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FENDER UMA IMAGEM POR CONTATO

I.
Coço o olho. Sinto o meu dedo áspero arranhar a pálpebra. Fecho instintivamente o olho para
não tocá-lo. Entre meu dedo e o olho uma membrana. Ela intermedia o contato, como um
limiar. Mas o dedo deslizando pelas margens toca os canais lacrimais. Eles estão vermelhos,
vermelhos-sangue. Insistindo, como numa crise alérgica, sinto o olho arder, numa sensação de
inchaço. Algo granuloso entre a pálpebra e o olho: a irritação do contato. O olho inunda-se de
vermelho, de sangue. Vejo os vasos, destacados. O contato fez aparecer o que se escondia;
essas veias, esses conectores que ligam o olho ao resto. É carne o que cerca; é tudo carne. O
olho é carne. A mesma matéria do dedo. Ambos têm seus sulcos, suas marcas, o sangue que
corre sob a pele. Assemelham-se por um desvio. Sou todo carne pulsante em formas
diferentes que parecem distantes. O dedo do olho que coço. Porém, a coceira fere. O olho
“irritado” fica “manchado” pelo dedo. Transgressão, portanto, que “não é outra coisa senão
esfregar-se nele até o excesso, utilizá-lo até o cúmulo, e produzir desse modo contatos
desconhecidos” (Didi-Huberman, p.173 SI)

II.
O olho abre-se à “ferida” da carne. O dedo “imprime” sua marca no olho.
O dedo = matriz / o olho = reprodução – re(s)productio.
Mas, produção de uma coisa dessemelhante. Os sulcos, as veias inchadas, não são a do dedo.
É outra coisa. A impressão por contato, de um dedo sobre um olho fechado, abre a uma
possibilidade de relação com o olho que não é da ordem do visível, do contemplativo. É tátil.
A relação transforma, por sua vez, o próprio “modo” de cada um: o dedo “molda” o olho, o
olho “modula” o dedo. E, por sua relação imiscuída (indiscernível¸ infrafino1), o dedo
“modula” o olho e o olho “molda” o dedo.
O dedo = reprodução ~ o olho = matriz.
O dedo estende o olho, torna-se extensão desse, num pulsar de seus sulcos, de seu contato
áspero, granuloso pela tatibilidade. O dedo “vê” pelo olho que toca. O olho, estranho ao
espírito, transforma-se em jogo da carne, como acontece no final d’A história do olho. O olho
soçobra como carne, encontra-se como ferida, pulsante e cega.
Seu não-ver é fobia do toque, a semelhança com todo o resto.

III.
Imaginemos Argos, gigante com seus cem olhos, transformado, posteriormente por Hera, em
pavão. Ele tem seus olhos espalhados pelo corpo. O corpo é todo olhos. Os olhos são sua pele.
Ele vê e sente (vê o que sente? Sente o que vê?). “Vê” numa cegueira, porque o contato que o
faz sentir (e conhecer igualmente) se faz no não-ver, na aproximação que cega, embaralha,
que toca o olho. Convertido em pavão, seus olhos tornam-se elemento ornamental, isto é,
parte do corpo sem a visão. Não é uma “ilusão” o que o pavão cria. Ele cria um contato por
um não-olhar que se dá a ver. Como nos assinalam Agamben e Hegel, o animal tem em seu
corpo as marcas de sua distinção, o contrário do humano, que as encontrariam na face.
Segundo eles, uma cabeça sem corpo, na história da arte, é uma tipo de pintura, o “retrato”;
um corpo sem cabeça, por sua vez, uma “aberração”. Um tato, que é também olho, funciona
como um “baixo materialismo”, um operar pelo “rés do chão”, onde se encontram as
insignificâncias, tal como a poeira. Aberrar é uma forma de “tatear”: o caminho
desconhecido, não-sabido; o caminho que se ignora, sem direção; o caminho que envolve o
corpo como um labirinto. O corpo que “olha” é um corpo que sabe por outra via, corporal;
sabe o que lhe toca, o que o envolve, arrepia-lhe ou violenta-lhe de volta.
1
Duchamp
IV.
Um modo de saber em que conhecer significa “tocar com os olhos” para saber. Um modo
não-objetivo, mas lançado de corpo, aberto como uma ferida, feito ferida, com sua dor e seu
odor, com o seu inacabamento, sua parcela de noite; um debruçar-se que significa dobrar-se
com o próprio corpo, desdobrar-se e fazer-se de dobra, de sentir o próprio corpo conhecer,
como experimento, como experiência marcada como o “oleiro com suas mãos no vaso de
barro”.

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