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DOSTOIEVSKY não era um historiador; não era obrigado a acreditar que tudo o que

começa aqui tem de acabar cá. Lembramo-nos que ele procurava realizar o que lhe era
mais caro, o seu capricho, na segunda dimensão do tempo, fora da história. Lá, julgava
ele, a parede deixa de ser uma parede, «dois vezes dois são quatro» perde a impudência,
os átomos já não serão protegidos, Sócrates e Giordano Bruno, que foram privados de
todos os direitos, serão objecto de todas as atenções, etc. Mas ao mesmo tempo,
Dostoievsky, como todos nós, era filho terra; aspirava portanto (o que lhe era por vezes
necessário) não só a contemplar Deus, mas também a agir. Observámos esta contradição
em todas as suas obras; ela manifesta-se particularmente nos Irmãos Karamazov e no
Diário de um Escritor.

Nos Irmãos Karamazov, Dostoievsky continua a série das suas experiências; não se trata
da experiência universal de que falava Kant, experiência fundada nas evidências, mas da
experiência pessoal, subjectiva, que tendia a ultrapassar as evidências. Mas, neste
romance, tal como nos artigos do Diário um Escritor, o autor, como se realizasse o
programa de Harnack, quer, por força, obter a aprovação da autoridade competente. Ele
sabe que a sua fé não poderá agir e ficará fora da história, se não encontra uma autoridade
suficientemente forte que parecer aos homens inabalável.

Quem é o herói dos Irmãos Karamazov? Se nos cingimos ao prefácio, é o mais novo dos
irmãos, Aliocha, e também Zossima. Mas então, por que as páginas que lhes são
consagradas não as mais pálidas, as mais fracas do romance todo? Uma única vez
Dostoievsky se sentiu verdadeiramente inspirado falando de Aliocha e lhe confiou uma
das visões que atingia nos Instantes da sua mais alta exaltação.

«Dando meia-volta de repente, ele (Aliocha) saiu da cela (de Zossima que acabara de
morrer). Desceu sem parar os degraus da entrada. A sua alma transbordante de entusiasmo
tinha sede de liberdade, dé espaço; a cúpula do céu marchetado de estrelas cintilantes
abobadava-se no infinito por cima dele. Do zénite ao horizonte escorria, desdobrada,
incerta ainda, a via láctea: uma noite clara e calma, como que imóvel, envolvia a terra.
As torres brancas e os zimbórios dourados da catedral brilhavam no céu de safira. As
maravilhosas flores outonais tinham adormecido até pela manhã nos jardins. O silêncio
da terra confundia-se com o do céu; o mistério terrestre e o mistério estelar penetravam-
se. Aliocha, de pé, contemplava; depois, súbitamente, correu corno desenfreado. Não
compreendia porque abarcava a terra com os braços, de onde lhe vinha o desejo
irresistível de a abraçar toda; mas abraçava-a chorando, banhava-a de lágrimas, e jurava,
em êxtase, amá-la, amá-la até ao fim dos seus dias. Por que chorava ele? No entusiasmo,
chorava pensando naquelas estrelas sim, cintilavam no abismo, e não se envergonhava do
êxtase. Era como se os fios que ligam entre si os inumeráveis mundos do Senhor se
reunissem todos de repente na sua alma, que tremia toda sob o contacto destes universos
desconhecidos».

Em tudo o que Dostoievsky escreveu, não encontrareis nada semelhante. É verdade que
Zossima trata o mesmo tema numa das suas obras, contudo com menos simplicidade,
menos força, menos inspiração. Mas isto foi quanto Dostoievsky se decidiu a confiar aos
seus heróis oficiais. Mesmo ele só uma vez falou no mesmo tom, como se- sentisse que
não podemos insistir nestas coisas ou, melhor, que só é possível entrever estas coisas do
fundo do abismo, do subterrâneo, e ao mesmo tempo que as «verdades» subterrâneas que
lhe servirão de suporte. Parece que as duas suposições são igualmente admissíveis. É
nesta visão de mundos desconhecidos que consiste provàvelmente a fé cuja possibilidade
Harnack não admitia, a fé que nenhuma autoridade exterior invoca, que a história se
recusa a verificar, que não deixou traços, a fé que se não preocupa com as obras, que nada
deu à humanidade e que a ciência portanto declarou inexistente. Mas aos olhos de
Dostoievsky, ela era precisamente esta coisa caprichosa para a qual reclamava, procurava
garantias, direitos, e que tentava com uma audácia inaudita arrancar ao poder da
autoridade e até da História o das suas evidências. Em relação a isto, os Irmãos
Karamazov, como eu disse, são a continuação da Voz Subterrânea, em que capítulos
como «a revolta», «o cheiro da morte», «os irmãos conhecem-se» poderiam ter
encontrado lugar.

Dimitri Karamazov, aquele bêbado, aquele debochado que é além disso um ignorante,
pronuncia discursos de que se una envergonhariam Platão ou Plotino. Cita Schiller e,
quando diz: «E o triste olhar de Ceres apenas descobre por toda a parto profunda
humilhação do homem», soluça. «Meu caro, diz ele ao irmão, esta humilhação persiste
ainda. O homem tem muito que sofrer na terra. Que sofrimentos atrozes... Quase só penso
nisso, meu irmão, no homem humilhado». E poucos momentos após, este ignorante
declara: «a beleza é uma coisa terrível horrível. Terrível, porque a não podemos
determinar, e é lira possível determiná-la, porque Deus só nos oferece enigmas, oposições
confundem-se nisto, todas as contradições aqui vivem em conjunto. Sou muito pouco
culto, mas penso bastante nisto». Pensa bastante nisso! Será que um homem pouco culto
sabe pensar? E temos nós o direito de chamar «pensamento» ao que e passa em Dimitri
Karamazov? É indignação, é revolta, é uma corrida às contradições, é tudo quanto
queiramos, mas não é um pensamento. Recordamos que, segundo Spinoza, o pai da
filosofia moderna, somos obrigados, se queremos pensar, a afastar qualquer ideia de
Bonum et Malum, Pulchritudo et Deformatione. O mesmo Spinoza nos diz: non ridere,
non lugere, neque detestari, sed intelligere. E se os homens aprenderam alguma coisa
com Spinoza, foi justamente a afastar deles qualquer ideia o Belo, de Bem, para pensar,
para compreender, para não ser mais que esta «consciência comum», que não ri, nem
chora, nem amaldiçoa, mas apenas pesa, mede, conta, como os matemáticos que a
consciência comum tomou por modelos.

Quanto a estas frases «as oposições confundem-se», «todas contradições vivem em


conjunto», parecem relevar do delírio e não apresentar senão palavras despidas de
qualquer significado: «Aquilo que contém em si uma absoluta contradição o pode ser
verdade, e cada um tem o direito de designar to contradição pelo seu nome» — teria
Harnack repetido, a respeito de Dostoievsky, o que diz de Santo Atanásio (D. G. II, 225).
E é com a mesma indignação que teria acolhido «indeterminável» de que se dá conta o
ignorante Dimitri.

Todos estes esforços têm realmente por objecto apenas fazer cair o princípio de
contradição que, desde Aristóteles, é considerado como o próprio fundamento do
pensamento. Mas isso o detém nem assusta Dostoievsky; lembra-se que indocti rapiunt
coelum; lembra-se que «duas vezes dois são quatro» é um princípio de morte que o
homem colheu na árvore da ciência bem e do mal.

Será possível fugir à maldição do conhecimento? Pode o homem deixar de julgar, de


condenar? Pode não mais ter vergonha de si mesmo nem do que o rodeia, como Adão e
Eva do a serpente os induzir em tentação? — É o objecto da discussão que se trava na
Lenda do Inquisidor-Mor (Os Irmãos Karamazov) entre o cardeal inquisidor, um velho
de oitenta anos, em quem se incarna a sabedoria humana, e o próprio Deus. Muito tempo
se calou, este velho; mas por fim não pode mais: tem de falar.

Diz para Deus: Que deste tu aos homens? Que pode dar-lhes? A liberdade? Os homens
não podem aceitá-la. O homens precisam de leis, de uma ordem determinada, fixada de
uma vez para sempre, que lhes permita distinguir que é verdade, o que é falso, o que é
permitido, o que é proibido. «Tens o direito de revelar um só mistério que seja, ti mundo
de que provéns?», pergunta a Deus; e ele próprio responde, porque Deus se cala, Deus
cala-se sempre: «Não, não tens esse direito. Tu transmitiste-nos a tua obra. Prometeste,
selaste a promessa com a tua palavra, deste-nos o direito d ligar e desligar, e não podes
evidentemente pensar em nos tirar esse direito».

O cardeal pensa nitidamente em Mateus, XXVI, 19. Et tibi dabo claves regni coelorum.
Et quodcumque ligaveris super terram, erit ligatum et in coelis et quodcumque solveris
super terram, erit solutum in coelis (1). É nestas palavras que se baseia a Igreja católica
para reclamar o potestas clavium; nelas que se funda a ideia da infalibilidade da Igreja.
Sabem que numerosos historiadores do cristianismo, e Harnack, se não engano, pertence
a esse número, considera este versículo como uma interpolação. Mesmo que esta
suposição fosse exacta, mesmo que a Igreja não pudesse fundar as suas pretensões sob
um texto da Sagrada Escritura, isso em nada lhe enfraquecer os direitos.

Por outras palavras: a ideia da infalibilidade não tem qualquer necessidade da sanção
celeste e passa sem ela facilmente. Teria Harnack em mente a Bíblia quando declara (que
ninguém pode sem perigo desprezar os direitos da ciência o da razão? Sócrates e, mais
tarde, Platão estabeleceram, desde antiguidade, que os homens na terra sabem
perfeitamente or si mesmos o que é preciso «ligar e desligar», isto é julgar, que no céu se
julga como na terra. Ninguém presentemente duvida: as nossas teorias do conhecimento
tornam complemente inútil qualquer revelação. Edmundo Husserl, um dos mais notáveis
filósofos contemporâneos, formula assim este pensamento: «Não há uma ideia nos
tempos modernos mais poderosa, mais activa, mais triunfante do que a ideia de ciência.
Ninguém lhe deterá a marcha vitoriosa. As finalidades que ela busca conferem-lhe uma
concepção verdadeiramente universal, abarcando tudo. Se a concebemos na sua perfeição
ideal, na sua efectivação, aparece absolutamente idêntica à própria razão que não pode
suportar qualquer autoridade acima ou mesmo ao lado dela».

A ideia de «infalibilidade» da igreja e do potestas clavium consiste justamente no que os


filósofos chamaram e chamam ainda «razão», a razão que não admite qualquer autoridade
fora dela e que exige que a adorem. Dostoievsky vê isto com aquele poder de penetração
que manifesta todas as vezes que «Apolo clima ao sacrifício» e o obriga a servir-se da
segunda vista.

«O homem que se sente livre, diz o cardeal, não tem preocupação mais incessante, mais
dolorosa do que encontrar um objeto de adoração. Mas aspira a ajoelhar-se diante de
qualquer coisa que seja indiscutível, tão indiscutível que todos os nas concordem
imediatamente em lhe prestar homenagem. Porque o desejo destas criaturas miseráveis
consiste em cobrir um objecto que não apenas eu ou outro possa adorar, mas em quem
todos creiam, que todos adorem, todos juntos. É esta necessidade de prosternar-se em
comum, que faz o tormento de cada homem em particular, e da humanidade inteira, desde
o começo dos séculos».
Impossível continuar. Teríamos de citar a lenda inteira, Mas devo mais uma vez chamar
a atenção do leitor para o poder da visão de Dostoievsky, para a clareza com que põe o
mais difícil dos problemas filosóficos. Não só nos manuais da filosofia, como até nos
melhores tratados, não encontrareis uma visão tão aguda, tão profunda. A teoria do
conhecimento, a ética, a ontologia aparecem construídas de maneira completamente
diferente aos olhos daquele que recebeu a «iniciação» de Dostoievsky, daquele que quer,
como ele, participar do mistério extraordinário do pecado original, fonte dos tormentos
que o cardeal indica. Também só aquele, creio, estar apto a compreender os adversários
de Dostoievsky — Spinoza, que esconde profundamente as suas incessantes dúvidas sob
fórmulas matemáticas, Edmund Husserl, descuidoso e triunfante. Porque Spinoza é o
cardeal de Dostoievsky, que entrevira, com trinta e cinco anos, esse terrível segredo de
que fala a Lenda, e que, velho de oitenta anos, dirigindo-se a Deus eternamente silencioso,
entreviu no fundo de uma prisão subterrânea. Que sede ardente de liberdade havia em
Spinoza! Mas com que rigor implacável ele proclamava esta necessisdade, lei única, à
qual estão submetidos Deus e o homem!

Não é o único, contudo: quase todos aqueles que tinham sede de liberdade e que este
desejo atormentava, os crentes e os cépticos, cantaram a glória da necessidade, com uma
espécie de volúpia fúnebre. A mais bela obra de Lutero, o tratado De Servo Arbitrio, é
dirigida contra Erasmo de Roterdão que tentara salvaguardar ao menos uma parcela da
liberdade humana. Aos olhos de Platão a nossa existência tomava o aspecto de um
espectáculo de fantoches, de uma peça em que os actores executavam maquinalmente
papéis distribuídos prèviamente. Marco Aurélio dizia o mesmo. Para Gogol, estamos
recordados, a terra era um reino embruxado. Para Platão era uma caverna. Os antigos
trágicos, Ésquilo, Sófocles, Eurípides e o maior dos poetas modernos, Shakespeare,
tinham da nossa existência uma visão análoga. Não podemos dizer que o homem não seja
livre: mas o homem teme acima de tudo a liberdade: é por causa disso que procura o
conhecimento; é por isso que ele aspira a uma autoridade incontestável, infalível, uma
autoridade aos pés da qual todos se possam prosternar. A liberdade asse «capricho» de
que nos falava o homem subterrâneo; mas aqui, na terra, o capricho exige também
garantias, não suspeitando sequer que a sua suprema prerrogativa é precisamente a de
poder passar sem qualquer garantia. Os próprios homens criam aquilo a que chamam a
«verdade», isto é, o imagem ilusória de qualquer coisa que possui o poder no céu e na
terra.

«Vê o que fizeste em seguida e sempre em nome da liberdade», continua censurando o


velho cardeal. «Digo-te que o homem não tem preocupação mais torturante do que
encontrar a quem possa dar bem depressa o dom da liberdade que este ser miserável traz
ao nascer. Mas... em vez de te apossares da liberdade do homem, mais a amplias. Em vez
de lhe dares princípios sólidos, para sossegar de vez a consciência da humanidade, tu
convocaste tudo o que era extraordinário, problemático, tudo o que era superior às forças
humanas».

Por outras palavras: até aqui a filosofia, a filosofia científica ou de aspecto científico,
considerava-se obrigada a justificar-se em face da omnitude ou, para falar a linguagem
escolar, em face da «consciência em geral» — Bewusstsein überhaupt. Ela procura bases
sólidas; ela aspira ao indiscutível, ao definitivo, à terra firme, desconfia acima de tudo da
liberdade, do capricho, de tudo quanto há na existência de extraordinário, de
problemático, de indeterminado, não se dando conta, sequer, que é este extraordinário,
este problemático, este indeterminado (que não precisa de qualquer garantia ou proteção),
que é o verdadeiro, o único objecto do seu estudo, este timiotaton de que falava, a que
aspirava Plotino, esta realidade que do fundo da sua caverna entreviu Platão, este de que
Spinoza dissimula sob o seu método matemático, e que inspirava o feio pato, o homem
subterrâneo de Dostoievsky, quando mostrava o punho e deitava de fora a horrorosa 1
gua aos palácios de cristal edificados pelos homens. Os anta sábios o atestam: não se pode
dizer de Deus que ele existe, porque, dizendo «Deus existe» perdemo-lo imediatamente.

CHESTOV, Leão, As revelações da morte. Trad. de Jorge de Sena. Lisboa: Círculo do


Humanismo Cristão, 1960.

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