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Tópicos especiais de Filosofia Contemporânea II

PARÁGRAFOS: “A dialética não é nenhum ponto de vista”, “Realidade e dialética”

Clayton Rodrigo da Fonsêca Marinho

(Uma tese primeira: A dialética negativa é um impulso de destituição, configurando a


possibilidade real de uma realidade pensada como imagem crítica1)

Entre o segundo e terceiro parágrafos, a dialética passa por duas considerações,


ambas em sua “forma”. No campo da primeira consideração aparece a “contradição” como
problemática a ser reelaborada por Adorno, enquanto na segunda, é o “primado do sujeito” o
elemento que se destaca. Qual a importância de ambas, na definição de uma dialética
negativa, que o filósofo está expondo negativamente? O que compõe o campo da contradição
é a lei aristotélica do terceiro excluído, fazendo, no fim, da dialética a redução à identidade.
“A contradição é o não-idêntico sob o aspecto da identidade; o primado do princípio de não-
contradição na dialética mensura o heterogêneo a partir do pensamento da unidade” (p.13),
fazendo com o não-idêntico e o idêntico igualem-se na consciência sob a unidade da
identidade. A dialética, diz Adorno, sob o julgo dessa lei, torna-se fatal e incapaz de apreender
o não-idêntico, deixando de fora o que seria próprio da filosofia: no fundo ela visa uma
paralisação, pois [u]ma dialética negativa é aquela que não bloqueia o movimento dialético
diante de nenhuma categoria [...]” (NOBRE, 2019, p.38). Por tal percurso, a dialética, acusada
por seus detratores, tornar-se-ia, de fato, aquilo de que a acusam: ser “não-verdade” e
“dissolução sem resíduos” (p.12), tornada método e aparato constituído de fora para agarrar a
verdade, reduzida à identidade. Se Kant e Hegel surgem aqui como as figuras de proa
(visíveis) desse debate, podemos, porém, determo-nos em algumas sutilezas da discussão do
autor: tal possibilidade faz com que “a ordem conceitual” coloque-se “à frente daquilo que o
pensamento quer conceber”, diz Adorno (p.13) – a se pensar na “razão instrumental”, que se
apropria do esquematismo kantiano para determinar os limites do próprio sistema, criticada na
Dialética do esclarecimento, podemos perceber a longa data de uma tal preocupação. Isto é, a
dialética apareceria como uma “rede” capaz de agarrar apenas aquilo com o qual se identifica
e aquilo que identifica. Dois problemas aí: a dialética seria algo de “fora” meramente e
resultaria apenas em “unidade na identidade”. Tal caminho parece ser uma referência discreta
(ou nem tão discreta assim) à mesma concepção que Walter Benjamin dá à filosofia no início
do prefácio crítico-epistemológico de sua obra Origem do drama barroco alemão, inclusive
marcando distância: “Se a filosofia quiser conservar a lei da sua forma, não como
1
Uma intuição de leitura que não se completou aqui.
propedêutica mediadora do conhecimento, mas como a representação [exposição ou ainda
apresentação, segundo outras traduções] da verdade, então aquilo que mais importa deve ser a
prática dessa forma, e não a sua antecipação num sistema” (BENJAMIN, 2011, p. 16).
Encontramos aí alguma aproximação. O que parece em jogo em Benjamin é justamente o
encontro com uma forma (conceitual e metódica) negativa, que ele denomina “desvio”, ou
“caminho não direto”, um “infatigável movimento de respiração” que abre a coisa a dois
momentos decisivos: o “impulso para um arranque” e a “justificação para a intermitência de
seu ritmo” (idem, p.16-17). Há um movimento na dialética, diz Adorno: o de impelir, através
do que a dialética dominaria tudo, “afirmando”, “confundindo”, “chocando”, “fundindo”,
“reduzindo”, “rompendo”. Por-se em movimento não parece ser um problema para Adorno,
pelo contrário, se considerarmos a afirmação de Nobre acima. O problema é de outra ordem, o
desaparecimento sob a falsa forma da contradição da dialética em nome da identidade, o que
permite as considerações de recusa feitas a ela. E, nesse aspecto, o que talvez recuse Adorno
na posição benjaminiana seja justamente um contra-movimento a esse movimento da
dialética. A contradição, de certa maneira, sob a égide do terceiro excluído necessita de uma
resolução, aquilo a que a dialética parece eternamente condenada. O problema não é a
contradição ela mesma, mas as concepções totalitárias acerca dela: “[a] totalidade da
contradição não é outra coisa senão a não-verdade da identificação total, tal como ela se
manifesta nessa identificação” (p.13). Mesmo liberando a dialética dessa lei, Adorno não abre
mão do movimento, reconfigurando a negatividade da própria contradição, na figura da
identidade, e não do movimento (o que afeta): “[a] contradição é não-identidade sob o encanto
da lei que também afeta o não-idêntico”.
Mais do que um problema com a contradição em si, senão levando-a as suas próprias
consequências, qual seja, a da sua dissolução, Adorno encontra outro problema na aparência
de “totalidade” que, pensada como sistema, poderia dar a dialética. Ao identificá-la com o
capitalismo, resultado do “empobrecimento” da própria realidade diante desse modo de
existência, como sendo a “ontologia do estado falso” (p.18), o filósofo mostra que a noção de
totalidade só se aplica a esse modo de existência, que é apenas um modo, capaz de, com a
força [de lei, da violência], lançar qualquer possibilidade ao campo da utopia, um fora-de-
jogo. Reavaliar a operação da contradição só se torna possível desfazendo-se da falsidade de
totalidade que todo o trabalho dialético pode insinuar, quando não operando pela via do não-
idêntico. Por isso, é importante desfazer a confusão entre essa aparência e a verdade. Diz
Adorno (p.13):
Sua aparência e sua verdade [da ordem conceitual da contradição numa
forma pura] se confundem. Essa aparência não pode ser sumariamente
eliminada, por exemplo, por meio da afirmação de um ser-em-si fora da
totalidade das determinações do pensamento [...] À consciência do caráter de
aparência inerente à totalidade conceitual não resta outra coisa senão romper
de maneira imanente, isto é, segundo o seu próprio critério, a ilusão de uma
identidade total.

Tal relação entre “aparência”, “verdade” e “totalidade” aparece antes em outra obra
de Benjamin, As afinidades eletivas de Goethe, na qual o filósofo tenta expressar uma nova
modalidade de crítica que, pensada como mônada, seria um fragmento de mundo da própria
filosofia. Porém, vejamos que a solução de Benjamin é, diferente de Adorno, uma vez mais, a
imobilização, a qual permitiria, não apenas executar a força negativa da própria dialética, mas,
ao fazer isso suspender a totalidade em busca de um mundo verdadeiro, embora fragmentado:

[...] o sem-expressão obriga a trêmula harmonia a deter-se e eternizar através


de seu protesto o tremor dela. [...] O sem-expressão é o poder crítico que,
mesmo não podendo separar aparência e essência na arte, impede-as de se
misturarem. [...] É o sem-expressão que destrói aquilo que ainda sobrevive
em toda aparência bela como herança do caos: a totalidade falsa, enganosa –
a totalidade absoluta. Só o sem-expressão consuma a obra que ele despedaça,
fazendo dela um fragmento do mundo verdadeiro [...] (BENJAMIN, 2009,
p.92).

A partir da relação entre “teor coisal [formal]” e “teor de verdade”, a relação


dialética entre a aparência da obra de arte e a de sua verdade, Benjamin lança sobre a crítica (e
à filosofia) o esforço de inscrever na sua própria história o trabalho de transformação que uma
obra de arte sofre, mostrando que uma e outra não sobrevivem nem separadamente, nem,
tampouco, unificadas. O que há na confusão é a elaboração de uma “totalidade falsa e
enganosa” cuja aparência visa assegurar o valor eterno (e último) da obra. O que é
interessante observar aqui é o trabalho da suspensão realizado pelo sem-expressão
benjaminiano, não como o que abre simplesmente a totalidade a fim de expor sua falsidade,
mas como o que destrói essa falsidade expondo-a. Ele não realiza intento algum, nesse
sentido, senão consumando a obra despedaçada, como fragmento, e não uma nova totalidade,
“de tal maneira que apareça não mais a mudança da representação, mas sim a própria
representação” (idem, p. 93). O teor coisal e o teor de verdade aparecem não mais como a
subsunção de um no outro em nome da aparência de identidade (como o círculo de Stefan
George faz acreditar na procura das justificações das obras de arte na vida do artista, fazendo
desta última a grande obra), mas a tensão histórica e imanente (no pensamento) daquilo que se
poderia dizer como sendo um “[...] tendo vindo a ser [als Gewordenes] que traz em si”
(Adorno apud Nobre, 2019, p.35), programa muito próximo do desejado por Adorno, mas
realizado por caminhos diferente (cf. BRETAS, 2007, p.7-8). Sair da imanência em direção ao
não-imanente, isto é, indo da existência concreta da coisa à sua verdade, partindo da própria
coisa. Poderíamos pensar se o esforço de Adorno em estabelecer um novo modo dialético não
seria uma forma da crítica benjaminana, retirando do que não é no percurso histórico da
dialética a verdade que a libertará de si mesma, e com ela a própria filosofia. O percurso
operado por Benjamin será constantemente atacado por Adorno quem “se arvora contra a
presença de qualquer vestígio figurativo no movimento da cognição dialética [...]”, a qual
aparecerá justamente na Dialética Negativa.
A despeito das diferenças e das críticas dirigidas por Adorno a Benjamin, o que
ambos tentam mostrar é o valor que a busca da verdade a partir da coisa (que é, em si,
materialmente, contraditória), sobrepõe a possibilidade do enredamento numa mera
perspectiva unitária e unificadora – a contradição fragmenta tanto o objeto quanto o sujeito,
de tal modo ser necessário, para alguns, a procura da reconciliação. Não a toa Adorno afirmou
a dialética não assumir antecipadamente nenhum ponto de vista, ou seja, o ponto do qual toda
a realidade se conforma, ao ponto de coincidir com a consciência produtora deste ponto – pois
a verdade do próprio objeto (a dialética) é retirada dela como um fora que a dilacera (no não-
idêntico), o que a permite, no entanto, reavivar-se no combate à própria realidade que a
permite existir. Vale considerar essa proposição. O “ponto de vista” configura-se como uma
perspectiva que, segundo a concepção de Panofsky, em A perspectiva como forma simbólica,
seria uma “descrição do mundo segundo um processo racional e passível de repetição”
(WOOD, 2000, p.15, grifo nosso). Ainda que seja uma espécie de “objetivação do subjetivo”
– um processo que leva a subjetividade a tornar-se parâmetro objetivo da realidade e não a
existência da própria objetividade do objeto que demanda uma mediação com o sujeito por
meio do conceito, como concebe Adorno, na perspectiva do materialismo dialético marxiano
–, ela geraria uma “invulgar identificação do objeto-em-arte e do objeto-no-mundo” (idem,
grifo nosso). De Alberti a Da Vinci, atualizando até certo ponto em Panofsky, a perspectiva (o
ponto de vista na arte) tem a função de converter as categorias racionais (do humano) em
“natureza” – a natureza, por sua vez, encontraria na perspectiva uma correção necessária e
superior que lhe permitiria ter valor, invertendo o sentido da mimese platônica, herdada pela
filosofia medieval, justamente no aspecto de uma reconciliação transcendente – o humanismo.
Nesse sentido, a dialética como ponto de vista, abriria mão de seu movimento destituinte, tanto
no sentido de uma suspensão afirmativa da contradição inerente ao movimento quanto no
sentido da instituição da razão meramente subjetiva e unificadora como motor de seu processo
– no fundo, a imanência permanece, o que parece profundamente desolador para essa galera.
A “objetivação do subjetivo” decairia em subjetivação sem objetividade, condição contrária
ao que se propõe Adorno, visto que “a separação entre sujeito e objeto está fundada
objetivamente, em uma cisão [...] interna à matéria: a violência imediata da primeira
natureza, e a violência abstrata, impessoal, da segunda 2” (ZANOTTI, 2018, p.113, grifo
nosso). A perda do elemento dialético (o negativo) própria à contradição existente na matéria,
e não no sujeito, faz com que ocorra a paralisação que Adorno identifica em Kant e mesmo
em Hegel (cf. NOBRE, 2019, p.38, a respeito da “imanência”). Um tal desvio pela arte,
pensando esse aspecto errôneo da dialética, serve-nos para mostrar uma concepção concreta
de uma determinação, em vista de que, definir um “ponto de vista” significa antecipar o
resultado e fechar(-se) às possibilidades do próprio mundo, reduzindo a “visão de mundo”
renascentista a uma unidade subjetiva definida unitariamente3. Dizer que não se trata de um
“ponto de vista” pode nos levar a dizer que a possibilidade se coloca “como possibilidade” na
qual será se buscará “um fundamento dela na existência real: em suma, salvar, ao mesmo
tempo, Kant e Hegel” (ZANOTTI, 2018, p.111, grifo do autor), no campo da dialética,
reconfigurada a partir do não-idêntico, isto é, como uma espécie de impulso4 (DUARTE,
1994, p.45), o que dá movimento e coloca o próprio pensar em relação com o que estaria fora
de si mesmo. “A negação pode transformar-se em prazer, mas não em positivo”, diz Adorno
(2006, p.54), na última linha de um parágrafo em que o “empobrecimento” é um dos temas,
marcando, talvez, a relação da dialética, não com um ponto, mas como um gesto imanente,
criticando-o de fora (cf. NOBRE, 2019, p.37). A cisão existente implica que nem o objeto
nem o sujeito podem se perder nesse processo, e, ao fazer isso, sustentam o trabalho do
contraditório que mantém, por sua vez, a cisão como o elemento imanente que vai ao não-
imanente. Com um contraditório que põe em movimento o processo sem procurar uma
totalidade ou uma identificação que a una, o trabalho da dialética passa a se configurar como
“mediação” (cf. BRETAS, 2007, p.8) entre o sujeito e o objeto: “Tal antagonismo material

2
Se bem compreendi essa passagem, diria até que uma possibilidade [literária] de sua realização aparece em A
paixão segundo G.H. de Clarice Lispector.
3
Diria inclusive que isso se resumiria a uma proposição de Georges Didi-Huberman: “a representação do
soberano tornou-se a soberania da representação”, um modo de dizer o “empobrecimento” e, ao mesmo tempo,
um aprisionamento das possibilidades de existência e de representação.
4
Num mesmo parágrafo, inclusive, o autor utiliza o termo três vezes, mostrando o valor que ele teria na filosofia
adorniana, que talvez estejam ligadas à noção de imbricação (Verfransung) das artes na obra tardia do autor,
como aponta Nobre (2019, p.19). Valeria a pena investigar a noção desse “impulso” com a “vontade artística”
de Alois Riegl e mesmo a “vontade de potência” de Nietzsche.
precede e funda a subjetividade, ela mesma modalidade da matéria. [...] Como tudo que é
material, ele pode ser modificado e curado – através do trabalho” (ZANOTTI, 2018, p.113). A
reconciliação vinculada pela “forma idealista” à “predominância do sujeito absoluto como a
força que produz negativamente todo movimento do conceito [...]” (p.14), perde sua validade,
afirma o autor: nem, então, o primado do sujeito como sujeito da reconciliação, nem o objeto
como coisa-em-si sem acesso, o que levaria, de um lado, à consideração da “identidade entre
a identidade e a não-identidade”(p.15) e, de outro lado, à renúncia de construção do mundo
(p.14). A dialética negativa, nesse conjunto, insere-se no próprio real, não como a forma que a
sistematiza, senão como a forma que a expõe como um sistema que pode ser destituído, e, ao
mesmo tempo, como aquilo que pode inaugurar um novo campo de trabalho para a própria
filosofia, que não seja nem uma mera “metodologia das ciências” (p.15) ou “mediadora do
conhecimento” (como bem o disse Benjamin, 2009, p.16).

Referências

ADORNO, T. W. Dialética Negativa...

ADORNO, T. W. Teoria Estética...

BENJAMIN, W. “Prólogo epistemológico-crítico”, em: Origem do drama trágico alemão...

BENJAMIN, W. “As afinidades eletivas de Goethe”, em: Ensaios Reunidos: Escritos sobre
Goethe...

BRETAS, Aléxia. Pensar ao mesmo tempo dialética e não-dialeticamente: Adorno, leitor de


Benjamin...

DUARTE, Rodrigo A. de P. Notas sobre a ‘carência de fundamentação’ na filosofia de


Theodor W. Adorno...

NOBRE, Marcos. Limites da imanência: um exercício de dialética negativa...

WOOD, Christopher S. “Introdução”, em: PANOFSKY, E. A perspectiva como forma


simbólica...

ZANOTTI, Giovanni. A dialética negativa de Adorno como filosofia da possibilidade real...


Tópicos especiais de Filosofia Contemporânea II

PARÁGRAFOS: “Desencantamento do conceito”, “Apresentação”,

Clayton Rodrigo da Fonsêca Marinho

(Uma tese segunda: A possibilidade real de uma realidade na dialética negativa se faz possível
na suspensão, e ela, por sua vez, não se desmobiliza nessa suspensão, mas apresenta uma
imagem5)

Aparece, a partir de algumas indicações quanto à “imanência”, ao “impulso” e ao


“gesto imanente”, inscritos no próprio processo da dialética negativa, a condição do que se
trata mais especificamente desse momento não-conceitual de que fala Adorno, assumida por
sua dialética. Ele, num primeiro momento, parece ser aquilo do qual se parte, tal como o
“conceito de ser” na obra sobre a lógica de Hegel, em busca de um “visado” para ”além de si
mesmo” (p.18), o qual recai numa espécie de fetichismo, fazendo coincidir o conceito e a
realidade por ele explorada. “Em verdade, todos os conceitos, mesmo os filosóficos, apontam
para um elemento não-conceitual porque eles são, por sua parte, momentos da realidade que
impele à sua formação – primariamente com o propósito de dominação da natureza” (idem,
grifo nosso). Nesse sentido, os conceitos surgem de um “momento de realidade” que se
desloca, como um impulso para uma formação conceitual, de segunda natureza, com o fim de
uma fixação na universalidade, ao ponto da sua redução a um sentido determinado. A filosofia
salvaria tal momento, sabendo, porém, do empobrecimento dessa empreitada, ao ponto de
separar o mundo do conceito da coisa em si, ou estabelecer todo um sistema idealista com a
finalidade de absolutizar o saber sobre tais momentos, ainda que configurados como
momentos de um salto imobilizado, como seu momento conceitual identificado.
Abrir a tal consideração, isto é, do conceito como “momento”, implica em colocá-lo
sob o aspecto de uma fragmentariedade (“toda aquela parte da verdade”, p.17), um elemento
constituinte torcido de um saber. Momento, no entanto, passageiro, visto que ele impele, para,
em seguida, retornar à própria realidade. Nesse sentido, haveria, então, um momento pré-
conceitual e um momento pós-conceitual, segundo momento, designados no não-conceitual
da dialética negativa: “os estágios preparatórios e o toque final” (p.16), que designam, como
aparece em nota “o que prepara e equipa” e o “que corta e isola”, não como aquilo que no fim
já estão definidos pelo conceito, no alcance de uma totalidade, mas como o que excede o
próprio conceito (SILVA, 2009, p.60), sempre a atravessá-lo e constituí-lo de dentro (idem,
p.62). Trata-se mais de elaborar um conjunto de procedimentos do que um processo
5
Essa hipótese desdobra a primeira, em direção à imagem, mas não se concluí inteiramente aqui. Fica uma linha
de pensamento.
metodológico idealista, acreditando determinar tudo dentro de um sistema, a exemplo da
fenomenologia husserliana, segundo o filósofo alemão. Ainda que não cite, Benjamin surge
como uma referência subterrânea. A própria noção de conceito articulada com a de origem
(Ursprung), isto é, a mediação entre o mundo das ideias e o mundo dos fenômenos, não como
uma continuidade determinada e, portanto, total, mas como um salto para fora justamente
dessa continuidade, cuja exposição surge como uma forma de acontecimento eruptivo e
interruptivo, mostram que, apesar da desconsideração da proposta benjaminiana – a que
Adorno alude como uma “positividade” herdada de seu período teológico – ela está movendo-
se no interior de seu pensamento, como uma espécie de recalcado. Isso ajudaria a
compreender a importância do conceito e sua centralidade no conjunto de seu texto, mais do
que ele gostaria de confessar.
O conceito, como mediação da realidade, tornar-se-ia, pois, a colocação em forma
desses momentos, não da realidade em si. Se Adorno se vale da mimesis, como elemento ao
qual a filosofia e a dialética negativa devem recorrer, sem recair nela – e consequentemente
em toda tradição da representação, unificadora e redutora à identidade –, é para que a
realidade entre no próprio processo de conceituação, não como um objeto, mas como aquilo
pelo qual o conceito adquire o impulso de ir para além de si, através de si. “O conceito não
consegue defender de outro modo a causa daquilo que reprime, a da mimesis, senão na medida
em que se apropria de algo dessa mimesis em seu próprio modo de comportamento, sem se
perder nela. Dessa forma, o momento estético [...] não é acidental para a filosofia” (p.21).
Para tanto, ele não pode abrir mão de uma característica da mimesis: a constante aproximação
da realidade, o perpetuo esforço de consideração da imanência, como “crítica imanente e
transcendente: trata-se tanto de expor a inverdade do sistema, sua afirmação de identidade,
quanto fazer a crítica da sociedade que o engendra” (SILVA, 2009, p.67). Desse modo, a
mimesis permite a articulação com os momentos históricos, os momentos concretos dos quais
teriam se originado os conceitos numa dialética negativa. Segundo Silva (2009) ainda,
Adorno parte de um “princípio de crítica imanente” com a função de desenvolver “modelos
de pensamento”, isto é, muito mais um conjunto de procedimentos do que uma metodologia,
mais um trabalho sistemático do que um sistema.
Apesar de o autor mostrar que, no cerne da relação entre arte e filosofia, no
pensamento de Adorno, aparece mais a distância, a diferença, um “processo de contínua
aproximação e afastamento dialéticos” (OLIVEIRA, 2013, p.570), vale-nos aqui avaliar tal
procedimento dialético a partir da produção artística de Marcel Duchamp, sob a circunscrição
que Georges Didi-Huberman realiza de sua obra, qual seja, a da impressão, técnica anacrônica
da arte; procedimento marginalizado do campo da arte, apesar de profusamente utilizado
pelos artistas (a exemplo de Donatello, Rodin, Andy Wahrol e o próprio Duchamp),
especialmente de todo e qualquer gravurista. A concretude desta técnica e seu processo de
aproximação da realidade levam a uma diferenciação com respeito à mimesis: não mais a
“expressão de uma ideia”, e sim a “impressão de uma matéria”, mais próxima da imago
romana – forma de impressão com cera da face dos mortos ilustres, para a reprodução em
negativo dessa mesma face. O sentido de representação, do idealismo, perde-se nesse
processo, pois a semelhança buscada é aquela que coloca o “primado do objeto” (para dizer
com Adorno): A impressão, de certa maneira, perturba o progredir do espírito, isto é, do
sujeito puramente, porque torna a matéria suporte imprescindível, já que, no processo de
produção da impressão, o sujeito não age, senão ao colocar em contato dois materiais (a
matriz e o suporte), para que daí possa sair a obra: “a impressão supõe um suporte ou
substrato, um gesto que o afeta (em geral um gesto de pressão, ao menos um contato) e um
resultado mecânico que é uma marca, em vazado ou relevo” (idem, p.27, tradução nossa,
grifos do autor). Gestos concretos que, por sua própria natureza, fazem confrontar duas
condições: “uma forma dual onde se confrontam dois valores de uso [...] A primeira atitude
consiste em reivindicar a perda da origem [...] A segunda atitude consiste em [...] votar ao
descrédito sua ‘não-obra’, sua ‘desastrosa posteridade’” (ibidem, p.19-20, tradução nossa). A
aproximação com a realidade abre a própria obra a uma falta constitutiva de algo que a
excede, mas que a marca como momento concreto de impressão, a ser carregada por si,
imiscuída, no seu processo de reprodução, lidando ainda com a questão do “nativo” (a matriz
que a produz) e o “negativo”, aquilo que se produz dos múltiplos contatos, mas que não é o
mesmo; é sempre a diferença relançada com o valor procedimental de produzir um “modo de
existência técnico” (ibidem, p.211-212), um modo sem repouso.
Marcel Duchamp, diz Didi-Huberman (2008), toma parte desta técnica como uma
espécie de exercício negativo em relação à arte, exercício de resistência, exercício de
afastamento, e exercício imanente, a partir do qual há um claro “primado do objeto” e, ao
mesmo tempo, um trabalho mimético. Por exemplo, com o Grande Vidro, ele parte do vidro
como material concreto e joga com as próprias possibilidades do material, realizando uma
série de procedimentos: deixa acumular poeira (registrado em foto por Man Ray), realiza
intervenções sobre ele, considerando sua materialidade (transparência e aderência) e suas
potencialidades e sentidos (a visibilidade, a relação com a pintura, o valor não-mercantil da
arte), sabendo considerar a “singularidade dos objetos [e] uma necessidade ligada à estrutura
dos contextos onde eles se transformam, mas que os transformam também” (ibidem, p. 185,
tradução nossa), mostrando que nem todo objeto é rico em possibilidade, de modo que resta
ao artista saber escolher aqueles que mais perturbarão a ordem institucional. No seu processo,
Duchamp estabelece uma sistemática de aproximação, estabelecendo uma série de
procedimentos, os quais seriam capazes de congregar a precisão e o acidente, a “precisão do
acidente” e o “acidente da precisão”, uma maneira de manter aberta a possibilidade mesma,
tanto do procedimento, quanto do pensamento acerca da composição. Não seria esse um modo
de conceber o trabalho do filósofo a partir de uma dialética negativa? Manter a mediação
entre o sujeito e o objeto, por meio de procedimentos que sustentam a abertura de tal
mediação, exigindo uma capacidade de precisão do sujeito, ao mesmo tempo em que o objeto
mantém seu primado e, com isso, seu momento de realidade? “O cerne da dialética – sua
verdade [...]”, diz-nos Silva (2009, p.59, grifo do autor no primeiro e segundo termos, grifo
nosso no terceiro) está na “resistência à identidade, ou ainda, em uma suspensão da síntese”,
na qual o filósofo descobre que “não há método abstrato, só há métodos concretos, materiais,
guiados por uma intenção intrínseca dos particulares, ou seja, atentos à sua concreção
histórica” (idem, p.66). Tal processo abraça a potencialidade de, no seio da sistematização,
levar em consideração o que a excede, o que sobrevém, o que se instala no corpo do próprio
procedimento, e que, em virtude disso, demanda desvios, reformulações e um trabalho do
negativo sempre pronto a demandar um novo esforço: “[n]ao é nem pelo pensamento não-
conceitual, nem por um conceito de não-identidade, que o pensamento alcança o não-
conceitual, mas por uma auto-reflexão do procedimento conceitual a respeito dos elementos
não-conceituais necessários à configuração do pensamento como linguagem” (GATTI, s/a,
p.267, grifo nosso).
Não se trata simplesmente de um desejo pelo não-conceitual, nem de um mero
esforço em vistas de uma não-identidade que fará a dialética devir negativa, no sentido
adorniano do termo. O que conta é isso que Gatti denomina como “auto-reflexão do
procedimento conceitual”, isto é, seu momento e modo expressivo. Aí, a questão da
apresentação torna-se central, na medida em que, enquanto o pensamento realiza seu gesto de
resistência e de rebelião, o próprio pensamento torna-se motivo desse processo, visto que ele
é lingüístico (p.24-25). Ele se dobra sobre si, estranhando-se, distanciando-se, o que abre a
própria condição do objeto, entrando em consideração no corpo do próprio pensamento e do
sujeito pensante. Ele (o sujeito) se torna objeto do pensamento e o pensamento objeto e
sujeito do próprio pensamento, articulando numa “suspensão” a coerência existente na
identidade, a partir do qual o não-idêntico se manifesta – ao invés de uma identidade,
encontra-se sempre o não-idêntico. Assim, “[o] pensamento irreconciliável é acompanhado
pela esperança de reconciliação porque a resistência do pensamento ao meramente ente, a
liberdade imperiosa do sujeito, também procura obter do objeto aquilo que se perdeu por meio
de sua transformação em objeto” (p.25). Atentando para a crítica que Adorno tece ao projeto
das Passagens de Walter Benjamin, precisamos considerar certa estranheza no fechamento
dessa frase. A despeito das reminiscências, dos vestígios do pensamento de seu amigo, o
esquecimento (ou o recalcado?) desse fechamento salta aos olhos. O desejo de reconciliação
de que fala Adorno está conectado a certa esperança em virtude de um irreconciliável, que, no
fim, não seria alcançado porque o que se quer, o impulso da dialética negativa, é a
manutenção dessa irreconciabilidade. Aí, talvez não veja o filósofo, e coloco como uma
hipótese, seu pensamento não cai em aporia, mas permanece em suspensão. A manutenção de
tal condição não cria um nada. Cria outra coisa que ele parece recusar. Pois, manter-se em
suspensão não significa uma desmobilização, nem do pensamento, nem do objeto, nem do
sujeito. Benjamin soube reconhecer isso. Vejamos o que ele nos diz.
N’As afinidades eletivas de Goethe, destaquemos primeiro: “Aquela esperança mais
paradoxal, mais fugidia, levanta-se por fim da aparência da reconciliação, na mesma medida
em que, extinguindo-se o sol, desponta a estrela da tarde no crepúsculo, a qual sobrevive à
noite” (BENJAMIN, 2009, p.119-120). E mais adiante: “[a] aparência da reconciliação pode,
deve inclusive, ser desejada: apenas ela é a morada da mais extrema esperança. Desse modo, a
esperança se desvencilha por fim da aparência, e somente a indagação trêmula, aquele ‘que
belo’ no final do livro continua a ressoar para além dos mortos, os quais esperamos que
despertem – se um dia isso vier a ocorrer – não em um mundo belo, mas sim num mundo
bem-aventurado. [...] à certeza da bênção que os amantes na novela levam para casa responde
a esperança de redenção que acalentamos para todos os mortos” (idem, p.120). E, por fim:
“Não é, portanto, essa essência nazarena, mas sim o símbolo da estrela caindo por sobre os
amantes que constituí a forma de expressão adequada daquilo que, de mistério, em sentido
exato, habita a obra” (ibidem). Benjamin encontra na imagem da estrela cadente aquilo que
foi capaz de suspender a própria aparência (a aparência de reconciliação) e, ao mesmo tempo,
de apontar para uma esperança verdadeira, a forma de expressão da redenção, a qual não é
nazarena, isto é, não é a da esperança de que algo mude, de uma espera (a sala burguesa de
que fala em “Caráter Destrutivo” – por acaso uma “imagem de pensamento”), mas da força
que aparece, na medida em que a falsa aparência despedaça-se em prol de uma aparência
verdadeira (a bem-aventurança, a redenção, o desejo de fazer justiça aos mortos). Na
suspensão, não é um nada que aparece (a falsa aparência), mas uma outra imagem, um
“mistério”, um excesso capaz de ultrapassar a aparência de reconciliação em nome do
“fortalecimento para a luta”: “Aqueles amantes jamais o alcançam – o que importa se eles
jamais se fortaleceram para a luta? Apenas em virtude dos desesperançados nos é concedida
a esperança” (ibidem, p.121). A imagem, que é resultado de uma suspensão, levantando na
noite, coloca-nos diante dessa questão: como nos fortalecer para a luta, uma força capaz de
abrir nossos olhos aos desesperançados? Pois, como parece claro, é deles que nos vem a
esperança, não da reconciliação.

Referências

ADORNO, T. W. Dialética Negativa...

BENJAMIN, W. “As afinidades eletivas de Goethe”, em: Ensaios Reunidos: Escritos sobre
Goethe...

DIDI-HUBERMAN, Georges. La ressemblance par contact: archéologie, anachronisme et


modernité de l‟empreite...

GATTI, Luciano. Exercícios do pensamento...

OLIVEIRA, Mariana Fidelis J. de. Delimitação do problema do ‘desencantamento do


conceito’ na Dialética Negativa...

SILVA, Eduardo Soares N. Coerência em suspensão: Adorno e os modelos de pensamento...

Tópicos especiais de Filosofia Contemporânea II


PARÁGRAFOS: “Argumento e Experiência”, “A fragilidade do verdadeiro”

Clayton Rodrigo da Fonsêca Marinho

(Uma tese terceira: a dialética negativa configura um regime sensível de despossessão, o qual
se expõe na medida em que compõe modelos críticos de pensamento, encontrando nas
imagens um regime de mediação e paradigma para um mundo por vir)

Entre um impulso de destituição e a exposição em suspensão de uma imagem crítica,


as considerações acerca da dialética negativa em Adorno parecem compor uma determinação
que se desvia da vertente de seu próprio pensador: não a do movimento mediador, mas a da
parada implicadora. Talvez seja esse o verdadeiro “choque do aberto” (p.36): a dialética
negativa como um contrarritmo, capaz de colocar em questão a ordem das representações, e
as “expectativas de adequação próprias à gramática da representação” (SAFATLE, 2017,
p.229), de onde derivariam as categorias e definições identificadoras. Isso significa, no fim,
desestabilizar a aparente identidade entre a parada no movimento e imediaticidade. Parar pode
adquirir três sentidos, ao menos: (1) não mais se mover, estancar, porque é impossível mover-
se, porque não se quer mais mover (não há mais necessidade) ou ainda porque se chegou ao
objetivo (final); (2) suspender um movimento, opor uma força contrária ao que se movia
(negação do movimento por embate de forças), mudar a rota, colocar-se contra o contínuo; ou
mesmo (3), imobilizar ou cristalizar certa situação, dar subitamente um fim, romper com o
sentido atual, abrir uma virtualidade, criar encruzilhada. Em quaisquer dessas possibilidades,
o negativo aparece como elemento constitutivo da suspensão, na mesma medida em que
elabora outra coisa: “[...] a negatividade é uma forma de não esmagar a possibilidade no
interior das figuras disponíveis das determinações presentes” (idem, p.232). A negatividade
implicada na dialética segundo Adorno pode levar a uma “virtualidade”, como o possível
determinado que rompe com a não-verdade, com a falsa ilusão de unidade e totalidade.

O imanentemente argumentativo é legítimo quando se porta receptivamente


em relação à realidade integrada em sistema, a fim de recolher suas próprias
forças contra ela. O que há de livre no pensamento, em contrapartida,
representa a instância que já sabe sobre o não-verdadeiro [...] sem se
apropriar da violência do sistema, ele falharia (p.33, grifo nosso).

A “violência” aqui aludida seria, por um lado, a sua própria perpetuação, o constante
movimento do qual depende e sem o qual ruiria, necessitando para tanto, reduzir tudo e todos
à esfera da identidade comum através da qual se movimenta (e a troca): a mercadoria. Por
outro lado, seria a sua própria diferenciação como necessidade intrínseca de conceber mais
valor, a fim de possuir toda a diferença como condição de sobrevivência. Apropriar-se da
“violência do sistema”, numa perspectiva de lançá-la contra si mesma, é uma possibilidade
que a suspensão alcança, fazendo aparecer o saber sobre o “não verdadeiro” como a instância
constitutiva desse percurso que não é de saída simplesmente, mas um “deixar-se tornar
permeável” (p.33). A violência, então, tornar-se-ia parte de dentro, ou mesmo seu centro
irradiador, não como redução à mercadoria (a ilusão sabida), senão como o que abre a
possibilidade de uma verdadeira diferenciação (o saber da ilusão), capaz de desmantelar o
próprio sistema, num processo de “despossessão” (cf. Safatle, 2017, p. 247ss, no qual o
proletariado aparece como categoria ontológica e não apenas sociológica, como a classe que
rompe a própria dimensão do trabalho). Não se trata tanto de opor uma força “negativa” à
positividade da força capitalista, mas, no embate de forças, fazer emergir sempre uma terceira
(inicialmente excluída), apta a desativar a própria lógica dessas forças, para dar lugar a um
conjunto de novas forças, fora da estrutura e do sistema do capital. A verdadeira negatividade
da parada, em relação à dialética negativa adorniana, seria, pois, a da despossessão, que, por
sua vez, permite a apropriação de toda a teoria, dos conceitos, com vias a ir além deles. Se o
regime de posse se configura como o modelo do sistema capitalista, ao qual uma dialética não
apenas contrapõe-se, como cria linhas de fuga, outro regime se faz necessário para que tal
modelo seja destituído verdadeiramente: um “regime sensível” com seus modos de relação e
afecção próprios. À reificação da relação sujeito-objeto, a dialética negativa adorniana
responderia com um “momento somático” (SAFATLE, 2017, p. 231), que vai, segundo esse
autor, na esteira do jovem Marx, para quem, superar a síntese hegeliana, em direção a uma
síntese aberta, significava uma “implicação multilateral através da sensibilidade [...] Ou seja,
há uma síntese entre sujeito e objeto que passa pela sensibilidade e que só pode ser
transformada pela sensibilidade” (idem, p.242).
Não se trata apenas de engendrar modelos de pensamento provenientes de uma
dialética negativa, senão sob o regime sensível, o que implica a elaboração de modelos
críticos (cf. Musse, 2009), isto é, um conjunto de “trabalhos aplicados nos quais a teorização
fornecida pelo desenvolvimento do especulativo é explicitamente considerada” (idem, p.139-
140), configurado, entretanto, na “forma de uma tensão”, já que há um “trânsito de mão dupla
entre o concreto e especulativo” (ibidem, p.139), a fim de encontrar sua expressão que é
também a forma de seu rigor. É importante ressaltar que o “crítico” aí está muito mais por
parte do autor do que de Adorno. Há alguma diferenciação entre “modelo de pensamento” e
“modelo crítico”? Os “modelos de pensamentos” são “representações no particular da
totalidade irrepresentável enquanto tal”, pois tal pensamento “vem à luz [...] enquanto
micrologia de meios macrológicos” (p.32). Adorno ainda precisa um pouco mais a condição
da elaboração de tais modelos: “O modelo diz respeito ao específico e mais do que específico,
sem fazê-lo volatizar-se em seu conceito mais genérico supraordenado [...] a dialética
negativa é um ensemble de análises de modelos” (p.32-33). Do macrológico é arrancado um
“fragmento heterônimo” do mundo, no qual o filósofo se deterá, ao ponto de perder-se, para
imergir no objeto e, ao mesmo tempo, ter uma dimensão de suas relações com o meio
macrológico. Só dele, de dentro deste objeto ínfimo será possível tirar alguma coisa, que não
é da ordem do relatável (p.36), mas que pode ser exposto e do qual se pode partir, na medida
em que a filosofia se mede com esse objeto. Aí, então, ela precisa desse elemento somático: a
vertigem. É ela que faz com que o pensamento soçobre, fazendo com o sujeito não tenha de
“escolher” (cf. p.35) entre alternativas, mas que “decida” na e pela filosofia inteira a cada vez.
Tudo está em jogo, mas não num jogo de escolhas. O jogo é mais perigoso. É o jogo da
desvinculação e é o jogo da perda da possibilidade da verdade. Nada está assegurado e nós
jogamos apesar da falta de segurança: “O pensamento aberto não está protegido contra o
risco de escorregar para o arbitrário; nada lhe garante que tenha se nutrido suficientemente
com a coisa mesma para suportar esse risco” (p.38). Essa é a negatividade imanente da
dialética adorniana. O “crítico”, então, é a medição justa da distância entre a coisa e o não-
idêntico que desvincula o próprio pensamento do objeto. E o que ele revela é a “não-verdade”
(p.34), uma espécie de esforço constante de objeção, isto é, a própria crítica (cf. Musse, 2009,
p.142, no qual a crítica aparece como o movimento próprio da filosofia, e não a considerações
de definições e categorias).
Se o crítico guarda a consideração do “especulativo”, então, mantém-se na
negatividade um “potencial crítico” (ibidem, p.136), que a considerar a tensão como uma
forma, cogita uma via distinta, a diferenciação. O que poderia, então, diferenciar tencionando-
se? O que significaria elevar a uma forma a tensão capaz de experimentá-la, não como
unidade, mas como não-idêntico? O que poderia apresentar a fragilidade e capacidade
desvinculatória do pensamento, numa forma não relatável, mas que tem a habilidade de fazer
emergir uma outra possibilidade destituidora da lógica simplista do capital, sem elaborar, para
tanto categorias e definições de fora?
Poderíamos tomar como exemplo o que Benjamin (2011, p.192, grifos nossos) diz
em uma de suas “Imagens de pensamento”, esse dedicado à San Gimignano, cidade toscana
da Itália, cujo início é: “Achar palavras para aquilo que se tem diante dos olhos – quão difícil
pode ser! Porém, quando elas chegam, batem contra o real com pequenos martelinhos até
que, como de uma chapa de cobre, dele tenham extraído a imagem”. A imagem aqui não é
meramente uma imagem (da arte, por exemplo), mas aquilo que se extraí por impressão (por
implicação) da matéria batida pelas palavras difíceis de encontrar. Tai imagem na surge de
pronto. É preciso o risco contra o real. Todo o pensamento está tomado, pelas palavras, pelo
silêncio, pelo “zumbido dos grilos e gritos das crianças”, pelo passado que se contraí nos
vestígios e nos “restos dos velhos adornos” e nas muitas aberturas onde “tremulam agora
panos de linho sujos”, das experiências monótonas, do levantar do Sol, das afinidades
possíveis (idem, p.193). Como num trabalho de atenção, que implica o distanciamento e a
aproximação mais tenaz, o filósofo nada relata (nada informa), mas expõe, inclusive nos
mistérios indecifráveis, nos quais não consegue penetrar: “a muralha, à qual estou apoiado,
divide o segredo da oliveira, cuja copa se abre para o céu com milhares de brechas, como uma
coroa dura e quebradiça” (ibidem, p.194). O pensamento que expõe tal imagem está
desvinculada dos objetos, na medida em que imerge neles para partir deles e algo saber. A
imagem aqui não é, no entanto, um mero fim do pensamento que as cria. Ela surge como uma
espécie de paradigma, um modelo multilateral que expõe de dentro o que não pode ser
reduzido à identidade, fazendo justiça ao não-idêntico, na mesma medida em que salva a
complexidade dos fenômenos e das ideias. Se elas não se tornam, na concepção de Adorno, a
forma mais forte de uma dialética negativa, porque aparecem enquanto estão em suspensão,
podem, porém, mostrarem-se como “grãos que, há séculos, estão hermeticamente
armazenados nas câmaras das pirâmides e que, até o dia de hoje, conservam seu poder de
germinação” (ibidem, p.263).

Referências

ADORNO, T. W. Dialética Negativa...

BENJAMIN, Walter. “Imagens de pensamento”, em: Obras escolhidas II: Rua de mão
única...

MUSSE, Ricardo. TheodorAdorno: Filosofia de conteúdos e modelos críticos...

SAFATLE, Vladimir. Materialismo e Dialética sem Aufhebung: Adorno, leitor de Marx;


Marx, leitor de Hegel...

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