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1) Texto traduzido para o Bernard Miège1

português por Andréa Monteiro


Uglar, com revisão técnica da
Professora Livre Docente Anna O espaço público: perpetuado,
Maria Balogh. O presente texto é
publicado pela Novos Olhares com
autorização do autor, obtida em
ampliado e fragmentado2
1998, quando de sua visita a São
Paulo, e é reprodução da versão
originalmente feita pela revista
Novos Olhares, n° 03, 1999.
2) Este texto foi primeiramente Nas sociedades mais desenvolvidas, das perspectivas (sedutoras) do Estado-
apresentado sob a forma de uma a questão do espaço público é, Providência; uma versão, enfim, que
conferência introdutória ao colóquio certamente, objeto de posições leve em conta mais as mediações sociais
IComunicação e sociedadel que paradoxais: da comunicação do que aquelas
realizou-se em Lyon, nos dias 12 e - por um lado, os próprios referentes às mídias; uma versão que
13 de dezembro de 1991. Nesta mediadores, que constituem uma não negligencie a razão “sistêmica” no
versão, ele foi publicado peIo categoria social “emergente”, apelam funcionamento das mídias (que ele,
Programa Rhône-AIpes Recherche cada vez mais ao espaço público, às neste momento, tende a tomar como
em ciências humanas nos anais do suas regras supostas, à sua “operacio- “determinante”), ao proveito da única
c o l ó q u i o | Communication et nalidade”... e, mesmo se seus apelos são razão “comunicativa”.5
nouvelles technologies, textos marcados de finalismo, seria um erro A “aventura” teórica de Habermas
reunidos por Claire Belisie, 1993). aqui ver somente um efeito de discurso; é, a nosso ver, exemplar. Não somente
Profundamente modificado e - por outro lado, uma maioria de porque sua produção científica é de
largamente completado, ele serviu pensadores e de especialistas tem a grande qualidade (assim explicamos o
de base para a redação de uma tendência a desconfiar do conceito, ou porquê de escolas opostas terem ten­
contribuição ao número especial da mesmo de recusá-lo, ou somente de dência a se apropriar dela dando-lhes
revista Hermès, Communication et considerá-lo em segundo plano com as direções antagônicas), insuficientemen­
politique, intitulado "L'espace public, questões colocadas pela modernidade; te reconhecida na França e ainda não
au-delà de Ia sphère politique" (n° entre eles, encontramos tanto autores acabada; mas sobretudo porque ela se
17, sob a direção de Gilles Gauthier, que se interessam pela crise da prende a analisar um dos problemas-
André Gosselin e Jean Mouchon, representação política quanto teóricos chave das sociedades contemporâneas:
publicação prevista para 1995). da “in-comunicação”, bem como Jean o espaço público é uma espécie de
3) Louis Quéré, Des miroirs Baudrillard, Raymond Boudon, e “linha vermelha” que coloca em jogo
équivoques: aux origines de Ia mesmo Louis Quéré, que fala de tanto o agir comunicacional quanto o
communication moderne, Aubier “comunicação destrutiva”3 e privilegia futuro do político ou a constituição do
Montaigne, Paris, 1982, 215 páginas. a sociologia compreensiva e o liame social.
4)Jürgen Habermas, L'Espace interacionismo simbólico. Nestas condições, há alguma
public, tradução francesa, Payot, Porém, o mais importante é desmedida em se colocar sobre um tal
Paris, 1978, nova edição 1993. constatar que o próprio Jürgen tema. Esperando que Jürgen Habermas
5) Jürgen Habermas, Théorie de Habermas se mostra reservado. Quase e alguns outros6 avancem nesta via de
l'agir communicationnel, tradução 30 anos depois do aparecimento da reflexão, não hesitaremos em nos
francesa, Fayard, Paris, 2 tomos, célebre tese sobre a arqueologia do posicionar diferentemente, e em encarar
1987, pp. 450-480. “princípio de publicidade” e da sua deliberadamente as relações que se
6) Ver Réseaux, n° 34, Autour dimensão constitutiva nas sociedades estabelecem entre as mídias ou as
d´Habermas, março 1989. burguesas, o célebre autor alemão se técnicas de comunicação e as mediações
mostra dividido. Ele sente por vezes a sociais para aí revelar certas “lógicas”
necessidade de redigir um novo Espace constitutivas. Mais vale atualmente
Bernard Miège é Professor e
Pesquisador junto à Universidade public4, mas sob a forma de uma versão elaborar proposições “de médio
Stendhal, de Grenoble, na França. menos normativa que a primeira, livre alcance” do que se orientar pelas
generalizações abusivas (isto é, não grande entre os jornais e seus leitores,
fundadas sobre um mínimo de e é esta proximidade que permitiu aos
validações empíricas), ou deixar os burgueses esclarecidos praticar o
excessos de fluxo mediático responder Aufklärung, isto é, o uso público da
às interrogações legítimas como estas: razão para a argumentação e a troca de
para onde nos conduz o marketing opiniões, e assim criar um espaço de
político generalizado? as mídias são, de mediação entre o Estado (habituado ao
início, o desmoronamento dos sistemas segredo durante a monarquia) e o
políticos da Europa Oriental? a espaço das vidas privadas. Neste
fragmentação dos alvos das mídias sistema, as opiniões - ao menos aquelas
comerciais leva à atomização social e à dos burgueses envolvidos - não têm
ruptura das solidariedades sociais medo de se confrontar e de se afrontar
elementares? (os cafés e os salões literários são os
Como compreender o estatuto lugares privilegiados destas
presente do espaço público, e as confrontações); assim, uma arbitragem
principais mudanças que o afetam, sem se opera entre as opiniões e entre os
fazer um desvio pela história, ou mais interesses que elas exprimem. Elas são
exatamente sem buscar recompor as até mesmo capazes de se traduzir em
etapas pelas quais ele passou nas representação política, sem recorrer à
sociedades liberais-democráticas? violência e à força. Tal é o modelo de
comunicação original do espaço
l. Os quatro modelos de comunicação público que, embora limitado a uma
É em tomo da imprensa de opinião classe (ascendente) das sociedades
que se organizam os espaços públicos capitalistas em formação (uma classe
nascentes nas primeiras sociedades definida ao mesmo tempo pela
democráticas, em períodos diversos, propriedade dos meios de produção e
conforme os países, antecedidos apenas de troca, e por uma cultura específica),
pela Inglaterra em relação ao continente seduziu mais de um pensador social.
europeu e aos Estados Unidos. Resta saber se ele foi algum dia aplicado
Disseminada em toda a parte, em como tal.
meados do século XVIII, esta forma de Em todo caso, a partir de meados
imprensa está disponível, apesar da do século XIX, e definitivamente no fim
oposição mais ou menos permanente da deste século, a imprensa comercial
maior parte dos governos; ela é (cujo o destino está indissoluvelmente
produzida mediante procedimentos ligado ao regime parlamentar e ao
artesanais, suas tiragens são reduzidas, “domínio” do território pelos notáveis)7
seus ritmos de aparecimento (publica­ introduz mudanças decisivas, e um
ção) são irregulares e sua paginação é novo modelo de comunicação se
variável. Caracterizada por seu estilo implanta, sem que o anterior
polêmico, manifesta um tom de desapareça. As histórias da imprensa
violência que hoje mal podemos são ricas em detalhes sobre os fatores
imaginar. Os escritores que migram técnicos, jurídicos e econômicos que
para o jornalismo garantem renome para teriam assegurado em algumas décadas
os jornais para os quais colaboram. a supremacia da imprensa comercial;
Esta imprensa de idéias custa caro elas são em geral bastante discretas 7) Ver o "triângulo imprensa/
a seus leitores, que frequentemente são sobre as condições culturais e políticas parlamento/notáveis" posto em
obrigados a contribuir nos custos da de sua implantação, e elas não insistem evidência por Yves de Ia Haye,
justiça e nas penalidades resultantes das de modo algum sobre os traços do novo Journalisme, mode d'emploi: des
opniões. modelo de comunicação. Ora, aí reside manières d'ecrire l'actualité,
A partir deste contexto, no entanto, o essencial. Com efeito, esta imprensa ELLUG / La Pensée Sauvage,
se estabelece uma proximidade muito de “massa”, organizada sobre uma base Grenoble, 1985, 216 páginas.
industrial e orientada para o lucro, vê a TV aberta), está ligado quase
rapidamente as redações perderem sua organicamente ao da publicidade
autonomia em relação aos editores, e o comercial (os “investimentos” dos
jornalismo se separar da literatura. A anunciantes constituindo a base
linha política se afirma de maneira econômica do modelo, de forma integral
claramente menos polêmica, ela se ou em grande parte), e à ascensão das
dissimula mais ou menos sob o formato técnicas do marketing na comunicação
e a difusão das informações; a social (alvo, estratégias de influência
publicidade é a partir de então sobre os grupos e audiências, papel
claramente dissociada da redação, e os crescente da imagem e de um
gêneros jornalísticos (praticamente tal posicionamento de controle da imagem
como nós os conhecemos hoje) se que veicula de si próprio...). Enfim, as
formam. O poder político afirma a mídias de massa, de modo ainda mais
garantia da “liberdade de imprensa”, e claro que a imprensa comercial,
vai até mesmo, em certas circunstâncias, influenciam o divertimento, utilizado a
tomar medidas econômicas ou partir de então, para acompanhar a
estatutárias de moralização de seu difusão de informações ou da produção
funcionamento. O importante, aqui, é artística (ver, por exemplo, os talk
notar que uma relação mercantil e shows); há uma primazia das normas do
distanciada se instaura entre os jornais espetáculo e da representação em
e seus leitores (o caso dos jornais de detrimento da argumentação e da
opinião constitue uma exceção, mais ou “expressão”.
menos durável segundo os países). “A O modelo mediático de massa é
opinião pública”, da qual a imprensa certamente o modelo dominante na
comercial se faz regularmente o eixo, maior parte das sociedades liberais-
se não responde às regras da democráticas. No entanto, desde o final
manipulação e da propaganda, como dos anos 70, emerge com as relações
muitos analistas e responsáveis públicas generalizadas (ou comunica­
políticos o afirmaram, apoiando-se em ção generalizada) um modelo novo,
falhas bem reais, é antes de tudo uma com o qual as mídias generalistas de
“construção” e uma “representação” massa devem ser cuidadosamente
que se interpõe entre os leitores- distinguidas. No futuro, os Estados, as
cidadãos mantidos afastados e os grandes e pequenas empresas, e aos
aparelhos político-informacionais, que poucos, todas as instituições sociais
assim melhor exprimem, as grandes (desde as poderosas administrações
categorias de opiniões. públicas às organizações da “sociedade
Os efeitos das mídias audiovisuais civil”) deverão apoderar-se das técnicas
de massa, que se impõem a partir de de gestão do social e das tecnologias
meados do século XX, são muito mais da informação e da comunicação, e
conhecidos. Eles se fizeram, de partem para estratégias de comunicação
qualquer modo, o objeto de numerosos cada vez mais aperfeiçoadas.8 A
trabalhos de sociologia e antropologia imagem plena de sedução e de fluidez
culturais, e é neste propósito que Jürgen às quais estas técnicas e estratégias são
Habermas tanto insistiu sobre a ação objeto não se deve considerar como
sistêmica de “administração da cultura”, meros artefatos, ou como discursos
incompatível com a publicidade e a vãos; elas são também poderosos
confrontação das opiniões sobre a “ativadores” de mudanças sociais e
8) Bernard Miège, La Société esfera pública. culturais. Sua aparição relativamente
conquise par Ia communication, De nossa parte, acrescentaremos recente, no entanto, ainda não nos
PUG, Grenobte, 1989, 228 que o desenvolvimento das mídias propiciou a dimensão dos resultados de
páginas. audiovisuais de massa (particularmente seu poder. Parece patente que, ainda
mais do que as mídias audiovisuais de novas mídias acompanharão a
massa, as próprias relações públicas radiodifusão generalista, etc...
generalizadas enfatizam os temas de - nos períodos-chave se operam as
consenso. Trata-se em todos os “oscilações”, isto é, as passagens da
domínios da vida social, de conseguir dominação de um modelo a outro (por
adesão, e de se dirigir sobretudo aos exemplo nos anos 60 quando a televisão
indivíduos/consumidores/cidadãos, de foi reforçada em detrimento da impren­
preferência a grupos e “audiências”. sa); as mudanças que se seguem são
Inserindo-se nas relações sociais verdadeiramente menos radicais do que
existentes e insinuando-se nas as polêmicas do momento em que elas
estruturas políticas e culturais em se dão;
andamento, elas não têm o impacto - os modelos de comunicação assim
“tautístico” que Lucien Sfez (entre definidos interagem estreitamente com
outros) lhes empresta; mas é incontes­ a esfera política, ainda que de maneira
tável que elas são para as grandes muito variável; mas seria um erro pensar
organizações, as multinacionais, os que as práticas comunicacionais e as
partidos políticos dominantes e os práticas políticas se equivalem; é por
Estados - que podem lhe consagrar os este viés que Bernard Floris, seguindo
orçamentos de publicidade, de as reflexões de Gilles Achache9, designa
“comunicação”, de patrocínio, de como as “formas transversais de
mecenato ... crescentes - elementos de comunicação” (a forma dialógica, a
reafirmação de sua dominação. forma propagandista e a forma de
Tais são os quatro modelos de marketing)10, que se articulam no
comunicação que, sucessivamente, se espaço público as lógicas sociais das
formaram e “organizam” o espaço mídias e o funcionamento do campo
público das sociedades liberais- político;
democráticas. No entanto, importa - enfim, e este traço é raramente
acrescentar que: sublinhado, uma vez que ele é de uma
- em uma dada sociedade, não há importância capital, a colocação de cada
necessidade (estrutural) alguma para novo modelo significa uma ampliação
que tivessem dado lugar à quatro etapas significativa dos públicos (e mesmo dos
sucessivas: assim, a imprensa de participantes) envolvidos, mesmo se
opinião pôde conhecer uma evolução esta se acompanha praticamente de um
muito rápida, encontrando-se rapida­ afastamento da participação no cenário
mente suplantada pela imprensa de público.
massa; as relações públicas genera­
lizadas podem assim ser somente uma 2. Um espaço público assediado/
etapa de partida... invadido por todas as partes
- a emergência de um modelo novo O recurso aos quatro modelos de
não conduz ao desaparecimento dos comunicação descritos acima ajuda a
modelos surgidos anteriormente; recolocar o espaço público em sua
assistimos de algum modo a uma história de fundação. Se tais modelos
justaposição dos modelos, mais do que permitem compreender algumas 9)Ver a revista Hermès n° 4, Le
uma tutela dos “dominados” pelo características do processo, difíceis de Nouvel Espace public, 1989.
“dominante”: assim a televisão de apreender fora do contexto desta 10) Bernard Floris, Les Médiations
massa não provocou o desaparecimento estratégia, trata-se ainda de uma sociales dans l'évolution de
da imprensa comercial, a imprensa de tentativa insuficiente por si mesma. l'espace public, tese de doutorado
opinião se mantém (entendida aqui Outros elementos devem ser colocados de ciências da comunicação,
como formas imprevistas, como em evidência. Universidade Stendhal, Grenoble,
atualmente as cartas confidenciais com reprodução gráfica, 1991, 400
intenção daqueles que decidem), as O espaço público frente às técnicas da páginas.
comunicação (ou do marketing) políticos e em uma parte da classe
política política que aceita ver-se confinada nas
Nas representações mais clássicas tarefas de mediação: “O aspecto mais
do espaço público, o modelo de origem contestável, escreve ele, é evidente­
está amplamente presente, isso se não mente o das sondagens efetuadas por
for dominante. Esta faculdade de reflexos da opinião pública [...] Mas
discussão crítica e de arbitragem entre isso vale também para os homens
as opiniões divergentes que os políticos cuja dimensão representativa
burgueses esclarecidos do século XVIII pode ser enteirada com excessiva
se impunham, ao mesmo tempo que eles rapidez [...] E de modo parecido, para
a opunham à arbitragem do Estado os jornalistas, cuja evocação não
monárquico, conserva um poder real de teimamos seja bastante idealizada”.11 E
sedução, ao ponto que muitos autores Patrick Champagne concorda com ele
contemporâneos (alguns, entre eles, com sua penetrante análise da função
essencialmente preocupados em afirmar das sondagens: “Este modo de
a legitimidade e a superioridade do dominação é sem dúvida menos brutal
regime liberal das sociedades do que quando a dominação é
democráticas), limitam o espaço monopolizada por uma fração, mas ele
público à sua função política, até é ainda mais poderoso, porque situado
mesmo aos papéis que ele assume na em parte alguma e por toda a parte,
cena política. Este reducionismo deve, impessoal e múltiplo, aceito e submisso.
por razões sobre as quais insistiremos Manifestado e sem dominantes clara­
na conclusão, ser criticado: a mente identificados...”.12 Uma primeira
complexidade do funcionamento das conclusão se impõe: a pressuposta
sociedades modernas, de fato, conduziu “superioridade” do espaço público
o próprio espaço público a se tornar (sobre outros sistemas de organização
complexo e a ampliar suas de “interação social”) não deve ser
competências. Mais uma outra crítica buscada nas relações que este
deve ser dirigida a estes mesmos estabeleceu com as técnicas modernas
autores, particularmente à alguns de comunicação política; e mesmo
contribuidores do número da revista estas, estão longe de ter mostrado
Hermès consagrada ao “novo espaço efetivamente suas vantagens
público” (Alain Touraine, Dominique democráticas.
Wolton, Raymond Boudon e mesmo
Jean-Marc Ferry), que não estão longe A penetração do espaço público na
de considerar que as técnicas modernas esfera privada
da comunicação política, não somente A maior parte dos analistas,
conduzem a uma modernização da vida sociólogos ou ensaístas, insistem na
11) Pierre Moeglin, política, mas sobretudo teriam uma individualização das práticas culturais
"Communication et démocratie: função organizadora, lutando contra a e comunicacionais; os dados dispo­
approche critique de la notion de entropia, a desintegração, a paralisia e níveis lhes dão razão, embora os
nouvel espace public" Andrew a irritação políticas. O espaço público movimentos observados sejam mais
Calabrese, Colin Sparks e Slavko político, a partir de então regulado e lentos do que o que eles geralmente
Splichal (eds), Fourth International ativado pelas técnicas da comunicação anunciam (é o caso, por exemplo, da
Colloquium on Communication and política, seria assim uma resposta à crise fragmentação do consumo televisivo).
Culture "Information Society and da representação política e à apatia E Patrice Flichy confirma esta
Civil Society", Purdue University crescente dos cidadãos. Pierre Moeglin trajetória evolutiva com um visão a
Press, 1993. se levanta, com razão, contra esta longo prazo: a tendência a “viver junto
12)Patrick Champagne, Faire concepção bastante conhecida do separadamente” ou no interior de
l'opinion, Éditions de Minuit, Paris, espaço público, sobretudo entre os “bolhas comunicacionais” particu­
1990, p. 277. “grandes” jornalistas, entre cientistas lares, assim como a diminuição da
freqüência aos espetáculos coletivos dos fatos do mundo. O jornal fornece
constituem fenômenos marcantes e também a substância regular para as
dificilmente contestáveis.13 Ao mesmo interações sociais cotidianas, a matéria
tempo, no entanto, cada indivíduo é das conversas que se estabelecem no
levado a se pensar cada vez mais como trabalho, nos transportes ou no lazer.
indivíduo social e, de forma ativa, a Explica-se da mesma forma por qual
fazer suas as normas de pertencimento razão esta invazão da esfera privada
social. Paul Beaud observa justamente pelo espaço público (que funciona nos
que “graças sobretudo às ciências dois sentidos), se acentua na atualidade
humanas, o espaço público penetra na com o modelo das “relações públicas
antiga esfera privada e substitue seus generalizadas”. Como observa
instrumentos de comunicação pelas Bernard Floris, “o relativo
estruturas tradicionais de socializa­ distanciamento da autoridade familiar,
ção”.14 De fato, a difusão, vulgarizada a exigência de autonomia e de
ou não, das produções históricas, iniciativa no trabalho, a exigência
psicológicas e mesmo sociológicas, crescente de escolarização e de
contribui para reforçar esta prática aculturação, constituem fatores de
social com força crescente nas crescimento da demanda reflexiva no
sociedades modernas: “a objetivação que se refere aos sistemas de
de si” (caracterização preferível à representação e finalmente de interiori-
“intelectualização da vida privada”, zação autônoma das experiências e de
proposta por Raymond Boudon). A conhecimentos sociais.”15
vulgarização das ciências e das
técnicas contribui também para isso. A dimensão mercantil do espaço
Está claro que o fenômeno se encontra público
inegavelmente distribuído por classes Trata-se certamente do aspecto da
e categorias sociais; ou melhor ainda, evolução do espaço público mais desco­
por pertencimento social, as estratégias nhecido, e que pode, com o tempo,
de construção de sua relação revelar-se o mais fundamental. Na
objetivada pela sociedade sensivel­ verdade, aqui e acolá, os analistas
mente diferente. E Paul Beaud, em modernos do espaço público fazem
oposição às teses de Habermas sobre referência ao papel das normas
a administração da cultura, insiste de mercadológicas, geralmente confun­
modo pertinente na “ligação entre as didas com os princípios do marketing
práticas sociais e a evolução conjunta (que não passam de uma declinação
do espaço público e dos processos de destes, entre outras). Permanece muito
comunicação”, entre os quais as mídias fértil, no entanto, a metáfora da conta­ 13)Patrice Flichy, Une histoire de
e as técnicas de comunicação exercem minação, é como se um espaço público Ia communication moderne:
“um papel socialmente diferenciado”. político “puro e perfeito” fosse (ainda) espace public et vie privée, La
Ainda conforme este autor, explica-se, consebível; ou como se a extensão das Découverte, Paris, 1991, 285
deste modo, a razão pela qual, na normas mercadológicas apenas desen­ páginas.
França, o jornal televisivo das 20 horas cadeasse em sua esteira uma forma 14) Paul Beaud, Médias,
conserva uma audiência muito grande ideológica específica, até um modelo de médiations et médiateurs dans Ia
e paira sobre as disputas televisivas: organização entre outros. Ora, a société industrielle, tese de
cada noite propicia uma ocasião dominação da mercadoria pertence doutorado do Estado de ciências
importante para a população primeiramente a um “modo de produ­ de informação e da comunicação,
estabelecer contato com um conjunto ção”. Seja porque seus efeitos se Universidade Stendhal, Grenoble,
mínimo de informações fundamentais observam prioritariamente na esfera do 1986, 160 páginas.
(ainda que reduzidas à uma consumo, seja porque são particular­ 15) Les Médiations sociales
representação simplificada), e, deste mente visíveis na cultura, a regulação dans l'évolution de l'espace public,
modo, participar virtualmente de perto mercantil tenderá sempre a controlar o op. cit.
conjunto das práticas sociais. formulações teóricas. Os traços de um
Não devemos, também, nos novo espaço público, no entanto, desde
espantar em encontrar agora o espaço já vão surgindo.
público lá onde não esperamos Numa primeira análise, pode-se
encontrá-lo, mais precisamente na concluir que o espaço público se
esfera da produção e nos lugares do perpetua (ainda que se sua função de
trabalho. Certas funções das técnicas facilitador do debate e das trocas de
de comunicação de empresa são bem opiniões, bem como o uso das práticas
conhecidas: no interior das próprias argumentativas tenham diminuido);
empresas, elas contribuem para que ele se amplia (todas as classes e
mobilizar as energias “participativas” ao categorias sociais são partícipes,
serviço da reorganização do trabalho; em porém, de modos diversos); que suas
comparação ao ambiente social e funções se estendem regularmente (as
cultural, elas melhoram sensivelmente a lógicas sociais que o “trabalham”
imagem que as empresas dão de si, indo estão na origem desta extensão); e que
até mesmo acentuar o lado “cidadão”. É ele tem tendência a se fragmentar.
preciso verdadeiramente ir mais longe, E este último traço que mais instiga
e questionar como Bernard Floris se questionamentos, pois a tendência à
as empresas não estão em vias de fragmentação repousa sobre:
alimentar novas relações com o espaço - uma assimetria crescente: os
público, de um lado pela penetração indivíduos/sujeitos/cidadãos estão
dos valores e das posições muito ocupados cada vez mais ligados
empreendedoras no espaço público aos dispositivos comunicacionais
“geral”, mas igualmente pela tendência gerados pela maioria das instituições
em constituir o lugar do trabalho como sociais, e se encontram assim em
espaço público “parcial”, onde as situação de “interação parcial” e
informações fornecidas pelos serviços provocada;
de comunicação tomam progressiva­ - uma desigualdade de participação
mente o lugar daquelas anteriormente que se acentua: para a leitura das cartas
difundidas pelas organizações confidenciais e a participação de grupos
sindicais, ou em todo caso se de reflexão fechados, um quadro que
justapõem a elas. dirige os meios de se comportar como
Ao término deste percurso, um burguês esclarecido do século
chegamos a uma proposição central: XVIII; este não é o caso de outras
o espaço público contemporâneo, em categorias sociais que se contentam com
nossa opinião, não poderia ser uma audiência mais ou menos regular
compreendido sem referência à sua do jornal televisivo;
história fundadora (e por conseqüên­ - uma desigualdade de acessos aos
cia sem levar em conta a presença meios modernos de comunicação que
ativa dos quatro modelos de comuni­ aumenta: o desenvolvimento das novas
cação nas práticas comunicacionais), tecnologias reforça as diferenças entre
e sem uma percepção das três “lógicas uma minoria de dirigentes e de
sociais” principais que lhes orientam mediadores “super-equipados”, e uma
as mudanças. Deve-se evidentemente maioria de excluídos que se contentam
reconhecer o quanto, além das com meios generalistas de massa;
especificidades de cada sociedade, o - uma gestão cada vez mais
espaço público é complexo. sofisticada do consenso social e
Isso posto, e para avançar no cultural: as diferenças, os conflitos e
conhecimento do espaço público, faz- as oposições se exprimem menos com
se necessário proceder às pesquisas ou as relações públicas generalizadas do
validações empíricas quanto renovar as que com a imprensa de massa, que
deixa se manter uma imprensa de dispositivos e aparentemente constituí­
opinião e os meios de expressão das do por uma justaposição de espaços
classes dominadas. “parciais” que não se comunicam entre
O espaço público, fundado hoje si, não será jamais unificado? Há com
sobre uma multiplicidade de o que se inquietar...

Bibliografia do autor
MIÈGE, Bemard (org.)- Capitalisme et industries culturelle - P.U.G - Grenoble,
França, 1978.

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