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45º Encontro Anual da ANPOCS

GT20 - Gênero, família e a crise do cuidado

O cuidado no contexto familiar de pacientes com câncer de mama: impactos e


questões

Leticia Barbosa1

Resumo: O câncer de mama implica inúmeros impactos físicos, emocionais e


interpessoais para a paciente. Nesse contexto, a família pode ser uma das principais fontes
de apoio, provendo cuidados diretos e indiretos para atender as necessidades e limitações
físicas engendradas pela doença. Diante desse cenário, este trabalho propõe analisar como
o câncer de mama afeta as dinâmicas de cuidado no contexto familiar das pacientes em
suspeita ou diagnosticadas com a doença. Foi realizada uma pesquisa qualitativa, com a
abordagem metodológica da etnografia. Foram selecionados dois campos de investigação:
a sala de espera do Instituto de Ginecologia (IG/UFRJ) e o grupo “Câncer de mama”, do
Facebook. Adotamos dois principais procedimentos nos ambientes pesquisados: a
observação direta e a aplicação de um questionário e um roteiro semiestruturado.
Identificamos que as pacientes desenvolveram uma série de necessidades específicas de
cuidado. Nesse contexto, a família foi apontada como um importante ponto na rede social
de apoio da paciente, geralmente provendo assistência tangível e apoio emocional durante
a trajetória do câncer de mama. As dinâmicas de cuidado no contexto familiar
modificaram-se em parte com a suspeita ou diagnóstico da doença, uma vez que a paciente,
geralmente provedora do cuidado, passou a ocupar o lugar do sujeito a ser cuidado. Porém,
isso não ocorreu de forma homogênea.
Palavras-chave: Câncer de mama; cuidado; família; apoio social; etnografia.

1
Laboratório Internet, Saúde e Sociedade (LAISS), Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Fundação
Oswaldo Cruz. E-mail: leticiatbs@gmail.com
1. Introdução

Na atualidade, o câncer de mama coloca-se enquanto uma das principais doenças a


serem enfrentadas por mulheres, sobretudo aquelas que se encontram na faixa etária de 40
e 69 anos. Com exceção do câncer de pele não melanoma, ele é o segundo tipo de neoplasia
mais incidente entre a população brasileira geral e o primeiro mais incidente entre
mulheres. É estimada a ocorrência de 66.280 casos novos de câncer de mama por ano do
triênio 2020-2022 no Brasil, com um risco aproximado de 61 casos a cada 100 mil
mulheres (INCA, 2019). Em relação à mortalidade, ele é uma das principais causas de
morte entre a população feminina brasileira, apresentando em 2018 uma taxa de
aproximadamente 14 óbitos a cada 100 mil mulheres (INCA, 2020).
O câncer de mama possui inúmeros impactos e desafios físicos, emocionais e
sociais para a paciente, podendo reduzir sua qualidade de vida, produzir um evento
traumático e engendrar um sofrimento de longa duração (SMIT et al., 2019). O tipo e a
intensidade de tais impactos podem variar conforme o momento que a mulher se encontra
na trajetória da doença, isto é, no processo de desenvolvimento da patologia. Na fase do
diagnóstico, pacientes sentir ansiedade, medo, revolta e negação em relação à confirmação
da doença e as implicações de seu quadro clínico no futuro (SMIT et al., 2019). Já na fase
de tratamento, elas convivem com os diversos efeitos colaterais do procedimento
terapêutico que realizam, o que pode incluir fadiga, perda na força muscular, alterações
anatômicas, assimetria nos seios, cicatrizes, dor crônica, alopecia, inchaço, perda de
fertilidade, menopausa prematura, entre outros (LOVELACE; MCDANIEL; GOLDEN,
2019). Ao longo da trajetória da doença, elas podem também vivenciar quadros de
ansiedade, depressão, isolamento social, alterações no senso de self e na autoestima, entre
outros (SMIT et al., 2019; MACHADO; SOARES; OLIVEIRA, 2017).
Os impactos produzidos pela experiência do câncer de mama se estendem ao
contexto familiar. Sanchez et al. (2010) afirma que “a família é afetada pela doença, e a
dinâmica familiar afeta o paciente” (SANCHEZ et al., 2010, p. 292). Montoro et al. (2012)
corrobora essa perspectiva ao ressaltar que a experiência da doença pode engendrar efeitos
significativos não apenas para o indivíduo, mas também para sua rede familiar. Nesse
sentido, para os autores, ela potencialmente produz um sofrimento coletivo, contribuindo
para que tanto o paciente quanto seus familiares, ao lidarem com a doença, compartilhem
sentimentos como pessimismo, descrença, medo, incerteza e preocupação (MONTORO et
al., 2012).
Cabe destacar que os impactos associados ao câncer de mama podem ainda
implicar necessidades de cuidado e apoio para as pacientes. Devido à ansiedade, à
depressão, ao medo da morte e aos estigmas associados à doença, a mulher pode necessitar
de apoio emocional e informacional para lidar com seu quadro. As limitações impostas por
efeitos colaterais e sequelas do tratamento também podem fazer com que ela necessite de
ajuda tangível para realizar atividades cotidianas, como alimentação, higienização,
locomoção, administração de medicamento, entre outros (SANCHEZ et al., 2010;
SEGRIN; BADGER; SIKORSKII, 2019). Nesse contexto, a família pode ser uma das
principais fontes de apoio para pessoas com câncer. Familiares podem se tornar cuidadores,
desempenhando um papel fundamental na trajetória da doença vivida pelo outro
(SANCHEZ et al., 2010; SEGRIN; BADGER; SIKORSKII, 2019).
Diante desse cenário, este trabalho propõe analisar a seguinte questão: como o
câncer de mama afeta as dinâmicas de cuidado no contexto familiar de pacientes em
suspeita ou diagnosticadas com a doença? Para tanto, será discutida uma parte dos
resultados obtidos a partir de uma pesquisa conduzida em dois ambientes distintos: a sala
de espera de um hospital público e uma comunidade on-line de saúde.

2. Metodologia

Foi realizado um estudo qualitativo, com a abordagem metodológica da etnografia.


A pesquisa etnográfica tem sido amplamente utilizada como um meio para conhecer e
analisar os modos de vida, os sistemas de crenças e valores característicos e singulares de
grupos sociais (ANGROSINO, 2007). Nessa perspectiva, foi considerado que a adoção
desse referencial metodológico permitiria identificar e analisar diferentes aspectos que
constituem e caracterizam a experiência de pacientes em relação à suspeita ou ao
diagnóstico do câncer de mama, incluindo as dinâmicas de cuidado que se estabeleciam
em seu ambiente familiar.
Para o estudo, foram selecionados dois campos de investigação. Um deles foi a sala
de espera do ambulatório de mastologia do Instituto de Ginecologia (IG), da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. O IG é uma unidade hospitalar de média complexidade que
realiza atividades de ensino, pesquisa e extensão voltadas à saúde da mulher. Ele não se
configura enquanto um estabelecimento de saúde habilitado na rede de atenção oncológica
especializada do Sistema Único de Saúde (SUS) no estado do Rio de Janeiro. Entretanto,
o instituto se torna um espaço importante para o processo de diagnóstico e tratamento do
câncer de mama entre usuárias da atenção básica do município e, em última instância, de
todo o estado. A unidade oferta, por meio do Sistema de Regulação Ambulatorial,
consultas na especialidade de mastologia e exames para a detecção e diagnóstico do câncer
de mama, além de realizar intervenções cirúrgicas para a retirada de tumor e reconstituição
mamária.
O outro campo de investigação da pesquisa foi a comunidade on-line “Câncer de
mama”. Trata-se de um grupo público organizado no Facebook que tem como objetivo
compartilhar informação sobre câncer de mama. Existente desde 2017, ele possui cerca de
19 mil membros e apresenta mais de 300 publicações por mês. O ambiente é aberto à
participação de qualquer interessado sobre o tema, não se restringindo a pacientes.
Entretanto, mulheres com suspeita ou diagnóstico de câncer de mama constituem um dos
principais públicos que acessam e se comunicam na comunidade, fazendo postagens sobre
dúvidas, conselhos, vivências e outros tópicos relacionados às múltiplas dimensões que
constituem a experiência da doença.
A seleção dos campos de investigação do estudo esteve relacionada aos diferentes
papeis que tais ambientes desempenham na trajetória do câncer de mama. O hospital é
historicamente o local onde pacientes com suspeita ou diagnóstico de neoplasia mamária
buscam atendimento, sendo um dos principais espaços pelos quais circulam ao longo da
trajetória da doença. Comunidades on-line de saúde, por sua vez, têm sido cada vez mais
frequentadas por mulheres com câncer de mama, constituindo-se enquanto um meio para
obter apoio e informação sobre seu quadro clínico (MCCAUGHAN et al., 2017).
Foram adotados dois principais procedimentos nos ambientes pesquisados: a
observação direta e a aplicação de um questionário composto por perguntas fechadas e de
um roteiro semiestruturado, composto por questões abertas. A observação permitiu
identificar padrões de comportamento e dinâmicas de interação entre as pacientes no
contexto em que se encontravam. O questionário possibilitou identificar, entre outros
aspectos, a situação da paciente em relação ao câncer de mama. O roteiro, por sua vez,
permitiu a conhecer a perspectiva das mulheres sobre diferentes dimensões da experiência
do câncer de mama, incluindo o cuidado.
A observação nos ambientes selecionados foi realizada entre dezembro de 2019 e
março de 2020. O questionário e o roteiro semiestruturado foram aplicados em fevereiro e
março de 2020 no Instituto de Ginecologia, e a partir de maio do mesmo ano na
comunidade on-line. Ao total, 16 pacientes do IG e 24 participantes da comunidade on-
line responderam ao questionário. Em relação ao roteiro, 13 pacientes do instituto e 7
participantes do grupo concordaram em responder às perguntas. A seguir, serão discutidos
os resultados obtidos a partir da observação e da aplicação das ferramentas, considerando
os impactos do câncer de mama nas dinâmicas de cuidado que se estabeleciam no contexto
familiar da paciente.

3. Os impactos do câncer de mama na vida das mulheres

Em relação à situação das participantes, a maior parte daquelas que responderam


às ferramentas da pesquisa estava lidando com o câncer de mama pela primeira vez e já se
encontrava na fase pós-diagnóstico. No momento da aplicação do questionário, oito das
dezesseis participantes do IG que responderam a essa ferramenta estavam em
acompanhamento pós-tratamento, e duas já tinham feito a cirurgia e aguardavam consulta
pós-operatório. Uma participante havia realizado exame em outro local e aguardava
avaliação do médico para confirmação diagnóstica. Quatro aguardavam a entrega do laudo
do exame, e uma esperava realização de exame diagnóstico. Na comunidade on-line, três
das 24 participantes que preencheram o questionário já tinham diagnóstico confirmado e
aguardavam consulta relacionada ao tratamento; cinco já tinham realizado cirurgia e
aguardavam consulta pós-operatória; oito estavam realizando
quimioterapia/radioterapia/hormonioterapia; sete estavam em acompanhamento pós-
tratamento; e uma não especificou sua situação em relação à trajetória do câncer de mama.
Durante a aplicação do roteiro, as participantes relataram diferentes sentimentos e
reações em relação à confirmação do diagnóstico. Algumas mencionaram a dificuldade de
lidar com a confirmação da doença. As participantes CO28, CO29, CO30 e CO31
afirmaram ter sido “muito difícil” receber o diagnóstico de câncer de mama. A participante
CO30 mencionou que, apesar do apoio de sua família, seu estado psicológico foi afetado.
Outras comentaram sobre o medo, a depressão e o susto que sentiram ao saber que tinham
câncer de mama. Houve ainda aquelas que relataram como o diagnóstico produziu um
confronto com a finitude da vida e a possibilidade da morte. A participante CO25 afirmou:
“o primeiro sentimento é o medo da morte, porque tem esse estigma de que o câncer mata
[...]. Isso foi o primeiro sentimento”. A participante CO26 mencionou que, no momento
que recebeu o diagnóstico, perguntou-se “se minha missão aqui estaria terminando naquele
momento”.
Publicações na comunidade on-line também apontaram para a dimensão dos
sentimentos negativos vivenciados por pacientes diante do diagnóstico de câncer de mama.
Uma das participantes fez seguinte publicação no ambiente: “[...]Estou cm 25 anos e
descobri q estou com canser de mama [...]. Estou um pouco assustada. Vou ter q fazer
quimioterapia [...]”2 (CO038). Em outro post, também foi mencionado o medo e as demais
reações sentidas pela participante diante da confirmação diagnóstico: “[...] A descoberta
de um Carcinoma Ductal Invasivo Grau III triplo negativo (um câncer de mama maligno)
perdi o chão, questionei Deus, senti medo, raiva, agonia...” (CO657).
Os relatos e comentários sobre sensação de medo, apreensão, depressão e finitude
relacionados ao diagnóstico de câncer de mama corroboram aqueles presentes em outros
estudos sobre o impacto da doença na vida da paciente. O diagnóstico pode ser considerado
como um momento central na trajetória da doença, uma vez que está associado a efeitos,
enquadramentos, possibilidades e restrições, além de transformações e reconfigurações
associadas à identidade e ao senso de self da paciente (JUTEL, 2011; HYDÉN, 1997;
BURY, 1982). Assim como em outros casos de doenças crônicas, o diagnóstico de câncer
de mama é um momento crítico e pode ter um impacto significativo nas pacientes, uma
vez que explicita a fragilidade humana e a finitude da vida e produz adversidades e perdas
em diferentes dimensões. Sentimentos de tristeza, ansiedade, depressão, revolta e medo da
morte são recorrentes nessa etapa da trajetória da doença (LIAMPUTTONG;
SUWANKHONG, 2015; MACHADO; SOARES; OLIVEIRA, 2017).
Cabe salientar que, no relato de algumas pacientes, o impacto do diagnóstico de
câncer de mama foi associado à sua experiência de maternidade. A participante CO25
sentiu “um choque grande” ao receber o diagnóstico de câncer de mama, por ter 33 anos à
época e dois filhos pequenos, sendo que um ainda era amamentado. A paciente IG15, que
tinha um quadro de metástase, apresentou uma perspectiva semelhante. Em seu relato, foi
possível identificar que o efeito da notícia da doença foi exacerbado pela perspectiva de
ser mãe e ter filhos ainda jovens - uma menina de 11 anos e um menino de 6 anos. Ao

2
Mantivemos a grafia original das publicações coletadas do ambiente on-line investigado.
comentar sobre o impacto do diagnóstico, ela mencionou a incerteza do futuro, aludindo à
questão da morte, relacionada à possibilidade de não estar presente em momentos
importantes na trajetória de seus filhos. Segundo ela, “a gente fica sem chão, ainda mais
com criança pequena dentro de casa. Pesa muito isso, ser mãe. Será que vou tá viva quando
ela [sua filha] tiver 15 anos? Será que vou tá viva quando ela subir no altar? Quando se
formar na faculdade?”.
Sobre a relação entre a condição de mãe e o impacto diagnóstico de câncer de mama
sentido pelas participantes, Lundquist et al. (2020, p. 405) atenta que “receiving a cancer
diagnosis has a tremendous effect on the function of families and parental roles,
responsibilities, and abilities”. Para mulheres que são mães, a neoplasia pode afetar sua
relação com os filhos. Os efeitos estão relacionados não apenas aos impactos emocionais
da doença, mas também às restrições físicas associadas ao tratamento, que podem dificultar
a realização tarefas de cuidado, sobretudo quando os filhos são jovens e ainda dependentes
(CHO et al., 2015; MOORE et al., 2015). Mulheres também podem sentir um confronto
entre a identidade como mãe e como doente, além de incapacidade em relação às suas
responsabilidades e atividades de cuidado em relação aos filhos (VITAL et al., 2019).
Conforme pacientes podem se confrontar com a possibilidade da morte diante da suspeita
ou diagnóstico (KOUTRI; AVDI, 2016; SMIT et al., 2019), é possível considerar que,
quando mãe, a percepção da finitude e da fragilidade da vida não se limita à dimensão
individual – à sua vida em si. Tal percepção parece se estender ao que a finitude pode
significar em relação aos seus filhos – conforme foi observado nos comentários das
participantes CO25 e IG15.
A fala da participante IG15 apresenta uma especificidade a ser destacada. A
paciente não apenas possuía dois filhos pequenos, mas também tinha um quadro
metastático. Vital et al. (2019, p. 3) argumentam que “é cabível que mulheres com câncer
de mama e que possuem filhos pequenos percebam a sua doença de forma intimamente
relacionada à sua experiência de maternidade”. A gravidade do quadro clínico pode
aumentar as preocupações da paciente em relação aos seus filhos, inclusive sobrepassando
a preocupação consigo (LUNDQUIST et al., 2020). Em um estudo com mães que tinham
câncer de mama avançado, Lundquist et al. (2020, p. 408) observaram que “some
participants compared their experiences to women with cancer without children. They felt
that their cancer experience would have been completely different and more manageable
without children”. A participante IG15 não nomeou seu quadro como avançado; porém,
afirmou que “o caso é muito sério” e que tinha metástase no pulmão e na coluna. Segundo
Sledge Jr. (2016), quadros de metástase geralmente são considerados incuráveis devido à
resistência aos procedimentos terapêuticos. Desse modo, é possível considerar que o
impacto do diagnóstico relatado pela participante IG15 articule a possibilidade da morte
associada ao câncer de mama, a gravidade do quadro metastático e sua condição enquanto
mãe de filhos pequenos. Assim, em seu relato, a paciente relaciona o medo da morte não a
finitude para si, mas sobretudo à sua possível ausência na vida dos filhos devido ao câncer
de mama.
Além dos impactos associados ao diagnóstico da doença, foi possível observar, a
partir dos relatos obtidos, dos comentários realizados na sala de espera e das publicações
na comunidade on-line, que as pacientes passaram a conviver com uma série de limitações
e restrições em suas vidas, sobretudo devido aos procedimentos terapêuticos realizados.
Ao ser questionada durante a aplicação do roteiro sobre as mudanças promovidas
pela doença, a participante IG09 afirmou: “[a doença] te paralisa, ela não permite que você
faça coisas que fazia antes. Eu fiz [cirurgia] na mama direita, não posso mais pegar peso
no braço [direito]. Tem sido um processo de adaptação muito difícil, mas nada que me
desespere”. A dimensão da restrição também foi abordada pela paciente IG15. Antes da
doença, relatou que “era muito ágil dentro de casa”; porém, “o câncer me deixou mais
lenta”.
O impacto físico do tratamento também foi abordado em conversas entre pacientes
na sala de espera. Em um dos dias de observação no local, registramos uma das usuárias
que aguardava atendimento mencionar à outra o enjoo e a falta de força que sentia durante
a realização da quimioterapia: “sabe aquela bola treme treme, que vende no camelô? Parece
que seu estômago vira aquilo [durante a quimioterapia]. Eu chorava de tanto enjoo. Nunca
senti uma coisa dessa”. A paciente comentou que, devido ao enjoo sentido durante a
primeira sessão de quimioterapia, precisou tomar banho sentada.
As publicações realizadas na comunidade on-line também corroboraram as
limitações vivenciadas principalmente durante o tratamento para o câncer de mama. No
ambiente on-line, participantes apontavam de modo recorrente os impactos que os efeitos
colaterais possuíam em sua saúde e em sua rotina. Em algumas publicações, elas relatavam
como os principais efeitos que sentiam ao realizar o tratamento reduziam sua capacidade
ou disposição para realizar atividades típicas de sua rotina pessoal, como tarefas
domésticas, banho, alimentação, deslocamento. Em um post, uma das participantes relatou
dificuldade para se vestir: segundo ela, estava “sem força pra tirar uma blusa” devido à dor
sentida após a realização de seis sessões de “quimioterapias pesadas” (CO190). Em outra
publicação, uma participante da comunidade comentou sobre as dificuldades de realizar
atividades domésticas devido à dor e ao cansaço que sentia como sequela do tratamento
para o câncer:

[...] Nós que passamos pela doença sabemos das nossas limitações após o
tratamento, pelo menos uma grande parte de nós ficará sim com algumas
limitações. Principalmente as que fizeram mastectomia bilateral e ainda
esvaziamento axilar. Eu gostaria de saber de vcs se conseguem levar uma vida
normal: fazendo todas as tarefas de casa como antes da doença sem nenhuma
queixa de dor ou cansaço. É que passei por uma situação bem chata. Fui
questionada porque essas atrizes que tbm tiveram câncer conseguem ter uma
vida normal enquanto eu fico me queixando de dor. E eu respondi prontamente
que elas não tem uma rotina como a minha: não lavam, não passam, não
cozinham, não cuidam de filhos, marido e ainda trabalham fora. [...] Pra nós
reles mortais que não temos ninguém pra fazer nossos trabalhos domésticos não
segue tão bem assim [...]. (CO789).

Conforme discutido por Bury (1982), a doença crônica promove uma disrupção na
vida do indivíduo, não apenas pelas transformações no senso de self e identidade, mas
também pelas quebras e reconfigurações na rotina e nas redes de relacionamento, que
incluem restrições e limitações antes não existentes. No caso do câncer de mama, pacientes
convivem com limitações principalmente devido aos impactos físicos que podem sofrer ao
longo da trajetória da doença (LOVELACE; MCDANIEL; GOLDEN, 2019). Isso foi
corroborado nos relatos das participantes e nas observações da sala de espera e da
comunidade on-line. Nesse contexto, notamos que a família se constituiu enquanto um
importante ponto na rede social de apoio da paciente, provendo cuidado, principalmente
nas formas de assistência tangível e apoio emocional, durante a trajetória do câncer de
mama.

4. O papel da família na experiência do câncer de mama

Sobretudo a partir dos relatos obtidos a partir do roteiro semiestruturado, foi


possível observar o papel de rede de apoio que a família exercia na experiência das
participantes com o câncer de mama. Uma das principais formas de apoio oferecidas era
do tipo emocional, que engloba a oferta de segurança, empatia e compreensão, fazendo o
outro se sentir confortado, cuidado e compreendido. Outra forma de apoio frequentemente
relatada foi a assistência tangível, que implica dar, oferecer ou emprestar recursos
necessários para o recipiente lidar com a situação na qual está inserido (CUTRONA;
RUSSELL, 1990).
Para a participante CO30, sua família lhe deu “muita força”, inclusive para angariar
recursos para seu tratamento. A paciente inicialmente realizou sua cirurgia no SUS;
entretanto, segundo ela, “tiraram um nódulo e deixaram outro”. Diante disso, ela migrou
para a rede privada. Para custear seu tratamento, sua família ajudou realizando ações para
arrecadar dinheiro: “fizeram rifas, galeto solidário, meu marido vendeu nosso carro TD
[tudo] pra mim fazer a mastectomia e junto a histerectomia pois descobri no mesmo tempo
no útero tbm [também]”. A participante CO26 também comentou sobre o apoio de seus
familiares diante do diagnóstico de câncer de mama, destacando seu companheiro: “recebi
muito amor e apoio de todos os meus familiares, especialmente do meu marido”.
A participante CO28 relatou que sua família forneceu apoio desde a investigação
da suspeita. Seu marido e sua mãe estiveram presentes no momento da confirmação do
diagnóstico:

“Eu sempre tive muito apoio da minha família, desde o início. Tanto é
que o dia que eu recebi o meu diagnóstico, nós tínhamos ido no
mastologista. [...] antes de eu entrar no consultório, minha mãe ainda
disse: ‘vai entrar você e seu marido’? Eu falei, “não, você também tá
aqui. Vamos entrar nós três [...]. O que a gente tiver que ouvir, nós vamos
ouvir juntos. Então, desde o início, eles sempre junto comigo”. (CO28).

A presença da família também foi observada nos relatos sobre acompanhamento ao


atendimento médico. Durante consultas, exames e sessões de quimioterapia, a participante
CO29 afirmou: “minha mãe sempre teve comigo”. As participantes CO27 e CO25 fizeram
comentários semelhantes. A participante CO27 relatou que foi “acompanhada, sempre”,
durante atendimentos médicos e procedimentos terapêuticos. A participante CO25
mencionou que, em seu caso, era seu pai e seu marido que a acompanhavam.
A participante IG13 afirmou que, em suas sessões de tratamento, ia uma
“comitiva”: “todo mundo me acompanhava. Até na radio[terapia], que às vezes a gente vai
à noite, o carro ia cheio. O guarda no Fundão achou estranho. Falei que era a minha
comitiva”. A participante IG12 afirmou que, no início, não ia “sozinha nem se quisesse”;
porém, naquele momento, só pedia que alguém fosse junto se precisasse realizar algum
exame ou se estivesse sentindo alguma coisa. As pacientes IG03, IG07, IG09 e IG12
também afirmaram que eram acompanhadas nas consultas ou sessões de tratamento por
membros de sua família – geralmente filhas(os) e marido.
Pacientes podem sentir-se ansiosas antes ou depois de uma consulta, um
procedimento diagnóstico ou uma sessão de tratamento, ou ainda experienciar efeitos
colaterais e sequelas do tratamento que causem limitações (ABREU et al., 2017; LEMOS
et al, 2019; LEE et al., 2018; LOVELACE; MCDANIEL; GOLDEN, 2019). Desse modo,
dispor de uma pessoa para acompanhá-la pode ser uma forma de apoio emocional,
provendo conforto em uma situação adversa, ou assistência tangível, ajudando na
locomoção da paciente.
Cabe destacar que as publicações e comentários na comunidade on-line analisada
também corroboram o papel da família enquanto fonte de apoio durante a experiência da
doença. Tal como observado nos relatos obtidos por meio do roteiro, participantes do grupo
mencionavam ser acompanhadas por familiares em consultas, exames e sessões de
tratamento.
Elas também relatavam o apoio emocional que recebiam durante as etapas da
trajetória do câncer de mama. Por exemplo, em uma das publicações, a participante CO987
relatou que membros de sua família rasparam o cabelo como uma forma de demonstrar
apoio a ela, que estava sofrendo queda de cabelo devido à quimioterapia: “Gratidão pela
família abençoada que Deus me deu! Filho e marido já rasparam a cabeça pra me apoiar
quando eu começar a perder os meus cabelos. Obs... durante todo o tratamento eles ficarão
carecas [...]” (CO987).
Desse modo, é possível observar que a família foi uma importante fonte de apoio
para as pacientes durante a experiência do câncer de mama, geralmente provendo cuidado,
direto ou indireto, às necessidades desenvolvidas devido aos diferentes impactos da
doença. Porém, é importante atentar que isso não ocorreu de forma homogênea.
Nos relatos oferecidos, algumas participantes mencionaram que seus familiares não
ofereceram a compreensão, ajuda ou conforto que necessitavam.
A paciente CO25, por exemplo, afirmou que sentia “muita dificuldade da família”
em lidar com sua doença. Ela comentou sobre os efeitos que os diagnósticos de câncer de
mama e de metástase tiveram em seu casamento:
“O meu marido [...] teve uma aceitação muito difícil [...] da mulher tá
doente. Foi complicado. [...] Na metade do meu tratamento, eu descobri
que ele tava tendo um caso, e quando eu questionei o porquê que aquilo
tava acontecendo, ele olhou pra mim e falou porque ele achava que eu ia
morrer. Então era uma pessoa totalmente desestruturada para lidar com
a situação [...]. E agora, com a notícia da metástase, eu tô percebendo o
mesmo distanciamento dele. Ele não consegue lidar muito [...] com isso
de ter uma mulher doente, que possa precisar de cuidados e tal. É uma
pessoa que não tem essa estrutura”. (CO25).

A participante CO25 também mencionou o despreparo de seu pai para lidar com
seu diagnóstico: “o meu pai também desenvolveu uma depressão agora, e ele fala que só
vai melhorar quando a filha dele tiver curada. Então também é outra pessoa que não tá
emocionalmente preparada para lidar com a doença”. Nesse contexto, é possível observar
que a paciente, apesar de ter relatado que era acompanhada por familiares em exames e
consultas, não obtinha, em certa medida, apoio emocional no contexto familiar, sofrendo
inclusive o distanciamento de seu cônjuge.
Na sala de espera, esse tópico não foi abordado entre as pacientes que aguardavam
atendimento. Entretanto, na comunidade on-line, a falta de apoio por parte de familiares
foi relatada em algumas publicações. Uma delas foi feita pela participante CO263. Similar
à experiência da participante CO25, ela comentou sobre o afastamento de seu companheiro
e falta de apoio em relação ao seu quadro clínico e as restrições decorrentes dele:

“Achei que todos estavam preparados, mas qual a minha surpresa ao ir


percebendo que aos poucos meu companheiro se afastava? Começaram a surgir
as reclamações sobre meu humor, queixas de que tô sendo grosseira, que não
transo, não beijo, que não faço mais nada (mesmo tendo tido relações sexuais a
uma semana). [...] Ele sempre disse que passaríamos por isso juntos, que não
largaria minha mão, mas enquanto eu tô em casa com a imunidade baixíssima
me enchendo de suco, fruta, legumes para que suba e possa fazer a próxima
quimio, ele está na rua bebendo com amigos, levando a vida. Se fosse uma vez
ou outra, ok. Mas até quando eu preciso dele. Semana passada eu liguei para ele
e pedi que viesse para casa, pois precisava dele, pedi que me escolhesse,
escolhesse nós dois. Nem preciso dizer que ele não veio, né?”. (CO263).

Cabe destacar que, em alguns casos, a impossibilidade de familiares fornecerem


apoio à paciente esteve associada às condições socioeconômicas baixas. Em seu relato, a
participante IG13, por exemplo, afirmou que ia às consultas sozinhas, “eu e eu mesmo, eu
e Deus”, pois seu marido não tinha flexibilidade para se ausentar do trabalho: “ele tem que
trabalhar, ele é provedor. Na empresa dele, não tem essa de acompanhar, levar atestado e
abonar falta”. Sua irmã também não podia acompanhá-la nas consultas pois “tem filho
pequeno”. Diferentes de outras pacientes, que eram acompanhadas por filhas(os)
adolescentes ou adultas(os), a participante tinha filhos ainda crianças. Ela mencionou que
apenas na quimioterapia teve um acompanhante, “sob ameaça”: “disseram que as pessoas
passavam muito mal [...] e precisava ser acompanhada com alguém”.
Por sua vez, a participante IG08 informou que ia às consultas sozinha desde
dezembro do ano anterior. Ela morava em Xérem – um distrito do munícipio de Duque de
Caxias, a cerca de 49 quilômetros do município do Rio de Janeiro. Assim, ao ser
questionada se vinha com acompanhante às consultas, comentou: “não tem dinheiro pra
ficar gastando assim”. Além de ir sozinha às consultas, a participante IG08 também
comentou que lidar com a suspeita da doença estava sendo difícil devido à centralização
da dinâmica familiar em sua figura e à falta de ajuda. Ao ser questionada sobre como se
sentia em relação à suspeita de câncer de mama, a paciente afirmou: “tem sido muito difícil.
Eu sou pai, sou mãe, sou o telhado dentro de casa. Não tem ninguém para ajudar. A igreja
ajuda com cesta básica às vezes”.
A partir dos relatos obtidos, das conversas registradas na sala de espera e das
publicações feitas no ambiente on-line, foi possível identificar que as dinâmicas de cuidado
no contexto familiar modificaram-se com a suspeita ou diagnóstico da doença. Ehrlich,
Möhring e Drobnič (2019, p. 1391) apontam que “there is ample evidence that the
provision of family care is unequally divided between women and men. Throughout the
working life, women perform most of family care […]”. No caso de suspeita ou diagnóstico
de câncer de mama, observamos que as pacientes, geralmente provedoras do cuidado,
passaram a ocupar o lugar do sujeito a ser cuidado, sobretudo devido às restrições impostas
pela doença. Além de conviverem com medo, ansiedade, depressão e outros sentimentos
negativos decorrentes de seu quadro clínico, elas também vivenciavam os impactos físicos
do tratamento, incluindo dor e fadiga crônicas, perda de força, enjoos, entre outros, que
limitavam a realização de atividades de sua rotina pessoal e doméstica.
Nesse contexto, notamos que a família se constituiu enquanto uma importante fonte
provedora de cuidado à mulher com câncer de mama, oferecendo apoio, sobretudo
emocional e tangível, ao longo da experiência da doença. Familiares acompanhavam a
paciente em consultas, exames e procedimentos terapêuticos, angariavam recursos para
tratamento, incentivavam e ofereciam conforto durante a trajetória da doença. Em um caso,
o marido e o filho rasparam o cabelo em solidariedade à paciente que teve perda capilar
devido à quimioterapia.
É importante notar que a provisão de cuidado e apoio por parte da família não
ocorreu de forma homogênea. Algumas pacientes obtinham assistência tangível, mas não
se sentiam confortadas ou compreendidas por seus familiares.
Em dois casos específicos observados, as mulheres experienciaram distanciamento
de seu cônjuge. Ehrlich, Möhring e Drobnič (2019, p. 1391) atentam que “if an adult
develops care needs, the first source of help and support is, if available, a healthy (marital)
partner living within the same household”. Na rede familiar da paciente com câncer de
mama, companheiros(as) podem se tornar o provedor do cuidado. Eles também são um dos
principais afetados pelo diagnóstico da doença, vivenciando desestabilização emocional,
desorientação, preocupações, ansiedade e estresse (YOSHIMOCHI et al., 2018; HOLST-
HANSSON et al., 2017; HILTON; CRAWFORD; TARKO, 2000). A experiência da
doença torna-se um fator causador de estresse na vida do casal, afetando seu
funcionamento e sua intimidade (ZIMMERMANN, 2015). Nesse contexto, companheiros
podem formular sua experiência em relação à doença da paciente a partir de suas próprias
construções sociais acerca de suas responsabilidades familiares e de gênero. É possível que
eles ofereçam apoio ao manter uma postura de positividade, realizar mais tarefas
domésticas e de cuidado com filhos e acompanhar em consultas (WOLF, 2015).
Entretanto, Nouri Sanchuli et al. (2017) atentam que mulheres com câncer de mama
também lidam com rejeição e falta de compreensão e apoio por parte de seus
companheiros.
Assim, no que tange a relação com cônjuges, mulheres com câncer de mama podem
vivenciar experiências complexas, que abrangem desde o amor e o apoio à infidelidade e
ao mau tratamento (NOURI SANCHULI et al., 2017). No caso da participante CO25, ela
comentou que seu marido a acompanhou em consultas e tratamento; entretanto, afirmou
que também experimentava falta de compreensão em relação à sua situação e infidelidade.
Já a participante CO263 relatou na comunidade on-line que seu companheiro, apesar de
ter afirmado inicialmente que não “largaria sua mão”, estava afastado dela. Nesse sentido,
os relatos indicam os comportamentos negativos que mulheres com câncer de mama
podem vivenciar por parte de seus maridos ao longo da trajetória da doença, assim como
discutido Nouri Sanchuli et al. (2017).
No estudo, também foi observado que a provisão de apoio e cuidado por parte de
familiares esteve limitada devido ao perfil socioeconômico. As participantes IG13 e IG08
não dispunham de um(a) acompanhante para atendimentos médicos. A participante IG08
também mencionou que, de modo geral, não dispunha de ajuda. Ambas as pacientes
apresentavam condições socioeconômicas baixas. Puigpinós-Riera et al. (2018) apontam
que mulheres com câncer de mama que têm condições socioeconômicas baixas possuem
menor acesso a recursos que poderia ajudá-las em suas necessidades de saúde. Elas
também podem ter conexões sociais precarizadas, o que reduz seu apoio social. Os autores
ressaltam que “the socioeconomic level, and specifically the income level, can directly
influence the levels of social support, stress of a woman and, consequently, her risk of
anxiety and depression” (PUIGPINÓS-RIERA et al., 2018, p. 127). Nessa perspectiva, é
possível considerar que as condições socioeconômicas das participantes IG08 e IG15
tenham contribuído para que, em alguma medida, não tivesse disponível uma rede social
de apoio ou o tivessem de modo reduzido para ajudá-las a lidar com os momentos da
trajetória do câncer de mama.
Cabe salientar que pacientes que eram mães não se deslocaram totalmente do papel
de cuidadora no âmbito familiar, preocupando-se com os impactos da doença na vida dos
filhos e em seu papel como mãe. A participante IG08, por exemplo, afirmou que estava
sendo difícil lidar com seu quadro clínico pois era, em suas palavras, a mãe e o pai, o
“telhado dentro de casa”. Ao utilizar a metáfora do telhado, ela alude a um papel de
proteção desempenhado no contexto familiar, que permanecia independente do câncer de
mama. Já a paciente IG15, em seu relato, demonstrou preocupação em não estar presente
na vida de seus filhos devido ao quadro de metástase que apresentava.
Lundquist et al. (2020, p. 405) atenta que “receiving a cancer diagnosis has a
tremendous effect on the function of families and parental roles, responsibilities, and
abilities”. Para mulheres que são mães, o câncer de mama pode afetar sua relação com os
filhos. Os efeitos estão relacionados não apenas aos impactos emocionais da doença, mas
também às restrições físicas associadas ao tratamento, que podem dificultar a realização
tarefas de cuidado, sobretudo quando os filhos são jovens e ainda dependentes (CHO et
al., 2015; MOORE et al., 2015). Mulheres também podem sentir um confronto entre a
identidade como mãe e como doente, além de incapacidade em relação às suas
responsabilidades e atividades de cuidado em relação aos filhos (VITAL et al., 2019).
Conforme pacientes podem se confrontar com a possibilidade da morte diante da suspeita
ou diagnóstico (KOUTRI; AVDI, 2016; SMIT et al., 2019), é possível considerar que,
quando mãe, a percepção da finitude e da fragilidade da vida não se limita à dimensão
individual – à sua vida em si. Tal percepção parece se estender ao que a finitude pode
significar em relação aos seus filhos – conforme foi observado nos comentários de algumas
participantes.

5. Considerações Finais

O câncer de mama configura-se enquanto um importante problema para o campo


da saúde da mulher, não apenas devido às suas taxas de incidência e mortalidade, mas
também aos diversos impactos e transformações que causa na vida da paciente. Mulheres
podem vivenciar ao longo da trajetória da doença com ansiedade, depressão, angústia,
medo, baixa autoestima, isolamento social, abandono familiar, entre outros efeitos. O
tratamento da neoplasia gera efeitos colaterais e sequelas, que incluem perda da força
muscular, cicatrizes, assimetria nos seios, alopecia, problemas de sono e memória e dor
crônica. Os diferentes impactos e limitações produzidos pela doença podem engendrar
necessidades de cuidado. Nesse contexto, a rede de apoio desempenha um importante papel
na experiência do câncer de mama, sobretudo o âmbito familiar, uma vez que pode prover
o cuidado necessário para a mulher.
Em nosso trabalho, buscamos analisar como o câncer de mama afeta as dinâmicas
de cuidado no contexto familiar das pacientes em suspeita ou diagnosticadas com a doença.
O estudo foi realizado em dois campos de observação: a sala de espera do ambulatório de
mastologia do Instituto de Ginecologia e a comunidade on-line “Câncer de mama”. A
análise foi feita a partir dos dados obtidos na observação dos ambientes, assim como o
questionário e o roteiro semiestruturado aplicados no trabalho de campo.
Em relação aos resultados, alguns pontos cabem ser destacados. Identificamos que
as pacientes com câncer de mama, sobretudo aquelas que estavam em fase de tratamento
ou pós-tratamento, desenvolveram necessidades de cuidado. Os efeitos colaterais e as
sequelas dos procedimentos terapêuticos produziram, em maior ou menor grau,
incapacidades funcionais e limitações na realização de atividades cotidianas. Além disso,
a experiência do câncer de mama também engendrou impactos emocionais, incluindo
ansiedade, choque, depressão e medo da morte. Nesse sentido, a família colocou-se
enquanto uma importante fonte de apoio, provendo assistência tangível para a realização
de atividades, além de conforto, compreensão e segurança.
A suspeita ou diagnóstico de câncer de mama produziu mudanças nas dinâmicas
de cuidado do contexto familiar. A mulher, que histórica e socialmente desempenha o
papel de cuidadora, passou a ocupar o lugar da pessoa cuidada, sobretudo pelo(a)(s)
filho(a)(s) ou companheiro. Entretanto, tais mudanças não se configuraram de forma
homogênea. Uma parte das pacientes relataram que não sentiam o apoio que precisavam
de seus familiares. Algumas reportaram inclusive distanciamento emocional por parte do
cônjuge. Em outros casos, o fornecimento de ajuda por parte dos familiares durante a
experiência do câncer esteve limitado devido às condições socioeconômicas baixas. Cabe
destacar que pacientes mães, apesar dos impactos e necessidades gerados pelo câncer,
continuaram desempenhando o papel de cuidadora, inclusive demonstrando em seus
relatos e comentários preocupação em relação aos efeitos da doença na vida dos seus filhos.
O câncer de mama é uma doença estreitamente atrelada à questão do gênero. As
formas de entendimento, ação e prevenção da doença estão assim associadas ao lugar
histórico ocupado pelas mulheres nas sociedades, às condições sociais, culturais e
econômicas em que elas se encontram em um determinado contexto e aos dispositivos de
controle que agem sobre seus corpos (LÖWY, 2015). O câncer de mama também está
associado a uma quebra de signos típicos da feminilidade3, uma vez que atinge uma parte
do corpo com forte conotação ao feminino, à sexualidade e à nutrição (MACHADO;
SOARES; OLIVEIRA, 2017; TAVARES; TRAD, 2005). Seu diagnóstico e tratamento,
além de implicar uma série de transformações no corpo, na identidade e no self, afeta
também as relações sociais da paciente, principalmente aquelas que se dão no âmbito
familiar. A experiência da doença convoca uma nova dinâmica de cuidado entre os
indivíduos da família, uma vez que a mulher, tipicamente a figura central de provedora do
cuidado, passa a conviver com uma série de restrições e impactos de diferentes tipos,
necessitando ser cuidado. Entretanto, tal como observamos no estudo, nem sempre as
dinâmicas mudam completamente – por vezes, as mulheres não obtêm o apoio necessário

3
A feminilidade pode ser compreendida, segundo Energici, Schöngut-Grollmus e Soto-Lagos (2020),
enquanto “as a set of practices that involves, among other things, an aesthetic canon with a particular
affectivity attached. In general terms, we define this as a set of rules about the body’s appearance and the
way the body should be felt and experienced” (ENERGICI; SCHÖNGUT-GROLLMUS; SOTO-LAGOS,
2020, p. 2).
ou não se deslocam totalmente do papel de cuidadora. Nesse sentido, é possível conceber
que tais pacientes convivam com uma sobrecarga, uma vez que precisam lidar com seu
quadro clínico e com a provisão de cuidado aos demais membros de sua família –
sobretudo filhos.
Cabe salientar que o estudo realizado apresenta limitações. Trata-se de uma
pesquisa qualitativa, realizada em dois ambientes distintos, com uma pequena amostra de
participantes. Não foi explorado a questão do câncer de mama em pessoas transgênero ou
não-binárias ou em homens cisgêneros. Nesse sentido, outros estudos podem investigar as
dinâmicas de cuidado que se estabelecem no âmbito familiar de pacientes com diferentes
identidades de gênero. Podem também averiguar possíveis diferenças e semelhanças entre
mulheres de diferentes classes sociais. O câncer de mama é uma das neoplasias mais
incidentes, e mais pesquisas são necessárias para a analisar as questões que tal doença
mobiliza em relação à interface entre gênero, família e cuidado.

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