrogância
limitante da ambição de cientificidade, mobiliza o ceticismo para dentro e para fora;
contra o saber que enclausura e acomoda, ativa a subversão libertária da ignorância
produtiva, aquela que não se festeja, que não se orgulha de si, mas que se busca
reconhecer e dela saborear as consequências, buscando saber como a partir dela se pode
ver o mundo sempre de modo diferente do que no momento anterior se viu, lembrando
sempre que ele é fabricado pelos humanos e não humanos em termos objetivos e
simbólicos, operando seus fabricantes com um material que já encontram pronto e com
base em invenção e engenhos terato-representacionais, ativando diferentes potenciais de
continuidade e ruptura. de similaridades que encenam diferenças e diferenças que
performatizam similaridades em jogos de traduções, tradições e traições.
29. analistas da vida social não exercitam suas análises para. apenas as produzem como
um modo de estar no mundo e olhar/ser olhado pelos fenômenos sociais e não sociais,
de modo a estremecer-se e ao mundo em suas diversas escalas. o olhar
socio/político/antropológico é ativado por um certo assombro e depois do que resulta
em ditos e feitos, afetações mútuas e inter-atravessamentos, no assombro permanece e
começa outra vez ad infinitum, colocando olhos e outros sentidos em um registro que
não conhece repouso, visto que é sua matéria a perplexidade cultivada com o que se
define geralmente como realidades óbvias, em sua poderosa ubiquidade opacizante.
30. a terato-socioantropolitologia é luta constante contra configurações padrões
através das quais todos e tudo vão sendo fabricados. é batalha sem fim com as lentes e
malhas do impresso em circuitos controladores e constituidores de seus praticantes e das
coisas que eles escolhem tentar decifrar, nos encontros com o que está ocorrendo dentro
e fora das subjetividades dos que se encontram em posições diversas e em sistemas de
posições intercruzados.
31. a análise do social como a operação de máquinas para ver e produzir imagens, que
se apropriam de outras máquinas, a elas se acoplando e introduzindo nelas uma função
defeito, uma posição-observador corrompida, contaminada e de intenso potencial de
revelação, arrancando coisas de seus contextos comuns, deslocando-as de modo a vê-las
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com outros, novos olhos, que olham os outros olhos e olham seus olhos olhando um
olhar que se volta para si mesmo sob os efeitos do poder das coisas/objetos revidarem
os olhares dos observadores.
32. a terato-socioantropolitologia como prospecção-mergulho nos instantes-orifícios
em que o tempo se experimenta em polidimensionalidade: tempo das rochas; tempo das
culturas; tempo veloz e fluido das emoções, o tempo lento da razão, de consumo difícil
e entrada fechada às inescapáveis desastradas máquinas do desejo. trata-se de um
exercício contínuo não de representação do mundo, de sua revelação na forma de
espelhos que oferecem imagens correspondentes aos objetos refletidos, mas em seu
potencial de avesso, de potencial de alteridade sem descanso, que exige sempre mais
uma olhada, com atenções diferenciadas e intensificadas.

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