Você está na página 1de 142

O Espírito da Floresta Tropical

A História de um Shamã Yanomami

Mark Andrew Ritchie


Com grande afeto dedicamos este livro a
todos os alunos do Instituto Missionário
Shekinah com a finalidade de melhorar o
desempenho do estudo antropológico
missionário
INTRODUÇÃO PARA A SEGUNDA EDIÇÃO

Conheci Keleewa e seu amigo Yanomami, Sapato-Pé, há dezessete anos, nas selvas, no sul
da Venezuela. Sou o tipo de pessoa que duvida de tudo, mas eles apresentaram-me a uma
realidade em que a verdade é mais forte do que a ficção. Algo assim, é mais difícil de acreditar,
mais engraçado, e muito mais aventuroso! Sou um escritor de não-ficção, porque a ficção tem
que ser “verídica”, mas a não-ficção apenas tem que ter acontecido. Então, quando ouço alguém
dizer: “Isso não é real. Não poderia ter acontecido,” eu sei que a história tem que ser contada.
Os Yanomami é um dos povos mais misteriosos do mundo. São de baixa estatura,
raramente passam de 1,50m de altura. São velozes, fortes, e tem a agilidade de uma onça. Suas
mulheres podem carregar o equivalente ao seu próprio peso, para cima e para baixo, pelos
caminhos da selva, que me desafiam a caminhar sem carregar nada. Já os homens podem
chamar, seguir os rastros e atirar em qualquer coisa que respire na selva e que seja hostil o
bastante para matar qualquer um, menos alguém treinado para viver na mesma.
Depois da primeira visita, fiz uma entrevista com o antropólogo e médico venezuelano
Pablo Anduce, que havia trabalhado com os Yanomami e os estudado durante grande parte de sua
vida. Dr. Anduce falou-me que a melhor fonte de informação com respeito à cultura e idioma
Yanomami, e da flora Amazônica era um cidadão norte-americano criado na selva chamado Gary
Dawson. Já havia me encontrado com ele, o amigo de Sapato-Pé, aquele que os índios chamam
de keleewa. “Ele conhece a língua e a cultura Yanomami melhor do que qualquer um,” Anduce
me disse. Naquele tempo, Dawson traduziu uma reportagem especial para a revista National
Geographic sobre os Yanomami.
Na década seguinte, retornei ao Amazonas, muitas vezes, para encontrar-me com Dr.
Anduce. O seu apreço por keleewa provou ser inestimável. Durante noites enluaradas nas praias,
com linhas de pesca na água, vagando pelos largos rios em canoas, ou simplesmente relaxando ao
redor das fogueiras, eu escutava, com curiosidade cada vez maior, as histórias que compõem o
drama da vida na selva. Eles desvendaram a cultura Yanomami, revelando-me algo tão
desconhecido e surpreendente.
Todas as histórias que você está prestes a ler foram contadas a mim, pessoalmente,
durante um período de treze anos, em minhas seis visitas ao Amazonas. Nada encontrado aqui é
ficção, nem mesmo exagero. Tendo visto os índios repetidamente explorados, keleewa concordou
em ser o tradutor e o investigador, gratuitamente, do projeto; sendo que todos os honorários
fossem dados aos índios.
Pesquisar uma cultura conhecida por sua violência é uma tarefa quase impossível, quando
a mesma, tem um tabu poderoso no que diz respeito a mencionar o nome de uma pessoa morta.
Eu deveria ter contado o número de vezes que ouvi, "simplesmente não gosto de falar sobre isto,
porque me traz muita dor,” ou o número de vezes que Keleewa disse, “Bem, não posso mencionar
o nome dela, pois está morta.”
Realmente, o mais impressionante nestas histórias é a quantidade de segredos que Homem
da Selva e seu povo dispuseram-se a revelar. O crédito disto pertence a keleewa. Sua vida foi
caracterizada pelo cuidado com o povo Yanomami, que confiaram a ele histórias, que seriam
ouvidas apenas por um amigo íntimo e confiável, ou sussurradas nos cantos mais escuros dos
shabonos. Se não fosse o relacionamento especial entre keleewa e o povo Yanomami, estas
histórias nunca teriam sido contadas.
Para representar a história com autenticidade, tenho contado-a através dos olhos de
Homem da Selva, um dos seus líderes mais carismáticos. Os leitores podem ficar aborrecidos,
possivelmente até desconcertados, pela habilidade deste xamã de penetrar em nossas mentes, e
em certas ocasiões, fazendo parecer como se outra pessoa assumisse o papel de narrador.

3
Repetidas vezes perguntei a Homem da Selva, “Como sabia disso, se não estava lá e nem falara
com ele?”
Ele sempre respondia da mesma maneira: “Eu simplesmente sabia,” uma resposta que não
apresenta nenhuma confusão aos povos da selva. A minha mente ocidental, claro, exigia algo que
comprovasse, por isso conferia tudo o que ele dizia com outras fontes. Mas, nunca presenciei
Homem da Selva equivocado com algo que ele “simplesmente sabia.”
Tem sido dito, freqüentemente, que nós do mundo “civilizado” podemos aprender com os
povos primitivos, da mesma maneira, que eles podem aprender conosco. Sempre achei este
pensamento enganoso e ingênuo. Mas, depois de ter viajando pelos EUA com keleewa e Sapato-
Pé o meu entendimento agora é bem diferente. Sapato-Pé e keleewa quebraram estereótipos, até
mesmo os próprios. A aceitação que tem recebido varia amplamente. Alguns se recusam a ouvi-
los. Outros dizem que eles moram no Éden. Sapato-Pé sabe que não é bem assim.
O meu alvo é de entregá-lo a um historiador diversificado, Homem da Selva, e permitir-lhe
julgar por si mesmo.

Mark Andrew Ritchie

Um macaco howashi saltava no topo de uma árvore, agarrava-se à casca macia de um


galho, e pulava para apanhar umas frutinhas bem lá em cima. Estava tão alto, na claridade, que
não podia ver o chão úmido da selva, lá em baixo. Um tucano assobiou. O macaco virou sua
cabeça, tagarelou, agarrou as frutinhas, sentou-se num galho, e começou a encher suas
bochechas. Ele olhou através das folhas. As copas das árvores pareciam estender-se
infinitamente, com todas as tonalidades de verde refletidas na claridade quente da manhã. Do seu
mundo de paz e beleza, não conseguia ver a clareira que ficava duas voltas rio abaixo, no
Padamo. Nesta clareira, ficava uma aldeia chamada Mel.
A fumaça das fogueiras subia da aldeia. Telhados de palha seguravam grandes rodelas de
mandioca branca, que secavam ao sol quente da manhã. Mas, nenhuma aldeia Yanomami é tão
calma quanto parece.

4
PREFÁCIO: 1982

UMA LONGA HISTÓRIA ANTECIPA CADA BRIGA

Os guerreiros da Aldeia Mel estavam numa fila que formava uma meia-lua. O sol secava a
grama úmida da manhã, mas não tão rápido como eles precisavam. Os guerreiros da Aldeia Boca
também estavam em formato de meia-lua e os encaravam. Alguns usavam roupas que haviam
ganhado dos nabas, homens brancos que falavam como bebês. O resto usava tangas. Cada
homem no círculo segurava um porrete feito de uma madeira dura de palmeira. Podiam-se ver as
rugas em cada testa, na luz brilhante do sol.
Cabeludo poderia golpear um homem até a morte com seu porrete, mas levaria muito
tempo e esforço. Por isso, ele ficou um pouco para o lado, fora do círculo. Esta realmente não era
a sua briga. Se ele se envolvesse, não usaria porrete. Usaria a arma que estava em suas mãos, e
que o fazia tão famoso e temido.
Ele parecia tranqüilo, segurando seu arco e flechas. Era uma aparência que ele havia
aperfeiçoado através de muitas estações: braços cruzados sobre sua arma e os dedos sobre sua
boca. A mão era a parte mais importante. Pois ela escondia o grande chumaço de tabaco que
ressaltava seu lábio inferior e impedia que alguém visse qualquer movimento. O inimigo nunca
perceberia o seu medo. Mas, eu sabia o que Cabeludo sentia por dentro; ele sentia uma grande
excitação começando a crescer, um sentimento que eu conhecia bem. Num instante, esta briga
partiria de porretes para flechas. E este sentimento deixava o seu corpo preparado para a ação.
Suas longas flechas estendiam-se do chão aos seus pés, através de seus braços cruzados. As
pontas afiadas estavam em frente aos seus olhos. Ele ouvia o barulho de uma guerra que estava
prestes a começar. Entre duas das pontas, pintadas de vermelho com o veneno, ele via Osso da
Perna, talvez o melhor guerreiro do lado inimigo. Ele será o alvo de uma destas pontas, se tiver
que usá-las, pensou Cabeludo. Os olhos de Cabeludo lacrimejavam um pouco por causa da
fumaça dos fogos da manhã. Ele queria esfregá-los, mas não tiraria aquela mão da boca.
Demonstraria o seu medo. E agora não era hora de fazer nenhum movimento desnecessário.
Ao lado de Cabeludo estava o líder da Aldeia Mel, Sapato-Pé. Este líder não se parecia com
os outros, pois suas mãos estavam vazias. Nenhum porrete. Nenhum arco. Nenhuma flecha.
Nenhum chumaço de tabaco em seu lábio inferior. Na terra dos índios Yanomami, Sapato-Pé era
tido como um mistério. A amizade com os brancos tinha feito algo estranho com ele. Ele era um
guerreiro valente e um grande caçador. Até mesmo eu, seu parente e professor, não o entendia.
Agora, ele tentava parar as brigas. Ele havia feito tudo o que podia para parar esta, mas a Aldeia
Boca não pararia. Mas ele sabia, exatamente, onde estavam seu arco e flechas, bem mais perto do
que alguém imaginava.
Rabo de Preguiça também ficou fora da linha dos guerreiros. Como Cabeludo, ele segurava
seu arco e flechas e assistia. Ao contrário de Cabeludo, ele nunca tinha matado um homem.
Nenhum Yanomami se gabaria por nunca ter matado um homem. Ao lado de Rabo de Preguiça
estava seu amigo, de toda vida, keleewa que havia persuadido-o a evitar estas brigas, e ele
evitava. Keleewa falava igual a um Yanomami, mas era um naba; branco como o resto deles.
Alguns outros estavam em lugares importantes, para fora e atrás das duas linhas de
guerreiros. Nada de arcos e flechas, apenas porretes. Eles apenas observariam, até que
precisassem de arcos. Mas ninguém podia observar como Cabeludo. Ele via cada guerreiro do
outro lado, especialmente os que estavam atrás da linha, aqueles que ficavam só observando. Eles
posicionavam-se iguais a Cabeludo, braços cruzados sobre o peito, arcos e flechas embaixo dos
5
braços, uma mão sobre a boca, tão quietos como árvores quando não tem vento. Alguns haviam
até removido os grandes chumaços de tabaco e entregado-os as suas mulheres. Cabeludo
observava. Se um destes homens fizesse algum movimento, Cabeludo se prepararia para atirar.

Todas as mulheres da Aldeia Mel, obviamente, estavam lá. Elas não perderiam isto. As
mulheres sempre se aproximavam das brigas. Elas entravam livremente para ajudar os feridos,
carregar os mortos, e segurar as armas dos seus homens. Às vezes ficavam quietas, mas
geralmente não. Quando estava na hora de lançar insultos, cada guerreiro contava com a ajuda de
uma mulher que, freqüentemente, sabia uma informação íntima e humilhante do inimigo.
Uma mulher, Deemeoma, conhecia todos os homens desta briga. Agora, ela estava tão
velha que seus filhos tinham filhos. Ela conhecia a longa história que antecedia esta briga. Ela a
conhecia desde o começo, e cada homem na briga, de ambos os lados. Ela os conhecia a mais
tempo e melhor do que qualquer um.
Todos os outros guerreiros faziam parte das linhas que se enfrentariam. Todos desejavam
saber quem seria o primeiro a se colocar no meio do círculo e brigar. Os homens da Aldeia Mel não
seriam os primeiros. Embora eles tivessem mais guerreiros, não queriam lutar. Os guerreiros da
Aldeia Boca haviam vindo bater nos homens da Aldeia Mel e roubar algumas das suas mulheres.
A Aldeia Boca enviou um dos seus melhores guerreiros ao centro, carregando um porrete
enorme e comprido. Não-Cresce, Vesgo, Pé-Rijo, Cabeça-Grande, Viagem, Homem-Engraçado, e
os outros guerreiros da Aldeia Mel se encararam. Quem seria o primeiro a defender a Aldeia Mel?
Um pequeno vento passou, mas ninguém notou.
Não-Cresce deu um passo. Sempre, quando era criança, ficava tão doente que todos
haviam dito que ele nunca cresceria. Até agora, Não-Cresce não era um guerreiro experiente. Que
chance ele teria contra um guerreiro de verdade? Todos da Aldeia Boca explodiram em risadas
quando viram que seu porrete era apenas um pouco maior do que o seu braço. “Olhem para
aquela pequena vara!” As pessoas da Aldeia Boca debochavam, enquanto Não-Cresce caminhava
para o centro. O porrete do guerreiro da Aldeia Boca era duas ou três maior do que o de Não-
Cresce.
Mas Não-Cresce era rápido com o seu porrete. Enquanto o guerreiro da Aldeia Boca
levantava o seu porrete comprido para dar um golpe feroz, Não-Cresce o golpeara cinco vezes na
cabeça. Sangue esguichava. O guerreiro da Aldeia Boca voltou correndo para a sua formação de
meia-lua para deixar que outro tentasse.
Cabeludo observava Lança e seu filho, Homem de Frutas que estavam entre os guerreiros,
do lado da Aldeia Boca. Elas eram o motivo desta briga. Eles são nossos amigos, ele pensou, mas
por não deixarmos que a família deles leve a menina que queriam, agora todos da aldeia queriam
lutar contra nós. Lança ficou atrás da linha da Aldeia Boca com seu amigo, Boca-Pequena, e este
apenas ficara observando, como Cabeludo.
Outro guerreiro da Aldeia Boca andou até o centro onde se encontrou com Homem-
Engraçado, que era da Aldeia Mel. Homem-Engraçado também segurava um porrete pequeno e os
guerreiros da Aldeia Boca riram novamente, mas não tão alto. Homem-Engraçado fazia com que
tudo ficasse engraçado. Ele olhava para o pequeno porrete na sua mão e ria também. Ele guiava
bem uma canoa e o motor no rio, fazia a maioria das viagens para a Aldeia Mel, mas nunca havia
lutado. Participando das risadas do inimigo, ele desejava saber se hoje finalmente seria o dia em
que levaria os primeiros golpes na cabeça.
Tudo ficou quieto. Homem-Engraçado piscou seus olhos para limpá-los do ardor da
fumaça, sentiu a textura da madeira em sua mão ao apertá-la, e observava os olhos do inimigo
que se aproximavam dele. Ele se agachou para evitar aquela primeira paulada forte, usou seu
pequeno porrete igual a Não-Cresce, e deixou a cabeça do guerreiro da Aldeia Boca
ensangüentada.

6
Os homens da Aldeia Mel nunca caminhavam para o centro primeiro. Eles apenas
defendiam suas posições cada vez que um guerreiro se apresentava da outra meia-lua. Os seus
curtos porretes eram eficazes de perto e enviavam cada guerreiro de volta à linha da sua aldeia
com a cabeça ensangüentada.
Finalmente, chegou a vez de Osso da Perna. Todos sabiam a respeito de Osso da Perna, o
melhor guerreiro da Aldeia Boca. Ele caminhou até o centro e esperou.
Viagem, o guerreiro mais jovem, se aproximou lentamente. Havia uma menina na Aldeia
Mel que Viagem a guardava em seu coração. Ela era o verdadeiro motivo por trás desta briga.
Agora, Cabeludo ficara mais atento, porque ele era parente de Viagem, e este era só um
guerreiro novato. Cabeludo havia ensinado Viagem a lutar, e ele desejava muito que aquela
menina fosse dele. Tanto Viagem quanto Cabeludo eram de uma aldeia amiga da Aldeia Mel, e
Cabeludo sabia o quanto precisavam de mais meninas para ajudar a aldeia a crescer. Viagem já
havia levado um golpe na cabeça, alguns dias antes, de um jovem da Aldeia Boca que a queria.
Agora você entende que sempre há muitas pequenas disputas que se dão em uma grande
briga como esta. Uma longa história antecede cada briga.
As pessoas da Aldeia Boca riram. “Ele é apenas um menino!” eles gritaram. Eles tinham
razão. Ele nunca havia lutado.
Atrás da linha da Aldeia Boca, o pai de Osso da Perna, Boca-Pequena, assistia enquanto
seu filho ficava esperando que Viagem se aproximasse. Ele sabia que seu filho era um grande
guerreiro.
Cabeludo observava Boca-Pequena.
Cabeludo descruzou os braços. Seu polegar puxou a corda do arco tão suavemente que
apenas ele pôde ouvir o som. Estava apertado. Com as pontas dos seus dedos sentiu o cabo liso
da sua flecha. Ele estava preparado. Se Osso da Perna fizer algo injusto: Vooom! ele pensou.
“Vooom” era o som da flecha envenenada de Cabeludo partindo do seu arco para matar Osso da
Perna.
Viagem sentia a grama úmida debaixo dos seus dedos do pé ao aproximar-se do centro
para enfrentar Osso da Perna. Ele teria que ser rápido para evitar aquele porrete grande. Se a
grama estivesse mais seca, seria mais fácil evitar a queda. E se ele caísse, nunca poderia se livrar
do seu nome.
Viagem não ouviu o tagarelar do howashi, ao longe, nem o assobiar do tucano, nem a
correnteza lenta do rio ao encontrar o barranco. Ele não ouvia nada. Ele via apenas o seu alvo, os
olhos de Osso da Perna, e o porrete que ele balançava. Se eles soubessem que o golpe que eu
levei há alguns dias era o meu primeiro, pensou Viagem, eles realmente estariam rindo. Mas
aquele golpe veio de um menino como eu. Todos sabiam que Osso da Perna usava o seu porrete
para matar. Se aquele porrete me golpear apenas uma vez, pensou Viagem, estarei acabado.
O porrete de Osso da Perna era tão grande que Viagem facilmente o evitou. Antes que
Osso da Perna pudesse se preparar para dar outro golpe, Viagem saltou e o acertou com vários na
cabeça. Sangue esguichava e escorria pelo rosto de Osso da Perna.
Todos da Aldeia Boca observavam enquanto Osso da Perna voltava para a linha deles. Ele
não foi apenas afastado, foi derrotado terrivelmente. O seu melhor guerreiro acabava de ser
humilhado por um menino sem nenhum reconhecimento como lutador.
As pessoas da Aldeia Boca haviam vindo para bater nas cabeças destes inimigos covardes
até que eles tivessem que fugir, mas eles não mostravam sinal de terem lutado, enquanto os
guerreiros da Aldeia Boca estavam feridos e ensangüentados. Era uma desgraça que não podiam
agüentar. Osso da Perna voltou às mulheres. Se eu não posso tirar o sangue de um guerreiro, ele
falou consigo, pelo menos conseguirei algo de alguém. Sua esposa deu-lhe um porrete pequeno.

7
Ele foi até uma mulher velha, que estava sentada no chão, vigiando, levantou o porrete e a
golpeou no lado da cabeça. O porrete abriu o seu couro cabeludo até o osso.
Fora a gota d’água; e foi assim que tudo começou, e aconteceu num estalo da corda de um
arco.
Osso da Perna acabara de golpear a mãe de Rabo de Preguiça. Na terra dos Yanomami, a
proteção do fraco é uma obrigação familiar. Como o seu líder da Aldeia Mel, Rabo de Preguiça
havia sido instruído com os novos costumes estranhos de paz. Mas, quando o golpe cortara o
couro cabeludo de sua mãe e o abrira até o osso, tudo o que Rabo de Preguiça havia aprendido,
toda a influência do naba, fora esquecida. No momento seguinte, ele reagiria como um filho.
Ninguém foi suficientemente rápido para impedi-lo, nem mesmo seu amigo branco, ao seu
lado. Antes que Rabo de Preguiça pensasse no que fazer, sua flecha voara diretamente para o
ombro de Osso da Perna. Ninguém golpeia uma mulher velha sem começar uma guerra.
Cabeludo apontou seu arco para Osso da Perna. Mas o líder misterioso da Aldeia Mel já
estava no centro do grupo gritando. “Flechas não! Flechas não!” E agora as suas mãos já não
estavam vazias, seu arco e flechas haviam, instantaneamente, aparecido. Ele não podia ficar no
centro de um grupo de assassinos sem uma arma. De repente, todos os porretes desapareceram
e foram substituídos por arcos e flechas.
Mas um líder pacificador gritando “flechas não,” nunca pararia uma guerra depois de uma
morte. O arco de Rabo de Preguiça havia sido preparado e a flecha lançada o levaria de volta às
suas raízes. Um caçador experiente sabe que a flecha atirada do seu arco é para atingir o seu
alvo. E Rabo de Preguiça sabia que o seu tiro fora perfeito.
No calor do sol da manhã, Rabo de Preguiça viu que a sua vida de paz havia terminado.
Sua aldeia, conduzida por um chefe misterioso e pacificador, voltaria, finalmente, a uma guerrear.
Mas lembre-se. Eu disse que uma longa história antecede cada briga. E esta história começou
antes do nascimento de Rabo de Preguiça. Na terra dos Yanomami existem poucos segredos.
Nenhum pode ser escondido de mim. Porque os meus espíritos vêem tudo e contam-me o que
preciso saber.
Eu sou um homem do mundo dos espíritos, somos chamados de “xamãs”. O xamã quase
sempre é o líder da sua aldeia. Se ele é um bom xamã, quero dizer, que ele poderá evitar os
espíritos maus e conseguir os bons, conduzir sua aldeia a uma boa caça, instruí-los a quando e
onde plantar, com quem brigar e todas as coisas que os tornarão uma grande aldeia.
A longa história que antecede a briga no gramado da Aldeia Mel, é a história que conheço,
melhor do que qualquer um, pois eu fazia parte daquilo que fez com que isto acontecesse.
Deemeoma e Lança também.

8
O COMEÇO: APROXIMADAMENTE 1950

VERDADE DIVIDIDA

CAPÍTULO 1

NUNCA É BONITO ONDE VOCÊ NÃO É DESEJADO

Nós, Yanomami, só contamos nossas histórias. Nunca escrevemos nossas palavras no


papel, como você naba. As palavras que estou dizendo, se as estiver vendo no papel, você deve
ser um naba. E por ser um naba, há muitas coisas que tenho que explicar para que entenda a
história do meu povo.
Você precisa saber que eu tenho muitos nomes, todos nós, Yanomami temos. Mas quase
nunca os falamos. Se você fosse um Yanomami, eu não lhe contaria nenhum de meus nomes e
você nem me perguntaria. Todos os meus amigos conhecem os meus nomes, mas eles nunca
falam em voz alta. Mas, para contar uma história, a um naba, tenho que usar os nossos nomes.
Um de meus nomes é Homem da Selva. Pronto, falei. Por estar longe, na terra dos nabas, você
não me ouviu dizer isso; só verá no papel. Para contar-lhe a minha história, terei que levá-lo de
volta ao passado. Quando Deemeoma era uma pequena menina. Mas, até mesmo antes de contar
sobre Deemeoma, você precisa entender o mundo dos espíritos. Nenhuma história do meu povo
pode ser entendida sem conhecer o mundo dos espíritos. E para falar-lhe sobre os espíritos, terei
que levá-lo de volta ao meu passado, quando eu era um pequeno menino.

Ninguém deveria estar sozinho na selva, especialmente uma criança. Mas eu estava, e me
sentia bem. Um pequeno tronco atravessava o caminho. Em vez de passar por cima, pisei nele. E
foi assim que aconteceu. O tronco disse, “Por que você está pisando em mim? Desça de mim!”
Tremi de medo e corri para casa, até minha mãe.
Quando eu caçava, mesmo pequeno, os animais aproximavam-se de mim e diziam, “Vá,
atire em mim.” Corria para casa, morto de medo. Mas minha mãe falava-me que eu era especial e
não deveria ter medo deles.
Depois que me tornei um homem, tudo na selva falava comigo. Quando caminhava no
trilho e empurrava as folhas para o lado, elas diziam: “Por que você está nos empurrando para
fora do caminho? O que fizemos para nos tratar assim?” Então, jogava meu arco e flechas no chão
e corria para casa.
“Estas vozes que você ouve,” minha mãe dizia, “não são vozes de animais nem de
plantas. Você sabe que as plantas não podem falar. São as vozes dos espíritos que querem você.
Eles querem ajudá-lo. Não tenha medo deles. Você é especial e será um grande homem no mundo
dos espíritos.”
“Mas não treinei para ser um xamã,” eu disse. “Não tomei ebene nem pedi aos espíritos
para virem a mim, como fazem todos os xamãs.”
“Isso não importa. Os espíritos já o escolheram. E estão vindo a você, embora não
decidisse ser um xamã. Este é mesmo o seu chamado, ainda que não goste.”
“Não é que não goste,” eu disse. “Eu tenho medo.”

9
“Não há nada para temer. Eles são maravilhosos. Conforme aprende a controlá-los,
deixarão de assustá-lo.”
“E se eu possuir os espíritos errados? E se possuir aqueles espíritos errados que ouvi falar?”
Ela disse, “não se preocupe agora com eles. Você poderá manter os bons e depois se
libertar dos maus.”
Na manhã seguinte, sai cedo e quando estava a ponto de atirar numa oncinha, o gato
disse, “não atire em mim. Por que está tentando me acertar?” Joguei meu arco e flechas no chão
e corri para casa. Depois, peguei minhas coisas e saí com um grupo de amigos. Os espíritos nunca
falavam comigo quando as pessoas estavam por perto. Quando nos separamos para caçar, vi um
tucano grande e quis atirar nele. O tucano não tem muita carne, mas o bico dele é grande e
bonito e amamos as suas penas. Quando puxei meu arco, ele fingiu ter sido atingido e caiu bem
na minha frente. Então, transformou-se em um rato e disse, “Por que você está sempre correndo
de mim? Por que não fica comigo?"
“Minha mãe tinha razão”, pensei; “não é um rato tentando falar comigo. É um espírito que
quer me conhecer. Mas ainda tinha medo e corri.”
“Da próxima vez que eles falarem com você, siga-os,” minha mãe disse. Tudo isso era
muito assustador. Um dia, um pássaro assobiou para mim e parecia exatamente como um assobio
de uma pessoa. Havia outros pássaros que falavam comigo. Como eram apenas pássaros, decidi
segui-los. Eles me conduziram à selva, para lugares onde, por toda parte, eu ouvia mais espíritos
me chamando. Isto aconteceu muitas vezes, mas sempre temia escutá-los e segui-los.
Desta vez, quando me aproximei das vozes, ficou bem claro que havia muitos espíritos. Eu
tinha mais medo do que imaginava. Estava fora do trilho e tão afastado na selva, que sabia que
nunca conseguiria voltar. Subi num tronco grande. Quando deslizei para o outro lado, vi uma
colméia enorme e os espíritos saindo dela, mais espíritos do que eu imaginava que existissem.
Todos vieram a mim e disseram que ficasse parado, e me picaram. Eu estava a ponto de correr,
mas todos continuaram falando, “Fique parado! Não corra! Não nos deixe! Nós o protegeremos!”
Eles continuaram me picando até doer tanto a ponto de não sentir mais nada. Era
impossível dizer se eu estava sendo picado por abelhas verdadeiras ou por espíritos. Mas não
importava.
De repente, olhei para cima e a selva ficou linda, como nenhum Yanomami jamais vira. Os
Yanomami mais bonitos do mundo vieram até mim. Os guerreiros eram perfeitos. Eram altos e
seus músculos salientes. E as mulheres! Elas eram sem defeito. O cabelo era longo, preto e
brilhante, e seus corpos lindos e perfeitos. Nunca pensei que uma mulher pudesse me fazer tão
feliz, quanto me sentia, apenas olhando para elas. Todas me queriam.
Havia mulheres e meninas rindo e um dos espíritos disse aos outros, “Saiam daqui. Vocês
fedem.” Eu não podia dizer de onde vinham essas vozes , mas estava claro que elas estavam
lutando para atrair a minha atenção. Quando vi o quanto elas me queriam, a dor das picadas
transformou-se num sentimento maravilhoso.
Elas me levaram ao espírito de Omawa, o líder de todos os espíritos. Estar perto dele era a
melhor coisa que poderia acontecer a um xamã. Ele era tão bonito e tinha o aroma da flor mais
linda da selva. Nem mesmo ebene poderia dar tal emoção. Levaram-me ela selva, e voltei ao
passado. Vi todas as coisas que aconteceram, e que havia ouvido da minha mãe e das pessoas
antigas.
Vi Omawa vir ao povo Yanomami para nos ajudar a nos tornarmos mais ferozes e as mais
belas pessoas do mundo. Eu o vi ensinar a um jovem xamã como triturar os ossos dos parentes
dele e misturá-los numa grande bebida de banana. Então, Omawa lhe falara, “Este é o corpo
daquele que você ama. Bebam todos vocês. Então, iremos e mataremos a pessoa que causou a
morte dele.” Eu os assisti cercando uma aldeia e atacando pela entrada do shabono. Eles
mataram o homem que buscavam.

10
Então, Omawa ajudou o xamã da outra aldeia a triturar os ossos do parente dele e eles
voltaram para matar alguém da primeira aldeia.
Cada vez que os espíritos vinham a mim, eles me mostravam mais. Uma vez, assisti o
xamã tentando salvar uma pequena menina da morte. Quando ela estava prestes a morrer, o
espírito inimigo mandou o seu falcão agarrar a alma dela. O xamã pediu ajuda ao espírito do Gelo
e juntos perseguiram o falcão a fim de trazer a alma da menina de volta. Enquanto eles
aproximavam-se da terra do grande inimigo, ficava cada vez mais claro e mais quente, então, o
espírito do Gelo cobriu o xamã com gelo para esfriá-lo. Sem o gelo, ele teria falhado. Pouco antes
de chegar à terra do grande inimigo, o xamã agarrou a alma da criança e devolveu-a ao corpo
dela.
“Você será assim também,” meus novos amigos bonitos me falavam. “Nós lhe daremos o
poder sobre a doença e até mesmo sobre a morte.” “Que espíritos maravilhosos são estes,” disse
a mim mesmo.
Depois que o xamã recolocou o espírito na criança, ela sentou-se e começou a falar. A mãe
dela ficou muito feliz.
No dia seguinte, o falcão voltou para buscar a alma da mesma menina. Assisti o xamã
perseguindo-a novamente. Mas desta vez, ele chegou muito tarde. O falcão havia levado a alma
da criança para o fundo do lago até a terra do grande espírito. Estava muito quente, muito
luminoso e com muitos ruídos e o xamã não conseguiu ficar lá. “Que lugar é este?” perguntei a
meus amigos espíritos.
“Aquela terra é onde o grande espírito inimigo vive,” dois deles disseram imediatamente.
“Ele é o espírito mais poderoso que há,” outro disse. “Mas ele é hostil. Você não pode chegar
perto dele. Como aconteceu agora, ele levou a alma daquela menina e nunca a devolverá. E ele
deve estar comendo-a agora mesmo. E não podemos entrar na terra dele, porque lá é muito
quente e muito luminoso. É por isso que o chamamos de Yai Wana Naba Laywa - o espírito
inimigo hostil. Ele nunca sairá de lá para falar conosco.”
“Que barulho é este?” perguntei.
“São todos os outros seres, lá de cima, que estão cantando para ele e celebrando. Eles
sempre estão celebrando algo. Agora mesmo, devem estar celebrando por terem conseguido a
alma daquela criança.”
Logo, senti-me bem com estes seres perfeitos, eram Yanomami perfeitos. Eles tinham me
apresentado a um mundo de alegria que nunca pensei ser possível. E continuava lembrando-me
das palavras da minha mãe: “À medida que aprende controlá-los, deixarão de assustá-lo.” Como
ela estava certa.
Eram pessoas tão bonitas. E as mulheres! Não sabia que elas eram tão perfeitas e bonitas.
Vi uma que era impressionante, com o cabelo mais longo do que as outras. Ondulados até os
ombros. Vi que ela me notara.
Todos os espíritos femininos tinham ciúmes uns dos outros, quando se aglomeravam ao
meu redor tentando chamar a minha atenção. E aquela, que era especial, perfeita, tinha
empurrado os outros para trás, para se colocar ao meu lado. “Não gostaríamos de ir lá,” a mulher
bonita me disse. “Não somos queridas lá. Yai Wana Naba Laywa nunca nos deixará entrar lá.”
Ficava fraco só de olhar para toda aquela beleza. Eu estava de pé e olhava para cima, pelo
fundo do lago. A água estava tão clara, que podia ver tudo, e era bonito demais para descrever.
“Mas é tão bonito lá dentro,” sussurrei, ainda com medo de olhar para ela.
“Sim, é. Mas nunca é bonito onde você não é desejada,” ela respondeu. E tinha razão. Ela
encostou-se a mim e sussurrou em meu ouvido, “Meu nome é Encantadora.” Sua voz suave me
fez sentir como se o vento de toda a selva tivesse soprado em mim. Então, ela olhou para mim e
sorriu. O branco de seus dentes brilhava em contraste com sua face marrom. Eu sorri.

11
Quando o xamã retornou, sem a alma da pequena menina, ouvi a mãe e o pai dela
soltarem uma lamúria que saía da selva e rodeava o mundo. Eles queimaram o corpo da criança, e
moeram os seus ossos em um tronco oco. Depois, os mexeram em um suco de banana e os
beberam. Eu sabia de todas essas coisas, mas agora, estava vendo como havia começado.
Sempre desejei saber por que não nos vingávamos quando uma criança pequena morria.
“Isso acontece porque o espírito inimigo leva as almas das crianças,” Encantadora me falou. “Mas
os adultos sempre são mortos por outra pessoa. Por isso, destas mortes, temos que nos vingar.”
Depois disso, via que todas as vezes que alguém morria, a menos que fosse um bebê ou
uma pessoa velha, os parentes moíam os ossos dele e os bebiam, e se vingavam da pessoa que os
espíritos indicavam. Se eles matassem a pessoa que os espíritos indicavam, então os espíritos de
Omawa ajudavam os parentes, daquela pessoa, a moer os ossos dele, voltarem e tomarem a
vingança para si.
Encantadora me ensinou tudo, e todos os outros espíritos a ajudavam. “Depois que Omawa
ensinou a nós, os Yanomami, tudo o que precisávamos saber,” ela disse, “ele foi para o mundo
dos nabas para ajudar-lhes a aprender estes caminhos também.”
Passaram-se muitas estações após ter me tornado um xamã, para que as coisas
começassem a acontecer e serem conduzidas à guerra, da qual falei-lhe no princípio. Tudo
começou numa aldeia distante, quando Deemeoma era uma pequena menina.
Os pés de Deemeoma pisaram em uma camada grossa de pó, no chão de terra enquanto
deslizava da sua rede de algodão e pulava atrás de seu pai, Wyteli. Ele tinha ido a direção da
entrada do shabono. O pai de Deemeoma andava reto, carregava um arco mais alto que ele e
algumas flechas de cana, mais compridas que o arco. Ela sentia-se orgulhosa por ser filha dele e
tinha que correr para conseguir andar ao seu lado. Ele era o líder do mundo dela, o shabono: era
um lugar que tinha uma parede enorme e que formava um grande círculo. Cada família podia
amarrar sua rede na parede, dentro do shabano, para manter-se protegido da chuva. Havia
bastante espaço, no meio, para todas as crianças brincarem ao sol, e para os adultos fazerem
todas as suas coisas.
Enquanto caminhavam no interior do shabono, passaram pela parte onde morava a irmã de
Deemeoma; Tyomi que era velha para ter bebês . Enquanto ela trabalhava, segurava um bebê
contra o peito para impedi-lo de cair no fogo. No grupo seguinte de redes, o amigo da irmã dela
trabalhava sobre o fogo com seu filho Fredi. Ambas as mulheres observavam, sorriam, e
acenavam com a cabeça a Deemeoma quando ela passava. Todos observavam quando seu pai
fazia algo, porque ele era muito importante. Deemeoma sorria e imaginava quando o pequeno
Fredi estaria suficientemente grande para brincar.
Eles passaram por outras famílias e alcançaram a entrada do shabono. Ainda não estava
escuro, mas os caminhos tinham que ser bloqueados, antes da escuridão, para impedir que
durante à noite os inimigos e os espíritos ruins entrassem no shabono.
Fora do shabono, ela não podia correr ao lado do seu pai e nem agarrar a mão grande
dele, porque o caminho pela selva era estreito. Seus pequenos pés sentiam o caminho fresco e
úmido, enquanto seguia seu pai. À frente, podia ver os pés largos e grandes dele, enquanto
levantavam-se a cada passo.
Ele amontoava o mato no caminho e ela procurava varas e jogava-as numa pilha. Depois,
tirava o mato do caminho e empilhava-o até ficar mais alto do que podia alcançar. Ninguém
poderia atravessar tudo aquilo, nem mesmo os espíritos.
Deemeoma seguiu-o de volta à entrada, até o outro caminho que bloqueara do mesmo
modo. Quando voltaram à entrada, encontraram-se com seu irmão mais velho e seu cunhado, o
homem que casara com sua irmã mais velha.
“Bloqueamos os outros caminhos,” disseram ao pai dela.
“Bem alto?” ele perguntou.
12
“Tão alto quanto podíamos,” eles responderam.
“Não gosto da sensação lá de fora,” o pai dela falou-lhes. “Chamarei meus espíritos para
ver se há algum perigo.”
Ela ouvira a conversa dos homens, enquanto seguravam os arcos e flechas em uma mão.
Estes guerreiros tinham músculos dos pés a cabeça. O pai dela era maior. Cada um deles tinha
um chumaço enorme de tabaco enfiado no lábio inferior. O fio ao redor da cintura do seu pai
estava amarrado na pele da ponta do pênis, levantando-o. Ela nunca tinha visto um homem com o
pênis para baixo, nem imaginava como seria.
“Temos ebene?” um guerreiro perguntou. Deemeoma sabia o que eles fariam. Ela tinha
visto o irmão dela moendo as plantas. Ele estava aprendendo sobre os espíritos e logo seria um
xamã.
Deemeoma nunca gostava quando as pessoas assopravam aquele pó preto no nariz de
seu pai. O pai dela ficava muito estranho quando dançava com os espíritos dele. Ela ficava
assustada. Ele não era o mesmo. Ela deixou o seu pai em pé com os homens, correu para dentro
do shabono, atravessou o centro e foi para perto da sua mãe.
Estava quase escuro quando o irmão mais velho de Deemeoma agachou-se e soprou o pó
de ebene, pelo longo tubo, no nariz de Wyteli. Ele rolou de costas e agarrou sua cabeça enquanto
sentia toda a dor. Mas, levantou-se, agachou e aceitou outro sopro. O efeito do pó o levaria aos
seus espíritos. Enquanto dançava e cantava, entrou em transe e gotejava ebene do nariz até o
queixo. Quando as chamas se apagaram, ele voltara dos seus espíritos. Então, todos na aldeia,
juntaram-se, ao redor dele, para ouvir o que os espíritos de Wyteli tinham dito.
Naquela noite, todos ouviram o pai de Deemeoma contar história após história, das coisas
que ele havia feito com os seus espíritos. Todos ficaram muito quietos enquanto ele falava;
ninguém queria perder uma só palavra. “Vocês conhecem aquela história que ouvimos a respeito
do homem que morreu há pouco tempo? Enviei os meus espíritos para matá-lo.” O grupo de
guerreiros, as mulheres e as crianças estavam alegres em ouvir aquilo. “Lembram-se dos bebês
que morreram lá em Lugar de Areia? Meus espíritos e eu viajamos para lá e sopramos o pó de
alowali em cima deles. Dentro de alguns dias estavam todos mortos. Podemos ficar tranqüilos,
porque não teremos com que nos preocupar, pois esses bebês não crescerão e nem voltarão para
nos matar.”
Todos se alegraram ao ouvirem o que ele tinha feito com os bebês. Riram quando
souberam quão desamparados seus inimigos estavam em relação aos espíritos dele. Em cada
história, Deemeoma ficava mais feliz, ao perceber quão poderoso e maravilhoso seu pai era para
a sua aldeia .
A fumaça das fogueiras, que estavam apagando, se espalhava pelos rostos dos ouvintes,
enquanto uma história se dava em outra. Estava tarde quando seu pai a tirou do colo da mãe e
levou-a para a rede. Ela havia dormido fazia tempo e tinha perdido a maioria das histórias sobre
as pessoas que ele tinha matado. Não importava. Ele lhe contaria tudo novamente.
Seu povo havia se deitado em suas redes com as histórias das muitas matanças em suas
cabeças . Isto os fez lembrar de seus amados parentes que tinham sido mortos. Alguns tinham
sido mortos por flechas, mas, muitos outros haviam morrido lentamente, por doenças causadas
por xamãs inimigos, de outras aldeias. Então, ninguém se surpreendeu quando Tyomi, cuja rede
não ficava longe da sua irmã Deemeoma , começou a choramingar. O marido de Tyomi começou
também a chorar quando se lembrou do bebê deles que havia morrido. Então, a família próxima a
eles começou a chorar. Eles choraram mais alto. A mãe de Deemeona começou a chorar, depois o
pai dela. Agora todos estavam pensando em alguém e logo o choro se esparramou pelo interior do
shabono. Lamúrias de angústia, tanto de mulheres como de homens, quebraram a tranqüilidade
do ar selvagem, por causa da horrível aflição que todos, na aldeia, sentiam.
Deemeoma saltou de sua rede, tremendo de medo, e agarrou em seu pai . Ele a levantou
e a segurou firmemente contra ele. Ela sentia o suspiro de seu peito, cada respiração, enquanto
13
ele gritava a sua angústia. Que dor os inimigos dele tinham lhe causado por ele ter matado tantos
deles!
Mesmo apertando seus ouvidos com as mãos, os gritos ainda penetravam. O terror era
tanto que Deemeoma tinha a sensação de que sua cabeça estava girando e nem sabia onde
estava.
Apenas quando as vozes deles se cansaram é que o som, gradualmente, foi
enfraquecendo e todos, lentamente, voltaram a dormir. Ela não se lembrava de quando o seu pai
a havia colocado na rede.

“Invasores!” O grito fez tremer o corpo de cada índio que estava dormindo. É o que todo
índio teme. O segundo grito incluía a voz estridente de todas as mulheres da aldeia. “Invasores!”
e ferira o ouvido de Deemeoma.
Ela pulou da sua rede. Havia muito barulho no shabono. Ela ouviu um splash e um baque.
Então, se virou. Sua mãe estava deitada no chão de terra. Uma longa flecha havia penetrado no
corpo dela e a outra ponta balançava no ar. Saía sangue da boca dela. Flechas voavam em todas
as direções. O pai dela já estava em pé atirando nos guerreiros inimigos. Havia inimigos em
todos os lugares, dentro e na entrada do shabono. As mulheres e as crianças correram para achar
um lugar para se esconderem. A maioria dos guerreiros, surpresos, estava tentando escapar. Mas
não havia como fugir.
O mais valente, como o pai de Deemeoma, não correra. Ele ficou em pé, ao lado de sua
rede, enquanto atirava flecha após flecha. Ele acertava um inimigo após outro. Uma flecha o
golpeou de lado mas ele nem parou para arrancá-la. Ele atirou até que acabaram suas flechas.
Agora, Deemeoma, vira por que os homens, às vezes, o chamavam de Difícil de Matar. Era
verdade. Ela apanhou uma flecha que havia caído na terra ao lado de sua mãe, que sangrava.
Deemeoma pegou-a e devolveu-a a seu pai. Ele a atirou enquanto mais duas perfuraram o seu
corpo. Ela apanhou outra flecha para ele. Ela juntou mais.
Enquanto as flechas voavam, Deemeoma corria por todos os lugares juntando flechas e
dando-as a seu pai. Os inimigos estavam agora em todos lugares e todos os guerreiros que não
haviam corrido tinham sido atingidos. Em uma invasão, o Yanomami, nunca atira em crianças.
Cada vez que ela dava flechas a Wyteli, havia mais dentro dele. Ela tentou arrancá-las mas não
pôde. Os gritos de todos, na aldeia, eram muito altos.
Ele continuou atirando. Deemeoma limpou o pó de seus olhos com o braço, enquanto
alcançava outra flecha. Por muito tempo ela continuou ajuntando, flecha após flecha. Logo, o
corpo de Wyteli estava tão cheio de flechas que não podia atirar. Os gritos agora não eram tão
altos, ela pensou que todos deveriam estar mortos. Mas ele não. Ele nunca morreria. Então é isto
que quer dizer ter os espíritos! Ela lhe deu mais duas flechas e, virando para pegar mais, ela
ouviu um outro baque. Ele tinha sido atingido novamente. Mas Deemeoma sabia que logo ele os
mandaria embora. Só precisava de mais flechas....
Em todos lugares em que ela corria, via os seus parentes morrendo. O tio dela implorou
aos invasores pela vida dele. “Não atire em mim, irmão mais velho!” ele gritou ao guerreiro cujo
arco estava mirado nele. O tio dela tinha atirado a última flecha dele. Agora ele tentava se
esconder atrás de suas mãos para proteger-se, implorando misericórdia. “Irmão mais velho, não
me mate!” ele continuava gritando. Eles não eram irmãos, claro, isso é apenas um nome que
você poderia chamar alguém que não o conhece. Mas o guerreiro não prestou nenhuma atenção e
as mãos do tio dela não davam nenhuma proteção. A flecha perfurou o peito dele e caiu morto.
Deemeoma correu para o lado e apanhou uma flecha; outra veio, e bateu no poste
próximo a ela. Ela arrancou-a da terra, voltou e deu ambas para seu pai. Mas ele não as aceitou.
Ele estava sentado agora, na terra, apoiado por todas as flechas que saiam dele, em todas as
direções. A terra, em sua volta, tentava chupar todo o sangue dele. Mas ela sabia que ele não

14
poderia morrer. Não como os outros! Ela tentou pegar nele, mas havia tantas flechas que não
podia alcançá-lo. Tentou afastar as flechas para abraçar seu pai . Mas não conseguiu.
Ela começou a chorar. Wyteli não respondeu. Ele havia ido. Ele tinha feito o que sempre
prometeu não fazer. Ele a tinha deixado.
Todos os gritos pararam; só restara os gritos dos bebês e das crianças. O inimigo conferiu
para ter certeza de que todos os guerreiros estavam mortos. Espalhavam-se por todos os lugares,
alguns com os membros esticados em todas as direções. Alguns num monte. Outros atravessados
em suas redes. O sangue, vermelho vivo, escorria na terra e misturava-se com ela. Naquela
manhã, cada corpo tinha flechas com penas que apontavam para o céu. Algumas das flechas
moviam-se enquanto os parentes de Deemeoma respiravam pela última vez.
Ela explodiu com uma longa lamúria. Deveria ter começado a chorar quando viu a primeira
flecha atingir sua mãe, mas não teve tempo. Agora as lágrimas desciam rapidamente. A mãe, os
irmãos e o pai dela, estavam mortos. Até mesmo algumas das crianças tinham sido atingidas e
mortas na confusão. Agora, que o último guerreiro estava morto, o inimigo voltara a atenção para
as crianças.
Deemeoma cobriu os olhos e espiou pelos dedos. O bebê da irmã dela estava sentado,
chorando, apenas há uns passos dela. Se ele pelo menos ficasse quieto, pensou Deemeoma. Ela
sabia que a irmã dela deveria estar morta. Um homem agarrou o bebê pelos pés e jogou-o com
toda força que podia. Ele bateu a cabeça do bebê contra um poste. Deemeoma fechou os olhos
quando viu os interiores da cabeça escorrendo pelo poste. Eles mataram todos os bebês deste
modo. Mas as crianças mais velhas, aquelas que podiam correr, as cabeças delas eram muito
duras para isso.
Um homem fincou o arco dele no chão, pegou o irmão mais novo de Deemeoma, e
colocou-o de bunda em cima da ponta afiada do arco. Ele gritou e mexeu. Então, morreu. Muitas
das crianças mais velhas morreram daquele jeito.
Uma outra criança havia sido atravessada pela ponta de uma flecha. Então ela morreu.
A colega de Deemeoma estava sentada na terra chorando. Um jovem guerreiro agarrou-a
para matá-la. “Não a mate!” o guerreiro velho gritou. “Vamos ficar com ela”. Mas ele a matou.
Por ser um guerreiro novo, estava ansioso para conseguir sua primeira morte .
O chão estava coberto com sangue. Deemeoma ainda estava tentando passar pelas flechas
para alcançar a cabeça de seu pai quando os guerreiros a agarraram. Eles estavam prestes a
matá-la quando o guerreiro velho gritou, “Não! Não! Não a mate. Vocês não podem ver que ela é
saudável? E nos dará muitos filhos.”
“Vai demorar muito,” os jovens guerreiros contestaram. Eles estavam prestes a matá-la.
Mas o guerreiro velho era feroz e respeitado.
"Só mate os meninos, os bebês e os feridos,” ele disse. “Temos que ficar com as meninas
saudáveis”. Ele tinha razão e todos sabiam disto. Eles não deveriam ter matado as meninas.
Deemeoma sentou na terra com os olhos fechados, apertando-os com suas pequenas
mãos. Finalmente ela espiou. Mas as crianças ainda estavam presas nas varas. Só que agora não
se moviam. Todos os corpos ainda estavam lá. As flechas que saiam deles agora não se
movimentavam. As varas estavam cobertas com materiais brancos que saiam das cabeças dos
bebês. Ela desejou que eles apressassem a sua morte.
Então, os homens descobriram algumas mulheres e um pequeno menino que se
esconderam atrás de uma pilha de madeira em uma área escura do shabono. Era Tyomi, o
pequeno Fredi e a mãe dele, e algumas outras mulheres. O coração de Deemeoma disparou
quando viu sua irmã viva. Certamente eles não a matarão, ela pensou. Ela é uma mulher adulta.

15
Eles tiraram Fredi dos braços de sua mãe , e ela gritou, “Por favor! não o mate! Ele é tudo
que me resta! Ele é tudo que me resta!” Um guerreiro novo estava a ponto de atravessá-lo com
uma flecha.
“Espere, espere!” era o mesmo homem que havia salvado Deemeoma. “Ele é saudável.
Vamos ficar com ele.” Mas eles ignoraram o homem, puseram Fredi no chão e tentaram acertá-lo
com suas flechas. Ele pulou entre as pernas da sua mãe, e foi para o outro lado. Eles cutucaram,
tentando enfiar a ponta de uma flecha no peito de Fredi. Deemeoma fechou seus olhos e cobriu
seu rosto, para não ter que assistir. “Eu lhe disse que parasse com isto!” o homem gritou
novamente. “Vocês mataram bastante . Deixem-no em paz.” Fredi estava entrando e saindo pelas
pernas de sua mãe como se fosse um pássaro com uma asa quebrada.
“Ele crescerá e nos matará!” os guerreiros novos gritaram.
“Eu o quero!” o velho homem respondeu. “Eu fico com ele para carregar a carne das
caçadas.” Enquanto eles discutiam, a mãe dele o apertou contra ela e agachou sobre ele no chão.
Ela balançou os braços de um lado para outro para impedi-los de flechá-lo no peito.
“Deixem ele,” outro homem disse. “Ele poderá caçar a carne para nós quando formos
velhos.” Ele tirou Fredi da sua mãe enquanto os outros homens a seguravam.
“Nós o mataremos depois,” um dos homens disse, e eles se reuniram ao redor do homem
que tinha agarrado Tyomi. Eles já haviam começado a se divertir com ela.

16
CAPÍTULO 2

VOCÊ É TÃO VALENTE

No mundo dos xamãs, aquela manhã em que lutamos contra a Aldeia Batata, é o que
chamamos de uma grande matança. Por eu, Homem da Selva, ser um xamã e o chefe da minha
aldeia, conduzi aquela invasão. Deemeoma, Fredi, e as mulheres tiveram dificuldade na volta para
casa, mas eles irão acostumar-se conosco. Pode até levar muito tempo, mas irão.
Toda aquela matança foi culpa do pai de Deemeoma. Havíamos ido para a Aldeia Batata, a
princípio, para matar a pessoa que havia causado a morte de alguém, em nossa aldeia. Eu sabia o
que ele havia feito porque meus espíritos haviam me contado. Então, convidamos as outras
aldeias para uma grande festa, tomamos o pó dos ossos dos nossos parentes mortos, e fomos
para nos vingarmos do homem que havia causado a morte. Escutamos, do lado de fora do
shabono deles, para termos certeza de que o homem que queríamos matar estava lá dentro.
Então, ouvimos Wyteli contar todas as histórias a respeito das muitas pessoas que ele havia
matado em nossa aldeia. Logo, estávamos tão bravos, que esquecemos daquela pessoa que
queríamos matar. Sabíamos então que teríamos que matar todos. Foi uma grande vitória.
Quando temos disposição para celebrar, fazemos coisas que são inconcebíveis em outros
tempos.
Pais e filhos nunca fariam sexo com a mesma mulher. Mas…

Aquele dia provou que somos os guerreiros Yanomami mais ferozes. Em nosso frenesi
faríamos qualquer coisa. Cada um de nós teve a sua vez para estuprar as mulheres, enquanto
Deemeoma gritava de terror. Ela pensou que tentaríamos usá-la. Mas com quatro mulheres
adultas, não precisávamos dela. Quando terminei com uma das mulheres, observei Deemeoma
sentada, chorando, enquanto encolhia-se em um canto sujo do shabono e escondia sua face Era
a irmã dela que eu tinha acabado de usar.
Então, fui ao próximo grupo de guerreiros e esperei a minha vez para usar outra mulher.
Havia quatro grupos de guerreiros, uma mulher no meio de cada grupo. Continuamos até não
conseguirmos mais.
Depois de estarmos exaustos, elas ainda viviam. Então, amarramos nossos pênis para cima
e saímos numa longa viagem para casa, levando as mulheres conosco.
Foram muitos dias, mas com tantas histórias para contar sobre a nossa vitória, passou
depressa. As mulheres choramingavam e gemiam na recontagem de cada história e tivemos que
bater nelas para que parassem. Às vezes, batendo não adiantava. Deemeoma e Fredi tiveram
dificuldade em nos acompanhar e tiveram que ser carregados freqüentemente. Cada vez que
parávamos, usávamos as quatro mulheres.
Estávamos atravessando uma ponte que sempre é difícil para os pequenos, porque há
apenas uma vara para caminhar, e em cima um cipó para segurar . As crianças não podiam
alcançar o cipó e precisavam ser carregadas. Enquanto caminhávamos sobre a parte barulhenta
das cachoeiras, os jovens guerreiros pegaram Fredi para lançá-lo dentro. Fredi segurou no cipó
com toda a sua força. Mas seria fácil para os jovens guerreiros soltarem as mãos dele do cipó.
“Você não vai jogá-lo!” gritou o homem que tinha salvado Deemeoma. Mas era difícil ouvir com o
barulho das cachoeiras.
“Ele crescerá e tentará nos matar,” eles gritaram, e a discussão começou novamente.
Fredi desceu e agarrou a vara. Havíamos matado bastante. Mas estes jovens guerreiros,
inexperientes não foram suficientemente rápidos para conseguir matar alguém, na grande
matança.
17
“Ele será meu!” O velho guerreiro gritou.
O velho homem não estava perto da ponte para impedir os meninos. Eles soltaram Fredi
da vara e estavam a ponto de jogá-lo na água. Mas, o guerreiro que o teria soltado, decidiu que
não queria enfrentar a ira do velho guerreiro ao descerem da ponte. Ele o deixou e Fredi
engatinhou pelo resto da ponte.
Quando chegamos perto do nosso shabono, senti meu coração alegrar-se. Esta seria a
maior celebração da minha vida. Seria tão bom quanto tomar ebene. Não foi permitido que
ninguém prosseguisse com as notícias.
Uma excitação alastrou-se pelo shabono, enquanto eles nos ouviam vindo pelo caminho. As
mulheres deixaram os fogos e apressaram-se à entrada.
“Nós os matamos! Nós matamos todos!” Gritamos ao chegar à entrada do shabono. As
mulheres alegraram-se e todos começaram a contar a própria história do que havia acontecido,
enquanto as mulheres examinavam o que havíamos roubado.
“Você deveria ter visto como morreram, quando lançamos as nossas flechas neles!”
Vários de nós gritávamos, e imitávamos uma pessoa sendo flechada e caindo. “Eles correram para
todos os lados, mas ninguém escapou.”
As mulheres e as crianças que se aproximaram, estavam emocionadas por nos ver e
orgulhosas de nós. O poder de ser feroz é a melhor coisa que pode acontecer. E eu sou o mais
poderoso em nossa aldeia. Lá no meio do shabono, eles ouviram todos os detalhes de tudo que
fizemos.
Nossas mulheres caminharam ao redor das quatro mulheres que tínhamos capturado e
olharam para elas. Tocaram e apertaram cada uma delas. Havíamos usado-as bastante no
caminho, mas nem havíamos olhado bem.
As mulheres roubadas sempre são, no princípio, tímidas e não gostam de ouvir falar do que
fizemos aos seus maridos. Mas elas se acostumarão conosco. Terão que se acostumar a ouvir falar
do que fizemos aos seus maridos. Nunca deixaremos de contar para quem queira escutar, o que
fizemos a eles.
“Lança, Homem da Selva, ele e ele e…,” um jovem guerreiro disse, enquanto apontava
cada um dos assassinos, “Há mais alguns dias de unokai para fazer.” Já havíamos começado os
vários dias do ritual de limpeza do assassinato no caminho. Durante esses dias, no caminho, não
permitimos que nossas mãos tocassem em nenhuma parte de nossos corpos. Se suas mãos
mataram alguém e tocarem em seu corpo, o sangue sujo delas fará com que aquela parte fique
doente. Uma vez, um homem tocou seus olhos durante o unokai e ficou cego. Um assassino tinha
tocado sua pele que desenvolveu uma coceira terrível que não podia mais deixar de coçar. Ficou
com ele para o resto de sua vida .
As mulheres podiam observar qual de nós havia matado as pessoas da Aldeia Batata,
porque cada assassino tinha um pedaço de pau que cabia perfeitamente no buraco de cada
orelha. Quando comíamos, tirávamos os pedaços de paus da orelha e usávamos cuidadosamente
para por a comida em nossas bocas. Fazíamos qualquer coisa para impedir que nossas mãos nos
tocassem.
Uma grande discussão surgiu a respeito de quem ficaria com as mulheres. Nossos
parentes de outra aldeia queriam pelo menos uma. “Viemos de lá, das cabeceiras do Ocamo para
ajudá-los nesta invasão e estas mulheres são tanto nossas quanto suas!” Disseram. As quatro
mulheres ficaram em grupo, enquanto escutavam a discussão. Fredi já era propriedade do velho
homem. Deemeoma chorava e agarrava nas pernas da irmã, como se fosse tudo o que tivesse
no mundo.
Era verdade, que nossos parentes de Ocamo tinham os mesmos direitos às mulheres e até
mais, porque alguns deles tinham se ferido na invasão. Mas havia mais de nós, então ficamos com
todas, Deemeoma e Fredi. Sabíamos que não era justo, mas tínhamos certeza de que teriam
18
levado todos se tivéssemos menos guerreiros e foram para casa furiosos. A raiva deles não
morreria facilmente.

Lança colocou ebene verde na ponta de um tubo comprido. Lança era meu xamã
companheiro. Depois de tal vitória, ambos de nós teriam muitas coisas para dizer aos nossos
espíritos. Pus o tubo em minha narina e ele assoprou o pó em minha cabeça. Cambaleei para trás
e caí de lado na terra. Era como se estivesse flutuando. Foi uma mistura poderosa e não como
aquele ebene fraco que conseguimos daquele povo do Rio Ocamo. Não precisaria de mais. Não
enxerguei mais Lança e vi o amor da minha vida se aproximando. Vieram de muitos caminhos.
Alguns até vinham do céu. Eles me dariam sabedoria, poder e qualquer coisa que quisesse. Lança
estava fora de vista agora e todos os outros homens. Meus espíritos entraram no shabono do
meu peito e estava contente em vê-los. Dançamos e falaram comigo.
“TK!” Estalei minha língua com emoção ao ver o espírito da Onça. “Matamos todas as
pessoas da Aldeia Batata!”
“Foi maravilhoso, pai,” Onça respondeu. “Você é um guerreiro feroz. É maravilhoso.
Adoramos vir até você.”
“Você é tão valente,” Encantadora me disse com sua voz suave. Ela é a mulher mais bela
que já vi no mundo dos espíritos e no mundo real. Dancei com todos os meus espíritos, e a dança
durou quase toda a noite. Foi uma celebração maravilhosa. Algumas das outras mulheres bonitas
vieram dançar comigo. Elas também eram maravilhosas. Meus espíritos sempre se vestiam
perfeitamente, com penas nos cabelos e enfeites nas orelhas e nos lábios. Mas Encantadora
mandou-as embora. Ela permitia que ficassem só um pouco comigo e então voltava. Ela dançou
comigo pela selva e fizemos amor até eu ficar fraco. Esta foi a grande vitória da minha vida.
Na manhã seguinte, começamos a longa e dura tarefa de proteger-nos da vingança.
Sabíamos que o povo da Aldeia Batata tinha muitos amigos que poderiam vir matar-nos.
Primeiro, construímos uma enorme parede de paxiuba que atravessava a entrada do
shabono. Nós a chamamos de alana. Uma ponta da alana era bem amarrada contra a parede do
shabono. A outra ponta tinha um espaço pequeno entre a alana e a parede para permitir que uma
pessoa entrasse. Estávamos com tanto medo, que fizemos com que a alana passasse em volta de
todo o shabono. Isto faria com que qualquer invasor tivesse que percorrer um caminho maior
entre o lado de fora do shabono e a alana para chegar até a entrada. Fechamos todos os buracos
da parede e os membros da família não podiam entrar nem sair.
Lança levou um jovem guerreiro para conferir os caminhos e ter certeza de que eles
estivessem bem bloqueados. O guerreiro era muito jovem para ter um nome, mas o chamarei de
Sapato-Pé, um nome que adquiriu depois. Lança e Sapato-Pé não foram muito longe porque é
muito fácil cair numa emboscada no caminho. Enquanto estavam juntos eles urinaram. Os outros
teriam que fazer isto dentro do shabono .
No primeiro dia sentíamos seguros. Mas no dia seguinte precisávamos de comida da roça.
Enviamos para a roça a metade de nossos guerreiros com as mulheres para ajuntar comida e o
resto de nós ficamos para vigiar o shabono. Lança e eu ficamos no shabono porque não podíamos
nem tocar na comida da roça até que terminássemos o unokai.
Naquela noite, Lança e eu estávamos muito cansados, pois não havíamos dormido durante
várias noites. Então, deitamo-nos em nossas redes e pedimos que as mulheres empilhassem lenha
ao nosso redor nós até ficar tão alto a ponto de esconder-nos deles. Com isso, dormiríamos
enquanto as mulheres vigiavam os inimigos e despertariam-nos se eles viessem. Elas fizeram o
mesmo naquela noite para muitos dos outros guerreiros. Foi a primeira noite que dormimos bem,
embora não tivesse certeza a respeito de Lança. Ouvi o barulho das cordas da rede dele
enquanto mexia-se a noite toda. Uma das pessoas que Lança havia matado era um homem
jovem. Lança estava bem perto dele quando o flechou. O jovem gritou: “não me mate, irmão

19
mais velho.” Agora Lança deitava-se em sua rede e imaginava saber por que ele o fazia sofrer
tanto.
Pela manhã, Lança disse que havia dormido bem, mas ainda parecia cansado. As mulheres
nos trouxeram comida e tiramos os paus de nossas orelhas e pegamos cuidadosamente das suas
mãos. Ainda não podíamos tocar em nenhum de nossos parentes.
Fizemos a mesma coisa no outro dia: enviamos a metade dos guerreiros à roça para
proteger as mulheres enquanto ajuntavam a comida. Mas não podíamos trabalhar na roça para
conseguirmos mais comida até que a nossa provisão estivesse quase acabada. Naquele dia,
conseguiram apenas mandioca, que era a nossa principal comida. Passaria muito tempo até
conseguirmos algo que realmente saboreávamos, como mel selvagem.
Naquela noite, sonhei que todos estávamos sendo mortos em uma invasão. Quando
despertei, minha rede estava encharcada de suor. Mas vi a lenha empilhada ao redor de mim e
sabia que não tinha havido nenhuma invasão. Ainda assim, estava assustado; pois se tivesse
acontecido, teria sido difícil atirar por detrás da lenha e levaria muito tempo para escalar a pilha e
atirar de volta. Não consegui voltar a dormir.
No dia seguinte, antes de amanhecer, Lança, Sapato-Pé e eu levamos três guerreiros para
caçar. Caminhamos devagar pelo caminho. Mais adiante na selva, Sapato-Pé, eu e outro
guerreiro procurávamos sinais de emboscada. Lança estava atrás, procurando sinais de que
talvez estivéssemos sendo seguidos. Ele cobria nossos rastros enquanto andávamos. Os outros
dois guerreiros olhavam e procuravam ouvir alguma caça.
Mas esta era uma maneira inútil de caçar. Animais não ficam esperando seis caçadores
virem flechá-los. “Se não nos dividirmos, nunca acharemos nada," Sapato-Pé sussurrou. Ele
ainda era jovem e não entendia completamente.
“Lembre-se de seu tio,” sussurrei. Sabia que Sapato-Pé lembrava, não porque conhecia
seu tio. Ele não o conhecia. Era porque sua mãe guardava os ossos do tio numa cabaça. Desde o
tempo em que Sapato-Pé era pequeno, ela falava-lhe sobre as pessoas que o tinham matado, e
como Sapato-Pé beberia aqueles ossos para vingar-se.
“Foi assim que seu tio foi morto,” eu disse. “Ele foi caçar sozinho, quando a aldeia dele
estava na guerra. Fizeram uma emboscada e encheram-no de flechas, antes que pudesse sair do
caminho.”
“Teremos que achar caminhos seguros onde podemos caçar ou morreremos de fome,”
Sapato-Pé respondeu, sussurrando.
“Depois daquilo que fizemos à Aldeia Batata, não existe mais nenhum caminho seguro,”
eu disse. “Lembra-se do que sua mãe tem lhe falado sobre a vingança do seu tio, embora tenha
sido morto antes que você nascesse? Desta forma os parentes da Aldeia Batata falarão a seus
filhos da matança. Eles continuarão falando muito tempo depois de estarmos mortos.”
Ao longe, ouvimos um peru selvagem. Você sempre pode reconhecer seu som. Ele senta
no alto das árvores e canta uma pequena canção. Olhamos um para o outro. “É agora que
temos que tomar cuidado.” acautelei a todos . “Pode ser uma armadilha. Eles podem estar
fazendo o som do peru. E mesmo que não estejam, sabem que estamos vindo para caçá-lo.
Poderia haver uma emboscada em qualquer lugar, entre nós e aquele pássaro.”
Claro que Lança sabia a respeito dos perigos e o que devia fazer. Ele levou dois dos
guerreiros e começaram a procurar na selva, em uma direção, para verem se havia sinais de uma
emboscada. Sapato-Pé, eu e o outro guerreiro fomos na outra direção. Passo a passo,
caminhamos na direção do peru. Há tantos lugares na selva para se fazer uma emboscada, que
isso dificulta este tipo de movimento. Mas, com seis de nós, saberíamos que poderíamos fazer
uma boa briga.
Sentia as folhas úmidas baterem nas minhas costas enquanto caminhava para trás,
cuidadosamente olhando o rastro que deixávamos. “Nada,” sussurrei por cima do meu ombro a
20
Sapato-Pé. Mas, eu também sabia, que o silêncio na selva nem sempre é boa coisa. Ouvimos o
peru cantar novamente. Estávamos chegando. Sapato-Pé olhava para um lado, o outro guerreiro
para o outro, e eu olhava para trás.
Caminhava de costas, passo a passo e meu arco e flechas estavam prontos. Uma
emboscada quase nunca pode ser vista com antecedência. Você apenas deve estar pronto para
atirar o mais rápido possível. Crescia o medo a cada passo. Ao longe, ouvi o tagarelar de um
howashi. Mas não significou nada. Eu ouvi algo ao lado, saltei e puxei meu arco. Não era nada.
À frente de mim no caminho todos os cinco caçadores estavam com suas flechas sacadas e
apontadas para o mesmo lugar. Lentamente removemos as flechas e prosseguimos.
Enquanto aproximávamos do peru, os caçadores da frente conferiram para ter certeza de
que o cantar estava vindo do alto das árvores. Às vezes, uma onça senta na base de uma árvore
e canta como um peru. Então, ela come qualquer coisa que venha comer o peru.

Demorou, mas finalmente matamos o peru. Os meninos carregaram-no porque Lança e eu


não podíamos tocá-lo. O retorno para o shabono não foi tão assustador, porque já tínhamos
avaliado o caminho. Mas ainda tivemos que ter muito cuidado porque os guerreiros podiam
avançar por trás de nós. Na volta, urinamos na selva para que não tivéssemos que fazer no
shabono. Isso poupou-nos o trabalho de embrulhar as fezes em folhas e jogá-las através da
parede. Os outros evacuavam dentro do shabono que ficava mais fedorento a cada dia. Já tinha
muitos bichos.
Já era o meio da tarde quando voltamos com o peru. As mulheres cozinharam-no em um
dos fogos. Cada pessoa na aldeia conseguiu um minúsculo pedaço de carne e um pouco de
mandioca. As crianças ajuntaram-se ao redor e fitaram seus olhos famintos. Certamente não
havia o suficiente para elas. Eu poderia ter comido tudo, mas foi-se antes que conseguisse.
Naquela noite, Sapato-Pé perguntou à sua mãe sobre seu tio. “É o que tenho lhe contado
toda a sua vida,” ela disse. “Diariamente pergunto-lhe, sabe por que você não está contente? É
porque está sentindo falta de um tio. Se ele estivesse aqui para brincar com você e levá-lo para
caçar, estaria contente. Mas essas pessoas de Yoblobeteli mataram-no. Esta é a verdade. Você
me viu lamentar por ele toda a sua vida. Mas, quando você se tornar um guerreiro feroz,
beberemos os ossos dele e iremos matar as pessoas responsáveis.”
“Eles estarão mortos antes daquele tempo,” Sapato-Pé respondeu.
“Isso não importará”, ela disse. “Os filhos deles estarão crescidos. Você poderá matá-los.
Não importa quem você mate, o importante é que se vingue. Aquele tio que você tem sentido
falta todo a sua vida merece isso.”
Conferimos todos os caminhos que saíam do shabono e empilhamos ainda mais mato
neles. Os meninos que ficaram acordados para nos alertar de qualquer perigo colocaram-se perto
da parede da entrada do shabono. Eles fizeram barulho a noite toda para parecer que as pessoas
estavam acordadas lá dentro. Eles riram, conversaram e mantiveram os fogos acessos. Isto
dificultou ainda mais o nosso sono, mas sabíamos que enquanto estavam fazendo barulho,
estávamos seguros. Naquela noite, as mulheres empilharam a lenha novamente ao redor de nós.
A manhã seguinte foi o último dia do nosso unokai. Não tínhamos tocado em nossos
corpos durante muitos dias, mais dias que os dedos de uma mão. Mas hoje, seria o final. Nossas
mãos estariam novamente limpas. Á tarde, Lança, eu e os outros que estavam em unokai
pegamos nossas redes e nossos arcos e flechas e saímos do shabono. Ficamos em grupos
pequenos, com medo de uma emboscada. Achei uma palmeira de madeira de lei, a árvore que
produz a melhor madeira para os arcos. Amarrei nela minha rede, meu arco, minhas flechas, e
todas as pontas de flechas mortais. Agora, a árvore levaria todos os efeitos maus de minha
matança. Eu poderia esquecer o quanto os fiz sofrer. Os outros guerreiros acharam árvores de
madeira de lei e fizeram o mesmo com as suas coisas. Enquanto isso, mais guerreiros
observavam ao redor de nós, para ter certeza que estávamos protegidos de ataques.

21
Naquela noite, Lança soprou ebene no meu nariz e novamente dançamos com nossos
espíritos. Precisávamos de muita direção deles, por causa das dificuldades que viriam. Havia
muita fome na aldeia. As crianças estavam sempre chorando. Algumas já tinham morrido e meus
espíritos não puderam trazê-las de volta. Precisávamos de um espírito que pudesse colocar comida
dentro do shabono, para que não tivéssemos que sair para consegui-la. Mas meus espíritos não
conheciam nenhum .
“O que faremos agora, sendo que seus amigos e parentes virão, procurando por nós, para
vingarem-se?” Perguntei ao espírito da Onça e aos outros. “Não podemos cultivar nada em nossas
roças. Não podemos caçar. Não podemos dormir. Nem mesmos podemos nos aliviar.”
“Está na hora de você se mudar. Talvez até dividirem a aldeia.”
“Ouvimos falar dos nabas, brancos em um outro mundo,” eu disse. “Quem são estas
pessoas? Eles podem ajudar-nos? Precisamos tanto, especialmente agora que não podemos
trabalhar em nossas roças porque sabemos que nossos inimigos virão para vingar-se.”
“Os nabas são pessoas que têm muitas coisas que vocês precisam. Você deveria ir para a
terra deles e conseguir algumas.” O pensamento de ir para a terra dos nabas assustava-me muito.
Como chegaríamos lá? E se eles não forem amigáveis? Eu poderia ser humilhado na frente do
meu povo. Mas meus espíritos conheciam todos os meus medos e asseguraram-me que cuidariam
de nós.
Dancei por muito tempo com meus espíritos, falando e desfrutando da grande matança na
Aldeia Batata. Então, relaxei em minha rede, enquanto penduravam-se ao redor do meu shabono,
de cabeça para baixo, como morcegos. Depois de um tempo, vi os homens reunidos ao redor de
minha rede, e contei-lhes tudo aquilo que meus espíritos tinham me dito. Sabia o que eles diriam.
“Ir para a terra dos nabas?” eles reagiram com medo. Um silêncio caiu sobre nós. Eles
não podiam ver, mas, eu também estava assustado. Nenhum grande guerreiro demonstra medo.
Até mesmo quando ele sabe que está para ser morto. Um grande guerreiro fica de pé e deixa
que o encham de flechas, mas nunca demonstra medo.
Quando você tem espíritos tão maravilhosos quanto os meus, nunca pensa em ignorar o
conselho deles. Estávamos prontos para ir à aldeia dos nabas.
Para nos mantermos escondidos de nossos inimigos dividimo-nos em muitos grupos,
levando as mulheres e as crianças e então, saímos do shabono. Caminhamos até o final da tarde,
quando matei um macaco, decidimos comê-lo e passar a noite ali. Os meninos que estavam
conosco rapidamente construíram um abrigo com varas, cipós, e folhas de palmeira.
Amarramos nossas redes debaixo do abrigo e repartimos a carne de macaco assado.
Sentei em minha rede e mastiguei a carne até o osso. Havia pouca conversa. Ao longe,
duas árvores grandes batiam-se e ouvimos um gemido. Todos viramos para olhar. Não era
nada, mas estávamos assustados com a incerteza do que estaria à frente de nós.
Não havia bastante carne naquele minúsculo macaco e ainda estávamos famintos. Mas
sabíamos que quando viajamos, sempre sentimos fome.
Viajamos pela selva durante quase uma lua inteira. Nunca, nenhum de nós, esteve tão
longe de nossas terras. Iríamos ao mundo dos nabas para atender ao conselho de meus espíritos.
Mas, nenhum de nós estava preocupado se estávamos perdidos. Meus espíritos sabiam que
chegaríamos ao rio grande e acharíamos os nabas lá.
Cada dia na selva ficávamos mais famintos. Um dia, atirei num peru. Enquanto assava em
cima do fogo os homens perguntaram-me, “quanto tempo mais?” Eu não sabia. Nunca pensei
que seria tão longe. Diariamente pensávamos, este será o dia em que chegaremos ao rio
grande. E cada dia ficávamos desapontados.

22
“Você tem certeza de que estamos no caminho certo?” eu perguntava ao espírito da Onça
todas as noites, enquanto deitava em minha rede, em uma parte da selva que nunca havia visto.
Todas as noites, ele falava-me que íamos na direção certa.
Então, numa noite, ele disse, “Talvez você deveria conseguir outro espírito, um que saiba
todas as direções que se deve seguir na selva.” Mas, meus outros espíritos estavam certos, pois
íamos à direção certa.
Finalmente, numa manhã, estávamos caminhando juntos e eu procurava macacos nas
árvores . Antes que pudesse parar, um guerreiro na frente gritou com medo. Ele havia visto de
relance algo que nunca vira antes, um rio enorme. Ele estava envergonhado por causa do medo
que havia demonstrado. Talvez daríamos outro nome para ele: Medo de Água Grande.
O resto de nós conseguiu esconder o medo, embora soubéssemos que todos estavam
assustados. Nunca tínhamos visto um rio igual aquele. “Como é que se atravessa isto?” alguém
perguntou. “Mal consigo ver o outro lado.”
“Você sabia que seria tão grande?” Perguntaram-me. Sabia que era grande, mas nunca
imaginei que fosse assim. Ficamos ainda mais admirados, quando vimos a aldeia dos nabas.
Entramos na aldeia com muito medo. Ao redor de nós estavam grandes coisas de madeira que os
nabas haviam feito, coisas tão grandes que as pessoas podiam andar dentro delas. Estavam
cobertas com o mesmo tipo de folhas que usamos no shabono para manter a chuva do lado de
fora. Deve ser onde eles moram, pensei. Meu povo sabia que eu tinha poder de protegê-los de
qualquer dano, neste lugar tenebroso. Eu nunca contei-lhes como estava assustado .
Havia outros índios na aldeia, mas eles não eram como nós. Eles eram índios Myc que
trabalhavam para um naba chamado Noweda.
Os índios Myc viviam perto de nós, Yanomami e tivemos uma longa guerra com eles. Isto
começou quando um índio Myc, ficou impaciente com um índio Yanomami que continuava a
roubar comida da sua roça. Isto não é uma ofensa grande. Fazemos sempre. E o dono da roça é
bem-vindo para buscar comida de nossa roça, especialmente se ele puder escapar com isto. Mas,
este Myc aborreceu-se. Ele foi e cortou um dos seios da esposa do homem. Agora, o homem
Yanomami estava furioso. Ele devolveu, retornou a aldeia e cortou ambos os seios da esposa do
índio Myc. Isto fez com que todos na aldeia ficassem furiosos, e logo começou uma guerra
entre as tribos.
O Mycs poderiam nos vencer numa batalha justa e ao ar livre. Mas, quase nunca as nossas
batalhas eram justas e ao ar livre. Atacávamos enquanto as pessoas dormiam ou fazíamos uma
emboscada no caminho. Mas, a coisa mais importante para nós é que nunca terminávamos uma
guerra. Contei-lhe que guardávamos os ossos de nossos parentes mortos e os moíamos em pó,
como Omawa nos ensinara. Fazíamos uma grande festa, misturávamos os ossos pulverizados
num suco de banana, e bebíamos nosso parente. Então íamos e vingávamos sua morte. Temos
feito isto desde que Omawa nos ensinou. Uma vez que a guerra com os Mycs havia começado,
não havia como pará-la. Claro que roubávamos suas mulheres sempre que podíamos. Elas eram
enormes e nos divertíamos muito com elas.
Os índios Myc nunca poderiam entender por que voltávamos, estação após estação e
geração após geração, para guerrear. Finalmente, eles mudaram, para tão longe, que não
podíamos ir matá-los mais. Assim, ficou conhecido que você poderia ganhar uma guerra contra
os Yanomami hoje, mas os filhos dos seus filhos sempre pagariam por isto.
Noweda, o naba no rio grande, era um homem muito grande, com pele branca e nenhum
cabelo na sua cabeça. Imediatamente vi que ele tinha algum tipo de poder sobre os índios Myc.
Ele mandava que fizessem tudo o que queria. Cozinhavam sua comida, caçavam para ele, e
faziam qualquer outra coisa que quisesse. Ele nos tratou muito bem, talvez por termos arcos e
flechas em nossas mãos, quando entramos na aldeia, ou talvez por sermos Yanomami e por saber
que nos vingaríamos. Mas nenhum dos seus índios tinha arcos, e ele batia neles com um pau
sempre que se aborrecia.

23
“Ele deve ter feito algum feitiço nestas pessoas,” meu irmão me disse.
“Sim, eu sei,” disse. “Os Mycs são guerreiros valentes. Estas pessoas parecem ser
covardes”. Ficamos confusos, pois não entendíamos porque eles permitiam que um naba os
controlasse. Mas, parecia que Noweda nos temia e por isso, tratou-nos muito bem. Por eu ter
saído da selva, ele começou a me chamar de Homem da Selva. Foi assim que consegui este
nome. Agora, todos os outros nabas me chamam assim. Passamos muitas luas com Noweda.
Viajamos com ele pelo rio e o ajudamos a construir uma daquelas coisas grandes de madeira. Os
nabas a chamam de casa. Por isto, ele deu-nos muitas coisas em troca . Ficamos tão ricos. Ele
tinha um cocho enorme que enchíamos de mamão e muitos outros tipos de frutas da selva.
Ficavam lá, dia após dia, enquanto fermentavam e eles o bebiam o tempo todo.
Viajamos para muitas terras com Noweda e os Mycs, juntando seringa das seringueiras.
Por onde andávamos, todos o conheciam. Ele sempre teve muitas mulheres ao seu redor, mas
ficava com elas até terem um bebê. Então, não se interessava mais. Sempre que sentia desejo
de ter uma mulher, agarrava a mais próxima, arrancava as suas roupas, e aprontava. Não se
preocupava com quem estivesse por perto e ninguém pedia que parasse. Logo que o vi fazendo
isto, tive um sentimento curioso quanto aos nabas. Talvez, eles não sejam tão inteligentes
quanto pensei no início.
Descendo o Rio Casiquiare, achamos um lugar onde havia muitas árvores de ebene que
eu jamais havia visto. Havia ebene crescendo em todos os lugares. Parecia o céu dos xamãs.
Pulei da canoa para pegar alguns, mas o velho dono da canoa disse, “Não toque em meu ebene!
Se tocar, atirarei em você.” Tinha tanto ebene lá que seria útil para todos. Então, roubei alguns,
quando ele não estava olhando.
Um dia, Noweda me disse, “Atravesse o rio comigo, nadaremos e tomaremos banho.”
Havia uma lagoa grande lá onde a água ficava parada. “E chamamos Bico de Papagaio para ir
conosco.” Ele vestiu aquele cinto grande que segurava aquelas coisas de metal que faziam um
grande barulho. Tinha uma em cada lado. Chamei Bico de Papagaio, um dos seus Mycs, e três de
nós entramos no barco de Noweda e atravessamos o rio gigantesco.
O menino Myc agia de uma maneira estranha. Noweda me disse, “Nade para lá sem
medo,” e ordenou para que o menino Myc mergulhasse. Noweda ficou perto do barranco e eu
também, porque não podia nadar. Mas o menino, mergulhava na água como se fosse uma lontra
e nadava como um jacaré. Ele fazia mergulhos bonitos do topo de uma pedra e desaparecia por
muito tempo na água. Então, ele subia no outro lado da lagoa. Nunca havia visto alguém fazer
tais coisas na água. Uma vez, o vi mergulhar e uma enguia bater nele. Ele pulara da água como
um peixe. Mas, logo subia na pedra e mergulhava novamente.
Noweda sentara na pedra grande e assistia. Enquanto encarava o menino, uma expressão
esquisita formou-se em seu rosto. A próxima vez que o menino mergulhou na água, Noweda
puxou uma de suas varas de metal do cinto e apontou para o lugar onde subiria. Quando sua
cabeça saiu da água, ouvi o barulho do trovão, e vi uma pequena chama saindo da vara de metal.
Um buraco sangrento apareceu no rosto do menino. Ele afundou na água que ficara vermelha
com o seu sangue. Corri de terror. Meu peito palpitava com medo, quando cheguei à praia do
rio grande. Corri alguns passos ao longo da praia mas não pude passar por uma pedra grande,
porque não sabia nadar.
Noweda soltou um riso enorme. “Amigo!” ele gritou enquanto eu agachava debaixo da
pedra e tremia de medo. “Não tenha medo!” ele apontava à piscina sangrenta, imitando como o
menino afundara no seu próprio sangue e rugira numa risada. Alguns dos trabalhadores Myc
haviam dito que ele matava as pessoas, mas eu não havia acreditado. Esta matança certamente
começaria uma guerra com o povo do menino.
Eles haviam ouvido o tiro do outro lado do rio. Quando nos viram voltando e apenas dois
de nós no barco, imaginaram o que havia acontecido. Ouvimos um grito do barranco enquanto
aproximávamos. Eu quis fugir de Noweda porque sabia que flechas viriam.

24
Mas, ele tirou as suas coisas de metal e começou a gesticular com elas e gritava a todos,
chamando-os de nomes de partes intimas do corpo e muitas outras palavras que eu ainda não
entendia. E eles não se vingaram! Soube, naquela hora, que por maior que fosse o poder que eu
tinha de controlar as pessoas, ele tinha muito mais. Ele tinha tanto controle sobre estas pessoas
que nem sequer os parentes do menino tentaram vingar-se.
Juntei os guerreiros e nos apressamos para ir para casa. Noweda tinha prometido
conseguir para mim uma dessas varas de metal, que ele chamava de espingarda. E teria amado
ter uma, mas depois do que vi, não aguardei por isto. De todo jeito, partimos mais ricos que
pensávamos ser possível. Estávamos carregados de machados, facões, pano vermelho para
tangas, panelas de cozinha, tudo.
O caminho para casa foi longo e duro, embora, agora, tivéssemos facões para nos ajudar
a abrir o caminho. Na segunda manhã, alguns de nós, acordamos com dores na garganta, olhos
doloridos, e muito quentes. Eu tinha um pouco de ebene, então pedi para alguém assoprá-lo em
meu nariz e falei com meus espíritos. Outra vez, vi meu shabono e as pessoas bonitas que amo,
virem a mim e chamarem-me de Pai. E eles gostavam quando chamava-os de minhas crianças.
“Os nabas puseram um feitiço mau em você,” espírito Curador falou-me. “Muitos de vocês
morrerão.”
Encantadora sussurrou em meu ouvido. “Estou certa de que você não morrerá. Você é o
meu guerreiro valente.” Ela era tão bonita e amável comigo. Eu a amava.
Com a ajuda de espírito Curador, chupei a doença e a cuspi. Mas, no dia seguinte, um de
nossos guerreiros morreu.
Queimamos o corpo dele, juntamos seus ossos e continuamos a caminhada. Mas no dia
seguinte, todos, menos o meu irmão, estavam doentes. Não podíamos caminhar muito rápido.
No dia seguinte, outra pessoa morrera e no próximo dia outra. Cada vez, queimávamos os corpos
e juntávamos os ossos, antes de continuarmos. Mas eles continuaram morrendo e meus espíritos
não conseguiram parar com as mortes.
Havia muitos morrendo e não podíamos perder tempo queimando todos. Começamos a
deixar os corpos ao longo do caminho. A cada dia, alguém morria, alguns dias, dois. Alguém
morria para cada dedo das minhas mãos e todos os dedos dos pés. No final, estávamos muito
doentes para viajar e que paramos para esperar que a doença fosse embora. Mas não foi.
Depois de muitos dias, começamos a caminhar, embora estivéssemos muito doentes.
Rastejávamos nas nossas mãos e joelhos o dia todo e não caminhávamos muito. Dois, dos jovens
guerreiros, estavam bem; então caçavam comida para o resto de nós. Quando anoitecia, não
podíamos nos levantar para amarrar as nossas redes então dormíamos no chão da selva. À noite
estávamos muito fracos para lamentar aquele que havíamos perdido durante o dia. Deixávamos no
caminho. No próximo dia acontecia o mesmo. E no próximo. Muitos de nossos homens morreram.
Quando chegamos no shabono, fracos e magros, começamos a lamentar por todas as
“flechas quebradas” que havíamos deixado para trás. Nem tivemos condições de queimar os
corpos deles. Todas as mulheres juntaram-se a nós e lamentamos por muito tempo. Naquela
noite, enquanto dormíamos, as mulheres começaram a chorar pelos homens delas. Continuou a
noite toda. E durante muitas noites, as mulheres nos despertaram com o choro delas.
Perguntei aos meus espíritos se deveríamos nos vingar. “Você poderia perder muitos
guerreiros tentando vingar-se,” Onça falou-me. “Você precisa dos espíritos que protegem contra
as doenças do naba. Da próxima vez, antes de ir para o mundo dos nabas, você tem que gastar
mais tempo conosco e tem que nos enviar à frente para proteger contra o mau que virá quando
entrarem na terra deles.”
Quando finalmente ficamos fortes, levei alguns homens e mulheres para o caminho, para
recuperarmos nossos mortos e os bens que tínhamos deixado. Achamos quando procurávamos
casas de cupim. Em todos lugares em que estava um corpo, havia uma casa de cupim enorme em

25
cima dele. Todos os nossos panos para tangas, foram destruídos, mas achamos os machados e os
facões .
Em cada lugar que achamos um corpo, construímos um fogo e o queimamos, e
lamentamos a nossa perda. Levaram muitos dias para achar todos os corpos e queimá-los.
Voltamos ao nosso shabono com muitos ossos.
Quando entramos no shabono, todos lamentaram. Muitos de nossos mortos eram amigos
e parentes do povo das aldeias vizinhas que havíamos convidado para irem juntos na viagem. Um
deles deu os ossos do seu irmão à sua esposa e agarrou-me pelo braço. Puxou-me ao centro do
shabono e expôs o seu peito. Expus o meu peito e ele me bateu com toda a sua força, e então
me mostrou o peito dele. Bati com toda a minha força e mostrei o meu peito novamente. Ele
bateu no meu peito mais uma vez e ressaltou o seu para outra batida. Trocamos batidas até ele
se machucar e ficar cansado. Ele estava bravo comigo. E eu estava bravo com meus espíritos.
Precisamos de uma briga assim para ajudar com a nossa aflição.
Um dos parentes trocou de lugar com ele e bateu no meu peito. Eu bati também. Ele
havia perdido o seu irmão. Depois que se cansou, outro tomou o seu lugar.
Havia muitos me batendo, mas não podia bater neles com muita força. Finalmente, não
pude agüentar mais e cai no chão. Passamos o resto da noite chorando a nossa aflição. Foi um
tempo horrível para mim porque eu tinha levado todos os nossos queridos à morte. Sabia que
merecia aquelas pancadas. Mas, naquela noite, enquanto deitava em minha rede, escutei todos
os gritos do meu povo e fiquei chateado com meus espíritos.
“Por que você fez isto comigo?” Gritei ao espírito da Onça. “Por que não pude manter vivo
o meu povo? Foi você quem enviou-nos nesta viagem.”
“Não fique bravo conosco, Pai,” espírito da Onça implorou. “Por favor não nos jogue fora.
Não somos os espíritos certos para controlar a doença dos nabas. Você precisa conseguir um
espírito diferente para isso. Você precisa dos espíritos que governam as doenças do naba.”
Eu não sabia o que dizer a ele; já tinha tantos espíritos que nem conseguia tempo para
conversar com todos. Estava irado, e durante toda à noite, meus espíritos continuaram tentando
tranqüilizar-me. Enviaram Encantadora para ficar comigo. Ela sempre me fazia sentir bem. Mas
ainda estava bravo.
No próximo dia, todos os homens juntaram-se para decidir se deveríamos nos vingar dos
nabas. Mas, estávamos confusos. Lança e eu consultamos os nossos espíritos. Até os espíritos
estavam confusos. “Você precisa conseguir um espírito diferente para a doença dos nabas”,
continuaram nos falando.
Agora, a nossa vida estava melhor, por causa das coisas novas que havíamos conseguido
dos nabas. Mas ainda não podíamos dormir, por causa do medo de uma invasão dos parentes da
Aldeia Batata. Lança ficou tão assustado, quando estive fora, que levou toda a aldeia no wyumi.
Eles esconderam-se na mata, enquanto procuravam comida e cobriram os seus rastros por onde
vagavam.
Fortalecemos nosso shabono e construímos uma alana mais alta na abertura e mais
comprida de lado. Isto dificultaria a entrada dos nossos inimigos para nos flecharem. Ainda assim
não estávamos seguros e sabíamos disto. Não podíamos dormir.

26
CAPÍTULO 3

NEM TODO ESPÍRITO É O QUE PARECE

Deemeoma cresce a cada dia. Ela costuma ficar ao lado da irmã para proteger-se das
outras crianças. Mas Fredi não tem nenhuma proteção e as crianças sempre tiram sarro dele.
Elas dizem, “Nós matamos seus parentes”. Os assassinos mais experientes chamam a atenção
delas. Mas não param. Fredi sempre chora.
Lança casou-se com uma menina que chamamos de Partes Íntimas Ruidosas. A chamamos
assim porque uma vez em que estava tomando banho, fez alguns barulhos com suas partes
íntimas. É claro que ela odeia o nome mas … Quando um menino se torna homem, o nome de
sua infância torna-se um insulto e ele lutará para impedir que qualquer um o use. Mas chamamos
as mulheres do que queremos. Partes Íntimas Ruidosas dará muitos filhos para Lança.

Um dos assassinos da invasão na Aldeia Batata era um xamã, como eu. Todos o
respeitavam, tanto como um xamã quanto como um guerreiro. Ele tinha um filho chamado
Sapato-Pé. Sapato-Pé foi o jovem que ajudou-me a caçar o peru. Os outros líderes da aldeia e eu
descobrimos que aquele jovem se interessava muito pelo mundo dos espíritos. Como um líder
entre os xamãs, fiquei responsável por treinar e passar nossos costumes a ele.
Construímos um lugar especial para ele no shabono, onde ninguém poderia vê-lo e nem
falar com ele. Ele poderia comer somente certas coisas e pouco. “Precisamos deixá-lo muito
magro, só assim os espíritos virão a você,” falei-lhe.
Via Sapato-Pé emagrecer dia apos dia. Não foi permitido que falasse com ninguém, a não
ser com algum espírito que viesse a ele. Depois de muito tempo ele estava pronto. Nós o
liberamos. Lança colocou um punhado de ebene verde no fim de um cano comprido e o
encostamos cuidadosamente na narina dele. Soprei na outra ponta e enviei o ebene até o seu
cérebro. Ele se encolheu no chão por causa da dor e levantou-se quando o ebene começou a
fazer efeito e foi para o mundo dos espíritos. Dancei com ele, invocando os primeiros espíritos
que construiriam um shabono no seu peito. Isto abriria um lugar para os outros espíritos virem e
morarem.
“Vi coisas como nunca havia visto antes,” Sapato-Pé disse-me quando voltou da sua
viagem ao mundo dos espíritos. Ficou claro que os espíritos o tinham levado a alguns dos lugares
que eu havia ido.
“Falei-lhe que o mundo dos espíritos é muito melhor do que este aqui, não falei?”
“Sim, você falou. Mas como é que eu poderia saber?”
Eu sabia desde o início que Sapato-Pé seria bom. Ele se tornaria tão bom com os espíritos
quanto eu.
“Você vai ser um grande homem no mundo dos espíritos, amigo,” falei. “E já posso
observar isso. Você será um grande líder do nosso povo.”

Durante algumas noites, Lança e eu tomávamos ebene e falávamos com os nossos


espíritos para ver se ao nosso redor havia perigo. Agora começamos a incluir Sapato-Pé em
nossos freqüentes encontros com os espíritos. Passaram-se muitas luas e ainda não podíamos
sair e trabalhar em nossas roças, por causa do medo de sermos atacados, e não havia comida
suficiente para comer. As crianças sempre estavam chorando de fome.

27
A fome dos adultos era tanta que quando conseguíamos algo, quase nunca sobrava para as
crianças.
Uma noite, acordei com uma mão trêmula tocando em meu peito. Pulei da rede e peguei
meu arco e flechas. “Tenho certeza que ouvi alguma coisa”, Sapato-Pé sussurrou, sua voz estava
trêmula. Eu também tremia, mas não ouvimos nada. Engatinhamos, um passo de cada vez,
silenciosamente, na direção da entrada do shabono. A lua e as estrelas não estavam brilhando,
então não dava para ver nada. Nem podíamos ver um ao outro. Atrás de nós mal dava para ver
as brasas quase apagadas dos fogos do shabono. Só isso. O silêncio foi interrompido pelo
zumbido distante de um peru.
“Rapaz, como gostaria de comê-lo,” Sapato-Pé sussurrou. “Vamos buscá-lo.”
“Nunca!” sussurrei asperamente. “Você bem sabe que é lá que os nossos inimigos estarão
nos esperando para uma emboscada.” Logo na entrada do shabono ouvimos um pequeno
movimento que vinha da selva em frente de nós. Aprontamos as nossas flechas para atirar. Eu
estava a ponto de soltar uma quando ouvi sussurros vindos do mato.
“Somos nós, somos nós,” eles sussurraram, quase tarde demais. Eram os homens da
nossa aldeia. Haviam ido buscar o peru mas ficaram com medo e voltaram. Guardamos nossas
flechas.
“Que bom que vocês não continuaram andando,” eu disse. “Tem alguma coisa lá fora. Eu
posso senti.” Voltamos às nossas redes mas não dormimos.
Durante várias noites foi assim. Escondíamos dentro de nosso shabono, com medo de um
ataque, de sair e de caçar. Morreríamos logo. Então, decidimos fazer wyumi com toda a aldeia.
“Não estaremos tão protegidos vagando na mata”, falei para todos, “mas será mais difícil nos
achar e podemos dividir-nos para lugares diferentes. Talvez possamos achar algo para comer.”
Wyumi sempre é difícil. Apenas vagamos pelo mato, dia após dia, procurando alguma
coisa que seja comestível. Quando não achamos nada, é horrível. As crianças morrem primeiro,
porque elas sempre são as últimas a serem alimentadas e é tão difícil para elas nos
acompanharem. Mas, nada poderia ser pior do que havíamos passado desde a invasão a Aldeia
Batata.
Nos dividimos e fomos para direções diferentes. Fomos para o meio da selva e cobríamos
nossos rastros enquanto caminhávamos. Lança e eu estávamos no mesmo grupo. Sapato-Pé veio
conosco porque ainda estava ensinando-o.
Achamos um pé de mamão e apanhamos um pouco da fruta. Matei um peru. Todos
sabiam que as pessoas que estavam comigo comeriam melhor porque eu sempre trazia bastante
caça. Outros caçadores aproximavam-se da caça e normalmente espantavam o animal. O meu
método era de subir numa árvore fazendo bastante barulho como os macacos fazem. Quando me
aproximava do pássaro ou do macaco na árvore, flechava-o. Meus espíritos faziam com que os
animais pensassem que eu fosse um outro macaco.
Naturalmente as onças me seguiam porque eu sempre estava junto da caça. Uma vez,
estava caçando e achei uma árvore cheia de perus. Deixei a maioria das minhas flechas no pé da
árvore e comecei a subir para pegar um, quando ouvi algo pisando em minhas flechas. Olhei
para baixo, por cima de um galho. Meu coração disparou quando vi algo preto subindo na árvore.
Se for um onça, pensei, será o meu fim. Então, vi as pelotas enormes embaixo da sua
pata dianteira quando agarrou na casca da árvore. Em cada lado da sua boca, via duas presas
grandes que se juntavam. Mas seus olhos eram mais assustadores. As fendas, no meio dos seus
grandes olhos azuis, indicavam o que ele buscava.
Olhei para os lados, mas não havia outra árvore por perto para eu pular. Olhei para baixo.
Ela se aproximava e continuava escalando.

28
Escalei para um galho mais alto onde havia mais espaço para movimentar-me e tirei a
corda do meu arco. Ela estava do outro lado do tronco. Podia ver suas patas em cada lado da
árvore. Ouvia sua curta respiração enquanto se aproximava.
Quando ela estava no mesmo nível que eu, ela lentamente deu a volta no tronco. Mas eu
estava pronto. Furei-a no pescoço com a ponta do arco e empurrei-a da árvore. Gritei com medo.
Ela gritou quando caiu na terra e correu. Claro que os perus não me esperaram enquanto tudo
isso acontecia. Eles haviam fugido.
Cada vez que saia para caçar, as onças me acompanhavam. Elas me aterrorizavam.
Sempre tiveram ciúmes de mim porque eu conseguia comida na mata com muita facilidade. Uma
vez, um onça me encurralou e estava prestes a me agarrar. Mas falei para ela, “não me arranhe
agora. Estou preso nestes cipós aqui. Você está aproveitando de mim.” Não sei por que, mas ele
tirou suas garras de mim e sentou-se nos cipós. Atirei no seu pescoço. Depois que a ponta
envenenada a matou, amarrei-a em minhas costas e levei-a para casa. Então disse, “Pronto.
Pode me arranhar agora.”
Eu, às vezes, desejava saber se as onças com quem me encontrava, poderiam ser
parentes, de alguma forma, do Espírito da Onça, mas eu nunca sentia que eram. Espírito da onça
era um Yanomami com a coragem de uma onça. Era aquele espírito que me fazia tão corajoso. E
coragem é a única maneira de enfrentar um onça.
À noite, tomava ebene e ensinava mais Sapato-Pé sobre os espíritos. Ele era um jovem
impetuoso, mas muito valioso para o mundo dos espíritos.
Wyumi era tão difícil porque sempre havia pessoas doentes. Isto dava bastante trabalho
para nós, xamãs. Freqüentemente os pequenos adoeciam. Muitas vezes, perseguia as almas das
crianças até a terra do espírito hostil e as devolvia. Mas, muitas vezes, não conseguia alcançá-las a
tempo e elas morriam. As pessoas velhas, freqüentemente, morrem em wyumi. Sabíamos que
quando nos reuníssemos, teríamos muitas cabaças cheias de ossos para beber e muito para
lamentar.
Daquele tempo até agora, Lança nunca contara a ninguém o que acontecera com ele. Mas
ele contou-me.
O pai de Lança estava muito velho e morrendo, e não podia acompanhar o nosso ritmo.
Mas ele não morreria do jeito que as outras pessoas doentes morrem. Continuava envelhecendo
e ficava cada vez mais fraco. Tomamos ebene e usamos os nossos espíritos para curá-lo, mas
nada adiantara. Meus espíritos aconselharam-me a deixá-lo. A cada dia, enquanto procurávamos
comida, o velho ficava mais para trás. Lança, sua esposa e as crianças pequenas ficavam para
trás com o velho, para que ele não se perdesse e para ajudá-lo a acompanhar-nos. Ficávamos de
olho neles, mas uma vez ficaram tão distantes que os perdemos na selva. “Deixe-me,” o homem
velho continuava dizendo a Lança. “Deixe-me. Deixe-me morrer sozinho.”
Mas Lança não podia fazer isto. No dia seguinte foi pior. O velho quase não podia andar.
Lança foi caçar mas não achou nada. Não tinha mais caça na área e não havia nenhuma fruta nas
árvores. Na época certa, a mata produz o suficiente para manter uma pessoa viva. Mas, na
época errada, não há nada.
Quando Lança voltou naquela noite, o velho queria conversar com ele. Ele pediu para
Lança ir aonde ele poderia achar comida para o resto da família e deixá-lo morrer. Mas sua boca
não conseguia formar as palavras. Lança deitou-se na rede, no meio da selva escura. Havia tanto
que ele queria dizer ao seu pai. Mas não conseguia falar. Havia muito que ele queria lhe
perguntar, tantas coisas que não sabia, especialmente agora. Mas conseguiria algo sábio de um
homem confuso e que estava prestes a morrer? Lança procurou seus espíritos para perguntar o
que deveria fazer.
“Está na hora,” eles lhe falaram.
Na manhã seguinte, Lança gesticulou com sua mão à sua esposa e crianças. Eles sabiam
que isto significava que eles deveriam partir e tentar alcançar o restante da aldeia. Sabiam que
29
Lança seguiria quando tivesse terminado. Ele ficou para trás com o seu velho pai. Ele nem está
doente, Lança pensou. Apenas tão velho que não pode caminhar muito bem.
Depois que os outros partiram, Lança tentou falar com seu pai novamente. Mas não
conseguia dizer nada. Nem mesmo podia lhe falar que a família tinha prosseguido para alcançar o
grupo. E tinha muito mais. Queria dizer que não queria fazer o que ia fazer; mas não podia falar
isso também. Ele estava com um grande nó na garganta.
O homem velho olhou para Lança. Ele podia ver nos olhos cansados do filho o que estava
pensando. Queria falar com seu filho, mas não sabia como começar. Não disse nada. Lança olhou
nos olhos do seu pai. Ele via medo. Desespero. Surpresa. Será que meu pai não tinha esta
intenção quando me pediu para ir e deixá-lo?
Lança colocou alguns pedaços de fruta seca e castanha numa folha de palmeira debaixo da
rede do seu pai. De fato, não tinha comida sobrando, mas… não tinha outra coisa a fazer,
nenhum motivo para ficar mais, se não para dizer todas as coisas que queria. Mas não tinha
como. Então fez algumas coisas, coisas que realmente não precisava. Desamarrou a corda da sua
rede, depois amarrou outra vez, depois desamarrou novamente. Organizou a fruta e as castanhas
na folha de palmeira. Apertou o fio do seu arco embora já estivesse apertado. Endireitou as penas
da flecha. Lança sabia que hoje não daria para caçar de todo jeito. Ele não poderia. Este seria o
dia mais horrível da sua vida.
“Onde é que vocês estão, agora que preciso de vocês?” Lança indagou aos seus espíritos.
“Vocês nunca me ensinaram a enfrentar isto.”
Lança não sabia como dar o primeiro passo à rede do pai. Deveria andar para trás e
continuar olhando para o seu pai? Deveria virar-se? Ele não conseguiu impedir que uma lágrima
escorresse pela sua face. Nada em toda a minha vida poderia ser mais difícil que isto, pensou.
Deu alguns passos do pequeno abrigo de folha de palmeira que protegeria a rede do seu
pai, caso chovesse, antes da sua morte. Deu mais alguns passos e depois outros. Olhou para
trás. A cabeça do seu pai estava curvada para fora da rede. Estava olhando por debaixo das
folhas do abrigo. Lança olhou na outra direção. Talvez seu pai não havia visto quando olhara nos
seus olhos. Sabia que não deveria ter olhado para trás, pensou e virou para caminhar. Começou a
chorar com agonia. A família o ouviu e sabia que havia terminado de fazer a sua obrigação e
seguia-os.
Lança estava furioso com seus espíritos. “Por que vocês me obrigaram a fazer isto?”
Perguntou-lhes com raiva. “Vocês são inúteis! Vocês não têm nenhum poder curador! Eu deveria
jogá-los fora!”
O pai de Lança ouvia os gritos do seu filho até que ficaram muito distantes. Ele escutou o
resto do dia. Mas o choro ficava cada vez mais distante. Estarei mais forte amanhã, pensou…
talvez. Talvez levantarei e os seguirei. Ele teria comido um pouco da fruta, mas não tinha fome.
Esperou dormir e não acordar. Mas acordava. Comia toda a fruta e as castanhas e ainda estava
com fome e seu corpo doía. Esperava a escuridão. Esperou por Lança. Esperou que a dor fosse
embora. Mas nada acontecera. A dor era tanta que sabia que estava morrendo e desejava que
acontecesse rapidamente. Mas não acontecia. Mas a dor de estar sozinho para morrer era pior
que a dor de morrer.
Nunca mais vimos o pai de Lança. Mas sabia como ele se sentia, porque um dia achamos
um homem que havia sido deixado, da mesma maneira que o pai de Lança. Haviam passado dias
e ele ainda estava vivo. Nós o alimentamos e ele veio morar conosco. Estava tão triste que não
falava sobre ter sido deixado. Um dia, quando ninguém estava perto, ele sussurrou ao meu
ouvido a sua história, de como havia sido deixado pelo caminho.
Ao anoitecer, Lança deitou-se na sua rede e lamentou. Toda a família lamentou com ele.
Todo o povo lamentou e isto fez-nos lembrar de nossos parentes cujos ossos havíamos bebido e
choramos ainda mais. Todos lembraram-se das outras ocasiões em que tivemos de deixar um
parente velho e lamentamos por eles. O barulho dos gemidos assustou as crianças e elas
30
correram aos pais para serem confortadas. Depois de lamentar durante a metade da noite, as
nossas vozes ficaram doentes e não podíamos fazer nenhum barulho. Lança foi deixado a sós com
os seus pensamentos. “Não pode ficar pior do que isto,” ele disse aos seus espíritos .
Ele tinha razão. Para Lança nunca houve uma noite pior do que aquela. Sabia que não
dormiria, até mesmo depois que todos, na aldeia, ficassem quietos por muito tempo. Assim, ele
esqueceria daquela lembrança, ainda pior, que estava roubando o seu sono, aquele guerreiro da
Aldeia Batata. Lança viu o rosto dele e novamente ouviu o seu grito, “não me mate, irmão mais
velho!” Lança tentava mudar o que lembrava e dessa vez não atirar, mas soltava a corda e a
flecha voava.
Certamente com a lembrança do rosto do pai, ele esqueceria o rosto terrível daquele
guerreiro que implorava para viver. Mas, como dormiria? Será que os outros lutadores ferozes não
tinham dificuldade para dormir depois de uma matança, ele desejou saber. Fiz algo errado
durante o unokai? Talvez me toquei com meus dedos e não me limpei da matança.
Agora a dor da lembrança do pai foi somada a da outra. Sabíamos que Lança estava
sofrendo muito, mas ele nunca havia contado o quanto. Depois de muito tempo vagueando na
mata, reunimo-nos novamente no shabono.
Uma noite, depois que os fogos estavam baixos e todos, na aldeia, estavam quietos, as
famílias ao redor de Lança se assustaram quando um grito saiu em meio a quietude. “Irmão mais
velho, não me mate!” ninguém tinha medo porque não havia gritos de invasores no ar. Era a voz
de Lança que clamava, “não me mate, irmão mais velho!”
“Menino de Frutas saiu da rede e tropeçou, na escuridão, até a rede do seu pai. Ele
segurava os braços do pai, enquanto lutava tentando proteger-se. Eles estavam molhados e
escorregadios com suor.”
“É um sonho! É um sonho,” Menino de Frutas dizia tão alto quanto podia. Ele tinha que
proteger seu pai de saber que havia acordado os outros com o sonho terrível. Seu pai seria
humilhado se as pessoas soubessem que estava preocupado com a sua matança. Lança lutou
para livrar seus braços do aperto do seu filho. “Sou eu, Menino de Frutas!” Sussurrou no rosto do
pai. Lança acordou e prostrou-se sobre sua rede. Deu um grande suspiro de alívio. Menino de
Frutas voltou para a sua rede.
A aldeia ficou quieta novamente. Mais quieta que antes. Pessoas estariam meditando.
Menino de Frutas desejou saber quanto tempo levaria até que seu pai esquecesse. Lança desejou
saber se poderia ter acordado alguém. Certamente pensarão que não sou um guerreiro feroz,
pensou. O pai de Sapato-Pé e o pai de Vesgo pensaram se alguma vez tiveram um sonho assim
que mostrara aos outros os seus medos. Talvez todos saibam que não somos tão ferozes quanto
falamos, ambos imaginaram. E cada um queria saber o que o outro poderia estar pensando.
Nunca admitimos ter medo.
Como qualquer bom xamã, procuro os melhores espíritos para Sapato-Pé. Há bastante
espíritos maus que amam viver em seu peito para que você faça coisas loucas. Todos os xamãs,
principiantes, têm que aprender a distinguir entre espíritos maus e bons. Um xamã nunca será
mais inteligente ou mais poderoso do que os seus espíritos. É por isso que sempre estava
advertindo-o sobre o Espírito do Veado.
“Encontrei-o e era muito bonito,” Sapato-Pé disse depois que acabou o efeito do ebene .
“Fale-me sobre ele.”
“Ele podia fazer-se muito atraente à todas as mulheres. Elas o amavam. Podia ter qualquer
uma que quisesse. Apenas falava com elas e o queriam e amavam.”
“Esse é o espírito de Howashi,” eu disse. “Você não o quer. Aquele espírito do macaco é
o pior. Por favor, acredite em mim. Você não o quer.”

31
“Mas ele era tão maravilhoso. Ele podia fazer com que uma mulher o quisesse somente
olhando para ela,” Sapato-Pé discutiu.
“Você tem muito que aprender,” eu disse. “Escute. Nem todo espírito realmente é o que
parece ser. Howashi é um enganador. Você tem visto howashis. Eles pensam que todo animal
na selva quer fazer sexo com eles. Mas querem? É por isso que o macaco é tão estúpido, é por
isso que sempre está coberto com seu próprio esperma. Bem, é exatamente assim que aquele
espírito é. Você não deseja aquele tipo de espírito. Ele o possui. Você não o quer. Uma vez que
o adquire, nunca se libertará dele. Ele só dá trabalho.”
“Você já conheceu alguém que ficou com ele?” Sapato-Pé perguntou.
“Ambos de nós conhecemos alguém. Pense e veja se pode dizer quem é.”
Sapato-Pé pensou um pouco. “Você quer dizer meu tio, não é?”
Acenei com a cabeça. “Certamente. Ele não pensa que todas as mulheres da aldeia
querem ter sexo com ele? Ele é completamente enganado pelo espírito de Howashi.” Sapato-Pé
sabia muito bem do tio dele. Ele era a maior fonte de brigas na aldeia, porque não conseguia
tirar suas mãos das mulheres.
No dia seguinte, Sapato-Pé tomou mais ebene e tentou evitar Howashi e achar espíritos
novos. Mas, de alguma maneira, ele teve algumas dificuldade. Os espíritos conduziram-no para
fora do shabono e pelo caminho. Persegui-os depois. No caminho, atacaram-no e bateram na sua
cabeça com um galho de árvore enorme. Ele caiu no chão. Eu estava certo de que estava morto.
Entrei no mundo dos espíritos e lutei com estes espíritos novos enquanto pairavam sobre
Sapato-Pé e espancavam-no. Meus espíritos juntaram-se comigo na briga. Foi difícil. Nem
sequer eu podia entender se acontecia no mundo dos espíritos ou no mundo real. Muitas vezes
acontece ao mesmo tempo, em ambos os mundos.
Juntos espantamos os espíritos e eles deixaram Sapato-Pé. Alguns de seus parentes viram
o que acontecera e seguiram-nos para fora do shabono, até o caminho. Eles me viram lutando
por ele, mas não puderam ver os espíritos, claro. Todos assistimos enquanto ele permaneceu
imóvel por muito tempo. Finalmente, despertou-se.
“O que aconteceu?” Perguntei-lhe.
“Eu não sei.” Ele disse. “Você me diz.”
“Você adquiriu alguns maus novamente. Eles tentaram te matar. Não sei por que.”
Depois disso cuidei mais do treinamento de Sapato-Pé. Ficou claro que ele era especial.
Todos os espíritos interessavam-se por ele. Não fui pego de surpresa ao ver que ele havia
enganado-se com Howashi, mas fiquei completamente confuso ao ver que ele havia achado alguns
espíritos que tentaram matá-lo. No final de sua vida poderiam matá-lo, como muitos fazem com
seu xamã quando fica velho e inútil. Mas isso não aconteceria comigo, claro; tenho espíritos bons.
Mas não deveria ter acontecido a Sapato-Pé porque é principiante.
Queria saber se poderia ser alguma daquelas mulheres que ficaram com ciúmes, por tê-las
ignorado. Talvez estivessem tentando se vingar, matando o meu novato favorito. Há tantos
espíritos que parecem bons, mas não passam de enganadores. Nós xamãs precisamos ser muito
sábios e saber selecionar.
Sapato-Pé estava começando bem. Ele tinha os espíritos certos, os que constroem o
shabono em seu peito. Agora muitos outros, que são melhores deveriam vir e morar nele. Mas,
pelo contrário, Sapato-Pé continuou adquirindo espíritos com os quais não se dava bem.
Uma vez, ele estava deitado em sua rede, doente, com malária, e dois espíritos vieram à
rede dele com uma bebida deliciosa de fruta de palmeira. Eles eram bonitos, como minha própria
Encantadora. Sapato-Pé ficou encantado. Queriam levá-lo embora, mas tinha medo de ir com
eles.

32
No dia seguinte voltaram para roubá-lo. Eram muito bonitos para resistir. Eles o
conduziram para a selva onde não havia nenhum mato baixo e correram com ele em grande
velocidade. Conduziram-no para longe da aldeia. Mas os pais de Morcego e Não Cresce seguiram
Sapato-Pé dentro da selva e acharam-no. Quando tentaram trazê-lo para casa, não os reconhecia
e ficou aterrorizado em vê-los. Levou muito tempo, mas finalmente conseguiram trazê-lo de volta
para casa.
Precisávamos de mais bens de comércio, então fizemos a longa viagem até a aldeia dos
nabas e trabalhamos novamente para Noweda. Desta vez, pedimos muito aos nossos espíritos
para nos protegerem. Noweda sempre tratou-me como um amigo. Viajamos para um lugar onde
morava o irmão de Noweda. O irmão dele devia ter tido alguns espíritos poderosos porque era
ainda mais cruel que Noweda e as pessoas não faziam nada contra.
Uma vez, descemos o Rio Casiquiare até a fronteira do Brasil. Um grande grupo de nabas
estava bebendo uma bebida que os levava a fazer coisas esquisitas. Entrei numa casa grande
onde havia um grupo de pessoas; todos estavam nus. Nós, Yanomami, estamos sempre nus,
claro, mas isso é porque não temos roupa. Não podia imaginar porque as pessoas que tem roupas
gostariam de ficar nuas. Estavam todos entrelaçados, fazendo sexo com todos, sem nenhuma
preocupação se alguém estava vendo-os. Noweda participou também.
Dei estalos com minha língua e meneei minha cabeça. Nunca esquecerei do que pensei.
Eu pensei, estes nabas podem ter muitos bens de comércio e saber muitas coisas, mas realmente
são muito mais bobos que nós, Yanomami. Somente os animais não se preocupam se tem alguém
por perto os vendo acasalarem-se.

33
CAPÍTULO 4

NOSSA DOR NÃO É CULPA DOS NOSSOS ESPÍRITOS

Deemeoma e as mulheres que capturamos, até que em fim, estão acostumando-se


conosco. Tyomi conseguiu o homem que queria, mas quase morreu com um golpe de facão por
causa dele. Deemeoma fez um escândalo tão grande que quase a matei. Mas elas estão
acostumando-se conosco. Fredi ainda não está contente. Continuo treinando Sapato-Pé. O pai
dele me deu sua irmã bonita, Cabeluda. Ela me deu um filho. Lança ainda sofre com a lembrança
da invasão e do seu pai. Nosso povo vive com um medo constante. Especialmente eu.

Estava deitado na rede divertindo-me com meus espíritos, quando vi espírito de Jacaré
provocar uma briga com outro espírito. Era o espírito de alguém da nossa aldeia, mas não sabia
de quem. “Por que você está brigando com ele?” perguntei a Jacaré. Então, perguntei a um de
meus espíritos, “Por que ele está brigando?”
“Porque ele quer,” meus espíritos falaram. “Ele não está dançando com você. Você não
tem tempo para ele. Então, ele não tem nada para fazer.” Jacaré deu uma grande mordida bem
no meio do outro espírito. Não prestei atenção no que estava acontecendo porque estava
dançando, no centro do shabono, com meu espírito favorito.
Mais tarde, naquela noite, uma pequena menina, da nossa aldeia, ficou doente, com uma
forte dor na barriga. Seus pais trouxeram-na para mim. Pude ver, imediatamente, que era uma
dor que vinha do mundo dos espíritos e não poderia fazer nada por ela.
Eu era o único da aldeia que sabia porque a menina havia morrido. E também sabia que
ela não tinha sido a primeira a morrer assim. Muitas vezes, havia visto o espírito de Jacaré ou o
espírito da Onça darem mordidas nos espíritos das crianças da aldeia. Naquele ou no dia
seguinte, de repente, a criança ficava doente e morria, antes que pudesse ajudar.
Contei isto ao velho da aldeia, o pai de Vesgo Foi ele que havia salvado Deemeoma,
Fredi, e as mulheres, naquele dia na Aldeia Batata. Ele é um xamã, por isso sabia que não
contaria às pessoas da aldeia, que um dos meus espíritos havia matado alguém do nosso povo.
“Você tem espíritos poderosos,” ele disse. “Conheço bem estes espíritos. Deixe-me
mostrar o que fazer para que façam isto aos nossos inimigos. É o que realmente gostam de fazer.”
Perguntei aos meus espíritos se poderiam matar outras crianças. “Não faço isto,”
Encantadora me falou, “mas posso conseguir espíritos que fazem.” Ela me apresentou a Homem-
Cobra. Não havia mais lugar no meu shabono para mais espíritos. Mas ainda assim, ele entrou e
achou um pequeno espaço.
“Primeiro, você acha a pegada da pessoa que quer matar,” Homem-Cobra me disse.
“Então cava, cuidadosamente, a impressão do dedão do pé e do dedo próximo a ele e embrulha-
os em folhas e cipós. Então, vem a parte difícil: tem que achar uma cobra venenosa e fazer com
que morda o pacote de folhas. Isso fará com que a pessoa, que deixou a pegada, seja mordida
no pé por uma cobra e assim, morrerá. Você verá. Se precisar de ajuda com cobras, sou o
espírito de que precisa.”
No dia seguinte, segui as instruções de Homem-Cobra. Foi muito difícil e perigoso
conseguir a cobra. Mas os resultados valeram a pena. Depois ficamos sabendo que uma das
crianças da aldeia deles havia morrido por uma picada de cobra. Então, Homem-Cobra tornou-se
um de meus amigos mais íntimos, do mundo dos espíritos.

34
O pai de Vesgo também estava certo a respeito do espírito de Jacaré. Logo, tinha vários
espíritos que poderiam atacar nossos inimigos. E logo ficávamos sabendo que a pessoa havia
morrido.
Um dia, estava deitado em minha rede, observando um grupo de crianças brincando na
claridade do centro do shabono. E uma delas gritou, “Você aí! Pára com isso, Cabeça de Casca
de Árvore.”
“Você aí!” a mãe do menino gritou. “Não o chame pelo nome. Os xamãs das aldeias
inimigas ouvirão e aproveitarão para fazer um feitiço contra ele.” E ela tinha razão. Era uma das
obrigações das mães fazer com que as crianças não falassem os nomes, senão nossos xamãs
inimigos poderiam ouvir. Cabeça de Casca de Árvore era o nome do menino, mas ao tornar-se
homem, usaria outro.
“O que ele fará comigo?” a criança perguntou.
As crianças ajuntaram-se ao redor dela, enquanto trabalhava no fogo. A mulher abaixou
sua voz. “Você não se lembra de todos os seus amigos que morreram?” ela explicou. “Nossos
inimigos ouviram os seus nomes. Uma vez que eles sabem o nome de uma pessoa, podem usá-lo
para jogar um feitiço nela.”
“Homem da Selva é o melhor xamã que existe, mamãe?” a criança perguntou.
“Sim,” ela sussurrou. “Isso é por que o outro nome dele é Comedor de Criança. É porque
ele matou muitas crianças nas aldeias de nossos inimigos. Pode ter certeza que eles nunca
deixam as suas crianças falarem seus nomes, com medo de Homem da Selva ouvir. Mas, de
todo jeito, ele conhece todos os seus nomes porque os espíritos já o levaram para todas as
aldeias.”
Ela agachou-se, enquanto colocava uma lenha grossa nas brasas e três pedaços de
mandioca na lenha. Soprou as brasas, e as chamas subiram ao redor da lenha. As crianças
esperavam que tivessem mandioca suficiente para elas naquela noite.
“Sim,” a mãe continuou falando para as crianças a meu respeito, “certamente ele é o xamã
mais poderoso que conhecemos. Quando ele volta das caçadas, vocês não vêem quanta carne traz
consigo? Às vezes, volta com mais carne do que todos os outros caçadores da aldeia juntos.”

Um dia, uma criança adoeceu e não pude curá-la. Ela morreu rapidamente. “Quase
peguei o falcão que havia roubado a alma dela, mas entrou pelo fundo do lago, para dentro da
terra de Yai Wana Naba Laywa, antes que pudesse pegá-lo,” falei para seus pais. “Este foi o
trabalho de um xamã de outra aldeia.” Era a mesma ferida que espírito de Jacaré havia usado
para matar uma outra menina, aqui mesmo em nossa aldeia.
“Quem matou aquele menino?” perguntei a espírito de Jacaré. Ele me levou para onde
havia uma grande clareira e nenhuma mata, apenas grama. Nunca tinha visto um lugar assim.
Um xamã, chamado Tucano, estava enviando seus espíritos de lá para matar as almas das
crianças em outras aldeias.
O que devemos fazer? pensei. Esta aldeia é muito longe para viajarmos para lá e
vingarmos essas mortes.
“Não se preocupe,” Jacaré me falou. “Estarei disposto a cuidar do problema por você. Vi
Jacaré morder e tirar um grande pedaço de um dos meninos deles. Naquela noite o menino
morreu.”
Estava deitado na rede, e com a ajuda dos meus espíritos escutei o choro dos parentes do
menino da aldeia distante. As crianças eram mais fáceis de matar e Jacaré sempre estava pronto
para ajudar. Tornei-me respeitado e temido, por ser um assassino de crianças.

35
A aldeia, na selva, perto do gramado grande, era a responsável pela morte de muitas
crianças em nossa aldeia. Tucano, o xamã deles, era um guerreiro feroz que tinha matado muitos
homens. Ele continuou matando as crianças em nossa aldeia, e cada vez mais, eu matava uma
criança na sua.
Um dia, nosso filho ficou muito doente. No início, Cabeluda não estava preocupada,
porque sabia que eu poderia curá-lo. Mas depois de haver consultado todos os meus espíritos,
ele não melhorava. Lança tentou. Sapato-Pé tentou. Mas, sou o melhor, por isso tentei mais
algumas vezes. Tomei ebene durante vários dias e trabalhei no pequeno corpo dele com o
espírito Chupa Fora e até consultei outros espíritos. Até Encantadora me ajudou, e ela nunca me
ajudava com os doentes. Finalmente, ele começou a melhorar.
Ele morreu no dia seguinte.
Choramos muito pelo nosso filho. “Porque você permitiu que isso acontecesse a mim?"
chorei com angústia, a Encantadora. “É tão terrível. Estou sofrendo tanto.”
“Isso foi causado pelas pessoas que moram em algumas aldeias perto da aldeia de Tucano.
É um feitiço que exige que outro espírito especial os combata”, Onça disse. Encantadora veio
novamente, mas não senti vontade de vê-la. Outro espírito feminino veio e finalmente me senti
bem.
“Podemos nos vingar,” Homem Cobra me falou. “Busque uma cobra venenosa amanhã e
arranque os seus dentes. Assopraremos o pó na direção da aldeia de Tucano e farei o meu
serviço.”
No dia seguinte, segui as instruções de Homem Cobra e logo consegui a minha vingança.
Foi muito mais fácil do que viajar até a Aldeia de Tucano e tentar matar alguém. E o efeito era o
mesmo. Uma criança na aldeia deles morreu.
Deitei-me em minha rede, pensando quão agradável era a vingança. Mas ainda sentia
tanto a falta de meu filho. Apesar de toda vingança que conhecíamos na selva, nada o traria de
volta.
A aldeia, onde os meus espíritos mataram a criança chama-se Aldeia Atirando. É chamada
assim, porque eles sempre estão atirando em alguém. Tucano não morava lá, mas, perto, cerca
de um dia a pé. Ele visitava-a freqüentemente, porque era a aldeia da sua esposa.
Nunca fui a Aldeia Atirando, mas conheço muito a respeito do que acontece lá, porque
visitei-a muitas vezes, através do mundo dos espíritos, quando matava as crianças deles. Isso é
apenas parte do trabalho de um xamã.
Os parentes de Tucano gostavam tanto dele, como genro, que queriam dar-lhe outra
filha, como uma segunda esposa. Ele estava contente em levá-la, e sua esposa estava contente
em ter a irmã mais nova consigo.
Tucano a amava. Ela era tão bonita quanto a primeira esposa e daria muitos filhos a ele.
Ele era um grande caçador e sabia que podia providenciar comida para todos. Logo, seria a
pessoa mais poderosa no mundo dele.
Mas a irmã não queria deixar a sua casa e não gostava de Tucano. Não era correto ela
não gostar dele e a outra irmã falava-lhe isso. Mas, assim que Tucano saía para caçar, a irmã
mais nova, escapava do shabono e fazia a longa viagem até a casa da mãe, na Aldeia Atirando.
Quando Tucano voltou, dois dias depois, ele ficou furioso. Gastou dois dias para ir e trazê-
la. Que desperdício! Mas, depois que ele a trazia de volta, ela fugia, todas as vezes que tinha
uma chance.
Uma vez, quando Tucano voltou da caça, sua primeira esposa lhe falou que a irmã havia
fugido novamente. Mas, desta vez, não havia passado muito tempo. Se Tucano se apressasse,
poderia pegá-la logo e não teria que fazer a longa viagem até a aldeia dela.

36
Ele foi por um caminho diferente pela selva e saiu no caminho dela. Não tinha rastros. Ele
estava na frente dela. Escondeu-se e esperou. Era fácil ouvi-la vindo porque uma parte do
caminho estava cheia d’água.
Quando ela chegou perto de onde ele se escondia, pulou no caminho ficando cara a cara
com ela. “Por que você sempre me dá tanto trabalho? Por que você me faz sofrer tanto?” Ela viu
a raiva nos olhos dele e ficou com medo. Podia ver que a paciência dele havia esgotado. Estava
na mira de um assassino, com um facão na mão e fúria em seus olhos.
Quando virou para correr, golpeou-a na parte de trás do pescoço. Ela desmaiou. Tucano
sentou-se para esperar até que ela acordasse. Ele já havia visto tais golpes em animais e pessoas.
Ela estava sangrando muito, mas logo levantaria. Elas sempre levantam.
Ficou sentado, quieto, enquanto observava o sangramento. Certamente não queria ter
dado um golpe tão profundo. Ela não havia movimentado nenhum músculo desde que caiu.
Ele começou a chorar. Porque fiz isto? Ele pensou Porque deixei que ela me levasse a fazer
isto? Eu a amo. Ela será mãe de muitos filhos meus..
Ela continuava sangrando e ele decidiu que quando ela despertasse, não bateria mais
nela. Ela havia sofrido bastante. Agora, voltaria e seria uma boa esposa e viveria contente comigo
e com sua irmã, ele pensou. Logo ela vai virar e olhar para mim querendo ajuda. E eu a ajudarei.
Cuidarei dela até ficar boa. Quando souber o quanto a amo, ficará contente. Ele observou-a de
perto, procurando algum movimento.
Mas nunca mais se mexeu, nem sequer um dedo. O seu facão havia cortado
profundamente o seu pescoço. Enquanto pensava em todas as coisas que desejava não ter feito
e que teria feito diferente, e de todas as coisas que faria por ela quando acordasse, sangrava até
a morte.
“Porque você fez isto comigo?” ele clamou com angústia. “Por que?” Mas a selva estava
quieta. Nem sequer um pássaro havia visto o que ele tinha feito. Depois de muito tempo
levantou-se lentamente. Com lágrimas escorrendo pela face, pulou por cima do corpo dela. Tinha
que ser um grande passo para evitar que os seus pés tocassem no sangue dela. Pensando em
tudo isso, seria uma longa caminhada para casa.
“Por que me fez matá-la?” Gritava enquanto andava. “Porque você colocou esta raiva em
mim?” Derramou lágrimas durante toda a caminhada. Continuou fazendo estas perguntas até que
sua voz não podia mais fazer sons. Mas não tinha ninguém para ouvir.
Todos da aldeia de Tucano lamentaram pela sua esposa. A Aldeia Atirando deveria ter feito
uma guerra pela morte dela. Embora Tucano fosse meu inimigo, teria usado meus espíritos para
ajudar-lhe a lutar, porque também odiava as pessoas da Aldeia Atirando. Então, depois, os meus
espíritos ajudariam as pessoas da Aldeia Atirando a lutarem contra Tucano.
Em vez de esperar pelo ataque, Tucano foi para Aldeia Atirando e devolveu os ossos aos
seus parentes. Ele falou-lhes que a morte da filha deles foi um acidente. Nenhuma pessoa comum
teria voltado de tal viagem viva. Mas Tucano não era comum. A fama dele estava em todos
lugares. Seus espíritos o haviam levado por toda parte e ele podia contar, de lugares que nunca
havia ido. Ele até via coisas nas enormes aldeias dos nabas. Viu as pessoas entrarem numa caixa
grande, e um cipó comprido levá-las pelo ar, por cima de uma montanha, para o outro lado.
Seus parentes lamentaram a morte da filha com ele e decidiram que não estavam
interessados em tentar matá-lo. Mesmo tendo escapado da morte e da guerra com seus parentes,
Tucano não podia esquecer da sua esposa. Fez tudo para esquecê-la. Caçou. Pescou. Trabalhou
na roça. Mas todas as noites quando deitava na rede, via o rosto dela.
Ele implorava a seus espíritos por ajuda, para esquecê-la. Mas não adiantava. Sabia que
não o ajudariam. Foram eles que fizeram esta bagunça toda. Incentivaram a raiva dele.
Incentivaram a golpeá-la com o facão. Eles eram a fonte da sua ira, a razão pela qual era tão
famoso no mundo dos Yanomami e até mesmo fora. Todos nós, xamãs, sabemos que os espíritos
37
ficam mais contentes quando matamos as pessoas. E amamos mostrar nossa ferocidade fazendo
isso aos nossos inimigos. Mas esta, não era uma inimiga; era uma mulher que ele queria.
Tucano estava bravo com os seus espíritos. Ele não podia dormir e eles não o ajudavam a
dormir. Decidiu não deitar na rede até que estivesse tão cansado que não conseguisse ficar
acordado. Mas, toda vez que deitava, não importava quão cansado estivesse, via o rosto dela, o
terror nos seus olhos, momentos antes de virar-se para correr. Ela havia sido cercada como um
animal e sem nenhum escape.
Ele sabia tudo a respeito do terror. Havia aprendido a viver assim porque sabia que todas
as nossas aldeias queriam matá-lo por causa das muitas pessoas que tinha matado. Havia lançado
todo aquele terror numa menina bonita, só porque estava com saudade de casa. Por que tive que
fazer isto? Perguntou-se inúmeras vezes.
Cada vez que o seu rosto aparecia, ouvia a sua voz brava, “Por que você sempre me dá
tanto trabalho?” Ele lembrava-se de cada palavra. Tampava seus ouvidos, mas não adiantava.
Escutava as palavras seguintes de todo jeito. “Por que você me faz sofrer tanto?” E via o rosto
dela cheio de terror novamente. Sentia tanto a falta dela e tentava lembrar-se dos bons tempos
que haviam tido juntos, quando ela vivia com eles. Lembrava-se quão agradável era estar com ela
na rede. Então, lembrava como ela havia parado, assustada no caminho, e esta recordação
destruía todas as outras. Para fazer com que não voltassem, teve que deixar de lembrar-se dela. E
seus espíritos dele não ajudariam a esquecê-la. Eles gostavam das recordações.
Numa manhã, Tucano foi caçar. Quando o seu facão golpeou o pescoço de um crocodilo,
ele viu o sangue escorrer. E reapareceu a recordação. A parte de trás do pescoço bonito da sua
esposa, e o sangue escorrendo. Até segurar o facão na mão o fazia lembrar daquele dia. Por
isso, ele ia sem o facão. Mas ele não podia andar na mata sem um facão .
Deve ser porque ainda não destruí todas as coisas dela, pensou. Ele e sua primeira esposa
procuraram por toda a aldeia para ter certeza de que não havia mais nada de sua esposa falecida.
Quando achavam algo que poderia ter sido dela, queimavam-no. Ainda assim as recordações não
desapareciam, embora ninguém falasse mais o nome dela.
Tucano desejou saber se possivelmente outros homens ferozes podiam ter este problema.
Ninguém teria medo de mim se soubessem que sentia remorso por matar, ele disse a si mesmo,
especialmente se soubessem que era por matar uma mulher.
*****
O meu povo ainda enfrentava um grande problema, todos os amigos e parentes da Aldeia
Batata. Ainda vivíamos com o medo constante de que poderiam vingar-se a qualquer hora.
Nossos únicos amigos, na selva, eram os parentes que moravam perto do Rio Ocamo, aqueles que
foram conosco naquela invasão. Agora estávamos com medo até deles. Eles nunca esqueceram
que havíamos recusado de dar-lhes uma mulher, daquela grande vitória.
Depois de muitas luas nos convidaram para uma grande festa. Tivemos dúvidas. Nossas
mulheres choraram porque sabiam que seríamos assassinados. Também sabiam que não poderiam
convencer-nos a ficar. “Sabemos que é uma armadilha,” Lança disse a nós, os líderes.
“Mas se não formos,” Sapato-Pé respondeu, “todos os índios do mundo nos chamarão de
covardes, desde agora até morrermos”. Falei-lhe que Sapato-Pé era um jovem guerreiro
impetuoso, um líder perfeito para treinar. Cada vez, ele possuía mais espíritos. Sabíamos que ele
tinha razão. Nada que as mulheres pudessem dizer nos afastaria desta festa.
Entramos na Aldeia de Ocamo, todos pintados para guerra e com todas as nossas
flechas em posição. Era uma grande demonstração de poder, se por acaso eles tivessem
planejado qualquer coisa. Mas as coisas acalmaram-se quando nos ofereceram comida e bebida.
Festejamos juntos. Comemos uma carne gostosa de anta o dia todo e nos divertimos muito.
No dia seguinte, tomamos ebene juntos. Eles tinham um bom estoque para todos.
Normalmente, somente os xamãs tomam ebene, mas nas festas, todos participam. Uma pessoa
38
soprava ebene por um tubo comprido no nariz de uma outra. Então, a primeira pessoa, pedia que
alguém soprasse ebene no nariz dela e continuávamos assim até todos sentirem-se bem. Não
observamos que sempre que era a vez deles tomarem ebene, sempre pediam que alguém da
aldeia deles soprasse nos seus narizes. Não pensamos que poderiam estar fingindo que tomar
ebene e entrar em transe.
Ambas as aldeias tomaram ebene e dançaram em transe até nos sentirmos muito bem.
Então, inesperadamente aconteceu. Todos estavam com seus arcos atirando em nós.
Havia sangue e sujeira por todo lugar. Corremos para buscar as nossas armas mas não podíamos
usá-las. Muitos de nós escapamos para a selva. Mas outros não conseguiram. Puseram os
nossos mortos na frente do shabono deles para que pudéssemos pegá-los e levá-los para casa,
para queimar.
Descobrimos que haviam nos enganado. Uma das pessoas deles havia morrido e o xamã
deles ficou sabendo, pelos seus espíritos, que alguém em nossa aldeia era o responsável pela
morte. É por isso que haviam nos convidado, e vingado.
Quando nos aproximamos do nosso shabono, começamos a lamentar, só de pensar nas
notícias terríveis que estávamos trazendo. As mulheres ouviram-nos e começaram a chorar.
Sabiam o que tinha acontecido. Choramos durante toda aquela noite e por muitos dias. Moemos
muitos ossos durante aquele tempo.
Agora sabíamos que não tínhamos nenhum amigo no mundo.
A cada noite, eu ia à entrada do shabono e assegurava-me de que os caminhos estavam
bem bloqueados e que a alana estava forte. Agora, a parede era tão comprida que havia dado a
volta ao redor do shabono. Os invasores teriam que rodear o shabono para chegar à entrada.
Construímos as nossas paredes do cerne das palmeiras. Seria impossível os invasores
atravessarem. Ainda assim, estava com medo. Lança encontrou-se comigo lá, numa tarde.
“O nosso grupo é muito grande e fácil de achar,” disse olhando para fora da entrada e
vendo o caminho. “Não podemos continuar vivendo com este medo.”
"Entendo” Lança me falou. "Não gostaria que nos ouvissem falando isto, mas não
podemos continuar assim”.
O pôr-do-sol deixava sombras grandes no caminho e pontos de luz pousavam, como
manchas luminosas, ao redor de nós. Mas não pude desfrutar da beleza da minha selva quando
sabia que poderia estar escondendo os inimigos que buscavam a minha morte.
Sapato-Pé nos encontrou. “Será que devemos pedir uma resposta para os nossos
problemas aos espíritos?” ele perguntou.
“O nosso medo é tão óbvio?” Lança perguntou-lhe.
“Todos sabem,” Sapato-Pé disse. “Não podemos sair para caçar a não ser que haja
muitos de nós, não podemos proteger as mulheres e as crianças. Não podemos trabalhar nas
roças. Não podemos fazer nada. Não podemos viver.”
Lança, o pai de Lábio de Tigre e eu não gostaria que ninguém soubesse que estávamos
nos cansando, com o stress dos ataques constantes. Algumas pequenas brigas não faziam mal.
Mas depois do que havíamos feito às pessoas na Aldeia Batata, nenhum de nossos inimigos se
interessava por uma briga pequena. Estariam atirando para matar.
“Ninguém espera que você vá conseguir unir esta aldeia,” Sapato-Pé continuou. Foi bom
ouvir meu jovem xamã falando com sabedoria. Ele certamente será um grande líder entre este
povo um dia, pensei.
Enquanto pensávamos em dividir a aldeia, uma briga horrível começou entre o tio de
Sapato-Pé e muitos dos outros homens. “Estamos cansados de ver você mexer com as nossas
mulheres!” Um deles gritou a ele. Você tem as suas esposas e as esposas de seu irmão. São

39
mulheres suficientes para qualquer homem. Tire as suas mãos imundas da minha esposa!” Tinha
outros gritando a mesma coisa. Espírito de Howsashi sempre causava brigas. Elas, ou
terminavam com uma aldeia dividindo-se em duas ou com alguém morrendo. Nos dividimos.
Sempre é um dia triste quando uma aldeia tem que se dividir, especialmente se não é por
causa de ódio. Nos reuniríamos outra vez, mas ninguém sabia quando.
A família de Lábio de Tigre foi na direção do Rio Ocamo onde o sol se levantava, e não
ficava perto dos nossos novos inimigos. Ficaram conhecidos como os de Ocamo. O resto de nós
mudou em direção ao Rio Metaconi, onde o sol se punha, a uma longa distância. Cabeluda, eu e
várias outras famílias atravessamos o Metaconi e fomos em direção ao Rio Padamo. Queria que
Sapato-Pé ficasse conosco porque estava aprendendo os costumes dos espíritos comigo, mas a
família dele não permitira. Os outros dividiram-se em duas outras aldeias e tomaram cuidado para
que houvesse distância suficiente entre eles para que nenhum inimigo pudesse atacar as duas.
Deemeoma, Fredi, e sua mãe ficaram com o grupo das famílias de Sapato-Pé e Lança.
Tyomi e a outra mulher da Aldeia Batata haviam casado com homens que foram com Lábio de
Tigre para o Ocamo. Deemeoma e sua irmã finalmente se separaram.
Nos encontraríamos novamente. Sapato-Pé freqüentemente viajava o longo caminho para
minha aldeia para aprender mais comigo, sobre como trabalhar com os espíritos. Claro que
Cabeluda sempre ficava contente em receber seu irmão.
“Parece que estou adquirindo todos os tipos de espíritos, cunhado,” Sapato-Pé contou-me
uma vez.
“Bem, só não seja amigo do espírito do Veado,” falei-lhe.
“Por que não?”
“Ele é um espírito de confusão. Ele é tímido. Você sabe como o veado é. Foge sem motivo.
Bem, isso é exatamente o que espírito do Veado faz. Conheci uma vez um homem que possuía
este espírito. Ele tinha medo de tudo e de todos que quase não o víamos. Fugia para a selva
por causa de mínimas coisas e não o víamos durante dias. Se ele fosse esperto, teria medo de
estar na selva sozinho. Mas é estúpido. Só tem medo das pessoas.”
Sapato-Pé achou isto muito estranho. “Por que alguém seria assim? É coragem que
queremos, e não medo.”
“Claro,” falei-lhe. “E você já tem o espírito da Onça. Ele é o mais importante. Você não
deve ter visto o espírito do Veado ainda. Ele virá. Você vai ver.”
“Mas como o reconhecerei? Como deveria tratá-lo?”
“Você não o viu ainda porque ele é muito tímido,” eu disse. “Ele virá assim que você for
amigo de todos os outros espíritos. Você entende como mais espíritos vêm? Quanto mais tempo
passa com eles, mais os conhece e mais os ama, e os outros sentem-se bem vindos também.”
Sapato-Pé acenou com a cabeça. Ele estava indo muito bem na aprendizagem dos costumes dos
espíritos. Mas, ainda não podia dar à sua aldeia aquilo que precisavam.
O pai de Sapato-Pé, também era um xamã poderoso, e podia ver que a aldeia deles estava
com dificuldades. Embora fosse a maior de todas, que havia se dividido de nós, havia muita
doença e morte que ele sabia que precisavam de ajuda, “Meus espíritos continuavam dizendo-me
que nossa dor não era culpa deles e que havia outros espíritos que podiam nos ajudar com os
nossos problemas,” ele disse a Sapato-Pé numa manhã. “Penso que temos que conseguir ajuda
no mundo dos nabas. Você terá que levar alguns guerreiros e fazer a longa viagem até lá. Terá
que trabalhar para conseguir algumas coisas dos nabas que precisamos, e tentar pedir a alguém
que venha e more conosco.”

40
Durante a madrugada, Sapato-Pé saiu do shabono com um grupo pequeno de guerreiros e
começou a caminhar na direção do rio grande. Caminharam durante vários dias, tantos quanto os
dedos de uma mão, antes que o achassem.
“Você apronta a corda,” Sapato-Pé falou a um dos guerreiros, “e eu trabalho na casca.”
Ele subiu numa árvore de flores amarelas e fez um corte na casca ao redor da árvore. Então, fez
outro corte, atravessando a casca, até a outra ponta, cortando ao redor da árvore. Começando de
cima, descascou toda a árvore num pedaço grande. Então, cortaram as pontas, para que
pudessem dobrá-las, para não deixar a água entrar. Com uma corda amarraram as pontas e o
pedaço grande de casca tornou-se uma canoa.
A correnteza era lenta e calma. A selva refletia-se na água enquanto passavam. “Como
você acha que serão estes nabas, Sapato-Pé?” Perguntaram-lhe.
“Homem da Selva sempre se deu bem com eles,” ele respondeu. “Eles devem ter muitas
coisas que precisamos. Espero que possamos ganhá-las.” Havia bastante tempo para falar sobre
os seus muitos pensamentos, enquanto estavam sentados vagueando lentamente pelo rio grande.
Chegaram a um lugar largo e não podiam ver por onde o rio passava. Parecia que havia
desaparecido. Então encostaram a canoa e cuidadosamente olharam pelo lado para ver. Era uma
cachoeira enorme. Desceram o precipício e construíram uma outra canoa de casca de árvore.
No dia seguinte, encontraram um rio que se unia a outro para fazer um duas vezes maior.
Vaguearam para tão longe, que achavam que nunca mais voltariam. Não imaginavam que a selva
pudesse ser tão grande. Cada noite paravam e amarravam suas redes na selva, na beira da água.
Depois de vários dias, chegaram a uma cachoeira tão grande e perigosa que tiveram que
abandonar a canoa outra vez, e caminhar pela selva, dando a volta na cachoeira, e construir outra
canoa.
Depois de mais alguns dias vagando pelo rio, passaram por uma curva e viram algo que
aterrorizou todos. “O que é isto?” todos perguntaram, olhando à frente onde a água se estendia
até não poder ver mais. Eles estavam perguntando a Sapato-Pé. Ficaram sem fôlego só de
observar. Nenhum destes homens havia visto tanta água.
Um guerreiro disse chocado, “Não poderíamos atirar uma flecha por toda esta água!”
“Este deve ser o rio de um espírito muito grande,” Sapato-Pé disse, mas estava tão
assustado que não conseguia falar direito. Ele imaginava o que poderia acontecer quando uma
canoa andasse por tanta água. Teria como sair dessa?

Alguns dias depois, viram pessoas estranhas na beira do rio e as mesmas casas grandes,
que haviam me pegado de surpresa, quando fui para a terra dos nabas pela primeira vez.
Conseguiram levar a canoa até a beira, mas todos estavam com medo de descer. Sapato-Pé
sentia como se alguém estivesse apertando seu estômago bem forte. Era a mesma aldeia dos
nabas, onde havia conhecido Noweda, da primeira vez; os nabas a chamam de Tama Tama. Mas
agora Noweda havia morrido e outros moravam lá. Os nabas brancos aproximaram-se deles, sem
armas. Sapato-Pé pensou, Eles devem ser amigos. Então os índios desceram da canoa.
Haviam viajado durante quase uma lua. Sapato-Pé empurrou a canoa vazia deles no rio.
Sabia que teria que caminhar de volta pela selva. Enquanto observava a canoa boiar lentamente
rio abaixo e desaparecer, pensava quanto tempo passaria até que viria seu shabono novamente.
Não sabia o que devia fazer quando uma senhora dos nabas, que ele não entendia, deu-lhe
uma bebida de água bem fria. Sapato-Pé achou estranho, mas, o fez muito feliz.
Sapato-Pé e seus amigos trabalharam para os nabas como eu havia feito. Ganharam
muitas coisas e ficaram ricos. Por ele ser um xamã, ficou fascinado com a conversa dos nabas a
respeito de um grande espírito. Mas como eu, quando fui lá pela primeira vez, Sapato-Pé tinha
dificuldade em entender a conversa dos nabas. Existe um tipo de conversa que todas as pessoas
41
usam quando trocamos as coisas, mas não é muito útil quando falamos dos espíritos e outras
coisas importantes. Então, Sapato-Pé achou que estavam dizendo que este espírito queimaria o
mundo com fogo.
“Seja qual for o espírito que estes nabas têm,” falou para seus amigos, “deve ser muito
rico.”
“Sim,” alguém respondeu. “Precisamos muito de algumas das suas coisas.”
Eles ficaram durante mais ou menos uma lua. Caminharam por uma parte da selva, que
nunca tinham visto antes, durante quase outra lua. Finalmente chegaram em casa. Então,
Sapato-Pé perguntou a seu pai a respeito do espírito que os nabas diziam que iria destruir o
mundo com fogo.
“Bem, ele já tentou isto uma vez,” o pai de Sapato-Pé respondeu. Ele era velho. E
lembrou-se do grande fogo que havia queimado quase toda a nossa selva.
Mas não sei a qual espírito ele se refere. Poderia ser o espírito do Trovão ou poderia ser
alguns outros espíritos que não conhecemos. Poderia ser Yai Wana Naba Laywa, o espírito hostil
que come as almas de nossas crianças. Ele tentaria queimar o mundo.
“Mas ele é hostil,” Sapato-Pé contestou. “Os nabas não poderiam conhecê-lo.”
Agora a aldeia de Sapato-Pé estava rica, por causa dos machados, facões, panelas e
outras coisas que ganharam dos nabas. Mas logo precisariam de mais, e então Sapato-Pé voltou
à aldeia dos nabas em Tama Tama. “Disseram que enviariam alguém para morar conosco, então
peça-lhes novamente que façam isto", o pai de Sapato-Pé lhe falou quando saíam do shabono.
“Queremos saber sobre este espírito do qual falam e como ter uma vida melhor. Fale a eles que
não podemos aprender destas coisas se alguém não vier e nos contar.”
Outra vez Sapato-Pé e seu grupo fizeram uma canoa de casca de árvores, caminharam ao
redor da cachoeira, fizeram outra canoa, caminharam ao redor de outras cachoeiras, fizeram outra
canoa, e finalmente chegaram lá. Desta vez os nabas estavam começando a falar melhor.
Sapato-Pé perguntou-lhes se alguém poderia morar com eles e ensiná-los sobre o seu espírito e
os seus costumes.
“Precisamos de muita ajuda,” ele disse. “A cada lua muitas pessoas morrem de doenças
que meus espíritos não podem curar.” Mas ninguém viria, então Sapato-Pé voltou com uma
história triste.
“Eu ainda não entendo sobre este espírito de fogo,” o pai de Sapato-Pé falava depois que
havia chegado em casa. “Parece que deve ser o espírito inimigo, Yai Wana Naba Laywa. Mas
como os nabas poderiam conhecer este espírito? Ninguém pode chegar perto dele sem se
queimar!”
“Mas a terra dele é tão bonita,” Sapato-Pé disse.
“Sim, mas não podemos chegar lá e ele nunca sai”, o pai dele respondeu.
“Isso é certo,” Sapato-Pé concordou, “ele é tão hostil que todos os nossos espíritos o
odeiam.”
Mas o pai dele realmente queria saber a respeito deste novo espírito e mandou Sapato-Pé
de volta à terra dos nabas muitas outras vezes, para pedir que alguém viesse morar na aldeia
deles. Ninguém nunca veio.
“Moramos muito longe,” o pai de Sapato-Pé disse. “É por isso que eles não virão a nós.
Está na hora de mudarmos para perto do rio.”
Todos na aldeia tinham medo de fazer uma mudança tão grande. Mas o pai de Sapato-Pé
era um líder poderoso. Depois da mudança, longa e difícil, Sapato-Pé voltou para pedir que um
naba viesse. Mas nenhum veio.

42
Depois de muitas estações, disse o pai de Sapato-Pé, “Ainda estamos muito distantes para
os nabas virem. Teremos que descer a cachoeira e as correntezas. É o único modo de
conseguirmos alguém para vir e ensinar-nos alguma coisa.” Assim, mudaram novamente, para o
fim do Rio Metaconi onde entra o Padamo.
Quando chegaram lá, acharam, por toda parte, muitas colméias. Todos festejaram e havia
bastante, até para as crianças. Desde aquele tempo chamamos aquele lugar de Aldeia Mel.
Um dia, uma canoa veio à beira do rio. Era um naba que usava uma roupa comprida e
escura. “Veja todo o cabelo grisalho na cabeça daquele homem,” o pai de Sapato-Pé disse,
enquanto o povo olhava-o amarrando a sua canoa. “Ele deve ser muito sábio. Certamente poderá
nos falar sobre este espírito estranho dos nabas, este espírito de fogo. Certamente nos mostrará
como sair da nossa miséria.”
Mas o homem de cabelo grisalho saiu do barco, deu alguns doces para todos comerem,
embarcou e partiu. Todos ficaram tristes.

43
CAPÍTULO 5

NÓS O QUEREMOS TANTO

Sempre encontramos com os nabas e ainda queremos saber sobre o espírito deles. Continuo
guerreando com as pessoas da aldeia de Tucano. Sapato-Pé viajou, subindo o rio Padamo, para
visitar-me e a medida que o tempo passa, ele acha mais espíritos. Consegui outra irmã dele,
como segunda esposa. Ela mora junto com Cabeluda. Fredi constantemente é atormentado por
alguns da Aldeia Mel. Deemeoma está pronta para tornar-se uma mulher. Sua irmã, Tyomi, ainda
vive na Aldeia de Lábio de Tigre com o homem que lutou por ela.

De alguma maneira, a Aldeia de Lábio de Tigre, perto do Ocamo, conseguiu que uma
naba viesse viver com eles. Era uma mulher velha e com uma perna ruim, feita de madeira.
Todas as pessoas da Aldeia de Lábio de Tigre amavam Vovó Troxel, embora não pudesse
falar nosso idioma. Diariamente, andava ao redor da aldeia fazendo tudo o que podia para ajudar
as pessoas. Amava todas as crianças e sempre segurava um bebê nos braços. Ela lhes dava coisas
coloridas para comer quando estavam doentes, e isto as ajudava a manterem-se bem.
Quando entrava no rio para tomar banho, tirava a perna e deixava-a no barranco. Lábio
de Tigre era apenas um menino naquela época, quase alcançando a idade de um homem. Um dia,
ele e seus amigos seguiram vovó até o rio, onde ela tomava banho. Enquanto estava na água,
roubaram sua perna e a esconderam. Esconderam-se na mata e assistiram enquanto pulava
numa perna só. Chamou às mulheres da aldeia. Elas perseguiram Lábio de Tigre e seus amigos,
e chamaram a atenção deles e obrigaram-nos a devolverem a perna para a vovó. Ninguém ficou
chateado, assim, isto sempre acontecia quando ela ia tomar banho.
Vovó adoeceu, e todos na aldeia ficaram muito tristes quando teve que partir. Depois
disto, muitos nabas não tiveram medo de entrar nas aldeias Yanomami, então, muitos
começaram a vir. Lábio de Tigre treinava para ser um xamã e tornar-se o líder da aldeia. Eles o
chamavam de Lábio de Tigre porque tinha nascido com uma cicatriz que dividia o lábio do fundo
do nariz até os dentes. Parecia o lábio de um gato.
Depois que vovó partiu, outro naba veio para a Aldeia de Lábio de Tigre, no Ocamo. Eles o
chamavam de Padre Coco. Ele viveu bem no meio da aldeia e ajudava as pessoas. Trouxe vacas
para eles. Falou-lhes que as vacas podiam dar muita carne. Mas quem iria ficar sentado
esperando uma vaca crescer? E de qualquer maneira, nunca comeríamos nossos animais de
estimação. Ele falava freqüentemente com as pessoas e pedia-lhes que mudassem os seus modos
de viver.
“Vocês Yanomami precisam deixar de guerrear,” ele dizia. “Precisam trabalhar para ter
uma vida melhor. Precisam trabalhar para ter mais comida para as suas crianças. Vocês têm que
limpar esta aldeia e cortar o mato das casas para proteger suas crianças das doenças que vem de
toda essa sujeira. Vocês estão se extinguindo muito rápido por causa das doenças. Nunca
sobreviverão se não pararem com estas guerras.” Padre Coco conversava isto com Lábio de Tigre
o tempo todo. Mas Lábio de Tigre era um xamã poderoso, embora não estivesse contente com as
guerras, não iria mudar.
Todos amavam Padre Coco e estavam contentes em tê-lo na aldeia. Ele ensinava as
crianças em uma escola e lhes mostrava como cultivar muitas plantas. E as coisas estavam indo
bem enquanto estivera lá.
As coisas teriam sido melhores se não tivessem usado o gado de Padre Coco para exercitar
tiro ao alvo.

44
Depois de um tempo fora, Coco foi à roça e achou uma vaca muito inchada que tinha sido
morta há dois dias. Ele quase não pôde manter vivo os seus animais de estimação.
Lábio de Tigre viajou com Coco no pássaro de metal até a grande aldeia dos nabas. Então,
entraram num grande pássaro de metal e viajaram por muito tempo, atravessando as águas
grandes. Lábio de Tigre viu muitas coisas lá que eram diferentes, que quando voltou, não
conseguia contar para os amigos dele como era.
Enquanto estivera na terra distante, com Coco, conhecera o chefe dele. Coco chamava-o
de “O Papai.” O Papai tratou Lábio de Tigre amavelmente e sempre punha as suas mãos na
cabeça dele.
“Aquele toque será muito bom para você,” Padre Coco contou depois para Lábio de Tigre.
“Por quê?”
“Ele tem o poder do espírito Criador,” Coco disse. E estava certo. O poder de O Papai
ajudou Lábio de Tigre. O Papai deu para ele um motor de popa de 40 hps, que lhe deu mais
poder na aldeia.
Coco também advertiu Lábio de Tigre e sua aldeia que outros nabas viriam e dariam
coisas em troca de mexerem com suas mulheres. “Isto é algo que você nunca deve permitir,” ele
disse. Mas Lábio de Tigre não sabia porque ele dizia isso.
Depois de muitas estações, Padre Coco ficou doente e deixou a aldeia. Lábio de Tigre e
todo o seu povo lamentaram quando Coco entrou no seu barco, porque sabiam que não o veriam
novamente.
Depois de Coco, muitos nabas começaram a vir para a aldeia. E fizeram exatamente como
Coco tinha dito que fariam, comercializavam as coisas: linhas de pesca, anzóis, e muitas coisas
bonitas em troca de sexo com as mulheres. Lábio de Tigre não se importava com isto, contanto
que não mexessem com suas esposas e filhas. Muitos deles trouxeram máquinas fotográficas e
muito papel para escrever.
Um dia, um índio veio a Lábio de Tigre com muita dor no seu pênis. Ele não queria que a
aldeia soubesse o local do seu corpo que estava doente, por isso não contara para Lábio de Tigre,
até que a dor tornara-se insuportável. Havia material verde saindo dele. Lábio de Tigre nunca
tinha visto algo assim antes. Ele falou com os seus espíritos. “É uma doença do naba”, eles lhe
falaram. “Você terá que adquirir os espíritos do naba para cuidar disso.”
Depois, outro homem veio e quase todos estavam com a mesma doença. Até as
mulheres pegaram isto nas suas partes íntimas.
Os novos nabas que vieram, não eram nada comparado a Padre Coco. Eles nunca fizeram
as mesmas advertências que ele fazia. Assim, logo a aldeia de Lábio de Tigre ficou imunda, como
era antes. E os novos nabas não se importavam quando Lábio de Tigre ia para guerra. Alguns
até gostavam e o encorajavam a lutar. Eles tiravam fotos. Eles também tiravam muitas fotos das
mulheres.
Um dia, alguém veio para a aldeia e nos disse que Padre Coco tinha morrido. Todos
começaram a lamentar. Lábio de Tigre começou a lembrar-se de todas as coisas que Coco tinha
lhe ensinado, especialmente suas palavras estranhas sobre os nabas, que comercializavam o sexo.
Poderia ser, ele desejou saber, que Coco soubesse que os nabas viriam e espalhariam a doença
entre o meu povo e que meus espíritos não poderiam curar?
Lábio de Tigre estava cheio de tristeza por que Coco havia morrido. Mas estava ainda mais
triste porque não tinha aprendido com Coco. Uma vez, ele pensou, que todos os nabas seriam
iguais a Coco, Vovó, e a outra família de nabas. Agora sabia que tinha sido enganado. Estes
novos nabas eram maus.
Um dos novos nabas, ao vir ao Ocamo, era um doutor que havia distribuído medicamentos
às pessoas doentes, e eles melhoraram. Um dia, depois que Lábio de Tigre e os espíritos dele
45
tinham gastado algum tempo para tentar curar uma mulher, ele viu que eles não poderiam ajudar.
Enviou-a para este naba doutor. Ela voltou pouco tempo depois.
“Ele me disse que fosse primeiro para o xamã,” ela disse.
“O que!” Lábio de Tigre gritou. “Ele pensa que a enviaria se pudesse ajudá-la?” Lábio de
Tigre não falou para a mulher, mas sabia que o naba não queria ser incomodado por ela. Então
Lábio de Tigre lembrou-se do que Padre Coco tinha lhe falado: que nem todos o nabas eram
iguais.
Lábio de Tigre e alguns da sua família também fizeram a longa viagem, rio abaixo, para
Tama Tama onde trabalharam para os nabas.
Havia uma família inteira deles. O nome do homem era Pepe. Eu o tinha conhecido
muitas estações antes. Ele tinha vindo visitar nossa selva e perguntado a mim, “nunca vi um
Yanomami. Onde posso achá-los?”
Assim eu havia dito, “Aqui estamos nós.” Jamais havia visto um homem como ele aqui em
nossa selva. Ele tinha nos falado que voltaria com sua família. O irmão de Lábio de Tigre teve um
menino com o nome de Cacho-Pequeno, que era muito pequeno para ter medo dos nabas; ele se
tornou um bom amigo de um dos meninos brancos. O menino branco era o filho de Pepe.
Diariamente ficavam juntos na selva, na beira do rio grande. Caçavam, pescavam, conversavam e
brincavam. Cacho-Pequeno o chamava de Keleewa.
Durante aquele tempo, Pepe tentava aprender a falar direito. Ele se tornou um bom amigo
de Lábio de Tigre. Pepe tentava ensinar Lábio de Tigre e seus parentes a respeito de um espírito
diferente, um criador dos espíritos. O naba dissera que este espírito gostava das pessoas
Yanomami. Lábio de Tigre escutava porque ele mesmo tinha muitos espíritos, e sabia muito
sobre eles. E Padre Coco sempre havia falado sobre um grande espírito. Lábio de Tigre sabia
sobre um grande espírito. Todos sabíamos. Às vezes o chamávamos de Yai Wana Naba Laywa, o
espírito hostil. E às vezes o chamávamos de Yai Pada, o espírito mais poderoso e que havia criado
tudo, até mesmo os espíritos. Lábio de Tigre não gostava do sentimento que havia adquirido
quando os nabas falavam sobre o grande espírito. Aborrecia os espíritos dentro dele.
Quando o pai de Cacho-Pequeno deixou Tama Tama, concordou que ele poderia ficar e
assim, gastar mais tempo com seu pequeno amigo naba. “Voltarei com o Tio, Lábio de Tigre,
quando ele for,” Cacho-Pequeno falou para o pai. Assim, o menino ficou. Quando Lábio de Tigre
estava pronto para sair, Cacho-Pequeno enganou-o, dizendo, “Meu pai vai voltar para me buscar.”
Assim, Lábio de Tigre deixou Cacho-Pequeno em Tama Tama sem família. As pessoas da
aldeia pensaram que o amigo naba dele, Keleewa, tinha feito uma brincadeira e que os meninos
haviam feito isto para que pudessem ficar juntos.
Cacho-Pequeno parecia estar abandonado e assim os nabas o alojaram, e isto era
estranho, porque os nabas quase nunca deixavam que os índios entrassem em suas casas.
Provavelmente, não deveriam fazer isto. Mas estes eram diferentes.
Cacho-Pequeno viveu com eles durante muitas luas. Ele e Keleewa tornaram-se como
irmãos e Cacho-Pequeno estava contente. A mãe de Keleewa estava contente porque gostava de
cozinhar o peixe que os meninos pescavam. A família branca tratava-o como um filho. Cacho-
Pequeno sentia-se tão feliz com eles que pensou que poderia ficar e ser feliz para sempre.
Depois de muito tempo, a família dos nabas teve que voltar a terra deles. Conseguiram um
índio para levar Cacho-Pequeno de volta para a Aldeia de Lábio de Tigre, no Rio Ocamo. Foi o dia
mais triste da vida do menino. Ele nunca descobriu por que os nabas tiveram que sair.
Um dia, enquanto estava falando com espírito da Onça, ele me disse que estava na hora de
vingarmos dos nossos parentes da Aldeia de Ocamo. Eles, agora, eram nossos inimigos, porque
tinham nos enganado e matado alguns dos nossos. Então, enviei um mensageiro ao pai de
Sapato-Pé, ao pai de Lábio de Tigre e aos outros que haviam sido atacados naquele dia da festa.
Disse que deveríamos nos juntar e convidar nossos inimigos para uma grande festa, e tentar
46
enganá-los. Pelo fato de Lábio de Tigre e seu pai serem xamãs, conheciam o espírito da Onça e já
sabiam de meus planos. Fiquei muito alegre só em pensar que estaríamos todos juntos para
vingarmos.
Achamos um homem, que havia morado em uma aldeia, que era nossa amiga e também
de nossos inimigos. Pedimo-lhe para ir contar a Aldeia de Ocamo que queríamos ser amigos e
convidá-los para uma grande festa, para que pudéssemos fazer as pazes com eles. Depois que
lhes falara, todos se tranqüilizaram com suas palavras e disseram que gostariam de juntar-se a
nós para beber dos ossos de nossos parentes.
“Acho que não acreditaram em mim, mas disseram que viriam,” ele nos falou quando
voltou. As mulheres deles sabiam que era uma armadilha. Elas não queriam que seus homens
viessem. Os homens talvez virão, mas as mulheres, acho que não.
“Claro que os homens virão,” eu disse. “Falei que virão. Eles não vão querer que contemos
para todos que são covardes. Mas agora que as mulheres sabem que é uma armadilha, teremos
que inventar um plano para pegar os homens desprevenidos.”
Todos nos encontramos em um lugar secreto, na selva, para nos prepararmos para a
grande festa com os nossos inimigos. Caçamos durante dias, moqueando a carne e a guardamos
para a festa.
Finalmente, quando nossos inimigos vieram, não trouxeram suas mulheres e nem as
crianças, entraram em nosso shabono com o mesmo medo que tínhamos sentido quando
entramos nos deles. No momento em que passaram pela entrada, Lábio de Tigre, um jovem
guerreiro, atacou-os com um machado. O pai de Lábio de Tigre e outro parente tinham sido
mortos por estas pessoas, que naquela época tinham nos enganado.
A meio caminho do centro do shabono nossos homens pegaram Lábio de Tigre, seguraram-
no, e tomaram o seu machado. Machados tinham se tornado uma arma nova para nós.
Estávamos começando a ganhá-los dos nabas em nossas longas viagens rio abaixo. Um machado
mataria, mas não tão bem quanto a vara de fogo mágica que Noweda usava para matar as
pessoas.
Quando nossos inimigos viram a vingança nos olhos de Lábio de Tigre e as pessoas
segurando-o, viram que estávamos falando sério a respeito de querermos paz. Todos festejamos
juntos, como amigos e bebemos os ossos de nossos mortos. Eles estavam cansados da longa
viagem no trilho, mas prometemos a eles que iríamos compartilhar o ebene amanhã.
Seríamos até mesmo generosos com nossos inimigos, porque sabemos que as pessoas
avarentas vão para a cova de fogo. Meus espíritos ensinaram-me tudo a respeito da cova de fogo.
É o lugar aonde as pessoas avarentas vão depois que morrem. E ficam lá para sempre. É por isso
que todos nós, Yanomami, compartilhamos tudo o que temos entre nós.
“Durmam bem,” o pai de Sapato-Pé disse, “para que sintam-se à vontade. Teremos um
tempo maravilhoso amanhã tomando ebene.” Com a nossa conversa sobre ebene “amanhã”, eles
começaram a ficar ansiosos. Sabiam que era o ebene que havia ajudado-os a matar-nos da última
vez. Via o medo nos olhos deles, enquanto falávamos sobre amanhã. Sabíamos que estariam
prevenidos .
“Tivemos uma grande festa e compartilhamos os ossos de nossos parentes”, disse a nossos
novos amigos. “Por que não ficam conosco aqui no shabono hoje à noite, ao em vez de voltar para
a selva? Então terminaremos a nossa festa amanhã com ebene”. Eles decidiram que seria seguro
ficar conosco, porque sabiam que apenas fingiriam tomar ebene. Eles não iam cair na mesma
armadilha, como nós.
Assim, armaram suas redes entre as nossas, dentro do shabono e conversamos em grupos
pequenos até tarde. Começamos a nos sentir novamente como amigos.
Despertei antes de amanhecer. Estava tão escuro que não adiantava abrir meus olhos.
Senti a terra dura debaixo de minha rede e levantei lentamente. Não ouvi nenhum som. Nossos
47
fogos tinham se apagado. Eu sabia exatamente aonde todas as nossas redes haviam sido
armadas, então pude movimentar-me sem perturbar nossas visitas, enquanto acordava nossos
homens. Todos dormimos com uma arma na mão. Tínhamos facões, machados, madeiras, e
lanças. Pus minha mão em cima da boca de cada homem e sacudi a cabeça dele um pouco.
Dei um passo de cada vez. Levou muito tempo para alcançar todos no shabono e voltar
para minha rede. Então, soltei um assobio alto de anta e cada um de nós atacou, na rede, o novo
amigo mais próximo. Estava tão escuro que tínhamos que sentir nosso inimigo com uma das
mãos. E a outra segurava a arma mortal. Espírito da Onça estava conosco naquela madrugada, e
um grito subia de nosso shabono que mandava uma energia para o corpo de cada um de nós.
Desfrutaremos desta matança o resto de nossas vidas.
Alguns deles escaparam na escuridão, e por não podermos ver, nos escondemos e
esperamos até clarear, para vermos quantos havíamos matado. Na claridade do dia, vimos que
havia muitos mortos em suas redes, cheios de sangue.
Naquela noite, amarrei minha rede na selva e desfrutei novamente com meus espíritos.
“Tk! Como os matamos!” Disse ao espírito da Onça.
“Você foi maravilhoso, meu Pai! Tão maravilhoso!” ele respondeu. Todos os meus espíritos
aglomeraram-se ao meu redor para dançarmos e celebrarmos. Foi maravilhoso.
“Você é tão valente!” Encantadora me disse de um modo tão atraente, que encostei em
minha rede para desfrutar da vinda dela. Ela estava tão bonita. Todos os guerreiros mais valentes
a queriam. Mas ela sempre se afastava dos avanços deles e vinha a mim. Ninguém poderia
resistir a ela. Nunca havia visto uma mulher que pudesse encantar tanto um homem, como ela
podia.
Ela mirava seus olhos suaves profundamente em mim. “Você está tão bonito, meu
amante. Você tem tudo que nós, mulheres, queremos. Todas o desejamos tanto.” Sentia-me fraco
com ela em minha rede.
Embora todos os meus espíritos aglomerassem ao redor de mim, eles sabiam, que
Encantadora teria a minha atenção, sempre que quisesse isto. O shabono, dentro do meu peito,
escureceu, como sempre, de tanto os espíritos avançarem em mim. Eu amava a todos. Mas
Encantadora, eu não conseguia descrever. Que emoção era ter espíritos tão maravilhosos.
Depois de celebrarmos nossa vitória, voltamos para nossas devidas aldeias. Não havia
nada para comer quando chegamos em casa, assim, fizemos wyumi e fomos procurar comida.
Mal começamos o primeiro dia, e meu filho começou a chorar; e em pouco tempo todas as
crianças estavam chorando. Eu sabia que estavam apenas com fome.
“Onde iremos procurar comida?” Perguntei a meus espíritos. Eles me conduziram a uma
terra mais alta, longe do rio. Havíamos ido lá antes, mas nunca voltamos porque achamos
pouca comida.
Viajamos, grande parte do trecho, no primeiro dia, e decidimos parar durante a noite. As
crianças estavam fracas demais para chorar. Meu pequeno menino estava queimando de febre.
Trabalhei em cima dele tentando chupar a febre para fora. Espírito do Homem Cobra me ajudou
e a febre dele passou.
No dia seguinte, achamos um pouco de fruta de cajueiro mas não havia o bastante para
as crianças. Tivemos que nos alimentar primeiro para que pudéssemos ficar fortes. A única coisa
que as crianças sabiam fazer era chorar.

*********

48
Sapato-Pé e Lança, junto com suas famílias, finalmente conseguiram o que sempre
quiseram, nabas para morar com eles. Freqüentemente, ia para a Aldeia Mel visitar meus
parentes; Sapato-Pé e eu tomávamos ebene e ensinava-lhe mais sobre os espíritos. “Você acha
que agora estou pronto para ser levado pelos espíritos para ver os nossos inimigos?” Perguntou-
me.
“Sim,” eu disse. “Conseguiremos alguns desses espíritos. Você pode, até mesmo, levar
alguns dos meus.”
Os nabas, na Aldeia Mel, quase não falavam o suficiente para que os entendêssemos. Eles
contavam sobre um outro espírito, mas não sabíamos o que queriam dizer. Sapato-Pé precisava
de mais espíritos. Eu não precisava. Meu shabono estava tão cheio de espíritos que não havia
nenhuma claridade lá dentro. Então, não estava interessado nos nabas, e meus espíritos não
gostaram deles.
Depois que parti, quando Sapato-Pé e Lança não estavam mais dançando com seus
espíritos, eles falaram com os nabas a respeito do seu espírito e desejaram saber mais sobre ele .
“Ele poderia ser o espírito do Trovão,” Lança disse.
“Ou ele poderia ser o espírito do Fogo,” Sapato-Pé respondeu. “Estes são espíritos que
não conhecemos muito.”
“E a respeito do espírito inimigo?” Lança perguntou para Sapato-Pé. “Eles falam como se
o espírito deles estivesse lutando com os nossos.”
“Você quer dizer Yai Wana Naba Laywa? Mas como isso pode ser? Sabemos que o espírito
inimigo não é amigo. Ninguém o conhece. Se formos perto da terra dele, queimaríamos com o
calor. Como alguém poderia conhecê-lo?”
No dia seguinte, falaram novamente com os nabas sobre o espírito deles e naquela noite
deitaram-se em suas redes e tentaram entender isto. “Penso que você tem razão, Lança,” Sapato-
Pé disse. “Penso que o espírito deles é o espírito inimigo. Quero perguntar-lhe algo e preciso que
você me fale. Seus espíritos vêm à noite quando está só e lhe imploram que não os jogue fora?”
Lança sentou-se, lentamente, em sua rede e olhou para Sapato-Pé. “Você está adquirindo
espíritos bons agora,” ele disse. “Você até pode dizer o que meus espíritos estão dizendo a mim.”
“Então é verdade. Seus espíritos estão vindo implorando-lhe que não os jogue fora,”
Sapato-Pé disse. “Meus espíritos fazem isso todas as noites. Por que pensariam que os jogaria
fora? Eles são tudo que tenho. Todos sabemos que nos matariam se os jogássemos fora.”
Lança encostou-se e meneou sua cabeça . “Talvez o espírito destes nabas seja realmente
o grande espírito, Yai Wana Naba Laywa, o inimigo de quem os nossos espíritos têm tanto medo.”
Todos os xamãs sabem sobre Yai Wana Naba Laywa. No dia seguinte, Sapato-Pé explicou ao
nabas sobre Yai Wana Naba Laywa, e eles começaram a acreditar que Sapato-Pé estava certo. O
espírito deles era de fato aquele que chamávamos de espírito hostil, porque ele nunca mostrava
nenhum interesse em nós.
“Mas isso não é verdade,” os nabas disseram. “Ele é o espírito que realmente se preocupa
com você. Ele quer que sua vida seja melhor. Mas ele não será o seu espírito, a menos que você
se livre dos outros. É por isso que seus espíritos não gostam dele.”
Sapato-Pé balançava sua cabeça. Ele entendia. É verdade, ele pensou. É por isso que
meus espíritos têm tanto medo. Eles pensam que estou a ponto de jogá-los fora. E os jogaria,
se pudesse achar o espírito certo.
Todas as noites, durante muitas luas, Lança e Sapato-Pé tinham a mesma conversa.
Ambos queriam o novo espírito. “Tudo o que dizem sobre ele é tão maravilhoso,” Sapato-Pé disse.
“Você realmente pensa que um espírito pode ser tão maravilhoso?”
“Não.”

49
“Eu também não. Eles falam sobre amor, bondade e tantas coisas que parecem tão boas.”
“Se o espírito do naba se preocupasse tanto conosco,” Lança disse encarando o telhado,
“por que os nabas não se preocupam? Se este espírito quer que a nossa vida melhore, por que
eles não querem? Você consegue entender isso?”
“Essa é a única coisa que gostaria de saber,” Sapato-Pé respondeu.
“Eles nunca compartilham nada conosco. Meu menino pediu-lhes um anzol e linha de pesca
hoje e não deram para ele.”
“E nunca compartilham a caça que conseguem com suas armas, até mesmo quando nós os
ajudamos a conseguir isto.”
Eles ficaram durante algum tempo em silêncio. Sapato-Pé continuou falando. “Sabemos
que a pior coisa que uma pessoa pode ser é avarenta. Mas estes nabas são mais avarentos que
qualquer Yanomami que conhecemos. No princípio pensei que era apenas porque eram diferentes
e que deveríamos dar-lhes tempo. Mas agora, estão há muito tempo conosco e ainda não
compartilham nada. Eles têm que ver quão miseráveis somos e quanto precisamos das suas
coisas.”
“Mas se este grande espírito, sobre o qual falam é Yai Wana Naba Laywa, então eles têm o
espírito mais poderoso que existe, Yai Pada. Até mesmo nossos espíritos sabem disso.”
“Sim, eles sabem,” Sapato-Pé disse. “Um espírito assim seria maravilhoso ter, não é? Se
eu tivesse um espírito assim, ficaria contente em ser liberto de todos os outros. Mas se tivermos
aquele espírito, talvez ficaremos avarentos como eles. Então, iríamos sem dúvida " para a cova de
fogo.”
Lança estava balançando a cabeça, concordando com tudo o que Sapato-Pé dizia. Então
Lança decidiu, “Algo está errado. Quando vivemos com nossos espíritos, nos tornamos iguais a
eles. Eles dançam. Dançamos. Eles roubam e estupram mulheres. Roubamos e estupramos
mulheres. Eles lutam e matam. Lutamos e matamos. Mas estes nabas não fazem o que dizem
que seu espírito faz. Eles dizem que ele é generoso. Mas não são. Eles dizem que ele é amável.
Mas não são.”
Então Sapato-Pé e Lança permaneceram com seus espíritos e todas as vezes que os
visitava, assoprávamos ebene em nossos narizes e dançávamos juntos.

50
O MEIO: APROXIMADAMENTE 1960

NÃO-AGARRA-MULHERES

CAPITULO 6

O PAI ÁGUIA NUNCA ACHOU O SEU FILHOTE

Eu continuava lutando com o povo da Aldeia de Tucano. Fredi finalmente acostumou-se


a viver na Aldeia Mel. Às vezes, penso que ele poderia ser um bom xamã. Deemeoma agora é
quase uma mulher,por isso foi roubada por uma aldeia vizinha. Finalmente, separou-se de Fredi e
de todos os outros que roubamos da Aldeia Batata. Os nabas saíram da Aldeia Mel desgostosos,
porque as pessoas de lá não lhes deram atenção. Quando partiram disseram que nenhum naba
voltaria. Mas, outra família de brancos foi morar conosco: Pepe, com seus muitos filhos e esposa.
E ela estava grávida novamente. Um de seus filhos é Keleewa, aquele menino que gostava de
brincar com Cacho-Pequeno em Tama Tama. Pepe construiu uma casa e disse que planejava
ficar. Então, os índios da Aldeia Mel também começaram a construir suas casas.

Os novos nabas primeiro tentaram aprender os nomes dos índios da Aldeia Mel. Mas,
como disse anteriormente, nosso povo não usa os nomes do mesmo modo que os nabas usam.
Nomes, freqüentemente, são insultos, e pronunciando-os poderia causar uma briga. Mas os nabas
não sabiam disso e continuaram querendo aprender. Eles estavam tentando aprender o nome de
Sapato-Pé quando um homem cansou-se das suas perguntas. Apontou para Sapato-Pé e disse,
“Ele tem uma boca; pergunte a ele”. Como muitos índios, Sapato-Pé não tinha um nome, a não
ser o de infância, e ninguém seria mau o bastante para mencioná-lo. Mas naquele dia, recebeu
seu primeiro nome de adulto. Daí em diante, ficou conhecido como Ele-tem-uma-Boca. Este foi o
seu nome até o dia em que ele deu algo aos nabas em troca de alguns sapatos velhos. Desde
então, ficou conhecido como Sapato-Pé. Tenho-o chamado de Sapato-Pé desde o princípio desta
história para facilitar o seu entendimento, naba.
Fredi casou-se e foi para a Aldeia do Rio Padamo, que fica entre a minha aldeia e a
Aldeia Mel, a que tinha roubado Deemeoma. Esta aldeia ficou conhecida como Aldeia
Esquecimento. Havia uma boa razão para aquele nome, mas ninguém na aldeia se lembrava.
Também não se lembravam de que as pessoas da Aldeia Mel acreditavam que Deemeoma fazia
parte da aldeia deles.
Deemeoma tinha um valor especial, logo que seus peitos começaram a crescer, porque
não tinha pais para cuidar. Seria como tomar uma esposa sem ter problemas com os sogros.
Agora que se tornara uma mulher, haveria algumas brigas por ela.
O povo da Aldeia Mel foi para a Aldeia Esquecimento lutar por ela e trazê-la de volta.
Finalmente conseguiram. Então, a Aldeia Esquecimento veio à Aldeia Mel levá-la de volta. Em cada
luta, ambos os lados a puxavam tanto que pensava que seus membros seriam arrancados.
Sapato-Pé tinha um irmão-primo que morava na Aldeia Mel e Deemeoma gostava dele.
Por isso, ela ficou contente quando a Aldeia Mel veio roubá-la, e por isso facilitou sua fuga e
dificultou o seu retorno. Finalmente, ela fugiu com o menino que gostava da Aldeia Mel. Eles
viveram escondidos durante muitos dias na selva até que as coisas acalmassem em ambas as
aldeias. Então, voltaram para a Aldeia Mel e começaram a construir uma casa. Os nabas
mostraram-lhes uma maneira de construir para deixar os bichos do lado de fora. Eles tinham
razão. As coisas tinham se acalmado. Mas Sapato-Pé tinha muitos outros irmãos-primo que

51
pensaram que tinham mais direito a Deemeoma. Um deles forçou-a a afastar-se daquele que a
amava.
O pai do menino que ela amava era o pai-tio de Sapato-Pé. Ele a queria para o filho dele.
Mas os outros parentes a queriam também e não deixaram que ele a tivesse. O pai ficou com
tanta raiva que levou seu filho e toda a sua família para longe da Aldeia Mel. Mudou-se para o
Ocamo, onde se juntou à Aldeia de Lábio de Tigre.
Ele jamais voltou para vingar-se. Nunca voltou por motivo algum. A discussão entre
Sapato-Pé e os outros irmãos nunca foi resolvida.
Deemeoma vivia muito infeliz com este outro homem. Numa manhã, guerreiros da Aldeia
Esquecimento vieram e puxaram-na da rede. Eles a arrastaram, gritando, em direção ao rio.
Imediatamente, ela foi agarrada por vários guerreiros da Aldeia Mel e a briga começou. Havia
tantos homens em cima dela, que mal podia respirar e quase morrera. Ela podia sentir muitos
deles enfiando seus dedos em suas partes íntimas, enquanto brigavam. Mas ela não tinha força o
suficiente para impedi-los.
Finalmente, um dos homens da Aldeia Esquecimento pegou o seu facão e bateu com
força nos joelhos dela. Cortou dos tendões até o osso. “Está vendo!" ele gritou. “Terminamos com
ela! Ela agora não é útil. Vocês podem tê-la se ainda a quiserem.”
Pepe, o novo naba, ajudou a estancar o sangramento nas pernas dela e a fechar as
feridas. Apenas algumas luas antes, Sapato-Pé teria ajudado-a chamando seus espíritos. Mas, o
novo naba, havia avisado a aldeia que se tomassem ebene e chamassem os seus espíritos, ele
deixaria a aldeia. E eles não queriam que o estrangeiro partisse agora. Então, Sapato-Pé não
tomava ebene quando o naba estava por perto.
Pepe pôs remédio e alguns panos nos joelhos de Deemeoma. Diariamente, colocava mais
medicamentos e panos. Demorou muitas luas até ela poder andar direito. Sapato-Pé assistiu tudo.
Levou muito tempo, mas Sapato-Pé sabia que os espíritos nunca teriam curado as pernas dela.
Ainda assim, falava com eles todas as noites.
Então, Deemeoma ficou na Aldeia Mel e viveu com o homem que ela não queria. Depois
de muito tempo acostumou-se com ele.

***

Para vingarem da vez em que matamos muitos deles, as aldeias que ficavam perto do rio
Ocamo, invadiram cada uma de nossas aldeias. E retribuímos as invasões tentando roubar suas
mulheres, ou matar alguém, quando podíamos. Eles invadiam, freqüentemente, a aldeia de Lábio
de Tigre porque ficava próxima a deles. Mas também invadiam a Aldeia Mel, sempre que podiam.
Minha aldeia era a mais distante e gostávamos disto. Mesmo com a ajuda dos nossos
espíritos, nossa aldeia não crescia. Nossos bebês continuavam morrendo, e era difícil fazer com
que o espírito Chupa Fora chupasse a doença deles. Alguns sobreviviam, mas era uma luta
horrível. As guerras faziam com que a luta se tornasse desesperadora, pois enquanto
guerreávamos não podíamos trabalhar em nossas roças.
Então, fizemos a única coisa segura - wyumi. Vagamos pela selva a procura de comida e
lugares para morar, onde não pudéssemos ser achados. Mas sempre havia pouca comida. E
novamente as crianças sofreram terrivelmente. Uma vez, uma criança chorou tanto que a matei.
Finalmente, nossos parentes inimigos mudaram-se para longe, para o rio grande. Eles
construíram um shabono na boca do rio Padamo, local que unia-se ao grande rio Orinoco. Eles
ficaram conhecidos como Aldeia Boca. A Aldeia Mel já estava vivendo na boca do Metaconi junto
com os seus nabas. Eles eram guerreiros ferozes. Sempre retribuíam as invasões.

52
Mais nabas mudaram-se para a nossa selva e muitas coisas novas começaram a acontecer.
Como eu era um dos xamãs mais poderosos e experientes em toda terra dos Yanomami, eu tinha
que entender estas coisas pelo meu povo.
Um dia, alguns visitantes chegaram da Aldeia Mel e falaram-me que Sapato-Pé havia jogado
fora os seus espíritos. Eu não acreditei. “Isso não pode acontecer!” eu disse.
“É verdade.” ele disse.
Mas não pude acreditar naquilo. “Ele estaria morto se jogasse fora os seus espíritos. Eles o
matariam.”
Mas o visitante da Aldeia Mel meneou a cabeça e estalou a língua. Ele estava tão confuso
quanto eu. “Ele não toma ebene,” ele disse. “Ele não dança. Ele não canta. Ele não faz nada…”
“Mas eu o treinei,” eu disse. “Compartilhei todos os meus espíritos com ele. Ensinei-lhe tudo
sobre eles. Ele é um xamã maravilhoso e poderoso. Ele não pode fazer isso. Os espíritos não
partem simplesmente!” Fiquei tão confuso que demonstrei. Como pode um xamã tão feroz como
Sapato-Pé, desperdiçar seus espíritos?
“Ele começou a interessar-se por Yai Pada e seus espíritos não gostaram,” os visitantes
disseram.
Imediatamente fui ver Sapato-Pé e descobrir que coisa horrível havia acontecido a ele, que
fizesse com que perdesse os seus espíritos.
Quando encostei minha canoa no barranco, na boca do rio Metaconi senti uma satisfação ao
reencontrar meus velhos amigos. Mas algo estava muito diferente. O que era, desejei saber.
“Não entre aqui,” espírito da Onça me disse. “Há muito perigo aqui. Estamos com medo.”
Foi a primeira vez que tinha ouvido a palavra medo, vindo do espírito da Onça, e me fez sentir
ruim por dentro. Minhas mãos começaram a tremer e segurei firmemente o meu arco para fazê-las
parar.
Não pode haver perigo aqui, pensei. Estes são meus amigos. Sempre foram meus amigos.
Mas não era só Onça. Todos os meus espíritos aglomeraram-se no shabono do meu peito e
fizeram um barulho terrível, por causa do medo que sentiam. Quando vi Sapato-Pé, fiquei
atordoado. “O que aconteceu com os seus espíritos?” Perguntei-lhe, olhando para o seu peito.
Podia ver que eles tinham saído.
“Eu os joguei fora, cunhado.”
“O que!” gritei. “Como você pôde fazer isso? Por que você fez isso?”
“Achei o novo espírito que procurava”, Sapato-Pé disse. “Yai Wana Naba Laywa, o hostil.
Você sabe, nosso espírito inimigo.”
“Você não pode tê-lo!” disse com excitação. “Lá é muito quente e ele nunca sai!”
Foi uma visita horrível para mim. Havia um espírito na aldeia de Sapato-Pé que eu não
entendia. Mas era poderoso. É por isso que meus espíritos ficaram tão chateados por eu ir lá.
Amarrei minha rede ao lado de Sapato-Pé e assim que me deitei, todos estavam lá, cada espírito
que eu tinha, aglomerando-se no meu shabono.
“Por favor, Pai!” todos imploraram juntos. “Por favor, saia daqui. Não é seguro aqui.
Estamos apavorados.” E eles estavam. O novo espírito no peito de Sapato-Pé havia provocado
tanto medo neles, como nunca havia visto antes.
Ele é meu amigo, eu pensei.
“Ele não é nosso amigo! Nós o odiamos!” Todos os meus espíritos falaram ao mesmo
tempo. “Por favor, Pai! Por favor não nos jogue fora.”

53
O pensamento de jogar os meus espíritos fora nem havia passado em minha mente. Por que
eles diriam isto para mim?
“Ele vai querer que você nos jogue fora,” eles disseram. “Você verá. Por favor não o escute,
Pai!”
Os meus espíritos estavam certos sobre isso, Sapato-Pé e os seus novos amigos nabas
queriam que eu jogasse fora os meus espíritos. O novo espírito de Sapato-Pé nunca se daria bem
com os meus.

Tínhamos parentes que moravam em uma aldeia perto de nós. Havia duas irmãs lá. A mais
nova chamava-se Flor-Amarela, penso que ela tinha este nome porque era muito bonita, e sua
irmã mais velha chamava-se Sara. Não sei por que a chamávamos assim. Sara tornou-se a esposa
de um grande guerreiro e caçador em outra aldeia. Nós o chamamos de Cabeludo, porque havia
pêlos que cresciam nas pernas e no peito. Cabeludo era o guerreiro que estava no gramado da
Aldeia Mel, naquela manhã e assistia tudo.
A esposa de Cabeludo, Sara, morreu. Isto trouxe muita tristeza para ele. Cabeludo queimou
o corpo dela e ficou triste. Então, viajou para a aldeia da família dela, onde meus parentes vivem,
e perguntou aos seus irmãos se ele podia possuir a sua bela irmã mais nova, Flor-Amarela, como
esposa. Mesmo sendo famoso pela quantidade de pessoas que tinha matado, Flor-Amarela não o
queria. Ela questionou amargamente seus irmãos e pais. Mas eles estavam muito animados em
tê-lo como parente. “Não se preocupe,” a mãe dela lhe falou. Você vai se acostumar com ele. Ele
providenciará bastante carne para você.”
“Ele já tem três filhos,” ela lamentou. “Não sei cuidar deles, e não quero deixar nossa
aldeia. Esta é minha casa.”
Mas os pais dela sabiam que ele providenciaria carne para eles na sua velhice. “Ele é um
grande homem,” a mãe dela disse. “Você verá. Logo se acostumará a Cabeludo e esquecerá suas
lamentações.” Um homem tão feroz quanto Cabeludo poderia ter qualquer menina que quisesse.
Ninguém era tão feroz quanto ele. Ninguém tinha matado tantas pessoas. Ninguém poderia
protegê-la tão bem quanto Cabeludo. Ele era o genro perfeito.
Flor-Amarela sabia que não tinha escolha e não havia nada que pudesse fazer para mudar
isso. Se a família dela mudasse de idéia! Ela esperou. Implorou. Importunou. Lamentou. Chorou.
Deitava-se na rede pensando em como seria deixar todos que amava. Como poderiam fazer isto
com ela? Havia visto suas irmãs mais velhas mandadas embora, mas por alguma razão achava que
nunca aconteceria com ela. Agora estava acontecendo. E a dor pegou-a de surpresa.
Quando a manhã veio para eles partirem, ela ainda esperava que mudassem de idéia, ah, se
isso acontecesse...
O choro de Flor-Amarela se tornara em gritos quando ela, Cabeludo e seu povo saíram do
shabono e caminharam na direção da aldeia dele. Mas não adiantava recusar. Eles me forçarão,
de qualquer maneira, ela pensou, da mesma maneira que fizeram as outras.
O caminho era longo, úmido, e exaustivo. Tinha que carregar muitas coisas e também a
criança menor da irmã dela. Folhas úmidas batiam no seu rosto e na criança enquanto
caminharam, até a tarde. Com o passar do dia, ela se acalmou e Cabeludo começou a sentir-se
confortável, e a pensar que ela se acostumaria a ele e a seu povo. Mas seu lar nunca deixaria a
mente dela.
Quando chegaram na Aldeia de Cabeludo, Flor-Amarela amarrou sua rede próxima a dele e
deitou-se, quieta. Cabeludo levou-a para a roça e mostrou-lhe o que significa casar-se com um
Yanomami feroz. Ele jogou-a no chão. Ela será uma boa esposa, pensou Cabeludo. Quase nem
chorou.

54
Na manhã seguinte, Cabeludo juntou sua rede, arco e flechas, e partiu para uma longa
caçada, para conseguir comida para aqueles que viriam lamentar a morte da sua irmã e beber os
ossos dela.
As coisas haviam sido muito ruins para Cabeludo. Havia perdido sua esposa, Sara, e sabia
que o povo Hawk e o povo de Shetary estavam planejando uma invasão contra ele. Mas Flor-
Amarela não se importava com os problemas de Cabeludo. Ela sofria, mas sempre quieta.
Depois que Cabeludo saiu, ela manteve o fogo, cozinhou a refeição da noite para as três
crianças, e deitou, cedo, na sua rede. O fogo diminuiu durante a madrugada. Ela despertou para
reacendê-lo, silenciosamente desamarrou a corda da sua rede, e lentamente andou no meio do
shabono em direção à entrada. Estava escuro e ela não podia fazer nenhum barulho.
Fora do shabono, tudo estava escuro. Deu um passo de cada vez até que estivesse distante
e esperou o amanhecer. Então, rapidamente fez a longa e solitária caminhada para casa.
O rosto de Cabeludo ficou avermelhado de raiva quando voltou dois dias depois e achou
seus filhos sozinhos. “Por que você não a impediu?” ele gritou com seu irmão. Mas Cabeludo não
estava interessado em ouvir uma resposta. Os seus parentes mal começaram a explicar quando
Cabeludo deixou o shabono com arco e flechas em uma mão e a rede em cima do ombro.
Quando Cabeludo chegou na aldeia de Flor-Amarela e a achou, ele queria bater nela na
frente dos seus irmãos. Ele sabia que eles não aprovariam. Afinal de contas, ele era um grande
cunhado. Mas, decidiu esperar até mais tarde para bater.
Já basta desta mulher horrível, pensou Cabeludo enquanto ela o seguia pelo caminho de
casa. O que ela pensa? Trago a carne para ela. Vou dar-lhe filhos. Cuido dela. A protejo dos
nossos inimigos.
Flor-Amarela não se importava. E fugiu outra vez. “Ele é velho!” Reclamou para seus irmãos.
“Ele é muito velho!”
“Ele não é velho,” eles disseram. “Tem a nossa idade. Ainda pode caçar muito. E poderá
trazer carne para você por muito tempo.”
Cabeludo voltou e levou-a. Mas continuava fugindo para a aldeia da sua família. “A próxima
vez que voltar aqui, vou dar-lhe uma surra,” seu irmão disse. “Cabeludo não será paciente com
você por muito tempo.”
Mas Cabeludo foi paciente. Continuava buscando-a. A próxima vez que fugiu para casa, os
irmãos bateram nela. Ficou prostrada na rede e sangrou. Depois disso, sempre que fugia, nunca
voltava para a sua família. Ela estava triste, e ficava sozinha na selva. Ninguém sabia como ela se
alimentava.
Um dia, algumas crianças estavam brincando na selva e Viajem viu a rede no topo de uma
árvore. Estava escondida entre os cipós. “É ela,” ele sussurrou ao amigo dele. “É Flor-Amarela.
Volte e busque Cabeludo.”
Viajem ficou vigiando a rede enquanto os outros correram e trouxeram Cabeludo. Ele foi
humilhado novamente.
Cabeludo amarrou as cordas da rede dela tão apertadas que ela não conseguiu desamarrá-
las. Mas fugiu sem a rede. Na selva, juntou cipós e fez uma rede. Ficou lá até que Cabeludo a
achou. Todos sabiam que um dia, uma onça a acharia antes de Cabeludo. Mas Flor-Amarela não
se importava.
Uma vez, quando ela estava na selva, pendurada no topo de uma árvore, uma aldeia
passou, por aquela área, em wyumi. Então juntou-se a eles. Eles estavam prontos para estuprá-la
quando descobriram que alguns entre eles poderiam ser os tios e tias dela. Então, esses parentes
a defenderam .

55
Quando Cabeludo soube onde ela estava, os irmãos dele disseram, “Vá lá, busque-a e
mate-a. Não temos tanto tempo assim, para você ficar fora, sempre atrás daquela mulher fedida.”
Cabeludo se arrumou. Algumas das mulheres se ofereceram para irem com ele para cozinhar no
caminho.
“Vocês não podem ir comigo,” ele disse. “Estou tão humilhado que ao terminar de matá-la
as mataria também.”
Então Cabeludo foi só. O irmão dele o acompanhou um pouco pelo caminho. “Não a mate,”
ele falou antes que Cabeludo o deixasse. “Já temos muitas guerras agora. Não podemos guerrear
com a aldeia dela. Se a aldeia dela se unir as outras, eles nos matarão.”
“Eu sei,” Cabeludo disse. “Certamente gostaria de matá-la. E todos pensam que vou. Mas
sei que nunca poderíamos nos defender.”
O irmão de Cabeludo o observou até sair da sua vista, pelas folhas que estavam no
caminho. Ele voltou ao shabono. Uma coisa boa era que Cabeludo não era um homem bravo. Se
ele se aborrecer e matá-la, todos seremos mortos, ele pensou.
Quando Cabeludo, finalmente achou o povo com quem sua esposa tinha se unido, ele viu
que os irmãos dela tinham se unido a eles também. “Soubemos que você já enjoou das fugas dela
e planeja matá-la”, disseram a Cabeludo. Eles entendiam. Nenhum homem agüentaria tanta
dificuldade com uma mulher. “Não nos importamos que bata nela. Já batemos uma vez por você
e bateremos novamente, se quiser. Mas não podemos deixar que a mate.”
“Eu quero matá-la,” Cabeludo admitiu. “Realmente quero matá-la. Todos sabem disso. Mas
não vou. Preciso dela como esposa. Não terei onde conseguir uma esposa se a matar. Estou preso
a ela.” Ele foi para o lado de Flor-Amarela, onde estava deitada na rede. Ela se levantou,
desamarrou-a, e o seguiu pelo caminho, para Aldeia de Cabeludo. Não havia mais nada que
pudesse fazer.
Cabeludo seguiu Flor-Amarela pelo caminho até chegar perto da sua aldeia. Ele a observou
caminhando na sua frente e ficava mais irado a cada passo. Finalmente, não agüentou mais.
Agarrou-a pelos cabelos e bateu nela com seu punho, até que ela caiu. Sua ira aumentou
enquanto cortava uma vara.
Ele prendeu-a de costas e colocou a vara no seu pescoço, e pisou em cada ponta. Ela lutava
contra a vara. Sabia o que ele estava fazendo; estava matando-a. Se não conseguisse tirar a vara,
nunca poderia pertencer ao homem que realmente queria. Apenas as crianças com quem ela
brincava sabiam que havia um menino que ela estava de olho.
A força de Flor-Amarela aumentara. Cada músculo do seu corpo trabalhava para mover
aquela vara. Mas não moveria. Ela chutava. Mas não havia nada para chutar. Tentou levantar o
peito. Mas não entrava ar. Tentava gritar. Mas não saia nenhum som. Cabeludo estava quieto;
concentrava-se em manter o peso dele contra a vara. Se não posso tê-la, Cabeludo disse a si
mesmo enquanto fixava seu olhar no rosto atormentado dela, nenhum outro pode. Apenas ouvia-
se o barulho dos pés e das nádegas batendo no chão.
Cabeludo pulou um pouco e começou a sair um líquido pela boca dela. Ela conseguiu ar
suficiente para sentir o cheiro de tabaco saindo da boca de Cabeludo na face dela.
Cabeludo apertou a vara por um tempo até que acabou. Ele a havia sufocado. Ele se
colocou em cima dela, enquanto encarava o seu corpo. Jogou com força a vara no mato. E
enquanto juntava sua rede, arco e flechas, ouviu a vara caindo nos cipós. Então caminhou para
casa. Na primeira curva olhou para trás para encará-la a última vez. Nenhum músculo se
movimentava. Seu corpo estava estirado no caminho... Ao longe, ouviu o chamado de um peru.
Mas com exceção dele, Cabeludo estava só. Ele só parou por um momento, e seguiu adiante.
Cabisbaixo ele meneou a cabeça com tristeza. Ela não está bonita agora, pensou Cabeludo.
Agüentei todas as lamentações femininas que pude. Este mundo é feito para nós, os homens.
Quando elas aprenderão? As mulheres estão aqui para nós, não nós para elas.
56
Cabeludo sentiu como se a mente dele fosse explodir com a overdose de pensamentos,
enquanto tropeçava pelo caminho em direção a sua casa. Em qualquer dia normal ele teria
perseguido aquele peru. Mas, por hoje basta de matança. O que será de mim agora, ele desejou
saber? O que vale ser o guerreiro mais feroz e o melhor caçador, se não tem nenhuma esposa
para cuidar dos seus filhos? E agora, até mesmo a aldeia dela se tornará nossa inimiga. Eles
certamente virão e farão guerra contra nós.
Perto da aldeia, Cabeludo encontrou-se com Viajem e algumas outras crianças que
brincavam. “Matei um bicho preguiça no caminho,” ele falou.
“Volte e busque-o.” Viajem e as crianças não podiam lembrar a última vez que haviam
comido.
“Vamos,” Viajem disse. “Assaremos e comeremos aqui no caminho.” As crianças correram
na selva procurando um animal peludo e uma refeição.
O que Viajem viu encheu o seu corpo de medo. Todos pararam atrás dele.
“Não vou me aproximar mais,” Viajem falou. E todos voltaram correndo para o shabono.
Quando Cabeludo entrou no seu shabono , foi recebido pelas mulheres. Elas queriam saber
onde estava Flor-Amarela. Ele viu o medo nos seus olhos quando disse, “não chorem por ela.
Ela está lá no caminho.” Ele apontou. “E não a tragam de volta aqui. Não quero o cheiro da
fumaça dela em nossa aldeia.”
As mulheres menearam as suas cabeças. Sabiam que o povo da aldeia de Flor-Amarela eram
os únicos amigos que tinham. Ainda sendo o grande guerreiro que Cabeludo era, sabiam que não
poderia protegê-las de todas as aldeias inimigas, se perdessem seus últimos amigos.
Os irmãos de Cabeludo menearam as cabeças. “Por que você fez isso?” continuaram
perguntando. “Por que você fez isto para a nossa aldeia? Qual é a sua desculpa?”
As mulheres correram pelo caminho da aldeia de Flor-Amarela na esperança de achar o
corpo antes de qualquer outro. Queimaram o corpo dela bem ali, para que Cabeludo nunca
tivesse que ver a fumaça. Elas ficaram por muito tempo, até que o fogo esfriou.
“O que contaremos aos irmãos dela?” Perguntaram-se enquanto peneiravam as cinzas e
recolhiam os ossos.
“Vamos dizer que os nossos inimigos sopraram o pó mágico nela enquanto voltava para casa
com Cabeludo. Diremos que o feitiço funcionou e ela morreu.” As mulheres concordaram que
era a coisa certa a fazer.
“Se eles se unirem aos nossos outros inimigos, todas teremos os maridos mortos,” uma delas
disse, e tinha razão.
Enviaram a história aos irmãos de Flor Amarela. Os irmãos voltaram para ouvi-la diretamente
de Cabeludo. Entraram no shabono e reuniram-se ao redor da rede dele. Mas Cabeludo não dizia
nenhuma palavra. Ouviu todas as perguntas. Mas não respondeu.
Finalmente Cabeludo se levantou, pegou a cuia vermelha que continha os ossos esmagados
de Flor-Amarela, e a deu aos irmãos dela. E deitou-se em silêncio. Eles ficaram ao redor da rede
perguntando o que tinha acontecido à irmã deles. Mas Cabeludo nunca falara.
Quando os irmãos de Flor-Amarela deixaram o shabono, o povo de Cabeludo sabia que os
veriam novamente, só que usando pintura de guerra.
Um dia, Cabeludo voltou de uma caçada com um macaco pequeno e um peru. Era o
suficiente para seus filhos, embora sua irmã tivesse que cozinhar isto para eles. Ele sentou na sua
rede, cansado, triste, e cheio de medo. Ao seu redor estava a sua aldeia, seus parentes que
dependiam dele para protegê-los. Mas sobraram poucos. Doenças ou espíritos já haviam levado
muitos dos seus filhos. E agora nem estavam protegidos da aldeia de Flor-Amarela. Cabeludo não
tinha guerreiros suficientes para ajudar. E seus jovens guerreiros não haviam matado ainda. Ele
57
precisava de uma esposa para ter mais filhos. Mas onde? Seus inimigos até poderiam dar-lhe
uma. Mas, de todo jeito, não poderia protegê-la. Nem podia proteger o pouco que lhe restara.
Cabeludo deitou na rede e imaginou como seria levantar e atirar suas flechas num bando de
guerreiros invadindo o seu shabono. Olhou a entrada. Quantos poderiam passar de uma vez?
Examinou seu grande arco e suas longas flechas e viu-se saltando da rede e atirando neles.
Imaginava quantos deles poderia atingir, enquanto passavam pela entrada, via cada um caindo na
terra com uma flecha atravessando o seu corpo. Claro que teria que puxar muitas flechas do seu
corpo, e imaginava suas filhas juntando flechas para ele atirar. Seu corpo ficou tomado com todos
os sentimentos que vêm quando há uma matança: raiva, muita raiva, medo, e ódio que não pode
ser contido.
Sua irmã tinha um peru pronto para ele, mas não sentia fome. Seu irmão mais velho era
um caçador e assassino quase tão bom quanto ele, e seu irmão mais jovem a cada dia melhorava.
Ainda assim, Cabeludo via pouca esperança para a sua aldeia. E agora perderiam seus últimos
amigos, a menos que acreditassem nas mentiras das mulheres.
Durante muitas luas, Cabeludo constantemente preocupava-se em como poderia achar uma
esposa. Um dia, um grupo de visitantes veio de uma aldeia distante. Cabeludo sabia a respeito
deste povo, embora não tivesse nenhum parente morando com eles. O líder deles era bem
conhecido por ser um xamã e ter sido treinado por mim, Homem da Selva. Chamava-se Sapato-
Pé e o naba que estava com ele, Pepe. Eram algumas pessoas da Aldeia Mel.
Depois da troca cerimonial de saudações e comida, Sapato-Pé contou a Cabeludo que eles
queriam deixar de lutar. Cabeludo ficou tão chocado, que o chumaço de tabaco quase caiu da sua
boca. As pessoas da Aldeia Mel eram conhecidas como lutadores ferozes. Deixar de lutar não era
o modo do Yanomami.
Cabeludo ficou tão confuso com esta visita que por muito tempo não soube o que pensar.
Quando sua filha mais velha cresceu, decidiu levá-la para a nova aldeia amiga e tentar trocá-la por
uma esposa. Depois de gastar algum tempo lá, Cabeludo escolheu uma menina que ele gostou e
deu sua filha em troca a um dos jovens da aldeia. A menina que escolheu gostou dele e foi para
sua casa, alegre. Aconteceu tudo como havia planejado, saiu com uma filha e voltou com uma
esposa. Era o começo de uma longa e calma relação da Aldeia Mel com a Aldeia de Cabeludo.
Cabeludo amava sua nova esposa e amava a aldeia dela. Nunca tinha visto outra aldeia
igual. Tinham tantas crianças saudáveis. Cabeludo e sua esposa a visitavam freqüentemente. Às
vezes, toda a sua aldeia ia com ele, e eles começaram a casarem-se entre eles. Ele gostava de
ver seus netos e de trazer seus filhos para ver os avós. O naba, Pepe, tinha meninos que falavam
como Yanomami.
Ainda que tivessem parado de lutar, esta aldeia era importante para a sobrevivência de
Cabeludo. É muito importante que seus inimigos saibam que você tem amigos e parentes que
ficariam zangados se fosse morto.
Quando seu neto mais velho estava pronto para se tornar um homem, a Aldeia de Cabeludo
se preparou para a longa viagem a fim de visitar a Aldeia Mel. O irmão mais jovem de Cabeludo
decidiu não ir. Ele era agora um guerreiro experiente, mas por estar doente, ficou para trás com
suas duas esposas. Por motivo de segurança ficaram longe do shabono, escondendo-se na mata.
Enquanto todos da aldeia estavam fora, os parentes da esposa morta de Cabeludo vieram e
acharam o shabono vazio. A morte da primeira esposa não era o problema. Mas como sua irmã,
Flor-Amarela, também morreu e Cabeludo não pôde responder as perguntas deles, eles
precisavam resolver o problema. Procuraram na mata e acharam o irmão de Cabeludo. Durante
muitas estações eles haviam esperado uma oportunidade para vingarem-se da misteriosa morte de
Flor-Amarela.
Naquele dia, bateram com seus bastões no irmão de Cabeludo. Se ele não estivesse tão
doente, talvez poderia tê-los afastados, ainda que fossem muitos. Suas esposas tentaram cuidar
dele, mas quando seu povo voltou, ele havia morrido por causa da surra.
58
As pessoas da Aldeia de Cabeludo sabiam agora que não tinham amigos. Cabeludo e seu
irmão mais velho juntaram-se aos outros guerreiros e mulheres nas lamentações pela perda.
Chamaram seus espíritos, moeram os ossos do seu irmão, e os misturaram no suco de banana.
Beberam, pintaram-se para a guerra, e viajaram para a aldeia das primeiras esposas de Cabeludo.
Cabeludo conhecia bem os irmãos dela, especialmente um. Foi ele que bateu em Flor-Amarela
naquela vez em que fugiu. Cabeludo lembrou do olhar suspeito dele no dia em que o
questionaram sobre a morte dela. Ele seria a pessoa certa para matar, pensou Cabeludo,
enquanto caminhavam em direção a aldeia de Flor-Amarela. Ao chegarem, mataram aquele irmão
e a tristeza deles foi apaziguada.
O irmão morto de Cabeludo tinha duas esposas. Elas amarraram suas redes próximas a de
Cabeludo e tornaram-se suas esposas. Agora, as redes de três esposas estavam penduradas ao
seu alcance. Estas mulheres devem estar contentes em me ter, ele pensou. E as coisas ficaram
melhores para a aldeia. Agora podemos receber mais visitas dos nabas da Aldeia Mel, talvez as
coisas continuem melhorando.
Cabeludo levantou-se da rede e viu que todos, na aldeia, estavam dormindo. Ele caminhou
até à frente do shabono e saiu para a mata sozinho. Conduzir esta aldeia sempre havia sido um
grande peso para ele. Cabeludo não sabia por que saíra do shabono sozinho, mas enquanto se
afastava, de repente achou-se numa luta de vida ou morte com uma onça. Ele pegou uma vara e
a atravessou no pescoço da onça, segurando-a no chão. Colocou um pé em cada ponta da vara
para prendê-la.
Se eu soltar esta vara, com certeza, ela me matará, pensou Cabeludo. Os olhos da onça
estouraram. Sua língua saiu. Enquanto Cabeludo segurava com toda força para salvar a sua vida,
o rosto do gato transformou-se na face de uma mulher. E Cabeludo ouviu sua própria voz
dizendo, Se não posso tê-la, ninguém a terá. Ela sorriu e imaginou-a dizendo, “Você nunca
esquecerá o que me fez.”
Cabeludo pulou da rede gritando. Deu uma olhada para ver se o seu pesadelo havia
acordado alguém. Meu povo perderá todo o respeito por mim, se pensarem que estou tendo
pesadelos por ter matado uma mulher. Ele voltou e deitou em sua rede. Estava molhada com o
seu suor. Por quanto tempo continuarei tendo estes pesadelos horríveis? Cabeludo se
perguntou. Pensei que isto terminaria depois de haverem matado meu irmão. Pensei que
certamente, depois de termos vingado a morte dele, tudo teria ficado para trás. Mas eu ainda não
conseguia dormir em paz.
Ele tentou voltar a dormir, mas não quis dormir com medo de que o pesadelo voltasse.
Então, deitou e pensou em Flor-Amarela. Por que tive que matá-la? Ele via o horror nos olhos
dela enquanto a estrangulava. Sabia exatamente a ordem em que tudo acontecera. Todas as
vezes que lembrava nunca mudava a ordem dos acontecimentos. Em seguida a língua dela saía.
Depois o corpo endurecia e tremia todo. Cabeludo tentava diminuir seu peso da vara para mudar
a lembrança. Mas não podia. Nunca mais conseguirei dormir, ele pensou. O espírito dela tem
voltado para me roubar o sono.
Um dia, uma menina fugitiva encontrou, por acaso, a Aldeia de Cabeludo. Cabeludo e os
outros homens olharam um para o outro. Mas Cabeludo meneou a cabeça. “Olhem para ela,” ele
disse. “Ela está quase morta. Se a estuprarmos, certamente morrerá. E agora precisamos de
mais mulheres para a nossa aldeia.”
Então os homens não a estupraram. Pelo contrário, deram-lhe uma rede próxima a de
Cabeludo e suas esposas. Durante os dias que se seguiram, o sobrinho de Cabeludo, aquele que
precisava de uma esposa, começou a trazer comida para ela. Ele saía do shabono, pela manhã,
na esperança de matar o suficiente para trazer um pouco de carne antes do meio-dia. Às vezes,
ela o via saindo e sentia-se tão bem por alguém fazer isto por ela.
Quando ficou boa, colocou sua rede ao lado dele e tornou-se sua mulher. Ele a chamou de
Shecoima. Todos podiam ver que ela sentia muita saudade da sua família. Mas, ninguém a

59
ajudaria a voltar, porque sabiam o quanto o sobrinho de Cabeludo precisava de uma mulher.
Depois que engordou com um bebê, Shecoima ficou contente.
Quando o menino deles começou a andar, ficou muito doente. Os xamãs chamaram o
espírito Chupa Fora para tirar a doença. Ele era o melhor nos casos de doença. Mas, desta vez,
estavam errados e não sabiam o que estava acontecendo. O espírito Chupa Fora nem sempre
reconhecia quando tinha um problema que não pudesse resolver. De qualquer maneira, ele
sempre tentava.
“Ele tirará a doença,” seu marido falou a Shecoima. “Ele é um xamã poderoso. Eu o vi
curar muitos bebês doentes.” Mas estava errado. O bebê não melhorava.
Diariamente, o xamã tomava mais ebene e trabalhava com seus espíritos para tirar a
doença do menino. “O espírito Chupa Fora diz que esta é uma doença muito difícil,” o xamã lhes
disse, ao voltar de uma das sessões com o seu ebene. “Vamos tentar novamente e
conseguiremos.” Mas o menino não melhorava.
Deveria estar claro que este era o resultado de um espírito perdido. Mas eles não
conseguiam entender isto. Finalmente, quando o bebê piorou, um outro espírito contou ao xamã
que o gêmeo do filhote da águia havia se perdido. Cada Yanomami masculino tem sua águia
gêmea e cada mulher tem um pequeno pássaro gêmeo. O gêmeo do bebê deles, uma águia
filhote, havia sido separado da sua mãe e morria aos poucos. É por isso que seu filho estava tão
doente. Logo morreria, a não ser que Shecoima e o xamã conseguissem ajudar os pais águias a
acharem o seu filhote perdido.
Era, afinal, a resposta correta para a doença. Mas, espírito Chupa Fora, mesmo sendo um
bom curador, freqüentemente não podia dizer a causa de uma doença. É por isso que nós,
xamãs, precisamos de tantos espíritos diferentes.
Agora que sabiam a causa certa, o xamã facilmente conseguiria a cura. Eles construíram na
selva uma grande plataforma elevada do chão. A plataforma tinha a forma de um ninho de águia.
Shecoima pôs seu bebê no chão e cobriu-o com folhas. Ele parecia exatamente como o filhote
perdido.
O sobrinho de Cabeludo segurava um galho de palmeira em cada mão e corria pela selva
batendo as asas e fazendo os sons de uma águia procurando o seu filhote. Depois de bater por
um tempo, ele abriu as folhas e achou o seu bebê. Daí ele desceu, apanhou o bebê e o colocou na
plataforma, de volta ao ninho, onde deveria estar.
Finalmente, os xamãs haviam feito a coisa certa pelo bebê de Shecoima. Uma família de
águias, no mundo dos espíritos, havia perdido o seu filhote. A simulação da procura do bebê feita
pelo sobrinho de Cabeludo permitiria que a águia pai, no mundo dos espíritos, achasse o seu
filhote.
“Quando ele o achar, seu bebê será curado,” o xamã disse a Shecoima.
Mas, a águia pai, no mundo dos espíritos, nunca deve ter achado o seu filhote, pois o bebê
de Shecoima morreu. O xamã disse, “Desta vez não consegui pegar o falcão antes que levasse o
bebê para a terra do inimigo.”
Durante as estações seguintes, Shecoima teve muitos outros meninos. Mas todos
morreram antes de andar. Finalmente, ela deu à luz a uma menina. “Tenho tanto medo que
aconteça a mesma coisa com ela, como tem acontecido com os nossos filhos,” disse ao seu
marido. “Os nossos xamãs nos ajudaram muito pouco.”
“Onde estamos errando?” Perguntou-lhe, sentando na rede com ela e o novo bebê. “Meu
povo está dizendo que você fez algo que causou isto. Eu sei a respeito da sua vida difícil. Mas,
conte-me mais sobre a razão de você ter fugido da aldeia da sua família. Talvez possamos
descobrir por que isto está acontecendo e salvar a nossa menina.”

60
“Me fará chorar se lhe contar”, ela disse abaixando sua voz. “Fará lembrar-me de minha mãe
e meu pai. Sentirei muita dor. Mas, vou contar-lhe.” Sentaram juntos na rede, observando a
fumaça subindo.
“Quando eu era uma menina,” Shecoima começou sussurrando, “meus pais me prometeram
ao homem mais velho da aldeia. Ele me aterrorizava. Toda vez, ele trazia comida para os meus
pais. Eu chorava porque sabia que ele estava fazendo as coisas que precisava para tornar-se o
genro deles. Eles me forçaram a ir para a rede dele e tentaram se livrar de mim. Mas, eu era
muito pequena e ele nunca conseguia. Eu sempre chorava de dor.
“Diariamente, ele me observava para ver se eu crescia. Era muito ciumento e tinha medo que
um dos outros homens da aldeia me pegasse antes dele. Vigiava-me o tempo todo, e se eu falasse
com outro homem, ele me batia.”
“Depois que cresci um pouco, ele veio e me levou para a selva. Era o que temi durante toda a
minha vida. Eu ainda era virgem. Meus peitos nem haviam crescido ainda.”
“Quando estávamos longe da aldeia, ele me agarrou e me jogou no chão. Estava tão
apavorada. Gritei tão alto que provavelmente o assustei. Ele me bateu bem forte na barriga para
tirar o meu fôlego. Então, me estuprou. Havia sangue em todo lugar. Enquanto voltávamos para a
aldeia, eu sangrava bastante, mas ele nunca me ajudou. Pensei que morreria.”
“Decidi, naquele dia que preferiria morrer ao deixá-lo me ter como sua esposa. A morte não
poderia ser pior do que ele havia feito para mim.
“Como os rituais de mulher estavam terminando, comecei a procurar uma oportunidade para
escapar da aldeia. Estávamos nos preparando para uma festa em que beberíamos os ossos, por
isso todos os homens haviam ido caçar. Sabíamos que não voltariam nos próximos dias. Era a
minha única chance, então fugi. Passei muitos dias e noites sozinha na selva, até chegar,
finalmente, na Aldeia de Wabu. Sabia que nada que este povo me fizesse seria pior do que aquele
velho. Eu estava errada.
“Estava morrendo de fome quando entrei na aldeia. Todos se comoveram quando me viram;
e muitos dos guerreiros seguiram-me pelo caminho para ter certeza que eu realmente era uma
fugitiva. Então, me alimentaram e me deram uma rede. Dormi com os pensamentos mais
maravilhosos da minha vida. Ficaria lá feliz para todo o sempre .
“Tarde, naquela noite, meu sono maravilhoso foi interrompido. Dois homens puxaram o meu
braço com tanta força que voei da rede e caí no chão. Vi apenas os sorrisos e os olhos arregalados
daqueles homens estranhos. Era uma aldeia grande. Havia muitos deles. Eles me arrastaram para
fora do shabono e me estupraram. Um após o outro, alguns me estupraram duas vezes. Gritei até
não ter mais força para gritar. Eles me deixaram lá para morrer. Mas não morri.
“Depois disso, fiquei por muito tempo naquela aldeia e cada dia me sentia mais forte. Os
homens vinham a minha rede para ver se logo teria saúde para tentarem novamente. Então, antes
de melhorar completamente, fugi. É por isso que estava tão doente quando cheguei aqui.”
O marido dela estava sentindo o peso da sua tristeza quando ouviu a história. A tristeza
que sentia podia ser comparada a de uma morte. Ele fitou o fogo e seus olhos encheram de
lágrimas. Talvez fosse a fumaça do fogo que os fez lacrimejar. Ele nunca havia pensado em
como seria o estupro de uma aldeia para uma menina. Nunca havia se sentido triste assim em
relação ao quanto sua aldeia havia feito.
Então, quando o xamã soube, imediatamente entendeu por que eles tinham perdido todas as
suas crianças. “Eles estão sendo mortos pelos espíritos do homem velho, do qual você fugiu,” ele
disse a Shecoima. “Você deveria ter falado para nós antes.” O xamã tinha razão. O homem
estava matando os seus filhos para vingar-se.
Shecoima ficou muito triste. “Que sentido tem ter filhos,” ela perguntou ao seu marido. “Se
todos morrerão de qualquer maneira?”

61
Quando a menina deles estava pronta para andar, ficou muito doente e muito quente.
Estava na hora de Shecoima sofrer novamente.
Quando o bebê estava prestes a morrer, visitantes vieram da Aldeia Mel. Havia um naba
com eles, que pôs a mão no bebê e disse a ela que estava muito quente. Ele furou o braço dela
com uma pequena vara de metal, e naquela noite ela não ficou tão quente. No dia seguinte,
esmagou algumas pedrinhas brancas e deu para ela beber. Ele deixou algumas das pedras e
ensinou Shecoima a dá-las para o bebê.
Depois que os visitantes saíram da aldeia, Shecoima perguntou ao seu marido, “como é o
nome daquele naba que fala igual a nós?”
“Keleewa,” ele disse. Seus olhos encheram-se de lágrimas de alegria. Talvez, finalmente o
feitiço do seu primeiro marido tenha sido quebrado. Naquela noite, Cabeludo deitou na sua rede
imaginando se finalmente o filho do seu sobrinho sobreviveria. Na manhã seguinte, Shecoima
esmagou as pequenas pedras brancas e deu-as à sua filha. Logo ela melhorou. Shecoima teve
mais filhos. Sempre que as pessoas na aldeia ficavam muito doentes, e o xamã não podia ajudá-
las, Cabeludo enviava alguém para a Aldeia Mel e o naba vinha e lhes dava coisas para
melhorarem.

Um dia, o marido de Shecoima começou a gostar de uma mulher em outra aldeia. Ele a
queria como esposa. Shecoima estava brava e o importunava sempre a respeito disso. “Não se
preocupe,” ele declarava diariamente a ela. “Você sempre será a minha favorita.” Mas ela se
preocupava e toda a sua murmuração o deixou com raiva. Ele partiu e foi para a aldeia da nova
esposa para fazer os deveres de um genro, caçar e trazer comida para os pais da mulher, e outros
favores. Shecoima e seus filhos passaram fome esperando a volta dele.
Cada lua que se passava, ela ficava mais chateada. Ela não tinha pais para cuidar dela,
enquanto seu marido estava fora possuindo a sua nova esposa. Cabeludo deu-lhe um pouco de
comida, mas ele já tinha esposas demais. Finalmente, um dos meninos mais velhos da aldeia,
começou a trazer comida das caças dele para Shecoima. Depois de muitas luas, todos disseram
que o marido dela não voltaria mais, e ela gostava do menino, então, colocou a rede dela próxima
a sua.
Mas, o irmão do marido dela, outro sobrinho de Cabeludo, estava furioso. “Se meu irmão
não a quiser, você será minha,” ele disse a Shecoima.
“Você já tem uma esposa,” ela disse. “E todos na aldeia sabem como ela é ciumenta.”
Mas ele tinha ainda mais ciúmes de Shecoima. Na madrugada seguinte, desceu da sua
rede, pegou o seu facão, e fez, silenciosamente, a volta no shabono e foi para onde Shecoima
dormia. Com um golpe na corda da rede dela, derrubou-a no chão. Enquanto levantava, ainda
meio adormecida, golpeou-a.
“Se você não me quer, não será de ninguém,” ele disse.
Ela sentiu o facão cortar seu couro cabeludo e atingir o osso. Ele bateu nela muitas outras
vezes, tentando desfigurá-la. Ela correu, gritando pela selva.
O menino que gostava dela seguiu o trilho de sangue até o esconderijo onde ela estava.
“Você me ajudaria a chegar na Aldeia Mel?” ela implorou.
Caminharam pela selva durante três dias. Ela caminhava se escorando no barranco, até
chegar à Aldeia Mel. As orelhas de Shecoima estavam penduradas, e sua cabeça estava grande, e
as feridas inchadas. Keleewa, sua esposa e irmãs levaram-na para dentro da casa e furaram todas
as feridas com a pequena vara de metal. Ela sentiu algo esquisito, como se aquelas áreas de seu
corpo não fizessem parte dela. Então, ele cortou todas as partes fedidas das suas feridas,
costurou-as, e nem doeu. E até colocou suas orelhas de volta.
62
CAPÍTULO 7

ENCOBERTOS POR MENTIRAS

Lança jogou fora os seus espíritos. O povo da Aldeia de Cabeludo e da Mel agora são
grandes amigos. Deemeoma se adaptou na Aldeia Mel e finalmente está feliz. Sua irmã ainda está
em Ocamo. Continuo lutando com o povo de Tucano. Perdi outro filho nesta estação.

Quando Tucano visitou a aldeia de seus parentes, ficou sabendo que uma família de nabas
havia ido morar lá. Deixaram-no confuso e seus espíritos não gostaram deles, como os meus não
gostavam dos nabas da Aldeia Mel.
Às vezes, estes nabas faziam longas viagens para a Aldeia de Tucano. Eles tinham
habilidade para curar as pessoas, que nem Tucano tinha. Então, ele achava que valia a pena
tentar se dar bem com eles, mesmo que possuíssem o espírito que nossos espíritos odiavam.
Um dia, um xamã misterioso entrou na Aldeia de Tucano. Logo que Tucano o viu, sabia
que ele havia voltado dos mortos.
Podia ver os rastros dos espíritos no homem, rastros que conduziam ao shabono do peito
dele. Mas os rastros e o shabono estavam vazios, como se o homem tivesse morrido.
Tucano estava ansioso para falar com ele. Queria saber como era a vida no mundo dos
espíritos, do outro lado da morte. Mas o xamã misterioso disse, “não estou morto. Estou bem
vivo.”
“Mas posso ver dentro do seu peito,” Tucano disse, confuso. “Posso ver os rastros de todos
os seus espíritos, conduzindo ao seu shabono, e todos te deixaram. Você tem que estar morto.”
“Mas não estou morto,” ele respondeu. Tucano nunca tinha visto um xamã como este
antes.
“Então, por que seus espíritos o deixaram?” Tucano sabia o que todos sabiam, que os -
espíritos só deixam alguém quando ele morre. E, às vezes, matam a pessoa para poderem sair.
“Para onde eles foram?”
“Eu os joguei fora,” ele disse a Tucano. “Agora, sigo o inimigo deles, Yaí Pada, aquele que
fez os espíritos que seguimos.” Claro que Tucano sabia tudo a respeito de Yai Pada, Yai Wana
Naba Laywa, o espírito hostil.
“É isto o que quero dizer,” Tucano respondeu. “É por isto que você deve estar morto. Se
você os jogou fora, eles o mataram, e agora você voltou como um espírito. Conte-nos como é do
outro lado.”
“Não, não posso lhe contar, porque nunca estive do outro lado.” O estrangeiro tomou uma
cuia de bebida de banana e eles observavam para ver se ele conseguiria bebê-la. Desapareceu
para dentro da sua boca. Bem, ele certamente não é um espírito, pensaram. Ficaram ainda mais
confusos.
“Você é um naba que morreu e voltou como um Yanomami?” Tucano perguntou. Mas ele
sabia que não podia ser, pois nabas não falam direito e este estrangeiro falava exatamente como
um Yanomami.
“Não, não sou um naba. Sou um xamã que veio contar-lhes mais sobre o grande espírito,
aquele que sempre tememos - Yai Pada.”
63
“Mas aquele espírito nunca vem para nós Yanomami,” Tucano discutiu. “Ele é o espírito do
qual os nabas falam?"
“É isso mesmo.”
“Mas os nabas seguem o espírito hostil,” Tucano contestou. “Aquele que fica distante, e
que come as almas dos nossos bebês.”
“É isso mesmo,” o xamã estrangeiro disse, enquanto sentava-se na rede igual a todos os
índios. “Mas ele não é hostil como os nossos espíritos falam. Pensamos que ele rouba as almas
dos nossos bebês, mas nunca o vimos comê-las.”
Tucano ficou ainda mais confuso. Estalou sua língua, maravilhado. Encostando-se à sua
rede, pensou por um momento. “Você é um homem morto que voltou a viver. Tenho certeza.
Posso ver seu shabono vazio. Mas se está morto, como pode estar vivo agora.”
“Não. Sou um xamã Yanomami igual a você. Fazia as mesmas coisas que você. Tomava
ebene, fazia invasões e roubava mulheres.”
“Eu sei tudo isso,” Tucano explicou novamente. “É por isso que penso que você voltou dos
mortos, porque ninguém pode livrar-se dos espíritos. Eles não voltaram para feri-lo?”
“Alguns xamãs já tentaram fazê-los voltar para mim, mas nunca voltaram.”
“Como é ter o shabono tão vazio de espíritos?” Tucano perguntou.
“Posso dizer-lhe numa só palavra: calmo. Você nem imagina como é calmo! Não temos
guerreado mais, e olha que sempre fomos conhecidos por nossas guerras. Agora, temos feito
amizade até com os nossos inimigos. Podemos trabalhar nas roças sem medo, caçar e pescar. E
melhor que isso, não temos mais medo.
O estrangeiro ficou na Aldeia de Tucano alguns dias. Durante aquele tempo ele nunca
causou nenhuma dificuldade, não brigou com ninguém, nem tentou conseguir as mulheres dos
outros. Deram-lhe o nome de Nenhuma-Dificuldade.
Depois que Nenhuma-diflculdade e seus amigos partiram, Tucano sentiu-se mais confuso,
como jamais havia se sentido antes. Ele parecia ser um Yanomami, pensou Tucano. Falava como
um Yanomami. Agia como um Yanomami. Mas não mexeu com nenhuma das nossas mulheres.
Tucano ficou sabendo que seu pai havia feito negócios com o pai de Nenhuma-Dificuldade.
Ele realmente é um Yanomami, pensou Tucano. Então, por que não mexeu com as mulheres?
Certamente, era o Yanomami mais diferente que Tucano havia encontrado.
Naquela noite,enquanto Tucano estava deitado em sua rede, seus espíritos vieram muito
transtornados. “Não nos deixe, Pai,” eles disseram. “Por favor, não nos jogue fora.” Demorou
muito para Tucano acalmá-los.
Depois disso, ele, freqüentemente, pensava a respeito de Nenhuma-Dificuldade e as coisas
estranhas que havia dito. Mas toda vez que Tucano pensava nisto, seus espíritos ficavam
transtornados, e ele tinha que tranqüilizá-los.
Os meus espíritos faziam a mesma coisa quando ia para a Aldeia Mel. Uma vez, quando
subi no barranco da Aldeia Mel, encontrei Keleewa, o naba jovem. Quando olhei nos olhos dele, vi
seu espírito estremecer. E meus espíritos tremeram de medo dele. Foi uma guerra entre nossos
espíritos. Qualquer xamã teria observado. Os pêlos dos nossos pescoços ficaram arrepiados, como
duas onças encontrando-se na selva. Não disse nada a ele. Mas o clima entre nós estava pesado.
Meus espíritos fugiram. Depois, conversei com ele, e falava igual a um Yanomami. Não sabia que
os nabas podiam fazer isso.
O povo da Aldeia Mel sempre me tratou bem. E nesta visita não foi diferente. Quando via
algo que queria, eu dizia “me dê aquilo” e pedirei aos meus espíritos para protegê-lo no caminho.
Eles sabiam que eu podia curar as pessoas, e até mesmo matá-las. Mas, o que eu fazia de pior

64
com as pessoas era adoecê–las e matá-las. Então, sempre me davam o que queria”.
Agora, eles estavam enriquecendo por causa da convivência com os nabas. Tinha vontade
de visitá-los freqüentemente. E minhas esposas gostavam de visitar seu irmão, Sapato-Pé, e seus
outros parentes.
Mas, na visita seguinte que fizemos às pessoas da Aldeia Mel, não consegui tudo o que
pedia. “Porque vocês ficaram tão pão duros?” Perguntei-lhes.
“Não temos mais medo do seu poder,” Sapato-Pé disse. Fiquei em estado de choque. E que
choque! Ensinei a este pequeno falador tudo o que sabe sobre os espíritos. Como podia dizer isso
para mim?
“Você está louco! Você está louco!” Meu rosto se desfigurou. “Todos vocês estão loucos!
Não têm mais respeito pelas coisas que sempre fizemos? Não se lembram que pessoas
mesquinhas vão para a cova de fogo? E vocês não me dão mais nada!”
“Isto não é verdade, cunhado,” Sapato-Pé disse. “Nós lhe demos quase tudo o que
possuímos, e fizemos isso com medo de que usasse o seu poder contra nós, caso não fizéssemos.
Você sempre será bem-vindo. Mas agora que não tememos o seu poder, não lhe daremos as
nossas coisas, como das outras vezes. Estamos trabalhando muito para ter uma vida melhor. Não
é justo você levar tudo o que temos conseguido, sendo que sempre compartilhamos com você
nossa comida e casa.”
Fiquei furioso. Não podia acreditar. Juntei minhas esposas e filhos para ir embora. Todos,
da aldeia, vieram ao barranco para despedirem-se.
“Tudo bem!” falei a eles. “Por vocês terem sido tão mesquinhos comigo, enviarei o
espírito da Onça para chamar todas as onças da selva. Elas esperarão por vocês nos caminhos.
Todas as vezes que escutarem o canto de um peru numa árvore e irem atrás, acharão uma onça
sentada lá, fazendo o som. Esperará justo por vocês. E falarei também com o espírito do Tatu para
buscar todos os tatus da selva. Eles farão buracos debaixo das suas casas e elas cairão. E querem
saber quem será o primeiro? Pepe! A família dele será a primeira a ter a casa derrubada.”
Sabia que era ele quem havia causado toda a dificuldade. Ainda me lembro da primeira
visita que fiz à aldeia depois da sua chegada, quando meus espíritos tiveram medo dele e
imploraram para nunca mais voltar. “Vocês vão ver,” falei para eles. Então, minhas esposas e
filhos entraram no barco para partirmos.
Logo a aldeia ficou sem comida. Sabia que eles não podiam sair para caçar. Meu espírito da
Onça colocaria uma onça para esperar por qualquer um que tentasse. Espírito da Onça amava
fazer isso.
Aconteceu como havia imaginado, todos os homens da Aldeia Mel estavam com medo de
mim. Tinham mais medo das minhas maldições do que das guerras. Nas guerras, eles sabiam que
poderiam atirar. Mas quando meus espíritos os perseguia, o único modo de lutarem era com seus
espíritos. E os meus espíritos eram mais poderosos do que os deles. Sapato-Pé era muito bom
com os espíritos, e ele tinha apenas os que eu havia lhe dado, exceto aquele novo dos nabas.
Mas ele era só um espírito, e de todo jeito, não brigava.
Depois que um deles morrer, pensei, saberão que precisam dos seus espíritos para lutar
contra mim, então, novamente, reconhecerão o meu poder.
Tinham medo até de trabalhar nas roças. Logo as crianças enfraqueceram.
Finalmente Pepe foi falar com Homem-Rápido. Nós o chamamos assim porque ele é muito
rápido e ninguém caça como ele. Você acha o rastro de um tatu, segue-o até achar o buraco dele,
então acha as cinzas do fogo de Homem-Rápido. Ele já esteve lá, matou, defumou o tatu, e foi
embora. Então, quando caçávamos com Homem-Rápido fazíamos com que ele fosse para o outro
lado do rio.

65
“Por que você jogou fora os seus espíritos?” Pepe perguntou a Homem-Rápido. Até então,
quase todos, na Aldeia Mel haviam jogado seus espíritos fora como Sapato-Pé e Lança.
“Porque nunca me fizeram bem.”
“Você sabe que Yai Pada fez todos os outros espíritos também?” Pepe continuou. Homem-
Rápido concordou. “Então, porque este medo?”
“Você não tem idéia de como são poderosos os espíritos de Homem da Selva,” Homem-
Rápido respondeu. Ele tremia de medo.
“Você disse que seu novo espírito é mais forte do que o dele. Disse que até seus espíritos
sabiam disto. Então, por que não vai caçar? Seu novo espírito cuidará de você”. Foi uma boa
conversa, mas Homem-Rápido já tinha visto o meu poder. Ele sabia que ninguém estaria seguro
naqueles caminhos.”
“Por que este novo espírito não faz com que uma caça venha para cá, para que não
precisemos andar nos caminhos?”
“Você pensa que Yai Pada faria com que uma anta entrasse na aldeia e se deitasse na sua
frente?” Pepe perguntou-lhe.
“Não.”
“Então, pegue seu arco e fechas, saia e busque comida para o seu povo!”
Homem-Rápido não estava acostumado a ver as pessoas duvidando da sua coragem, e nunca
um naba. Não se esperava que alguém tivesse tanta coragem. Ele poderia, certamente, estar
encarando a morte. Mas ele nunca seria chamado de covarde. Então, ele foi.
A esposa de Homem-Rápido, Sofia, chorou quando o viu desaparecendo no caminho, em
direção a aldeia. Ela era a irmã de Sapato-Pé, minha cunhada. Era a primeira vez, em muitos dias
que um homem aventurava-se na selva para caçar. Por que seu marido teria que ser o primeiro a
ir? Por que ele escutou Pepe? Quem era este naba, um homem com um espírito diferente? Ela
tinha implorado a Homem-Rápido para que não fosse, mas não adiantara. Agora, ficara olhando o
caminho vazio por onde ele havia andado, e pensava no que aconteceria a ela se o perdesse.
Quem a tomaria como esposa e caçaria para ela e as crianças?
Sofia continuou chorando. Pensava no irmão que havia morrido. E chorava ainda mais,
enquanto pensava que seu marido teria o mesmo destino. Ela não sabia há quanto tempo havia
sentado na rede, dentro da cabana de folhas de palha, fitando o fogo e chorando, quando ouviu
uma agitação na aldeia. Deve ser a respeito de Homem-Rápido, pensou, e correu para receber a
terrível notícia.
Ele estava de volta. E havia matado uma anta. “Como poderia ter conseguido tão rápido?”
todos perguntaram-lhe. A sua angústia tornou-se prazer, como nunca havia sentido antes. De
repente, Homem-Rápido, era a pessoa mais importante na aldeia.”
“Ela estava logo ali no caminho, esperando por mim,” ele disse, como se fosse nada.
Todos os homens correram para o caminho, e logo todo o seu povo estava compartilhando e
cozinhando a carne fresca e celebrando, como se fosse uma festa. Mas, antes de comerem,
fizeram algo estranho. Falaram com o grande espírito deles. Sapato-Pé contou-lhes que Yai Pada
havia ajudado Homem-Rápido a achar a anta, no caminho.
“Os nabas dizem que quando alguém faz algo muito bom, isso os faz feliz,” Sapato-Pé
disse, “eles têm uma palavra que dizem àquela pessoa. A palavra faz com que a outra pessoa se
sinta feliz. Vocês se lembram que pensávamos que os nabas sempre dormiam um pouco, antes
de comer a comida deles? Bem, eles não estavam dormindo. Estavam dizendo aquela palavra ao
seu espírito. É uma palavra que não conhecemos. Ainda que não conheçamos esta palavra,
devemos contar ao nosso novo espírito como estamos alegres pela carne fresca que iremos comer.
Isto fará parte dos nossos novos costumes.”
66
Então, Sapato-Pé falou com seu novo espírito e todos, na aldeia, comeram. Até alimentaram
as crianças primeiro.

Sofia não se importava com a conversa sobre os espíritos, estava contente em ter Homem-
Rápido de volta e comida para as crianças.

Quando ouvi a história, fiquei furioso. “O que você fez?” gritei com espírito da Onça ao
descobrir o que havia acontecido. “Você me traiu!”
“Por favor, não fique bravo comigo, Pai”, ele implorou. Mas eu estava bravo. Isto nunca
tinha acontecido antes.
“Sou o xamã mais poderoso que conheço!” Gritei com todos os meus espíritos. Mas Onça
era o espírito mais poderoso. Se ele não podia matar as pessoas da Aldeia Mel, ninguém podia.
“O que havia dado errado?”
“Por favor não nos jogue fora, Pai. Não há nada que podemos fazer contra este espírito da
Aldeia Mel. Nós lhe falamos, quando estávamos lá, que não podíamos fazer nada contra este
espírito.” Agora todos estavam me implorando, do mesmo jeito que fizeram quando estávamos na
Aldeia Mel. “Por favor, não nos jogue fora, Pai, todos repetiam. Quase se tornou um canto. Mas
como poderia? Eram a minha vida. Especialmente Encantadora! Empurraram-na para frente do
grupo. Mas, eu estava com tanta raiva que não quis vê-la.
E ela sabia. “Por favor, não me odeie”, sussurrou em meu ouvido. Apenas o sussurro dela
me fazia sentir melhor. Sabia como me sentia bem com ela.
“Ainda que jogasse os outros fora, nunca a jogaria,” lhe falei. Então, abracei-a. Os outros
espíritos partiram e ela me acalmou durante um tempo. Ficamos juntos na rede durante o resto
do dia. Finalmente os outros espíritos voltaram.
Na manhã seguinte, ainda estava transtornado com o que havia acontecido na Aldeia Mel.
Meus espíritos não haviam feito nada, e imaginei o que meu povo pensaria de mim se soubessem.
Depois de várias luas, nós, xamãs, sabíamos que a Aldeia Mel era um lugar para ser
evitado. Aborrecia demais os nossos espíritos. Um xamã, cuja esposa freqüentemente visitava
seus familiares, nem saia da sua canoa. Sua família parava e visitava um pouco, mas ele sempre
ficava na canoa, olhando para o outro lado do rio. Durante todo o tempo, ele não olhava para a
aldeia e nem conversava com ninguém. Os nossos espíritos odiavam aquele lugar.

Tucano, meu xamã inimigo, também estava sendo incomodado, o tempo todo, por seus
espíritos. Sabiam o que ele estava pensando. Os espíritos vinham a ele, enquanto estava deitado,
à noite em sua rede e imploravam-lhe para que não os jogasse fora. Do mesmo jeito que meus
espíritos me imploravam. Mas Tucano não os escutava. Ele seguiu o conselho do estranho
visitante, Nenhuma-Dificuldade, e jogou fora os seus espíritos.
Um dia, Tucano foi visitar uma aldeia e conheceu um xamã que olhou para dentro do seu
peito e falou, “posso ver os caminhos dos seus espíritos indo a direção ao seu shabono, mas todos
deixaram você. Por que? Onde foram?” Tucano lembrou-se que havia usado as mesmas palavras
ao ver Nenhuma-Dificuldade, pela primeira vez. E o fez pensar que talvez, estivesse tornando-se
um pouco parecido com Nenhuma-Dificuldade. Este pensamento o fez sentir-se feliz.
Tucano, logo percebeu que havia esquecido daquelas recordações horríveis da matança de
sua esposa. Agora, começara a lembrar-se das coisas boas a respeito dela. Podia usar seu facão
sem vê-lo entrar no pescoço dela. E melhor de tudo, podia dormir novamente. Ele ficou
conhecido como Homem-Sorriso.
Durante muitas estações, Tucano não matou mais ninguém em minha aldeia. Então, parei
de matar as pessoas da aldeia dele. E ele parou de viajar ao mundo dos espíritos, porque não
67
tinha mais o espírito que o conduzia.

Um dia, Lábio de Tigre amarrou sua canoa no barranco da Aldeia Mel, para uma visita. Ele
precisava da ajuda de seus velhos amigos contra seus novos inimigos da Aldeia Ocamo.
“Não temos mais nenhum interesse por invasões,” Sapato-Pé lhe falou.
“0 que! Lábio de Tigre disse surpreso.” Meus espíritos me disseram que precisava de
vingança. E eu preciso.”
“Não temos mais aqueles espíritos,” Sapato-Pé respondeu.
“O que!” Lábio de Tigre disse. “Vocês se tornaram covardes!”
Quando Lábio de Tigre deixou a Aldeia Mel, voltou para o rio Ocamo, parando na Aldeia
Boca. Ele mal podia esperar para ouvir a risada deles, quando contasse sobre as histórias da
Aldeia Mel. A Aldeia Boca tinha sido, por muito tempo, inimiga da Aldeia de Lábio de Tigre. Lábio
de Tigre tinha certeza de que a Aldeia Boca juntar-se-ia a ele contra a Aldeia Mel, porque esta
aldeia havia se recusado a participar das invasões. E tinha razão.
“Não importa para eles se você consegue as suas pegadas,” Lábio de Tigre disse a Nublado
e aos outros da Aldeia Boca. Nublado participou da invasão na Aldeia Batata. “Eles não acreditam
mais no feitiço que fazemos com as pegadas.” Todos riram das palavras de Lábio de Tigre.
“Bem, vamos conseguir uma e ensinar-lhes uma lição.”
“Eles não se importam se assopramos o pó de alowali neles,” Lábio de Tigre disse. E riram
ainda mais.
“Estão todos loucos!”
“E a coisa mais engraçada é que dizem que não vão mais lutar nem matar,” Lábio de Tigre
disse e deram muitas gargalhadas.
“Vamos pegar as mulheres deles!” todos gritaram. E começaram a planejar isto.
Depois que o grupo de Lábio de Tigre partiu, Nublado levou alguns guerreiros até a Aldeia
Mel para roubar algumas mulheres. Mas eles levaram pauladas desta aldeia misteriosa, que não
lutava! Enquanto os guerreiros da Aldeia Boca fugiam dos da Aldeia Mel, eles posicionaram-se
para pegá-los numa emboscada. Mas ninguém os perseguia. Então, voltaram para a sua aldeia,
bloquearam todos os caminhos, e prepararam-se para a vingança. Naquela noite todos os
guerreiros estavam prontos com seus arcos, flechas e porretes. Ninguém conseguiu dormir. E
nada aconteceu.
“Eles são inteligentes,” Nublado disse. “Estão nos dando um tempo para relaxar. Mas não
descansaremos”. E não descansaram. Todas as noites bloqueavam os caminhos. Construíram
uma alana bem alta, que rodeava todo o shabono. Passaram-se muitos dias, mas sabiam que
precisavam ser fortes. Ficavam sempre juntos nas caçadas, e enquanto trabalhavam nas roças, as
mulheres vigiavam a selva para ver se havia alguma coisa suspeita. Durante as noites, um
guerreiro ficava vigiando. Mesmo tendo um guerreiro vigiando, as pessoas da aldeia dormiam
pouco. Mas, o povo da Aldeia Mel nunca veio.
Eles têm que invadir a nossa aldeia, pensou Nublado, têm que invadir. Nenhuma aldeia,
que tenha um pouco de orgulho, não deixaria de vingar um ataque.
Finalmente, o povo da Aldeia Boca não pôde mais suportar o medo. “Vamos atacá-los
novamente,” disse Nublado. “É melhor do que esperar pelo ataque deles.”
Novamente, os guerreiros da Aldeia Mel os afastaram com porretes e a Aldeia Boca vivia
com medo constante de um ataque de vingança. Mas nunca foram atacados.

68
Nublado, diariamente, trabalhava com seus espíritos para jogar um feitiço na aldeia que
havia ganhado deles. Nada funcionava.
Enquanto isso, na Aldeia Mel, as pessoas preocupavam-se em conversar com Yai Pada, o
novo espírito deles. Queriam que ele lhes ajudasse a lutar contra seus inimigos. Num dia, de
madrugada, Lança saiu da sua rede. Não conseguia dormir. Havia falado com Yai Pada, a noite
inteira, porque estava com muito medo dos guerreiros da Aldeia Boca. Enquanto caminhava pela
grama molhada, vira que a Aldeia Mel estava rodeada de pessoas, talvez guerreiros; ele não tinha
certeza. Mas havia tantos deles, pessoas grandes e bonitas, usando camisas brancas e brilhantes
que cobriam seus pés. Lança sabia que Yai Pada havia lhes enviado para proteger a Aldeia Mel
dos ataques. Mas depois que o sol levantara, haviam sumido. E ninguém, na aldeia, os tinha visto.
Perguntou a Pepe se Yai Pada tinha pessoas assim. Pepe disse, “Nunca os vi, mas seu livro diz
que tem, e que podem nos proteger.”
Um dia, Lábio de Tigre veio com todos os seus guerreiros do Ocamo para o shabono, na
Aldeia Boca. Suas cabeças estavam cobertas com sangue seco. Nublado sabia que haviam estado
na Aldeia Mel. “Você pegou alguma coisa deles”, perguntou a Lábio de Tigre.
Lábio de Tigre estalou sua língua e meneou a cabeça. “Nada. Perseguiram-nos até o rio. E
agora precisamos voltar para a nossa aldeia e nos preparar para a vingança deles.”
“Freqüentemente os temos atacado,” Nublado disse, “mas nunca vêm para se vingar. São
covardes. Mas sempre nos vencem. E os meus feitiços não funcionam contra eles.”
“É o naba que vive com eles,” Lábio de Tigre disse para Nublado. “Ele é um xamã. Tem
apenas um espírito, o grande, aquele inimigo. É por isso que nossos espíritos tremem todas as
vezes que vamos para a Aldeia Mel. E nada funciona contra esta aldeia por causa daquele
espírito.”
Durante muitas estações, todos os xamãs ficaram sabendo que Pepe também era um xamã
e que tinha o poderoso espírito inimigo. Todos experimentamos jogar feitiços contra a aldeia dele.
Mas nada funcionava!
Um dia, um guerreiro da Aldeia Boca, contou para algumas pessoas da Aldeia Mel, que
iriam procurar uma pegada deles para levá-la a Nublado. Uma vez que conseguissem a pegada,
poderiam ter certeza de que os espíritos os matariam. Então, uma das pessoas da Aldeia Mel
pisou na terra fofa e disse, “Pronto, leve.” Mas, os espíritos de Nublado não conseguiram ferir
ninguém com ela.
Nublado decidiu levar sua esposa e filhos para a Aldeia Mel, para uma visita. Por a esposa
dele ser irmã de Sapato-Pé, as pessoas, na aldeia, os receberam bem e tiveram uma visita
agradável. Ele ficou com Lança, seu velho amigo xamã. Foi estranho ser tão bem acolhido por
uma aldeia que havia invadido. Ele voltara muitas vezes para visitá-los. E, às vezes, para invadi-
la. Mas ele sempre apanhava quando invadia.
Durante suas visitas, deitava na rede da casa de Lança. “Não conseguimos entender as
pessoas da sua aldeia,” dizia para Lança. “Vocês são covardes? Vocês deixaram de ser
Yanomami.”
“Não somos covardes" Lança disse "Ainda somos Yanomami e tentamos ser valentes. Não
vamos deixar que levem as nossas mulheres. A única diferença é que escolhemos não seguir mais
os nossos velhos espíritos. Aprendemos que esses espíritos maravilhosos, que antigamente nos
enviavam para aquelas invasões, como a matança na aldeia Batata, nos enganaram. Os seus
espíritos tremem de medo quando vocês vem aqui, não é?”
“TK! Certamente!” Nublado disse maravilhado. “Como você sabe disso?”
“Porque faziam isto conosco antes de os jogarmos fora.
“Eles fazem isso, porque odeiam seu novo espírito,” Nublado disse, “e seu novo espírito
odeia os nossos ... e nós.”
69
“É exatamente nisso que temos nos enganado,” Lança respondeu, antes que Nublado
pudesse terminar. “É verdade que Ele odeia os seus espíritos e eles O odeiam. Mas aqui há uma
grande verdade, e você pode acreditar nisto, pois vem de um xamã experiente, e conheço cada
um de seus espíritos, porque também os possuía”. Lança sentou-se na rede, para explicar
cuidadosamente cada palavra. “Nossos espíritos nos odeiam, mas Yai Pada nos ama!”
Nublado não conseguia entender. “Tem certeza?”
Lança riu. “É confuso, não é? Porque os nossos espíritos têm nos dito, durante todo esse
tempo, que Yai Pada é hostil. E o que poderíamos fazer, senão acreditar? Nós, Yanomami, nos
achamos entre dois poderes um bom e um mau. Cada um nos fala que o outro nos odeia. Cada
um nos diz que o outro está mentindo. A decisão fica com a sabedoria do Yanomami.”
“Todos, nesta aldeia, seguem o grande espírito?” Nublado desejou saber.
“Não. Mas todos os xamãs O seguem. Estávamos encobertos por mentiras. Mas agora,
não.”
Alguém tem seguido o grande espírito, e depois voltado para espírito da Onça ou espírito
Curador?” Lança deu uma pausa. Não sabia como dizer com simplicidade. “Dê uma olhada ao
redor de nossa aldeia. Você acha que alguém aqui voltaria?”
Lança deitou em sua rede e observou uma barata andando no telhado de folhas de
palmeira. Nublado sabia que ele estava se lembrando dos tempos antigos. Eles tinham ido para à
Aldeia Batata juntos, para aquela grande matança. Quando Lança não o deixara levar algumas das
mulheres da invasão, tornaram-se inimigos. Ele e Lança ficaram conhecidos pelas muitas
matanças. Ninguém era mais feroz do que Lança. Mas a voz dele estava trêmula por causa da dor
e da tristeza que sentia, quando disse, “não há nada que você possa me dar que me faça voltar a
fazer isso.” Lança estalou sua língua. “Nada!”

70
CAPÍTULO 8

UMA PALAVRA MUITO AGRADÁVEL

Parei de lutar com as pessoas da Aldeia de Tucano. Não tenho mais os meus velhos amigos
xamãs, da Aldeia Mel, mas eles ainda me recebem bem. Deemeoma está contente lá. Lábio de
Tigre e Boca, freqüentemente, invadem a aldeia, mas não querem a minha proteção. A Aldeia Mel
sempre os afasta mas nunca os perseguem. Lábio de Tigre e Boca estão aprendendo que seus
feitiços não funcionam contra o Yai Pada dos nabas. E tenho outra novidade. Nem sei
exatamente o que é. Talvez seja um naba. Tudo começou na cabeceira do Rio Ocamo, na Aldeia
de Shetary.

Alguns do nosso povo mudaram-se e construíram uma nova aldeia, que ficava alguns dias
de viagem pelo Rio Ocamo. Depois de um tempo, quase todos adoeceram e muitos deles
morreram. Ao redor do shabono havia fogos especiais para queimarem os corpos dos mortos. Os
poucos que não estavam doentes tiravam os ossos das cinzas e tentavam salvar o resto do povo.
As pessoas apenas ficavam nas redes e se esquentavam cada vez mais, até seus corpos tremerem
e morrerem.
Finalmente, o xamã descobriu através de seus espíritos, que era a fumaça dos fogos dos
mortos que estava espalhando a doença. “Vamos ter que começar a pendurá-los na selva”, falou a
todos.
Havia um menino doente, que tinha acabado de se tornar um homem. Estava pronto para
ser o caçador da família. Então, seus pais fizeram tudo que podiam para que melhorasse.
Diariamente, cuidavam dele, caçando, trazendo água, e pedindo a ajuda dos espíritos.
Preocupavam-se apenas com ele. Então, Shetary, seu pai, sofreu muito quando o corpo do menino
começou a tremer e morreu. O xamã falou que esta doença era tão ruim que os espíritos não
podiam tirá-la.
Por causa da doença, Shetary não pôde queimar o corpo dele. Ao invés, tomou tiras de
madeira e teceu-as com cipós para formar um grande tapete de madeira, uma heeheeka.
Shetary pôs o corpo do seu filho no meio da heeheeka, cobriu-o e amarrou-o. Ele lamentou com
tristeza. Suas lágrimas caíam sobre os cipós, enquanto dava os nós para ter certeza de que nada
pudesse entrar na heeheeka para aborrecer seu filho. Suas lamentações aumentaram quando o
carregou para frente do shabono e pendurou-o na selva. A heeheeka o protegeria dos animais,
enquanto sua carne caía dos ossos. Enquanto andava pelo caminho, na selva, Shetary pensava
sobre a pessoa que teria que vir depois para fazer o terrível trabalho: tirar o resto da carne dos
ossos do seu filho, limpá-los e moê-los. O pensamento o fez lamentar ainda mais.
Numa distância segura pelo trilho do shabono, alguns amigos que também estavam
lamentando, ajudaram Shetary a fincar duas varas no chão. Onde elas cruzaram, amarraram com
cipós. Três passos adiante, amarraram mais duas varas. Em cima, entre as quatro varas,
amarraram uma travessa. Enquanto Shetary lamentava pelo filho, ergueram a heeheeka e
amarraram-na na travessa .
“Teremos que fazer isto com o restante de nossos mortos, até que a doença nos deixe,” o
xamã disse. E havia muitos.
Depois de muitos dias, um índio veio correndo até o shabono gritando, “Shetary! Shetary!
Alguém destruiu sua heeheeka!” Todos no shabono ficaram tão chocados, que não conseguiam
falar. Shetary correu pelo trilho, na direção do corpo de seu filho. Apenas alguns dias antes, ele
havia visto a heeheeka onde a tinha deixado. Seu povo o seguiu, falando excitadamente, mas
tentando ficar quietos para respeitar a aflição dele.

71
Quando Shetary se aproximou, viu que a heeheeka havia sido derrubada no chão e estava
aberta. O que viu, mudou a sua vida. Havia larvas cobrindo os ombros e o peito do seu filho. Mas,
para cima dos ombros, não havia nada. Shetary sentiu seu peito apertar. Ele caiu no chão e
começou a lamentar e gemer de tristeza.
“Meu filho! Meu filho!” ele gritava. “Quem poderia ter feito isto?”
Os homens atrás dele sentiram o terror nos seus gritos. Quando se aproximaram para ver,
não podiam acreditar no que viam. “Quem faria uma coisa tão ruim?” todos se perguntaram.
“Nosso pior inimigo nunca faria isto,” um homem disse.
Outro disse, “Nenhum índio Yanomami, em qualquer lugar, faria tal coisa.”
Acharam um pano amarelo nos arbustos. Havia nabas, de longe, que vinham na selva
esguichar uma névoa por toda parte, para matar pernilongos. Os nabas dos pernilongos sempre se
vestiam e tinham pertences amarelos. Decidiram que a culpa era desses nabas dos pernilongos.
Depois, acharam duas coisas de borracha que parecia poder cobrir uma mão. Estavam
confusos. Todos da aldeia entraram em pânico. Shetary correu ao shabono e pegou seu arco.
“Tem que ser os nabas!” Gritou. “Nenhum índio faria isto. Eu os matarei!”
Com um pequeno grupo de guerreiros, ele correu para a sua canoa e remou rio abaixo.
Pararam na primeira aldeia e perguntaram se as pessoas haviam visto um naba. “Sim, vimos um,”
eles responderam. “Ele está com alguns índios. Passaram por aqui numa voadeira. E não
pararam para dizer nenhuma palavra.”
Shetary e seus amigos voltaram para dentro da canoa. “Quando o acharmos, o
mataremos!” ele gritou enquanto partiam. Remaram até o fim do rio, mas nunca acharam o naba.
“Matarei qualquer naba que encontrar,” ele disse na volta para casa. Pararam em outras
aldeias e Shetary avisou a todos que mataria o primeiro naba que visse.
O governo da Venezuela ficou sabendo sobre o que Shetary havia falado. Depois disso, não
permitiu que os homens dos pernilongos fossem àquela parte da selva.

Sapato-Pé subiu o Rio Orinoco para visitar alguns de nossos parentes que nunca mais tinha
visto. Não sabia se eles ainda viviam. Queria saber se podia achá-los e falar-lhes do novo espírito
que havia encontrado.
Ele foi para muitas aldeias, mas não achou ninguém que conhecesse alguns de seus
parentes. Finalmente, distante do rio Orinoco, no lugar onde se junta com o rio Mavaca, entrou
numa aldeia e conheceu um homem chamado Peru. Depois de conversarem a manhã toda,
Sapato-Pé pensou que talvez tivessem os mesmos avós ou estivessem na mesma família. Mas isto,
sempre é difícil de saber, porque nós Yanomami nunca pronunciamos o nome de uma pessoa
morta.
Depois de muita conversa, Sapato-Pé disse, “tenho certeza de que você é meu parente,
mas preciso saber. Posso sussurrar, no seu ouvido, o nome do meu avô?”
Peru queria saber também. “E sussurrarei em seu ouvido.”
Com muito cuidado, Sapato-Pé encostou seus lábios na orelha de Peru. Sussurrou tão
baixinho que nem mesmo escutou sua voz. Então, Peru fez o mesmo com Sapato-Pé.
Era verdade. Eles ficaram tão contentes em saber que eram parentes. Sapato-Pé ficou
muitos dias com eles e voltou outras vezes. Falou-lhe sobre os nabas e o novo espírito que havia
conhecido através deles. Peru havia visto muitos nabas, mas nenhum havia morado em sua
aldeia.
“Temos tido uma longa guerra com o povo de Siapa,” Peru contou a Sapato-Pé. “Se
pudéssemos conseguir algumas das armas dos nabas, poderíamos matá-los.”
72
“Não vai adiantar matá-los,” Sapato-Pé respondeu. “Os filhos deles voltarão para buscar
vocês, e depois os filhos dos filhos. A única maneira de terminar com a matança é parar de
matar. Você precisa de um espírito de paz.”
Peru nunca havia ouvido falar a respeito de um espírito de paz. “O que adianta
continuarmos matando?” ele perguntou.
“Se vocês pararem de matá-los, eles deixarão de matar vocês.”
Peru pensou um pouco. Nunca tinha ouvido tal coisa. Era muito simples. “Se vocês
continuarem matando,” Sapato-Pé continuou falando, “certamente continuarão matando vocês.”
“Será que isto é verdade?” Peru perguntou a Sapato-Pé. “Parece ser bom demais.”
“É verdade. As crianças que estão nascendo em nossa aldeia agora nunca souberam como
é matar as pessoas. E não existe ninguém tentando nos matar.”
“O que precisamos é de um naba para morar conosco e nos ensinar a seguir o mesmo
caminho que vocês seguem na Aldeia Mel,” Peru falou.
“Quanto tempo faz que vocês estão guerreando?”
“Todo tempo que alguém possa lembrar. Meu pai estava guerreando quando eu era um
bebê. Muitas de nossas mulheres foram roubadas dos outros. E os outros tem algumas das
nossas. Mas certamente temos matado mais deles do que eles a nós.”

Os inimigos dos quais Peru falava moravam no rio Siapa. Eu os havia visto muitas vezes,
quando viajava pelo mundo dos espíritos. Conhecia aquele povo e sabia que estavam cansados
das guerras com a Aldeia de Peru. Eles também tinham ouvido falar dos nabas que estavam
entrando na selva. Mas teriam que passar pela Aldeia de Peru para poder achar os nabas. E isso
seria perigoso demais.
Um dia, estes inimigos de Siapa, receberam uma visita do homem Yanomami mais
estranho que já haviam visto. Ele entrou na aldeia pelo caminho do rio Orinoco, a princípio,
deveria ser um inimigo. Mas não tinha nenhuma arma.
“Ele se parece com um naba,” Peixe-Brejo disse quando o viu.
“Não. Não é um naba,” o xamã deles respondeu. “Posso ver que é um xamã. É um
Yanomami.”
Todos, na aldeia, discutiam sobre quem ele era. Deveria ser um inimigo, mas não
carregava nenhuma arma e não estava interessado em bater no peito de alguém.
“É por isso que deve ser um naba”, Peixe-Brejo disse. Mas a coisa mais misteriosa sobre
ele é que nunca agarrou as mulheres. Nunca haviam tido um visitante que não agarrasse as
mulheres deles.
“Ele é um xamã,” o xamã deles falou depois que partiu, “mas com certeza não tem o
espírito de Howashi.” Todos os homens gostaram dele, porque nunca tentou fazer nada com suas
esposas e filhas.
“Como é que uma pessoa fica assim?” um homem perguntou. “Não pode acontecer.”
“É este tipo de homem que gostaríamos de ter como genro,” outro homem disse. O povo
daquela aldeia deu para o visitante misterioso o nome de Não-Agarra-Mulheres.
O xamã deles disse que o visitante deveria ser um Yanomami que teria gastado muito
tempo com os nabas fora da selva e que havia conseguido os espíritos deles. “Devemos nos
mudar para mais perto dos nabas,” ele disse.
Até os meninos pequenos como Homem-Baixo e Lábio-Cabeludo souberam do visitante
estranho. E por muitas estações ouviram seus pais falarem dele. “Não-Agarra-Mulheres era um
73
Yanomami como nenhum outro que conhecemos,” sempre diziam. “Um dia, fugiremos para o
mundo dos nabas e descobriremos como fez isto.”
Depois de muitas estações de guerras com nossos parentes da Aldeia de Peru em Mavaca,
o povo de Siapa finalmente decidiu que deveriam se mudar para a aldeia deles. “Não podemos
continuar com esta guerra,” o xamã deles falou. “Precisamos nos aproximar dos nabas. E
precisamos descobrir o que fez com que este visitante ficasse tão diferente de nós.”
Ainda que implicasse numa longa mudança e que levasse muitas luas e causasse muito
sofrimento, todos, na aldeia, concordaram que teriam que fazer isto. Viajaram pelo rio Siapa
durante muitas luas, quase uma estação inteira. Foi o tempo mais doloroso da vida de Homem-
Baixo. Diariamente, ele e seu amigo Lábio-Cabeludo choravam, porque não tinham o bastante
para comer. Finalmente chegaram a um lugar aberto onde não havia selva, e tinha apenas um
capim alto. Sempre que as aldeias viajam, eles mantinham suas crianças por perto, com medo de
seus inimigos, dos espíritos e dos fantasmas dos mortos. Mas ainda com todo o cuidado, um dia
duas crianças desapareceram.
Todos, da aldeia, procuraram em vários lugares, mas não as acharam. A busca era fácil,
pois não havia selva fechada. Mas sabiam que onças caçavam por lá e que seus meninos podiam
ter sido comidos.
Então, os espíritos do xamã lhe contaram o que tinha acontecido. Eles haviam sido
roubados pelos espíritos hostis.
Quando o povo ouviu isto, pararam a viagem e procuraram durante dias as crianças.
Todos os dias, o xamã gastava muito tempo com seus espíritos, tentando conseguir algumas
pistas para procurá-las.
No primeiro dia acharam novas pegadas das duas crianças. As pegadas indicavam que as
crianças tinham sido levadas pelos espíritos. As pessoas saíram da capoeira e entraram na selva
para bloquear os caminhos e conseguirem melhor proteção dos espíritos. Durante muitos dias,
eles procuraram e todas as noites escutavam as mães lamentando nas redes delas.
Então, numa tardezinha, um pouco antes de escurecer, acharam novas pegadas. Todos os
homens correram por aquele caminho, esconderam-se e esperaram pelas crianças. O xamã disse
que esta poderia ser a última oportunidade. Por terem estado com os espíritos, as crianças não
iriam querer voltar.
Enquanto escondiam-se no caminho, muitos estavam consumidos pelo medo. Finalmente,
ouviram algumas vozes, vindas do trilho, que conversavam. Mas eles estavam falando uma língua
que os homens não conseguiam entender. Já estava muito escuro e não podiam ver nada. Quando
as vozes chegaram no lugar onde os homens estavam escondidos, todos pularam e agarraram em
qualquer coisa que pudessem ver na escuridão. Na confusão, pegaram um ao outro, mas,
também pegaram as crianças desaparecidas.
Os meninos chutaram e gritaram, enquanto tentavam escapar. O xamã estava certo. Já
haviam se acostumado a viver com os espíritos. De volta ao acampamento, na luz dos fogos,
viram que as crianças tinham sido pintadas com uma pintura que nunca haviam visto. Era uma
tinta usada pelos espíritos. E estavam enfeitadas com flores da selva. Elas estavam horrivelmente
magras, e aproximaram-se do fogo. Ficaram lá sentadas, chorando e pedindo que os pais viessem
buscá-las. Mas, seus pais estavam bem na sua frente.
“Estão chamando pelos pais espirituais,” o xamã falou. “Os espíritos as roubaram para
serem seus próprios filhos. Se não as socorrêssemos nunca as veríamos novamente,”
Cedo, na manhã seguinte, todos empacotaram tudo e saíram daquele lugar horrível. Os
homens gastaram muito tempo para esconder o caminho cuidadosamente. Colocaram pistas
especiais, ao longo do caminho, fazendo parecer com que tivéssemos ido em outra direção. Isto
confundiria os espíritos se tentasse nos seguir para pegar as crianças.

74
Durante muito tempo os meninos tentaram escapar. As pessoas se revezavam, vigiando-os
dia e noite. Chamavam o tempo todo pelos pais. Mas, depois de vários dias comendo bem,
ficaram fortes e reconheceram seus pais verdadeiros. Então, não se lembravam do tempo que
viveram com os espíritos. Apenas se lembravam que haviam sido chamadas para ir para a selva,
pela família deles. Haviam seguido o chamado, mas ao chegarem lá, não acharam ninguém.
Haviam sido atraídos pelos espíritos enganadores.
Depois disto, todas as crianças começaram a se comportar. Mas este acontecimento
dividiu a aldeia. A mudança ficou mais difícil e muitos queriam voltar. “Estamos bem longe dos
nossos inimigos agora,” eles disseram. “Devemos parar e morar aqui.”
“Meus espíritos estão bravos comigo porque estamos distantes,” um dos xamãs disse.
“Eles me falaram que deveríamos morar aqui.”
“É verdade. Os meus espíritos também estão bravos,” outro xamã disse. “Mas não me
importo. Temos que chegar até os nabas e achar aquele Yanomami estranho que há muito tempo
nos visitaram. Acho que meus espíritos estão com ciúmes dos espíritos que poderia achar lá.”
“Bem, não quero aborrecer ainda mais os meus espíritos”, o primeiro xamã falou. “Eles não
irão mais adiante.”
Então, a aldeia se dividiu. Metade deles, conduzida por um xamã, se estabeleceu nas
beiras do Rio de Siapa. A outra metade, foi conduzida por outro xamã, e continuaram na direção
do Rio Casiquiare. Todos ficaram bravos por a aldeia não poder ficar junta, mas os dois xamãs
recusaram-se a entenderem-se.
Até chegarem ao Rio Casiquiare, duas estações haviam se passado e muitas pessoas
tinham morrido. Ficaram aflitos quando souberam que ainda estavam muito longe dos nabas.
Estabeleceram-se nas beiras do Casiquiare e chamaram o lugar de Beiras de Lugar Nenhum.
Finalmente, o xamã enviou alguns homens para subirem o Casiquaire até o Orinoco, para
ver se eles podiam achar o lugar chamado Tama Tama. Depois de um tempo, retornaram com
canoas que tinham motores barulhentos. Havia um homem branco com eles chamado Dye. O
naba pôs todos da aldeia nas suas canoas e mudaram-se para Tama Tama. Ele achou uma aldeia
deserta por perto, e comprou-a de uma outra tribo. Estabeleceram-se lá e fizeram novas roças.
Quando Dye começou a ensiná-los sobre um novo espírito, o xamã da aldeia sabia que
seus pensamentos sobre os espíritos estavam certos. Eles não gostaram do espírito de Dye. “È
por isso que meus espíritos queriam que voltássemos,” o xamã disse. “Este novo espírito deve ser
o mesmo daquele estrangeiro que nos visitou há muito tempo.”
Todos, na aldeia, estavam muito contentes por terem achado aquilo que procuravam.
Gostaram de morar perto de Dye em Tama Tama. Estavam livres da guerra. Ficaram conhecidos
como Sahael.
Mas um dia, Dye saiu e nunca mais voltou e seus amigos em Tama Tama nunca lhes
visitaram e nem ensinaram nada. Então, todos, da aldeia, começaram a procurar nabas que
viajavam para cima e para baixo no Rio Orinoco. Conheceram um comerciante com o maior barco
que já haviam visto. Ele concordou em dar para a aldeia um motor de popa, se limpassem a selva
para ele e plantassem uma roça grande. Jamais estiveram tão contentes.
Limparam uma roça tão grande que ocupava duas curvas e meia do Rio Orinoco. Plantaram
melancia e outras plantas, e o homem voltou muitas e muitas vezes para encher a sua canoa
grande de bananas compridas, que vendia rio abaixo na enorme aldeia dos nabas.
Quando a colheita terminou, o comerciante deu-lhes algumas das bananas e prometeu que
voltaria com o motor, depois do plantio da próxima estação. Todos trabalharam durante toda a
estação para ele, e novamente ele deu-lhes algumas das bananas e prometeu que o motor viria
depois da próxima colheita. Isto aconteceu durante cinco estações.

75
Chegou a ser uma coisa ruim para aquela aldeia, mas os nabas que vieram depois dele
eram ainda piores. Muitos pensavam que todas as mulheres Yanomami os desejavam
ardentemente. Entravam na aldeia, puxavam seus pênis para fora e os balançavam para as
mulheres. Numa aldeia, um naba se aproximou de uma mulher e a golpeou com o pênis dele. Sua
amiga falou, “Ooh, por pouco penetrou, né?” Ele não sabia falar Yanomami, por isso não sabia
que elas estavam rindo dele.
“Estes bobos colocam para fora seus pênis e pensam que os desejamos!” Elas riam
enquanto o observavam balançando a sua coisa.
Um índio disse, “vou deixar pronto o meu facão para o primeiro naba que acertar o seu
pênis em minha esposa; vou golpear aquela coisa feia e cortá-la!”
Lábio-Cabeludo tornou-se o professor da escola dos nabas. Mas ele se chateou quando foi
dito que tinha que usar a tanga esquisita e que as crianças tinham que ir nuas. “Queremos ter
vidas melhores”, ele falou ao padre da escola. Então, desistiu e começou a treinar para se tornar
um xamã.
O amigo da infância de Lábio-Cabeludo, Homem-Baixo, não tinha mais parentes, então saiu
da sua aldeia e viajou para muitas outras aldeias da terra dos Yanomami. Depois de muitas
estações, voltou a Sahael. Lábio-Cabeludo ficou contente em vê-lo novamente. Lembraram do
sofrimento das suas infâncias e da longa viagem de Siapa.
“Onde você esteve durante tantas estações?” Lábio-Cabeludo lhe perguntou.
“Estive em muitos lugares,” Homem-Baixo lhe falou. “Mas agora moro na Aldeia Mel e
tenho uma esposa lá. É um lugar maravilhoso. Lembra-se daquele visitante misterioso, Não-
Agarra-Mulheres?” Claro que Lábio-Cabeludo se lembrava. Ele foi a razão da grande mudança.
“Não-Agarra-Mulheres é o líder da Aldeia Mel. Nós o chamamos de Sapato-Pé, mas às vezes de
Ele-Tem-Uma-Boca.”
“Tk!” Lábio-Cabeludo estalou sua língua. “Não-Agarra-Mulheres,” ele se lembrou. “Posso
falar com ele? Continua sendo tão misterioso quanto disseram que era? Ele nunca agarra as
mulheres?”
“Venha comigo a Aldeia Mel e você poderá falar com ele,” Homem-Baixo disse. “Muitas
pessoas na Aldeia Mel não agarram as mulheres. E sim, ele ainda é misterioso. Num lugar que
Sapato-Pé visitou, o chamaram de Nenhuma-Dificuldade. Toda a aldeia é misteriosa. Lá não
temos nenhuma guerra, e há alguns nabas morando conosco.” Lábio-Cabeludo não acreditava
que um naba, de fato, moraria numa aldeia com os Yanomami. “Eu sei que você não acredita
nisto, mas é verdade. Até entramos nas suas casas e conversamos com eles.”
“Eles devem ser nabas bobos, por não saberem que deveriam nos manter fora das suas
casas,” Lábio-Cabeludo disse sarcasticamente. “Qualquer naba saberia disso.”
Lábio-Cabeludo foi com seu velho amigo para a Aldeia Mel. Enquanto caminhavam pela
aldeia, Lábio-Cabeludo viu tantas mudanças que não podia acreditar que eram Yanomami. “Isto é
o que nós sempre quisemos para a nossa aldeia,” ele disse a Homem-Baixo. “Mas ninguém quer
que tenhamos isto.”
“Eu sei,” Homem-Baixo respondeu. “Aqueles nabas que vieram para Sahael querem que
continuemos na nossa miséria. Eles ganham tanto dinheiro fotografando nossas mulheres nuas e
escrevendo histórias sobre nós. Você conhece uma aldeia, em algum lugar, que deseja esse tipo
de naba para viver com eles?”
“Gostaríamos de ter um naba, como este, para morar conosco,” Lábio-Cabeludo disse.
“Claro. Qualquer aldeia gostaria.”

76
Minha cunhada estava prestes a ter um bebê, mas ele não se posicionava com a cabeça
para baixo, para sair direito. Fiz tudo o que normalmente faço para que espírito Curativo ajudasse
o bebê a sair, mas não adiantou nada. Fiz mais do que o normal, porque ela era a esposa de meu
irmão. Ele era um xamã e ela também. Quase não existia mulheres xamãs. Nós três lutamos
com os nossos espíritos, mas este era um caso difícil. Quando a bolsa rompeu, a levamos para a
Aldeia Mel, em busca de ajuda.
Nossos parentes de lá vieram correndo, quando a viram. Começaram, como faziam
sempre, a lamentar, a falar sobre todas as outras mulheres que haviam sofrido da mesma
maneira, quão depressa haviam morrido; como era lamentar e quão triste todos ficariam se algo
acontecesse a ela.
Naquela época, Pepe, o naba que temo, havia se mudado com sua família para uma outra
aldeia, mas os outros nabas estavam lá e tentaram livrá-la de todos os seus visitantes.
Finalmente, levaram-na para dentro de uma das suas casas para que pudesse relaxar.
Mas, todos os nossos parentes a seguiram e continuaram angustiados por causa da sua
doença e por ser horrível a sensação de estarem prestes a lamentar por ela. Pensaram se os
nabas poderiam apenas salvar o bebê. Os nabas imploraram que saíssem. Eles pensam que o
silêncio faz as pessoas melhorarem.
Minha sobrinha, Juanita, insistiu em não sair. Ela é tão íntima de minha cunhada que a
chamava de mãe. Juanita é casada com o filho de Lança, Homem de Frutas. Quando, finalmente,
os nabas conseguiram retirar todos da casa, Juanita sentou-se na grama, debaixo da janela da
mãe, chorando ruidosamente. Segurava em seus braços o bebê que amamentava.
Esta menina obedecerá somente quando for castigada, o naba pensou. Ele pegou uma
pequena vara e começou a bater nas pernas de Juanita, para que fosse para casa. Quando saltou
para escapar, derrubou o bebê.
Todos, na aldeia, se iraram. Alguns estavam na beira do rio quando Homem de Frutas
chegou em casa da roça. Todos tentavam lhe falar ao mesmo tempo, “O naba bateu em sua
esposa e ela derrubou o bebê.”
Homem de Frutas não precisou ouvir mais. Estava com o machado em sua mão, e era só
disso que precisava. Quando chegou na porta do naba, não se importou por ela estar trancada e
com o naba dentro. Ele a golpeou com seu machado. Então, cortou-a várias vezes. Em cada
golpe sua ira crescia.
Sapato-Pé e Lança correram na direção da casa do naba quando ouviram o barulho. “Está
tudo bem. Está tudo bem,” ambos disseram. “Ninguém se machucou muito.” Então a esposa do
naba veio da pequena cabana onde eles se aliviam. Ela viu a sua porta sendo derrubada.
“Homem de Frutas, não! Homem de Frutas, não!” Ela não percebia que estava em perigo.
Todos observavam para ver se ele faria aquilo que todos esperavam: golpear a esposa do naba
para vingar-se daquilo que havia feito com Juanita.
“Está tudo bem,” Sapato-Pé continuava dizendo. “O bebê não está ferido. Juanita não
está ferida. Você já destruiu a porta dele. Não ajudará bater na esposa dele com seu machado.”
Lança tentou atrapalhar seu filho para que não pudesse bater na mulher.
Mas Homem de Frutas sabia que ajudaria. Sentiria tão bem. Todo o seu corpo lhe falava o
quanto ele precisava golpeá-la na cabeça com o lado cego do machado. Ele a imaginava no chão
com sangue cobrindo a cabeça. Ensinaria a todos que não importa quem você é nem de onde
vem e nem quão clara é sua pele, ninguém mexe com a esposa de Homem de Frutas.
Por uma razão que não entendia, Homem de Frutas largou seu machado e voltou para a
sua rede. Eu não sou covarde, falou a si, fitando o teto de palha. Não foi apenas por falta de
coragem que não bati nela. Então por que? Certamente merecia. Nos velhos tempos teria
amassado a cabeça dela. Teria sido maravilhoso Por que este espírito diferente dos nabas quer
que mudemos tanto?
77
Mais tarde, naquela noite, o bebê nasceu. Alguns dias depois o naba veio para conversar
com Homem de Frutas. Disse que era uma coisa ruim o que tinha feito a Juanita; e que não tinha
o direito de bater nela, e que não desejava ter feito aquilo. Ele falou que tal coisa não
aconteceria novamente. Disse que não culpava Homem de Frutas por esmagar a sua porta;
mereceu isto; merecia até pior. Disse que estava muito contente por Homem de Frutas não ter
batido na esposa dele.
Homem de Frutas nunca tinha ouvido este tipo de conversa. Não sabia o que dizer. Ficou
com um sentimento estranho que nunca tinha sentido antes, uma sensação boa. Perdeu o desejo
de bater na esposa do naba com o seu machado. Então, o naba consertou a sua porta e nunca
mais falou com Homem de Frutas sobre o dano.
Até o líder dos nabas branco veio no avião para a Aldeia Mel falar com Homem de Frutas.
Ele disse, “Este naba que vive com você é novo aqui e não entende sua conversa, nem os seus
modos ainda. Por isso foi fácil para ele fazer algo realmente estúpido. Foi uma coisa ruim o que
ele fez e reconheceu isto. E ele se sente muito triste por isto e disse que não acontecerá
novamente”. Isto fez com que Homem de Frutas se sentisse muito importante. O líder dos nabas
se chamava Dye.
Então, Homem de Frutas disse a Dye, “eu não deveria ter sido tão rápido em me
aborrecer por ele ainda não nos conhecer.” Quando Dye partiu, Homem de Frutas o observou
atravessar a grama e subir pelo ar. Voltara para a casa dele. Estava surpreso porque esta
conversa havia feito a sua raiva ir embora. Até o fez sentir bem em relação ao naba que havia
batido na esposa dele.
Deitou na sua rede, olhou para as folhas das palmeiras e ficou pensando em todas as
coisas agradáveis que o naba havia dito. Até disseram que tinham uma palavra especial que
usavam e que resumia tudo o que haviam dito a Homem de Frutas. Disseram que quase nunca
usavam aquela palavra porque era muito difícil dizê-la.
Mas Homem de Frutas encarou o telhado de palmeiras e pensou, deve ser uma palavra
muito agradável.

78
CAPÍTULO 9

ABAIXANDO O SEU OLHO

Os problemas aumentaram com a chegada de mais nabas. A Aldeia Mel gosta muito do seu
naba. A Aldeia de Peru, em Mavaca, tem nabas por perto, mas Peru quer que um more com eles.
Shetary odeia todos os nabas. Diariamente, ele espera pela chance de matar um. De vez em
quando, alguém começa a falar sobre a cabeça perdida. Mas ninguém sabe de onde vem esta
conversa. A Aldeia de Shetary não é a única que sofre por causa dos nabas. Perdi uma filha nesta
estação.

Durante muitas luas, todos os nossos parentes da Aldeia de Peru desejaram que um naba
morasse com eles. Eles eram iguais a mim. Queriam todas as mercadorias que possuíam, mas
tinham medo do espírito de Pepe, de seu filho Keleewa e dos outros nabas.
Um naba morou numa aldeia do outro lado do rio de Peru. O chamaram de Peixe, porque
não tinha nenhum cabelo, e isto fazia com que sua cabeça parecesse exatamente com a de um
peixe. Um dia, ele foi para a aldeia de Peru com um outro naba, um homem enorme. Este
homem não conseguia falar conosco porque acabava de chegar da terra dos nabas. A Aldeia de
Peru gostava quando Peixe vinha para nos visitar e para comercializar. Então, tornaram-se amigos
do novo naba.
Depois de muitos dias, Peixe ensinou ao novo naba a nossa fala, mas, todos falavam como
bebês. Um dia, o novo naba veio sozinho visitar Peru. “Por que você escuta as coisas que Peixe
lhe fala?” Perguntou a Peru. Peixe sempre estava dizendo ao povo que deveriam deixar de matar,
estuprar e de seguir os espíritos, as mesmas palavras que Padre Coco havia dito a Lábio de Tigre.
“Você não tem que escutar Peixe,” o novo naba dizia.
Estes nabas não são tão inteligentes quanto pensei, Peru falou consigo. Peixe nem sabe
distinguir seus amigos de seus inimigos.
Na estação seguinte, o novo naba parou seu barco na Aldeia de Peru. “Vou morar com
vocês para aprender os seus costumes”, ele disse. Todos na aldeia ficaram muito felizes. Peru,
finalmente, conseguiria algumas das coisas que o seu povo precisava, urgentemente.
Mas, Peru ficou um pouco desapontado,pois o naba não tentou lhes ensinar nada. A
maioria dos nabas teria ajuntado o povo e tentado lhes ensinar uma vida melhor. Ainda assim,
todos estavam contentes, pois poderiam negociar algumas coisas com ele.
Alguns dias depois do naba ter chegado, ele levantou pela manhã e tirou toda a sua roupa,
usando apenas uma tanga como nós, e começou a tomar nosso ebene. Todos, na aldeia,
reuniram-se e assistiram maravilhados.
“Vejam este branco sábio?” Peru sussurrou ao cunhado. “Está louco? Ele pensa que
estamos nus porque gostamos? Ele não pode ver o quanto queremos ter roupas para nos proteger
destes bichos terríveis?”
Era muito engraçado observar uma pessoa branca, que sabia tanto, agindo tão
estupidamente. Mas ninguém conseguia rir. Durante muitas estações, haviam sonhado com um
naba para ajudá-los a melhorarem de vida. Agora, estavam vendo o sonho deles, agachado, nu e
assoprando ebene em seu nariz. “O homem que pensávamos que nos ensinaria, está nos
imitando”, um homem disse ao seu cunhado enquanto caminhavam tristes.
Peru deitou na rede e, do shabono, olhava para o naba. Já tenho pessoas miseráveis o
suficiente, ele pensou. E agora, tenho uma com pele branca e que fala como um bebê.

79
No dia seguinte, o naba começou a perguntar ao povo sobre os seus mortos. Claro que
ninguém lhe contaria nada. Durante o tempo em que morou com eles, Peru e seu povo nunca
entenderam porque o naba era tão mau. Era a única coisa que queria conversar. Ele os tratava
como animais, perguntando, continuamente, sobre seus mortos.
Finalmente, um guerreiro lhe falou que se fizesse mais perguntas sobre os parentes
mortos, o mataria. Então, perguntava para outras pessoas e lhes dava panelas e outros artigos de
comércio toda vez que lhe contavam algo sobre os mortos. Estava claro que não gostavam.
Então, o chamaram de Abelha-Irritante, pois o nome dele se parecia um pouco com a palavra que
usavam para abelha, que sempre zumbia ao redor de suas cabeças.
Enquanto Abelha-Irritante ainda estava com eles, um outro naba veio. Ele trouxe muitos
artigos para comercializar, o que alegrou todos, na aldeia. Mas não ensinou nada ao povo. Pelo
contrário, ficava em pé nos observando e fazendo rabiscos no seu papel.
Depois que aprendeu a nossa fala, este segundo naba começou a viajar para outras
aldeias. Os meninos da aldeia iam com ele, para ajudá-lo, e conseguiram ganhar muitas coisas
valiosas em troca da ajuda. Também brincava de “howashi” com eles, agarrando em suas partes
íntimas e enfiando seu dedo nos bumbuns deles.
Uma noite, estavam na selva, na cabeceira do Orinoco. Todos estavam fora dos seus
abrigos caçando, menos o naba e um menino chamado Lagarto. O novo naba foi até a rede de
Lagarto e sentou-se. Começou a acariciá-lo. Quando Lagarto não queria mais, disse, “Pare com
isso! Vou embora daqui”. Mas o naba segurou-o na rede. Lagarto se chateou. Lutou com toda a
sua força para sair da rede e das garras do naba. Mas, não era grande o bastante, e quanto mais
lutava, mais o naba gostava e ficava cada vez mais forte e mais agressivo.
Lagarto teria gritado, mas não havia ninguém para ouvi-lo. Sentiu dor em todo o seu
corpo; e depois ira, quando o homem branco inteligente enfiou seu pênis sujo dentro do seu
bumbum e o empurrou, igual aos animas selvagens fazem.
“Terminei com você,” Lagarto chorou quando o naba se levantou. Nunca havia sentido
tanta vergonha. Ele ficou horrorizado só em pensar no nome que receberia se alguém
descobrisse. “Nunca vire suas costas para mim, porque sempre terei minhas flechas prontas para
matá-lo.”
“Não fique com raiva,” o naba disse. “Aquele pequeno rádio que ganhou foi um bom
pagamento pelo uso do seu corpo e você bem sabe disso.”
“Nunca mais viajarei com você,” Lagarto disse. Agora entendia por que ele e todos os seus
amigos haviam ficado tão ricos de repente.
Na manhã seguinte, Lagarto sussurrou ao seu amigo. Ele nunca contaria o que
acontecera, a não ser que aquela pessoa também tivesse sido usada pelo naba. Logo descobriu
que quase todos os meninos estavam mantendo segredo sobre a mesma coisa.
“Ele nunca conseguirá tal coisa comigo”, um dos meninos disse quando ouviu as histórias
dos outros. Mas o naba conseguia.
“Não falei que ele nos trata como mulheres”, Lagarto disse ao seu amigo. “Ele enfiou a sua
coisa imunda dentro de você, não é?” Mas o menino ficou com muita vergonha de responder.
Quando a história foi contada na aldeia dos inimigos de Peru, deram muitas risadas. “A
Aldeia de Peru finalmente conseguiu um naba inteligente para ajudá-los e ele pensa que pode
reproduzir nos bumbuns dos meninos?” um líder gritou, enquanto caía na gargalhada.
“Realmente temos muito o que aprender com eles,” outro disse, e riram ainda mais.
“Onde será que estes brancos inteligentes aprendem estas coisas?”
“É isso o que ensinam”, outro respondeu. E riam mais.

80
Mas não havia nenhuma risada na Aldeia de Peru quando os líderes ouviram a história. O
pai de Lagarto era o chefe da aldeia. Mirava seu filho com seu arco e flechas, então, o excluiu da
aldeia. “Não permito que um filho meu aja como uma mulher”, ele gritava enquanto seu filho se
afastava da entrada do shabono.
“Sim. Achávamos que éramos estúpidos,” ele murmurou depois que seu filho saiu. “Este
homem era a nossa esperança para sairmos desta miséria. Agora, sou mais miserável, porque
perdi meu filho.” Os líderes voltaram para as suas redes, tristes.
E o naba ficou conhecido como M.A., que significa Manipulador de Ânus. Lagarto nunca
mais viajou com ele.

Corredor era um dos guerreiros que viajava com M.A. e acabou tornando seu amigo. Ele
já era um homem e um bom caçador. M.A. nunca o tratou como uma mulher.
Mas M.A., facilmente se aborrecia e freqüentemente batia nos meninos que viajavam com
ele. Uma vez, Corredor lhe disse para não mexer mais com os meninos.
“Você não é diferente deles”, disse a Corredor. “Eles estão conosco para trabalhar. Vou
bater em você também, se agir como eles.”
“Então, me bata,” Corredor disse. “Mal posso esperar. Só esteja pronto para apanhar
também.”
Dias depois, acharam um bando de capivara. É um animal que se parece com um coelho
gigante, mas é maior que um homem. E amamos o gosto da sua carne. M.A. atirou em algumas,
então decidiram ficar ali e aproveitar a carne. Os meninos limparam a caça e começaram a
trabalhar no abrigo, que sempre fazemos quando passamos a noite na selva.
Acharam um grupo de árvores perfeitas para amarrarem suas redes. Escolheram quatro
árvores, uma em cada canto da área. Estas se tornaram os quatro cantos do abrigo deles.
Cortaram quatro varas, que se juntaram as quatro árvores. Atravessando as quatro varas
amarraram outras que formavam o telhado do abrigo. Em cima das varas, amarraram folhas de
palmeira, de uma forma que a chuva não entrasse.
Enquanto alguns dos meninos construíam o abrigo, outro limpava e cortava a caça. Um
menino construiu um varal e fez um fogo embaixo para moquear a caça. Mas havia deixado a
cabeça de uma capivara na canoa. Enquanto isso, M.A. estava deitado na rede, instruindo todos.
Ele disse ao menino que tinha preparado a carne, “Desça ao rio, traga aquela cabeça da canoa e
coloque-a no varal para moquear.”
Mas o menino disse a M.A., “Não, estou cansado. Buscarei depois.”
M.A. irou-se e bateu no menino. “Não agüento mais isso!” Gritou com todos.
Corredor estava no rio tomando banho, mas escutou a briga. E restava-lhe pouca
paciência. “Deixe-o”, gritou a M.A., que se irou ainda mais.
“Está bem”, gritou a Corredor, “traga a cabeça para mim! E agora mesmo!” Os meninos
ficaram parados escutando. Sabiam que M.A. ainda não havia enfiado seu negócio no bumbum de
Corredor, então não aceitaria ser mandado pelo naba.
“Você quer esta cabeça, naba,” Corredor gritou da água, “então, desça aqui e busque-a.”
M.A. gritou, “Traga esta cabeça ou realmente me aborrecerei!” “Você já está furioso!”
Corredor gritou. “Já limpei sua capivara e acabei de tomar banho. Se carregar esta cabeça
sangrenta até aí, terei que tomar outro. Então … não farei.”
M.A. continuou gritando e ameaçando. Finalmente, Corredor gritou, “Escute isto. Ou você
fecha a sua boca ou pegarei esta cabeça e a jogarei no rio.”

81
“Faça isso e baterei em você! M.A. gritou, e houve silêncio. Era o fim da conversa.
Quando os meninos viram que tudo havia ficado quieto, correram para cima do barranco para ver
o que Corredor faria. Ele levantou-se da água e aproximou-se da canoa. Sem olhar para atrás,
levantou a cabeça sangrenta do fundo da canoa e lançou-a no rio. A água espirrou e ficou
vermelha. O sangue atraiu as piranhas e ficaram agitados. A parte mais gostosa da capivara fora
destruída.
M.A. desceu o barranco, tão furioso que seus olhos saltavam para fora. Bateu fortemente
no rosto de Corredor. Ninguém ficou mais surpreso do que M.A. quando Corredor devolveu o soco
duas vezes mais forte.
M.A. quase caiu de joelhos, “Você está morto!” ele gritou, enquanto subia o barranco. “Vou
buscar minha arma e você está morto!”
“Apressa-te e busque-a!” Corredor gritou. Ele se agachou e apanhou seu arco e flechas.
“Mal posso esperar você pegar aquela arma em suas mãos, naba!”
Era o final da briga. M.A. e Corredor se deram bem depois disso. O naba sempre o tratava
diferente dos outros.
Em uma outra aldeia, M.A. começou a pagar o chefe a fim de conseguir sua filha como
esposa. Todos, na aldeia, ficaram entusiasmados, pois haviam conseguido um naba que realmente
seria um deles. Ele aprendeu a mastigar tabaco, como fazemos. Compartilhamos nosso ebene com
ele e até tentou invocar nossos espíritos. Mas, todos ficaram transtornados quando o naba
começou a mexer com outra mulher, que não era a dele. Então, ele foi até os irmãos dela para
perguntar o que poderia dar em troca pela irmã deles.
“Vá e use-a,” eles disseram. “Depois nos traga um facão.”
Muitas pessoas ficaram ainda mais transtornadas quando a mesma coisa começou a
acontecer com outras moças. Depois que M.A. fazia sexo com uma moça, ele não se interessava
mais por ela. Depois de um tempo, perceberam que ele queria apenas moças virgens. Estas
moças eram difíceis de achar porque eram muito novas.

Quando Pepe saiu da Aldeia Mel, foi com sua família para uma aldeia no Rio Mavaca, a
mesma que M.A. morava, do outro lado do rio, próxima à Aldeia de Peru. Eram muitos dias
remando no rio. Um dia, as crianças da aldeia entraram na casa de M.A., enquanto estava fora, e
roubaram tudo o que puderam. Quando um Yanomami rouba algo, muitas vezes o devolve, ainda
que tenha passado muitas estações. Mas, nem sempre devolve a mesma coisa que roubou. E o
chefe da aldeia sabia que M.A. ficaria muito furioso. Ele sabia que M.A. não conhecia este nosso
costume de roubar, nem que freqüentemente devolvíamos. Então, o chefe foi até as crianças e
fez com que elas devolvessem as coisas roubadas e toda a comida que ainda não tinham comido.
Quando M.A. voltou, o chefe deu a ele as suas coisas.
Mas isto não foi o suficiente para controlar a sua raiva. M.A. entrou num acesso de raiva e
gritou com todos, na aldeia. Quando M.A. ficava assim, dizia muitas palavras que não
entendíamos. Gritou com todos e disse que espancaria as crianças.
Um dos homens deitou na rede com os braços cruzados, uma mão cobrindo a sua boca,
assistindo M.A. gritando com todos. Ele viu M.A. dar uma pausa.
“Faça-o”, disse calmamente.
“Pronto, faça-o”, outro pai disse, enquanto apoiava no seu bastão.
Outra pessoa disse, “Minha filha precisa ser espancada,” com seu arco e flechas
encostados entre seu peito e braços. “Você provavelmente é a pessoa mais indicada para isso,
naba”. Eles nunca o chamavam de M.A. quando estava por perto, pois poderia ouvir. Todos se
juntaram para ver o que M.A. faria.

82
Ele pensou por um momento. “Foi Pássaro-Jovem que começou toda esta confusão,”
gritou. “Vou espancá-lo!” Pássaro-Jovem foi uma boa escolha de M.A. Ele era de uma outra aldeia
e não tinha nenhum parente para se preocupar com o que aconteceria a ele. Os pais, com suas
armas, não brigariam por causa de uma pessoa que não era um parente. E Pássaro-Jovem não
era um guerreiro ainda. Mal havia se tornado um jovem.
“Alguém vai e me traga Pássaro-Jovem que o espancarei,” ele gritou.
Mas Pássaro-Jovem havia feito amizade com o filho de Pepe, Keleewa. “Você terá que
bater em mim também,” o menino branco falou sem pensar. “Pássaro-Jovem estava caçando
comigo quando suas coisas foram roubadas e vocês sabem disso.”
“Sim, você é o amigo dele. Você o protege,” um dos índios disse a Keleewa.
“Se você quer bater em alguém, então bata em mim,” Keleewa disse apontando ao filho do
chefe. “Todos sabem que foi ele quem roubou as suas coisas.”
“Sim,” todos disseram, imitando Keleewa e desafiando M.A. a levantar a sua mão para
bater na criança. “Todos sabem que ele roubou as suas coisas.”
Todos, na aldeia, estavam nervosos. Um menino branco tomando o lado de um menino
índio contra um naba adulto? Todos olhavam enquanto o rosto de M.A. ficava vermelho de raiva.
M.A. não conseguiu bater em ninguém naquele dia. Mas, todos sabiam que não havia
terminado. Muitos dias depois disso, Pássaro-Jovem e Keleewa ficaram juntos. Finalmente, M.A.
saiu da aldeia, numa viagem.
Um tempo depois M.A. voltou no meio da noite. Amarrou seu barco e entrou na aldeia, tão
silenciosamente que ninguém percebeu. Sabia exatamente onde Pássaro-Jovem dormia, em uma
pequena barraca fora da aldeia. M.A. passou despercebido pela barraca e se pôs ao lado da rede
de Pássaro-Jovem. Com exceção dos barulhos de alguns fogos que estavam se apagando, toda a
aldeia estava quieta.
O calmo sono de Pássaro-Jovem terminou quando sua face se encheu de dor por causa de
uma pancada brutal. Ele gritou. O silêncio da aldeia havia terminado. Todos saltaram de suas
redes e correram pela escuridão em direção aos gritos. Mas, quando os ouviu vindo, M.A. correu
para a sua casa e trancou a porta.
“M.A. me bateu enquanto dormia”, Pássaro-Jovem disse a todos. “Ele correu antes da
chegada de vocês.”
Keleewa correu para a sua casa e trouxe a sua arma. “Guarde aquela coisa,” Pepe mandou.
“Vamos cuidar dele pela manhã.”
Na manhã seguinte, os olhos de Pássaro-Jovem estavam tão inchados que não conseguia
ver. Um enfermeiro venezuelano estava na aldeia naquela época. Ele tinha passado muito tempo
com os nabas. Foi com Pepe à casa de M.A. Keleewa queria ir também, mas Pepe não permitiu.
Eles discutiram e M.A. ameaçou jogar o enfermeiro no rio. O enfermeiro era um índio Myc,
daqueles grandes. E era enorme, do tamanho de dois nabas juntos. Ele apontou seu dedo
enorme. “Você!” ele disse dando uma forte cutucada no peito de M.A., “vai me jogar?” e uma
segunda cutucada, “no rio?” e uma terceira. M.A. tropeçava para trás com cada cutucada. Ele
achou melhor não. Deixou a aldeia e não voltou até Pepe e o enfermeiro se mudarem.
M.A. subiu o rio até a cabeceira do Orinoco, aonde os nabas quase nunca vão. Mas, até
naquela aldeia afastada, havia um naba chamado Padre Gonzáles, que estava ajudando o nosso
povo a aprender maneiras melhores de fazer as coisas. Ele fazia o mesmo que Padre Coco, estava
sempre dizendo que muitas das coisas que fazíamos eram más e que deveríamos deixar de fazê-
las. Mas também dizia que muitas das coisas que os nabas fazem são más.
Depois que M.A. estava na aldeia durante um tempo, um índio foi até Padre Gonzales e lhe
contou porque os meninos estavam ganhando tantas coisas novas de repente.

83
Padre Gonzales parou M.A. no meio do seu shabono. “O que é que estes meninos estão
fazendo para você que vale tanto pagamento?” Gonzales perguntou.
“O que isto importa para você?” M.A. respondeu.
“Esta é a minha aldeia,” Gonzales disse. “Estou tentando ajudar este povo, e quero saber
o que está acontecendo aqui.”
“Esta não é a sua aldeia. Tenho o mesmo direito de estar aqui quanto você.”
“Fiquei sabendo que você paga os meninos pelo uso do corpo deles para sexo.”
“Isso é uma mentira! Onde você poderia ter ouvido tal coisa?”
“Deste menino aqui.” Gonzales apontou para o índio ao seu lado.
“Ele está mentindo”, M.A. gritou. Todos viram seu rosto se encher de ira.
Padre Gonzales se virou para o menino. “Ele diz que você está mentindo. O que diz?”
“Digo que ele está mentindo”, o índio respondeu. Até então já havia uma multidão ao
redor dos dois nabas. Todos apoiaram a história do índio.
“Por que você não sai desta aldeia?” Gonzales disse.
“Quem é você para mandar em mim!” M.A. gritou, colocando seu dedo no rosto de Padre
Gonzales.
“Ninguém precisa de você aqui para ensinar este povo suas maneiras imundas,” ele
respondeu.
M.A. ficou cara a cara com Gonzales e gritou, “Quem é você para decidir o que é
imundícia?”
“Até estes selvagens ignorantes sabem mais a respeito do que é certo e errado do que
você,” Gonzales calmamente respondeu. “Saia dessa aldeia e não volte mais.”
M.A. tinha ouvido tudo o que podia. Fechou o seu punho e golpeou Gonzales no rosto.
Mas Gonzales não se moveu. “É melhor você não fazer isso novamente,” ele disse, e
novamente M.A. o golpeou com toda a sua força.
Nunca havíamos visto uma briga entre nabas antes. Batemos sempre no peito e nunca no
rosto. E sempre lutamos observando as regras; primeiro você bate no peito do outro, depois ele
bate no seu. Sempre pensávamos que Padre Gonzales tinha um espírito que não brigava, porque
sempre nos dizia para pararmos com as nossas guerras. Talvez Padre Gonzales tenha se
esquecido, porque bateu em M.A. com tanta força que quase o derrubou no chão. M.A. se
desequilibrou, e depois bateu em Gonzales mais algumas vezes, mas ele não parecia sentir os
golpes. Então, Gonzales bateu em M.A. mais duas vezes no rosto. M.A. caiu de joelhos e prostrou-
se. Foi a briga mais curta que os Yanomami haviam visto.
M.A. ficou imóvel, com seu rosto na terra. Padre Gonzales se virou e saiu do shabono.
Todos esperavam que M.A. se movesse, mas não.
“Ele está morto,” uma mulher sussurrou.
“O que faremos com o seu corpo?” outro perguntou. Acharam que estavam com um
grande problema. Então, observaram que estava respirando, e daí a pouco, acordou. M.A. nunca
voltou para aquela aldeia enquanto Padre Gonzales estava lá. Todas as mulheres ficaram
contentes.
Em outra aldeia, M.A. deu ao chefe alguns facões em troca da sua filha. A troca foi boa e a
filha do chefe tratou M.A. como seu marido. Mas quando M.A. foi para o mundo dos nabas e não
voltou mais, a filha do chefe ficou sem ninguém para cuidar dela. Então o chefe deu-a para outro
homem.
84
Quando M.A. voltou, queria sua mulher de volta. Mas o homem que a tinha não estava
com medo do naba. Depois que trocaram algumas palavras bravas, M.A. pegou sua arma. Antes
que M.A. pudesse piscar, o bastão do índio o golpeou no braço e no seu lado e caiu no chão. Os
outros homens da aldeia se aproximaram para ter certeza que ninguém seria morto. M.A. saiu
para o mundo dos nabas para concertar o osso do seu braço.
“O que aconteceu com o seu braço, naba?” um índio perguntou quando viu a bandagem
branca enorme e dura como uma pedra.
“Caí de uma ponte”, M.A. falou.
“Sim, ouvimos tudo a respeito do que aconteceu,” o índio disse, enquanto ria
ironicamente com seus amigos.
Os líderes das aldeias na área de Peru se juntaram para decidir o que fazer com M. A. “Por
que não matá-lo?” um disse. “Isso resolveria o problema.”
“Certamente. Então os nabas virão e nos matarão, da mesma forma que fizeram naquela
outra aldeia Yanomami.”
“Ele viaja para todas as aldeias,” Corredor disse. “Nunca saberão quem o matou se nós o
levarmos para a selva e não o trouxermos de volta.”
Um dos jovens que ele havia usado como uma mulher disse, “Concordo. Vamos matá-lo e
acabar com isto”.
“Não podemos nos manter sem as suas mercadorias,” um falou. “Ele não é como nós.
Pagamos por uma esposa uma vez e, normalmente, ficamos com ela. Ele tem que nos pagar
todas as vezes que quer usar uma mulher. Enquanto o seu órgão continuar funcionando,
continuaremos ricos.”
Mas Corredor disse, “há maneiras melhores de ganhar dinheiro. Não preciso expor o meu
bumbum, nem aceitar o pênis dele para ganhar essas mercadorias. Na Aldeia Mel eles pagam as
pessoas para fazerem coisas úteis, como construção de casas. Você vai trabalhar para ele pela
manhã e acaba acariciando a sua coisa até esguichar em cima de você. É imundo. Depois que
fizer isto várias vezes, você ganha um pequeno rádio ou toca fitas.”
“A nossa aldeia não pode ficar sem todas as coisas que nos acostumamos a ganhar dele,”
alguns outros disseram.
Corredor meneou sua cabeça e estalou sua língua. Podia ver que não haveria nenhum
acordo. “Nunca poderia fazer isto, se não fôssemos tão pobres”, ele disse. “Fomos pegos numa
armadilha sem escape.”
O chefe, cujo filho tinha sido estuprado, estava mais furioso que qualquer um. Seu
pescoço inchou-se quando gritou, “até quando deixaremos que alguém faça nossos meninos de
mulheres? Como é que o nosso povo vai reproduzir se eles começarem com este hábito? Digo
que devemos matá-lo!”
Os que queriam matá-lo reuniram-se mais tarde. “Como poderemos matá-lo?” um
perguntou. “Os outros contariam aos nabas quem fez isto e seríamos pegos.” Ainda que o ódio
contra ele fosse grande, tinham medo de agir.
Corredor estava triste. Ele queria, mais do que qualquer outro, deixar de viajar com M.A.
Mas estava numa armadilha. Precisava muito dos bens de comércio. Pelo menos, não estava
fingindo ser uma mulher, embora muitas vezes pensasse em quantas coisas poderia conseguir se
o fizesse. Os trabalhadores deste homem branco inteligente apenas conseguem ânus maiores,
pensou.

Quando Keleewa se tornou um homem, foi para o mundo dos nabas para conseguir uma
esposa. Logo depois de casar, voltou com ela para a selva e viveu em uma de nossas aldeias.
85
Estávamos ansiosos para ver se ela iria gostar de nós.
Antes que deixasse sua nova esposa para ir caçar, levou-a para fora da sua casa de folha
de palmeira e entregou-lhe uma pequena arma. Então, pendurou um mamão num tronco de uma
árvore, do outro lado da aldeia. Falou para ela atirar naquilo. Ela apontou a arma e acertou no
mamão três vezes, no meio. Todos, na aldeia, aplaudiram. “A mulher branca sabe atirar,” todas as
mulheres gritaram. “Estaremos seguras agora quando os homens saírem”. Estavam tão surpresas,
que nem perceberam quão surpresa ela estava. Keleewa e os homens partiram para uma longa
caça.
Dois dias depois, todas as mulheres da aldeia correram gritando para a casa do naba,
quase quebrando a porta. Elas pularam as mesas e cadeiras para se esconderem atrás da esposa
de Keleewa. Algumas estavam tentando enfiar as cabeças debaixo da saia dela. Por a esposa de
Keleewa ainda não entender a nossa fala, pensou que era uma invasão.
Então, o naba, M.A. apareceu e enfiou sua cabeça na porta. Ele viu as mulheres se
esconderem debaixo das coisas e atrás da mulher branca. As mulheres esperavam que M.A. não
fosse aborrecê-las enquanto uma naba, que não tinha medo dele, estivesse por perto. Ele podia
ver que elas não estavam tão interessadas em fazer sexo, como sempre estava. Partiu sem
conseguir nada.

Durante a estação em que Pepe morou em Mavaca, uma coisa muito engraçada aconteceu.
Claro, que nós Yanomami podíamos notar desde o início que Abelha-Irritante não gostava dos
nabas que tentavam nos ajudar a mudar nossos costumes. Isto foi fácil de observar, porque
quando os nabas, que nos ajudavam estavam por perto, Abelha-Irritante falava coisas como,
“Vocês não tem que escutá-los” e “O espírito do qual eles falam não é melhor do que os seus”.
Mas Peixe e Pepe não sabiam que ele dizia estas coisas.
Um dia, Corredor, que era um xamã, e um outro xamã chamado Kaobawa ficaram
transtornados, porque Pepe tinha ensinado que o grande espírito viria um dia destruir o mundo
com fogo. Foram até Abelha-Irritante e lhe perguntaram se era verdade. “Eles lhes contam
mentiras sobre o mundo dos espíritos,” Abelha-Irritante disse a Corredor e Kaobawa. “Não
aceitem estas mentiras. Vocês têm todos os espíritos que precisam. E o espírito sobre o qual os
nabas lhes contam, o que eles chamam de o grande espírito, não existe. Todos os nabas que
sabem mais do que eles, não conhecem nenhum grande espírito. Venham, provarei a vocês que
não há nada para temer do espírito deles. Busque seu ebene.” E começou a tirar a roupa. “Você,
Corredor e Kaobawa, me ajudarão a chamar os espíritos.”
Todos, na aldeia, ficaram admirados. E ficaram mais admirados quando observaram
Corredor e Kaobawa pintando e enfeitando o grande naba branco. Então, aquietaram-se quando
ele agachou no chão do shabono, quase sem roupa, e enfiou o cano comprido de ebene no nariz.
Corredor assoprou o ebene dentro de Abelha-Irritante e começou a dançar e a cantar, enquanto
chamava os espíritos para ele, do mesmo jeito que os xamãs faziam. Todos ficaram esperando e
observando, para ver se o espírito responderia.
“Eles estão vindo, estão vindo”, Abelha-Irritante falava enquanto dançava e balançava seus
braços. Kaobawa e Corredor dançaram com ele e todos observavam e estavam admirados. Sabiam
que os espíritos de Corredor e Kaobawa viriam. Mas será que os nossos espíritos viriam a um
naba, que sabia sobre o grande espírito, aquele que era hostil a nós?
“Eles estão vindo, Periboliwa, Fereliwa, Lahacanaliwa, estão vindo.” Continuava chamando-
os pelos nomes, enquanto todos estavam sentados assistindo e olhando um para o outro, e para o
naba. Finalmente chamou Kaobawa, “Olhem! Estão chegando.” Então, Abelha-Irritante gritou
para todos, “Wadubaliwa entrou em meu peito.” Todos suspiraram e olharam um para o outro.
Wadubaliwa é o espírito do Urubu. Ele é famoso por ser um dos espíritos mais violentos. Eu não
tinha este espírito, mas Kaobawa o tinha.
“TK!” uma mulher disse. “O naba tem o espírito do Urubu! Ele será agora tão feroz e
poderoso quanto nós.” Todos, na aldeia, ficaram excitados. Sabiam quão prejudicial espírito do
86
Urubu era. Então, enquanto Abelha-Irritante abanava mais agitadamente seus braços, os índios
agarravam seus pertences, para que não os quebrasse.
Enquanto dançava, Abelha-Irritante dizia a Kaobawa, “Espírito do Urubu quer ir para outra
aldeia matar uma criança lá.”
“Se você fizer isso,” Kaobawa disse, “eles irão se vingar de nossa aldeia.”
“Ele realmente quer que eu faça isto,” Abelha-Irritante disse. “Então vou.” Então, espírito
do Urubu foi com Abelha-Irritante para aquela aldeia e comeu o espírito da criança.
Justo na hora em que a dança e a invocação aos espíritos chegava ao pico máximo de
excitação, Pepe entrou no shabono. Todos ficaram quietos. Sabiam que Pepe também tinha um
espírito poderoso. Agora, estava prestes a ver o naba fazendo justamente o que nos pedia para
deixarmos de fazer. Todos que estavam no shabono viram a surpresa no rosto de Pepe, quando
viu o homem branco enfeitado, quase nu, pulando para cima e para baixo na sujeira.
Pepe ficou cara a cara com Abelha-Irritante e disse, “Abelha-Irritante, você é um bobo
asqueroso.” Então com três dedos puxou para baixo a pele embaixo do seu olho e mostrou para
Abelha-Irritante a parte rosa.
Todos, na aldeia, riram descontroladamente. “Ele abaixou seu olho para você!” todas as
mulheres gritaram. E começaram a zombar dele, todos ao mesmo tempo, dizendo coisas como,
“Ele acaba de lhe insultar da pior maneira! O que vai fazer sobre isto?”
“Então, o espírito de Pepe não é real e você conseguiu o espírito do Urubu, o mais feroz de
todos. E ele acaba de abaixar seu olho e você não pode fazer nada.”
“Você sabe tudo a respeito daquele espírito do naba, não é, Abelha-Irritante! E o que vai
fazer sobre este insulto?”
Enquanto Pepe saía do shabono, Abelha-Irritante o chamou, “Você é que é bobo
asqueroso, porque não há nenhum grande espírito.” Mas as mulheres continuaram.
“É um espírito muito feroz que você tem aí, não é, Abelha-Irritante.”
As mulheres continuaram imitando Pepe abaixando o seu olho, todos demonstravam o que
ele havia feito. Apontavam e zombavam, “Todos aqueles grandes espíritos não puderam impedir
que ele abaixasse o seu olho. E você não pode fazer nada”. Foi o final mais engraçado de uma
dança, pois nunca havíamos visto isso.
As pessoas voltaram para o seu trabalho. Pensaram no tipo de espírito que Pepe tinha e
que seria capaz de abaixar o seu olho para uma pessoa com o poderoso espírito do Urubu. Por
muito tempo depois, as pessoas contaram a história e sempre terminavam da mesma maneira:
com Pepe abaixando o seu olho.

87
CAPÍTULO 10

NÓS PODEMOS TER AMBOS OS MODOS

Ainda amo os meus espíritos e falo com eles todas as noites. Faz muito tempo que não
tenho tido um motivo para enviá-los para lutar com o povo de Tucano. Ouvimos mais algumas
conversas sobre a cabeça perdida de Shetary. Foi um naba que a levou, e estávamos certos disso.
Alguns guerreiros estavam com ele. Mas ninguém sabe quem foi. E nunca admitirão que
permitiram que ele fizesse isto. Keleewa trouxe sua nova esposa para morar na Aldeia Mel.
Deemeoma ainda vive lá; sua filha se casou com Não-Cresce. Estão prestes a dar um segundo
neto a ela. Ainda continuam felizes, mas meus espíritos têm medo de ir lá.

“Está começando! Está começando!” Eles gritaram para Deemeoma. Todos sabiam que
ela era a melhor para ajudar os bebês a nascerem. Deemeoma havia pedido a todos que a
chamassem quando sua filha, Anita, estivesse pronta para dar à luz. Ela sempre ajudava. Sentia
muita tristeza ao ver as pessoas sofrerem, por isso, sempre quando alguém ficava doente pedia
para chamá-la, para que viesse ajudá-las. Naquela manhã, estava prestes a ver seu segundo
neto.
Ainda podia sentir o orvalho na grama enquanto corria para a casa de sua filha. Anita
estava no meio de uma dor de parto quando Deemeoma entrou pela abertura na parede de barro.
Estava escuro e levou um minuto para enxergar. Deemeoma sentiu seu coração pular de alegria
quando viu a cabeça de seu neto.
“Relaxe um pouco,” ela disse à filha. “Mais um empurrão e sairá. Eu penso que é um
menino.” Ela trabalhava bem com os bebês.
Mas acertou pela metade. Com o próximo empurrão a cabeça saiu, e depois o resto. Era
uma menina. Mas, quando Deemeoma olhou de perto, viu que não se importava por não ser um
menino. A metade do rosto do bebê estava coberta com uma mancha preta e grossa. Todos que
estavam presentes ficaram em silêncio e Anita sabia que algo estava errado.
“O que é? Como está o bebê?” ela perguntou. Deemeoma podia ver que este bebê não
prestava. Sabia o que tinha que fazer. Cuidaria desta parte pela filha.
“Silêncio,” Deemeoma respondeu. “Não me perturbe agora com isto. Você terá mais
bebês depois.” Ela embrulhou o bebê num pano, pegou um facão e foi para fora.
Notícias ruins sobre o bebê já haviam se espalhado pela aldeia, e fora da casa havia um
grupo de curiosos, querendo saber das intenções dela. “Não é justo deixá-la crescer e sofrer,”
Deemeoma disse entre lágrimas. “Vou poupá-la disso agora mesmo.” Todos olharam para o
bebê, e ninguém podia tocá-lo. Uma vez que tocassem no bebê, se tornaria uma pessoa de
verdade e você teria que cuidar dela. A mancha era enorme e feia.
“Não seria certo matar um bebê,” Sapato-Pé disse baixinho, mas Deemeoma ouviu. Mesmo
sendo o líder da aldeia, não podia interferir mais que o necessário.
“Ela sofrerá,” Deemeoma chorou. “Pense no que passará quando crescer. Ela não presta.
É feia”. Todos falaram ao mesmo tempo. Normalmente, as pessoas da aldeia concordavam com
Sapato-Pé.
Naquele instante, Não-Cresce voltava de uma caçada de perus. “Ela quer matar seu bebê
por causa do rosto dele”, disseram a ele. Não-Cresce tomou o pacote, desembrulhou o bebê, e
viu a mancha que cobria a metade do rosto. Como queria um menino! Era tão diferente daquilo
que esperava.

88
“Deixe o bebê,” ele disse. “Yai Pada deu-o para mim, e vou amá-lo, independente da sua
aparência.”
“Ela vai sofrer muito,” Deemeoma chorou. “Irão rir dela. Irão zombar. Ela será diferente.
Eu sei”. Houve uma pausa enquanto todos lembraram daquilo que Deemeoma sabia. Todo o seu
sofrimento era por causa deles. Lança estava lá. Ele lembrou quando assassinaram sua família e
roubaram-na. Ele sabia todos os detalhes que estavam por trás das palavras “eu sei” de
Deemeoma. Ela não conhecia nada além do que sofrimento.
O esposo de Deemeoma, o avô, falou. “Deixe o bebê. Os homens ainda irão querê-la. A
marca está no rosto, e não na sua vagina. É nisso que os homens pensam”.
Keleewa estava por perto só ouvindo a conversa. Sapato-Pé virou para ele. “O que você
diz?”
Ele parou e pensou. Sabia que Deemeoma havia sofrido muito em sua vida. Sabia que era
a grande preocupação que tinha com o bebê que a fez desejar terminar com sua vida antes que se
tornasse como a dela. Keleewa acenou para o bebê e perguntou a Deemeoma, “O bebê está
vivo?” Ela afirmou com a cabeça.
“Se você a levar para a selva para matá-la, será o assassino dela?” Ela continuou
afirmando.
“Então terá que passar por unokai?”
Ela parou. Todos pararam. Rituais de assassino. Eles não haviam se esquecido de todos
aqueles rituais que aconteciam após cada matança. Haviam passado muitas estações desde a
última vez que a palavra “unokai” havia sido ouvida na aldeia. Houve silêncio.
Finalmente, o marido de Deemeoma falou novamente. Ele era velho. Sabia de todos os
costumes antigos: unokai, vingança, estupro, matança de criança, espíritos, tudo. “Já falei para
deixar o bebê. Não vou repetir. Final de conversa.”
A esposa de Keleewa levou o bebê para sua casa, pensando que talvez tivessem que criá-
lo. Ela limpou-o, embrulhou-o numa manta, devolveu-o para sua mãe e disse, “Anita, você quer o
seu bebê?”
Anita disse, “Sim”. E seu pai estava certo. Foi o final da conversa. Deram o nome de
Yaiyomee.

Tucano viajou o dia todo até a Aldeia Atirando para conhecer os nabas e aprender mais
sobre o novo espírito deles. Levou muito tempo para aprender sobre os espíritos velhos e agora
queria aprender mais sobre este novo. Os primeiros nabas haviam saído e muitos outros
chegaram.
Quando finalmente chegou lá, entrou na casa deles e chamou o homem. “Oi, amigo. Saia e
fale comigo.”
O naba estava nos fundos da sua casa olhando em seus livros e respondeu, “estou muito
ocupado agora. Vá falar com minha esposa.” Tucano não queria falar com a esposa do homem.
Ele queria saber mais sobre o novo espírito, aquele que era o inimigo dos xamãs.
Todas as vezes que visitava seus parentes, Tucano pedia para o naba sair e conversar.
Mas ele sempre estava muito ocupado.
Com isso, Tucano se sentiu como uma mulher, atraído por duas aldeias. Ele não gostava
quando os nabas o ignoravam. Era o espírito deles que havia aceitado. Agora, quando as pessoas
na aldeia adoeciam, ele não podia mais pedir ajuda para espírito Curativo. E os nabas não
estavam indo lá para dar mais remédios.

89
Todas as vezes que alguém adoecia, morria, e seu povo implorava para que chamasse seus
espíritos. Ele era a única esperança deles. Finalmente concordou. Tomou ebene e entrou em
transe, e começou a invocar seus espíritos. Mas não vinham. Implorava. Invocava. Tomava mais
ebene. Nenhum de seus velhos espíritos voltou para ele.
Então, Tucano fez como muitos outros xamãs; fingiu. Fazia as coisas certas. Tomava
ebene. Dançava. Esfregava as mãos em cima do doente. Quando uma criança morria, explicava
de uma maneira aceitável: “O espírito inimigo pegou-a antes que pudesse salvá-la”. Mas ele
estava apenas fazendo de conta que era um xamã e nenhum dos espíritos jamais voltara ou fizera
algo por ele.
Saiu com sua aldeia para uma invasão e para matar seus inimigos. Ele estava com medo
pois sabia que não possuía mais seus espíritos. Mas ficou muito doente no caminho e não pôde
chegar lá e lutar. Ele era conhecido como um homem risonho. Mas, logo deixou de rir.

Muitas luas depois, Keleewa e seus amigos índios estavam viajando nas cabeceiras dos rios
Ocamo e Buto e chegaram no caminho para a Aldeia de Tucano. Keleewa lembrava da primeira
vez que havia conhecido Tucano, como havia tremido por dentro quando olharam um para o
outro. Desta vez, quando se encontraram, não houve tal sentimento.
“Joguei fora meus espíritos,” Tucano disse. “Gostaria de conseguí-los de volta, mas não
querem voltar para mim. Quero aprender sobre o grande espírito, Yai Pada, mas os nabas não
querem me ensinar.”
“Volte para a Aldeia Mel conosco,” Keleewa disse. “É uma longa viagem, mas lá poderá
aprender tudo sobre Yai Pada”. Tucano pensou por muito tempo nisto. Era a única coisa que
poderia fazer.
Quando estava no rio, voltando para Ocamo, Keleewa ouviu Tucano dizer aos seus novos
amigos índios sobre as montanhas que veriam na próxima curva.
“Não sabia que você tinha estado aqui”, Keleewa disse a Tucano.
Ele olhou para baixo, como se tivesse vergonha em dizer isto. “Bem, realmente nunca
estive aqui”, falou baixinho. “Vinha por estas partes quando estava no mundo dos espíritos,
visitando outros lugares como a aldeia de Homem da Selva. Não consigo mais fazer isto desde que
meus espíritos me deixaram”. Quando chegaram na Aldeia Mel, Tucano encontrou Sapato-Pé.
Imediatamente o reconheceu como sendo aquele xamã misterioso, que havia chamado de
Nenhuma-Dificuldade. Sapato-Pé disse, “Tá vendo, não estou morto.” Tucano começou a
aprender muitas coisas sobre este novo espírito.
Um dia, viajei com minhas esposas para visitar o irmão delas, Sapato-Pé. E lá estava
Tucano. Antes disso, o havia visto apenas no mundo dos espíritos. Mas quando o vi, sabia quem
era. Podia ver que ele era o xamã que havia lutado comigo por tanto tempo. E ele podia dizer
quem eu era também. Mas não mencionaria que havia lutado com ele.
“Então você é aquele que conheço há tanto tempo” falei. “O que aconteceu com os seus
espíritos? Posso ver os caminhos indo em direção ao seu shabono, mas eles deixaram! Por que?”
Tucano pensou. Usou as mesmas palavras que usei quando vi os caminhos vazios de
Sapato-Pé. “Todos me deixaram quando possui Yai Pada, exatamente como aconteceu com as
pessoas aqui na Aldeia Mel.”
Tucano, Sapato-Pé, e eu conversamos até tarde da noite. Sapato-Pé nos contou como
Omawa havia nos enganado, quando nos ensinou a beber ossos, matar para vingar, roubar e
estuprar mulheres, todas as coisas que fazemos.
“Então, Yai Pada se tornou um Yanomami,” Sapato-Pé continuou. “Ele veio como um bebê,
cresceu, e nos mostrou um modo completamente diferente de viver. Mesmo sabendo que seria
morto no final, ele o fez. Sua morte foi para todos nós, Yanomami.”
90
Pude sentir que eu e os meus espíritos estávamos ficando irados por causa daquilo que ele
estava dizendo. Embora me sentisse confortável em descansar na casa de Sapato-Pé, de
desfrutar da comida da sua esposa, sempre sentia uma falta de paz, todas as vezes que ouvia
suas palavras.
“Mas ele é Yai Wana Naba Laywa”, discuti com ele, “o espírito hostil. Todos sabemos que
sua terra é bonita. É a terra feliz onde há abundância de comida, caça, e nenhuma doença. É
onde ele leva os nossos filhos, mata e come. Claro que gostaríamos de ir para lá. Mas ele não é
nosso amigo e nunca foi. Ele é nosso espírito inimigo!”
Sapato-Pé explicou um pouco mais. “Por ser Yai Pada, pôde voltar dos mortos. Foi assim
que abriu o caminho para onde Ele mora. E nunca foi hostil para nós, mas é o inimigo dos espíritos
que ganhamos de Omawa. É o amigo de qualquer Yanomami que deposita seus desejos Nele.”
Ele contava esta mesma história todas as vezes que o visitava. Naquela noite, enquanto
deitava na minha rede, na casa de meu velho amigo Lança, meus espíritos vieram novamente.
Estavam tão aborrecidos. “Não nos jogue fora, Pai!” Espírito da Onça implorou. E Encantadora,
chorava e lamentava. A história da morte de Yai Pada e o caminho para a terra dele os deixaram
em pânico. Foi fácil para eu entender por que alguns xamãs nem desciam das suas canoas
quando vinham aqui. Se não fosse pela amizade dos meus parentes, eu nem viria.
Não vou jogar você fora, disse a Encantadora e aos outros espíritos, mas não para que
Lança e sua família pudesse ouvir. Você sabe que sempre depositei os meus desejos em você.
Nunca vou depositá-los em outro.
Não sei por que sempre permitia que estas conversas chegassem ao ponto de me deixar
tão furioso. Mas sempre permitia. No dia seguinte, perguntei a Sapato-Pé, “Você disse que a
morte dele era para todos nós, Yanomami?”
“Você sabe porque colocamos nosso arco e flechas numa árvore depois que terminamos o
unokai?” Ele perguntou. Balancei a cabeça e estalei minha língua. Trouxe muitas recordações. “A
árvore recebe as ferramentas que usamos para matar, isto faz com que nossas mãos se tornem
limpas, para que possamos nos tocar novamente. Foi isso que a morte de Yai Pada fez. Ela nos
transformou de inimigos para amigos e isto permitiu que seguíssemos o caminho até a sua terra.”
Não agüentava mais. A conversa sobre a morte de Yai Pada era mais do que meus
espíritos podiam suportar. Fiquei furioso. Saltei da minha rede e saí batendo os pés na terra até
a porta. Levaria muito tempo para aquietar meus espíritos agora.
Depois de muito tempo voltei, mas, tive que ouvir aquela conversa dos meus espíritos a
noite inteira: “Não nos deixe”, o que me aborreceu muito. Mas ainda que não gostasse das
pessoas da Aldeia Mel, elas ainda eram boas para mim. A família de Sapato-Pé estava sempre
contente em ver suas irmãs.
Durante aquele tempo houve uma grande festa, abaixo do Orinoco; até mais para frente de
Tama Tama. Muitos dos nabas estavam lá e convidaram todas as tribos indígenas para mostrar
aos brancos como vivíamos. Os índios Yanomami que não tinham medo dos brancos foram. Foi
uma grande festa e no final, haviam planejado uma competição de tiro ao alvo. Tínhamos certeza
de que nosso povo ganharia das outras tribos.
A maior parte do nosso povo, que havia ido, era do Rio Orinoco, e já haviam visto muitos
nabas. Cacho-Pequeno, o sobrinho de Lábio de Tigre, que havia morado com os brancos em
Tama Tama, estava lá com Lábio de Tigre e seus amigos. Ficaram num shabono especial com
outros Yanomami, onde todos os nabas pudessem visitar e ver como vivíamos. Cacho-Pequeno se
sentiu muito estranho com tantos brancos observando-os.
Depois de alguns dias apareceu um homem, que era um mistério para Cacho-Pequeno.
Estava sentando na rede com Lábio de Tigre e o homem veio e conversou com todos os índios.
Parecia com um naba mas conversava e agia como um Yanomami. E todos os índios o tratavam
como um Yanomami. Este índio tem convivido tanto com os nabas, pensou Cacho-Pequeno, que
ficou branco como eles.
91
“Quem é aquele homem com o qual todos do nosso povo conversam?” Perguntou a Lábio
de Tigre.
“É Keleewa”, Lábio de Tigre falou, e gritou para ele, “Ei! Keleewa!” O homem se aproximou
das suas redes. Cacho-Pequeno ainda não sabia se era um naba transformado em Yanomami ou
um Yanomami transformado em naba. Mas, enquanto conversava com o homem, recordava do
tempo em que brincava com ele, quando era um menino. Passaram longas horas conversando
sobre sua infância.
“Tenho matado tantos que agora quase todos querem me matar,” Cacho-Pequeno disse a
Keleewa.
“Você se tornou um grande guerreiro então?”
“Sim. Mas não é tão grandioso quanto disseram que seria. Nunca durmo. Como poderia
quando todos me buscam? As poucas noites que temos passado aqui, na aldeia dos nabas, é
quando tenho conseguido dormir.”
“Você ouviu falar de nossa aldeia?” Keleewa perguntou.
“Aldeia Mel? Claro. Todos sabem sobre a Aldeia Mel. Como desejamos ser iguais. Estou
tão cansado de guerras. O único fim rápido e fácil é para os que perdem. Um dia serei eu. Você
soube do que os nabas fizeram em nossa aldeia?”
“Não. Me fale.”
“No início, quando conseguimos um naba para morar conosco,” Cacho-Pequeno começou,
“estávamos tão entusiasmados que prestávamos atenção em tudo o que dizia. Ele não nos
ensinou sobre um grande espírito, como vocês falam, mas nos deu os medicamentos que
precisávamos para nossas crianças.”
“Então um dia, o naba decidiu fazer uma grande festa com todos, na aldeia. Meu pai
estava contra a festa e disse para o povo não participar. Tinha medo das latas de bebidas que os
nabas tomavam. Sabia que nos faria fazer coisas loucas. Mas, meu pai estava velho e ninguém o
escutou.”
“Quanto mais bebíamos, mais nos divertíamos, e logo fingíamos uma luta com porretes.
Foi divertido para todos, mas você sabe como sempre vai além. Meu irmão caçula morreu naquela
noite com um golpe na parte de trás da cabeça. Sabíamos que tinha sido um acidente. E ninguém
lamentou mais do que aquele que havia batido nele. Mas, você sabe que temos que nos vingar de
todas as mortes. É o modo dos nossos espíritos.”
“Sim, acho que sei disso,” Keleewa respondeu, meneando a cabeça.
“Então, na manhã seguinte, meu irmão mais velho disse que mataria o assassino de nosso
irmão. E todos sabiam quem era. Era meu filho.”
Keleewa meneou a cabeça. Sabia que a história não poderia ter um bom final.
“Continuei lhes falando que era o naba que havia provocado isto. ‘Vamos matá-lo’, falei.
Mas meu pai e o resto do povo estavam contra mim. Não podia deixar meu filho ser morto.
Então, juntei minha família e escapei pela cabeceira do rio. Meu filho disse, ‘devo passar por
unokai, Pai?' eu lhe disse, ‘certamente não. O naba é o culpado desta morte’, eu disse. ‘Não
você’. Ninguém se sentia pior, com isto, do que nós dois.”
“Gostaria de saber, se um dia, algum naba virá até nós e fará com que continuemos
miseráveis ou até pior. Eles nem têm a decência de trazerem as suas esposas. Pelo contrário,
usam as nossas mulheres.”
Keleewa não sabia o que dizer ao seu amigo de infância.
“Venha à Aldeia Mel e traga a sua família,” ele disse.

92
“Não posso fugir”, Cacho-Pequeno respondeu. “Eles me chamarão de covarde. Eu tenho
muitos inimigos para lutar. Agora, não é apenas as outras aldeias que me caçam, mas a minha
família.”
Quando chegou a hora da competição de tiro ao alvo, os índios queriam que Keleewa
atirasse como um Yanomami, porque havia crescido entre nós e podia usar nosso arco e flechas.
Certamente, era mais Yanomami do que naba. Mas os nabas não permitiram que ele atirasse, por
ser branco.
De qualquer maneira, quando terminou a competição, um guerreiro Yanomami havia
ganhado. Entretanto, os índios Myc, nossos velhos inimigos, começaram a dizer que ele era um
Myc. Apesar de ter sido criado como um Yanomami, seu pai era um Myc. Então, afirmaram que
eles é que haviam ganhado. Depois de uma longa discussão, os nabas decidiram que nós é que
havíamos ganhado, porque ele usara arco e flechas Yanomami.

Um dia, um naba visitou a Aldeia Mel. Ele era um amigo do irmão de Keleewa e ensinava
os filhos dos nabas numa escola especial em Tama Tama. Rabo de Preguiça, Não-Cresce, e
alguns outros índios da aldeia foram caçar com eles. Quando voltaram, sentaram na casa de
Keleewa e conversaram. Os índios falavam baixinho, entre eles, como fazem freqüentemente
quando Keleewa tem um visitante que não entende a fala deles.
Quando Keleewa ouviu os índios usando a palavra “howashi”, parou a sua conversa, no
idioma dos nabas, para descobrir sobre o que estavam falando. Howashi, quer dizer macaco,
claro, e é o nome daquele espírito terrível. Mas também, é um nome muito ruim quando se refere
a alguém que está sempre procurando sexo.
Rabo de Preguiça disse a Keleewa “Com quem este naba conversa? Qual espírito ele
segue?”
“Ele é professor na escola da missão e segue Yai Pada, como nós.”
“Não, ele não segue,” Rabo de Preguiça disse.
“O que?” Keleewa ficou de boca aberta. “Rabo de Preguiça ! Como pode dizer uma coisa
dessas sobre uma pessoa que crê como nós?”
“Porque ele não crê,” Rabo de Preguiça respondeu.
“O que? Você nunca viu esta pessoa antes,” Keleewa ralhou. “Nunca falou com ele. Nem
poderia se quisesse. Você nem pode falar o idioma dele. Como pode julgar as pessoas assim?”
“Não temos o mesmo espírito. Meu espírito não tem nenhuma ligação com o dele.”
“Você não pode dizer isto sendo que mal o conhece,” Keleewa respondeu. “Que tipo de
espírito sente que ele tem?”
“Ele tem espírito de Howashi,” Rabo de Preguiça respondeu.
Keleewa ficou horrorizado. “Rabo de Preguiça ! Como você pode chamar outra pessoa de
um nome tão imundo, quando não sabe nada sobre ele? Isso é terrível!”
“Porque conheço os espíritos. E posso ver o que está nele. Ele tem o espírito de Howashi.
Olhe para ele. Não pode sentir isto?” olharam para o naba, enquanto estava sentado à mesa
rústica da cozinha falando com os irmãos de Keleewa no idioma dos nabas. “Conheço Howashi e
posso senti-lo nele. É por isso que meu espírito não concorda com aquele naba. Você sente?”
Keleewa não sabia se queria responder. Lembrou-se que Rabo de Preguiça havia sido
escolhido para se tornar um xamã. Mas havia jogado fora seus espíritos, antes de se tornar
experiente com eles. O que será que ele estava vendo? Desejou saber. Keleewa parou de
conversar.

93
Um mês depois, a escola da missão teve grandes problemas. Os nabas souberam que o
professor estava tentando brincar de howashi com uma das crianças. E já fazia um tempo que
isto estava acontecendo.
Keleewa ficou confuso quando ouviu sobre tudo o que acontecera. “Como você sabia?” ele
perguntou a Rabo de Preguiça , o único que não estava surpreso com a história.
“Dava para ver o espírito imundo. Podia senti-lo. Igual com M.A., será que eu estava
errado, pelo fato de nenhum de vocês o virem.”
“Mas, ele segue Yai Pada, como todos nós,” Keleewa disse, ainda admirado.
“Conheço algumas coisas sobre o mundo dos espíritos, mas não sou mestre nisto,” Rabo
de Preguiça respondeu. “Se diz que ele segue, pode ser. Mas, quando nossos xamãs decidem
seguir Yai Pada, temos que jogar fora os nossos espíritos. Não tem outro jeito. Este homem deve
ser um seguidor de Yai Pada que ainda não jogou fora seu espírito de Howashi. Mas, não
entendo como isso pode ser.”
Keleewa havia ido para as escolas dos nabas que ensinavam o livro sobre o mundo dos
espíritos. Pensou se devia tentar explicar isto. Pensou um pouco e começou a dizer algo, mas deu
para perceber que Rabo de Preguiça não entenderia. Talvez a “confusão” de Rabo de Preguiça
era mais clara do que aquilo que tentava explicar, ele pensou.

Rabo de Preguiça e sua esposa, Catalina, tinham uma filha chamada Falenci. Ela era uma
menina bonita, mas ainda muito pequena. Havia um homem velho, parente da família de Homem
de Frutas, que queria Falenci como esposa. Embora o parente morasse rio abaixo, na Aldeia
Boca, antigo inimigo da Aldeia Mel, Rabo de Preguiça e Catalina concordaram em deixar que o
homem se tornasse o genro deles. Ele começou a trabalhar por Falenci, fazendo todas as coisas
que qualquer bom genro faria por uma esposa. Trazia-lhes carne, para mostrar que era um bom
caçador, que seria um marido excelente e um provedor para eles, na velhice.
Uma vez, quando estava visitando a Aldeia Mel, seu genro queria levar Falenci à rede com
ele. Mas ela era muito pequena, então Rabo de Preguiça e Catalina não deixaram levá-la.
Homem de Frutas veio em defesa do homem e insistiu para que deixassem levar a menina.
Homem de Frutas convenceu Rabo de Preguiça. “Precisamos permitir”, disse a Catalina.
“Se não permitirmos, perderemos este genro.”
Keleewa sabia do problema que havia entre Rabo de Preguiça e Homem de Frutas. Tentou
não se intrometer. Mas, quando ficou claro que dariam a menina ao homem, não conseguiu ficar
quieto.
“Você não dará sua pequena menina para aquele homem!” Falou a Rabo de Preguiça, com
o máximo de insistência que pôde. “Os seus peitinhos ainda nem começaram a crescer. E ela não
o quer.”
“Não podemos recusar,” Rabo de Preguiça contestou e Catalina concordou. “Somos
parentes de Homem de Frutas e de toda a família. Haverá transtornos se recusarmos. De
qualquer maneira, o queremos como genro. E ele já nos deu muitas coisas. Não podemos
recusar agora.”
O amigo branco de Rabo de Preguiça o conhecia há muito tempo. Cresceram juntos,
aprenderam a caçar e a pescar. Não havia ninguém mais em quem Rabo de Preguiça confiasse
nem escutasse como Keleewa. Ele podia falar severamente com Rabo de Preguiça como ninguém
mais podia. E falou.
“Você não pode dá-la,” ele disse enfaticamente. “Está errado! Você sabe disto!”
Ficou claro, pela expressão nos olhos de Rabo de Preguiça, que sabia disto. Catalina
também sabia. Eles amavam Falenci. Sabiam o quanto Keleewa amava as criancinhas. Estava lá

94
quando Falenci nasceu. Balançou-a em seu colo. Havia crescido com seus filhos. E agora, todas as
noites, escutava o choro dela, só em pensar que seria obrigada a se deitar na rede de um homem
velho.
Rabo de Preguiça ficou encurralado. Não tinha como recusar a dar sua filha ao novo
genro. Nenhum homem, Yanomami, cederia ao choro de uma pequena menina e depois manteria
respeito. E o genro estava pagando por ela. Tinha que dar.
“Keleewa vai interferir e tirá-la do homem,” Rabo de Preguiça falou a Catalina.
“Ele é seu amigo," Catalina respondeu. “Tente convencê-lo.”
“Vamos esperar até que saia da aldeia”, Rabo de Preguiça falou. “Ele nunca saberá.”
Então, quando Keleewa saiu, disseram ao homem velho que podia vir e pegar a menina.
Naquela noite, Falenci gritou quando o homem chegou na casa de Rabo de Preguiça para levá-la.
Como aconteceu com a esposa de Cabeludo, a de Tucano e com quase todas as outras, ela estava
apavorada. Mas, sabia que seus gritos não iriam resolver nada. Não tinha forças para reagir,
senão encarar o que estava à sua frente. Ela foi com ele. Chorou. Mas não havia nada que
pudesse fazer.
Por aquele homem velho ser parente de Homem de Frutas, sempre amarrava sua rede na
casa dele, quando o visitava. Então, todos, na aldeia, sabiam onde Falenci estava e o que estava
acontecendo.
No início, este período é muito difícil para todos, na aldeia. Os gritos são comuns entre as
meninas jovens. Até na Aldeia Mel, onde as casas são separadas, o som dos gritos de Falenci
passava pelo teto de palha e ecoavam por toda a aldeia. Mas, todos sabiam que depois de várias
luas, ela aprenderia a gostar de sua nova vida.
Muitos, na Aldeia Mel queriam ajudá-la, mas não queriam começar uma briga. Então,
ficaram nas redes escutando os gritos e desejando que Keleewa estivesse lá para impedi-los.
Finalmente, a irmã de Keleewa foi até a casa de Homem de Frutas, tirou a menina do homem
velho e devolveu-a para Rabo de Preguiça .
Mas, na noite seguinte, o homem velho voltou a casa de Rabo de Preguiça e levou Falenci
novamente. Desta vez, Keleewa estava na aldeia. Todos sabiam que ele gostava muito de Falenci
e não escutaria o sofrimento dela a noite toda. Tinham razão. Assim que ouviu os gritos, levantou
da sua rede. Enjoei de falar para este povo e nunca interferir quando não nos ouvem, falou
consigo. Desta vez, irei interferir.
Caminhou direto para a casa de Homem de Frutas, puxou Falenci da rede do homem, e a
levou embora. Se Keleewa fosse um homem Yanomami, teria começado uma briga ali mesmo.
Keleewa levou Falenci para uma minúscula casa que usavam, quando as pessoas
precisavam ser tratadas com medicamentos. Rabo de Preguiça veio correndo para ver o que
estava acontecendo. Quando abriu a porta e entrou, Keleewa sabia que teria que defender seu
direito de interferir.
“Me escute!” Disse a Rabo de Preguiça. “Dei medicamentos a esta menina quando era
bebê. Passei noites com ela, quando queimava de febre. Tenho tanto direito quanto você a dizer o
que acontecerá com ela, e não vou deixar que faça isto. Você não merece ser chamado de pai!”
Suas pequenas partes íntimas estavam cobertas com sangue. Ao ver isto, ambos ficaram
envergonhados. “Você não merece ter uma menina tão boa quanto esta. Ela é uma pessoa
verdadeira. Você gostaria que isto acontecesse com você?”
“Eu sei que está errado”, Rabo de Preguiça disse, “sei que está errado. Sei que você tinha
razão desde o princípio. Sabia disto. Você sabe que eu sei que é errado o que tenho feito com
ela”. Ele queria chorar. “Mas Keleewa é só nisto que tenho errado. Só nesta coisa. Não posso estar
errado em apenas uma coisa? Acerto em todas as outras! Não tem como manter a paz com
Homem de Frutas e sua família se não fizer isto.”

95
Keleewa somente olhou para ele. “Sua ligação familiar com Homem de Frutas significa
tudo para você e Calatina, não é?” Rabo de Preguiça acenou com a cabeça. “Embora tenha razão
sobre as demais coisas, nesta uma coisa que diz ser o mais importante, você está disposto a
errar?”
“Estou errado apenas nesta pequena coisa”, Rabo de Preguiça respondeu. “Apenas esta
vez.”
Keleewa calou-se por um tempo. Então disse, “será que Falenci acha que isto é uma
pequena coisa?” Houve silêncio. Keleewa devolveu-a para Rabo de Preguiça e ele observou o
sangue que saía do seu bumbum e sujava o braço de Keleewa.
“Toda vez que um Yanomami mata para se vingar”, Keleewa disse, “é apenas uma coisa,
apenas uma vez”. Então, saiu.
Rabo de Preguiça carregou Falenci de volta para casa. Sabia que ela nunca entenderia
quanta vergonha ele sentia.
Homem de Frutas estava furioso. Ele, seu pai, Lança e toda a família foram humilhados,
por não conseguirem a pequena menina de Rabo de Preguiça como parente. Viajaram, rio abaixo,
para a Aldeia Boca e reclamaram amargamente.
“Os nabas da Aldeia Mel tem interferido e nos impedido de conseguir a menina que
queremos,” Homem de Frutas falou ao parente que havia tentado possuir Falenci. Todas as
pessoas da Aldeia Boca estavam alegres em ver Homem de Frutas e Lança contra a Aldeia Mel.
“Vamos invadir e roubar a menina.” Todos concordaram. “E levaremos algumas mulheres
enquanto estivermos lá. Eles têm muitas mulheres sadias.” Mas, Homem de Frutas não tinha
certeza se queria lutar contra sua própria aldeia.

Não muito tempo depois, Homem de Frutas foi convidado para jantar com um pequeno
grupo de nabas, na casa deles, no Orinoco. Era uma grande honra. Nabas nunca convidam um
Yanomami para entrar nas suas casas, especialmente para comer com eles à mesa. Então,
Homem de Frutas sentiu o poder de ser uma pessoa muito importante, enquanto caminhava, igual
a um naba, para dentro da casa deles e se sentava para jantar.
Foi cumprimentado amavelmente por M.A., Abelha-Irritante e outro naba que não
conhecia. Como todos nós, Yanomami, Homem de Frutas sabia tudo a respeito de M.A. e Abelha-
Irritante. Chamava-os de antros, pessoas que nos observavam, faziam riscos no papel e tiravam
fotos. Os outros pensavam que sabiam muitas coisas sobre o mundo dos brancos. Pensávamos
que antros eram reconhecidos pelos livros que tinham escrito sobre nós. Alguns índios os
apreciavam, mas Homem de Frutas sabia que quase todos os menosprezavam.
Homem de Frutas comeu e bebeu tudo o que queria e se encheu de orgulho. “Já está
satisfeito?” Os nabas inteligentes perguntaram, quando havia terminado. Homem de Frutas
balançou a cabeça.
“Você gosta da comida dos nabas?” Perguntaram. Ele afirmou com a cabeça. Sabiam que
amávamos a sua comida.
“Seus antepassados não comiam assim, não é?” Homem de Frutas meneou a cabeça.
Então, chegaram à razão pela qual haviam convidado Homem de Frutas.
“Sabemos que você ama seu povo e seus antepassados. Então, por que deixou de ser
como eles? Você é um Yanomami. Porque não pára de ouvir esses nabas da Aldeia Mel e volta
para seus costumes antigos? Se você tem inimigos, ajudaremos a reunir-se com eles para bater
nos peitos e resolverem as diferenças da maneira de sempre. Beber os ossos com eles. Fazer as
festas, que sempre faziam, e todas as coisas que os tornam tão especiais: a pintura do corpo, os
cantos, as danças, as invasões. Voltem a ser um Yanomami de verdade, como eram antes.”

96
Homem de Frutas escutou a conversa. Não havia ouvido tal conversa há muito tempo. Era
bom ser encarado como um Yanomami novamente, e sentar num jantar com nabas e ouvi-los
dizerem coisas boas sobre os seus costumes. Não havia escutado tal conversa desde que
conversara com seus amigos xamãs. Diziam a mesma coisa: “Voltem aos velhos costumes, aos
belos costumes do seu povo”.
E estes nabas brancos estavam certos. Homem de Frutas pensou sobre o problema com
Falenci. A mãe de Falenci, Catalina, era sua irmã. Falenci era neta de Lança. A família deles
tinha o direito de dizer com quem se casaria, e usar porretes se precisassem. Foram os nabas de
lá que causaram o problema. Se Keleewa não tivesse interferido…
Homem de Frutas pensou nisto.
Havia outros Yanomami, naquele jantar, amigos dos nabas. “Temos todas as coisas boas
dos nabas,” disseram, “e ainda temos nossos costumes antigos. Ainda temos nossos espíritos,
tomamos ebene, roubamos mulheres e fazemos invasões. Estas boas pessoas brancas nunca nos
pediram para abandonar nossos costumes. Estas são as coisas que nos fazem ser Yanomami, e
não vamos abandoná-las.”
“Como a sua aldeia pode viver melhor, se abraçam seus velhos costumes?” Homem de
Frutas perguntou.
“Podemos viver das duas maneiras”, responderam. “Se você não tivesse jogado fora seus
espíritos, poderia ser um Yanomami igual a nós, outra vez. Você pode juntar-se a nós.”
Homem de Frutas pensou sobre isto por muito tempo. “Quero ser um Yanomami outra
vez”, ele falou. “Realmente quero. Há uma menina na Aldeia Mel que deve ser dada ao meu
parente. E o velho tem feito todos os rituais de um genro. Ele a ganhou da nossa família e agora
os nabas tem dito ao pai dela para não forçá-la a ir conosco.”
“Está vendo”, eles disseram. “Este não é o costume dos Yanomami. Vá buscá-la da maneira
de sempre. Nunca parem de ser Yanomami.”
“Sei que você tem razão”. Homem de Frutas respondeu. “Não deveria deixar nossos
costumes verdadeiros. Como deixei que as coisas chegassem ao ponto de não termos controle
sobre uma pequena menina?”
“Bem, volte e resolva da maneira de sempre. Roube-a. Se não gostarem, terão que bater
em algumas cabeças.”
Homem de Frutas voltou pronto para lutar. Lança e o resto da sua família concordava com
ele. Embora Lança tivesse deixado seus espíritos, há muito tempo, estava suficientemente furioso
para agir de acordo com alguns costumes antigos. E era justamente o que a Aldeia Boca
precisava. Ainda estavam irados por causa das mulheres que não haviam conseguido da grande
matança, na Aldeia Batata, há gerações.
Quando Homem de Frutas voltou para a Aldeia Mel, achou mais um motivo para lutar.
Havia outra menina que ele e seu pai haviam planejado adquirir para seu irmão, Lábio de
Macaco. Ela tinha sido dada a Viagem. Viagem estava visitando a Aldeia Mel, vindo da Aldeia de
Cabeludo. Tornou-se um bom caçador, porque gastava muito tempo com Cabeludo. Sempre ia
para a Aldeia Mel, por causa de uma menina especial que morava lá. Esperava que ela o notasse
e descobrisse como era um bom caçador. Quando descobriu que gostava dele, Viagem fez muitas
coisas para seus pais a fim de ganhar o direito de ser o genro deles.
Mas Homem de Frutas e Lança a queriam, para Lábio de Macaco, desde que era um bebê.
Eles tinham mais direitos a ela. Eles haviam combinado com seus pais para que Lábio de Macaco
a possuísse. Mas, a menina não queria Lábio de Macaco, pois ela gostava de Viagem, e os pais
dela o deixaram tê-la. Ela e Viagem fugiram juntos e passaram algum tempo na Aldeia de
Cabeludo.

97
Quando Viagem voltou para a Aldeia Mel com sua nova esposa, Homem de Frutas e Lança
estavam prontos para pegar a menina. Houve uma grande discussão. Lábio de Macaco tentou
finalizá-la dizendo, “Se a menina não me quer, não a quero também.”
Mas Homem de Frutas disse, “Não, não! Não podemos fazer isso. O que é que as pessoas
vão dizer a respeito da nossa família, se continuarmos perdendo todas as meninas que queremos,
mesmo tendo direito a elas?”
Acontece que, naquele tempo, Cabeludo estava visitando a Aldeia Mel. Ele deu fim nesta
conversa quando disse, “Independente do que vocês façam, vamos ficar com a menina em nossa
aldeia”. O que ele quis dizer foi, fim de conversa; façam barulho com alguma coisa, sem ser as
suas bocas!
Lábio de Macaco sabia que haveria uma briga, então disse a Viagem, “A menina não me
quer. Vocês irão levá-la, ainda que a deseje. Está bem. Vamos resolver isto usando porretes.
Assim, posso pelo menos dizer que o fiz pagar um preço pela menina.”
Viagem disse, “Bom. Aceitarei um golpe e os outros da nossa aldeia não precisarão se
envolver na briga.” Viagem andou até o centro da aldeia, encostou-se em seu porrete para fincá-
lo no chão, e ofereceu sua cabeça a Lábio de Macaco. Este levantou seu porrete e bateu com toda
a sua força, pá, encima da cabeça de Viagem. Sangue esguichou e Viagem começou a cambalear.
Ele levantou seu porrete do chão para tomar a sua vez. Mas Lábio de Macaco recusou a oferecer
sua cabeça. Foi correndo para as mulheres.
Cabeludo e muitos dos seus amigos da Aldeia Mel se enfureceram diante de tal covardia.
Todos pegaram os seus porretes. Sapato-Pé pulou no meio, gritando, "Porretes não! Porretes
não!"
Quando aquietaram, o pai da menina caminhou para o meio do gramado e todos pararam
para ouvi-lo. Mesmo morando na Aldeia Mel por muito tempo, ele nunca havia mudado a nossa
verdadeira maneira de fazer as coisas. Nunca havia escutado os nabas. De todas as pessoas da
Aldeia Mel, gostava mais dele. Chamavam-no de O-Feroz. Poucos Yanomami conseguiam este
nome. Ele o merecia. O-Feroz era famoso por sua habilidade de levar um golpe na cabeça, e
devolver o mesmo.
Ele disse a Homem de Frutas, “Esta confusão é somente entre eu e você. Não precisa
envolver outra pessoa. Você é o problema aqui. Foi você que começou tudo. Estou contente com
Viagem. Minha filha está contente com ele. E Lábio de Macaco está satisfeito. Só resta você.” O-
Feroz fincou seu porrete no chão. “Pronto”, disse oferecendo sua cabeça. “Bata em mim. Pode me
bater três vezes. Depois baterei em você três vezes.”
Todos ficaram quietos quando ouviram a conversa de O-Feroz. Três golpes de uma vez,
ninguém jamais agüentaria isso. Homem de Frutas sabia que seria tolo se aceitasse tal desafio.
“O naba Pepe, me falou, há muito tempo que tenho uma doença da qual poderia morrer se
não deixasse de lutar”, ele disse. Todos sabiam que não poderia sobreviver aos três golpes na
cabeça, de O-Feroz. Então, Homem de Frutas virou para seu outro irmão, Olhos de Chumbo.
“Você é jovem e forte. Pode levar três golpes”. E empurrou-o para o meio, na direção de O-Feroz,
que ainda estava oferecendo sua cabeça e esperando por alguém que tivesse coragem de bater
nele.
“E quando terminar com você”, O-Feroz gritava, enquanto oferecia sua cabeça, “você
nunca mais voltará.”
Olhos de Chumbo sabia que não deveria. Mas todas as mulheres estavam chamando ele e
seus familiares de covardes. Ele não podia sair dessa. Então, levantou seu porrete. Mas as
pessoas da Aldeia Mel não tinham idéia de quão covarde ele era. Olhos de Chumbo girou seu
porrete e golpeou brutalmente O-Feroz em cima da orelha. Era o golpe mais covarde que já
haviam visto. Golpes de porretes sempre têm que atingir o topo da cabeça. Alguém pode morrer
com um golpe no lado. Apenas um covarde daria um golpe na orelha. Era um golpe que dizia
“vamos fazer guerra”.
98
Mas, O-Feroz não levantou um dedo. Sangue esguichava do lado da cabeça dele. Antes
que Olhos de Chumbo pudesse levantar seu porrete para dar outro, o cunhado de O-Feroz bateu,
para vingar-se, na sua cabeça. O golpe foi tão violento que seu porrete de madeira abriu a cabeça
de Olhos de Chumbo desde a testa atravessando o topo e descendo, até a nuca. Dava para ver o
osso da cabeça dele.
Olhos de Chumbo caiu de joelhos. Levantou-se. Caiu novamente. Levantou-se e caiu.
Voaram porretes em todas as direções. A família de Homem de Frutas correu. Sapato-Pé
gritou, “Porretes não! Porretes não! Já bateram neles o bastante! Já os fizeram sofrer o
suficiente!” Algumas pessoas da família de Homem de Frutas estavam prontas para pular no rio
para escapar.
Olhos de Chumbo finalmente cambaleou e colocou-se de pé. “Consiga vingança por mim!
Consiga vingança por mim! Estou ferido!” Homem de Frutas viu o caroço enorme no lado da
cabeça de O-Feroz. Mas, ele parecia que havia apenas começado a levar os golpes. Homem de
Frutas sabia que ele não podia agüentar um golpe assim. E sabia que O-Feroz podia bater com o
dobro da força de Olhos de Chumbo.
Homem de Frutas silenciosamente meneou a cabeça. Sangue escorria pelo rosto de Olhos
de Chumbo e descia pelas costas. Ele estava furioso. “Consiga vingança por mim!” ele gritou.
Homem de Frutas não pôde olhar para a cabeça de seu irmão. Apenas olhava para baixo e
meneava a cabeça.
Olhos de Chumbo andou até o rio e entrou em sua canoa. Sua cabeça ainda estava
esguichando sangue, enquanto remava na direção da Aldeia Boca. Durante o resto do dia,
remaria ao sol quente, a procura de alguém que o ajudasse a se vingar.

99
O FIM: 1982

NINGUÉM É TÃO ESTÚPIDO

CAPÍTULO 11

ELES PENSAM QUE SOMOS ANIMAIS

Agora você conheceu a história que estava por trás da briga que lhe falei, bem no início, e
entendeu que uma longa história precede cada uma das brigas. Assim que Olhos de Chumbo
chegou na Aldeia Boca, todos, da aldeia, voltaram com ele, para resolver o problema com
porretes, talvez até com arcos e flechas. Esta é a briga que contei no começo. Agora estou pronto
para contar-lhe o restante do que aconteceu, naquela manhã, no gramado da Aldeia Mel. Estou
muito contente com isto. Estou contente, porque meus espíritos estão contentes. Estão alegres,
porque os nossos velhos costumes, do mundo dos espíritos, se encontrarão, finalmente, com os
novos costumes da Aldeia Mel. Mas, desta vez, não será um encontro como sempre temos, meus
espíritos se chateando e eu ficando irritado. Este encontro será do jeito que sempre quisemos:
porretes talvez, talvez até arcos e flechas. Hoje não é uma guerra Yanomami normal. É uma
guerra entre guerreiros que querem conservar seus velhos costumes e os pacificadores que
querem exterminá-los.

Quando os guerreiros da Aldeia Boca se colocaram em formato de meia-lua com seus


porretes a postos, parecia uma guerra Yanomami normal por duas meninas. Quando Osso da
Perna, um lutador com muita experiência, se aproximou do centro e Não-Cresce também, parecia
uma vingança normal. Mas, todos sabiam que havia uma necessidade de vingança, desde a
invasão na Aldeia Batata, quando nossos parentes da Aldeia Boca não conseguiram nenhuma das
mulheres.
Deemeoma, agora avó, se colocou com as outras velhas e observava seu genro, Não-
Cresce, acertar vários golpes na cabeça do guerreiro experiente. Ela havia assistido estas brigas
desde quando era criança. Observou Não-Cresce e questionou se este dia traria de volta toda a
sua aflição. Ela era velha demais para sofrer aquele tipo de dor novamente. Relembrou do corpo
da sua mãe deitado na terra e do seu pai sentando no sangue. Até nos seus sonhos, ela ainda
não o alcançava, por causa de todas as flechas.
As lágrimas desceram.
Pude sentir, através de meus espíritos, que havia muito mais coisas por trás desta batalha.
Embora não estivesse lá, podia sentir tudo. Eram os velhos costumes contra os novos. Eram os
nossos velhos espíritos, os que Sapato-Pé tinha jogado fora, contra o novo deles . O povo da
Aldeia Boca tinha muitos dos meus espíritos. Como poderiam os nossos espíritos, que amam
guerrear, perderem da Aldeia Mel, sendo que o espírito deles, Yai Pada, não gosta de lutar?
Havíamos lutado antes, mas nunca como desta vez. Lança, Homem de Frutas e suas
famílias, que haviam jogado fora os nossos espíritos, haviam retornado aos velhos costumes.
Estava faltando apenas Olhos de Chumbo. Ele estava doente por causa dos ferimentos de dois
dias antes.
Lança se colocou atrás dos guerreiros da Aldeia Boca com seus braços cruzados sobre seu
arco e flechas. Ele observava todos do lado da Aldeia Mel, especialmente Cabeludo. Sabia que
Cabeludo não era pacificador. Ele mataria logo que alguém ficasse agitado.

100
Homem de Frutas observou um guerreiro da Aldeia Boca dando um passo à frente para se
encontrar com seus parentes e amigos da Aldeia Mel. Era uma coisa nova para ele e Lança,
tomar o lado dos costumes antigos dos espíritos da Aldeia Boca. Mas a guerra não foi bem
sucedida para a Aldeia Boca. Eles não deveriam ter achado graça dos pequenos porretes da
Aldeia Mel. Cada guerreiro da Aldeia Mel: Não-Cresce, Cabeça-Grande, Vesgo, Pé-Rijo, e
finalmente Viagem, distribuiu a mesma quantidade de pá-pá-pá-pá-pá na cabeça dos guerreiros da
Aldeia Boca, antes que pudessem dar um bom golpe com seus grandes porretes. Todas as suas
cabeças estavam sangrando.
Mas, os nossos espíritos estavam mais interessados em apenas reconquistar a Aldeia Mel.
Mais do que qualquer outra coisa, queríamos trazer, a Aldeia Mel, de volta aos velhos costumes, às
lutas, a beber ossos, às invasões. Então, quando o filho de Nublado, Osso da Perna, se aborreceu
e deu um golpe na mãe de Rabo de Preguiça, abrindo seu couro cabeludo, ele atirou uma flecha.
Sabíamos que estávamos de volta aos velhos costumes. Nada poderia fazer com que os nossos
espíritos dançassem mais.
A flecha de Rabo de Preguiça foi solta antes que alguém pudesse pará-la. Ele nunca havia
atirado numa pessoa antes. Mas, quando esta partiu do seu arco, sabia exatamente o que
significava. Mataria aquele covarde que havia batido em sua mãe e lançaria a aldeia em sua
primeira guerra. E ele sabia disso, pois atirou perfeitamente, na direção entre os dois ossos do
ombro do covarde. Estamos de volta aos velhos costumes e nada impedirá isto, pensou. M.A. e
seus amigos conseguirão o que desejavam . Estamos em guerra.
“Isso Não! Flechas não! Nenhuma flecha! Nenhuma flecha! Nenhuma flecha!” Sapato-Pé
correu ao meio, gritando, antes que a flecha acertasse o seu alvo. Mesmo que os xamãs
estivessem irritados com o espírito inimigo de Sapato-Pé, ainda sabíamos que era nosso amigo, o
amigo de todos. Foi assim que conseguiu o nome de Nenhuma-Dificuldade, na Aldeia de Tucano e
Não-Agarra-Mulheres na Aldeia de Homem-Baixo. E neste dia, ainda que tivesse as armas em
mãos para proteger sua família, ficou de braços estendidos, gritando pela paz.
Homem de Frutas sabia que a flecha de Rabo de Preguiça significava que ele estava numa
guerra com seus amigos mais íntimos. Desejou saber se deveria ter escutado M.A. e toda aquela
conversa sobre os nabas.
Então, uma coisa muito estranha, como nunca havia visto, aconteceu. Sei que meus
espíritos nunca teriam feito isto. Atrás de Osso da Perna, estava outro guerreiro da Aldeia Boca
que atirou seu porrete, enquanto a flecha de Rabo de Preguiça voava. No caminho, o porrete e a
flecha se encontraram. O ponto envenenado bateu no centro do porrete e o lascou em pedaços.
O porrete salvou Osso da Perna da morte certa.
De repente, os porretes desapareceram e todos ficaram com seus arcos preparados.
Sapato-Pé gritava no meio dos guerreiros, “Flechas não! Flechas não!” Gritava vez após
vez. Suas mãos seguravam um arco e flechas, mas elas não estavam em posição de atirar.
Ninguém nunca entendeu como os adquiriu tão rapidamente.
A Aldeia Mel tinha o maior número de guerreiros. Uma matança seria fácil. E os guerreiros
da Aldeia Mel queriam fazer isto. Apenas Sapato-Pé segurava o seu povo para não lançarem suas
flechas.
“Prossigam! Seus covardes!” Um dos jovens guerreiros da Aldeia Boca gritou. “Por que não
prosseguem e nos matam? Suas mulheres queimarão alguns de vocês também. Asseguramos
isso!” Ele tinha razão. Cada guerreiro da Aldeia Mel estava disposto a pagar o preço de ver alguns
mortos para ver a Aldeia Boca completamente destruída.
Com seus gritos, Sapato-Pé conseguiu impedir que os guerreiros da Aldeia Boca atirassem.
Lentamente eles se afastaram, em direção ao rio, com seus arcos preparados. A ira deles foi
apaziguada um pouco pela paulada na mãe de Rabo de Preguiça. Talvez ela morreria. Sem dúvida,
isso começaria uma guerra. A ira da Aldeia Mel também foi apaziguada, um pouco, quando Rabo
de Preguiça mostrou que eles também podiam matar.
101
No rio, eles faziam muito barulho e todos falavam de uma só vez.
“Espere até a próxima.”
“Eles tinham o pó do espírito nos seus porretes.”
“Eu não estava com medo. Por que você não bateu com mais força?”
“Eu teria feito melhor, mas o homem que bateu em mim tinha um espírito poderoso.”
Homem de Frutas e Lança estavam quietos. A intenção deles não era que alguém fosse
morto. Homem de Frutas desejou saber se ele realmente queria os velhos costumes de volta. Mas
os velhos costumes eram a única maneira dele conseguir as mulheres que queria, para a sua
família.
“O que faremos agora, Homem de Frutas?” Alguém o despertou dos seus pensamentos.
Homem de Frutas meneou sua cabeça. “Falarei com M.A. e os outros antros novamente.
São eles que nos falaram que os velhos costumes eram bons. Eles devem saber como impedir
Keleewa de se meter no meio e criar confusão. Talvez tenham mais experiência nestes costumes.”

Na Aldeia Mel, Keleewa e suas irmãs cuidaram da mãe de Rabo de Preguiça. Todas as
mulheres a rodearam e começaram a lamentar.
“Sem dúvida, ela está morrendo.”
“Foi uma paulada terrível.”
“Ninguém poderia sobreviver a isso.”
Lamentavam coisas que a faziam pensar que estivesse morta, mesmo não estando.
Keleewa e suas irmãs podiam ver que ela não iria morrer. Costuraram seu couro cabeludo.

Alguns dias depois, todos, na selva, falavam apenas sobre uma coisa: o avião do governo
estava chegando na Aldeia Mel para levar Keleewa e prendê-lo por assassinato. No princípio,
ninguém sabia por que. Mas, depois soubemos que era por causa de uma história que Homem de
Frutas tinha lhes contado. Algumas estações anteriores, Keleewa tinha levado o filho de Homem
de Frutas aos médicos, na grande aldeia dos nabas. Eles não puderam ajudá-lo e o menino
acabou morrendo. Agora, ele estava usando esta história para se vingar da Aldeia Mel. Os
Yanomami estavam furiosos por terem feito isto ao nosso Keleewa.
Apesar de meus espíritos não se sentirem confortáveis com o espírito de Keleewa, sabia
que ele era meu amigo. Então, nós, os índios, perguntávamos a nós mesmos, “Os nabas estão
loucos?” Sabíamos que Keleewa nunca tinha matado ninguém. Quem falaria tal coisa?
Mas também sabíamos que os nabas eram estúpidos. Há muitas estações temos visto eles
entrando em nossas terras e quando pensamos que serem muito inteligentes, começam a nos
copiar?
Quando o avião do governo entrou em nossa terra, pousou no Ocamo para abastecer,
porque lá tinha uma pista de pouso para os aviões grandes. A Aldeia de Lábio de Tigre ficava
próxima à pista.
Quando soube da notícia, disse ao seu povo, “Keleewa foi uma grande ajuda para nós,
durante a sua vida toda. Não vamos permitir que o levem embora. Quando o nabas pousarem,
vamos armar uma emboscada na pista, matar os guardas, e levar Keleewa. Então, levaremos
nossa aldeia em wyumi e desapareceremos com ele na selva. Nunca nos acharão.”
Lábio de Tigre e os guerreiros acharam um esconderijo na entrada da selva. Sabiam o local
onde o avião pousaria.

102
Quando os guardas vieram para a Aldeia Mel, todos, na aldeia, começaram a lamentar pois
levaram Keleewa no avião deles. Os nabas disseram, “Pensamos que ele voltará.”
Quando o avião decolou da Aldeia Mel, Lábio de Tigre tinha seus guerreiros a espera no
Ocamo. Mas, desta vez o avião do governo deu a volta, em outra direção e não foi para o Ocamo.
Levou Keleewa diretamente para a grande aldeia dos nabas. Todos da Aldeia de Lábio de Tigre
ficaram tristes por não conseguir salvá-lo.
Keleewa ficou na prisão dos nabas durante muitos dias e adoeceu lá. Pelo fato dos nabas
não falarem Yanomami, levou muito tempo para saberem de nós que ele era nosso amigo e não
um assassino. Quando ele, finalmente, voltou para a Aldeia Mel, fizemos uma grande festa.
Cabeludo desceu o barranco do rio Sangue quando ouviu o barulho do motor. O chamamos
de Rio Sangue porque sempre está tão cheio de terra vermelha que parece que uma piranha
comeu algo. Era Keleewa, vindo para ver o novo local que Cabeludo havia escolhido para mudar
com sua aldeia. Queriam ficar mais perto da Aldeia Mel. Este seria um bom lugar, pensou
Cabeludo. As pessoas da Aldeia Mel poderiam vir para cá, pelo rio. Agora, nos visitarão
freqüentemente.
Parou no barranco e pensou que isto melhoraria tudo. Foi errado matar aquela menina.
Eu mesmo roubei o meu sono. Ele meneou a cabeça. Ela era uma pessoa agradável; apenas não
gostava de mim. Não era culpa dela não gostar de mim. Ainda podia ver o olhar de Flor-Amarela,
sua cabeça presa ao chão enquanto se agachava, com um pé em cada vara, prendendo o
pescoço dela. Ele a tinha visto cara a cara, naquela época e agora, a via tão nitidamente,
embora, tudo acontecera há mais de uma geração.
A canoa de Keleewa se aproximou à beira e eles estavam alegres em se ver. Viagem
também foi. Ele nunca perdia uma oportunidade de visitar seus familiares. Junto com Viagem e
Keleewa estava um naba branco, que eles tinham nomeado de Não-Erra, depois que atirou num
ganso e em alguns macacos no caminho, perto da Aldeia de Cabeludo. Amarraram suas redes no
tapirí, ao lado de Cabeludo e o naba começou a fazer muitas perguntas estranhas.
Cabeludo não tinha visto muitos nabas, e quase nenhum deles falava. Então, cada vez
que o homem falava, Keleewa tinha que contar para Cabeludo o que dizia. Então, ele tinha que
falar para Não-Erra o que Cabeludo falava. Esta conversa levou muito tempo.
“O naba quer saber por que você quer mudar a maneira de viver aqui na selva,” Keleewa
disse para Cabeludo depois que Não- Erra havia falado.
Cabeludo se surpreendeu com a pergunta. “Porque somos miseráveis. Somos miseráveis o
tempo todo. As pessoas da Aldeia Mel vieram aqui e fizeram paz conosco, há muitas estações, e a
aldeia deles só tem melhorado. Queremos isto para nós. Se isso significa que temos que jogar
nossos espíritos fora e adquirir novos, faremos isto. Mas, precisamos de alguém para nos ensinar
estes novos costumes.”
Cabeludo não tinha espíritos, porque não era um xamã. Mas, seguia tudo o que os
espíritos falavam para o xamã dele. Sabia que os meus espíritos se irritariam se Cabeludo deixasse
de segui-los. Ninguém que matava com tanta freqüência e por tanto tempo, como Cabeludo,
poderia parar.
“O naba disse, que muitas pessoas pensam que você não quer alguém para lhe ensinar os
novos costumes,” falou Keleewa. “Você quer apenas a mercadoria que eles trazem.”
“Se você pensa assim, então, só envie índios para nos ensinarem,” Cabeludo respondeu.
“Não queremos qualquer naba e nem as suas mercadorias. Alguns não são nada bons. Diga a ele,
Keleewa, o que aconteceu na aldeia do meu primo em Ocamo.”
Keleewa contou a história; todos a conheciam. O primo de Cabeludo, Wabu, mora no
Ocamo, além da Aldeia de Lábio de Tigre. Eles queriam que um naba viesse morar na aldeia
deles, para lhes ensinar os novos costumes. Então, ficaram entusiasmados quando um veio visitá-
los.
103
“Voltarei para morar com vocês e os ajudar, se construírem uma casa para eu morar,” o
novo naba falou. Finalmente o sonho deles se realizaria, pois haveria um naba para suprir todas as
coisas que tanto precisavam. Construíram-lhe uma boa casa de palha ao lado do shabono. E o
naba falou a verdade; pois voltou.
Mas, quando chegou na aldeia, seu barco estava quase vazio. Todos ficaram desapontados.
“Que valor é tê-lo aqui se não tem nada do que precisamos?” Um dos homens perguntou a Wabu.
“Deve levar tempo para trazer as outras coisas para cá”, Wabu disse. Não se preocupe.
Eles virão em outro barco.” Mas, o outro barco nunca veio.
Quando o naba partiu, rio abaixo, Wabu falou ao seu povo que desta vez, ele certamente
traria as suas coisas. Mas, não tinha nada. “Da próxima vez trará as coisas dele”, Wabu disse. “Ele
tem que ter outras coisas. E poderemos trabalhar por elas.”
Cada vez que ele voltava, todos vinham para o rio, para ver o que tinha trazido. Sempre
ficavam desapontados. As mulheres reclamavam amargamente. “Como vamos conseguir os
remédios que precisamos para os nossos filhos, se ele nunca traz nada? Tudo o que traz são
coisas que nabas usam para fazer suas riscas. Que valor tem isso?”
Mas, o que enfurecia as mulheres era que sempre que seus filhos adoeciam, o naba só
observava o xamã trabalhando na criança. Ele nunca ajudava. Apenas ficava lá e observava e
fazia riscas no papel.
Sempre que uma criança piorava, ele nunca fazia nada. Finalmente a criança morria. Mas,
ficava lá, apenas observando todos lamentando com tristeza. E fazia riscas.
Não demorou muito e todos na aldeia concordaram; ele era inútil. Então, os líderes
deixaram de proteger a casa dele, enquanto estava fora. Wabu e seus amigos entraram na casa e
comeram a comida do naba.
Quando o homem branco voltou, ficou vermelho de raiva. Gritou com todos na aldeia.
Mas, quando partiu, Wabu e seus amigos desfrutaram novamente da sua comida. Pensaram que
seria a única coisa que conseguiriam deste naba. Outra vez, ficou vermelho de raiva e gritou com
todos.
Wabu e seus amigos foram generosos com a comida do naba, todas as vezes que ele
estava fora. Finalmente, o naba disse que algo terrível aconteceria às pessoas, se continuassem
roubando a sua comida. Wabu estava com medo, por isso ficou longe da casa do naba. Mas, um
dos seus amigos se recusou a isso.
“Se este naba continua morando em nossa aldeia e não nos ajuda, então, vou dificultar
tanto sua vida que ele partirá,” o menino disse a todos. E continuou com o hábito de se alimentar
com a comida do naba, até descobrir quem era.
O naba ficou furioso. Ele gritou com o amigo de Wabu, que apenas ficou deitado na rede
rindo dele. A risada só piorou a situação.
“Se arrombar a minha casa mais uma mais vez, você morrerá?” o naba gritou, com as
veias do seu pescoço saltadas. A ameaça preocupou todos, na aldeia. Decidiram que o melhor
plano seria mudar a aldeia de lugar e deixar o naba sozinho. Advertiram o menino para parar de
ir à casa do naba.
“Se o naba vai morar nesta aldeia e continuar sendo inútil”, o menino lhes falou, “vou irritá-
lo até que ele parta. Por que nós temos que partir?”
“Não temos nenhuma idéia de quão poderosos são os seus parentes,” o líder da aldeia
disse. “Como pode continuar irritando-o?”
Uma noite, enquanto o naba estava fora, o silêncio foi quebrado por gritos, fora do
shabono. Todos os guerreiros agarraram seus arcos e flechas e correram para a entrada, na
expectativa de uma invasão. Lá fora da casa do naba estava o amigo de Wabu no chão, se

104
contorcendo e gritando, “Ele me matou! Mamãe, ele me matou! O naba me matou! Usou a magia
para me envenenar!” Ele tinha arrombado a casa do naba e comido sua comida. Entretanto, desta
vez, o naba estava preparado para ele.
Não havia nada que o xamã pudesse fazer. Ele gritou por um tempo até que morreu.
Wabu e seus parentes queimaram o corpo, lamentaram, e aguardaram a volta do naba. Mas, ele
nunca voltou.
Quando Cabeludo viu que Keleewa havia terminado de contar a história, explicou
novamente. “Não queremos qualquer naba. Precisamos ser ensinados com os novos costumes.
Queremos o tipo de mudança que aconteceu na Aldeia Mel.”
Não-Erra falou durante um tempo com Keleewa. Keleewa deu uma pausa e pensou em
como dizer o que o naba havia falado. Então, contou a Cabeludo, “Ele disse que há muitas
pessoas na terra dele que pensam que não deveríamos estar aqui ajudando vocês. Dizem que
vocês estão contentes aqui na selva e que devemos deixá-los em paz. Ele quer saber o que um
assassino experiente, como você, diria a eles.”
Cabeludo ficou ainda mais sério. “Eu digo a você, por favor não escute o que as pessoas
dizem. Precisamos tanto de ajuda. Somos tão miseráveis aqui e a nossa miséria nunca pára.
Continua noite e dia. Aquelas pessoas pensam que não sentimos nenhum tipo de dor quando os
bichos nos mordem? Se elas pensam que este lugar na selva é tão feliz, por que não se mudam
para cá, para desfrutar desta vida tão bonita conosco?”
Não-Erra ficou quieto. Então, ele saiu da rede e caminhou em direção ‘a canoa para buscar
algumas das suas coisas. Quando se distanciou, Cabeludo disse a Keleewa, “Ele é estúpido? Ele
não tem olhos? Não pode ver estes tapirís, que chamamos de casas? Não nos vê vagando pela
selva todos os dias, à procura de comida que não existe, porque estamos morrendo de fome? Não
pode ver que a nossa aldeia quase desapareceu e que esta mudança que estamos fazendo agora,
é nossa última esperança de vida?”
Keleewa demorou em responder. Sabia que Cabeludo não entenderia o que estava prestes
a dizer.
“A maior parte dos nabas pensa como ele,” Keleewa disse a Cabeludo, e meneou sua
cabeça, pois sabia que não poderia explicar porque pensavam daquela maneira.
“Ninguém pode ser tão estúpido,” Cabeludo falou asperamente. E ficou quieto por algum
tempo. “Eles devem nos odiar. Eles pensam que somos animais.”
Keleewa não sabia o que dizer. Deitaram-se nas redes em silêncio. Ninguém viu as
lágrimas nos olhos de Keleewa. Talvez, não deveria ter repetido as palavras do naba a Cabeludo.

105
CAPÍTULO 12

POR QUE VOCÊS NÃO VÃO EMBORA?

A neta de Deemeoma está crescendo e as crianças acham graça da sua mancha preta no
rosto. Treinei Fredi para ser um xamã e ele mora na Aldeia Esquecimento. O povo da Aldeia de
Cabeludo se adaptou no novo local. Homem de Frutas e Lança perceberam que foram enganados
por M.A. e os outros nabas. Eles se separaram da Aldeia Boca e voltaram para seus parentes e
amigos da Aldeia Mel. Foram bem recebidos e sem nenhuma briga.
Um de meus filhos morreu nesta estação. É um tempo horrível para mim, tão ruim quanto
a morte de uma das minhas esposas. Ela morreu há muito tempo e nunca lhe falei porque sempre
me entristeço em falar. Naquele tempo fomos para a Aldeia Mel lamentar com Sapato-Pé. Agora
o visitamos com maior freqüência porque sobrou pouco da minha família.
Estou muito bravo com meus espíritos por causa disto. “Por que não me ajudaram?”
muitas vezes pergunto à Onça enquanto deito em minha rede e observo minha única esposa
fazendo o seu serviço. “Dê uma olhada por aqui. Não temos nada. Nossa aldeia que era enorme,
agora é tão pequena que só resta eu, meu filho e nossas esposas. Que valor tem o meu filho?
Ele tem aquele espírito inútil do veado. Quando chega alguém em nossa aldeia, meu filho parte
durante dias. O meu coração se entristece por causa do meu filho. Lamentarei muito quando ele
morrer. Mas o que perderei? Ele é inútil.”
“Temos feito o nosso melhor por você. Por favor, não nos jogue fora, pai,” Espírito da
Onça sempre me diz isso. É apenas isto que fazem quando reclamo. Imploram para não jogá-los
fora. Enquanto imploram, mudo minha atenção para Encantadora. Depois de todas estas
estações, ela não envelheceu nada. É tão jovem e bonita como no primeiro dia que veio a mim.
Mas, estou mais velho agora, e que bem esta mulher tem feito para mim? “Não os jogue fora,”
ela implora. “Falarei com eles e saberei por que as coisas não estão indo bem.” Ela fala com eles,
mas nada melhora, e continuo com uma família bem pequena e um filho com um espírito horrível.
Estou quase sempre chateado.
Enquanto passam as estações, os antros escrevem mais livros sobre o nosso povo e muitos
nabas estão vindo. Alguns de nosso povo, que haviam ido para a aldeia dos nabas, dizem que
eles vendem fotografias das nossas mulheres nuas. Todas as que são suficientemente ricas usam
roupas. Mas, os nabas apenas compram fotos de mulheres sem roupas.

Depois de muitas luas, Homem de Frutas subiu o Rio Orinoco até Mavaca. Lá encontrou-se
com César, um índio Yanomami com muita influência no mundo lá fora.
“Por que vocês, da Aldeia Mel, são tão diferente do resto de nós?” César perguntou.
“Porque queremos ser,” Homem de Frutas respondeu. “Por que não podemos ser
diferentes se queremos ser?”
“Porque você não é mais Yanomami, é por isso,” César respondeu asperamente. “Os
velhos costumes são bons. Temos aprendido tanto com os nabas que passaram por aqui e nem
por isso deixamos nossos velhos costumes. Os costumes deles se dão bem com os nossos.”
“Como?” Homem de Frutas desejou saber.
“A bebida nas latas,” César disse. “Ela nos faz feliz igual ao ebene nos faz. Até alguns
xamãs usam. E veja quantas espingardas temos. Precisamos ser um grande caçador para matar
pessoas com arco e flechas, mas com estas armas dos nabas, qualquer bobo pode matar. Se a
sua aldeia se unisse com a nossa numa invasão, poderíamos exterminar qualquer um. Venha
106
aqui, um dia, com seus parentes da Aldeia Mel e faremos uma festa, beberemos ossos, nos
pintaremos e roubaremos algumas mulheres. Será um tempo maravilhoso, e eu bem sei que
todos os seus parentes aqui ficarão alegres em vê-los de volta.”
Homem de Frutas olhou para César. Esta era a mesma conversa que tinha ouvido de M.A.
e dos outros nabas. A mesma conversa que ouvira do seu pai, Lança, e de outros grandes xamãs,
antes deles jogarem fora os seus espíritos. Este homem realmente vai me atrapalhar. Homem de
Frutas pensou. Ele nunca esqueceu da briga que iniciou por causa de Falenci e Viagem e quão
próximo estiveram de uma guerra.
“Dê uma olhada ao seu redor, na sua aldeia,” Homem de Frutas disse a César. “Você
gosta do que vê?” César observou o mato que invadia, ao redor das casas. E todo o lixo que já
estava coberto pelos cipós. Bebês engatinhavam na sujeira, esfregando-a nos olhos e na boca.
Toda a sujeira se misturava com o catarro dos narizes, e esta mistura cobria seus rostos.
“Como você pode dizer que vivemos na miséria por causa daquilo que temos aprendido
com os nabas?” Homem de Frutas continuou. “Use seus olhos, César. Nós é que vivemos na
miséria. Você fala que aprendeu tudo com os nabas, mas o que é que tem para apresentar? Você
vive aqui, como os animais. É a mesma vida miserável que vivíamos quando estávamos no mato,
em wyumi.”
Homem de Frutas desceu, de volta ao rio Orinoco e subiu o Padamo, em direção a Aldeia
Mel. O nível da água era tão alto que ficou perto da beira, fora da correnteza. Não pôde deixar de
pensar nos nabas que queriam que ele mantivesse os velhos costumes. Parece que eles gostam
de nossos costumes tanto quanto nós, pensou, talvez até mais. Quando nos visitam, olhamos
para eles e queremos nos tornar como eles. Mas, depois que passam um tempo conosco, se
tornam como nós. E até pior. Não posso entender uma pessoa inteligente querendo mastigar
nosso tabaco e tirar as suas roupas para nos copiar?
No meio do caminho para casa, ele fez a curva e o sol refletiu na água, em frente ‘a sua
canoa. Lembrou-se do tempo que sua mãe, Partes-Íntimas-Ruidosas, fora visitar a Aldeia de Lábio
de Tigre. Ela foi recebida, fora da aldeia, pelos antros. “Estamos filmando os Yanomami com as
nossas filmadoras,” disseram, “e você tem que tirar a sua roupa para que se pareça com um
verdadeiro índio.” Ao seu redor, o povo estava abaixando as calças e saias, porque o naba
ordenara. Ela não tirou as roupas e eles se aborreceram.
Homem de Frutas fez outra curva e passou, gradativamente, pela mata que estava sobre o
rio. A folhagem densa, à sua frente, o fez lembrar dos espíritos que seguira, quando morava
dentro da selva. Por que, ele se perguntou, é que os nabas, que quase não sabem falar e nem
mesmo conhecem os espíritos, dizem a mesma coisa que os espíritos dizem? Às vezes, usam até
as mesmas palavras.
Homem de Frutas estava pensando sobre Barbudo, quando sua canoa encostou na
margem da Aldeia Mel. Barbudo era um naba que morava numa aldeia distante, ele ajudou o
povo de lá e disse que ensinaria novos costumes e coisas sobre o grande espírito. Enquanto
estava lá, decidiu tomar uma menina como esposa. Ela não o queria, mas depois de dar presentes
a seus pais, forçaram-na a ir com ele.
Depois de um tempo, acostumou-se com ele, como todas. Mas, cada vez que a
maltratava, corria para a casa da mãe. Então, ele a buscava e o problema começava outra vez.
Uma vez, ela se debateu muito e Barbudo não pôde vencê-la. Todos, na aldeia, se
juntaram e riram dele, porque não tinha força suficiente para controlar a menina. Quando se
livrou dele e começou a correr, tentou acertá-la com o facão, para pará-la. Mas, pegou na nuca e
ela caiu, esguichando sangue. Barbudo se aproximou para ajudá-la, mas os parentes dela o
encheram de flechas. Ele caiu, mas seu corpo nunca tocou o chão, pois ficou apoiado pelas
flechas, que saiam dele.
Homem de Frutas deu uma olhada ao redor da Aldeia Mel, enquanto entrava. Voltar aos
velhos costumes? Ele pensou. Nunca cometerei este erro novamente.
107
Cada vez que ia com minha esposa visitar Sapato-Pé, passávamos pela Aldeia
Esquecimento, onde Fredi morava. Um de meus velhos amigos, chamado Quente, morava lá. Ele
havia ajudado a capturar Fredi e o tinha defendido, para mantê-lo vivo. Ele e sua esposa tiveram
uma menina bonita. Até os nabas notaram quão bonita era Yawalama. Quando visitavam a
Aldeia Mel, ela pulava no colo de Keleewa e ele falava dos seus olhos grandes e bonitos. Quando
meu amigo prometeu dá-la a Pé-Comprido, seu irmão mais velho, Raul, ficou bravo.
“Você não pode! Raul disse aos seus pais. Ele bate na esposa que tem. Você quer ver
Yawalama abusada, do jeito que ele abusa da esposa, Yoshicami?” Raul amava sua bela
irmãzinha.
“Ele é um grande caçador e provedor. Precisamos da carne que ele poderá caçar, na nossa
velhice,” disseram-lhe.
“Caçarei para vocês,” ele discutiu. “Yawalama nunca o desejará, quando crescer. Ninguém
o quer. Ele é tão malvado. Tem que esperar até que um outro a busque”. O shabono era
pequeno. Todos sabiam da discussão. Ninguém, na aldeia, queria ver Yawalama sofrer.
Raul ficou triste, quando seus pais começaram a aceitar a carne de Pé-Comprido, em troca
do direito de tê-la em casamento, depois que crescesse. Raul ficou amargurado. Ele não
planejou permitir que sua irmã fosse levada por Pé-Comprido.
Então, Yoshicami ficou muito doente. Chamaram-me, mas até meus espíritos não puderam
fazer com que ela melhorasse. Até então, eu já era velho e não curava mais. Então, chamaram o
pai de Yawalama, Quente, que era um xamã. Mas, seus espíritos não ajudaram também.
Então, Pé-Comprido levou Yoshicami para a Aldeia Mel. Quando chegaram lá, ela estava
escarrando sangue. Os nabas de lá disseram que ela poderia ter uma doença ruim, que
chamavam de têbê, e teriam que levá-la numa longa viagem para a aldeia dos nabas, para
tratamento.
Então, Pé-Comprido foi com Yoshicami para a aldeia dos brancos, em Esmeralda e ficou lá
enquanto os médicos trabalhavam nela. Mas, demorava para melhorar e Pé-Comprido ficou
impaciente e disse aos médicos que a deixassem ir para casa. Quando voltaram para a Aldeia Mel,
o naba médico fez com que as pessoas brancas de lá explicassem a eles que ela tinha que
terminar de tomar os seus medicamentos, ou a doença a mataria. Pé-Comprido decidiu ficar na
Aldeia Mel com ela, até que terminasse de tomar todos os medicamentos.
Mas, levou muito tempo, e Yoshicami não melhorava. Escarrava sangue freqüentemente e
parecia que poderia morrer. Pé-Comprido pensava que ela jamais melhoraria. Um dia, irado,
disse, “Por que você não morre logo? Vamos acabar com isso.”
“Por favor não diga isso,” Yoshicami implorava. “Eu preciso de você e agora mais do que
nunca. E as duas crianças. Olhe para este lugar agradável que o irmão de Sapato-Pé nos deu
para ficar. Por favor, não fale assim.” Mas ela não estava melhorando. Ela parecia terrível.
Nunca vou conseguir fazer mais sexo com ela, Pé-Comprido falou consigo. Nossos parentes, na
Aldeia Mel, gostaram de Yoshicami e encorajaram Pé-Comprido a ficar, mas ele se aborrecia cada
vez mais.
“Apressa-te, morra, para que eu possa voltar para minha aldeia”, falava-lhe diariamente.
“Sua esposa está muito doente,” Sapato-Pé disse a Pé-Comprido. “Ela tem sido uma boa
esposa. Não é certo deixá-la agora, quando precisa de você mais do que nunca. Você sabe o que
é certo. É sua obrigação alimentá-la e também suas crianças.” Todos, na aldeia, concordaram
com Sapato-Pé, e diariamente, as mulheres vinham cuidar de Yoshicami e repreender Pé-
Comprido.
A história se espalhou, rio acima, na Aldeia Esquecimento, onde Yawalama havia terminado
seu ritual de mulher. Pé-Comprido olhou para Yoshicami morrendo na rede. Sabia que não
conseguiria nada com ela. E agora Yawalama estava madura e pronta. Ele não pôde esperar.
108
“Vou embora”, disse a todos os parentes dela. “Não posso ficar aqui e esperar você
morrer.”
“E nossos dois filhos?” Implorou da sua rede, passando seus dedos pelo cabelo de um filho
faminto. “Eles também precisam comer. Você deveria estar lá fora pegando peixes para
comermos, ao em vês de ficar aqui, me pedindo para morrer.” Ele não disse nada.
“Como pode nos deixar aqui sem nada? As crianças estão com fome de carne.
Passaremos fome.” Mas ele não respondia.
“Eu sei o que quer. Mas não posso dar isto a você, até que eu melhore, e não posso
melhorar se não me ajudar.”
Sapato-Pé e o resto da aldeia se aproximaram e encorajaram Pé-Comprido a ter
misericórdia dela e ficar. Mas, ele não dizia nada. Desamarrou sua rede, juntou suas coisas, e saiu
pela porta.
Todos os moradores da Aldeia Mel demonstraram bondade com Yoshicami e seus filhos,
neste tempo difícil. Ela era a irmã-prima de Sapato-Pé e parente de muitas pessoas na Aldeia Mel.
Eles compartilharam sua carne, e a cunhada de Sapato-Pé cozinhou para ela e as crianças.
Yoshicami se sentia bem em ver tantas pessoas cuidando dela. Ajudou a tirar a dor de não ter
um marido que satisfizesse suas necessidades e a protegesse. Muitas vezes, pensaram que ela
morreria. Mas, depois de muito tempo, ela ficou forte, saudável e bonita novamente. Um dia, um
jovem da aldeia, Cabelo Vermelho, veio à pequena casa, onde ela ficava. Ele tinha carne fresca
para as crianças. Era o predileto dela, peru selvagem.
“Aqui. Pegue,” ele disse. “É para as crianças. E para você.” Yoshicami sabia que esta não
era uma comida providenciada por seus parentes. A comida deles sempre era trazida pelas
mulheres. Cabelo Vermelho saiu antes que ela pudesse dizer qualquer coisa. Era uma sensação
estranha ter alguém que se preocupasse, o bastante, para caçar e trazer um peru fresco. Só para
mim, ela pensou. Tão agradável quanto ter todos da aldeia cuidando dela. Melhor ainda era
saber que havia uma pessoa que faria isto por ela. Já o tinha visto antes, mas agora ele parecia
tão maravilhoso. Era jovem, estava apenas começando, mas...
A mente dela estava cheia de pensamentos bondosos, enquanto colocava o peru sob o
fogo e soprava a fumaça dos seus olhos. Eles lacrimejaram. Talvez pela fumaça. Pensou que
talvez fosse pela sua alegria. Seu coração se sentiu mais feliz, agora, mais do que nunca,
enquanto observava o peru cozinhando. Talvez, ela iria hoje à noite para a rede dele. Quando a
carne estava cozida, deu uma grande mordida e um pouco aos seus dois filhos. Os três comeram
o peru inteiro, e era tão bom sentir-se satisfeita.
Continuava falando consigo. As meninas, na Aldeia Mel, são tão diferentes. Elas não vão,
simplesmente, para as redes dos outros homens, a não ser que saibam que as querem como
esposa. E o que é mais surpreendente é que os homens não as forçam para irem as suas redes.
Quando fazem, apanham dos outros. Que lugar maravilhoso é este. Como pode ser….?
No dia seguinte, Cabelo Vermelho veio com mandioca da roça e perguntou se ela gostaria
de ir com ele e ajudar a tirar mais. Ela não respondeu; não disse nada. Mas, quando partiu, ela e
suas crianças o seguiram. Os quatro, um atrás do outro, caminhando pela aldeia, através da pista
até a roça. Ela percebeu que alguns da aldeia estavam observando. Se uma pessoa visse, todos
saberiam.
Se pelo menos Pé-Comprido pudesse ver isto, saberia que sou digna do seu cuidado.
Yoshicami pensou. Imaginava se Cabelo Vermelho a levaria para dentro da selva. Ele certamente
merece isto, ela pensou. Ele me trouxe carne ontem. Observava as costas dele, enquanto
atravessavam o campo até a roça. Ele era forte, embora fosse tão jovem, e estar com ele fazia
sentir-se segura.
Voltando da roça, Yoshicami se sentiu confusa. Claro que não queria que ele a levasse
para dentro da selva, mas agora ficou desapontada por não ter feito. Talvez ele ainda não seja um

109
homem inteiro, ela imaginou. Eu sou uma mulher. Agora que não estou tão fraca com a doença,
poderia ir para a rede dele. Talvez hoje à noite.
Até voltarem à aldeia, todos sabiam que ela havia passado a tarde trabalhando com Cabelo
Vermelho. Há muitas luas que eles não haviam visto ela tão saudável. Ralava mandioca,
espremia o suco venenoso fora e colocava para secar. De repente, sentiu-se tão cansada que caiu
na rede.
Tarde da noite, levantou para mexer o fogo. Todos estavam dormindo. Saiu de fininho
pela porta e caminhou, silenciosamente, até a casa de palha de Cabelo Vermelho. Um cachorro
mexeu, mas não latiu, e Cabelo Vermelho nem se mexeu quando ela passou pela porta. Quando
entrou na rede dele, sabia o que fazer. Sentiu como se vivesse novamente.
Na manhã seguinte, Cabelo Vermelho e Yoshicami haviam desaparecidos. Ficaram fora,
dentro da selva, durante muitos dias, tempo suficiente para Cabelo Vermelho provar que ela,
verdadeiramente, pertencia a ele. Os pais de Yoshicami e o povo da Aldeia Mel cuidaram de seus
filhos, enquanto estavam fora.
Logo, Pé-Comprido que estava na Aldeia Esquecimento, ficou sabendo que Yoshicami não
havia morrido, como a ordenara. Ouviu dizer que ela estava saudável e que tinha um homem.
Então, voltou, com ciúmes, para levá-la.
Mas ela não voltou com ele. Cabelo Vermelho e seus amigos não permitiriam que fosse
levada a força. Ele foi para casa enfurecido.
Dois dias depois, Pé-Comprido voltou com alguns guerreiros e ameaçou guerrear com a
Aldeia Mel, se não devolvessem Yoshicami a ele.
“Ela tem muitos medicamentos para terminar de tomar,” Sapato-Pé disse. “Depois que ela
estiver completamente saudável, deixaremos que decida onde quer viver”. Quando o povo da
Aldeia Esquecimento soube que ela precisava de mais medicamentos, foram para casa. Mas, Pé-
Comprido continuou voltando, tentando consegui-la de volta. Depois de algumas luas, quando seu
medicamento havia acabado, ele voltou com seus guerreiros para lutar. No gramado, entre as
casas, foram recebidos pelos guerreiros da Aldeia Mel.
“Vocês não vão brigar aqui.” Sapato-Pé se pôs no caminho deles, no centro da aldeia.
Homem de Frutas e os outros líderes da Aldeia Mel juntaram-se a ele. “Podemos chamar os
guardas do governo de Tama Tama para virem aqui e resolver este assunto. Não há motivo para
guerrear.”
Novamente, o povo da Aldeia Esquecimento ficou satisfeito, e os guardas foram chamados.
Dois dias depois, três guardas, em traje de guerra, amarraram seus barcos à margem da Aldeia
Mel. Cada um carregava um rifle grande. Com as armas, em uma área aberta, como na aldeia,
teriam todo o nosso respeito. Mas na selva, não nos dariam trabalho.
Todos se reuniram no prédio grande que chamavam de igreja. Pé-Comprido e os
guerreiros da Aldeia Esquecimento estavam lá. Um dos guardas disse a eles que Yoshicami era
uma cidadã venezuelana e poderia fazer o que quisesse. Olhou para ela. “Diga-nos agora. Você
quer voltar e viver com seu marido?”
“Ele não é meu marido, porque nunca o quis,” Yoshicami começou falando baixo. “Ele é
meu marido, porque meus pais me forçaram à ir para a rede dele, quando eu era uma pequena
menina. Mas, eu estava disposta a viver com ele, embora fosse tão cruel. Não tive escolha. Mas,
adoeci e quase morri. E assim que ele soube que sua próxima esposa , Yawalama, estava
crescida, me pediu para morrer logo e foi embora, me deixando com duas crianças pequenas para
alimentar. Nenhuma mulher quer um marido assim.
E muito tempo depois, quando soube que eu estava novamente saudável, veio correndo
para me buscar. “Não o quero, não quero nada dele. Achei um bom homem aqui que me quer, e
agora sou a esposa dele.”

110
Os guardas olharam para Pé-Comprido. “Ela tem o direito de fazer o que quer. Não iremos
forçá-la a voltar, se ela não quer. É a lei venezuelana. Ela é livre.”
Os guardas levaram o grupo de guerreiros da Aldeia Esquecimento para as suas canoas.
Havia pouco que poderiam dizer ou fazer, enquanto eles estivessem lá. Mas, o assunto nunca
terminaria com esta humilhação.
Yoshicami estava contente em ficar na Aldeia Mel e viver com Cabelo Vermelho.
Dois dias depois, na quietude da madrugada, Yoshicami foi acordada com um puxão
violento em seu braço que arrancou-a da rede, jogando-a no chão. Ela gritou. Dez homens a
arrastaram pela porta da parede de barro, enquanto Cabelo Vermelho lutava com alguns deles.
Por ele estar doente, com malária, não conseguiu afastá-los.
Quando o povo da Aldeia Mel ouviu o barulho, saíram das suas casas, e assistiram a luta
contra Pé-Comprido e seus guerreiros. Mas ninguém quis entrar a briga. Cabelo Vermelho não
tinha nenhuma chance. A roupa de Yoshicami foi arrancada durante a luta e arrastaram-na pela
pista até a margem. Seu irmão corria por trás, tentando cobrir sua nudez com uma calça,
enquanto ela lutava para se soltar. Ele não conseguiu.
Finalmente, um dos amigos de Cabelo Vermelho entrou para ajudá-lo, mas não
conseguiram puxar Yoshicami. Então, um outro entrou e um outro. Logo, ficou difícil para os
homens continuarem arrastando-a até a canoa.
Os outros da aldeia assistiam, ainda não querendo entrar na briga. Os amigos de Cabelo
Vermelho não puderam soltá-la, mas conseguiram impedi-los de chegarem mais perto do rio. Os
guerreiros da Aldeia Esquecimento sabiam que ela tinha estado tempo suficiente com Cabelo
Vermelho para carregar um bebê. Então, jogaram-na no chão, no meio da confusão, e chutaram
sua barriga, tentando matar seu bebê. Mas, não conseguiram chegar até o rio.
“Eles não vão soltá-la!” um dos inimigos gritou. “Vamos cortá-la.” Ele começou a empurrar
os homens para o lado, para que pudesse alcançá-la com seu facão.
Até então, Pepe observava. Ele detestava estas brigas. Queria pará-las, mas não podia,
sem entrar no meio do problema. “Não, não!” ele gritou, enquanto saltava no meio deles,
agarrando o braço do homem. “Não use um facão nela.” Pepe nunca bateu num Yanomami, mas
tentava parar uma matança. E ele se cansou de consertar joelhos cortados.
O guerreiro empurrou Pepe. O empurrão fez com que ele escorregasse na grama molhada
e caísse sentado. Quando as pessoas da Aldeia Mel viram Pepe caindo, a raiva deles explodiu.
Todos, da aldeia, pularam nos guerreiros, como uma onça em cima de um peru desamparado.
Todos os inimigos foram agarrados e segurados por três ou quatro guerreiros da Aldeia Mel.
“Não! Não!” um guerreiro da Aldeia Esquecimento gritou. “Não é para todos se
envolverem nisto!”
“Agora é tarde demais,” Homem de Frutas respondeu gritando. “Você derrubou o nosso
naba.”
“Deveríamos estourar suas cabeças agora mesmo!” Rabo de Preguiça gritou.
Mas Sapato-Pé gritou. “Não, não! Já deu para entender.” Então, Pé-Comprido e seus
amigos foram levados até a margem do rio e enviados para casa, com as mãos vazias. As
mulheres levaram Yoshicami, puseram calças nela e foram para a casa de Pepe.
Quando os guerreiros da Aldeia Esquecimento viram que o povo da Aldeia Mel não os
deixaria fazer tudo que queriam com suas mulheres, foram para o Orinoco ver César. Pelo fato
dele ser um Yanomami e ter um pouco mais de instrução, o governo venezuelano decidiu dar-lhe
o trabalho de manter a paz na selva Yanomami. César decidiu ir para a Aldeia Mel e resolver o
assunto.

111
Notícias de que César estaria viajando para a Aldeia Mel para fazer as pazes se espalharam
por todas as aldeias vizinhas. Sabiam que a pacificação de César causaria uma briga que ninguém
queria perder. O povo de Lábio de Tigre veio do Ocamo. O povo da Aldeia Boca também. Estes
inimigos do passado, agora haviam feito as pazes com a Aldeia Mel.
A voadeira de César encostou na margem da Aldeia Mel, para encontrar com o maior grupo
Yanomami que já tinha visto. Um naba médico, que chamamos de Barbudo, veio de Los
Esmeralda. Até ele esperava problemas. Por isso havia trazido sua máquina fotográfica.
A multidão estava quieta, mas muito agitada, enquanto observavam César descer e
amarrar seu barco. Então, uma mulher velha gritou para ele, “Quem é você para chegar aqui e
resolver nossos problemas? Sabemos que você é o maior motivo das nossas brigas.”
“E aquela menina que você estuprou?” outra gritou, antes que César pudesse subir o
barranco. “Já se castigou por isso?”
“E quando o pai dela atirou no seu peito, foi punido por isso?” outra mulher gritou.
“Você tem sorte dele ter usado um cartucho recarregado, senão não estaria aqui, né,
César?” Como é que souberam a respeito daquele cartucho? pensou César.
“É mesmo. Toda aquela guerra foi culpa do pai velho, não é? Você, com certeza, ajudou a
levar a paz para eles, não é?”
Quando as mulheres Yanomami se aborrecem, transformam-se. Contam cada história. E
não respeitam ninguém. Não esquecem de nada. Você ouve coisas terríveis que aconteceram há
muito tempo, e detalhes que pensa que ninguém jamais saberia. E não há necessidade nem de
exagerar.
César fingiu não perceber, mas ouviu cada palavra. Não tinha como saber, até aquele
momento, se seu próprio povo se sentia ofendido pelo seu comportamento. Porque estão tão
furiosos comigo, pensou. Não ajo diferente dos outros Yanomami.
As mulheres continuaram irritando César, enquanto atravessava a aldeia. E Barbudo, o
naba que estava com ele, como elas gostariam de ter gritado para ele. Uma vez, ele deu um
remédio para uma mulher Yanomami e pediu que pagasse com sexo. Ela disse que não. Então,
não lhe deu mais e ela morreu. Era a história perfeita para um tempo, como este, porque todas
as mulheres sabiam exatamente como Barbudo tinha tentado conseguir sexo da mulher. Podiam
até conhecer algo de seu órgão íntimo. Mas ele era um naba…
Então, continuaram gritando para César. “E que tal aquela esposa que você estuprou há
poucos dias?” alguém perguntou. César sorriu um pouco, mas não virou a cabeça. Como uma
história tão sem importância, como esta, chegaria aqui tão rápido? Pensou. Ele não a esqueceria.
Ela era jovem, muito bonita e inteligente, o que a tornava especial. Viu quando ela saiu da aldeia,
com seu novo marido para ir pescar. Chamou três dos seus amigos, e os seguiu. Um de cada
vez, a estuprou, enquanto os outros seguravam o marido dela.
“Não parece tão surpreso,” uma mulher gritou. “Sabemos de tudo, e conhecemos tudo
sobre você.”
“Sim. Por que não chama os guardas? Vamos avisá-los sobre você e seu trabalho de levar
a paz! Quando se fala em crime, você é o melhor. Este problema não é nada comparado ao que
faz. Vá. Chame os guardas aqui.”
A esposa de Lábio de Tigre tinha muita coisa para gritar a Barbudo, mas tinha medo. Ela
se lembrou da vez, na aldeia dela, quando fora atingida por uma flecha envenenada. Como
Barbudo não pôde remover a ponta, todos queriam que ele a levasse no avião do governo. Depois
de uma discussão, Barbudo falou, “Aquela mulher não vale os R$ 900,00 que vai me custar o vôo.”
Ele havia dito isto usando palavras de naba, mas todos entenderam. Se não fosse um naba, teria
se surpreendido com tudo o que ouviria, naquela manhã.

112
Até chegarem à igreja, o maior grupo de Yanomami, que alguém já tinha visto, havia
ouvido todas as coisas terríveis que César havia feito. Ele sabia que seria difícil mandar a menina
de volta, com toda essa raiva. Havia centenas de índios apertando-o e concordando com o povo
da Aldeia Mel.
O prédio estava cheio de pessoas bravas quando César os fez finalmente escutar. “Os
guardas estavam aqui alguns dias atrás. O que é que disseram?” ele perguntou.
“Disseram que ela podia morar onde quisesse,” algumas pessoas responderam.
“Bem, isso é certo,” César disse e pareceu aliviado quando pôde concordar com a multidão
enfurecida. “Estou aqui apenas para contar o que o governo diz. Não estou aqui para iniciar
nenhum problema com vocês, da Aldeia Mel. Os guardas têm razão. Ela pode morar onde quiser.
Ela é venezuelana, é o direito dela.”
Era exatamente isto o que todos queriam ouvir. Ninguém estava mais contente do que
Yoshicami. Ela ficou no meio do prédio, cercada pelos protetores da sua nova aldeia. Haviam
devolvido sua vida, quando todos esperavam que ela morresse. Seu irmão-primo, Sapato-Pé, e os
outros ficaram ao redor dela. Toda a sua beleza havia voltado. Puderam ver o sentimento
maravilhoso através dos seus olhos grandes e marrons, e ficaram felizes.
César virou para Yoshicami. “Diga-nos onde quer morar,” ele disse. Era uma chance
maravilhosa para falar o que pensava a todos. Pela primeira vez na sua vida, sentiu o poder de
fazer o que escolhesse. E havia tantos guerreiros, ao redor, para ajudá-la. Que sensação é ser
amada e querida! Ela não conhecia tal sentimento. César não tinha poder para fazê-la ir, ainda
que quisesse. E ela sabia.
“Nunca voltarei para ele,” ela gritou, “não importa o que qualquer um faz ou diz. Ainda
que pudessem me obrigar a voltar para a Aldeia Esquecimento, nunca voltaria para Pé-Comprido.
Nunca.”
César virou para o pai de Yoshicami e o grupo da Aldeia do Esquecimento. “Não é
exatamente isto que vocês me falaram que ela diria. Por que vim de toda esta distância para cá?
Para contrariar os guardas e obrigá-la a viver onde não quer e dormir com um homem que não
deseja?” Ele olhou para Yoshicami aliviado. “Os guardas têm razão. É seu direito morar onde
quiser e com quem quiser.”
Barbudo, o médico de Esmeralda, tinha vindo, por curiosidade, como todos os outros. Ele
acenou a César para sair, para uma conversa. Tudo havia terminado, e como a Aldeia
Esquecimento era muito pequena, provavelmente não começariam uma briga agora. Mas, todos
olharam e imaginaram o que Barbudo faria com César. Homem-Baixo os seguiu, porque ele era o
irmão-primo de César.
“Você não pode interferir com este povo assim,” Barbudo falou para César, quando
estavam fora do prédio e longe da multidão. “Ela é uma mulher Yanomami e não tem nenhum
direito. Seu único direito é de fazer o que o marido lhe pede. Você e seu povo são Yanomami e
sempre serão. Sempre resolveram seus problemas com porretes e flechas. E você não tem o
direito de mudar isso com esta conversa de ‘governo venezuelano’.”
César sabia que Barbudo tinha grande influência sobre o governo e as pessoas que davam
dinheiro a ele. Barbudo pôde ver César pensando. “Agora volte lá e diga àquela menina que ela
precisa fazer o que qualquer mulher Yanomami teria que fazer, ir para casa com seu marido. Esta
é a chance que você tem esperado para fazer com que esta aldeia volte para seus velhos
costumes. Se querem brigar, por causa disto, esse é o costume Yanomami. Deixe-os lutar.”
César voltou para a igreja. Sabia que isto significava guerra. Pelo menos minha aldeia não
fará parte disto, ele pensou. De qualquer maneira, este povo está ficando muito orgulhoso por
causa dos seus novos costumes de paz. Poderia ser uma boa lição para eles voltarem a ter uma
guerra.

113
A multidão rugiu com surpresa e raiva quando César falou que Yoshicami teria que voltar
para Pé-Comprido. Ele podia ver que todas as aldeias visitantes apoiavam a Aldeia Mel, e que não
poderia fazê-la ir para lugar nenhum. Esta seria uma briga curta e alguém da Aldeia
Esquecimento seria morto.
Homem de Frutas ficou lá ouvindo e observando César. Ele se lembrou, quando falou para
César que Aldeia Mel não queria mais voltar a lutar. Agora César está aproveitando para nos
mostrar quem está no controle. Homem de Frutas pensou. Ah, se eu tivesse uma flecha, atiraria
em César e diria, “Lá vem a primeira flecha pelos velhos costumes, direto no seu peito."
Mas Homem de Frutas não tinha uma flecha. Começou a pensar em buscar seu arco e
flechas.
Homem-Baixo tinha ouvido tudo o que Barbudo dissera a César. Queria mostrar para
Barbudo tudo a respeito dos costumes Yanomami com uma paulada de porrete na cabeça.
Então, antes que Barbudo pudesse seguir César de volta a igreja, Homem-Baixo lhe perguntou, “O
que você está fazendo aqui? Por que você não vai embora?” Barbudo ficou boquiaberto.
Nenhum índio jamais havia falado assim com ele.
Mas Homem-Baixo estava furioso e nem pensava em parar. “Quem pediu para que viesse
aqui e interferisse na nossa aldeia? Você quer que César nos deixe em paz? Então por que você
não nos deixa em paz?”
Barbudo ficou lá, boquiaberto, e Homem-Baixo continuou falando. “Você é um naba que
não sabe nada. Eu não vejo ninguém aqui lhe falando para pedir que César fique. Conhecemos o
seu tipo. Você está aqui com aquela máquina fotográfica para tirar fotos, quando começarmos a
matar um ao outro.”
O rosto de Barbudo se encheu de raiva, por estar tendo este tipo de conversa com um
índio. "Você não sabe quem eu sou, rapaz, " gritou a Homem-Baixo. Ele sabia quem era Barbudo.
Sabia da esposa de Lábio de Tigre e da mulher de quem Barbudo queria sexo. Ela era um parente
do antigo amigo dele, Lábio-Cabeludo.
Dentro da igreja, Sapato-Pé foi à frente. A multidão se calou, esperando ouvir se este líder
falaria contra César. “Yoshicami,” disse a ela, “este naba, Barbudo, enfureceu todos, a tal ponto,
que o nosso povo está pronto para matar. Se começarmos uma briga aqui, alguém vai morrer.
Sou seu irmão-primo. Seu pai aqui é meu pai-tio. Você sabe que não vou deixar que nenhum mal
aconteça a você. Agora, vou dizer o que quero que você faça.”
Os guerreiros da Aldeia Mel tinham ouvido o bastante. Sabiam que Sapato-Pé faria
qualquer coisa para não brigarem. Saíram, silenciosamente, da multidão irada e se retiraram da
igreja. Sapato-Pé os viu e sabia aonde iriam. Ele não tinha muito tempo.
“Chamaremos os guardas,” disse rapidamente, “e pediremos que voltem para resolver
tudo. Mas, enquanto não vêm, quero que você volte com seus pais para a Aldeia Esquecimento.
Você não precisa voltar para Pé-Comprido. Apenas vá, por enquanto, com seus pais. Quando os
guardas chegarem aqui, iremos e a buscaremos.” Yoshicami sabia que ele se preocupava com ela.
Preocupava-se com todos que vinham à sua aldeia.
Na grama, fora da igreja, Barbudo ainda estava gritando com Homem-Baixo. “Sou um
funcionário do governo! Se você não fechar a sua boca, vou chamar os guardas para virem aqui e
prendê-lo.”
“Chame-os,” Homem-Baixo respondeu, enquanto observava todos os seus amigos correndo
até a outra ponta da aldeia. Haviam ido buscar suas armas. Era uma longa distância e estavam
pensando porque não haviam trazido os arcos e espingardas com eles.
Barbudo ficou ainda mais surpreso. Retirou um pequeno cartão do bolso. “Faço parte de
uma Comissão Indigenista especial e os guardas fazem o que lhes digo.”
“Chame-os,” Homem-Baixo disse novamente.

114
“Agora você tem problemas!” Barbudo gritou. “Os guardas vão prendê-lo, com certeza.”
Dentro da igreja, Yoshicami ficou cabisbaixa. Sapato-Pé tinha razão. Ela ficaria doente de
tristeza se alguém fosse morto. Até Sapato-Pé terminar de falar, todos os guerreiros da Aldeia Mel
haviam ido embora. “Venha agora,” ele disse, vamos logo. Todos foram buscar suas armas.
Meu povo nem sempre faz o que peço.”
Ele levou Yoshicami, os pais dela, Pé-Comprido, os guerreiros da Aldeia Esquecimento e os
conduziu rapidamente para fora da igreja até a margem do rio. “Depressa!” Gritou enquanto os
empurrava. “Eles voltarão com as armas.” O grupo de Sapato-Pé passou rapidamente por
Barbudo, enquanto ainda ameaçava chamar os guardas para prender Homem-Baixo.
“Chame-os!” Homem-Baixo respondeu. “Por que estou aqui gritando a mesma coisa, vez
após vez?”
"”Vá! Vá! Mais rápido!” Sapato-Pé gritou e Barbudo começou a segui-lo até o rio.
“Chame-os, Sr. Comissão Indigenista!” Homem-Baixo gritava cada vez mais alto, enquanto
seguia Barbudo, que seguia Sapato-Pé, que empurrava todos da Aldeia Esquecimento em direção
as suas canoas. “Mal posso esperar ouvir você contando a eles que uma menina Yanomami não
tem nenhum direito como cidadã da Venezuela. Chame-os.” Ele acenou e apontou na direção de
um pequeno prédio. “Vou levá-lo até a sala do rádio e você poderá chamá-los aqui, para me
prender. Vamos.” Barbudo fingiu que não ouviu e continuou seguindo Sapato-Pé até o rio.
Na outra ponta da aldeia, Homem-Baixo viu Homem-Engraçado, Rabo de Preguiça, Não-
Cresce, Homem de Frutas, Cabeça-Grande e outros vindo das suas casas com arcos, flechas e
espingardas. Nem se preocuparam em trazer porretes.
“Olhe aqui, rapaz,” Barbudo gritou. “Você não sabe de nada! Os guardas são apenas um
bando de criminosos. Colocamos eles lá, em Tama Tama, como castigo pelos seus crimes.” O
grupo de Sapato-Pé desapareceu por cima do barranco com Yoshicami.
A ira de Homem-Baixo cresceu quando a viu desaparecendo. “Chame-os!” ele gritou. “Não
posso esperar para ouvir você dizendo tudo isso. De que você tem medo? Vou chamar os
guardas, independente de você.” Estou desperdiçando minhas energias gritando com um bobo,
ele pensou, e não há mais tempo. Ele correu para o rio com um porrete. Ninguém nunca soube
como conseguiu o porrete tão rapidamente.
Sapato-Pé estava no topo do barranco e gritando para os guerreiros da Aldeia
Esquecimento se apressarem. Keleewa e seu irmão Mique estavam em uma canoa vazia e lhes
ajudaram a embarcar. Então, Keleewa empurrou a canoa deles para o meio do rio. Ligaram o
motor e lentamente entraram na correnteza, na direção da outra beira. A canoa estava tão cheia
de guerreiros que tinham que ficar muito quietos para que a água não entrasse pelas laterais.
Cada guerreiro estava pronto com arco e flechas. Mas eles eram um alvo fácil para qualquer
guerreiro no barranco.
Homem-Baixo chegou ao rio antes dos outros com seu porrete, que tinha quase do
tamanho de seu braço. Passou correndo por Sapato-Pé, descendo o barranco e o jogou, com toda
a sua força, na direção da canoa que estava escapando. Girou no ar, como um cipó, e por pouco
não bateu na cabeça do pai de Yoshicami. Bateu no lado da canoa, saltou no ar, caiu na água, e
afundou, como uma pedra até o fundo do rio.
“Não, não!” Sapato-Pé gritou, enquanto o resto dos guerreiros vinham com suas armas.
“Vamos chamar os guardas! Vamos chamar os guardas.” A canoa partiu do barranco até estar
fora do alcance. Sapato-Pé respirou aliviado.
E eles chamaram os guardas, embora Barbudo decidisse não ajudar a fazer a chamada.
Sapato-Pé caminhou lentamente, um passo por vez, de volta ao topo do barranco e estava
cabisbaixo. Sua mente estava cheia de confusão. Primeiro nos dizem que o governo não tem
nenhuma autoridade aqui e que precisamos voltar aos velhos costumes , ele pensou. Então,

115
quando tentamos usar nossos velhos costumes, que seria obrigá-la a ficar, dizem que têm
autoridade e que precisamos deixá-la ir. Sabia que tinha razão e Barbudo estava errado.
Do topo do barranco Homem-Baixo observava, enquanto Barbudo caminhava na direção
do seu barco. Não tinha certeza se conseguiria segurar a raiva que sentia subindo pelo peito.
Queria descer o barranco correndo e dar uma paulada na cabeça de Barbudo com seu porrete.
Isso lhe daria a sensação de como são os velhos costumes.
E foi isso que realmente confundia a cabeça de Homem-Baixo. Se ele fizesse o que
realmente queria, golpear a cabeça de Barbudo, retornaria aos velhos costumes. É isto o que
Barbudo quer, ele pensou. E estou furioso porque não quero os velhos costumes, mas gostaria de
golpeá-lo. Ele ficou lá, pensando e observando a canoa de Barbudo partir da beira.
Pelo fato de ser de Siapa, Homem-Baixo tem tido muito contato com os brancos. Enquanto
o motor de Barbudo acelerava, Homem-Baixo se lembrou do tempo que tinha ido de canoa, para o
Orinoco e do encontro que teve com um antro. “Rapaz, você se acha alguém especial por usar
roupas e um relógio! Quem você pensa que é?” Homem-Baixo perguntou educadamente em
espanhol.
“Nunca fale comigo em espanhol!” o antro retrucou. “Você é um Yanomami e sempre será.
Não cabe a você lançar fora os seus costumes verdadeiros e tentar copiar os nabas com suas
roupas, relógios, motores, e agora até falar em espanhol! Nunca fale comigo em espanhol! Você
quer falar comigo? Fale Yanomami!”
Homem-Baixo havia apontado para a grande protuberância no lábio inferior do homem
branco. “O que é aquilo em seu lábio inferior?” Homem-Baixo perguntou, usando a nossa língua,
Yanomami.
“Isso é o meu chumaço de tabaco,” o antro respondeu.
“Onde você aprendeu a mastigar tabaco desse jeito?” perguntou Homem-Baixo.
“Aprendi com o seu povo.”
“Você nos viu mastigando tabaco desse jeito, então provou e gostou. Então você nos
copiou, não foi?”
“É isso mesmo,” o antro falou com orgulho dos seus costumes indígenas.
Homem-Baixo demonstrou indiferença. “Se você pode nos copiar,” ele deu uma pausa e
um olhar confuso, “então podemos copiar vocês.” O naba não disse nada.
Uma outra vez, um antro o havia advertido por ter viajado numa voadeira. “Simon Bolivar,
seu pai branco, não veio aqui montado num cavalo?” Homem-Baixo perguntou ao naba. Como o
naba não respondeu, Homem-Baixo disse, “Onde está o seu cavalo?” Percebeu que o naba estava
com um olhar esquisito em seu rosto e Homem-Baixo não estava certo se ele havia entendido.
“Então? Onde está o seu cavalo?”
Enquanto observava Barbudo, guiando seu barco pelo Rio Padamo, Homem-Baixo se
lembrou de muitas conversas que havia tido com os nabas.
Yoshicami havia ido embora. Será que estes nabas nunca nos deixarão em paz? Ele
desejou saber.

116
CAPÍTULO 13

MINHA É A VINGANÇA

Agora, o povo da Aldeia Mel pensa de maneira mais clara, do que naquele tempo em que
visitamos os nabas. No princípio, queríamos ser como eles. Então, depois de os observarmos por
um tempo, desistimos. Descobrimos que um naba levou a cabeça do filho de Shetary, e até
sabemos quem fez isto. Nenhum Yanomami gostaria de ser assim.
Mas, de uma coisa sabemos; os nabas sabem como criar confusão. Todos desejamos as
coisas que eles têm. Mas fazem tanta confusão em nossa cabeça. Alguns nos dizem para não
lutarmos. Outros para lutarmos. Alguns nos dizem para jogarmos nossos espíritos fora. Outros
para ficarmos com eles. Eles sabem criar confusão, mas não sabem pensar muito bem.

Um sentimento de desespero caiu sobre a Aldeia Mel, tão pesado como as nuvens da
manhã que às vezes nos cobria. Desespero que eles não viam há muito tempo. Imaginei se isto
seria o resultado de todas as maldições que tinha lançado contra eles. Mas não lançava maldições
há muitas estações. Lembrava-me muito bem do tempo em que os tinha advertido a respeito de
um tatu que destruiria suas casas e de uma onça que os caçaria nos seus trilhos. Foi um
desperdício de energia espiritual, igual a todas as outras maldições que lancei contra eles. Se os
problemas da Aldeia Mel haviam sido causados pelos espíritos, isto não era o resultado do meu
poder.
Cabelo Vermelho ficou na rede durante dois dias, por causa dos golpes que levara na briga
contra a Aldeia Esquecimento. Finalmente, conseguiu dormir, pois sentia muitas dores, mas sua
família pensou que estivesse prestes a morrer. Correram para conseguir a ajuda dos nabas. Todos
entraram na casa, enquanto eles trabalhavam em Cabelo Vermelho. Sabiam que estava próximo
da morte, e começaram a lamentar e chorar.
“Este jovem é um dos nossos,” um dos homens disse. “Ele nasceu aqui. Cresceu aqui. Se
ele morrer, teremos que ensinar uma boa lição à Aldeia Esquecimento e trazer Yoshicami de
volta”. Sabiam que ele tinha razão. Algo teria que ser feito a respeito desta matança.
De repente, Cabelo Vermelho sentou-se e parecia perfeitamente bem. Todos ficaram em
silêncio. Ele sorriu. Pela primeira vez, desde a briga, toda a sua família pôde ver que ele não
sentia nenhuma dor. Todos ficaram alegres.
“Eu me sinto muito bem,” ele disse. “Por favor, escutem o que tenho a lhes dizer. Vocês
me conhecem desde pequeno. Como muitos de vocês, sou filho de Yai Pada, o grande espírito.
Agora, como podem ver ao redor”, ele disse apontando ao redor da casa, “seu povo veio aqui
para me levar para casa. Então, eu vou com eles agora, e apenas quero dizer, antes de ir, que
não quero que nenhum de vocês pense em se vingar da Aldeia Esquecimento.”
Quando Cabelo Vermelho falava a respeito das pessoas enviadas por Yai Pada, a alegria
deles se tornou em preocupação. “Não tem ninguém aqui para levá-lo,” eles disseram, enquanto
olhavam ao redor. “Você está bem. Você vai ficar bem.”
Cabelo Vermelho ficou chocado. “Vocês não podem ver estas pessoas?” Ele perguntou.
“Estão aqui, por todo o lugar, esperando eu terminar de falar com vocês.” Todos menearam suas
cabeças. “Não posso acreditar que não conseguem enxergá-los! Olhem, aí mesmo”, ele disse,
enquanto apontava ao redor da casa. Ninguém via nada.
“Abram seus olhos!” Cabelo Vermelho continuou apontando para todos os lugares. “Não
podem vê-los?” Mas apenas olhavam para ele, com rostos tristes meneando suas cabeças.

117
“Bem, eles estão aqui para me buscar e vou com eles até Yai Pada. Não precisamos de
vingança para onde eu vou, então, por favor, não se vinguem da Aldeia Esquecimento.”
Pela primeira vez, um grupo de Yanomami não tinha nada para dizer. Olharam,
silenciosamente, Cabelo Vermelho se deitar na rede, encolher e morrer.
Agora, o povo da Aldeia Mel não sabia o que fazer; pois um dos seus havia morrido por
causa das mãos perversas de outros. Cabelo Vermelho era um Yanomami. Seus parentes teriam
que se vingar, não importava o que ele tinha dito antes de morrer. Agora, certamente, a aldeia
que havia se afastado, durante tanto tempo dos velhos costumes de vingança, teria que voltar.
Então, vieram notícias do que estavam dizendo na Aldeia Esquecimento. “Ele recebeu o que
merecia”, diziam. “E seu líder, Sapato-Pé, não é mais um Yanomami. Ele é muito covarde para se
vingar da morte de Cabelo Vermelho.”
A conversa deles forçaria o povo da Aldeia Mel a agir. Apesar de ter sido, por tanto tempo,
inimigo da Aldeia Mel, se guerreassem, estaria do lado deles. Seria bom estarmos novamente
juntos, em uma guerra.
O povo da Aldeia Mel se reuniu naquela noite, na igreja, para decidir o que fazer. Todos
estavam furiosos. Mas, Sapato-Pé e Lança eram contra a vingança. “Não podemos voltar aos
nossos velhos costumes!” Sapato-Pé insistia. Dizia isto dando ênfase em cada palavra. “É fácil
começar uma guerra. Talvez seria, até fácil, ganhar as primeiras batalhas. Mas tente parar uma
guerra depois que começa. Seria mais fácil conseguir que um enxame de abelhas voltasse à sua
colméia.”
“Não podemos permitir que uma morte fique impune nesta aldeia,” Homem de Frutas
respondeu com raiva. Todos discordavam de Sapato-Pé e Lança. “Iremos lutar sem você,” eles
disseram.
O irmão mais próximo a Cabelo Vermelho era Cabeça Grande. Ele não tinha dito nada.
Todos sabiam que ele estava com uma tristeza profunda. Finalmente, se levantou para falar.
Todos escutaram.
“Vocês se lembram do que meu irmão disse, antes de morrer,” Cabeça Grande começou.
“Pensávamos que ele estava bem e que a dor havia passado. Mas, estava apenas se mantendo
vivo para nos deixar a mensagem de que não deveríamos nos vingar”. Cabeça Grande, então,
contou a história inteira, dizendo cada palavra que Cabelo Vermelho havia dito.
“Este espírito que seguimos agora,” Cabeça Grande continuou, “o que chamamos de Yai
Pada, o espírito de paz, agora sabemos que o veremos um dia. O povo, do qual queremos nos
vingar, não o verá. Eles seguem os espíritos que lhes pedem para matar. É por isso que vão para
o abismo de fogo. Vocês sabem que eu amava meu irmão. Gostaria muito de me vingar da morte
dele. Mas, não vou me vingar da morte dele, que já foi para a terra feliz de Yai Pada, matando
pessoas que eu sei que irão para o abismo de fogo. Aquele que pensa que estou errado, fale
agora.” Cabeça Grande se sentou.
Todos ficaram quietos. A conversa de Cabeça Grande não era o costume Yanomami. Os
parentes de Cabelo Vermelho mereciam alguma vingança. Mas a conversa dele foi tão cheia de
amor e bondade para com todos os nossos parentes da Aldeia Esquecimento, que ninguém queria
falar contra. Todos partiram quietos e pensativos.
No dia seguinte, veio uma história, do rio acima, que Yoshicami havia sido amarrada para
que não fugisse. Sapato-Pé contou a todos que ela não teria que sofrer mais, porque logo os
guardas viriam. Dois dias depois, um outro visitante disse, que todas as noites ela ficava
amarrada na rede e, às vezes, durante o dia a um poste.
No dia seguinte, veio um relatório dos guardas. Haviam viajado na direção da Aldeia Mel,
quando pararam em Las Esmeralda. Era lá que o comissário indigenista Barbudo trabalhava.
Quando chegaram em Las Esmeralda foi dito a eles que os problemas, na Aldeia Mel, tinham sido
resolvidos, então voltaram e disseram que não viriam para cá.
118
Homem-Baixo estava em pé, na sala do rádio, quando a notícia chegou. Ele já havia
agüentado muito e mais do que pensava que podia. Yoshicami era um parente próximo da sua
esposa.
“O que faremos agora?” Perguntou a Keleewa. “O que faremos? Sou um Yanomami. Sei
que deixamos os velhos costumes. Mas, um Yanomami nunca vira suas costas para um parente!
Nunca!”
Keleewa meneou sua cabeça. Homem-Baixo estava a ponto de chorar. “Ela é parente da
minha esposa. Me diga, Keleewa. O que faremos agora?” O sol estava alto. O dia estava quente.
Era um dia perfeito, entre os Yanomami, para fazer uma guerra. Keleewa não sabia no que
pensar e nem em como responder para Homem-Baixo. Dentro de minutos, todos estavam
armados e prontos para sair. Eles se juntaram no meio da aldeia. Sapato-Pé e Lança lhes
imploravam para que não fossem.
“Vamos chamar os guardas novamente!” eles imploraram. “Será só mais alguns dias.”
“Todos sabiam que Barbudo havia parado os guardas e faria isto novamente”, Homem-
Baixo respondeu.
“Não importa,” Não Cresce disse, se colocando à frente e falando por todos. “É o que eles
estão dizendo sobre você, Sapato-Pé que não agüentaremos mais. Estão chamando-o de covarde.
Dizem que você não é mais Yanomami”. Rabo de Preguiça, Homem de Frutas, Cabeça Grande,
Homem-Engraçado, Homem-Baixo, e todos os guerreiros estavam atrás de Não Cresce,
concordando com ele. O sol forte se refletia nas suas faces marrons. Sapato-Pé viu suas testas
enrugarem. “Dizem que você é um covarde e que nos conduziu para sermos covardes também”.
Todos os homens mostraram grande tristeza no que Não Cresce dissera.
“Não podemos deixar que falem isso sobre você,” Rabo de Preguiça acrescentou.
Sapato-Pé pensou nisto. Por que estou fazendo isto? Ele se perguntou. Por que não
deixá-los ir matar a todos da Aldeia Esquecimento? Isto mostrará a eles que não sou covarde e
serei o líder mais poderoso de todo o nosso território. Por que não? Seria tão gostoso ser
novamente um homem com poder.
Quando Lança ouviu a conversa de Não-Cresce, mudou de idéia e se uniu aos outros.
Sapato-Pé estava completamente só, agora. Homem-Baixo se levantou. “Sapato-Pé, nós o
amamos, sempre o respeitaremos e seguiremos. Mas, desta vez, discordaremos de você.
Sabemos que temos que ir lá e bater em algumas cabeças. Se fizermos, damos uma chance para
Yoshicami voltar para esta aldeia, então, essas pessoas, finalmente, nos deixarão em paz.”
Keleewa e seu irmão Miqie recusaram tomar partido. Depois, soubemos que eles não
sabiam qual lado iriam apoiar. O sol se esquentava cada vez mais.
Sapato-Pé realmente queria se unir a eles. Se eles pensam que Cabelo Vermelho recebeu
o que merecia, se pensam que somos covardes, por que não ir e ensinar-lhes uma lição? Sentia-se
bem só de pensar que poderia ensinar-lhes uma lição também. Sentiu a mesma unção de poder,
que sentia, quando seus espíritos o instigavam às invasões. O mesmo sentimento que todos
temos quando lutamos. Um sentimento que diz, “sou o mais feroz e provarei isto.” Por que não?
Sapato-Pé pensou. Vamos mostrar-lhes quem realmente tem o poder.
Sapato-Pé deu uma pausa. Não, ele pensou. Estes pensamentos são o primeiro passo
para a guerra.
“Estou tendo os mesmos pensamentos que vocês tem agora”, disse aos seus amigos. “Sei
exatamente o que vocês sentem. Sentem uma ânsia, muito grande, de bater numa outra pessoa e
mostrar a ela que está errada. Sei que temos razão. E temos o direito. E temos o poder também.
Mas aquela ânsia de bater em outra pessoa e mostrar-lhe quem está certo, é isto que está
errado.”

119
Foi a conversa mais ardente da vida dele. “Também sinto por Yoshicami,” Sapato-Pé disse.
“Ela é minha irmã-prima. Mas há uma coisa que muitos de vocês não sabem. Os velhos costumes.
Vocês jovens não conhecem os velhos costumes. Não sabem como é uma guerra. Até mesmo,
vocês homens velhos, já esqueceram. Lança, você já esqueceu como sofríamos depois de cada
vitória? Sofríamos tanto, que a vitória não era uma vitória.”
Lança lembrou-se. Sapato-Pé sabia muito bem do que Lança se lembrava. Seu filho,
Homem de Frutas também. Lança ainda podia ver o rosto do jovem guerreiro gritar, “não me
mate, irmão mais velho, não me mate!”
Sapato-Pé continuou falando. “Quando levantávamos pela manhã, tínhamos tanto medo
que nem podíamos caminhar para fora do shabono. Sentíamos medo o dia todo e não podíamos
nem sair para procurar comida para as nossas famílias. Foi por isso que tantos deles morreram.
Sentíamos tanto medo á noite que não conseguíamos dormir. Vivemos grande parte da nossa vida
assim. Se você tivesse uma idéia de quão horrível eram aqueles velhos costumes, nunca iriam
nesta invasão.”
Todos menearam a cabeça. “É o que estão dizendo sobre você,” disseram a Sapato-Pé. “É
por isso que temos que fazer isto.”
Todos escutaram tudo aquilo que Sapato-Pé tinha a dizer. Ele tinha razão. Eles não
sabiam. Mas sabiam o que tinham que fazer. Eles escutaram. Mas partiram. Armados com
arcos, flechas, porretes e espingardas que colocaram nas canoas. Até as mulheres foram com
eles. O sol refletia na água.
Sapato-Pé ficou com Keleewa e Migie e observaram as duas canoas, sobrecarregadas de
guerreiros, mulheres e crianças entrar, lentamente, no Rio Padamo até desaparecerem por detrás
das folhagens da primeira curva. Ele lutou contra as lágrimas. Era velho agora, mas ainda podia
chorar. Keleewa e Migie podiam ver que ele estava a ponto de chorar, porque sabia o que ia
acontecer. Mas não podiam pensar no que dizer. Ele virou e caminhou, lentamente, para a igreja.
Era o fim da tarde. A aldeia estava vazia. Apenas umas mulheres velhas ficaram para
cuidar dos pequenos. A esposa de Sapato-Pé e seus filhos ficaram. Sapato-Pé olhou para trás, na
aldeia vazia, virou e entrou na igreja.
Sentou num banco, na parte de trás e se lembrou do que os guardas haviam falado para
Yoshicami, que ela podia fazer o que quisesse. Então, se lembrou da reunião com o encrenqueiro
César. Até mesmo isso teria dado certo, se Barbudo não tivesse vindo. Lembrou-se de como
havia impedido a briga de começar. Agora sentia-se tão desamparado.
Tinha feito tudo o que podia fazer. Mas falhou. Tudo o que poderia fazer agora era falar
com Yai Pada. Seus olhos encheram-se de lágrimas, só de pensar, que seu povo ia para uma
guerra e contra os próprios parentes. Este povo da Aldeia Esquecimento também são meus
parentes e eles não têm chance contra nós, ele disse, implorando com Yai Pada. Quem celebrará
quando vencermos?

Duas curvas, rio abaixo, da Aldeia Esquecimento existia uma pequena aldeia que havia se
separado deles. Os guerreiros da Aldeia Mel pararam lá para pernoitar. “É muito tarde para lutar
hoje. Lutaremos na boa claridade da manhã,” O-Feroz disse. O-Feroz nunca falava muito; era tão
feroz que nem precisava. Mas agora que a aldeia ia lutar, O-Feroz, de repente, era o líder. Ele
nunca havia deixado os velhos costumes.

Sapato-Pé caminhou para casa. Tentou ajudar sua esposa um pouco. Mas percebeu que
não estava servindo de ajuda, então, voltou para a igreja. As paredes de barro e o telhado de
palha faziam com que ficasse fresco lá dentro. Mas estava tão vazio. Será que eu, realmente, sou
o único que quer paz? Sapato-Pé desejou saber. Ele estava tão só. Andou pelo lugar por onde
Yoshicami, César e Barbudo haviam ficado, alguns dias antes.
120
Até quando teremos que sofrer com estes nabas brancos que têm espíritos maus? Sapato-
Pé perguntou para Yai Pada. Eles têm espíritos maus e nem sabem. Sentou na cadeira que
sempre usava e lembrava deles; havia um menino, de uma aldeia vizinha, que as crianças
chamavam de Aquele-que-Acaricia-o-Pênis de M.A., depois que descobriram como ele havia
ganhado seu bonito relógio. Era imoral demais para Sapato-Pé pensar como ele conseguira este
nome. Os adultos da Aldeia Mel insistiam para que as crianças deixassem de usá-lo.
O espírito de Howashi não era pior do que o espírito que o inteligente homem branco tinha.
Que Yai Pada nos ajude! Era só isto que Sapato-Pé podia pensar quando se lembrava dos
horrores que os nabas tinham feito. O Senhor é a nossa única esperança contra pessoas como
ele.
A história que estava lembrando agora, era a da cabeça perdida de Shetary. Levou muitas
estações de cochichos, até descobrirem o que tinha acontecido naquele dia terrível. Um pequeno
grupo de jovens guerreiros tinha deixado a Aldeia de Shetary, depois de virem que o povo estava
doente e morrendo. Foram conduzidos por um naba branco, M.A. Ele parou, quando chegaram
na heeheeka que embrulhava o filho de Shetary. “Suba lá em cima e derrube aquela coisa.” Ele
disse a um dos meninos. Ficaram tão surpresos, que não puderam se mover. Não acreditaram no
que estavam ouvindo. “Eu quero aquela cabeça!” M.A. disse com um olhar feroz. Cada índio
estalou sua língua e meneou sua cabeça com medo, quando entenderam o que estava dizendo.
É verdade. M.A. tinha espíritos que nenhum xamã jamais iria querer. Sapato-Pé ficou
sentado na igreja, relembrando cada detalhe da horrível história que todos os Yanomami sabiam.
Sabíamos a história tão bem, como se tivéssemos estado lá. Apenas os nabas não sabiam. Os
nabas nunca entenderão coisas que são tão claras para nós, pensou Sapato-Pé. Por que alguém
seria mau, o bastante, para roubar a cabeça de um homem morto?
“Nunca,” o jovem guerreiro respondeu para M.A., embora tivesse com medo dele.
“Venha!” M.A. gritou com empolgação. “Eu quero aquela cabeça. Realmente quero esta
cabeça. Vale muito dinheiro. Tenho que ter isto.” Faltava pouco para ele pular para cima e para
baixo. Todos ficaram horrorizados só de pensar em cortar a cabeça do menino. M.A. ordenou
que um outro guerreiro subisse e a cortasse fora.
“Não faríamos isso ao corpo de nosso pior inimigo!” o homem respondeu. “Se deseja isto,
você mesmo terá que buscá-la.”
“Eu preciso tê-la!” M.A. repetiu. “Vale muito dinheiro.” Os índios estalaram suas línguas
novamente e com horror só de pensar. Como alguém poderia pensar em algo tão maldoso?
todos pensaram. M.A. pediu para cada índio, mas claro que com sua idéia má, não conseguiu a
ajuda de ninguém.
Então, encostou uma vara na travessa da maior ponta da heeheeka. Os índios se
afastaram, horrorizados, ao vê-lo escalando a vara e cortando os cipós. A heeheeka caiu no chão
da selva. Então, M.A. tirou algumas coisas da bolsa dele, que nunca haviam visto. Eram coisas
muito finas, praticamente brancas, que esticava e apertava em suas mãos, e se estendiam até os
cotovelos. Então, tirou uma coisa fina e branca, com o formato de uma cuia. Encaixou,
exatamente, sobre seu nariz e boca e amarrou por trás da cabeça.
Os índios ficaram tão surpresos ao ver um homem branco e inteligente envergonhar um
cadáver, abrindo a heeheeka. Ficaram horrorizados em ver que os cabelos e lábios já haviam
desaparecidos e o peito estava cheio de larvas. O que será que o pai dele fará a nós, pensaram,
quando voltar e achar isto? Ele nunca fez nada a qualquer um de nós para merecer algo tão mau.
Menearam suas cabeças e estalaram suas línguas, enquanto assistiam M.A. cortando a cabeça e
colocando-a numa bolsa. Todos correram pelo trilho, com medo, e não pararam até alcançarem o
barco.
Rio abaixo, uma aldeia não entendeu por que os índios e M.A. haviam passado tão
rapidamente e por não terem nem parado. E não pararam em lugar nenhum na beira do rio, nem
mesmo conversavam, até ficarem longe daquele lugar. Quando pararam, M.A. pôs a cabeça
121
dentro de uma coisa de metal que tinha consigo, encheu-a com algum tipo de água especial,
tampou bem apertado e guardou. Ninguém nunca mais a viu.
Os índios concordaram entre eles que nunca contariam para ninguém o que tinha
acontecido. Como poderiam viver com a vergonha daquilo que haviam deixado que o naba mal
fizesse? Temos feito muitas coisas ruins, mas nenhum de nós pensaria em algo tão perverso e
mau.
Mas uma história assim não pode ficar sem ser contada. Cada pessoa confiará em alguém
para não contar a ninguém. Logo, todos ficam sabendo, embora nunca lhes contem. Até hoje, os
guerreiros que estavam com M.A., dirão que não estiveram, porque sentem tanta vergonha do que
deixaram acontecer. Mas, sabem exatamente o que aconteceu e Sapato-Pé que estava sentado lá
na igreja, se lembrava de cada detalhe. Por que o Senhor não tem nos livrado destes nabas?
Perguntou para Yai Pada.
Cedo, na manhã seguinte, Sapato-Pé caminhou, novamente, pela aldeia vazia até a igreja.
Estava muito quieto, pois todos estavam fora.

Duas curvas, rio abaixo, da Aldeia Esquecimento, Catalina desamarrava sua rede, a de
Rabo de Preguiça e das crianças. As outras esposas fizeram o mesmo. Os homens tiraram as
panelas dos fogos que já apagavam. Não-Cresce e Homem-Baixo passaram um pelo outro no
caminho, enquanto carregavam as canoas. Ninguém conseguia se lembrar de quando haviam
viajado juntos, como guerreiros. “Guerreiros”, não é a palavra certa para estes homens, eles são
caçadores e não invasores. O clima dos velhos dias estava no ar e Homem-Baixo sentia isto,
velhos dias para os quais ele realmente não queria voltar.
Quando fizeram a primeira curva no rio, naquela manhã, viram a segunda à frente. Após
ela ficava a Aldeia Esquecimento. O sol brilhava na água. “Vamos dar um tiro, indicando que
estamos aqui, ao fazermos aquela curva!” Não Cresce gritou e todos carregaram suas armas.
Depois da segunda curva, com somente água entre eles e a aldeia, Não Cresce deu o sinal
e todos atiraram ao mesmo tempo. O barulho foi tão alto, que feriu os ouvidos deles. Deixaram
suas armas ,arcos e flechas com as mulheres e crianças e caminharam para a aldeia com seus
porretes. Brigas quase sempre começam aos poucos. Eles não queriam matar, só rachar algumas
cabeças. Mas, certamente, tinham o direito de matar. Se alguém morresse, voltariam para buscar
as armas para matar.
As pessoas da Aldeia Esquecimento ainda moravam num shabono, porque não sabiam
como construir casas. Mas, a entrada estava tão coberta pelo mato, que os guerreiros da Aldeia
Mel gastaram metade da manhã trabalhando com facões, para abrir o caminho para a briga.
“Estamos ouvindo vocês aí fora!” um guerreiro falou lá de dentro. “Vocês são tão
bondosos em abrir o mato para nós.”
“Sim!” outra pessoa gritou, “especialmente, quando tudo que você vão conseguir são
cabeças rachadas.”
“Depressa! Não podemos esperar até chegarem aqui e nos ensinarem uma lição.”

Logo, a época deles serem diferentes terminou. O povo da Aldeia Mel estava pronto para
fazer aquilo que meus espíritos e eu queríamos, prontos para se unir, novamente conosco nos
nossos costumes. Agora, eles voltariam a ser Yanomami verdadeiros. Seríamos uma tribo unida,
novamente. A nossa longa separação estava prestes a terminar e meu espírito celebrava comigo.
Estavam fora de si e com muita alegria. Agora eu posso voltar a Aldeia Mel, falei comigo, e
celebrar com eles, como fazíamos, beber os ossos dos nossos parentes e fazer invasões
novamente. O pensamento era maravilhoso. Talvez, até ensine Sapato-Pé a ser novamente um
xamã . Ele era tão bom. Sei que ele poderia ser tão bom quanto eu. Minha esposa ficará muito
contente em ver a aldeia do seu irmão de volta.
122
Yai Pada, Sapato-Pé implorou. Mas ele já havia dito tudo o que sabia dizer. Havia dito
tantas vezes que sabia que Yai Pada devia estar cansado de ouvir. Por favor... ele implorou. Não
havia nada para fazer, apenas implorar.
Ele se lembrou de muitas estações passadas, voltou ao tempo quando eu o ensinava a ser
um xamã, quando Pepe havia pedido a Yai Pada que sua alma fosse poupada de julgamento. Ele
chamava isto de “oração”. Depois que Pepe terminou, Sapato-Pé tinha orado. Mas ele não tinha
certeza daquilo que havia dito ou do que significava, algo sobre seguir os novos costumes do
grande espírito. Então, deixou a casa de palha de Pepe e caminhou para a selva, para estar só.
Ele se lembrava disto como se fosse ontem.
Longe da aldeia, Sapato-Pé saiu do caminho, para não ser seguido. Sentou num monte de
folhas e encostou-se num tronco de madeira de lei e olhou para cima, para a cobertura de
folhagem, em cima da cabeça dele. “Este é um lugar maravilhoso,” ele disse, “mas tão
misterioso.”
Ele havia falado com este novo espírito, dizendo coisas que nunca diria, com Pepe
escutando. Pepe não podia entender o que nós xamãs sabíamos. “Não posso jogar fora estes
meus espíritos,” Sapato-Pé havia dito a Yai Wana Naba Laywa. “Eles me matarão antes de
partirem. Eu O deixarei retirá-los, se puder. Mas, não sei por que o Senhor os tiraria. O Senhor é
o espírito hostil, o espírito inimigo. Se você me vê ou se preocupa comigo, então sabe que
preciso de outro espírito. Mas, os meus espíritos me dizem isso. Se Tu és o espírito de que
preciso, então terás que me libertar dos outros. Mas, eu não posso jogá-los fora.”
Depois disto, Sapato-Pé nunca mais tomou ebene, nem procurou seus espíritos. Ele
esperava que eles tentassem matá-lo, da mesma forma que tentaram, quando eu estava
treinando-o, no início.
Alguns dias depois, algo aconteceu, mas não da maneira que ele esperava.
Estava na rede, quase dormindo, quando o próprio Omawa, o líder de todos os nossos
espíritos, chegara até a ele, vindo do meio da selva. Enquanto vinha, juntou com sua mão, todos
os aromas mais doces do mundo. Sua beleza, seu poder e seu doce aroma eram tão maravilhosos
que Sapato-Pé sabia que não conseguiria resistir. O corpo de Sapato-Pé se encheu de excitação.
Ele era tão importante assim, para receber uma visita do próprio Omawa!
Omawa tirou Sapato-Pé da sua rede e começaram a dançar pela selva. Isto era melhor do
que tomar ebene, ou mulheres, ou qualquer coisa que Sapato-Pé poderia imaginar; embora
soubesse que Omawa o levaria de volta aos seus espíritos. Ainda assim, foi um momento
irresistível.
Quando estavam prestes a dançar eternamente pela selva, de repente, foram atingidos por
uma luz branca, mais brilhante do que muitos sóis. Sapato-Pé nunca tinha visto algo tão
deslumbrante. Era um raio brilhante que não tinha fim. A luz radiante permaneceu e seu calor
encheu Sapato-Pé de um sentimento que nunca experimentara, um sentimento de segurança. Era
tão bom.
No mesmo instante em que a luz apareceu, uma voz forte disse, “Você não pode tê-lo. Ele
é meu.” E Omawa fugiu, aterrorizado! Correu por cima da selva até ficar fora de vista. É ele,
Sapato-Pé pensou, quando ouviu a voz. É Yai Pada, o grande espírito e ele não é um inimigo! Ele
me ouviu quando lhe pedi que perseguisse meus espíritos! Afinal de contas, ele deve ser meu
amigo!
A luz, o calor, a segurança, o cuidado do espírito mais poderoso, era bom demais para
Sapato-Pé possuir em apenas um momento.
Agora, Sapato-Pé estava sentado na sua cadeira, em frente à igreja, na Aldeia Mel
recordando. Naquele tempo, ele era jovem e agora estava velho. Mas ainda se lembrava daquele
dia e da luminosa beleza de Omawa. Quão encantador ele era! Mas Sapato-Pé sabia que todos
123
os espíritos de Omawa eram a razão de tanta miséria. Aquele dia foi o começo da sua nova vida
com Yai Wana Naba Laywa, o espírito inimigo, que mostrou ser um amigo. Depois daquele dia,
Sapato-Pé nunca mais viu, nem ouviu nada de Omawa ou de qualquer outro espírito.
Eu falhei, Yai Pada, ele chorou. Fiz tudo o que podia, mas falhei, ele repetia. Este povo é
muito teimoso para entender. Nem os nabas entendem, nem Keleewa. Estão todos contra mim.
O Senhor é tudo o que tenho. O Senhor tirou a mim e ao meu povo da miséria, da fome. Por que
faria tudo isso e depois nos deixaria voltar para a guerra? Mas ainda que o Senhor fracassasse, eu
não voltaria para os meus espíritos agora, não depois da vida que tive contigo. O Seu espírito me
libertou do medo constante que sentia por causa de tantas guerras. O Senhor tomou sobre si
tanta dor, quando se tornou um de nós, para nos livrar destas guerras. Por favor, não nos deixe
voltar para isto.
Sapato-Pé ficou, a manhã inteira, no pequeno prédio dizendo estas coisas.

Fora da entrada do shabono, na Aldeia Esquecimento, os guerreiros da Aldeia Mel,


finalmente, terminaram de limpar o mato. Agora, estavam todos juntos para atacarem. Homem-
Baixo, Não-Cresce, Homem de Frutas, Homem-Engraçado, Rabo de Preguiça, Cabeça-Grande e o
resto dos homens, estavam olhando para O-Feroz, para conduzir o ataque. Com exceção de
algumas brigas com a Aldeia Boca, eles nunca haviam lutado com outra aldeia. Enquanto
atacavam a abertura do shabono, os guerreiros da Aldeia Mel encontraram três, dos guerreiros
mais corajosos da Aldeia Esquecimento, aqueles que se vangloriaram, dizendo que nunca
entrariam. Da mesma forma como aconteceu com a Aldeia Boca, os pequenos porretes dos
guerreiros da Aldeia Mel funcionaram. Pá, Pá, Pá, Pá era o som do porrete na cabeça do líder. Foi
para o chão antes que pudesse golpear alguém. Os outros dois guerreiros corajosos levaram os
mesmos golpes rápidos na cabeça, então, os guerreiros da Aldeia Mel, passaram por cima deles e
entraram no shabono.
As mulheres e as crianças gritaram e se espalharam em todas as direções. A maior parte
dos guerreiros correu, quando viram quão fácil e depressa seus melhores guerreiros haviam sido
golpeados. Mas guerreiros valentes nunca correm. É por isso que não vivem para serem homens
velhos. Todos os guerreiros valentes da Aldeia Esquecimento ficaram até cambalearem e caírem
no chão.
Terminou tão rápido. Aqueles que haviam corrido, voltaram para o shabono, quando
perceberam que ninguém estava perseguindo-os e que seus líderes estavam sendo golpeados,
mas não até a morte. As mulheres também voltaram ao shabono. Foi a primeira vitória
Yanomami em que as mulheres não foram estupradas.
“Onde está Yoshicami?” Homem-Baixo gritou ao pai dela que sentou-se, enquanto
segurava sua cabeça ensangüentada e perguntava a si mesmo porque não havia deixado-a ficar
na Aldeia Mel. “Ela finalmente escapou.”
“Se ela tivesse escapado, teria corrido para a Aldeia Mel,” Homem-Baixo disse. “Onde ela
está?”
“Quando ela ouviu que Cabelo Vermelho havia morrido, ficou tão aborrecida, que correu
para a selva, e não pudemos achá-la. Ela está esperando um filho dele.”
“Queimaremos este lugar até o chão,” Homem-Engraçado disse e correu de volta à canoa.
Voltou com uma lata de gasolina.
“Espera, espera!” Não-Cresce e Rabo de Preguiça gritaram. “Guarde aquela gasolina. Não
viemos aqui afligir as crianças. Dê uma olhada, Homem-Engraçado. Onde tem um homem sem
uma cabeça golpeada?” Homem-Engraçado olhou a lata de gasolina na sua mão. Ele pensou nas
crianças. Então, sentiu muita vergonha de si.

124
Todos, de ambos os lados, olharam ao redor. Nenhuma pessoa da Aldeia Mel tinha sido
golpeada. Todos os inimigos estavam iguais ao pai de Yoshicami: sangue escorrendo pelos rostos,
gotejando nos peitos e no chão. “Viemos fazer aquilo que queríamos.”
Homem-Baixo apontou o dedo aos guerreiros ensangüentados. “Se ainda tivéssemos
nossos velhos costumes mataríamos cada um de vocês. Nunca esqueçam disso.” Não tinham
forças para olhar para ele. Mas ouviram. “E levaríamos Yoshicami e todas as suas mulheres. E
vocês sabem o que faríamos com elas. Vamos partir agora e nunca nos deixem ouvir novamente
que vocês estão amarrando aquela menina. Se ouvirmos, voltaremos.”
O pai de Yoshicami era muito velho, mas tinha uma boa memória. Ele se lembrou daquela
grande invasão na Aldeia Batata. Lembrava-se de todas as pessoas que foram assassinadas
naquela manhã e de todas as mulheres que estupraram.
O velho homem estava sentado, mas com a cabeça confusa. Todo aquele sangue
escorrendo não lhe ajudava a pensar claramente. Olhava para Homem-Baixo com muitas
perguntas nos seus olhos. Este povo, falou consigo, que eu achava não ser suficientemente
valente para ser Yanomami, acaba de mostrar sua coragem protegendo minha filha. E agora, eles
me mostram que não são Yanomami nos deixando viver, não roubando e nem estuprando nossas
mulheres.

Dois dias depois, foi o primeiro dia da semana e todos, na Aldeia Mel se juntaram na igreja
para a reunião semanal. Sapato-Pé se levantou para falar.
“Hoje quero falar com vocês a respeito de uma pequena coisa”, ele começou. “Os de
vocês que podem ler, olhem no livro de Yai Pada onde diz, 'Façam todo o possível para viver em
paz com todos. Amados, nunca procurem vingar-se, mas deixem com Yai Pada a ira.' Yai Pada
diz, 'Minha é a vingança, eu retribuirei.'”
Sapato-Pé ficou quieto por um tempo, enquanto deixava que todos pensassem no que ele
ia dizer.
“Porque vocês são a minha família e os meus melhores amigos no mundo, quero que
saibam que penso que Yai Pada escreveu aquelas palavras justamente para nós, Yanomami.
Todos sabem que durante toda a nossa vida, tudo o que queríamos era vingança. Vocês,
mulheres velhas, sabem como guardaram os ossos dos seus parentes, esperando pelos filhos
crescerem para bebê-los e se vingarem. Vocês sabem que os nossos antigos espíritos diziam que
devíamos matar por vingança. Agora, seguimos o espírito que nos diz que façamos
completamente diferente.
“Digo-lhes que Yai Pada escreveu isto para os Yanomami, porque ninguém sabe mais sobre
guerra do que nós. Sabemos que nenhuma briga jamais termina. Sempre procuramos assegurar
que ela continue e continue.
“Se deixarmos que Yai Pada cuide da vingança, então nossas brigas sempre serão
menores. Se Ele quer matá-los, Ele pode. Mas nós não seremos os culpados quando acontecer e a
briga nunca vai aumentar.”
Sapato-Pé observou que seu povo ficou agitado nos bancos, enquanto falava. “Não vou
dizer que estou alegre por causa daquilo que fizeram. Vocês estavam errados em tentar se vingar.
Quando você vai e briga com eles, sempre piora. É o que Barbudo queria. O novo espírito que
agora seguimos está esclarecendo isto para nós e quero que vocês que sabem ler, leiam isto por
si mesmos e leiam a seus pais.
“Este novo espírito quer que deixemos nossa velha vida de vingança. Se alguém, na Aldeia
Esquecimento, tivesse morrido estaríamos numa guerra. Todos sabem que muitos destes nabas
bem instruídos, como Barbudo, querem que nós aqui, da Aldeia Mel, voltemos aos nossos velhos
costumes. Eles sabem que todos os Yanomami estão olhando para nós e desejando ser iguais.

125
Os nabas sabem que se falharmos neste novo caminho, todos os outros Yanomami permanecerão
nos seus velhos costumes. Então, os nabas gostariam que voltássemos para os velhos costumes.”
Todos ficaram quietos. Podiam sentir tanto sentimento na sua voz, quando ele terminou
de falar, “Mas nunca voltaremos!”
Sapato-Pé sentou. Homem de Frutas se levantou para falar. Ele sempre achava que
deveria ter sido o líder desta aldeia, então, freqüentemente desafiava Sapato-Pé. É por isso que
Homem de Frutas ficou tão ansioso para vingar-se. Mas, ele não queria voltar aos velhos
costumes. E podia ver que Sapato-Pé tinha razão.
“Nos orgulhamos do que fizemos”, disse a todos. “Não nos sentimos contritos pelo que
fizemos, mas não faremos novamente. Alguns de vocês jovens têm se orgulhado da maneira como
os vencemos. Parem de fazer isso. Achávamos que tínhamos que fazer isto e fizemos. Mas não há
nada para se vangloriar. Usando sua boca desta maneira, apenas incita problemas.”

Depois de um tempo, Yoshicami ficou tão infeliz, na Aldeia Esquecimento, que fugiu para
outra aldeia onde tinha parentes. Nunca voltou para lá. Pé-Comprido ficou com apenas uma
esposa, a pequena bonita Yawalama.
Já lhe contei a respeito de Yawalama, de como o irmão dela, Raul, tentou impedir que seus
pais a dessem para Pé-Comprido. Ele sabia que Pé-Comprido seria tão cruel à sua irmãzinha como
tinha sido a Yoshicami.
Yawalama não desejava viver na mesma miséria que Yoshicami. Cada noite, Pé-Comprido
tinha que arrastá-la à rede dele. Ela chutava e gritava. Então, perturbava todos, na aldeia, a noite
inteira com os seus berros. Foi uma grande bagunça, mas era o costume Yanomami e sua família
sabia que depois de um tempo se acostumaria a ele e aceitaria a viver com ele. Pelo menos, ela
perceberia, que todo aquele alvoroço era um desperdício de energia.
Duas luas depois, todos, na aldeia, ainda estavam muito cansados do barulho de todas as
noites. Finalmente, Pé-Comprido descobriu que o que ela realmente queria era um dos jovens,
mais próximos da sua idade.
“Se você mexer com outro homem e eu a matarei,” ele disse a Yawalama para que todos
pudessem ouvir.
“Ela é minha irmã,” Raul lhe disse, “e não vou ficar parado vendo-o matá-la. Se você a
tratar bem, melhor do que fez com Yoshicami, aprenderá a gostar de você, depois de um tempo.
Falando em matá-la, não vai fazer com que goste de você.” Mas o comportamento de Pé-
Comprido não melhorava e todas as noites fazia a mesma coisa, arrastava-a gritando para a sua
rede. Todos, na aldeia se irritaram. Ela estava demorando muito para se acostumar com o
marido dela. A lamúria e a choradeira deveriam ter parado há muito tempo.
Um dia, todos os homens foram caçar. Era um dia perfeito para caçar, então Raul achou
estranho seu cunhado ter deixado de ir sem dizer nada. Pé-Comprido voltou ao shabono,
desamarrou sua rede e apanhou todas as suas coisas. Então, ele foi para o mato e escondeu-as
na capoeira. Quando voltou ao shabono, gastou muito tempo afiando o seu facão.
“Para onde você vai viajar?” uma das mulheres lhe perguntou.
“Vou visitar minha família,” ele disse. A família dele vivia longe, na cabeceira do Rio
Padamo. As mulheres não acreditaram, então duas delas foram procurar os homens.
Yawalama estava na roça, tirando mandioca. Tirou mais uma raiz e acrescentou ao monte
que ela e sua amiga estavam juntando para descascar e ralar. “Temos muita mandioca nesta
estação,” ela disse. Quando olhou para cima, lá vinha seu marido, caminhando em sua direção,
entre as ramas de mandioca. Seu facão brilhava na luz do sol e ela viu um homem determinado
em acabar com o seu problema. Ela gritou e virou para correr.

126
As mulheres acharam o grupo de caçadores. “Venham rápido,” disseram a Raul.
“Achamos que ele vai fazer algo a Yawalama!”
Yawalama já havia saído da roça e estava no caminho, quando Pé-Comprido pegou-a e
jogou-a no chão. Ela deu um salto e ele golpeou uma de suas pernas. Com suas costas no
chão, usou seus braços para se proteger do seu facão. Ele a cortou como um animal feroz e a
deixou para morrer.
Raul ouviu o choro das mulheres antes de alcançar o shabono. É tarde demais, ele
pensou, ela já está morta. A mãe dele o encontrou no caminho. “É tarde demais,” ela lamentou.
“Ela está próximo à roça.”
Ela tem que estar viva, Raul tinha esperança. Ele correu para a roça e viu na capoeira
todas as folhas cobertas com sangue. Ele abriu a capoeira. Ali no chão estava a irmã, que ele
tentava proteger, rodeada de uma poça de sangue. Ela parecia um animal abatido. Alguns de
seus ossos estavam completamente cortados e somente pendurados pela carne. Ossos brancos e
tendões ressaltavam por todo o corpo.
Raul enviou o seu tio, remando rio abaixo, para a aldeia inimiga, Aldeia Mel, para pedir
ajuda. “Ela está muito ruim?” Keleewa perguntou ao homem ofegante.
“Talvez não estará viva quando voltarmos,” o tio disse. As pessoas da Aldeia Mel
conheciam bem Yawalama. Com seus olhos grandes e marrons e seus cabelos pretos e
ondulados, havia conquistado a todos.
Homem-Engraçado levou dois homens consigo e pulou para dentro da canoa. Estava
quase escuro quando ele puxou a corda e deu partida no motor. A proa da canoa se levantou fora
da água e o motor fez uma onda que bateu no banco, a canoa entrou na correnteza e virou rio
acima. Há apenas duas luas eu tentei queimar esta aldeia, Homem-Engraçado pensou. Agora
estamos indo ajudá-los.
Era o meio da noite quando Homem-Engraçado encostou no barranco da Aldeia
Esquecimento. Estou desperdiçando meu tempo, ele pensou, olhando a menina toda cortada.
Raul estava com ele. Foram recebidos por metade das pessoas da aldeia segurando suas
lanternas. Seus rostos ficaram horrorizados quando viram Yawalama. Precisava de cinco pessoas
para carregá-la, porque precisava de muitas mãos para apoiar as partes que quase haviam sido
cortadas fora. Deemeoma fez tudo o que pôde para ajudar.
“Ela está estragada!” as mulheres sussurravam entre elas.
“Ela está morta!” Outras gemiam e começou uma lamentação de luto. Até os homens se
uniram a elas.
Na claridade da cabana que usaram para dar os remédios, Keleewa, sua esposa e irmãs
olharam para ela. “O que vocês fizeram a esta menina!” Keleewa gritou chocado, com todos. Ele
se lembrava dela, tão claramente, oito estações anteriores, como ela havia pulado, dado risada e
brincado, seus olhos grandes brilhavam para todos. Ele lembrava de quando ela saltava no seu
colo. Agora ele segurava sua mão e antebraço, com dois ossos para fora, quase completamente
separados do braço, se não fosse um pequeno músculo. Na sua mão direita segurava seu punho
com mais dois ossos para fora.
Lágrimas vieram aos seus olhos. Por que Deus me trouxe para este lugar? Ele se
perguntou. Deus era o nome que os nabas deram para Yai Pada.
“Deveria atirar em todos vocês!” ele gritou. “Esta menina era tão bonita. Ela tem apenas
treze estações e vocês a massacraram como um animal!” Ele limpou a terra e as folhas do
músculo e juntou o braço. “É assim que acontece quando vocês dão estas meninas a pessoas que
elas não querem. Vocês nunca vão aprender? Se fosse por mim, levaria vocês lá fora e bateria
em cada um. Melhor que isso, eu atiraria em vocês! Não há nenhuma chance desta pequena
menina bonita sobreviver. Ela vai fechar os olhos a qualquer segundo e nunca mais a veremos

127
novamente. O diabo é dono de vocês ! O que é que eu estou fazendo aqui, neste lugar destituído
de Deus?”
Keleewa estava tentando cobrir o músculo da perna de Yawalama com a pele solta, quando
olhou e viu os olhos de Raul. Ali ele observava o mesmo desespero que sentia. Ele estava
gritando pela vítima.
Keleewa se aproximou de Raul e o abraçou com seus braços ensangüentados. “Faremos
tudo o que pudermos.” Ele virou para Yawalama, balançando sua cabeça e murmurou a si
mesmo, “não será muita coisa. Ninguém pode sobreviver a isto.” Ele virou e olhou no seu rosto,
para ver se ela ainda estava viva. Ela conhecia Keleewa. Todos conheciam Keleewa, o melhor
amigo que o povo Yanomami já teve. Agora, era a vez dela desfrutar da bondade dele. Seus
grandes olhos o encararam e sorriu um pouco. Aquele sorriso não permanecerá , ele pensou. Ela
partirá a qualquer minuto, queimaremos seu corpo, partirei e não voltarei mais.
Mas ela não morreu. Keleewa, sua esposa e irmãs gastaram o resto do dia limpando os
ferimentos e juntando os músculos nos braços e nas pernas. Eles amarraram as partes em
pedaços de pau para mantê-las unidas e fincaram um acolchoamento e panos brancos sobre elas,
tão apertados quanto possíveis. A rótula do joelho estava cortada e os tendões ressaltavam.
Colocaram a rótula de volta e passaram esparadrapo. De poucos em poucos minutos Keleewa
olhava para ver se ela ainda vivia. Estava tão perto da morte que não sentia nenhuma dor.
Parecia que ela havia perdido a maioria do seu sangue. Raul vigiava, chorando. As mulheres
lamentavam.
Trabalharam nela a noite inteira. Não puderam pedir ajuda pelo rádio, porque o avião não
voava à noite.
Quando o sol, finalmente, se levantou, Yawalama ainda estava viva. A esposa de Keleewa
usou o rádio para chamar o avião. Três horas depois eles a colocavam cuidadosamente numa
rede dura e comprida e a punham na parte de trás do avião. Raul observou o avião levando sua
irmã pelo gramado da pista e então, voar.
Ele meneou sua cabeça e chorou. Ele a veria novamente? Será que seu povo sempre
viveria assim? Será que de alguma maneira, em algum tempo, eles viveriam como o povo da
Aldeia Mel vive?
O avião decolou e voou pelo rio e por cima das árvores. Raul ficou observando, enquanto
as pessoas partiam. Há alguma esperança? ele desejou saber. Mesmo que ela viva, para que
voltar? Mulheres não têm nenhuma chance aqui nesta selva. Ele se lembrou daquele odor
horrível que sentiu no dia que um homem se aborreceu com sua esposa. Ele a jogou no chão e
pisou num dos seus tornozelos. Então, ele levantou o outro tornozelo e com suas mãos enfiou
uma lenha do fogo entre as pernas dela. “Se você não me quer, então não terá ninguém, por um
bom tempo,” Raul se lembrava dos gritos do homem. Ele segurou a lenha no local até todo o
ambiente feder com o cheiro de carne queimada.
Raul assistiu até não poder ver mais o avião. Talvez, ficarei nesta aldeia por um tempo, ele
pensou. Os homens daqui são tão estranhos. Eles nem tem medo de serem apanhados ajudando
suas mulheres. Talvez, eu possa aprender o que os faz tão diferentes.

128
CAPÍTULO 14

ASSASSINOS COMO EU

As pessoas, na Aldeia Mel, são muito ricas. E ficam mais ricas a cada estação. Mas,
principalmente, elas estão contentes. Os filhos de Sapato-Pé têm saúde e são bonitos. E sua
esposa e amigos estão contentes.
E eu? Por que não fiquei rico? E por que estou tão infeliz? Minha aldeia não tem nada.
Todos os meus filhos morreram, exceto um. E ele tem o espírito do Veado. Bem, ele diz que tem
o espírito do Veado. Mas não tem; o espírito do Veado o tem. Ele é inútil para mim! Mudaria a
nossa aldeia inteira para a Aldeia Mel, mas o espírito do Veado nunca permitiria que meu filho
viesse. E quero tanto meu filho comigo, que não o deixaria. Tudo é culpa do espírito do Veado.
O que é que eu tenho? O que é que tenho de bom, depois de uma vida inteira com estes
espíritos?

Parti da Aldeia Mel, um dia em minha canoa voltando rio acima. Minha esposa estava
contente pelo tempo que havia gastado com Sapato-Pé, sua esposa e filhos. Estavam tão
contentes na Aldeia Mel, e todas as vezes que os visitávamos sempre os encontrávamos
contentes. Homem-Engraçado pilotava o pequeno motor e guiava a canoa pelas praias. Esta
maneira de viajar é bem mais agradável do que remar, comecei a pensar, enquanto observava a
mata que estava sob o rio. Comecei a pensar em minha miséria.
Passamos pela Aldeia Esquecimento e me lembrei de Pé-Comprido e a dor que tinha
causado a Yoshicami e Yawalama. Fez-me lembrar da dor que eu tinha causado a Deemeoma.
“Não nos jogue fora, Pai”, espírito da Onça me implorava novamente, e os outros se uniam
a ele. Aproximaram-se de mim como morcegos apavorados.
“Por que ainda me desejam?” Perguntei. “Estou velho agora. Não sou útil para vocês”. Mas
continuaram me aborrecendo. E todas as vezes que visitava a Aldeia Mel, aqueles pensamentos
ruins sobre os meus espíritos vinham a minha mente. Mas meus espíritos sempre ficavam tão
perturbados por causa destes pensamentos que nunca terminava de pensá-los.
Vou terminar de pensar hoje, falei comigo. E fiz isso. Eram pensamentos que eu
entendia. Mas, meus espíritos sempre me impediam de pensá-los. Mas hoje não.
Eu não tenho nada! Tenho sido um tolo! Toda a minha vida fui um tolo e agora nem
mesmo tenho uma família. O único amor e cuidado que consigo, vem daqueles parentes que
jogaram fora todos os nossos espíritos e costumes.
“Não é nossa culpa,” Encantadora implorou. “Você precisa do espírito de Famílias-Juntas
para ajudá-lo. Nós lhe ajudaremos a achar aquele espírito e sua família vai melhorar tanto
quanto as famílias na Aldeia Mel.” Não lhe respondi. Ouvi estas desculpas toda a minha vida:
“Não nos culpe”, “Não somos o espírito para aquele problema”, “Você precisa de outro espírito”,
e assim ia.
Mas, tive mais espíritos do que qualquer outra pessoa. O que não tive foi tempo suficiente,
na minha vida, para que algo melhorasse.
Meus espíritos odiaram meus pensamentos, naquele dia, enquanto Homem-Engraçado nos
conduzia por cada curva no rio. Mas, de todo jeito, pensei.

Não muito tempo depois, numa manhã, estava andando pelo caminho voltando de uma
pescaria. Não tinha pegado nada. Era um dia ensolarado, mas o caminho estava escuro e frio.
129
Estava sozinho com os meus pensamentos quando vi meus espíritos se aproximando por trás de
mim com facões. Muitos dos meus espíritos já haviam partido e ido para xamãs mais jovens. Era
normal, pois eu estava velho.
Com movimentos bruscos me golpearam na nuca. Olhei para ver se minha cabeça tinha
sido cortada e se estivesse rolando pelo caminho. Caí e tudo escureceu. Mas, eu sabia o que
estava acontecendo. Meu tempo esgotou. Havia ensinado isto aos meus xamãs. Sabemos que
quando nossa utilidade acaba, eles vêm, nos levam embora e nos matam, é o que eu quero dizer.
Mas, nunca pensei que eles viriam a mim. Acredito que todos pensam assim. Nunca
diríamos isto em voz alta, mas penso que tivemos o mesmo sentimento, “Espíritos vêm e matam
xamãs velhos, mas de alguma forma meu tempo não viria.” Tinha o direito de pensar assim,
porque sempre tive um relacionamento muito especial com meus espíritos.
Não havia nada que eu pudesse fazer. Estavam tentando me matar.
No shabono, meu filho e o outro xamã sentiram o que estava acontecendo. Olharam um
para o outro e meu filho gritou, “Os espíritos estão matando meu pai! Já o golpearam na nuca!”
Minha esposa gritou, “Vá lá e ajude-o!” todos, da aldeia, pularam e correram pela entrada
do shabono, caminho abaixo. Mas eu estava longe.
Quando acordei, estava deitado no chão. Meus espíritos estavam batendo no meu peito.
Pulei e corri pela selva, como jamais havia corrido. Cheguei num lugar aberto, tropecei e cai no
chão. Outra vez começaram a bater em meu peito. O meu fôlego estava acabando, mas não
sentia dor. Fiquei deitado na grama alta e observei um punho após outro esmurrando o meu peito
com grande força. Mas, não sentia nada. Ainda sabendo que deveria esperar por isto, não podia
acreditar que meus amigos mais íntimos estavam fazendo isto comigo. Encantadora estava junto
com eles.
Antes de me matarem, uma luz brilhante veio. Era tão luminosa que não pude ver nada.
E havia algo muito quente que nunca havia sentido. Uma criatura se pôs sobre mim, e era mais
deslumbrante do que qualquer um poderia pensar. Assim que o senti, sabia quem era. Era
aquele que sempre chamamos de Yai Wana Naba Laywa, o espírito hostil, o espírito inimigo. Era o
mesmo que havia comido os espíritos dos nossos filhos, aquele que nós e todos os nossos
espíritos odiavam, aquele que sempre temi na Aldeia Mel. Era o mesmo espírito que meu
seguidor, Sapato-Pé, tinha tomado para si, quando jogou fora os espíritos que eu havia achado
para ele. Todas aquelas vezes que ele tinha me enfurecido com histórias sobre um grande
espírito, que se tornou homem para fazer um caminho até a sua terra; sabia que era o mesmo.
Nunca tinha visto uma luz tão brilhante.
Fiquei deitado no chão, coberto por uma nuvem de claridade, vendo toda a minha vida e
percebi o quanto havia sido enganado. Lembrei-me de todas as coisas que meus espíritos haviam
me falado. De repente, no meio daquela luz brilhante, via que tudo era mentira. Tudo o que eles
haviam me dito era mentira. E tais mentiras eram inteligentes! Toda a nossa vingança, todos os
hábitos, todo o bater nos peitos, tudo isso contribuiu para a nossa infelicidade. Fui usado pelos
meus espíritos para o prazer deles.
Vi Shecoima dançando para salvar a águia filhote. Que mentira! Eu me vi perseguindo as
almas das crianças. Elas não estavam sendo comidas, estavam indo para ficar com Yai Wana
Naba Laywa, na sua terra maravilhosa que tinha um rio cristalino. Vi as pessoas mortas que eu
havia pendurado na selva e todo o trabalho sujo de limpar a carne dos ossos, para que
pudéssemos moê-los. Como fui enganado!
Toda a minha vida fugi desta bela criatura, pensei. Não é de admirar que eu não tenha
nada.
Tudo aconteceu no estalo de uma corda de arco. Yai Wana Naba Laywa me alcançou e me
agarrou. Senti-me tão seguro. É por isso que não sinto dor, pensei. Ele se pôs sobre mim, me
puxou para longe dos meus espíritos e me disse, “Não se preocupe. Você ficará bem. Estou aqui
para protegê-lo.” Então, com uma forte voz o espírito disse a meus espíritos, “Deixem-no. Ele é
130
meu.” Eles fugiram apavorados, como um bando de queixada. E Ele tinha razão; Eu pertencia a
Ele.
Naquele momento, senti-me tão seguro como nunca na minha vida. Observei meus
espíritos fugindo para longe de mim. Quando vi o terror deles, o medo que senti, durante toda a
minha vida, partiu com eles. Justo quando eu precisava de um outro espírito, o de Sapato-Pé,
repentinamente, decidiu me livrar dos meus.
Naquela hora, as pessoas da minha aldeia chegaram. Eles me acharam na clareira,
sentado na grama, ao longo do caminho. Eu estava atordoado por tudo que havia visto.
Pensávamos que Yai Pada era quente como um fogo. Mas ele não era quente, apenas caloroso.
Tão caloroso.
“Você está morrendo!” meu filho gritou, enquanto se aproximavam de mim.
“Não, me sinto bem,” eu disse. Mas não pude dizer quão bem me sentia.
“Não, você está morrendo,” os outros disseram. “Os espíritos vieram matá-lo. Sabemos
que você está morrendo.”
“Não, estou bem,” falei, enquanto me ajudavam a levantar. “É verdade, eles vieram para
me matar. Mas, quando estava quase morrendo com as pauladas, Yai Pada veio e me salvou.”
“Iremos para a Aldeia Mel buscar ajuda.”
“Não. Eu não preciso. Me sinto bem,” eu disse. Eles podiam observar que havia algo de
errado comigo. Então, enviaram alguém para a Aldeia Mel, para dizer-lhes que eu estava
morrendo. Não havia nada que pudesse fazer para pará-los.
Naquela noite, enquanto estava deitado na minha rede, pela primeira vez em minha vida,
não havia espíritos vindo até mim para cantar, dançar e conversar. Sempre pensei que nunca
conseguiria viver sem eles. Mas, enquanto estava deitado fiquei tão feliz em ouvir o silêncio. E
não somente feliz, como também, em paz e seguro. Não havia mais tumulto nem escuridão em
meu shabono. Pensei que poderia ser toda essa felicidade, paz e silêncio que meus espíritos
temiam, quando me imploravam para não jogá-los fora. “Yai Wana Naba Laywa,” eu disse, “o
Senhor tem ouvidos como os outros?” pude perceber que ele me ouvira. Então, pedi que Ele me
livrasse da cova de fogo, o lugar que todos os xamãs temiam.
Quando as pessoas da Aldeia Mel vieram, falei-lhes que não estava doente e que vieram
sem motivo algum. Mas, sabia que eu tinha que voltar com eles, para aprender mais sobre meu
maravilhoso espírito.
Na minha viagem até a Aldeia Mel, pensei sobre todas as coisas que havia aprendido sobre
os meus espíritos. Na Aldeia Mel, comecei a aprender com Keleewa sobre o espírito de perdão,
em vez de vingança, o da bondade, em vez de ferocidade. Keleewa disse que todas aquelas idéias
vinham do meu novo espírito. Nós, xamãs, sempre o chamávamos de Yai Wana Naba Laywa, mas
agora que sei que Ele não é nosso inimigo, o chamo de Yai Pada, o grande espírito. Enquanto eles
me contavam sobre como Ele havia se tornado homem e aberto o caminho para o seguirmos até
sua terra maravilhosa, eu percebia como tudo era verdade.
“Eu sei,” eu disse. “Você havia me contado antes sobre como o grande espírito havia se
tornado homem, mas fui impedido de ver isto. Agora, sei que Ele é aquele que me resgatou dos
meus espíritos, no caminho.”
Meneei minha cabeça e estalei minha língua novamente. Como é que não havia percebido
isto há tanto tempo? Agora tudo estava tão claro e tão diferente.

Um dia, um visitante da Aldeia de Cabeludo veio a Aldeia Mel, com notícias horríveis para
Keleewa. Alguém havia assoprado alowali no irmão de Cabeludo e ele estava morrendo. Ele
implorou que Keleewa voltasse para a aldeia com ele.

131
Depois de dois dias no rio, atravessando a selva, acharam o irmão de Cabeludo quase
morto com malária. Depois que lhes deram o medicamento, ele melhorou. Keleewa advertiu
fortemente a todos que não era alowali que o havia feito adoecer, e que não deveriam pedir aos
espíritos que indicassem o culpado.
Era fácil entender agora. Alowali era uma das grandes mentiras que os espíritos tinham
nos contado.
“Não vamos,” Cabeludos prometeu. “Vamos aprender os novos costumes e seguir um
novo espírito. O que é que precisamos fazer para conseguir alguém para nos ensinar sobre o seu
Yai Pada? Gostaríamos de limpar um lugar, aqui na selva, para que o avião pousasse, bem aqui,
onde estamos.” Keleewa desejou saber se Cabeludo sabia o que estava dizendo.
“Se vocês limparem, viremos,” Keleewa lhes falou. Cabeludo sabia que ele era de
confiança.
Cabeludo empurrou a canoa que levava Keleewa, Viagem e os outros para a água e os
observou até virar, rio abaixo, na direção da Aldeia Mel. Ele recordava da esposa que havia
matado. Não quero mais tratar as mulheres assim, ele pensou. Não quero que meus filhos sejam
assassinos, como eu. Quero que sigam o espírito deste homem de paz. Quero que todos nós
sejamos livres do nosso passado. Quero dormir novamente.
Naquele dia, Cabeludo e todo o seu povo começaram a limpar a selva. Amigos e inimigos
de outras aldeias vieram dar risadas. Havia árvores enormes para cortar e tocos para tirar. Então,
surgiram alguns problemas. O irmão de Cabeludo adoeceu de novo.
Desta vez, o irmão de Keleewa, Miqie foi a Aldeia de Cabeludo com Homem-Engraçado e
alguns outros. Chegaram lá um pouco antes de escurecer. O irmão de Cabeludo estava prestes
a morrer. No meio da noite, ele acordou e lhes disse que não voltaria mais. Ao amanhecer,
estava morto. O assassino, malária levou muitos, naquela estação.
O fogo de queimar o corpo estava pronto. Miqie, Homem-Engraçado e os outros puderam
sentir o cheiro da fumaça, enquanto se apressavam pelo trilho para levar as notícias a Aldeia Mel.
Quase todos da Aldeia Mel foram para a Aldeia de Cabeludo. Ficaram lá por muito tempo e
lamentaram com Cabeludo e seu povo. Eles os advertiram fortemente para não voltarem aos seus
espíritos, para se vingarem. Agora, era fácil para eu ver, que a vingança era o pior engano. Que
mentira! Como isso nos governava. E sempre achávamos que governávamos os espíritos!
“Nunca faremos isto,” Cabeludo disse com muitas lágrimas de tristeza, pelo seu irmão. Seu
irmão também havia sido um grande guerreiro e assassino. Agora, toda a liderança sobrava para
Cabeludo. “Se terminarmos de limpar a selva, para que o avião possa pousar, você enviará
alguém aqui, para nos ajudar?” Cabeludo perguntou.
“Se você limpar o local, alguém virá,” Migie disse a todos.
Cada vez que algo assim acontecia, podia ver que havíamos sido enganados de muitas
maneiras por nossos espíritos. Mas, o novo espírito não fazia tudo quanto todos queriam. Um
dia, Não-Cresce veio a Pepe com uma pergunta. “Este novo espírito que seguimos,” Não-Cresce
lhe perguntou, “Ele é capaz de remover a grande mancha preta do rosto de Yaiyomee?” Não-
Cresce sabia o tanto que sua filha era perturbada por causa dela. Ela estava aprendendo a
posicionar a cabeça para que ninguém visse a mancha no rosto.
“Certamente Ele pode,” Pepe respondeu, talvez um pouco rápido demais, ele pensou. Mas
por que não? Depois que ele havia visto uma aldeia de assassinos sendo transformada em
pacificadores, a ponto de perdoarem seus inimigos, o que era uma pequena mancha de nascença?
“Venha para minha casa amanhã e conversaremos com Yai Pada.” Realmente, a mancha não era
muito pequena, pensou Pepe.

132
Não-Cresce veio e eles oraram. Nada aconteceu. Ele veio no próximo dia e oraram. E no
próximo e no próximo. Isto aconteceu durante algumas luas, colocando Pepe numa situação
complicada.
“Yai Pada não faz exatamente o que queremos que Ele faça,” Pepe disse a Não-Cresce,
um dia. “Mas, de qualquer maneira, podemos continuar pedindo.” Então, Não-Cresce continuou
indo à casa de Pepe. Mas, nunca aconteceu nada. O fez lembrar da vez, que chamei os espíritos
para mandarem tatus para cavarem debaixo das paredes da casa de Pepe e fazer com que as
onças os esperassem nos caminhos. Mas, os espíritos não puderam fazer isto. Agora, Não-Cresce
decidira que Yai Pada também não podia fazer todas as coisas . Mas, Não-Cresce continuou indo
à casa de Pepe.
Nunca havia pedido a meus velhos espíritos para fazerem coisas mágicas, como Não-
Cresce estava pedindo a Yai Pada. Apenas queria que eles retirassem um pouco da nossa miséria,
para que pudéssemos viver melhores. E agora, eu via todas as maneiras que meus velhos
espíritos tinham usado, para nos impedir de ter uma vida melhor.

Nesta mesma época, veio à notícia para a Aldeia Mel, que Tucano estava muito doente com
malária. O seu povo o ajudou a fazer a viagem até os nabas, mas ele sabia que não chegaria a
tempo. Quando achou que estava prestes a morrer, fez com que todos os seus parentes
prometessem que não beberiam seus ossos e nem vingariam a sua morte. Logo depois que
chegaram na casa dos nabas, Tucano morreu.
Quando a notícia chegou na Aldeia Mel, houve grande lamentação de luto, na aldeia.
Muitos pensaram que teria que ter uma invasão e uma matança para se vingarem. A morte de um
grande homem, como Tucano, não poderia ficar sem vingança. Mas, até hoje, ninguém jamais
bebeu seus ossos e nem houve vingança por sua morte.
Tucano foi uma das grandes recordações do meu passado. Que grande luta eu e meus
espíritos tivemos contra ele e o seu povo. Apesar de ter sido nosso inimigo durante muito tempo,
agora era nosso amigo. E todos, na Aldeia Mel, choraram por ele. Nos confortamos com o fato
dele não ter sido morto por seus espíritos.
Eu sei que o meu tempo está se aproximando e é bom saber que não serei morto por meus
espíritos.
A morte de Tucano foi especial, porque eu sabia, muito bem, para onde ele tinha ido. Ele
foi o primeiro, da geração de nós xamãs, a jogar fora os seus espíritos e seguir o caminho de Yai
Pada até a terra maravilhosa Dele. Nossos espíritos sempre nos falaram que se tentássemos jogá-
los fora, eles nos matariam; talvez, esta seja a maior mentira de todas.

133
EPÍLOGO

SEJA BONDOSO COM ELA

Fredi nunca esteve muito contente na Aldeia Esquecimento. Apesar de tê-lo ajudado a
encontrar muitos espíritos, nunca possuiu o espírito certo. Quando pensou que não poderia ficar
mais triste do que estava, um galho de uma árvore caiu em sua filha e a matou. Triste, voltou
para a Aldeia Mel e jogou fora todos os espíritos que eu havia lhe dado, e depositou os seus
desejos no espírito-homem, Yai Pada. Meus parentes da Aldeia Mel foram bons com ele. Agora
ele é velho e sente-se confortado, porque a grande tristeza da sua vida já passou.

Yawalama recuperou-se quase completamente. Hoje, ela pode andar e usar ambas as
mãos. Nunca mais voltou para Pé Comprido e tornou-se esposa de um jovem, em outra aldeia.

Yoshicami sentiu tanta tristeza por causa da morte de Cabelo Vermelho, que fugiu da
Aldeia Esquecimento e nunca mais voltou. Sofreu muito, desde quando lutaram por ela e
pisotearam sua barriga. Não muito tempo depois, antes que sua barriga crescesse, sentiu dores
de parto e perdeu o bebê de Cabelo Vermelho.
Achou um homem, numa outra aldeia, para cuidar dela e dos seus filhos. Quando sua
barriga estava muito grande, ficou doente e queimou com a febre da malária. Trouxeram-na de
volta para a Aldeia Mel. Ela estava semi acordada quando o bebê estava prestes a nascer. Mas,
estava muito fraca, e tanto ela quanto o bebê morreram. As pessoas da Aldeia Mel queimaram
seu corpo e lamentaram. Eles ainda consideram Barbudo o responsável por sua morte.

Depois que Yoshicami morreu, um índio chamado Carlos veio, de uma outra aldeia, para
morar e trabalhar na Aldeia Mel. Mas, Carlos fez com que todos os homens ficassem furiosos com
ele, quando deu sua filha a um homem que tinha a mesma idade do seu avô. Depois, decidiu dar
a próxima filha a Pé Comprido, o mesmo homem que havia deixado Yoshicami e cortado
Yawalama em pedaços. Os homens da Aldeia Mel disseram a Carlos que não permitiriam que
fizesse isto.
Carlos voltou à sua antiga aldeia para perguntar ao seu pai o que devia fazer. “Claro que
você pode dá-la a Pé Comprido,” seu pai disse. “Somos Yanomami; podemos dar qualquer menina
a qualquer um que quisermos. É o nosso costume. Mas, por que fazer uma coisa tão terrível a
sua própria filha? Você sabe que os nossos costumes são horríveis para as meninas pequenas.
Então, se você vai seguir aquele novo espírito estranho da Aldeia Mel, então não deve dá-la a Pé
Comprido; você tem que ser bondoso com ela.”
Mas, de todo jeito, Carlos a deu para Pé Comprido. Quando Sapato-Pé ouviu isto, disse a
Carlos que ninguém na Aldeia Mel jamais diria que ela pertencia a Pé Comprida e que Carlos teria
que deixar a aldeia e nunca mais voltar.

O naba que eles chamavam de Não-Erra estava visitando a Aldeia Mel quando isto
aconteceu. Ele perguntou a Sapato-Pé por que exigia que seu próprio povo mudasse os seus
costumes.
Sapato-Pé explicou. “Antes de sabermos melhor, sabíamos que nossos costumes eram
ruins. Mas era tudo o que sabíamos. Agora que conhecemos uma maneira melhor de viver, não

134
podemos deixar que alguém venha aqui e desfrute das boas coisas que temos em nossa aldeia e
depois trate sua filha de acordo com os terríveis costumes. Se fizermos isso, daremos o primeiro
passo de volta aos velhos costumes. E nunca faremos isso.”
Mas, Não-Erra disse que Sapato-Pé havia deixado seus velhos costumes porque escutava
tais nabas como Pepe e Keleewa, e que se escutasse nabas como Abelha Irritante, manteria seus
velhos costumes, como tantos outros índios.
Sapato-Pé disse que podia ouvir quem ele quisesse.
Então, Não-Erra disse a Sapato-Pé o que a maioria dos nabas estava dizendo. Que as
pessoas da Aldeia Mel tinham sido enganadas pelos nabas, quando lhes deram mercadorias, para
que jogassem fora seus espíritos e fossem à igreja. Como as pessoas da Aldeia Mel eram pobres,
fizeram isto.
“Nabas que dizem tais coisas gostam de escrever livros e ganhar dinheiro vendendo
fotografias das nossas mulheres nuas,” Sapato-Pé disse a Não-Erra. “Eles escarnecem o meu
povo. Tenho vivido a minha vida inteira, aqui nesta selva. Se eles pensam que sabem a melhor
maneira de viver aqui, deixem-nos vir e nos mostrarem. E diga-lhes para não trazerem nenhuma
arma com eles. E nenhuma roupa. Nós lhes mostraremos como cultivar mandioca, antes de os
enviarmos para a vida maravilhosa na selva.”
Ele apontou para o outro lado do rio, para a mata verde que se estendia. “Pessoas que
falam assim não conhecem a dor do meu povo, que ainda vive, diariamente, na miséria. Por
acaso sou um cachorro, para que minha esposa e filhos vivam na dor o tempo todo, por causa
daquilo que as pessoas da sua terra dizem?”
Não-Erra não fez mais nenhuma pergunta.

Um dos nabas que veio à terra dos Yanomami e fez muitas coisas para ajudar o nosso povo
foi um homem chamado Dr. Anduce. Quando ele era jovem, trabalhou muito para curar as
pessoas e sempre tratou os índios com bondade. Depois, tornou-se um dos líderes do seu país.
Uma vez, ele exigiu que os guardas buscassem M.A. e o levassem embora do território.
Levaram M.A. para fora da selva com pulseiras de metal e correntes. Mas, depois de muitas luas,
ele voltou.
Dr. Anduce tentou conseguir os ossos do menino que morreu, depois de roubar a comida
do naba, dizendo que ele havia sido envenenado por ele. O médico disse ao povo que poderia
saber se o menino tinha sido envenenado, vendo os ossos. O povo confiava em Dr. Anduce, mas
não podiam entregar nenhum dos ossos dos seus mortos.
Durante muitas estações, ele continuou tentando conseguir os ossos, para que M.A. fosse
levado da nossa terra e para proteger o nosso povo dos garimpeiros de ouro e de outros nabas.
Queria ter certeza de que pudéssemos viver da maneira que quiséssemos. Mas, antes que
conseguisse qualquer uma destas coisas, Dr. Anduce morreu.

Cabeludo e seu povo terminaram de limpar a selva para o avião pousar. Todos, na aldeia,
chegaram quando ouviram o som do motor em cima das árvores, um barulho que eles nunca
haviam ouvido em cima da aldeia deles. Crianças pulavam. Jovens dançavam. As velhas davam
risadas. Cabeludo ficou como sempre: de braços cruzados sobre seu arco e flechas e uma mão
em cima da boca. Era um novo dia para o seu povo. O avião planava na direção dele. Lágrimas
vieram. Ele não sabia porque ele estava chorando. Estava mais feliz do que nunca. Ele nunca
havia derramado este tipo de lágrimas antes.
A irmã de Keleewa mudou com seu marido e filhos, para a aldeia de Cabeludo. Eles ainda
vivem lá.

135
Um dia, um naba visitou a Aldeia Mel. Ele viu a grande mancha preta no rosto de
Yaiyomee. Era a maior e mais feia mancha que havia visto. Perguntou a Pepe sobre ela. As
crianças ainda debochavam dela e sempre andava cabisbaixa.
Finalmente, ele disse, “Sou um doutor na minha terra. Se os pais dela quiserem, tirarei
isso.” Ele deu uma pausa. “De graça.”
Pepe sorriu. Nunca havia duvidado que Yai Pada pudesse responder a oração de Não
Cresce, mas freqüentemente, desejava saber se o faria. “Eu lhes perguntarei,” ele disse.
Hoje Yaiyomee está linda. Todos os jovens disputam, entre si, quem irá conseguí-la como
esposa. Depois que se casou, mudou com o marido para a Aldeia Esquecimento, para ajudá-los.
Agora, ela tem muitos filhos. Sua avó , Deemeoma, está muito contente.

O território onde a cabeça foi roubada, foi indicado como perigoso para qualquer naba.
Finalmente, as pessoas do governo insistiram que Keleewa fizesse uma viagem para lá, para
informar a Shetary que eles não haviam roubado a cabeça do seu filho, e pedir-lhe permissão para
viajarem com segurança até lá. Keleewa fez isto e Shetary disse que não mataria ninguém, a não
ser M.A. Ninguém jamais viu M.A. naquela parte da selva.

Barba Comprida, aquele que matou sua esposa índia e foi morto por seus parentes, ficou
conhecido como uma grande pessoa, no mundo dos nabas. Os nabas têm uma palavra especial
para uma grande pessoa que se dispõe a ser morta, na tentativa de fazer algo muito importante.
Os nabas podem ser tão lentos da cabeça, quando querem. É uma verdade dividida, como tantas
coisas aqui, na terra dos Yanomami. Ele estava tentando fazer algo muito importante: importante
para ele. Mas, os parentes da menina morta sabem o que realmente é “importante”, e os nabas,
provavelmente, nem souberam que uma menina havia sido morta.

Padre Gonzales morreu. Ele era um homem maravilhoso e uma grande pessoa para o
nosso povo. Os nabas deveriam ter se esquecido de Barba Comprida e usado a sua palavra
especial para Padre Gonzales.

Até hoje, as pessoas na Aldeia de Lábio de Tigre lamentam por Padre Coco e sentem muito
por não tê-lo escutado.

Muitas estações depois que Abelha Irritante partiu, Kaobawa irou-se com seus espíritos,
por causa de toda a miséria que continuava vindo ao seu povo. Todos os seus irmãos e filhos
morreram. Seus espíritos lhe diziam que o matariam. Finalmente, jogou-os fora e com desgosto.
Pensou que eles poderiam matá-lo, mas não se importava.
Muitas estações depois, viajou para a Aldeia Mel, para aprender sobre Yai Pada. Depois de
aprender sobre um espírito bom, Kaobawa disse, “agora estou muito irado, porque Abelha
Irritante mentiu para mim sobre o espírito dos nabas e me deixou sofrendo com meus espíritos
terríveis. Minha aldeia é miserável. Por que ele mentiu para mim?”

Meu povo, em toda parte da selva, continua lutando e matando. A Aldeia Mel é o único
lugar onde não fazem isto. Homens da Aldeia Mel, freqüentemente, viajam para outras aldeias,
para tentar convencê-los a pararem com as guerras. Homem-Baixo viajou para a sua aldeia nativa

136
em Sahael e para a aldeia inimiga, para tentar convencê-los a deixarem seus costumes de
matança e tentarem a paz. Mas, não o escutaram.
Homem-Baixo pensou em algumas coisas tristes, enquanto voltava, pelo Rio Padamo, para
a Aldeia Mel. Agora, meus parentes enfrentam um pesadelo dobrado, ele pensou. Eles têm a sua
necessidade de vingança e adicionaram as armas dos nabas. São os nabas que realmente sabem
a respeito de maldade. Talvez, os xamãs acertaram a respeito de Omawa, ele imaginou. Talvez,
ele tenha ido ao mundo dos nabas, para lhes ensinar as coisas que havia nos ensinado. Mas, os
ensinou melhor. Eles têm hábitos sexuais que tem nos trazido doenças até piores e ferramentas
de matar muito melhores do que as nossas.
Homem-Baixo sussurrou a Yai Pada, pedindo ajuda. Ele meneou sua cabeça enquanto
pensava em seus parentes. Há esperança de que um dia tudo isso tenha fim? ele desejou saber.

Agora, sobre mim: ainda moro, rio acima da Aldeia Mel, com a irmã de Sapato-Pé. E
estamos muito contentes aqui, nunca fomos tão felizes assim. Não tenho visto nenhum de meus
espíritos, desde aquele dia, quando Yai Pada os espantou. Agora, deito em minha rede e converso
com Ele, à noite, do mesmo modo que fazia com meus velhos espíritos. E agora, até tenho
deixado muitos dos velhos costumes. Não matamos mais, nem bebemos ossos, nem estupramos
e nem tomamos ebene.
A única coisa triste é meu filho. Ele ainda tem aquele espírito asqueroso do veado.
Quando amigos vêm nos visitar, ele desaparece na selva e não volta durante dias. Mas, nem
mesmo o sossego e a beleza da selva podem esconder a luta de medo que está nele.
O naba branco, aquele que se chama Não-Erra, o que perguntou a Sapato-Pé e a Cabeludo
sobre mudança, pensou muito nas respostas deles. Ele decidiu ajudar a melhorar as nossas vidas
e passou muitos dias ouvindo a mim e a todos os meus novos amigos. Ele pôs todas as minhas
palavras no papel, para que você pudesse ver.
Teria sido tão bom se eu tivesse descoberto a verdade a respeito de Yai Wana Naba
Laywa, quando era jovem. Teria me poupado de muita dor e miséria. Mas como eu poderia
saber? Meus espíritos mentiram e me enganaram. Eles eram tão bonitos, tão maravilhosos e tão
difíceis de não desejar. Eram os melhores em contar verdades divididas. Agora, estou no final
desta vida e pronto para começar a minha vida verdadeira, com Yai Pada.

137
GLOSSÁRIO:

a-la´na: parede que atravessa a entrada do shabono e é construída para se proteger dos
invasores. Em tempos de grandes guerras, é estendida em volta do shabono. Isto exige que o
invasor de a volta no shabono até chegar à entrada.
a-lo-wa´li: pó mágico soprado em um inimigo, resultando numa maldição.
an´tros: nome dado pelos índios às pessoas que vinham estudá-los.
ca-pi-va’ra: os maiores roedores do mundo, medindo 60 cm. de altura, e mais de 1 metro de
comprimento; parece com um porquinho da índia gigantesco e com nadadeiras.
e-be´ne: droga alucinógena que cresce na árvore de ebene, usada pelos xamãs para ajudá-los a
invocar os espíritos.
hee´hee´ka: caixilho (moldura) formado para embrulhar o walemashi ao redor de um cadáver.
hor´-di-mo-shi´-wa: brincalhão, desprezado, pateta, bobo.
ho-wa´-shi: macaco pequeno conhecido por seu comportamento danoso.
na´ba: não Yanomami
o-ma´wa: líder de todos os espíritos, no mundo dos espíritos.
sha´bo-no: parede alta que se estende em um círculo enorme; inclina-se para dentro num
ângulo de 45-graus, construída de postes e coberto com folhas de palmeira para proteger da
chuva. Cada família tem uma parte da parede inclinada, debaixo da qual amarra suas redes e faz
seus fogos para cozinhar e cuidar de outras necessidades domésticas.
sha´man: pessoa cuja vida é dada para achar e comunicar com seres do mundo dos espíritos;
normalmente se interessa mais pelo mundo dos espíritos do que pelo mundo real e
freqüentemente, não consegue distinguir entre os dois.
tk!: estalo alto que surge quando a língua é liberada do céu da boca com uma pressão; uma
expressão de assombro, como “Uau!”. Porém, normalmente é falado num tom mais sério, como
“incrível!” ou “que pena!”.
u´no-kai: um ritual de limpeza, que dura aproximadamente sete dias, em que o guerreiro tem
que passar depois de matar alguém. Qualquer coisa que as mãos dele tocarem, durante aquele
tempo, ficará doente.
wa´le-ma-shi: varas tecidas com cipós, formando um tapete no qual um corpo é colocado,
enquanto fica pendurado na selva, durante sua decomposição.
wy-u´mi: período em que vagueiam pela selva com a finalidade de ajuntar comida .
Yai Pa´da: o maior dos espíritos, criador de tudo, inclusive dos espíritos, freqüentemente
chamado de o grande espírito. Veja Yai Wana Naba Laywa.
Yai Wa´na Na´ba Lay´wa: é mesmo ser que Yai Pada. Porém, este nome o rotula como hostil,
desconhecido, ou espírito estrangeiro (observe o termo “naba”) e inimigo. O uso de “naba”
neste nome não rotula este espírito como o espírito dos estrangeiros. Descreve, porém, a
natureza do relacionamento deste com o povo Yanomami.

138
PARENTESCO

Pai-tio: Os irmãos do seu pai, são chamados de pai, porque podem dormir com sua mãe (os
irmãos compartilham, freqüentemente, suas esposas).
Mãe-tia: As irmãs da sua mãe, são chamadas de mãe, porque elas podem dormir com seu pai
(as irmãs compartilham, freqüentemente, o marido delas).
Irmão-primo: Menino, filho do irmão do seu pai, é chamado de irmão, porque fica subentendido
que seu pai e os irmãos dele compartilham suas esposas entre si. Então, qualquer criança que
nasça do irmão de seu pai é chamado de irmão, embora seja primo. Se você for uma menina e
casar com este irmão-primo, será considerado incesto, que é, estritamente, um tabu.
Irmã-prima: Menina, filha do irmão do seu pai, é chamada de irmã, porque fica subentendido
que seu pai e os irmãos dele compartilham suas esposas entre si. Então, qualquer criança que
nasça do irmão de seu pai é chamada de irmã, embora seja prima. Se você for um menino e casar
com esta irmã-prima, será considerado incesto, que é, estritamente, um tabu.
Sogra-tia: Geralmente é a irmã do seu pai, mas também pode ser a esposa do irmão da sua
mãe. Esta mulher é chamada de sogra, independente de você casar com quaisquer dos filhos
dela, porque ela é uma sogra em potencial. O seu casamento, em potencial, com o filho dela,
durará a vida inteira; conseqüentemente, ela nunca perderá o título de sogra. As crianças dela
são cônjuges, em potencial porque não tem jeito de serem meio irmãos. Nenhum homem pode
ter relações sexuais com a irmã dele. Então, um dos filhos da irmã do seu pai é o cônjuge
perfeito. Os filhos do irmão da sua mãe também serão os cônjuges perfeitos, porque eles não
podem ser meio-irmãos (o irmão da sua mãe nunca compartilharia a esposa dele com seu pai). O
defeito de nascimento da filha de Anita (p.156) possivelmente era devido a este tipo de
casamento entre primos. A mãe de Não-Cresce era a irmã do pai de Anita. Não-Cresce e a Anita
foram considerados um casal ideal, porque eles não podiam ser meio-irmãos.
Sogro-tio: Geralmente é o marido da irmã do seu pai, mas também pode ser o irmão da sua
mãe. Seus filhos serão chamados de primos. Pensa-se que eles serão cônjuges ideais ou
cunhados.
Sogra: Qualquer mulher que não pode ser considerada sua mãe, pois você pode se casar com os
filhos dela sem cometer incesto. Se você é do sexo masculino e se casa com a filha de uma sogra
(uma mulher que você sempre “chamou” de sogra), desde então, você nunca a chamará de
qualquer outra coisa. Na realidade, você nunca falará com ela nem poderá ser visto com ela em
público ou a sós. Fazendo isto, seria considerado um escândalo. Só em pensar que a mãe da sua
esposa poderia dar a luz a seus filhos, é tão revoltante, que se encontrasse com esta mulher
atravessando a aldeia, você (e ela) voltariam e iriam para outra direção. Atravessar a aldeia (ou
qualquer lugar) não é tão importante quanto evitar sua sogra. Em qualquer reunião pública, você
sempre deve se posicionar do outro lado do grupo de sua sogra. Foi especulado que este
costume tem atraído muitos antropólogos à tribo Yanomami.

139
PERSONAGENS E LOCAIS

Abelha-Irritante: Napoleon Chagnon, antropólogo famoso cujo livro Yanomami, The Fierce
People (O Povo Feroz), tem vendido mais de um milhão de cópias.
Aldeia de Cabeludo: localizada no Rio Iyewei (Sangue), geralmente chamada de Hallelusiteli.
Aldeia Esquecimento: situada rio acima da Aldeia Mel, geralmente chamado de Seducedawiteli.
Aldeia Mel: localizada no Rio Padamo a 3o 3´N, 65o 11´O; geralmente chamada de
Cosheloweteli.
Aldeia de Lábio de Tigre: localizada na boca do Rio Ocamo. Geralmente chamada de Ocamo
localiza-se 2° 47´N, 65° 11´0.
Anduce, Dr. Pablo: antropólogo e médico que trabalhou por muitos anos dentro do território
do Amazonas e depois como um alto oficial do governo venezuelano. Um defensor, durante muitos
anos, dos direitos indígenas.
Aldeia de Peru: localizada na boca do Rio Mavaca. Esta e outras aldeias, localizadas lá, como
também a Missão Católica Salesiana são geralmente conhecidas como Mavaca e são designadas
assim em mapas venezuelanos. Bisaasiteli é o nome em Yanomami e o nome usado pela
comunidade antropológica.
Barba-Comprida: missionário que tomou para si uma esposa índia. A identidade dele não é
revelada porque é impossível apresentar o lado dele da história. Quase todos os Yanomami sabem
a identidade dele.
Boca-Pequena: guerreiro da Aldeia Boca.
Cabeça-Grande: Guerreiro da Aldeia Mel, irmão de Cabelo-Vermelho (nome em espanhol, Júlio).
Cabeludo: guerreiro temido, não era considerado um xamã; mas um forte líder.
Cabelo-Vermelho: jovem da Aldeia Mel que tomou Yoshicami como esposa; irmão de Cabeça-
Grande (nome em espanhol, Ricardo).
Cesar: Índio designado pelo governo para manter a paz entre o povo Yanomami.
Corredor: viajava pelo rio com M.A., e se tornou um dos informantes mais importantes a quem
Napoleon Chagnon dedicou o seu livro (nome em Yanomami, Rerebawa).
Deemeoma: moça que foi roubada na matança da Aldeia Batata. A história a acompanha para a
Aldeia Mel, onde ela se desenvolve e se torna uma mulher extraordinariamente compassiva.
Dye : Paul Dye, missionário da New Tribes Mission.
Fredi: contemporâneo da infância de Deemeoma.
Homem-Baixo: vítima infantil de Siapa (nome em espanhol, Pablo Majias).
Homem-Engraçado: Guerreiro da Aldeia Mel (nome em espanhol, Ramón).
Homem de Frutas: filho de Lança e de Partes-Íntimas- Ruidosas, fortemente influenciado pelos
estrangeiros (nome em espanhol, Octavio).
Homem-Rápido: o melhor caçador da Aldeia Mel.
Homem da Selva: narrador da história. Um xamã de talento extraordinário, se expressa muito
bem, é agradável, extrovertido, líder, amante da selva, grande caçador e pescador, guerreiro feroz
e assassino de crianças.

140
Kaobawa: antigo amigo de Corredor, líder da Aldeia em Mavaca, informante importante de
Chagnon. Chagnon dedicou seu livro a Kaobawa, como também a Corredor e a outro índio,
dizendo que eles o haviam ensinado muito a respeito de humanidade.
Keleewa: Gary Dawson, um amigo de toda vida, de muitos dos personagens desta história.
Lábio de Tigre: xamã feroz (nome em espanhol, Husto); viveu em Ocamo, se tornou amigo de
Padre Coco.
Lança: amigo, de toda vida, de Homem da Selva e Sapato-Pé, xamã feroz e assassino, vivia
assombrado pela lembrança de suas vítimas e a morte de seu pai; ainda vive na Aldeia Mel (nome
em espanhol, Luís).
M.A.: antropólogo bem conhecido. Devido à séria natureza das acusações feitas contra ele, foi
retida a sua identidade. Qualquer agência reguladora interessada em proteger os índios, dele,
poderia conseguir amplo testemunho destas e de outras histórias a seu respeito e dos índios,
incluindo, claro, sua identidade.
Mavaca: nome dado a uma missão Salesiana e a um grupo de aldeias Yanomami localizadas na
boca do Rio Mavaca.
Não-Agarra-Mulheres: chamado assim por causa da restrição inexplicável dele. Um homem
misterioso que mudou a história inteira de uma aldeia com apenas uma visita.
Não-Cresce: guerreiro da Aldeia Mel (nome em espanhol, Jaime).
Não-Erra: estrangeiro que teve breves encontros com Cabeludo e Sapato-Pé.
Nenhuma-Dificuldade: visitante estranho para a Aldeia de Peru.
Noweda: comerciante de borracha.
Osso da Perna: guerreiro feroz da Aldeia Boca.
Padre Coco: missionário católico e mentor de Lábio de Tigre.
Padre Gonzales: aventureiro, robusto, voluntário numa missão.
Partes-Íntimas-Ruidosas: esposa de Lança. O seu nome, simplesmente, indica como as
mulheres eram tratadas pelo grupo.
Pepe: missionário José Dawson, um dos primeiros homens brancos que manteve um longo
contato com os índios Yanomami.
Pé-Rijo: Guerreiro da Aldeia Mel.
Peru: parente de Sapato-Pé e líder na Aldeia Mavaca.
Rabo de Preguiça: Guerreiro da Aldeia Mel (nome em espanhol, Paulino).
Sapato-Pé: xamã em treinamento; tornou-se o líder da Aldeia Mel (nome em espanhol, Baptista).
Shetary: Índio que ainda gostaria de matar o responsável pela profanação do corpo de seu filho.
Tucano: xamã feroz, com poderes especiais (nome em espanhol, Samuel).
Vesgo: Guerreiro da Aldeia Mel (nome em espanhol, Augusto).
Viagem: sobrinho de Cabeludo, saiu da Aldeia de Cabeludo para buscar uma esposa na Aldeia Mel
(nome em espanhol, Pedro).
Vovó Troxel: anciã branca, primeira branca que morou em uma aldeia Yanomami.
Wyteli: pai de Deemeoma, famoso por ser difícil de matar.
Yaiyomee: criança que nasceu com uma grande pinta na face, foi considerada um defeito de
nascimento.

141
Yawalama: segunda esposa de Pé-Comprido.
Yoshicami: primeira esposa de Pé-Comprido, objeto de luta entre a Aldeia Mel e a Aldeia
Esquecimento.

142

Você também pode gostar