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Pereira-Neto, A. F.

ARTIGO / ARTICLE

A Profissão Médica em Questão (1922): Dimensão


Histórica e Sociológica
The Medical Profession at Issue (1922): A Historical and Sociological
View

André de F. Pereira-Neto1

PEREIRA-NETO, A. F. The Medical Profession at Issue (1922): A Historical and Sociological


View. Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (4): 600-615, Oct/Dec, 1995.
Can a profession become the subject of historical or sociological study? Such an
undertaking can only be possible if one avoids the meaning ascribed to the word profession
and begins to give it a conceptual statue. Based on this concern, we present theoretical
postulates introduced by several North American sociologists in their attempts to define
profession as a concept, distinguishing it from occupation. We are interested in identifying
the role played by knowledge and control of the labor market control. We make use of this
reference to analyze a specifical case, the medical profession, in a particular place, Brazil,
and in a given historical context, the early 20th century, specifically at the “National
Congress of Practitioners” (1922). From this empirical, historical analysis, we make three
comments on our theoretical frame of reference. The first refers to the constitutive
heterogeneity of a professional body, the second to the historical meaning of the
professional process, and the third to coercion as a means for eliminating competitors and
establishing one’s self as a professional in the labour market. The purpose is to show that
historical and sociological study of the medical profession is legitimate, relevant, and
extremely opportune.
Key words: Medical Profession; Medical Labor Market; Medical Knowledge; History of
Medicine; History of Health

INTRODUÇÃO profissão. A primeira se expressaria nas diver-


sas atividades do mundo do trabalho. A pro-
Uma profissão pode se tornar um objeto de fissão seria um tipo especial de ocupação. De
estudo histórico ou sociológico? No nosso en- uma maneira geral, poderíamos afirmar que estes
tender, este empreendimento só é possível se três autores identificaram, pelo menos, dois ele-
conseguirmos escapar do significado comum mentos que caracterizariam uma profissão: o
atribuído à palavra profissão e passarmos a domínio de um certo conhecimento e o controle
atribuir-lhe um estatuto conceptual. do mercado de trabalho.
Acompanhando esta preocupação, estamos Apresentaremos inicialmente como estes au-
partindo do conjunto de postulados que orienta- tores fundamentam esta definição conceptual.
ram os trabalhos de alguns sociólogos norte- Em, seguida, utilizaremos estas referências para
americanos, tais como Wilensky (1970), Moore analisar um caso específico: a profissão médi-
(1970) e Goode (1969). Eles estabeleceram uma ca, em um espaço particular: o Brasil, em uma
diferenciação entre dois conceitos: ocupação e conjuntura histórica definida: o início do sécu-
lo XX, particularmente no “Congresso Nacio-
nal dos Práticos” (1922). A partir desta análise
1
empírica, de cunho histórico, pretendemos in-
Casa de Oswaldo Cruz, Fundação Oswaldo Cruz.
Avenida Brasil, 4036/401, Rio de Janeiro, RJ, troduzir algumas considerações sobre a con-
21040-361, Brasil. cepção teórica que nos serviu de referência.

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Profissão Médica

Assim estaremos perseguindo algumas das pre- “sabe tanto que pode comunicar somente uma
ocupações que orientaram os trabalhos de Ma- peguena parte disto” (Wilensky, 1970: 493).
rinho (1986) e Machado (1991). Em geral, ele aprende muito mais do que utiliza
Outros estudos, que associaram esta dimen- na prática. Este sobretreinamento é conside-
são teórica com um bem elaborado trabalho rado uma garantia parcial de que pode mani-
empírico de cunho histórico, trouxeram signifi- pular, com facilidade, um conjunto de proble-
cativas contribuições para este debate. Pedro mas. Para Goode (1969), o conhecimento e a
M. dos Santos (1993), inspirando-se na obra habilidade devem ser abstratos e organizados
de Wilensky, seguiu os passos da história da em um corpo codificado de princípios. Assim,
profissão médica no Estado de Pernambuco, a profissão passa a ter o poder de criar, trans-
desde o período colonial até os dias de hoje. mitir e organizar seu próprio conhecimento. As
Soraia A. Belisário (1993), amparada na mesma pessoas que queiram alcançar o estatuto pro-
perspectiva, entende que os sanitaristas ja- fissional devem se submeter a um rígido e lon-
mais constituíram-se enquanto uma “profis- go treinamento, orientado por um currículo
são”, sendo apenas uma “ocupação”. Maria padronizado (Wilensky, 1970). O estabeleci-
Ruth dos Santos (1993) acompanhou o pro- mento institucional do conhecimento é um re-
cesso de profissionalização e de desprofissi- quisito imprescindível para integrar uma pro-
onalização que os farmacêuticos sofreram ao fissão, na medida em que constitui a base para
longo de sua história. a reivindicação de exclusiva jurisdição sobre
Esperamos que este breve artigo, de caráter tal habilidade. Assim estariam estabelecidas,
meramente introdutório, seja capaz de demons- por exemplo, algumas das diferenças existen-
trar a legitimidade (Barbosa,1993), a relevância e tes entre a ocupação dos carpinteiros e a pro-
a oportunidade de investigações que associem fissão dos advogados.
a dimensão histórica à sociológica na análise da Este conhecimento esotérico, inacessível ao
profissão médica. cidadão comum, deve ser aplicável e conter al-
tos índices de resolutibilidade. O corpo de co-
nhecimento que uma profissão domina deve ser,
O CONCEITO: PROFISSÃO então, de extrema relevância. Assim a sociedade
concordará em investir grandes somas de capi-
Para os autores que nos serviram de referên- tal nas escolas de treinamento e na capacitação
cia neste trabalho, o conhecimento em uma pro- profissional. Para Moore (1970), uma ocupação
fissão deve ser complexo, sistematizado, institu- torna-se uma profissão quando os responsáveis
cionalizado, aplicável por poucos e de utilidade criam e utilizam sistematicamente um conheci-
reconhecida pela clientela. mento geral acumulado, como solução para pro-
Wilensky (1970) considera o domínio sobre blemas colocados pela clientela. Neste sentido,
determinada área do conhecimento um dos fa- a medicina e a engenharia adquirem uma rele-
tores determinantes na diferenciação entre vância particular. Estas profissões trazem consi-
uma profissão e uma ocupação. Ele afirma que go todo um projeto de resolução de problemas
“a base do conhecimento ou doutrina para a concretos da vida dos cidadãos.
profissão é resultado de uma combinação de Esta aplicabilidade e resolutibilidade não se
conhecimento prático e intelectual, parte do consolidam abstratamente. O profissional deve
qual é explícito (livros, leituras, demonstra- empreender todo um conjunto de estratégias de
ções), parte implícito”. Para ele, o “conheci- convencimento da clientela. A sociedade deve
mento profissional, como todo conhecimen- acreditar.que apenas o profissional tem con-
to, é algo relativamente tácito, dando às pro- dições de resolver seus problemas. Não é ne-
fissões estabelecidas sua ‘aura de mistério’” cessário que ele os solucione. O público precisa
(Wilensky, 1970: 494). continuar acreditando, no entanto, nesta capa-
Segundo Goode (1969), uma profissão tor- cidade. A profissão detém o monopólio sobre
na-se um produto supervalorizado no “merca- determinada atividade porque persuade a socie-
do de prestígio” graças, em parte, ao alto nível dade a crer que ninguém mais, salvo o profissio-
de sua formação. O profissional é alguém que nal, pode fazer este trabalho com sucesso. Para

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Wilensky (1970), o profissional deve ser capaz cindem de qualquer código normativo formal
de dominar certa base de conhecimento para que para regular sua atividade e padronizar sua
tenha condições de convencer a clientela de sua conduta. Neste caso, cabe lembrar que todas
importância, único modo de alcançar o prestígio as atividades do mundo do trabalho trazem
e o poder almejados. Por esta razão, o consumi- consigo uma ética, que, apesar de informal,
dor de serviços deve ser alguém nem muito or- regula a relação entre os componentes de uma
ganizado socialmente, nem muito informado, para mesma ocupação. As profissões, por outro
que receba, sem contestar, as determinações do lado, sobrevivem e conquistam prestígio jun-
profissional, podendo ser, devido a isso, mais to à clientela se conseguem impor normas acei-
facilmente convencido. Se estas estratégias de- táveis pelo conjunto da categoria, institucio-
rem certo, a clientela passará a reconhecer a uti- nalizadas por intermédio de um código que se
lidade da profissão. torna instrumento de pressão e de persuasão
Moore (1970) concebe o peso do conheci- sobre seus componentes.
mento na configuração da profissão como algo Para os sociólogos que foram nossa referên-
dinâmico. Para ele, o “crescimento de um novo cia para esta reflexão preliminar, não basta do-
conhecimento é fonte para uma nova profissão” minar certo conhecimento e submeter-se às re-
(Moore, 1970: 56). Neste sentido, a profissiona- gras impostas pela coletividade dos pares. A
lização adquire uma dimensão de processo. Um profissão deve ser capaz de estabelecer estraté-
exemplo, a propósito, pode ser dado com o ato gias que busquem conquistar o monopólio do
de parir. Até meados deste século, a ajuda às exercício de sua atividade no mercado de traba-
parturientes era uma atribuição das parteiras ou lho. Neste sentido, a profissão se organiza em
sages femmes. Aos poucos, foi se constituindo associações e pressiona o Estado. Mais uma
uma área de saber – a ginecologia e obstetrícia – vez, a distinção entre ocupação e profissão se
que se tornou complexa, sistematizou-se, impõe. As associações de ocupações se preocu-
institucionalizou-se, elitizou-se e convenceu a pariam exclusivamente com os problemas rela-
clientela da exclusiva jurisdição sobre esta habi- cionados com as condições do exercício do tra-
lidade. Configurava-se, deste modo, uma espe- balho (salário, regime de trabalho, férias, con-
cialidade profissional dentro da medicina. As dições de trabalho, etc.). As associações de
parteiras foram passando, paulatinamente, a ocu- profissões, além de se ocuparem com este tipo
par um papel secundário nesta tarefa. de reivindicação, comprometem-se ainda com a
O domínio do conhecimento, dentro dos mar- habilitação e formação de seus futuros integran-
cos teóricos assinalados, apesar de impres- tes e com a relação que estabelecem entre si e
cindível, não é considerado, pelos autores cita- com seus clientes.
dos anteriormente, um elemento suficiente para A garantia da manutenção da autonomia é con-
a definição do conceito profissão. A coletividade siderada, pela maioria dos autores analisados,
de pares que a compõe precisa que a conduta parte integrante do processo de conquista de
profissional seja padronizada. Assim, os clien- hegemonia da profissão no mercado de trabalho.
tes passariam a ter condições de distinguir, pelo Garantindo sua autonomia, o profissional passa a
comportamento, se tal ou qual atitude é ou não ter autoridade e liberdade para se auto-regular e
compatível com a atividade profissional. A atuar em sua esfera de competência.
auto-regulação se formaliza por intermédio de Não se trata de associar a garantia da auto-
um Código de Ética. Seu objetivo é persuadir o nomia com o exercício da profissão em moldes
conjunto da profissão e agir segundo os padrões exclusivamente liberais (Schraiber, 1993). Tanto o
instituídos coletivamente. Quando for necessá- profissional liberal quanto o assalariado são vul-
rio, métodos coercitivos também estão previs- neráveis a perder a autonomia quando a demanda
tos. Um Código de Ética busca padronizar a con- por serviços for baixa e a dependência em relação
duta e o relacionamento dos componentes de ao poder dos clientes ou patrões, não receptivos
uma profissão em três níveis: interpares, com ao julgamento profissional independente, for alta.
seus concorrentes e com seus clientes (Pereira Em organizações complexas e burocráticas, regi-
& Rocha, 1995). As ocupações, em geral, pres- das por rotinas de trabalho, a autonomia profissi-

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Profissão Médica

onal pode ficar seriamente comprometida. A au- Uma breve comparação entre os anais dos
tonomia se consolida quando o profissional se congressos médicos promovidos pela Acade-
torna capaz de decidir as necessidades de seu mia Nacional de Medicina e pela Sociedade de
cliente, não permitindo que ele imponha seu pró- Medicina e Cirurgia no final do século XIX e
prio julgamento. início do século XX, com este realizado em
Uma outra dimensão de autonomia associa 1922, leva-nos a concordar com a primeira par-
este conceito à possibilidade de o profissional te das considerações feitas pelo Dr. Silva Ara-
julgar a si e a seus procedimentos. Assim, só ele újo. O mesmo orador apontou a causa e a so-
seria capaz de invalidar o serviço do leigo, lução para a denominada crise que entendia
comprometer-se com a organização de efetivo estar ocorrendo na profissão médica, afirman-
controle de admissão ocupacional, instituir uma do: “Em uma época em que os adversários da
educação especializada através da qual a socie- profissão são as coletividades (grifo nosso),
dade possa distinguir o profissional do homem faz-se mister que o sindicato que se organiza
experiente e estabelecer normas que assegurem contra elas sinta-se forte, coeso, capaz de agir e
competência técnica. vencer” (Actas, 1923: 18). A classificação das
“coletividades” que reivindicavam um sistema
de assistência médica como “adversários da pro-
O CONGRESSO NACIONAL fissão (médica)” evidencia a pouca ou nenhuma
DOS PRÁTICOS (1922) aceitação dessa ação coletiva pelo orador.
O termo coletividades refere-se, neste caso,
Desde o final do século XIX até a metade às organizações mutualistas e filantrópicas da
do século XX, a profissão médica passou, no sociedade civil que se multiplicaram no início do
Brasil, por uma crise que continha pelo menos século no Brasil. Não se trata da medicina esta-
duas marcas: a redefinição da base cognitiva tal, expressa inicialmente com a implementação
da medicina e a reestruturação do mercado de das “Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPS)
serviços de assistência médica (Donnangelo, que passaram a se constituir com a promulgação
1975). Os sinais desta crise podem ser percebi- da lei Eloy Chaves (1923).
dos em diferentes fontes documentais. A fon- O relator Felício Torres, por sua vez, não só
te primária em discussão foi escolhida por defendeu a constituição de um sindicato médi-
encerrar uma rica documentação que, ainda não co, como também propôs que esta organiza-
foi explorada. Nela as questões do monopólio ção adotasse “as resoluções do atual congres-
do conhecimento e do domínio do mercado de so no que se refere aos diplomas estrangei-
trabalho médico se evidenciaram. Este evento ros, à limitação das matrículas, à luta contra o
situa-se em uma conjuntura histórica em que o curandeirismo, contra o charlatanismo profis-
debate sobre o sentido e o limite da atuação do sional, instituindo, por exemplo, um comitê
Estado na área da assistência médica começa- para a denúncia dos indignos e indesejáveis”
va a ocupar o cenário político (Hochman, 1993). (Actas, 1923: 157). Como podemos observar, a
O “Congresso Nacional dos Práticos”, reali- agenda das lutas que a associação profissio-
zado no Rio de Janeiro de 30 de setembro a 8 de nal médica deveria empreender diferia em mui-
outubro de 1922, foi um forum onde as questões to daquela que estava sendo implementado por
relacionadas com a reordenação do trabalho mé- seus contemporâneos anarquistas ou comu-
dico foram debatidas. A Imprensa Nacional pu- nistas. Além disso, a organização dos interes-
blicou seus 63 relatórios, contendo os mais varia- ses profissionais dos médicos envolvia ques-
dos assuntos, em suas “Actas e Trabalhos”. Seu tões relacionadas com o domínio do conheci-
orador oficial, Oscar Silva Araújo, distinguiu este mento e com o monopólio do mercado de ser-
congresso dos anteriores, afirmando que nele não viços de assistência médica que entendiam
seriam discutidos os “grandes problemas médi- estar abalado.
cos e as questões controversas da ciência”, mas Fernando Magalhães apresentou, ao encer-
sim a “crise (grifo nosso) muito séria e com ten- rar o evento, “as bases para a organização da
dência a se agravar cada vez mais” por que pas- futura associação”. Esta associação deveria
savam os médicos (Actas, 1923: 17). “pugnar pela garantia do exercício clínico digno

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e próspero”. Segundo consta nos Anais do Con- dico em relação à tecnologia. O diagnóstico de
gresso, “esta proposta foi recebida com entu- certas enfermidades começou a ser feito, em
siásticos aplausos e geral aprovação do Con- certos casos, cada vez mais, com a interme-
gresso” (Actas, 1923: 618). diação de um forte aparato técnico. Um grande
Reunindo boa parte da elite médica, o “Con- capital em máquinas e equipamentos foi se tor-
gresso Nacional dos Práticos” (1922) nos pare- nando necessário para o exercício da atividade.
ce ser uma fonte apropriada para a compreensão A bacteriologia contribuiu para elevar a pre-
mais precisa do debate que estava sendo trava- cisão na elaboração do diagnóstico. As teorias
do, no seio da categoria médica, a respeito das miasmáticas, que muitas vezes comportavam jul-
alterações que sua base cognitiva a que seu gamentos morais sobre a vida do cliente, esta-
mercado de trabalho estavam sofrendo com a vam em lenta decadência. A subjetividade e a
iminente entrada do Estado na gestão dos servi- sensibilidade do profissional, preponderantes na
ços de assistência médica. A profissão médica relação médico-paciente até então, começavam
passava, então, por um processo de reestrutura- aos poucos a assumir um plano secundário. O
ção. Uma das estratégias encetadas por parte da médico especialista e o diagnosticador amea-
elite profissional, resistente à ação das coletivi- çavam, respectivamente, a relação individualiza-
dades, manifestou-se com a criação do “Sindi-
da e a intuição predominantes na prática profis-
cato Médico Brasileiro”, cinco anos mais tarde
sional até aquele momento. Donnangelo (1975)
(Pereira & Maio, 1992).
denominou esta nova maneira de fazer medici-
na de “tecnológica”, referindo-se a este tipo de
intermediação que trouxe a precisão no diagnós-
A CONJUNTURA HISTÓRICA
tico diminuindo o papel das subjetividades que
caracterizavam a relação médico-paciente.
Até o final do século XIX e início deste, o
O debate sobre a questão do conhecimento
modelo hegemônico de prática médica era ca-
estava assim organizado: para alguns médicos,
racterizado, em geral, no Brasil, por um trata-
mento global, que associava as condutas clí- este processo de especialização e de introdução
nicas às morais (Luz, 1982). A relação médi- da tecnologia elevariam o status da profissão;
co-paciente era individualizada e não contava para outros, a despersonalização da relação
com nenhum intermediário que estipulasse médico-paciente contribuía para a perda da au-
tempo, forma ou valor da consulta. A habilida- tonomia da profissão, gerando ainda a depen-
de e a sensibilidade eram os principais atribu- dência do profissional perante a tecnologia.
tos para o exercício desta atividade. O clínico Como podemos perceber, o debate estava lança-
geral percebia o corpo do paciente como um do e a base cognitiva da medicina começava a
todo indivisível. passar, no início deste século, por um processo
No início do século XX o processo de traba- de redefinição.
lho médico estava sendo alterado nos dois ele- Por outro lado, a concentração urbana e in-
mentos definidores de uma profissão: o conhe- dustrial e a constituição da classe operária leva-
cimento e o mercado. ram à implementação de certas medidas relacio-
Por um lado, o desenvolvimento científico nadas com a medicina preventiva, a higiene pú-
foi promovendo a especialização do conheci- blica e a assistência médica e previdenciária para
mento médico segundo a área do corpo ou o as coletividades (Labra, 1985). Este conjunto de
tratamento a determinada doença. Este proces- medidas na área da saúde foi implementado, no
so de especialização pode ser observado nas início deste século, tanto pelo poder público
reformas que o ensino médico sofreu no final quanto pelo setor privado (Benchimol, 1990).
do século passado (Edler, 1992). Além disso, a Aos poucos, o mercado de trabalho médico
base cognitiva foi sendo alterada com a intro- se tornava mais complexo e a relação assalaria-
dução da tecnologia na produção do diagnós- da começava a ser introduzida. O médico que
tico e com a incorporação dos avanços da balizava sua relação com seu paciente de forma
bacteriologia e da medicina experimental. Tudo individualizada e liberal via seu espaço de pres-
isto foi gerando uma certa dependência do mé- tígio e poder, no mercado de trabalho, ser

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Profissão Médica

ameaçado pelo médico funcionário público, tra- O “Congresso Nacional dos Práticos” (1922)
balhando em um hospital. Esta instituição foi situa-se exatamente um ano depois da Reforma
deixando, aos poucos, de ser o asilo dos po- Luis Barbosa e um ano antes da promulgação da
bres, imprestáveis e incuráveis, aguardando a Lei Eloy Chaves.
morte, para tornar-se o espaço da ciência, da O debate sobre a questão do mercado de tra-
racionalidade, da capitalização e da recupera- balho estava organizado em torno de sua res-
ção para a vida. A profissão médica integrou, trição ou ampliação. Para alguns médicos, o as-
desta maneira, o processo de parcialização do salariamento era visto como uma ameaça à so-
trabalho que se desenvolvia nas demais ativi- brevivência da profissão, pois comprometia a
dades produtivas. Começava a se restringir o liberdade do profissional em estabelecer o va-
lugar do médico que vivia exclusivamente do lor de sua consulta. Além disso, os estabe-
exercício liberal de sua atividade. lecimentos públicos de assistência médica eram
Tendemos assim a concordar com Gadelha vistos como agentes captadores de uma clien-
(1982), quando identifica, no início deste sécu- tela que detinha poder aquisitivo suficiente para
lo, uma modificação significativa do processo ser atendida no consultório particular. O mer-
de trabalho médico com a incorporação de tec- cado de trabalho parecia se restringir. Para ou-
nologia e o surgimento de uma nova modali- tros, a entrada do Estado na organização de
dade de produção privada e depois estatal de uma rede de assistência médica promovia a
serviços de saúde. A presença do Estado nos ampliação do mercado de trabalho, já que ofe-
serviços de saúde tem na promulgação da lei recia seus serviços a uma clientela não alcan-
Eloy Chaves (1923) um momento de inflexão. çada pelo sistema liberal. Além disso, esta in-
Esta lei é considerada por Oliveira & Teixeira trodução representava uma renda fixa que o
(1986) e por Malloy (1986) uma expressão do médico passaria a ter. O debate estava clara-
abandono das atitudes liberais que o Estado mente instaurado e o mercado de trabalho co-
meçava a se modificar, no início deste século,
vinha adotando frente à problemática traba-
de forma significativa.
lhista e social.
Como acabamos de observar, o conhecimen-
Estes autores não se referem, entretanto, à
to e o mercado de trabalho médico estavam,
Reforma Luis Barbosa (1921). Ela introduziu o
no início deste século, passando por um pro-
complexo pronto-socorro - dispensário integra-
cesso de transformação. Um dos objetivos
do ao sistema filantrópico liberal. Assim, o Es-
deste artigo é identificar como os médicos, reu-
tado elegia a urgência como prioridade da as-
nidos no “Congresso Nacional dos Práticos”
sistência médica municipal e se esforçava por
(1922), reagiram a este conjunto de modifica-
afirmar a medicina científica/oficial frente às prá-
ções. A partir das constatações empíricas pre-
ticas populares. Alguns de seus postulados fo-
tendemos, ainda, introduzir alguns elementos
ram propostos pela Fundação Rockfeller. Ela que sirvam para a reflexão sobre os marcos
pregava o combate à doença como pré-requisito conceituais assinalados.
para o desenvolvimento econômico, a asso-
ciação do tratamento preventivo com o curativo e O MERCADO DE TRABALHO
a centralização dos serviços. A higiene deveria MÉDICO EM CRISE
ser uma atribuição federal. A organização dos ser-
viços de saúde, na gestão Luis Barbosa, compor- Lendo e analisando os anais do “Congresso
tava três níveis de atendimento: as “casas de saú- Nacional dos Práticos” (1922), tivemos con-
de” – para os abastados; os “serviços de urgên- dições de perceber pelo menos três maneiras dis-
cia” – gratuitos para os indigentes; e o “atendi- tintas de enfrentar a questão do domínio do mer-
mento geral” – para funcionários do Estado. Com cado de trabalho e da conquista da autonomia;
a “Doutrina Pronto-Socorrista” de Luis Barbosa, aceitação, resistência e conciliação.
o Estado expande seu atendimento médico mas No “Congresso Nacional dos Práticos”
não rompe com o modelo filantrópico-liberal, pois (1922), existiam aqueles que consideravam po-
resguardava sua hegemonia no mercado de ser- sitivo o incremento de instituições prestadoras
viços de saúde (Gadelha, 1982). de assistência médica. Entre eles, destaca-se o

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Dr. Neves da Rocha. No seu entender, “o prodi- se auto-regular ameaçadas. No nosso enten-
gioso desenvolvimento das cooperativas, das der, a visão exposta pelo Dr. Eduardo Meirelles
associações de títulos diversos de empregados resume o conjunto de críticas que estavam sen-
e de funcionários tem forçado os médicos a acei- do feitas naquela oportunidade. Na sua opi-
tar, em lugar de honorários pagos por visita, nião, “estas associações prejudicam os médi-
por consulta ou por trabalho feito, honorários cos na sua reputação (grifos nossos) – não
pagos por contrato, fixos, para equilibrar sua examinando o doente, não sabendo ao certo o
receita (grifo nosso)” (Actas, 1923: 492). O Dr. que ele sofre; na sua educação profissional –
Felício Torres corrobora esta opinião, afirmando levando só em conta anamneses ligeiras, aban-
que “a socialização tem pelo menos a vanta- donando os meios propedêuticos; na sua mo-
gem (grifo nosso) de proporcionar trabalho a ral – já que a sua conduta não está de acordo
um número enorme de médicos” (Actas, 1923: com os sãos princípios da boa ciência; na sua
152). A ampliação do mercado de trabalho e a ética – pois cientes dos seus defeitos são con-
garantia de uma renda fixa para o médico eram descendentes com o seu silêncio; no seu amor
vistos como argumentos suficientes para a de- próprio – recebendo exíguo vencimento e re-
fesa da presença destas instituições. ceitando muito” (Actas, 1923: 169). Assim, a
Havia, por outro lado, os que condenavam o burocracia organizacional era vista como um
avanço das instituições prestadoras de servi- fator que impedia que o médico tivesse auto-
ços de assistência médica às coletividades. Se- nomia suficiente para o pleno exercício profis-
gundo um deles, estes serviços “desprestigia- sional. No interior desta estrutura institucio-
vam, hostilizavam e criavam embaraços aos nal o atendimento deveria ser feito rapidamen-
médicos, comprimindo sua ação e restringindo te. Isto se justifica na medida em que a ativida-
(grifo nosso) seu campo de atividade” (Actas, de não era determinada pelo médico e sim por
1923: 80). A incidência maior de críticas a estas um terceiro elemento. Esta sobredeterminação
instituições se deu pelo fato de serem conside- era vista como um fator que tolhia o espaço de
radas limitadoras do mercado de trabalho do ação do médico limitando sua atividade, fa-
médico, pois atraíam uma clientela que, poten- zendo com que ele não conseguisse atuar de
cialmente, pertencia ao profissional liberal. Em forma plena. O pagamento, considerado irri-
geral, estas organizações prestavam serviços de sório, era outro fator que, nas palavras do Dr.
forma gratuita ou a partir de irrisória contribuição. Meirelles “lesava a independência do médi-
Para o Dr. Bastos Tavares, a alteração do perfil co” (Actas, 1923: 170).
do mercado de trabalho era considerada um ele- No decorrer do mesmo evento tivemos con-
mento que restringia o campo de ação do médi- dições de identificar uma terceira via para solu-
co profissional liberal na medida em que atendia cionar este problema. Esta perspectiva procu-
a “indivíduos abastados, ricos mesmo, que fu- rava contemporizar a manutenção do atendi-
giam da clínica particular (grifo nosso) para mento liberal com a ampliação do atendimento
esses estabelecimentos” (Actas, 1923: 73). de massa. Para a resolução desta equação, o
A polêmica entre os que aceitavam e os que Governo deveria normatizar o atendimento, ga-
resistiam à ampliação dos serviços de assistên- rantindo que apenas o paciente de baixo poder
cia médica residia exatamente na avaliação feita aquisitivo tivesse acesso às instituições de
sobre as conseqüências que este incremento assistência médica pública e/ou privada. Além
provocaria no mercado de trabalho médico, até disso, o Estado teria que remunerar o profissio-
então, hegemonizado pelo modelo liberal. nal de forma satisfatória. Assim estaria, por um
As resistências também se baseavam em uma lado, assegurada a ampliação do mercado de
acirrada crítica centrada em argumentos preocu- trabalho: o médico teria garantias de não estar
pados com a manutenção da autonomia no exer- perdendo clientela para estas instituições, pre-
cício da atividade. Nas organizações complexas, servando, portanto, a competitividade dos con-
como as que estavam se estruturando no Bra- sultórios particulares. Por outro lado, ele rece-
sil, muitos médicos defensores do modelo de beria honorários que não denegrissem sua ima-
relação individualizada, sem intermediários com gem de profissional bem remunerado. Dentre
o paciente, viam sua autoridade e liberdade de os oradores que se pronunciaram neste senti-

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Profissão Médica

do podemos citar o Dr. José Mendonça, Mon- Longe de apresentar uma visão coerente e
corvo Filho, então chefe do Serviço de Pedia- consensual, este “Congresso Nacional dos
tria da Policlínica Geral do Rio de Janeiro, e Práticos” (1922) pode ser considerado um pal-
Miguel Couto, na época presidente da Acade- co apropriado para a identificação de algumas
mia Nacional de Medicina (Ribeiro, 1964). O das principais polêmicas e tendências que di-
primeiro propôs que o “serviço não fosse in- vidiam a profissão médica no início deste sé-
condicionalmente gratuito, mas retribuído na culo. Lendo esta documentação histórica, te-
medida das possibilidades de cada um” (Ac- mos condições de sugerir, a título de hipótese
tas, 1923: 42). Para operacionalizar o fun- preliminar, que as estratégias para o domínio
cionamento deste tipo de estabelecimento, os do mercado de trabalho e para a garantia da
outros dois sugeriram a criação de “escritórios autonomia não representaram um consenso
de profilaxia” para o registro dos pobres (Ac- entre a elite médica. Foram, isto sim, um objeto
tas, 1923: 180) ou mesmo para a “verificação de controvérsia.
da indigência” (Actas, 1923: 583).
Muitos médicos, presentes neste Congres-
so pretendiam, através de propostas desse tipo, O DOMÍNIO DO CONHECIMENTO
delimitar formalmente o mercado de trabalho, EM CRISE
garantindo que o incremento de instituições
prestadoras de serviços de saúde não represen- Um dos temas mais reincidentes nos relató-
tasse uma ameaça ao modelo liberal. Ele deve- rios apresentados ao longo do “Congresso Na-
ria significar uma garantia de sua manutenção e cional dos Práticos” (1922) relacionava-se com a
a ampliação do mercado de trabalho do médico. reivindicação médica de exclusividade na “arte
Este regime de trabalho deveria ainda firmar de curar”. Neste sentido tivemos condições de
ampla autonomia para o exercício da atividade perceber, neste fórum, duas estratégias diferen-
e remunerar o profissional em níveis compatí- tes e complementares: alguns oradores combati-
veis com o valor desta mão-de-obra no merca- am o “charlatanismo”, enquanto outros procu-
do. No nosso entender, este modelo de assis- ravam estabelecer uma hierarquia entre os pro-
tência médica pode ser denominado de fissionais da saúde.
liberal-excludente. Ele aceitava o sistema de
assistência hospitalar gratuito, contanto que Combater o “Charlatanismo”
garantisse a fatia do mercado dos consumido-
res com alto poder aquisitivo ao profissional Alguns oradores buscavam reafirmar os
liberal. Os serviços de assistência médica “sãos princípios e verdadeiros dogmas cien-
oferecidos por instituições públicas, de carida- tíficos” (Actas, 1923: 73), para criar argumen-
de ou pelas “mutualidades” eram admitidos, tos fortes o suficiente para combater o que
desde que fosse assegurada a autonomia téc- denominavam de “charlatanismo”. O objetivo
nica. O julgamento do profissional deveria ser era persuadir o público de que apenas os mé-
independente. Não poderia existir uma estrutu- dicos, por dominarem o conhecimento científi-
ra burocrática que cerceasse esta liberdade. co e academicamente organizado, tinham a
Em termos de modelo de assistência médica autoridade para o exercício da prática de saúde.
coletiva, havia uma tendência ao estabelecimen- Neste sentido, o então professor catedrático
to de uma organização que não oferecesse o de Clínica Obstétrica, posteriormente diretor da
mesmo serviço e todos os cidadãos: a assistên- Faculdade Nacional de Medicina e depois Rei-
cia médica não deveria ser um direito de todos; tor da Universidade do Brasil, Dr. Fernando
ela variaria de acordo com o poder aquisitivo de Magalhães, Presidente do “Congresso Nacio-
cada cidadão. nal dos Práticos”, afirmou: “É tão acentuada a
Todas estas visões do problema da manu- diferença entre a posição de um médico e a de
tenção da autonomia e do controle do mercado um charlatão, que seria preciso, para o en-
de trabalho exemplificam de forma bastante níti- contro de forças, que o médico descesse de seu
da os conflitos internos existentes dentro da pedestal de honra e glória, (grifos nossos) a
corporação médica. ele não daria esta confiança ao charlatão, ou

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Pereira-Neto, A. F.

este subisse da lama em que chafurda para al- Se a persuasão não fosse suficiente, méto-
cançar o médico, o que não passaria de uma dos coercitivos estavam previstos. O Dr. Ernes-
pretensão irrealizável” (Actas, 1923: 447). to Thibau Jr., por exemplo, denuncia que “no
O domínio de um conhecimento complexo, Brasil nunca houve uma guerra sistemática
sistematizado e institucionalizado era considera- (grifo nosso) ao exercício leigo da medicina e
do, por alguns oradores, fator imprescindível para ao charlatanismo médico” (Actas, 1923: 240).
a correta prática de cura. Cabe lembrar que um O Dr. Bastos Tavares propõe que “a profilaxia
dos elementos estruturais e históricos presentes e a repressão como armas de combate aos víci-
na configuração da profissão médica no Brasil os do charlatanismo sejam de competência dos
está associado à concorrência que manteve, e poderes públicos, por intermédio dos orgãos
ainda mantém, com as práticas de cura leigas de prepostos à fìscalização do exercício da medi-
origem ameríndia a africana. O prestígio que a cina” (Actas, 1923: 87). Neste sentido, o Dr. Bo-
profissão médica poderia auferir originava-se nifácio Costa “deplora que, embora a Inspeto-
exatamente do fato de conseguir convencer a ria de Medicina venha cumprindo o seu dever,
clientela de que só o médico, academicamente multando os curandeiros e os médiuns espíri-
formado, detinha as condições para o exercício tas, ainda continuem o Centro Espírita Reden-
pleno desta atividade. tor e a Federação a ostentar uma força estra-
Para atingir este objetivo, alguns relatores nha contra o regulamento sanitário e o código
tomavam a rota da persuasão. O médico se co- penal” (Actas, 1923: 246).
locava em uma posição hierarquicamente su- Alguns oradores comprometeram-se publica-
perior, amparado no domínio exercido sobre o mente com a disputa de hegemonia no “merca-
campo do conhecimento científico e acadêmi- do de prestígio” (Goode, 1969) junto a seus cli-
co. Os outros agentes, que não haviam entes e à sociedade como um todo. Neste caso,
percorrido o mesmo ritual institucional, ape- a via da persuasão foi predominante. Muitas
sar de muitas vezes aliviarem a dor e a doença vezes, as articulações com o Estado puderam
do próximo, eram considerados “charlatães”. ser observadas de forma explícita. Desta feita,
Esta via desqualificava o “charlatão”, mas tam- tratavam-se de métodos coercitivos. A delação
bém descredenciava o cliente. No entender de de lugares e pessoas que infringiam o Código
alguns oradores, os “charlatães” obtinham Penal, por praticar atos de cura sem o estatuto
sucesso pois se amparavam na “ingenuidade de acadêmico, foi uma prática identificada en-
humana”, exploravam os “incautos”, “turva- tre os oradores do “Congresso Nacional dos
vam a mentalidade das massas incultas”. Por Práticos” (1922).
esta razão, alguns médicos se autoproclama-
vam “defensores do público contra o charla- Estabelecer uma Hierarquia
tanisnto e as explorações nocivas dos inde-
sejáveis” (Actas, 1923: 246). Amparados no O domínio do conhecimento esotérico da
domínio da ciência oficial, alguns médicos se medicina também serviu para estabelecer uma
propuseram a combater o “charlatão” e defen- diferenciação entre as diversas atividades na área
der o cliente, que era concebido como alguém da saúde. No momento em que o hospital se tor-
que não deveria ser muito bem informado a nava um locus privilegiado de trabalho em equi-
respeito de seu tratamento. Alguns oradores pe, alguns médicos, presentes no “Congresso
partiam do princípio de que, diante da igno- Nacional dos Práticos” (1922), procuravam defi-
rância do cliente e dos métodos “curandeiros”, nir a abrangência da área de conhecimento e de
só haveria uma alternativa: defender seu paci- trabalho dos que atuavam junto a ele. Alguns
ente atacando o “charlatão” rival. O paciente oradores buscavam destacar a medicina das de-
era visto como alguém que deveria se subme- mais atividades da area da saúde, estabelecendo
ter, sem contestar, às determinações do médi- entre elas uma hierarquia. Referindo-se à profis-
co. A perspectiva era convencer que só o mé- são médica, o Dr. Alcides Figueiredo afirmava:
dico credenciado oficialmente teria condições “Nenhuma profissão poderá prestar tantos e
de solucionar satisfatoriamente os problemas tão relevantes serviços à humanidade como a
de saúde e doença do cidadão. nossa” (Actas, 1923: 90).

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Profissão Médica

Os médicos se achavam com autoridade, ou- caracterizar a farmácia como locus científico
torgada por seu estatuto científico e acadêmi- quanto desqualificava o profissional como um
co, para definir o conteúdo dos cursos de for- produtor de qualidade. A disputa por prestí-
mação e delimitar o espaço para o exercício gio a clientela entre médicos clínicos e farma-
das diferentes atividades na área da saúde. A cêuticos revestiu-se de uma dimensão bem
intenção era fazer com que os outros saberes mais ampla. O posicionamento observado no
se tornassem menos complexos e misteriosos decorrer do “Congresso Nacional dos Práti-
que o do médico, estabelecendo-se assim cos” (1922) procurava, por um lado, subjugar
uma hierarquia com farmacêuticos, parteiras, o farmacêutico e a farmácia ao médico e, por
enfermeiras. outro lado, colocava-os paulatinamente sob a
Um dos casos que ocupou a atenção dos tutela das indústrias de remédios. Estes produ-
congressistas foram as rivalidades existentes tos passariam a ser produzidos e comercializa-
entre farmacêutico e médico. O Dr. Bonifácio dos a partir da intermediação do clínico. A far-
Costa afirmava que “o que se faz mister é a mácia iria se tornar simples estabelecimento
permanência do farmacêutico na farmácia de revenda de artigos.
como colaborador do médico, e nunca como Com relação às parteiras, o Dr. Arnaldo de
seu concorrente” (Actas, 1923: 245). O pronun- Moraes propõe, por exemplo, que sua formação
ciamento do Dr. Portocarrero foi mais detalha- não seja feita em uma faculdade ou curso com-
do. Ele disse: “O farmacêutico não pode gerir pleto, mas apenas em uma “cadeira de obstetrí-
mais de uma farmácia, anunciar cura de doen- cia para as alunas”. Em seu relatório final propôs
ças incuráveis, dar consultas médicas, aviar que “se cuide do preparo profissional de modo
receitas de médicos cujo diploma não esteja a pô-lo a resguardo da exploração e da con-
registrado, vender remédios derrancados ou corrência desleal” (Actas, 1923: 612). Ele esta-
ria se referindo, possivelmente, à pratica feita
falsificados, nem substituir drogas nas pres-
pelas denominadas “curiosas”.
crições dos médicos” (Actas, 1923: 366). A
O Dr. Arnaldo de Moraes dedicou sua for-
evocada superioridade da medicina em rela-
mação e especialização à obstetrícia. Em 1924,
ção à farmácia transformava-se em argumento
tornou-se livre docente de clínica obstétrica da
suficiente para credenciar o médico na tarefa
Faculdade Nacional de Medicina. Sua biografia
de delimitar seu campo de ação no mercado de completa-se com uma série de cursos, experiên-
trabalho. cias profissionais e publicações no Brasil e no
Sobre a questão da relação entre médico e exterior sobre esta área do conhecimento médi-
farmacêutico, gostaríamos de fazer dois co. O intuito em definir a área de domínio do
comentários. Em primeiro lugar, cabe ressaltar conhecimento da parteira se explica na medida
que, na década de 20/30, havia “um significa- em que delimita esferas da atividade profissio-
tivo número de médicos empregados em la- nal entre médicos obstetras e parteiras. A preo-
boratórios e fábricas de produtos farmacêu- cupação do conferencista era reafirmar a sobe-
ticos” (Gadelha, 1982: 93). Estes profissionais, rania da profissão médica, a partir do reconheci-
de baixo poder aquisitivo, não tinham outra mento, pelas outras atividades afins, de que o
opção: só conseguiam instalar seus consul- saber médico era mais extenso e abrangente do
tórios acoplados às farmácias. Assim, a ques- que os demais.
tão da separação entre a farmácia e a clínica O Dr. Fontenelle, em 1920, era membro do De-
preteria, ao mesmo tempo, os farmacêuticos e partamento Nacional de Saúde Pública. Sua traje-
os médicos menos abastados. Em segundo tória de vida profissional foi voltada para a área
lugar, devemos lembrar que, no início deste da higiene e administração sanitária. Entre suas
século, a arte de manipular e formular sofreu preocupações, encontrava-se a de instituir um
enorme metamorfose com o advento das mo- curso para “enfermeiras visitadoras de saúde pú-
dernas indústrias de medicamentos. A postu- blica”. No seu relatório durante este Congresso,
ra dos médicos, restringindo o campo de ação Fontenelle afirmou: “A profissão de enfermeira
do farmacêutico, tanto contribuía para des- precisa ser colocada no devido nível, (grifo nos-

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Pereira-Neto, A. F.

so) para o que é mister o governo criar um pa- dicava. Com o processo de especialização do
drão de escola de enfermeiras e fiscalizar esta trabalho técnico e de parcialização da ativida-
profissão”. No seu entender, as enfermeiras eram de produtiva, o médico pretendia também
imprescindíveis, mas deveriam ser “guiadas e manter-se em posição de destaque na escala
dirigidas pelos médicos” (Actas, 1923: 446). O de prestígio e poder. Por esta razão, alguns
relator pretendia colocar a enfermeira em seu congressistas se achavam no direito de defi-
“devido nível”, ou seja, submetida ao médico, nir o que as demais atividades na área de saú-
em termos de domínio do conhecimento e do de poderiam ou não fazer e saber.
exercício da prática de saúde. Estas duas estratégias buscavam, ao mesmo
Podemos constatar, a partir da análise empí- tempo, assegurar a autoridade e o reconheci-
rica do caso investigado, que uma profissão mento deste profissional junto a sua clientela.
não cria, transmite e organiza apenas sua área Elas partiam do reconhecimento do domínio de
de conhecimento, como afirma Goode (1969). certa área do conhecimento para reivindicar, jun-
Temos condições de sugerir que uma profis- to aos “charlatães”, enfermeiras, farmacêuticos
são também tem condições de definir, numa e parteiras, exclusiva jurisdição sobre o ato de
estratégia relacional, sua área de conhecimen- curar. A necessidade do estabelecimento des-
to e intervenção social estabelecendo as mes-
tas duas estratégias demonstra, sobretudo,
mas características em outra atividade. A
que a profissão médica passava, nos anos 20,
delimitação da abrangência do conhecimento
por um processo de transformação que afeta-
esotérico da profissão médica se dá na medida
va sua credibilidade. Sua auto-afirmação par-
em que as parteiras, enfermeiras e farmacêuti-
tia desta reivindicação de exclusiva jurisdição
cos têm seu campo de atividade igualmente
sobre o ato de curar baseada no domínio dos
delineado.
dogmas científicos adquiridos a partir da for-
A análise desta documentação nos permite
sugerir, de forma preliminar, que a profissão mação universitária.
assume uma estratégia relacional para garantir Os parâmetros apresentados pela literatura
sua exclusividade no exercício da tarefa que sociológica nos parecem úteis para nossa
desempenha. Esta estratégia envolveu as ocu- investigação. Cabe ressaltar, entretanto, a
pações que concorrem com ela. Uma profis- historicidade desta polêmica. Atualmente, te-
são não tem condições de definir o domínio ríamos dificuldade de encontrar um periódico
sobre seu conhecimento se não for capaz de ou congresso médico em que a questão do
determinar a base esotérica das ocupações combate ao “charlatanismo” ou da definição
concorrentes. de campos de ação e conhecimento entre mé-
A partir da análise preliminar desta docu- dicos e farmacêuticos estivesse presente. Por
mentação, temos condições de sugerir que a um lado, a racionalidade científica atravessa,
luta pelo domínio do conhecimento médico nos no mundo de hoje, uma crise muito profunda.
anos 20 assumia, pelo menos, duas faces. Por Muitas vezes, os próprios médicos indicam
um lado, os médicos procuravam reafirmar a remédios ou terapêuticas não reconhecidas
racionalidade científica frente às outras oficialmente pela medicina. No Código de Ética
racionalidades. A concepção de um conheci- de 1988, não há qualquer referência de con-
mento criado e transmitido em instituições denação às práticas tidas, na década de 20,
cientificamente aceitas e academicamente or- como “charlatanismo”. Por outro lado, os
ganizadas representava a base onde se estru- campos de ação dos médicos, farmacêuticos
turavam todos os argumentos que justifica- e enfermeiras já se encontram bastante defi-
vam a superioridade do trabalho médico em nidos institucionalmente, seja no hospital,
relação às práticas de cura não-científicas. Por seja na universidade. No nosso entender, a
outro lado, os médicos procuravam manter seu polêmica entre médicos e “charlatães” e a
poder no ato da cura, dentro do trabalho de estratégia de impor uma hierarquia entre os
equipe. Não era apenas o monopólio sobre o que atuam na área da saúde são duas ques-
domínio de um conhecimento abstrato, aplicá- tões próprias à história da profissão médica
vel a situações concretas que o médico reivin- dos anos 20 no Brasil.

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Profissão Médica

CONSIDERAÇÕES FINAIS sugestões que viriam aperfeiçoar o corpo de


conhecimento proposto pelos sociólogos das
Esta investigação teve, para nós, inúmeros profissões.
méritos.
Em primeiro lugar, acreditamos que este arti- Homogeneidade versus Heterogeneidade
go tenha sido claro o suficiente para demostrar a
pertinência do tema: a profissão médica como A primeira reflexão que pretendemos sugerir, com
objeto para a História. O instrumental teórico este texto, relaciona-se com a maneira pela qual os
introduzido por Wilensky (1970), Moore (1969) e teóricos que serviram de referência para este traba-
Goode (1969) nos pareceu interessante e extre- lho concebem o processo de conquista de hege-
mamente adequado para a análise que nos pro- monia profissional no mercado de trabalho.
pusemos empreender. A profissão, unidade básica de análise, é tida,
Pensamos ter sido possível estabelecer, neste por estes autores, como um todo coerente e ho-
artigo, a especificidade do fenômeno profissio- mogêneo. A sociologia das profissões nos for-
nal. Neste século, ocorreu uma crescente racio- nece um instrumental de extrema utilidade quan-
nalização e intelectualização de parte da ativida- do sugere que a busca do domínio do mercado
de produtiva. O trabalho com a ciência é hoje de trabalho e a garantia da autonomia são partes
organizado em “disciplinas especiais e servi- de uma estratégia utilizada por uma ocupação
ço do auto-esclarecimento e conhecimento de para se profissionalizar. Segundo tivemos con-
fatos inter-relacionados. Não é um dom da dições de perceber, estes autores concebem o
graça de videntes, nem participa das contem- conceito profissão de forma homogênea. Ela es-
plações dos sábios” (Weber, 1982: 130). Nas taria, assim, isenta de conflitos e contradições
sociedades complexas e pós-industriais como internas. Não identificamos, no corpo teórico
aquelas em que vivemos, as atividades do se- analisado, qualquer menção às dissensões pre-
tor terciário, particularmente as que requerem sentes em um grupo profissional.
uma formação de nível superior, aumentaram de Lendo e analisando a documentação concer-
número e importância. nente, percebemos duas dimensões de dissen-
Os sociólogos das profissões buscaram, so. Por um lado, identificamos que os congres-
exatamente, analisar as especificidades das ati- sistas privilegiavam um determinado modelo de
vidades de nível superior, procurando estabe- prática profissional em detrimento dos demais
lecer entre elas uma hierarquia. Guardadas as existentes em disputa na sociedade brasileira do
devidas diferenças entre os autores, poderíamos início deste século. Observamos uma tendência
afirmar que dedicar-se integralmente à ativida- pela defesa de uma conduta orientada pelo exer-
de, submeter-se à uma escola de treinamento, cício da clínica curativa e liberal, que estabelecia
orientar-se por normas coletivas impostas por com seu cliente uma relação individualizada. O
um código de ética ou por associações de classe médico diagnosticador, o que atuava no labora-
seriam algumas das etapas do “processo de pro- tório e o sanitarista se fizeram representar, de
fissionalização”. maneira distinta, naquele congresso. O seu inte-
Concordamos com estes autores quando afir- resse não era profissional. Eles não questiona-
mam que o domínio de um conhecimento esoté- vam nem a sua organização no mercado de tra-
rico, complexo, sistematizado, institucionalizado, balho nem a sua formação enquanto especialis-
aplicável e de utilidade reconhecida é elemento tas. Discutiam os limites e o sentido da atuação
fundamental para a definição do que venha a ser do Estado no combate e na prevenção de doen-
uma profissão do ponto de vista conceitual. ças infecto-contagiosas. A idéia de que a misé-
Acompanhamos ainda o ponto de vista destes ria era causada pela doença predominava entre
sociólogos quando identificam na questão do estes médicos. Em relação ao debate profissio-
domínio do mercado e no exercício da autono- nal – mercado de trabalho, formação, relação in-
mia dois pontos essenciais na configuração de terprofissional – havia um certo consenso entre
uma profissão. grande parte dos congressistas quanto à defesa
A análise empreendida nos permite apresen- dos interesses do modelo curativo e liberal no
tar, em caráter meramente introdutório, algumas exercício da medicina.

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Pereira-Neto, A. F.

Por outro lado, o dissenso se fez evidente der seus interesses no mercado de trabalho,
entre os congressistas não preventivistas. Ape- na formação e na relação interpessoal. Os
sar de defenderem, em geral, o mesmo modelo de interesses profissionais dos preventivistas,
prática profissional, havia alguma divergência higienistas, sanitaristas, diagnosticadores ou
quanto às estratégias a serem implementadas laboratoristas não se fizeram presentes. A se-
para a manutenção do monopólio do mercado gunda dimensão de heterogeneidade ficou ex-
de trabalho e a garantia da autonomia no exer- plícita entre os defensores deste modelo de
cício da atividade com o incremento das insti- prática profissional em relação ao enfrenta-
tuições de assistência médica filantrópicas e mento da questão da ampliação do sistema de
mutualistas. Tivemos condições de identificar assistência médica às coletividades. Uns a
pelo menos três posições a este respeito: resis- aceitavam, outros a rejeitavam, enquanto ou-
tência, aceitação e negociação. Para o primeiro tros ainda propunham formas mediadoras.
grupo, a assistência médica às coletividades não
era aceita de forma alguma. Para o segundo, ela Historicidade
era bem vista, pois assegurava uma renda míni-
ma ao profissional. A posição de negociação O segundo comentário que gostaríamos de
agia em dois níveis: da remuneração e do acesso fazer, à guisa de consideração preliminar,
ao serviço. O assalariamento era aceito contan- relaciona-se com a historicidade do papel do
to que estivesse garantida remuneração condi- conhecimento no processo de profissionalização.
zente com a manutenção do prestígio do profis- Para os autores que serviram de referência
sional. A gratuidade no atendimento era admiti- para este artigo, o conhecimento, criado e trans-
da se fosse limitada à um público de baixo poder mitido em instituições cientificamente aceitas e
aquisitivo e se, portanto, não concorresse com academicamente organizadas, representa a base
o consultório particular. O modelo assalariado e onde se estruturam todos os argumentos que
a assistência médica às coletividades exerceriam justificam a superioridade do trabalho profissio-
papel complementar no orçamento do médico. nal em relação a outras habilidades.
As condições de trabalho deveriam permitir o Esta constatação carece, no nosso enten-
exercício pleno da autonomia, sem os empeci- der, de ser feita à luz do momento histórico em
lhos da burocracia. que se está analisando uma determinada pro-
A homogeneidade de objetivos – defesa da fissão. Por um lado cabe fazer uma referência à
autonomia e da medicina científica – não impe- história social em que esta profissão está inse-
diu a evidência de diferentes estratégias políti- rida e da qual faz parte. Por outro lado cabe
cas de afirmação profissional. Em termos con- reconhecer a historicidade do processo profissi-
ceituais para a profissão se constituir como tal, é onal. Este foi, em parte, o esforço empreendido
necessário, mas não suficiente, que ela domine por Paul Starr (1982) ao analisar o processo de
o conhecimento e o mercado de trabalho. Na profissionalização do médico norte-americano
análise empírica empreendida, ainda que de for- (Pereira, 1994).
ma preliminar, diversos e conflitantes projetos No caso por nós analisado, tivemos con-
profissionais tecno-políticos vieram à tona com dições de identificar que a luta pela afirmação da
toda a sua virulência. A análise empírica foi ca- medicina oficial e pela delimitação dos campos
paz de nos mostrar que no interior de um corpo de saber e de ação entre os profissionais de saú-
profissional se localiza um intenso campo de dis- de se insere em um momento histórico da profis-
puta - um mar de heterogeneidades. são médica no Brasil.
A investigação empírica realizada fez com Quando a profissão médica enceta aquele
que tivéssemos condições de identificar dois conjunto de críticas às formas leigas de cura
níveis de heterogeneidades constitutivas da apóia-se em princípios originários no primado
profissão médica. Uma se evidenciou entre os científico hegemônico naquela época. Os médi-
modelos em disputa no mercado de prestígio e cos, em sua formação e em sua prática, condu-
poder. O forum escolhido para esta pesquisa ziam sua vida profissional inspirados nos apos-
foi o locus onde os defensores do modelo clí- tolados positivistas. Esta orientação era pró-
nico, curativo e liberal se reuniram para defen- pria à profissão médica no início deste século

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Profissão Médica

e não produz hoje os mesmos efeitos. Os ar- em que procura definir sua área de conhecimento
gumentos apresentados e as posições assu- a intervenção social, estabelecendo as mesmas
midas em 1922 são partes integrantes de um características em outra atividade. O médico defi-
determinado momento da história da profis- ne e abrangência do seu conhecimento esotérico
são médica no Brasil. na medida em que consegue estabelecer uma ver-
Quando os médicos reunidos naquele even- dadeira hierarquia entre ele e as demais ativida-
to procuraram estabelecer, de forma tão enfática, des vinculadas com a saúde. Esta estratégia en-
todo aquele conjunto de mecanismos hierárqui- volve as ocupações que concorrem com ela. Na
cos entre eles e os farmacêuticos a enfermeiras, verdade, ao delimitar e restringir o conhecimento
o hospital começava a se constituir como espa- da parteira, da enfermeira e do farmacêutico, o
ço privilegiado para a atividade de saúde em clínico garante o seu lugar de destaque no merca-
equipe. Nele, uma hierarquia precisava ser cons- do de prestígio e poder, a partir do domínio de um
tituída. A abrangência do conhecimento médico campo de conhecimento maior do que o de seus
tornava-se o argumento mais ressaltado para concorrentes. Esta dimensão do domínio do
estabelecer as diferenças entre os atores em cena conhecimento, a partir da delimitação do saber e
e afirmar as relações de poder e superioridade da prática de um rival, não foi observada nas lei-
dos medicos sobre os demais profissionais da turas que realizamos de alguns dos teóricos da
área da saúde. Nos dias de hoje, a hierarquia, no sociologia das profissões.
interior do hospital, já está configurada, geran- Apesar das evidentes divergências quanto
do outros e diferentes conflitos. às formas de manutenção da autonomia no
mercado de trabalho médico em transformação,
Estratégias de Profissionalização o jornal Correio da Manhã, na primeira página
da edição de 6 de outubro de 1922, salientava,
O terceiro comentário que se faz oportuno paradoxalmente, “a comunhão de idéias, a cordi-
refere-se às estratégias implementadas por uma alidade, a coesão e a solidariedade que nortea-
ocupação para se profissionalizar. Dois pontos vam os congressistas”.
mereceram nossa atenção: as estratégias de co- O que podemos observar, de maneira preli-
erção e as relacionais. minar, é que neste evento evidencia-se um mo-
Wilensky (1970) é um dos autores que mais mento de inflexão na profissão médica no Brasil.
ressaltam a importância que as estratégias de Identificamos, nos Anais do “Congresso Nacio-
persuasão desempenham, para que uma pro- nal dos Práticos”, dois níveis de polêmica a res-
fissão se afirme no mercado de trabalho e de peito da garantia da autonomia. Por um lado ob-
prestígio. A persuasão é tida como ferramenta servamos um sensível predomínio do modelo
essencial para que uma atividade reivindique clínico, curativo, liberal, preocupado em preser-
exclusividade sobre determinada tarefa. Ela deve var uma relação individualizada com o paciente.
ser capaz de convencer a clientela de que só o Ele apresentou estratégias distintas para sua
profissional é apto de desempenhar tal ativida- manutenção diante do avanço do sistema de
de satisfatoriamente. O que tivemos condições assistência médica filantrópica ou mutualista.
de observar, em toda a documentação analisada, Alguns centravam sua análise nos malefícios
é que a perspectiva persuasiva somou-se à di- causados sobre a autonomia técnica enquanto a
mensão coercitiva. Na luta pelo domínio do co- maioria se preocupava com as restrições de na-
nhecimento, alguns congressistas apresentaram tureza econômica. Algumas propostas foram fei-
argumentos que buscavam articular politicamen- tas para minimizar esta tendência de perda de
te os médicos com o delegado, exigindo o cum- autonomia. Elas giravam em torno da manuten-
primento do Código Penal. A delação era, igual- ção de um projeto liberal-excludente, ou seja,
mente, uma prática prevista. aceitavam o incremento destas instituições con-
Goode (1969) afirma que uma profissão cria, tanto que fosse excluída à parte da clientela de-
transmite e organiza apenas sua área de conheci- tentora de poder aquisitivo.
mento. Diante do material empírico analisado te- Gadelha (1982) definiu quatro modalidades de
mos condições de propor que uma profissão tam- serviços de assistência médica coletiva existen-
bém assume uma estratégia relacional, na medida tes no Rio de Janeiro, na década de 20. A primei-

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Pereira-Neto, A. F.

ra incluiria as “Associações Mutualistas de Cará- atribuir-lhe um estatuto conceptual. Acompa-


ter Profissional”, onde predominavam trabalha- nhando esta preocupação, apresentaremos
dores de empresas estatais e concessionárias de parte dos postulados teóricos, introduzidos
serviços públicos. A segunda seriam as “Associ- por alguns sociólogos norte-americanos que
ações Mutualistas e Beneficentes Cosmopolitas”, procuraram definir conceitualmente uma
que envolveriam grupos de pessoas de mesma profissão diferenciando a de uma ocupação.
origem regional ou nacional. A terceira seriam as Interessa-nos identificar como o domínio do
“Confrarias Religiosas de Caráter Mutualista ou conhecimento e o controle do mercado de
Beneficente”. Na quarta, a participação era vo- trabalho se inserem nesta formulação. Utilizare-
luntária e não havia critério predeterminado para mos estas referências para analisar um caso
sua filiação. Todas estas modalidades inseriam-se específico: A profissão médica. Em um espaço
em um “modelo filantrópico-liberal de assistência particular: o Brasil. Em uma conjuntura históri-
médica”. Nele, a clientela era seletiva. O médico ca definida: o início do século XX, particular-
participava destas estruturas, muitas vezes, para mente no “Congresso Nacional dos Práticos”
aumentar seu prestígio social. O autor assinala (1922). A partir desta análise empírica, de
ainda que, apesar de sua relevância, este modelo cunho histórico, pretendemos fazer três
de assistência médica aos trabalhadores se mos- considerações acerca da concepção teórica
trou “insuficiente para arcar com o atendimen- que nos serviu de referência: A primeira se
to médico a estes setores da população” (Gade- refere à heterogeneidade constitutiva de um
lha, 1982: 89). No seu entender, este modelo não corpo profissional. A segunda diz respeito à
obteve sucesso na medida em que o ônus recaía historicidade do processo de profissionaliza-
sobre os trabalhadores, as associações acumula- ção. Finalmente tratamos de refletir acerca da
vam capital e não atendiam aos clientes. Mais uma coerção como instrumento de eliminação do
vez, cabe lembrar que, o modelo estatal foi se cons- concorrente e de afirmação do profissional no
tituindo como uma alternativa, fundamentalmente, mercado. Esperamos que este breve artigo, de
a partir da promulgação da lei Eloy Chaves (1923), caráter meramente introdutório, seja capaz de
um ano depois da realização do “Congresso Na- demonstrar que o estudo histórico e sociológi-
cional dos Práticos”. co sobre a profissão médica é legítimo, rele-
O debate desenvolvido no seio deste congres- vante e extremamente oportuno.
so a respeito da atitude a ser tomada com rela-
Palavras-Chave: Profissão Médica; Mercado
ção ao grau de introdução da população nos
de Trabalho Médico; Conhecimento Médico;
serviços de assistência pública na saúde repro-
História da Medicina; História da Saúde
duz – em certo sentido – no interior da categoria
médica, um conflito mais amplo, travado na mes-
ma época, entre as estratégias de exclusão – de
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
cunho autoritário –, e as de integração dos seto-
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se conseguirmos escapar do significado Haussmann Tropical. Rio de Janeiro: Biblioteca
comum da palavra profissão e passarmos a Carioca/Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro.

614 Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 11 (4): 600-615, out/dez, 1995
Profissão Médica

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