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Leticia Barbosa1
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Laboratório Internet, Saúde e Sociedade (LAISS), Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP), Fundação
Oswaldo Cruz. E-mail: leticiatbs@gmail.com
1. Introdução
2. Metodologia
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Mantivemos a grafia original das publicações coletadas do ambiente on-line investigado.
comentar sobre o impacto do diagnóstico, ela mencionou a incerteza do futuro, aludindo à
questão da morte, relacionada à possibilidade de não estar presente em momentos
importantes na trajetória de seus filhos. Segundo ela, “a gente fica sem chão, ainda mais
com criança pequena dentro de casa. Pesa muito isso, ser mãe. Será que vou tá viva quando
ela [sua filha] tiver 15 anos? Será que vou tá viva quando ela subir no altar? Quando se
formar na faculdade?”.
Sobre a relação entre a condição de mãe e o impacto diagnóstico de câncer de mama
sentido pelas participantes, Lundquist et al. (2020, p. 405) atenta que “receiving a cancer
diagnosis has a tremendous effect on the function of families and parental roles,
responsibilities, and abilities”. Para mulheres que são mães, a neoplasia pode afetar sua
relação com os filhos. Os efeitos estão relacionados não apenas aos impactos emocionais
da doença, mas também às restrições físicas associadas ao tratamento, que podem dificultar
a realização tarefas de cuidado, sobretudo quando os filhos são jovens e ainda dependentes
(CHO et al., 2015; MOORE et al., 2015). Mulheres também podem sentir um confronto
entre a identidade como mãe e como doente, além de incapacidade em relação às suas
responsabilidades e atividades de cuidado em relação aos filhos (VITAL et al., 2019).
Conforme pacientes podem se confrontar com a possibilidade da morte diante da suspeita
ou diagnóstico (KOUTRI; AVDI, 2016; SMIT et al., 2019), é possível considerar que,
quando mãe, a percepção da finitude e da fragilidade da vida não se limita à dimensão
individual – à sua vida em si. Tal percepção parece se estender ao que a finitude pode
significar em relação aos seus filhos – conforme foi observado nos comentários das
participantes CO25 e IG15.
A fala da participante IG15 apresenta uma especificidade a ser destacada. A
paciente não apenas possuía dois filhos pequenos, mas também tinha um quadro
metastático. Vital et al. (2019, p. 3) argumentam que “é cabível que mulheres com câncer
de mama e que possuem filhos pequenos percebam a sua doença de forma intimamente
relacionada à sua experiência de maternidade”. A gravidade do quadro clínico pode
aumentar as preocupações da paciente em relação aos seus filhos, inclusive sobrepassando
a preocupação consigo (LUNDQUIST et al., 2020). Em um estudo com mães que tinham
câncer de mama avançado, Lundquist et al. (2020, p. 408) observaram que “some
participants compared their experiences to women with cancer without children. They felt
that their cancer experience would have been completely different and more manageable
without children”. A participante IG15 não nomeou seu quadro como avançado; porém,
afirmou que “o caso é muito sério” e que tinha metástase no pulmão e na coluna. Segundo
Sledge Jr. (2016), quadros de metástase geralmente são considerados incuráveis devido à
resistência aos procedimentos terapêuticos. Desse modo, é possível considerar que o
impacto do diagnóstico relatado pela participante IG15 articule a possibilidade da morte
associada ao câncer de mama, a gravidade do quadro metastático e sua condição enquanto
mãe de filhos pequenos. Assim, em seu relato, a paciente relaciona o medo da morte não a
finitude para si, mas sobretudo à sua possível ausência na vida dos filhos devido ao câncer
de mama.
Além dos impactos associados ao diagnóstico da doença, foi possível observar, a
partir dos relatos obtidos, dos comentários realizados na sala de espera e das publicações
na comunidade on-line, que as pacientes passaram a conviver com uma série de limitações
e restrições em suas vidas, sobretudo devido aos procedimentos terapêuticos realizados.
Ao ser questionada durante a aplicação do roteiro sobre as mudanças promovidas
pela doença, a participante IG09 afirmou: “[a doença] te paralisa, ela não permite que você
faça coisas que fazia antes. Eu fiz [cirurgia] na mama direita, não posso mais pegar peso
no braço [direito]. Tem sido um processo de adaptação muito difícil, mas nada que me
desespere”. A dimensão da restrição também foi abordada pela paciente IG15. Antes da
doença, relatou que “era muito ágil dentro de casa”; porém, “o câncer me deixou mais
lenta”.
O impacto físico do tratamento também foi abordado em conversas entre pacientes
na sala de espera. Em um dos dias de observação no local, registramos uma das usuárias
que aguardava atendimento mencionar à outra o enjoo e a falta de força que sentia durante
a realização da quimioterapia: “sabe aquela bola treme treme, que vende no camelô? Parece
que seu estômago vira aquilo [durante a quimioterapia]. Eu chorava de tanto enjoo. Nunca
senti uma coisa dessa”. A paciente comentou que, devido ao enjoo sentido durante a
primeira sessão de quimioterapia, precisou tomar banho sentada.
As publicações realizadas na comunidade on-line também corroboraram as
limitações vivenciadas principalmente durante o tratamento para o câncer de mama. No
ambiente on-line, participantes apontavam de modo recorrente os impactos que os efeitos
colaterais possuíam em sua saúde e em sua rotina. Em algumas publicações, elas relatavam
como os principais efeitos que sentiam ao realizar o tratamento reduziam sua capacidade
ou disposição para realizar atividades típicas de sua rotina pessoal, como tarefas
domésticas, banho, alimentação, deslocamento. Em um post, uma das participantes relatou
dificuldade para se vestir: segundo ela, estava “sem força pra tirar uma blusa” devido à dor
sentida após a realização de seis sessões de “quimioterapias pesadas” (CO190). Em outra
publicação, uma participante da comunidade comentou sobre as dificuldades de realizar
atividades domésticas devido à dor e ao cansaço que sentia como sequela do tratamento
para o câncer:
[...] Nós que passamos pela doença sabemos das nossas limitações após o
tratamento, pelo menos uma grande parte de nós ficará sim com algumas
limitações. Principalmente as que fizeram mastectomia bilateral e ainda
esvaziamento axilar. Eu gostaria de saber de vcs se conseguem levar uma vida
normal: fazendo todas as tarefas de casa como antes da doença sem nenhuma
queixa de dor ou cansaço. É que passei por uma situação bem chata. Fui
questionada porque essas atrizes que tbm tiveram câncer conseguem ter uma
vida normal enquanto eu fico me queixando de dor. E eu respondi prontamente
que elas não tem uma rotina como a minha: não lavam, não passam, não
cozinham, não cuidam de filhos, marido e ainda trabalham fora. [...] Pra nós
reles mortais que não temos ninguém pra fazer nossos trabalhos domésticos não
segue tão bem assim [...]. (CO789).
Conforme discutido por Bury (1982), a doença crônica promove uma disrupção na
vida do indivíduo, não apenas pelas transformações no senso de self e identidade, mas
também pelas quebras e reconfigurações na rotina e nas redes de relacionamento, que
incluem restrições e limitações antes não existentes. No caso do câncer de mama, pacientes
convivem com limitações principalmente devido aos impactos físicos que podem sofrer ao
longo da trajetória da doença (LOVELACE; MCDANIEL; GOLDEN, 2019). Isso foi
corroborado nos relatos das participantes e nas observações da sala de espera e da
comunidade on-line. Nesse contexto, notamos que a família se constituiu enquanto um
importante ponto na rede social de apoio da paciente, provendo cuidado, principalmente
nas formas de assistência tangível e apoio emocional, durante a trajetória do câncer de
mama.
“Eu sempre tive muito apoio da minha família, desde o início. Tanto é
que o dia que eu recebi o meu diagnóstico, nós tínhamos ido no
mastologista. [...] antes de eu entrar no consultório, minha mãe ainda
disse: ‘vai entrar você e seu marido’? Eu falei, “não, você também tá
aqui. Vamos entrar nós três [...]. O que a gente tiver que ouvir, nós vamos
ouvir juntos. Então, desde o início, eles sempre junto comigo”. (CO28).
A participante CO25 também mencionou o despreparo de seu pai para lidar com
seu diagnóstico: “o meu pai também desenvolveu uma depressão agora, e ele fala que só
vai melhorar quando a filha dele tiver curada. Então também é outra pessoa que não tá
emocionalmente preparada para lidar com a doença”. Nesse contexto, é possível observar
que a paciente, apesar de ter relatado que era acompanhada por familiares em exames e
consultas, não obtinha, em certa medida, apoio emocional no contexto familiar, sofrendo
inclusive o distanciamento de seu cônjuge.
Na sala de espera, esse tópico não foi abordado entre as pacientes que aguardavam
atendimento. Entretanto, na comunidade on-line, a falta de apoio por parte de familiares
foi relatada em algumas publicações. Uma delas foi feita pela participante CO263. Similar
à experiência da participante CO25, ela comentou sobre o afastamento de seu companheiro
e falta de apoio em relação ao seu quadro clínico e as restrições decorrentes dele:
5. Considerações Finais
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A feminilidade pode ser compreendida, segundo Energici, Schöngut-Grollmus e Soto-Lagos (2020),
enquanto “as a set of practices that involves, among other things, an aesthetic canon with a particular
affectivity attached. In general terms, we define this as a set of rules about the body’s appearance and the
way the body should be felt and experienced” (ENERGICI; SCHÖNGUT-GROLLMUS; SOTO-LAGOS,
2020, p. 2).
ou não se deslocam totalmente do papel de cuidadora. Nesse sentido, é possível conceber
que tais pacientes convivam com uma sobrecarga, uma vez que precisam lidar com seu
quadro clínico e com a provisão de cuidado aos demais membros de sua família –
sobretudo filhos.
Cabe salientar que o estudo realizado apresenta limitações. Trata-se de uma
pesquisa qualitativa, realizada em dois ambientes distintos, com uma pequena amostra de
participantes. Não foi explorado a questão do câncer de mama em pessoas transgênero ou
não-binárias ou em homens cisgêneros. Nesse sentido, outros estudos podem investigar as
dinâmicas de cuidado que se estabelecem no âmbito familiar de pacientes com diferentes
identidades de gênero. Podem também averiguar possíveis diferenças e semelhanças entre
mulheres de diferentes classes sociais. O câncer de mama é uma das neoplasias mais
incidentes, e mais pesquisas são necessárias para a analisar as questões que tal doença
mobiliza em relação à interface entre gênero, família e cuidado.
Referências
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