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Penas de índio: a representação do "Brasileiro" na arte portuguesa

Autor(es): Ribeiro, Maria Aparecida


Publicado por: Universidade Católica Portuguesa, Departamento de Letras
URL URI:http://hdl.handle.net/10316.2/23898
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MÁTIlESIS 5 1996 293-323

PENAS DE ÍNDIO:
A REPRESENTAÇÃO DO "BRASILEIRO" NA ARTE
PORTUGUESA

MARIA APARECIDA RIBEIRO

1. Há no Museu Grão Vasco um quadro que, como outros atribuídos


a Vasco Fernandes, tem suscitado leituras diversas: aAdoração dos Magos,
pintura a óleo sobre madeira de carvalho, pertencente ao retábulo da capela-
mor da Sé de Viseu, datado pelos historiadores de arte entre os anos de 1501
e 1506.
Dadas as semelhanças com o rosto de Pedro Álvares Cabral esculpido
no medalhão dos Jerónimos, Cortez (1968: 55) levantou a hipótese de o
mais velho dos reis representar o descobridor do Brasil, que devia ter estado
em Viseu ou nos seus arredores, após a sua volta da Índia, época em que a
pintura foi executada. Também sublinhou o arrojo do pintor em quebrar a
tradição ao substituir o negro rei Baltasar por um ameríndio, "mostrando
assim a grandeza de Deus, que criou outros homens então desconhecidos"! .
Pelas mais variadas razões, que passam muitas vezes pela comemoração
dos quinhentos anos dos descobrimentos e de evangelização, o retábulo do
altar-mor da Sé de Viseu volta a ser olhado com maior insistência nos
últimos tempos. Mas há um outro retábulo, também da autoria de Grão

lGrão Vasco parece de facto ter sido o primeiro a introduzir um índio na


representação da Adoração. Santiago Sebastián (1992: 38) lembra a existência de mais
dois quadros do mesmo tipo, embora posteriores: um, da autoria de um pintor jesuíta,
Diego de la Puente (1586-1663), que criou uma Epifania nas margens do lago Titicaca,
substituindo Gaspar por um rei inca e mantendo o negro Baltasar e o branco Melquior;
o segundo, existente na igreja de Ilabe, departamento de Puno, também no Peru. No
Brasil, conheço o painel de azulejos do corpo da Igreja de Nossa Senhora do Rosário das
Portas do Carmo, conhecida como Nossa Senhora do Rosário dos Pretos (Pelourinho,
Salvador, Bahia), onde um dos magos tem um cocar e um adorno peitoral dos índios
brasileiros. Trata-se de uma composição de enquadramento polícromo, com o centro em
azul, e alguns tons de roxo e verde, ao gosto da transição do século XVIIl para o XIX.
(Cf. Simões, 1965: 110-111).
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Vasco, que não tem sido divulgado pelas publicações comemorativas do


encontro de culturas, apesar de alguns historiadores verem nele a figura de
um índi02 • Será por não possuir os sinais de vestuário que costumam
caracterizar os selvagens? Trata-se da imagem do Bom Ladrão que faz parte
do Calvário da capela do Santíssimo da Sé de Viseu, pintado entre 1535-
1540. Por outro lado, essas mesmas publicações comemorativas têm
reproduzido com insistência uma iluminura do Livro de Horas de D.
Manuel, respeitante ao mês de Maio, que representa um casal de jovens a
passear e cuja cena do bas-de-page é um cortejo fluvial: nesta imagem,
Markl viu, num homem completamente vestido, a presença do índio,
porque, na cabeça, a figura "tem um toucado de penas à maneira dos índios,
recordando o rei mago negro" do painel de Viseu e o "Lúcifer do Inferno
do Museu de Arte Antiga de Lisboa" (MarklI983: 88)3.
No caso da Adoração, Dalila Rodrigues (1992) recusa a hipótese de
estar nele representada a figura de Pedro Álvares Cabral, que teria na época
trinta e cinco anos, mas toma a" considerar o interesse da substituição de
Baltasar, o rei negro, por um índio brasileiro, não só porque esta é,
possivelmente, a sua primeira representação europeia, como também - e
aí procura uma nova interpretação - porque "a inserção de um índio da
etnia Tupinambá num contexto religioso tão importante como é o da
Adoração ao Menino pressupõe, sobretudo, a ideia da sua cristianização",
sugestão que a autora lembra já existir na carta de Pêro Vaz de Caminha
comunicando ao rei D. Manuel o achamento da nova terra. Quanto ao facto
de o índio estar vestido "à maneira ocidental", assim o justifica: "o exotismo
da sua nudez constituiria um pormenor por demais ousado".
Ao analisar o painel, Joaquim de Oliveira Caetano (1994) também
insiste em valorizar a substituição do negro pelo "selvagem brasileiro",
pensando no que de inovador tal ocorrência representa do ponto de vista
iconográfico no contexto da repetitiva pintura portuguesa de Quinhentos.
E propõe uma leitura diferente das até então feitas: a presença do índio

2Vítor Serrão foi o primeiro a fazer esta leitura (1991: 51), corroborada por alguns
e questionada por outros (Cf. Dias, 1992: 26 e Rodrigues, 1992: 68).
3Embora a relação entre o chapéu profusamente emplumado do ocupante do
barco, o cocar do índio-Baltasar de Grão Vasco e a roupa coberta de penas do figurante
da cena do Inferno seja bastante subjectiva, é possível que as penas "a mais" na
iluminura tenham a ver com o entusiasmo dos europeus de Quinhentos pelos canitares
do Novo Mundo. Achamos, no entanto, exagerado chamar índio à figurado bas de page:
"Na iluminura 'em estudo, esse homem [o tradicional homem silvestre] é, pois,
substituído pelo índio timoneiro do barco, numa viva demonstração da novidade sentida
pelos portugueses em contacto recente com os ameríndios" (Markl1983: 90).
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dever-se-ia não apenas à integração do novo, mas à ligação deste com as


fontes sagradas: o Evangelho Arménio da Infância, onde Baltasar vem
definido como "rei dos índios" (no caso, dos nativos da Índia)4 e do qual D.
Diogo Ortiz de Vilhegas, bispo de Viseu à época da pintura do painel, devia
ter conhecimento, pois era homem bastante culto, além de ter sido
anteriormente bispo de Ceuta, o que podia tê-lo feito interessar-se pelas
tradições religiosas do Oriente. A estas hipóteses para a presença do
"índio", Caetano acrescenta outra: o facto de ter sido D. Diogo o pregador
na missa celebrada no Restelo quando da partida de Pedro Álvares Cabral
em 9 de Março de 1500.
Quanto ao biótipo da figura e à sua tribo, há uma certa convergência
de opiniões. Todos o consideram um índio - e um índio tupinambá. E se
Dalila Rodrigues não se pronuncia sobre os traços físicos, Cortez e Caetano
falam em fidelidade, chegando a levantar a hipótese de Vasco Fernandes-
tão rigoroso na figuração de pormenores e minúcias - ter tido por modelo
um selvagem brasileiro autêntico. Cortez ainda lembra que os lábios
desfigurados pela metara ou pelo osso de que fala Caminha5 talvez não
fossem representados para não causar maior estranheza.
Num segundo painel produzido em Portugal no século XVI, certamente
posterior ao da Sé de Viseu6 , o motivo do índio volta a aparecer. Trata-se
de uma cena do Inferno, pintada por autor não identificado, pertencente ao
acervo do Museu Nacional de Arte Antiga: a presidir aos castigos, sentada
numa cadeira, tendo ao lado uma mesa com papel, tinta e pena, uma figura
macabra, alada, com uma vestimenta na linha das armaduras medievais,

4Transcrevemos o texto em tradução francesa de F. Amiot (1952: 84-85): "Et


aussitôt un ange du Seigneur s' en fut en hâte au pays des Perses, prévenir les rois mages
d' aller adorer I' enfant nouveau-né. Et ceux -ci, apres avoir été guidés par I' étoile pendant
neuf mois, arriverent à destination au moment ou la vierge devenait mere. Car, en ce
temps-Ià, le royaume des Perses I' emportait par sa puissance et ses victoires sur tous les
rois qui existaient dans les pays d'Orient. Et ceux qui étaient les rois des Mages étaient
trois freres: le premier, Melkon qui régnait sur les Perses; le second, Balthasar, qui
régnait sur les Indiens, et le troisieme, Gaspar, qui possédait le pays des Arabes".
5"Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos
e verdadeiros, do comprimento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão,
agudos na ponta como furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que
lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado de tal sorte
que não os molesta, nem os estorva no falar, no comere no beber." (Cortesão, s.d.: 158).
"Trazia este velho o beiço tão furado, que lhe caberia pelo furo um grande dedo
polegar, e metida nele uma pedra verde, ruim, que cerrava por fora esse buraco."
(Cortesão, s.d.: 165 ).
6Markl (1993) situa-o entre 1500 e 1521.
296 MARIA APARECIDA RIBEIRO

mas coberta de penas; na cabeça, no lugar do elmo, um cocar semelhante


aos usados pelos índios do Brasil; a tiracolo, uma bolsa; nas mãos, uma
trompa de caça, que bem poderia ser um instrumento indígena? , não fosse
o revestimento metálico do bocal.
Do lado esquerdo do quadro, um outro ser, coxo e com penas
semelhantes às ostentadas pela figura sentada na cadeira, carrega às costas
um frade luxurioso acorrentado ao seu parceiro. Dentro da caldeira, quatro
frades e uma mulher expiam as suas culpas. Ao redor dela, recebendo os
mais variados castigos impostos por demónios hermafroditas, homens e
mulheres.
Opondo este quadro ao retábulo de Grão Vasco, Dagoberto MarId
(1995) lê a presença do "índio" no Inferno como uma diabolização, um
avesso da efígie de "bom selvagem" que o painel de Viseu regista, e pensa-
a motivada pela difusão da carta de Américo Vespúcio e as suas referências
à antropofagia e à licenciosidade das índias, uma vez que a sua atitude nada
teria a ver com a dos nativos descritos na Carta de Caminha (MarId, 1993:
26). Quanto à aparência, identifica as imagens, "na raça, senão na etnia"
(MarId, 1995: 422), como as de tupinambás, ocorrendo-lhe o seguinte
trecho da carta de achamento do Brasil:

[... ] Esse [índio] que o agasalhou era já de idade, e andava por


louçainha todo cheio de penas, pegadas pelo corpo, que parecia asseteado
como S. Sebastião. Outros traziam carapuças de penas amarelas; outros, de
vermelhas; e outros de verdes. (Cortesão, s.d.: 161).

2. Ao deparar-me constantemente, nas mais diversas publicações, com


a Adoração dos Magos, com a cena do Inferno e com as interpretações que
lhes vêm sendo dadas, ocorreu-me trazer algumas achegas às leituras já
feitas. Uma observação mais apurada dos painéis do Museu Grão Vasco e
do Museu de Arte Antiga e a sua comparação com outros textos e
informações coetâneas possibilitam sugerir mais intertextos na representação
dos selvagens brasileiros e diferentes leituras dessas imagens. Afinal,
vários índios foram trazidos da América e várias foram as representações
literárias e iconográficas de índios que circularam na Europa entre a
descoberta do Novo Mundo e a pintura dos painéis em questão. O que ficou
deles na arte portuguesa? Lembrei-me ainda de um outro retábulo mais
recente e que tem passado despercebido, assim como de uma série de textos

7É de lembrar a Carta de Caminha: "E, depois de acabada a missa, assentados nós


à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram como ou buzina [... ] (Cortesão,
s.d.:162).
PENAS DE ÍNDIO:A REPRESENTAÇÃO DO "BRASILEIRO" NA ARTE 297

literários e iconográficos que focam o índio e que poderiam mostrar a


intertextualidade da literatura e da gravura na pintura.

2.1. Certamente que o "Baltasar" daAdoração dos Magos ou as figuras


do Inferno de pintor anónimo têm relação com a descoberta do continente
americano - e até mais especificamente com a do Brasil-, mas eles não
possuem traços fisionómicos de índios. Quanto ao facto de os adornos
serem de origem tupinambá, é preciso esclarecer que esta designação é
usada genericamente para várias tribos litorâneas, desde o extremo Norte
até ao sul do Brasil, originárias de um tronco mais antigo, possivelmente o
tupi. Certos tamoios, tupiniquins, tabajaras, tupinás não raro se diziam
tupinambás para indicar uma espécie de ramo de farm1ia (Cf. nota 120 de
Plínio Airosa a Léry, 1980: 81). E os catequistas e viajantes não contactaram
somente com os tupinambás: houve os carijós, os caetés, os goitacás cujos
adornos não eram muito diferentes dos destes 8 • Este depoimento de Gabriel
Soares de Sousa também atesta a dificuldade em distinguir os índios, dadas
as suas semelhanças:

Este gentio [tupiniquins] é da mesma cor baça e estatura que o outro


gentio de que falámos, o qual tem a linguagem, vida e costumes e gentilidades
dos tupinambás, ainda que são seus contrários, em cujo título se declarará
mui particularmente tudo o que se possa alcançar. E ainda que são contrários
. os tupiniquins dos tupinambás, não há entre eles na língua e nos costumes
mais diferenças do que têm os moradores de Lisboa dos da Beira" (Sousa,
1971: 80)

80 "pano de penas" pertencente aos tupiniquins descrito por Caminha (Cf.


Cortesão, s.d.: 168) e que aparece nos índios da Carta do Brasil de Lopo Homem, no
famoso Atlas Miller (1519), volta a ser mencionado por André Thevet (1978: 90), que
também o achou digno de ser enviado à Europa. Mas desta vez trata-se de índios
tamoios, habitantes de Cabo Frio: "Também fazem [os indígenas] com elas mantos e
cocares à moda local. Quem quiser poderá ver um desses mantos, pois fiz presente de
um deles ao Senhor Troistieux, fidalgo da casa do Reverendíssimo Monsenhor Cardeal
de Sens, Guarda dos Selos da França, grande admirador de singularidades e admirador
de pessoas virtuosas". Simão de Vasconcelos, ao falar do ritual antropofágico em geral,
que refere ser praticado por quase todas as nações à exceção da carijó, assim descreve
o índio que matará o prisioneiro: "Vem vestido a mil maravilhas, de penas assentadas
em bálsamo, todo em contorno, desde a cabeça até os pés. Vem a cabeça coroada com
um diadema vermelho aceso, cor de guerra. Do pescoço tendem dous colares da mesma
cor a tiracolo encontrados, que vêm morrer na cintura. Os braços pelos ombros,
cotovelos e pulsos, vão enfeitados com suas plumagens, a feição de enroscados grandes.
Pela cintura apertam em larga zona; desta pende até os joelhos um largo fraldão a modo
trágico e de tão grande roda, como é o de um chapéu de sol. E, finalmente, nesta
conformidade, nos joelhos, pernas, pés, vai continuando a libré, toda na mesma peça,
de penas de aves, as mais fermosas e lustrosas em cores, que pera este efeito guardam
seus antepassados"(Vasconcelos, 1865: §129, LXXX, v.l).
298 MARIA APARECIDA RIBEIRO

As feições das figuras infernais do painel do MNAA também não


permitem identificá-las como índios. A personagem que preside aos
castigos apresenta rosto descarnado e órbitas que lembram as de uma
caveira. De seu aux iliar, a escuridão do Inferno e o facto de estar de costas,
deixam ver pouco, mas, além da roupa de penas, semelhante à do primeiro,
podem-se-Ihe observar um rabo e uma espécie de asa também com penas.
Na cabeça, leva um animal peludo. É verdade que as penas coladas ao corpo
em forma de armadura lembram uma descrição dos tupinambás feita por
Jean de Léry, mais encantado até que o próprio Caminha:

Quando vão à guerra ou quando matam um prisioneiro para comê-lo,


os se lvagens brasileiros enfeitam-se com vestes, máscaras, braceletes e
outros ornatos de penas verdes, encarna~as ou azuis, de incomparável
beleza natural, a fim de mostrar-se mai s belos e bravos. Muito bem
mescladas, combinadas e atadas umas às outras sobre talicas de madeira
fomlam vestuários que parecem de pelúcia e que podem rivalizar com os
melhores artífices da França, Do mesmo modo enfei tam seus dardos e
clavas de madeira. os quais, assim decorados apresentam um efeito
deslumbrante. (Léry, 1980: 115)

Quanto às penas que parecem uma asa de pássaro em movimento


na figura que no Inferno transporta o frade luxurioso não ficam longe
dessa descrição deslumbrada do geralmente contido franciscano André
Thevet:

Pintados assim, enfeitam-se com a menor e mai s delicada plumagem


de pássaro, que aplicam sobre essa goma da cabeça aos pés. E então é um
prazer contemplar esses gentis papagaios se lvagens, que vós diríeis estar
PENAS DE íNOlO:A REPRESENTAÇÃO DO "BRAS ILEIRO" NA ARTE 299

todos revestidos de fina escarlata vermelha. E têm também grandes penas


com as quais cingem e contomam as cabeças. 9

Mas descrição semelhante é feita por Marcgrave com relação aos


tapuias, baseando-se no que contou Jacob Rabbi que viveu entre eles, E os
índios deste relato até usam cauda como a figura do lnferno lü . E Jean de
Léry diz que o hábito de colar penas no corpo era igualmente desenvolvido
pelos cumaneses (1980: 115J11. Conheceria o pintor do painel do MNAA
este hábito oriental?
Se nos deti vermos nas
feições do "índio-mago" da
Adoração, veremos que se
assemelham às do rei que o
sucede. Apenas a sua cor é
a dos índios. O cabelo,
apesar de cortado rente,
aproxima-se mais do de São
José, umjudeu, ou do ulótri-
co próprio dos africanos,
que do Iisótrico dos amerín-
dios e dos indianos. A sua
roupa tem qualquer coisa
de oriental na leveza do teci-
do, nos colares brilhantes,
nas pulseiras de ouro que
lhe adornam as mãos e os

9nPains qu' ils sont ainsi, encor se parent ils deduvet, sçavoir du plus petit et fin
plumage d ' oyseau, qu 'ils appliquent sur ladite gomme, depuis la teste jusque aux pieds:
lors c ' est un plaisir de contempler ces gentils Perroquets de Sauvages, que vous diriez
estre tous revestus de fine escalatte rouge: et ont aussi de plus grands plumes, dont ils
s'en ceignent et environnent les testes" (Thevet, 1953: 10l). Léry faz descrição
parecida: "Além disso criam os nossos americanos grande quantidade de galinhas
comuns, cuja raça foi imroduzida pelos portugueses. Depenam as brancas e com
instrumentos de feITo (antes de os terem com peças aguçadas) picam bem miúdo o
frouxel e as penas pequenas; depois fervem e tingem de vermelho com pau-brasil e,
esfregando o corpo com certa resina apropriada, grudam-nas em cima, ficando assim
vermelhos e emplumados como pombos recém-nascidos". (Léry, 1980: 114-115).
10"[ ... ] depois com pó vermelho aspergem a cabeleira, na fronte porém aplicam
penas brancas; finalmente pintam a face com várias cores assim como o resto do corpo;
mas nas costas atam uma faixa feita de folhas semelhante à cauda e nos braços asas de
um pássaro que chamam Koselug, e do mesmo modo amaITam em tomo da cabeça penas
vermelhas (Marcgrave, 1942: 282).
Iler também Gómara, 1568: cap. 76.
300 MARIA APARECIDA RIBEIRO

pés, enfeites que os índios brasi-leiros não usavam. E a figura não está
sequer descalça como um dos crí-ticos comenta: usa sandálias. Apenas o
enfeite da cabeça e a flecha têm a ver com um cocar dos índios brasileiros,
descritos não só por Caminha, mas por Hans Staden, por Léry, Marcgrave
ou por Simão de Vasconcelos 12 • Hibridismo resultante de informações
cruzadas?
Talvez sim, talvez não. No painel de azulejos referido em nota anterior,
pertencente à igreja de Nossa Senhora do Rosário, possivelmente uma da
primeiras produções da Fábrica do Rato (Lisboa) para ser montado no
Brasil, a figura que substitui Baltasar também possui cocar indígena, vem
sem barbas, é mais escuro que os outros dois reis, mas está inteiramente
vestido à oriental. E são os três camelos que fazem fundo à Adoração. No
entanto, quase dois séculos separam este painel do de Viseu. Seria o índio
brasileiro ainda tão desconhecido dos pintores portugueses? Que contacto
teria o criador destes azulejos com o Evangelho Arménio da Infância? Que
confusões faria entre índios e Índias? Conheceria ele a Adoração de Grão
Vasco? O problema da presença de um Baltasar diferente no painel de Viseu
parece poder ter seguido outros caminhos relacionados ou não com D.
Diogo Ortiz.

2.2. Ao voltar da viagem em que descobriu a América, Colombo


escreveu no seu Diário, no dia 6 de Março de 1493: "Sabido como el
almirante venía de las Yndias, hoy vino tanta gente a verIo, y a ver a los
Y ndios de la ciudad de Lisboa, que era cosa de admiración". (Colón, 1982:
135). A Índia era o objectivo de todos, da Índia se pensava que vinha o
navegador, índios da Índia eram os seres que ele trazia. Aliás, Pedro Álvares
Cabral fora mandado à Índia. A confusão de imagem e origem, correndo de
boca em boca, bem pode ter ficado na memória popular e chegado a Vasco
Fernandes e ao autor do Inferno, uma vez que poucos anos eram decorridos
entre a estada de Colombo em Lisboa, a descoberta de uma terra nova por
Pedro Álvares Cabral e a execução dos painéis. E nem se pode esquecer de
que o Brasil fazia parte das Índias Ocidentais e o índio - do Ocidente ou
do Oriente - era o outro, lugar que os europeus não tinham necessidade de

12Diz Staden, 1988: 172: "Têm mais um ornato feito de penas vennelhas, a que
chamam Kannitare e que amarram em volta da cabeça". O mesmo ornamento é assim
descrito por Léry: "Quanto ao ornato da cabeça, além da coroa de frade e da guedelha
na nuca a que me referi, os tupinambás amarram penas de aves encarnadas ou de outras
cores, tiradas das asas de certas aves, em frontais muito semelhantes aos que costumam
usar as senhoras em França, parecendo até que se tenham inspirado nesta invenção cujo
nome entre os selvagens é jempenambi" (Léry, 1980: 115).
PENAS DE ÍNDIO:A REPRESENTAÇÃO DO "BRASILEIRO" NA ARTE 301

precisar: bastava que se opusesse ao eu, mesmo numa pintura realista como
a de Vasco Fernandes \3 •
O frontispício da Notícia dosfeitos recentes dos portugueses na Índia,
Etiópia e outras terras do Oriente, enviada pelo sereníssimo D. Manuel ao
reverendíssimo Gonçalo, bispo do Porto, cardeal de Portugal e da Igreja
Romana, e por mandado do mesmo cardeal publicada na cidade de Roma,
depois de zelosamente corrigida pelo capelão do referido senhor cardeal,
o digno senhor Pedro Afonso Malheiros 14 , dá conta dessa confusão: vem
ilustrado com um casal de índios brasileiros, quando trata apenas do
Oriente. O índio, de barba e cabelos compridos, apresenta-se de cocar e
tanga de penas, além de adereços de penas pouco abaixo dos joelhos. Nas
mãos, um arco. A figura feminina vem nua, tem cabelos compridos e
esvoaçantes, segura uma flor com que encobre o sexo. Bem poderia ser a
Vénus de Botticelli, não fosse o seu companheiro ornado de penas. De data
próxima é uma série de três gravuras em que o "brasileiro" substitui o
indiano: fazem parte do cortejo do imperador Maximiliano I, representado
no Arco do Triunfo e foram produzidas entre 1517/1519, por Hans
Burgkmair, o Velho, que as denominou "Povos de Calecute", mas desenhou
índios.
O mesmo reverso da medalha pode ser visto no século XVIII, na
Capela de São Francisco de Assis (Perre, Viana do Castelo): os azulejos
mostram São Francisco Xavier pregando a índios com penas na cabeça (cf.
Simões, 1979: 91). A razão desta troca pode ser, como algumas das
anteriores, a confusão entre imagem e origem. Mas pode também expressar
um exemplo e um desejo. Na Relação da Missão da Serra da Ibiapaba, o
padre António Vieira, ao contar que São Francisco Xavier foi tomado como
padroeiro da missão evangelizadora a ser desenvolvida, anota:

Estava neste tempo no altar uma devota imagem de S. Francisco


Xavier em hábito de missionário, baptizando um índio; e esperamos que
assim como Deus tem feito este grande apóstolo tão milagroso na Europa,

13É curioso a esse respeito ver a oposição entre Cristandade (= Europa) e Índias
(= Outro) feita por Goneville, normando que esteve no Brasil em 1504 e de quem
voltaremos a falar, na sua Relação, cujo manuscrito foi estudado e traduzido por Leyla
Perrone-Moisés: "E porque era costume daqueles que chegam às novas terras das Índias
levarem delas à Cristandade alguns índios ... " (Perrone-Moisés, 1992: 60) A partir de 3
de Julho de 1504, quando Goneville deixa o Brasil, passa a chamar a parte em que esteve
Índias Meridionais (possivelmente Santa Catarina).
14'frata-se da Gesta proxime p Portugalefí in lndia. Ethiopia & alijs oriytealibus
terris, a serenissimo Emanuele portugalie rege ad R. d. d. G. epm portuefí. sacroscteRo.
eccl'ie {. .. ], publicada em Nuremberga, em 1507, por João Weyssenburger.
302 MARIA APARECIDA RIBEIRO

na África e na Ásia, se estenderão também os favores da sua valia e


intercessão a esta parte da América. (Vieira, 1992: 188-189).

Não sabemos se o índio era brasileiro ou se Vieira falava de um


indiano; de qualquer forma, no painel de azulejos de Viana do Castelo (séc.
XVIII) pode haver ressonância de informação semelhante a esta do século
XVII.
Para que a hipótese de o painel de Vasco Fernandes ter recebido
influência de D. Diogo Ortiz possua algum fundamento é importante que
a Adoração dos Magos não houvesse sido pintada - ou ainda estivesse em
execução - em Junho de1505, pois, só a partir desta data poderia ele estar
como bispo de Viseu l5 •
Foi D. Diogo quem oficiou a celebração eucarística quando da partida
de Pedro Álvares Cabral (que ia para a Índia e não para o Brasil) e também
o pregador na missa em acção de graças, mandada celebrar por D. Manuel,
em 1505, pelas vitórias alcançadas por Duarte Pacheco Pereira na Índia (Cf.
Góis, 1956: 245). D. Diogo, designado, em 1491, prior do mosteiro de S.
Vicente de Lisboa e bispo de Tânger, onde nunca chegou a ir (Cf. Almeida,
1956: v.l, 524), devia estar em Lisboa em 1493, quando chegaram a bordo
da caravela Nifia os sete índios americanos trazidos por Cristóvão Colombo,
ou ainda quando, em 1501, Américo Vespúcio apresentou caetés 16 vindos
do Brasil. Tais acontecimentos vistos directamente ou narrados por
testemunha ocular ficariam no seu espírito, como possivelmente no do
pintor do painel do Museu de Arte Antiga. A verdade é que o índio, nos
primeiros anos do século XVI foi-se tornando uma presença cada vez
menos rara na Europa. É o que se depreende do diário de Duarte Fernandes,
escrivão da Nau Bretoa (1511), onde se lê a recomendação para não trazer
do Brasil nenhum natural da terra, "porque se allguns que fallecem, cuidam
eses de lla que os matam pera os comerem, segumdo antre elles se custuma"
(citado por Andrade, 1972: 630).

15 A encomenda do painel foi feita por seu antecessor - D. Fernando Gonçalves


de Miranda que, a 22 de Setembro de 1500, se mostrava hesitante entre um retábulo de
prata ou "de tintas" e pensava encomendá-lo a Flandres, por ser melhor e mais barato
(Joaquim, 1955; 74). Almeida (1968: v.1, 520) tem dúvidas quanto à data de faleci-
mento de D. Fernando ser 1499 ou 1505, mas este documento vem provar que ainda
estava vivo em 1500. D. Diogo só foi nomeado bispo de Viseu pelo rei D. Manuel, em
4 de Maio de 1505. Em 27 de Junho de 1505 o papa Júlio II dirigia uma bula aos vassalos
da igreja de Viseu, comunicando que para lá havia transferido D Diogo por morte de D.
Fernando (Almeida, 1968: v.2, 660).
16Pensa-se que fosse esta a tribo dos índios trazidos pelo navegador, em função das
regiões por onde andou.
PENAS DE ÍNDIO:A REPRESENTAÇÃO DO "BRASILEIRO" NA ARTE 303

Cabral não deve ter enviado índios a D. Manuel, apesar de Damião de


Góis dizer que Gaspar de Lemos no seu navio, com as novas do
descobrimento, trouxe consigo "um homem dos da terra" (Góis, 1956: v. 1,
130). CamiQha informa que a ideia foi recusada pela tripulação porque,
tomados "porforça", diriam que havia na terra "tudo quanto lhes perguntam"
e porque os dois degredados deixados no Brasil, falantes do português,
poderiam fornecer informações muito mais precisas (cf. Cortesão, s.d.:
163-164). Mas o escrivão da frota de Pedro Álvares regista várias vezes em
sua carta a intenção do descobridor do Brasil em mandar a D. Manuel
"amostras" da nova terra, o que provavelmente aconteceu: além dos
"papagaios"!? , os objectos oferecidos pelos selvagens - colares de contas,
metaras, arcos e flechas de cana aparada!8, e carapuças de penas de cores
e feitios variados, uso que muito parece ter impressionado o escrivão, tal a
frequência com que o refere!9 . Entre as "carapuças" não enviadas está uma
de transporte impossível sem que junto viesse o seu usuário. Vale transcrever
a descrição, pois, apesar da difícil interpretação do texto, os críticos
costumam ver semelhanças entre ela e a que apresenta o "índio" do retábulo
da Sé de Viseu:

Os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta,


mais que de sobre-pente, de boa grandura e rapados até por cima das orelhas.
E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma
espécie de cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de

17 Tratava-se de araras, como se pode depreender da descrição feita no texto da


Carta.
18 "Eu, creio, Senhor, que ainda não dei conta aqui a Vossa Alteza da feição de seus

arcos e setas. Os arcos são pretos e compridos, as setas também compridas e os ferros
delas de canas aparadas, segundo Vossa Alteza verá por alguns que - eu creio - o
Capitão a Ela há-de enviar" (Cortesão, s.d.: 169).
19 "Ali não pôde deles haver fala, nem entendimento de proveito, por o mar quebrar

na costa. Deu-lhes somente um barrete vermelho e uma carapuça de linho que levava
na cabeça e um sombreiro preto. Um deles deu-lhe um sombreiro de penas de ave,
compridas, com uma copazinha pequena de penas vermelhas e pardas como de
papagaio; e outro deu-lhe um ramal grande de continhas brancas, miúdas, que querem
parecer de aljaveira, as quais peças creio que o capitão manda a Vossa Alteza, e çom isso
se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar."
(Cortesão, s.d.: 158-159).
"Resgataram lá por cascavéis e por outras coisinhas de pouco valor, que levavam,
papagaios vermelhos, muito grandes e formosos, e dois verdes pequeninos e carapuças
de penas verdes, e um pano de penas de muitas cores, maneira de tecido assaz formoso,
segundo Vossa Alteza todas estas cousas verá, porque o Capitão vo-las há de mandar,
segundo ele disse." (Cortesão, s.d.: 168). São esses mesmos enfeites que impressionam,
anos depois, André de Thevet e Jean de Léry, como atrás já foi referido.
304 MARIA APARECIDA RIBEIRO

um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria o toutiço e as orelhas. E
andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como
cera (mas não o era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui
basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
(Cortesão, s.d.: 159).

Certamente Vasco Fernandes não teve conhecimento da carta de


Pêro Vaz. Se tal tivesse acontecido, outra seria a roupagem e outro o cabelo
do seu Mago. Haveria soluções como a pintura do corpo ou da colagem
de penas para que o "índio" não aparecesse despido na cena da Adora-
ção2o • Mas D. Diogo, bastante próximo do rei, pode ter lido as notícias do
achamento da Ilha de Vera Cruz ou visto os objectos enviados por Cabral,
ou ainda ter tido informações por testemunha ocular. Coisa semelhante
pode ter acontecido com o autor do retábulo do MNAA.

2.3. Não está excluída a hipótese de a imagem do selvagem nos painéis


portugueses ser consequência do diálogo com outros acontecimentos
europeus. Entre eles, a presença do índio em outras cidades além de Lisboa,
o que em 1504 já era costume (Cf. trecho de Relação de Goneville em
nota anterior), e a publicação ilustrada de documentos relativos aos
descobrimentos.
Vicente Pinzón, que andou pela foz do Amazonas, por ele designada
como Maranhão, em 1499, levou para a Europa trinta e seis índios, dos quais
vinte chegaram vivos. O mesmo fez Diego de Lepe, também chegado ao
Brasil antes de Cabral: entregou ao bispo de Sevilha, D. João da Fonseca,
vários índios que aprisionou como escravos no litoral brasileiro. Talvez
fossem eles os responsáveis pela cena curiosa vista pelo Embaixador de
Veneza junto à Espanha, pouco depois da descoberta da América: um grupo
de meninos índios jogava com a cabeça e rebatia com as costas bolas de
borracha do tamanho de um melão.
Em Maio de 1505, Binot Paulrnier de Goneville, com vinte e oito
companheiros sobreviventes do ataque de piratas ingleses ao navio L 'Éspoir,
entre os quais dois portugueses, chegou ao porto de La Hougue e, depois,
por terra, a Honfleur, com o carijó Essomericq de quinze anos, que acabou
por ser adoptado pelo capitão francês, de quem tomou o nome e com uma
parenta de quem casou depois, deixando, entre seus descendentes, o

2°Haja vista o trecho atrás citado, em que o índio, com penas pregadas no corpo,
ou envolvido em manto de penas, era comparado por Caminha a S. Sebastião. Também
são de considerar os inúmeros trechos em que o escrivão fala da pintura dos corpos de
índios e índias, chegando mesmo a descrever o urucum, um dos frutos que lhes fornecia
a tinta.
PENAS DE ÍNDIO:A REPRESENTAÇÃO DO "BRASILEIRO" NA ARTE 305

primeiro cónego da catedral de Lisieux - Jean Paulmier de Courtonne-


que, no século XVII, marcou com a sua origem índia o livro que escre-
veu 21 • Outros sete índios brasileiros desfilaram pelas ruas de Ruã022 , em
1509, levados pelo capitão Thomas Aubert, comandante do navio La
Pensée. Um comentário spbre este acontecimento, feito por de Henri
Estienne, na Cronologia de Eusébio da Cesareia (1512), que precisa
explicar que os recém-chegados falam pela boca, mostra como eram vagas
as ideias de então sobre a humanidade dos índios, o que é um ponto
importante para a leitura do Inferno do MNAA:

[... ] chegaram a Ruão com a sua barca, os seus adornos e as suas


armas. Têm a cor carregada e os lábios grossos. Seus rostos são recortados
de cicatrizes, dir-se-ia que algumas veias azuladas partem das orelhas para
se encontrarem no queixo. Não têm pelos na barba, nem no púbis, nem em
qualquer outra parte do corpo, salvo os cabelos e as sobrancelhas. Usam
uma sorte de cinto com uma espécie de bola que lhes cobre as partes
pudendas. Falam pela boca e não têm nenhuma religião. (Gaffarel, 1878:
58-58)23

A população de Lisboa pôde ver, em 1511, outros 36 índios brasileiros,


quando apartou a célebre Nau Bretoa, comandada por Cristóvão Pires.
Eram tamoios aprisionados em Cabo Frio, na sua maioria mulheres, que
serviram de escravos à tripulação. Outros três foram recebidos por D.
Manuel, em 1513, como relata Damião de Góis (1956: v. 1, 131-132),
testemunha ocular do acontecimento. Vinham com Jorge Lopes Bixorda,
que tinha o trato do pau-brasil. Vestiam-se "de penas", tinham "as faces,
beiços, narizes, orelhas cheos de grossos pendentes" e "cadahiI delles trazia
seu arco, & frechas", com o que fizeram a el-rei demonstrações de pontaria.
As flechas eram "de canas empenadas cõ penas de papagaios" e pontas de
pau e osso de pescado; os arcos de pau-brasil.
Em 1527, em Saint-Mala, uma índia do Brasil foi baptizada com o
nome de sua madrinha, Catarina de Granches, mulher de Jacques Cartier,

21 A obra, intituladaMémoires touchant I' établissement d'une Mission chrestienne


dans Ie Troisieme Monde, autrement appellé la Terre AustraIe, MéridionaIe, Antartique
& Inconnue, tem no frontispício, onde não figura o nome do autor: "dediez à Notre S.
Pêre le Pape Alexandre III par un Ecclesiastique Originaire de cette mesme Terre". Data
de 1663 e foi impressa em Paris, por Cramoisy.
22Não se trata ainda da famosa "festa brasileira" em Ruão de que fala Ferdinand
Denis. Esta só ocorreu em 1551.
23Franco (21976: 40) pensa serem índios da nação tupi, mas não pode afirmar se
tupinambás, caetés ou potiguares.
306 MARIA APARECIDA RIBEIRO

que explorou o Canadá. Em 1530, aportou em Dieppe a expedição de Jean


e Raoul Parmentier que retomava do Oriente, mas trazia seis índios
brasileiros deixados em Santa Helena por um navio português. Em 1547,
foi a vez de Paraguaçu, mulher do português Diogo Álvares Correia,
naufragado nas costas da Bahia por volta de 1508, e apelidado pelos índios
CaramufU. Recebida na corte por Henrique II e Catarina de Médicis, a índia,
cuja vida virou lenda, celebrizada pela literatura e pela pintura, foi baptizada
pela rainha24 •

2.4. Se o índio "em pessoa", com os seus adereços, pôde ser visto por
letrados e iletrados, um número possivelmente maior de europeus contactou
com o selvagem do Novo Mundo através da literatura e das suas ilustrações.
A carta de Colombo aos reis de Espanha, cujo original parece ter-se perdido,
foi traduzida e apareceu sucessivamente, a partir do próprio ano de 1493,
em muitas edições que incluíam xilogravuras. Em todas elas os índios
aparecem nus, ou quase, apesar de haver algumas informações iconográ-
ficas imprecisas motivadas pela ignorância do artista. É o caso da tradu-
ção para o Latim feita em Basileia, na oficina de Jacobo Wolff Pforzeim
(1493), onde se vêem barcos com remos, próprios do Mediterrâneo. Ou da
portada da Storia della inventione delle nuove insule di Chanaria indiane
traete duna pistola di Xpofano Colombo, datada de Roma, 1493, na qual às
folhas com que se cobrem algumas mulheres e às palmeiras de que fala a
carta de Colombo, o ilustrador acrescenta as casas dos indígenas, não
mencionadas pelo navegador. Os cabelos dos índios variam de forma e
tamanho: curtos e não totalmente lisos na edição de Basilea, lisos e longos
na de Roma assim como na de Florença (1493), longos e ondeados na de
Florença (1495)25 .
Nestas informações, que circularam pela Europa e podem ter chegado
aos pintores portugueses através dos seus mestres, são também de considerar

24
0 poeta Santa Rita Durão consagra-a no poema Caramuru (1781). Os franceses
Boucher e Gavet evocam-na em Jakaré-Ouassou ou Les Toupinambas (1850). J. O'
Kelly e J. Villeneuve, editor francês que viveu no Brasil, dedicaram-lhe, em 1855, uma
ópera que chegou a ser encenada em Paris. O mais curioso, no entanto, é um painel do
séc. XVI, pintado na Abadia da Graça (Salvador, Bahia), onde se evoca a visão de
Paraguaçu descrita por Durão no canto X do seu poema: Paraguaçu aparece total-
mente vestida, mas mantém na cabeça as três penas de um cocar (Cf. Falcão, 1940: 59).
O painel é, aliás, mencionado a pelo poeta nas "Reflexões Prévias e Argumento" do
Caramuru.
25Trata-se respectivamente de La Lettera dellisole che a trovato novamente ii Re
dispagna e de Isole trovate nuovamente per ii Re di Spagna (Cf. Sebastián, 1992: 27
e 29).
PENAS DE ÍNDIO:A REPRESENTAÇÃO DO "BRASILEIRO" NA ARTE 307

duas de origem portuguesa - a Relação do Piloto Anónimo e o


Auto Notarial de Valentim Fernandes - e as duas cartas relacionadas
às viagens de Américo Vespúcio ao Brasil. Da Relação do Piloto Anó-
nimo há cinco cópias quinhentistas, sendo quatro muito próximas da volta
de Cabral das Índias (Cf. Andrade, 1972: 262), O Piloto informa pouco
sobre o Brasil e os seus habitantes, embora o suficiente para uma imagem
dos índios:

[... ] andão nús, sem vergonha, têm os seus cabellos grandes e barba
pelada; as palpebras e sobrancelhas são pintadas de branco, negro azulou
vermelho; trazem o beiço debaixo furado, e metem-lhe hum osso grande
como hum prégo; outros trazem uma pedra azulou verde. [... ] [A terra] tem
muitas aves de diversas castas, especialmente papagaios de muitas cores, e
entre elles alguns do tamanho de gallinhas, e outros passaros muito bellos,
das pennas dos quaes fazem os chapeos e barretes de que uzão (Cortesão,
1967.230)

O Auto Notarial de Valentim Fernandes contém especial interesse


por dois motivos: primeiro, regista o envio de uma figura dos homens
da terra descoberta pelos portugueses oferecida por João Draba à capela
do Sangue de Cristo (Bruges)26 - o que mostra já haver em Flandres,
em 1503, uma representação do índio brasileiro - ; em segundo lugar,
declara ter colhido informações dos próprios navegadores. Em muitos
pontos, como chamou a atenção Andrade (1972: 525-526), o texto de
Valentim Fernandes coincide com a Carta de Caminha, com a Relação do
Piloto Anónimo e com as cartas de Vespúcio. O que interessa aqui destacar,
porém, é o facto de nela também vir mencionado o hábito de os índios,
depois de pintarem o corpo, revestirem-se de "pequenas penas, para se
assemelharem a aves".

26Diz assim o textodoAuto: Quamfiguramscilicetuirorumillorumetcocodrillum


praesentem, Egregius Vir Iohannes Draba eiusdemRegis Serenissimi mittitadperpetuam
rei memoriam capellae Sanguinis Christi constituta Brugis ciuitate Flandriae, ad
laudem Dei omnipotentis et patriae anno salutis M D III Madii mensis. Traduzindo: "E
quanto à figura, isto é, a daqueles homens, e quanto ao presente crocodilo, o
Excelentíssimo Senhor João Draba envia-os, para perpétua memória do mesmo
Sereníssimo Rei, à capela do Sangue de Cristo, construída em Bruges, cidade da
Flandres, para louvor de Deus omnipotente e da pátria, no ano da salvação de 1503, do
mês de Maio". [Vd. Wurttebergische Landesbibliothek (Estugarda), Cod. hist., n° 248,
foI. 55. Leitura do manuscrito, modernização ortográfica do texto latino e tradução de
Sebastião Tavares de Pinho]. O crocodilo referido é, na verdade, umjacaré, pois, mais
adiante, o próprio texto afirma que é diferente dos crocodilos africanos.
308 MARIA APARECIDA RIBEIRO

As cartas de Vespúcio foram traduzidas e publicadas em vanas


línguas 27 e deram origem a múltiplas xilogravuras. Entre elas, uma,
publicada em Nuremberga (1505), com a legenda Das sind die new
gefundenMenschen, que representa a passagem de três caravelas portuguesas
pela angustura de um rio em cujas margens estão numerosos índios com
tangas e cocares de penas, apesar de o navegador não falar desses enfeites
de cabeça nos seus textos 28 • Alguns possuem adornos do mesmo material
pouco abaixo dos joelhos. Estão quase todos armados de arco, flecha e
tacape. Seus cabelos são compridos e o gravador, desconhecendo as
características biotípicas dos selvagens, dotou-os de barbas. O cenário é
completado por palmeiras e araras.
Uma outra gravura mais tosca, também impressa em 1505 na Alemanha
(Augsburgo-Nuremberga), em folha solta, apresenta ao fundo caravelas
com as cruzes de Cristo. No primeiro plano, uma índia de colar, tanga,
braceletes e cocar de penas, amamenta uma criança, enquanto outras duas
se aproximam dela. Completam a cena outros sete índios, vestidos como a
índia, alguns dos quais praticam a antropofagia. Acompanha a ilustração
uma legenda, inspirada no texto de Vespúcio, que a explica como repre-
sentativa da "gente e da ilha que foi descoberta pelo rei cristão de Portugal
ou seus súbditos'? e fala na nudez dos índios e na sua antropofagia29 •
É a representação literária desta cena que, juntamente com a licen-
ciosidade das mulheres índias, Markl (1995) invoca como razão principal
para o que chama diabolização do índio no painel do Museu de Arte Antiga,
equiparando a figura central a Lúcifer.

27De 1503 a 1508, em nove cidades (Paris, Veneza, Augsburgo, Roma, Nuremberga,
Estrasburgo, Rostock, Colónia, Antuérpia) fizeram-se doze edições latinas da Mundus
Novus e em sete cidades alemãs (Basiléia, Augsburgo, Munique, Nuremberga, Leipzig,
Magdeburgo) doze edições em língua germânica. Na Antuérpia saiu uma edição em
holandês e outros arranjos nessa língua e em inglês. Em Lorena, em 1507, a sua última
carta, a Lettera, traduzida para o latim com o título Quattuor Navegationis, apareceu na
Cosmo graphia Introductio do Ginásio Vosgiano, que conheceu sete edições em um ano.
Além disso, o relato de Mundus Novus foi incluído em Paesi Novamente Ritrovati, que
alcançou dezasseis edições entre 1507 e 1528, não só em italiano, mas também em latim,
alemão e francês.(Cf. Levillier, 1958: 104-105, 115-118 e 147).
28 0 que mostra terem outras notícias informado a gravura.
29Há outras edições ilustradas: uma holandesa, de 1508, publicada em Amberes,
por Jan Doesborch, com o título Van der nieuwer jt landstscap... , onde aparecem índios
e índias nuas, com longas cabeleiras, empunhando arcos e em que, em uma das
xilogravuras, aparece um selvagem tendo incrustada na face a metara de que vários
cronistas dão notícia; datadas de 1509, há duas edições ilustradas com cenas de
antropofagia: uma do mesmo editor holandês e outra de Estrasburgo.
PENAS DE íNDlO:A REPRESENTAÇÃO DO " BRASILEIRO" NA ARTE 309

2.5 Talvez a presença dos "papagaios selvagens" no Inferno, para


usarmos a expressão de Thevet, tenha, de faclo, como matri z, a descrição
de uma cena de antropofagia, pois este franciscano francês, o colono Pêro
de Magalhães Gândavo, o jesuíta Simão de Vasconcelos e Jean de Léry,
associam sempre a indumentária à maneira dos pássaros ao encanegado de
matar o prisioneiro nesta prática rituapo. Mas o intertexto do painel do
MNAA não será, possivelmente, a carta de Vespúcio: o que O piloto
florentino descreve é uma cena que obedece a outro Formulário que não o
guerreiro, tal vez uma c ilada.
Nosso olhar vê ainda outras direcções: o índio bom e o índio mau são
faces da mesma lente cri stã e não uma sequência de visões, na qual o
selvagem seja encarado a princípio com simpatia e, depois, como "símbolo
do Mal", apontando para uma mudança súbita na representação (cr. Makrl,
1995: 421). A própria Ca rta de Caminha, ao dizer que os habitantes da nova
terra não tinham crença alguma, embora narrasse episódios em que parecia
ao escrivão desejarem cristianizar-se, dava margem a uma dupla
interpretação. Eles eram "gente de tal inocência", mas também "gente
bestial e de pouco saber" .

JOAproveitamos para lranscrever Gândavo, uma vez que a palavra dos outros j á
fi gura neste tex to : "E aqucll e que está deputado pera ho matar he hum dos mais valentes
e honrados da terra, a quem por favor e premi ncncia de honra concedem este officio. O
qual se empena primeiro per todo o corpo com pcnna de papagaios e de outras aves de
várias cores." (Gândavo, 1964: 63]. Léry re fere ainda a mesma roupagem também para
a guerra.
310 MARIA APARECIDA RIBEIRO

Por outro lado, não vemos propriamente demónios nas figuras vestidas
de penas deste retábulo. Lembram antes a Morte: assim induzem o rosto da
que está de frente, a trompa que tem nas mãos para chamar os que devem
comparecer à sua presença, o material de escrita posto ao seu lado direito,
insinuando uma listagem das culpas a expiar e reflexo, porventura, do
"livro-caixa" do Juízo Final de que fala o famoso hino medieval Dies [rae,
ao qual não faltam a figura da morte e a tuba. 31 • Na Morte acaba o humano,
o que coloca, aparentemente, na mesma condição todos aqueles que não
habitam este mund032 •
Ora anjos e demónios não têm natureza humana nem divina: são
intermediários, separados em funções pela sua obediência ou a sua rebeldia
aDeus. Os índios nem sempre foram tomados como homens pelos europeus:
houve quem falasse em monstros, e à observação de Damião de Góis, já
citada, poderiam ser acrescentadas algumas outras. Durante todo o século
XVI muitas foram as discussões e teorias sobre a origem dos índios,
algumas das quais podem ter tido ressonância na concepção do painel do
MNAA. Paracelso, em 1520, pensava nos índios como pertencentes à
classe das criaturas semelhantes aos homens, como as ninfas e os gnomos,
mas não dotados de alma. Em 1517, Johannes Reuchlin (De arte cabalística)

31Recordemos o trecho:
Dia de ira, aquele dia
que tudo em cinzas fará,
diz David e a Sibila.
Que temor há-de então ser
Quando o Juiz vier
Julgar tudo com rigor?
O som forte da trombeta
Entre os jazigos dos mortos
Junto ao trono os levará.
Todo o mundo há-de pasmar
Quando a criatura se erguer
Para responder ao Juiz.
Um livro será trazido
No qual tudo está contido
Por onde há-de ser julgado o mundo. (Lefebvre, 1951: 1180-1181)
32Markl (1993: 26) chama a atenção para essa igualdade, embora identifique a
figura também como diabo e ligue essa noção de igualdade aos Descobrimentos, uma
vez que, perante o mar insondado e os outros perigos, os homens se nivelam social-
mente.
PENAS DE ÍNDIO:A REPRESENTAÇÃO DO "BRASILEIRO" NA ARTE 311

falava em dois pais da humanidade: um dos europeus e outro dos índios.


Ideias semelhantes seriam defendidas por Zwinglio (Christianae fidei
brevis et clara expositio, 1536). O papa Paulo III, em bula de 1537 - a
Sublimis Deus - , reconheceu os índios como homens verdadeiros, criados
à semelhança de Deus e, portanto, merecedores da catequese. Os espanhóis,
no entanto, no 10 Concílio do México, em 1555, continuavam a discutir a
necessidade de tomá-los homens antes de os baptizar. Nesse mesmo ano,
Sepúlveda e Bartolomeu de Las Casas discutiam o tratamento a dar aos
índios. Possivelmente para sanar problemas semelhantes entre os
missionários do Brasil, o Padre Manuel da Nóbrega, apresenta no Diálogo
sobre a Conversão do Gentio (1556-1557), destinado aos próprios membros
da Companhia de Jesus, uma discussão: enquanto Gonçalo Álvares informa
que "pessoas mui avisadas" não têm para si que os índios sejam homens,
Mateus Nogueira, uma espécie de porta-voz do autor, contrapõe, defendendo
a catequese, que a alma de um índio e a do Papa têm a mesma natureza (cf.
Nóbrega, 1955: 227,233-234).
É verdade que a proximidade de ideias conduz muitas vezes a uma
intertextualidade, a uma contaminação entre morte, demónios e anjos,
como, por exemplo, nos autos das Barcas, de Gil Vicente, onde os
barqueiros - e aí poder-se-ia lembrar a figura de Caronte - são anjos ou
demónios. Também os textos bíblicos associam morte e demónios: Cristo
veio "a fim de destruir, pela Sua morte, aquele que tinha o império da
Morte, isto t, o Diabo" (vd. Vulg., Heb. 2, 14). Do quarto selo do Apoca-
lipse surge um cavalo esverdeado, montado porum cavaleiro cujo distintivo
é a morte: "[ ... ] e o que o montava tinha por nome Peste; seguia-o Hades.
foi-lhe dado poder sobre a quarta parte da terra, para fazer perecer pela
espada, pela fome e pelas feras da terra" (Apoc., 6, 8) Mas, apesar disso, o
painel do Museu de Arte Antiga parece distinguir funções entre os habi-
tantes das trevas: os "índios" chamam e transportam, como o barqueiro
Caronte, lembrado, aliás, na bolsa da figura que preside à cena; os demónios
(cuja representação da assexualidade acaba por ser solucionada pelo
hermafroditismo) castigam. A ideia de que o índio seja um instrumento da
justiça divina também pode estar subjacente ao texto do Inferno. Vieira, um
século depois, acusa este pensamento:

E como grande parte das injustiças do Brasil caíram desde o princípio


sobre os índios naturais da terra, ordenou a justiça divina que dos mesmos
índios juntos com os holandeses se formasse o açoite daquela tão florente
República. (Vieira, 1992: 130)

2.6 Alguns dos intertextos presentes na Adoração dos Magos e


no Inferno permanecerão num outro retábulo que, por sua vez, irá in-
corporar mais alguns motivos já existentes, além de outros, próprios
3/2 MARIA APARECIDA RIBEIRO

do seu momento histórico. Trata-se do retábulo da Sé Nova de


Coimbra.
Quem, depois de um ofício religioso, seguir com o olhar a saída do
sacerdote para a sacristia poderá, contemplando a beleza do templo,
desfrutar de prazer estético e de elevação espiritual, mas poderá também ter
aguçada a sua curiosidade. No fundo de cada lado do transepto, há um
retábulo de talha dourada e policromada dos finais do século XVII. Chama
a atenção pelas proporções, pelo desenho e pela imponência de algumas
esculturas. Composto de três corpos, um central onde se destacam as
imagens da Coroação de Nossa Senhora (lado esquerdo) e da Sagrada
Família (lado direito), possui nos corpos laterais grandes vitrinas divididas
em onze partes que guardam cada uma a sua relíquia. Encimam os
retábulos, grandes arcos também em talha dourada e policromada. Acima
deles, outro grande arco do mesmo tipo. Situad.o por cima dajanela, guarda
uma certa leveza, que lhe advém da luz solar e do fundo branco da parede.
Quem fixar detidamente este conjunto terá por certo uma surpresa: no
arco sobre a janela duas grandes figuras de índjo seguram o escudo
português. No entanto, têm asas de anjo e rabo de sereia. Dos selvagens. só
mesmo o cocar.

Na continuidade do arco, simetricamente dispostas, duas figuras


douradas (lado esquerdo do transepto) ou dois anjos (lado direito). Após
eles, em meio corpo, mais duas figuras híbridas: cocar indígena e vestimenta
PENAS DE íNDIO:A REPRESENTAÇÃO DO "BRASILEIRO" NA ARTE 313

decotada deixando ver o peito. Seguem-nas, de cada lado do arco, dois


pequenos anjos, um dos quais parece brincar com um pássaro de penas
coloridas que evoca o exotismo de além-mar. Terminam o arco, de cada
lado, outras duas figuras em meio corpo, trajando também uma veste
decotada que deixa ver o peito. mas sugerindo desta vez um tecido mais
pesado, como veludo ou brocado. Nas cabeças das que estão do lado
esquerdo do transepto, novamente o cocar; nas das do lado direito, três
plumas, à maneira dos orientais.
Baixando o olhar e observando o retábulo propriamente dito,
podem-se ver mais "índios". No cimo, dois grandes anjos seguram uma
coroa e tocam flauta; ladeiam-nos duas figuras de corpo inteiro: a efígie
parece a de anjos justiceiros, mas seguram flores, ao invés de espada; na
mão esquerda, levam um escudo, onde se vê um coração. Suas roupas
lembram veludos ou brocados. Difere, no entanto, o ornamento da cabeça
dessas figuras: as que estão sobre a talha do lado direito do transepto têm,
por detrás da cabeça, apenas três plumas, semelhantes às que usavam os
cavaleiros em seus chapéus ou os indianos nos seus turbantes;já as figuras
que ficam do lado oposto usam um cocar de penas rectas semelhante ao
dos índios brasileiros.

Mas a "decoração indígena" não termina aí: o observador atento


poderá localizar ainda quatro indiozinhos em cada um dos retábulos. Dois,
incrustados no terceiro arco, ladeiam um anjo (lado direito do transepto) ou
314 MARIA APARECIDA RIBEIRO

um indiano (lado esquerdo) e têm os ombros envolvidos por um tecido


vermelho drapejado.

Os outros dois indiozinhos encimam cada uma das vitrines-relicários.


A nudez dos seus corpos é disfarçada por uma espécie de folhagem dourada;
na cabeça, o cocar brasileiro.
Com uma observação mais
prolongada e dirigida para os altares
laterais, ainda no transepto, surgem,
sobre o altar de N. SI' de Fátima e
sobre o de N. SI' da Conceição, mais
oito índios: dois, com cocares e colares
cujos motivos variam, em cada um
dos arcos que encimam os altares, a
seguir aos anjos que seguram um
fiarão; outros dois, em meio corpo,
sustentando cada uma das colunas
laterais dos altares, têm cabelos lisos
- se comparados com o das figuras
orientais com que fazem par - ,
ostentam o tronco nu e deixam
entrever lima tanga feita de folhas.
Outras figuras orientais, aves e cachos
de uvas completam a talha.
PENAS DE íNDIO:A REPRESENTAÇÃO DO "BRAS1LE1RO" NA ARTE 3/5

Evocando a vitória dos portugueses, bem como dos índios seus


aliados, sobre os holandeses e a recente Restauração - quando o Brasil
voltou ao domínio português, o retábulo da Sé Nova lembra também as
teses proféticas do Padre António Vieira, insinuando a presença de Deus
nos desígnios portugueses (aliando evangelização e conquista, Portugal
seria o instrumento deste Quinto Império da Humanidade, depois da
Assíria, da Pérsia, da Grécia e de Roma).
Fragmentos que compõem uma alegoria barroca, os índios da Sé Nova
fazem, pois, parte de um texto em que se fala da submissão dos gentios a
Deus, mas também à Coroa: não se pode esquecer que os seres que têm asas
de anjo, cocar de índio e cauda de sereia seguram o escudo português, numa
e1ara alusão às navegações, à expansão do Império e da Fé, ideia presente
desde a carta de Caminha, que ao mesmo tempo vê "águas infindas", bons
ares e verdes arvoredos e vaticina que tudo o que for plantado na terra
descoberta dará frutos, mas também (e talvez por isso) imagina (ou deseja)
o índio "sem idolatria nem adoração", tabula rasa:

Parece· me gente de tal inocência que, se homem os entendesse e eles


a nós. seriam logo cristãos, porque eles, segundo parece, não têm, nem
entendem cm nenhuma crença.
E portanto. se os degredados, que aqui hão-de ficar aprenderem bem
a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa intenção
de Vossa Alteza, se hão·de fazer cristãos e crer em nossa santa fé, à qual
316 MARIA APARECIDA RIBEIRO

praza a Nosso Senhor que os traga, porque, certo, esta gente é boa e de boa
simplicidade. E imprimir-se-á ligeiramente neles qualquer cunho, que lhes
quiserem dar. [... ]
Alguns deles, por o sol ser grande, quando estávamos comungando,
levantaram-se, e outros estiveram e ficaram. Um deles, homem de cinquenta
ou cinquenta e cinco anos, continuou ali com aqueles que ficaram. Esse,
estando nós assim, ajuntava estes, que ali ficaram, e ainda chamava outros.
E andando assim entre eles falando, lhes acenou com o dedo para o altar e
depois apontou o dedo para o Céu, como se lhes dissesse alguma coisa de
bem; e nós assim o tomámos. (Cortesão, s.d.: 170-172).

Sem sair da ideia de submissão e rebeldia que informa a divisão dos


seres que não são nem divinos nem humanos, os anjos-índios do retábulo,
e mesmo os índios sem asas, seriam os índios submissos, cristianizados
pelos portugueses e seus aliados na defesa do território contra os outros
europeus (de que nos falam o próprio António Vieira e tantos missionários
que andaram pelo Brasil), que se oporiam aos outros índios, rebeldes,
porque não cristianizados, ou porque cristianizados por não portugueses. A
propósito, convém lembrar este trecho da Relação da Missão da Serra da
Ibiapaba:

Concluída tão felizmente esta primeira parte da sua missão, traziam os


padres por ordem que intentassem os sertões do Maranhão, que naquele
tempo estava ocupado pelos franceses, apalpando a disposição dos índios
seus confederados e vendo se os podiam inclinar à pureza da fé católica, que
entre os franceses estava mui viciada de heresias e à obediência e vassalagem
dos reis de Portugal, a quem pertenciam aquelas conquistas ( Vieira, 1992:
123-124).

Essa dupla submissão de que fala Vieira - ao catolicismo e ao rei


português - está expressa no retábulo da Sé Nova, marcada pelo artifício
barroco da dispersão e da recolha: disseminados, anjos e gentios, conhecidos
através das viagens marítimas; como síntese, os índios-anjos-sereias33 •
Vale, no entanto, assinalar a diferença entre as imagens dessa alegoria
barroca e as de outras efígies onde a ideia de submissão está presente. Sem
contar com a que é expressa na Adoração dos Magos, na qual a submissão
não é fruto de trabalho missionário, uma vez que já existia mesmo antes do

33Importa lembrar que a sereia, ser fantástico cujo sentido pode ser positivo e
negativo, aparece como motivo de um outro retábulo de Coimbra: o da Sé Velha, em
estilo manuelino, onde também figuram homens silvestres com arcos e flechas, macacos
e porcos músicos. Neste contexto, apesar de poder ter sido motivada pelos
Descobrimentos, a sereia ainda não está ligada à ideia de domínio, mas pertence à série
do maravilhoso e do fantástico que os novos mundos podem proporcionar.
PENAS DE ÍNDIO:A REPRESENTAÇÃO DO "BRASILEIRO" NA ARTE 317

aviso do anjo-estrela, pois as profecias já haviam anunciado que uma


virgem conceberia o rei dos reis, duas nos ocorrem.
A primeira é o frontispício da já mencionada carta enviada por D.
Manuel a D. Gonçalo, bispo do Porto, publicada em Nuremberga, em 1507:
os dois indígenas brasileiros seguram as armas de Portugal, mostrando a
extensão/expansão do poder do Império. A segunda está na folha de rosto
da obra de Juan Augur ou Agüero (Salamanca, 1512), baseada no que
Martín Femández de Figueiroa escreveu sobre a sua viagem ao Oriente,
entre 1505 e 1511, em naus portuguesas. Abarcando o período do vice-
reinado de D. Francisco de Almeida e a acção militar de Afonso de
Albuquerque, até a descoberta de Malaca, o autor trata também da descoberta
do caminho marítimo para as Índias. A xilogravura que acompanha o título
- Conquista delas Índias, de Pérsia y Arabia, que fizo la armada dei rey
don Manuel de portugal e delas muchas tierras [. .. ] - tem representado
um anjo com uma espada e a segurar o escudo português. Na primeira
portada, evoca-se apenas o domínio económico e político dos novos
mundos. Na segunda, predomina a ideia de subjugar os infiéis, uma vez que
é o anjo justiceiro quem segura o escudo.
No retábulo da Sé Nova, os motivos unem-se, pretendendo mostrar o
triunfo de um duplo projecto delineado desde muit0 34 • Mas, justificado pelo
facto de ser decoração de um templo jesuítico num momento em que a
evangelização já vinha dando os seus frutos, em que a Companhia actuava
em favor do gentio, o traço da infidelidade é substituído pelo do amor. As
figuras do anjo-índio e do anjo-oriental que seguram flores em vez de
espada e empunham um escudo com coração materializam um pensamento
já antigo entre os jesuítas do Brasil:

Mas, depois que os padres lhes ensinaram a cantar os mesmos


mistérios, que compuseram em versos e tons muito acomodados, viu-se
bem com quanta razão dizia o padre Nóbrega, primeiro missionário do
Brasil, que com música e harmonia de vozes se atrevia a trazer a si todos os
gentios da América (Vieira, 1992 :149).

A disseminação de aves e outros elementos da fauna e da flora nos


retábulos da Sé coimbrã, embora seja um procedimento comum e tradicional,
vem, neste caso, ligada ao motivo da fertilidade e da abundância tão caro

34São de lembrar as palavras de Caminha: "Águas são muitas; infindas. E de tal


maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas
que tem. Porém o melhor fruto, que dela se pode tirar me parece que será salvar esta
gente. E esta deve ser a principal semente que vossa alteza em ela deve lançar"
(Cortesão, s.d.: 80).
,318 MARIA APARECIDA RIBEIRO

ao barroco, e reforça nesta narrativa a imagem da submissão económica


também presente nesta alegoria.

2.7. Ligado sempre a contextos religiosos apareceu até aqui o índio.


Mas como entender a sua presença na Sala dos Capelos da Universidade de
Coimbra?
No tecto executado por Jacinto Pereira da Costa, em 1655, por ordem
do reitor D. Manuel Saldanha, e que Vítor Serrão (1992: 113-115) integra
no "brutesco proto-barroco", lá está ele, fazendo parte de, pelo menos dois,
entre os vinte e sete diferentes motivos dos cento e setenta e dois caixotões
decorativos 35 • Num, saindo de uma espécie de flor que lhe serve de tanga
e que se prolonga em folhagens, encimadas por duas lagartas, uma índia (é
importante assinalar que se trata de uma figura feminina) sustenta um vaso
sobre a cabeça ornada com um cocar. Noutro, duas figuras aladas, vestidas
de folhas, colocadas frente a frente, também usam uma espécie de canitar
que sustenta uma garça bicéfala cujos pescoços aparecem entrançados. Os
dois "índios" ladeiam uma cesta de frutas e têm por sobre a cabeça duas
grandes borboletas. Três pequenas borboletas completam a pintura do
caixotão. Poder-se-ia ainda ver uma máscara de índio num terceiro quadro:
identificada por uma espécie de ornamento de penas na cabeça, dotada de
asas, sustenta folhagens sobre as quais estão pousadas duas aves do género
da cegonha ou da garça, com minhocas, lagartas ou cordões enrolados nos
bicos.
Os motivos da borboleta, da lagarta, das aves, da folhagem, dos cestos
repetem-se sem cessar. São vasos e açafates com frutas, são papagaios,
pavões, perus, flores. A obsessão barroca de não deixar vago um espaço
preenche todos o claros e acrescenta ainda caracóis. Uma homenagem às
luxuriantes flora e fauna do Novo Mundo? Alguns seres mitológicos
confirmariam esta interpretação, acrescentando-lhe os perigos da conquista
de novas terras: há demónio, sereias, harpias, dragões.
No entanto, duas outras figuras nos levam a pensar que os motivos
clássicos do medo, da morte, do inferno não estão aí apenas como referência
ao poder terreno português: a coruja, sempre ligada à sabedoria, e, seguros
pelas sereias, espelhos, que aludem à reflexão, ao autoconhecimento.
Afinal, trata-se da Sala dos Capelos da Universidade de Coimbra. O espírito
será, pois, o centro desta grande alegoria. Assim podem ser lidas as figuras

350S vinte e sete motivos decorativos repetem-se, de forma simétrica,


correspondendo a cada imagem (pintada em cinza sobre fundo branco) o seu negativo
(em ouro sobre fundo cinza). Esta disposição especularperrnite dividir o tecto em quatro
partes iguais, ficando cada figura exactamente em frente ao seu duplo.
PENAS DE ÍNDIO:A REPRESENTAÇÃO DO "BRASILEIRO" NA ARTE 319

bicéfalas que remetem para o génio inventivo e para a destruição; a fénix


e o caracol e a sua capacidade de regeneração; o avestruz e o seu olhar que
vê à distância, bem como a sua qualidade de vigilante; o pavão, símbolo da
beleza, da transmutação, e da imortalidade, a garça com seu bico comprido
lembrando a curiosidade e o gosto do saber; a borboleta e as suas
metamorfoses. Assim pode ser interpretada a predominância de figuras
femininas - algumas de seios fartos e ventre desenvolvido, outras, à
maneira das canéforas, segurando açafates com frutos - que, somadas aos
vasos, símbolos de fertilidade, e aos seres hermafroditas, sugerem a
criação. As próprias figuras mitológicas pertencentes ao reino das trevas
passam a ser entendidas como a outra face dos elementos solares e
fecundos, muitos dos quais, como a garça, a fénix, o pavão, a borboleta e
o caracol foram incorporados pelo Cristianismo.
Nesse contexto de sabedoria, conhecimento, reflexão e seu reverso,
pode ser interpretada a inserção do peru e do papagaio (aves americanas),
assim como do índio: através da ciência foi possível o conhecimento do
Novo Mundo (e, inversamente, a descoberta do Novo Mundo franqueou
novas informações). Mas não haveria também a hipótese de vislumbrar
como intertexto a Restauração e a ideologia que a informa, já que Manuel
Saldanha, a quem Pereira da Costa teve de submeter o seu trabalho (Cf.
Correia, 1946,: 180), era um dos seus defensores? Não haveria através da
utilização de símbolos que evocam a ressurreição, de símbolos comuns à
Antiguidade e ao Cristianismo, ao poder temporal e ao poder espiritual,
uma alusão ao Quinto Império?
Seja como for, é pobre a representação do índio. Não fossem as
imagens do papagaio e do peru, as penas do cocar - elemento indiciàdor
da sua presença- teriam interpretação duvidosa.

3. Muitos podem ter sido os caminhos que levaram Vasco Fernandes


a pintar o seu mago com adornos e arma de índio brasileiro: D. Fernando
ou D. Diogo; as próprias informações que vinham da Flandres juntamente
com o comércio, a pintura e os pintores; o contacto com gravuras, literatura
de viagens, comentários ... Outros tantos podem ter sido os percursos do
autor do Inferno. O índio chegava em pessoa, como amostra do exotismo
do Novo Mundo; vinha na voz dos mareantes, nos depoimentos escritos, no
desenho de outros artistas, na palavra de quem conta um conto e aumenta
um ponto.
Mas, apesar da novidade que o contacto com os selvagens possa ter
trazido aos portugueses, ela não parece ter sido suficiente para colocá-los
em outros contextos que não os consagrados, como os da Adoração, do
Inferno, do Calvário e mesmo o da união entre coroa e fé - todos
relacionados com a submissão. Por isso, não protagonizam nem co-
320 MARIA APARECIDA RIBEIRO

protagonizam cenas. Por isso também não aparecem desenvolvendo práticas


suas ou em cenários seus.
Se os franceses, por exemplo, cujas teorias sobre a bondade natural
passam pelo selvagens brasileiros, os representaram, em 1530, em várias
situações caracterísicas da sua vida, em paineis da Igreja de S. Jacques, em
Dieppe, ou, também por essa época, os olharam como efígies dignas de
figurar em medalhões do castelo de Varengeville, ou ainda os esculpiram,
formosos e nus, rodeados de macacos e papagaios, participando do comércio
do pau-brasil, em baixos-relevos de madeira que pertenceram a uma casa
de Ruão, conhecida como ile du Brési!, e que hoje se encontram no museu
da cidade36 ; se foram capazes de incluí-los, já na segunda metade do século,
num álbum de gravuras sobre tipos nacionais, chamando-os brasileiros; se,
no século XVII, os colocaram como figura de proa de embarcações, de que
é exemplo o Solei! Royal (Museu da Marinha, Paris), a arte portuguesa
olhou-os basicamente pelo prisma religioso. E, ao fazê-lo, só lhes achou
uma característica: as penas.
Tupinambás, tupiniquins, tamoios ou carijós, oferecendo incenso ao
Menino Deus ou contracenando com pecadores e demónios, ou, ainda,
compondo com anjos e homens do Oriente uma alegoria à expansão da fé
e do império, lidos como bons ou interpretados como símbolo do mal,
caracterizaram-nos sempre as penas do cocar. Confundidos quanto à
origem americana ou oriental, índios ou indianos, figuras híbridas ou não,
habitantes da esfera celeste ou "barqueiros" das trevas, somente as penas
assinalam os índios brasileiros. Elas passaram a ser o traço distintivo entre
civilizado e gentio, entre o eu e o outro, tanto na pintura como nas artes
decorativas. Sem penas, por mais que os traços fisionórnicos possam servir
de marca, discute-se a identidade do Bom Ladrão do Calvário da Sé de
Viseu. Com penas, vêem-se índios por toda a parte.

36Há ainda que referir as miniaturas que adornam o poema francês referente à
chamada "festa brasileira em Ruão" e da qual participaram cinquenta índios tupinambás,
quando Henrique II e sua recente esposa visitaram a capital da Normandia, em Outubro
de 1550. Datado dos meados do século XVI, ele foi divulgado em 1850, por Ferdinand
Denis, no seu Une Fête Brésililienne célébrée à Rouen. Apesar de mostrar os índios
numa situação real - a festa - tanto o bibliotecário que influiu na aquisição do
pergaminho para a Biblioteca de Ruão (André Pottier) como o próprio Denis lamen-
tam que não tenha sido dedicada uma "especial estampa aos tipos brasílicos". Estes,
apesar de aparecerem como "figurinhas inteiramente nuas, pintadas a vermelho carminado
vivíssimo", simulando a defesa de uma chalupa, aparecem misturados a outras
representações, como o arco do triunfo, encimado por Apolo e pelas Musas, o rio com
o deus Neptuno e a sua corte, a passagem de Henrique II pela ponte e vista da cidade.
Denis prefere o baixo-relevo em madeira a que acima referimos. (cf. Denis, 1879:
87-89).
PENAS DE ÍNDIO:A REPRESENTAÇÃO DO "BRASILEIRO" NA ARTE 321

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