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A língua, património das nações

Falamos português, e não espanhol, francês ou romeno (outras línguas românicas), por uma série de factores que
contribuíram para a construção da nossa identidade», escreve Maria Regina Rocha, na sua coluna "A vez… ao
Português", no Diário do Alentejo, de 6 de Fevereiro de 2009.
A palavra património provém do latim, fonte privilegiada do nosso léxico. Significava, então, o conjunto de bens
pertencentes ao pater familias e, também, portanto, a herança paterna. Pater (pai) e patria (terra que pertence ao
pai) são duas das palavras latinas da família de património. O termo património é actualmente usado na acepção
de zonas, edifícios e outros bens naturais ou materiais de determinado país que são (ou devem ser) protegidos ou
valorizados, pela sua importância cultural.
Ora, entre os bens que constituem o património de um povo e de uma nação situa-se a língua, cuja realização
plena — a literatura — permite a manifestação e a divulgação dos valores estéticos e ideológicos que enformam
a sua cultura. A língua é factor de unidade e de identidade: sentimo-nos portugueses porque falamos esta língua
oriunda do latim e que sofreu uma evolução específica — diferente da das outras línguas românicas — devido a
determinadas circunstâncias históricas, mudanças sociais ou políticas, que construíram a nação portuguesa e lhe
deram a feição actual.
Falamos português, e não espanhol, francês ou romeno (outras línguas românicas), por uma série de factores que
contribuíram para a construção da nossa identidade: o diferente período de romanização, quer no que diz respeito
ao seu início, quer à duração; as diferenças dialectais dos soldados, mercadores e colonos romanos que se
instalaram nos territórios conquistados; as diferentes línguas dos povos dominados pelos romanos e que deixaram
marcas (os substratos) no novo idioma que se foi formando; o relativo isolamento geográfico entre os diversos
grupos populacionais dominados pelos Romanos (fronteiras naturais como cursos de água ou cordilheiras ou
apenas a simples extensão territorial ou a distância, dificilmente transponíveis, em tempos remotos, pelas
populações); o desenvolvimento, após a queda do Império Romano, de centros políticos autónomos, com
diversidade de cultura e de civilização e motivações para a afirmação da diferença em relação aos seus vizinhos,
normalmente inimigos latentes; os diferentes superstratos, isto é, as diferentes contribuições linguísticas que
vieram enriquecer, após a desagregação do Império Romano, cada uma das línguas românicas.
Assim, quando Portugal se constituiu como nação, com uma língua própria, esta língua tinha um corpo lexical com
uma percentagem elevadíssima de vocábulos latinos, mas outras palavras tinham, entretanto, entrado no idioma
que se ia formando: com a queda do Império Romano do Ocidente, aqui se instalam Suevos, primeiro (411),
Visigodos, depois (585 a 711), proporcionando a incorporação de superstratos germânicos, alguns deles relativos
à temática militar, como, por exemplo, aio, elmo, guardar, guerra, luva, raça, trégua. Os Árabes invadem a
Península em 711 e só saem do território que hoje é Portugal no reinado de D. Afonso III (1249).
O léxico dos romances peninsulares é invadido por palavras de origem árabe, muito mais numerosas do que as
germânicas. Esses vocábulos pertencem principalmente às áreas da alimentação (açafrão, acepipe, açorda,
açúcar, aletria...), das armas e guerra (alcácer, alcáçova, alfange, algazarra, gazua...), das ciências e cultura
(alfarrábio, algarismo, álgebra, alquimia, cifra...) e do comércio, indústria e utensílios (açougue, alcofa,
alfinete, alforge, algodão, alguidar, nora, quintal...).
Depois de formada e de se constituir como língua de uma nação, vai o português receber contributos de outras
línguas com as quais estabelece contactos. É assim que, por exemplo, a partir do século XVI, começam a aparecer
os primeiros sinais da expansão com a incorporação de palavras reveladoras das novas realidades, mentalidades,
gentes, fauna, flora e objectos com que os portugueses — e a sua língua — entram em contacto: manga, jangada,
canja (do malabar), bambu (do malaio ou indiano), zebra (do etíope ou do congolês), pagode (do
dravídico), chá (do mandarim), leque (do japonês), condor (do quíchua), chocolate (do azteca), ananás,
amendoim, mandioca (do tupi-guarani)...
Nos séculos XVI e XVII, é também o italiano que nos influencia (alerta, canalha, capricho, cartucho, charlatão,
sentinela, soneto, terceto...) e, naturalmente, o espanhol (camarada, cordilheira, fanfarrão, frente, lantejoula,
ninharia, quixotesco, sarabanda...). Neste período, o uso de latinismos era considerado prestigiante, e a sua
entrada no português é significativa (n'Os Lusíadas, por exemplo, argênteo, canoro, lácteo, lúcido, malévolo,
nítidos, trémulo, tuba).
A partir do século XVIII, entramos no período do português moderno e da influência do francês (agir,
restaurante...), a que se segue a do inglês, que perdura do século XIX até aos nossos dias, sendo notória a sua
importância actual.
A língua portuguesa ostenta, assim, traços reveladores do nosso contacto com outras línguas e povos e dos
acontecimentos que contribuíram para a construção do nosso país, cadinho de tantas culturas, herdeiro e detentor
de um património próprio e único.
Fonte
Diário do Alentejo, de 6 de fevereiro de 2009

Maria Regina Rocha

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