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Tal relação entre “aparência”, “verdade” e “totalidade” aparece antes em outra obra
de Benjamin, As afinidades eletivas de Goethe, na qual o filósofo tenta expressar uma nova
modalidade de crítica que, pensada como mônada, seria um fragmento de mundo da própria
filosofia. Porém, vejamos que a solução de Benjamin é, diferente de Adorno, uma vez mais, a
imobilização, a qual permitiria, não apenas executar a força negativa da própria dialética, mas,
ao fazer isso suspender a totalidade em busca de um mundo verdadeiro, embora fragmentado:
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Se bem compreendi essa passagem, diria até que uma possibilidade [literária] de sua realização aparece em A
paixão segundo G.H. de Clarice Lispector.
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Diria inclusive que isso se resumiria a uma proposição de Georges Didi-Huberman: “a representação do
soberano tornou-se a soberania da representação”, um modo de dizer o “empobrecimento” e, ao mesmo tempo,
um aprisionamento das possibilidades de existência e de representação.
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Num mesmo parágrafo, inclusive, o autor utiliza o termo três vezes, mostrando o valor que ele teria na filosofia
adorniana, que talvez estejam ligadas à noção de imbricação (Verfransung) das artes na obra tardia do autor,
como aponta Nobre (2019, p.19). Valeria a pena investigar a noção desse “impulso” com a “vontade artística”
de Alois Riegl e mesmo a “vontade de potência” de Nietzsche.
precede e funda a subjetividade, ela mesma modalidade da matéria. [...] Como tudo que é
material, ele pode ser modificado e curado – através do trabalho” (ZANOTTI, 2018, p.113). A
reconciliação vinculada pela “forma idealista” à “predominância do sujeito absoluto como a
força que produz negativamente todo movimento do conceito [...]” (p.14), perde sua validade,
afirma o autor: nem, então, o primado do sujeito como sujeito da reconciliação, nem o objeto
como coisa-em-si sem acesso, o que levaria, de um lado, à consideração da “identidade entre
a identidade e a não-identidade”(p.15) e, de outro lado, à renúncia de construção do mundo
(p.14). A dialética negativa, nesse conjunto, insere-se no próprio real, não como a forma que a
sistematiza, senão como a forma que a expõe como um sistema que pode ser destituído, e, ao
mesmo tempo, como aquilo que pode inaugurar um novo campo de trabalho para a própria
filosofia, que não seja nem uma mera “metodologia das ciências” (p.15) ou “mediadora do
conhecimento” (como bem o disse Benjamin, 2009, p.16).
Referências
BENJAMIN, W. “As afinidades eletivas de Goethe”, em: Ensaios Reunidos: Escritos sobre
Goethe...
(Uma tese segunda: A possibilidade real de uma realidade na dialética negativa se faz possível
na suspensão, e ela, por sua vez, não se desmobiliza nessa suspensão, mas apresenta uma
imagem5)
Referências
BENJAMIN, W. “As afinidades eletivas de Goethe”, em: Ensaios Reunidos: Escritos sobre
Goethe...
(Uma tese terceira: a dialética negativa configura um regime sensível de despossessão, o qual
se expõe na medida em que compõe modelos críticos de pensamento, encontrando nas
imagens um regime de mediação e paradigma para um mundo por vir)
A “violência” aqui aludida seria, por um lado, a sua própria perpetuação, o constante
movimento do qual depende e sem o qual ruiria, necessitando para tanto, reduzir tudo e todos
à esfera da identidade comum através da qual se movimenta (e a troca): a mercadoria. Por
outro lado, seria a sua própria diferenciação como necessidade intrínseca de conceber mais
valor, a fim de possuir toda a diferença como condição de sobrevivência. Apropriar-se da
“violência do sistema”, numa perspectiva de lançá-la contra si mesma, é uma possibilidade
que a suspensão alcança, fazendo aparecer o saber sobre o “não verdadeiro” como a instância
constitutiva desse percurso que não é de saída simplesmente, mas um “deixar-se tornar
permeável” (p.33). A violência, então, tornar-se-ia parte de dentro, ou mesmo seu centro
irradiador, não como redução à mercadoria (a ilusão sabida), senão como o que abre a
possibilidade de uma verdadeira diferenciação (o saber da ilusão), capaz de desmantelar o
próprio sistema, num processo de “despossessão” (cf. Safatle, 2017, p. 247ss, no qual o
proletariado aparece como categoria ontológica e não apenas sociológica, como a classe que
rompe a própria dimensão do trabalho). Não se trata tanto de opor uma força “negativa” à
positividade da força capitalista, mas, no embate de forças, fazer emergir sempre uma terceira
(inicialmente excluída), apta a desativar a própria lógica dessas forças, para dar lugar a um
conjunto de novas forças, fora da estrutura e do sistema do capital. A verdadeira negatividade
da parada, em relação à dialética negativa adorniana, seria, pois, a da despossessão, que, por
sua vez, permite a apropriação de toda a teoria, dos conceitos, com vias a ir além deles. Se o
regime de posse se configura como o modelo do sistema capitalista, ao qual uma dialética não
apenas contrapõe-se, como cria linhas de fuga, outro regime se faz necessário para que tal
modelo seja destituído verdadeiramente: um “regime sensível” com seus modos de relação e
afecção próprios. À reificação da relação sujeito-objeto, a dialética negativa adorniana
responderia com um “momento somático” (SAFATLE, 2017, p. 231), que vai, segundo esse
autor, na esteira do jovem Marx, para quem, superar a síntese hegeliana, em direção a uma
síntese aberta, significava uma “implicação multilateral através da sensibilidade [...] Ou seja,
há uma síntese entre sujeito e objeto que passa pela sensibilidade e que só pode ser
transformada pela sensibilidade” (idem, p.242).
Não se trata apenas de engendrar modelos de pensamento provenientes de uma
dialética negativa, senão sob o regime sensível, o que implica a elaboração de modelos
críticos (cf. Musse, 2009), isto é, um conjunto de “trabalhos aplicados nos quais a teorização
fornecida pelo desenvolvimento do especulativo é explicitamente considerada” (idem, p.139-
140), configurado, entretanto, na “forma de uma tensão”, já que há um “trânsito de mão dupla
entre o concreto e especulativo” (ibidem, p.139), a fim de encontrar sua expressão que é
também a forma de seu rigor. É importante ressaltar que o “crítico” aí está muito mais por
parte do autor do que de Adorno. Há alguma diferenciação entre “modelo de pensamento” e
“modelo crítico”? Os “modelos de pensamentos” são “representações no particular da
totalidade irrepresentável enquanto tal”, pois tal pensamento “vem à luz [...] enquanto
micrologia de meios macrológicos” (p.32). Adorno ainda precisa um pouco mais a condição
da elaboração de tais modelos: “O modelo diz respeito ao específico e mais do que específico,
sem fazê-lo volatizar-se em seu conceito mais genérico supraordenado [...] a dialética
negativa é um ensemble de análises de modelos” (p.32-33). Do macrológico é arrancado um
“fragmento heterônimo” do mundo, no qual o filósofo se deterá, ao ponto de perder-se, para
imergir no objeto e, ao mesmo tempo, ter uma dimensão de suas relações com o meio
macrológico. Só dele, de dentro deste objeto ínfimo será possível tirar alguma coisa, que não
é da ordem do relatável (p.36), mas que pode ser exposto e do qual se pode partir, na medida
em que a filosofia se mede com esse objeto. Aí, então, ela precisa desse elemento somático: a
vertigem. É ela que faz com que o pensamento soçobre, fazendo com o sujeito não tenha de
“escolher” (cf. p.35) entre alternativas, mas que “decida” na e pela filosofia inteira a cada vez.
Tudo está em jogo, mas não num jogo de escolhas. O jogo é mais perigoso. É o jogo da
desvinculação e é o jogo da perda da possibilidade da verdade. Nada está assegurado e nós
jogamos apesar da falta de segurança: “O pensamento aberto não está protegido contra o
risco de escorregar para o arbitrário; nada lhe garante que tenha se nutrido suficientemente
com a coisa mesma para suportar esse risco” (p.38). Essa é a negatividade imanente da
dialética adorniana. O “crítico”, então, é a medição justa da distância entre a coisa e o não-
idêntico que desvincula o próprio pensamento do objeto. E o que ele revela é a “não-verdade”
(p.34), uma espécie de esforço constante de objeção, isto é, a própria crítica (cf. Musse, 2009,
p.142, no qual a crítica aparece como o movimento próprio da filosofia, e não a considerações
de definições e categorias).
Se o crítico guarda a consideração do “especulativo”, então, mantém-se na
negatividade um “potencial crítico” (ibidem, p.136), que a considerar a tensão como uma
forma, cogita uma via distinta, a diferenciação. O que poderia, então, diferenciar tencionando-
se? O que significaria elevar a uma forma a tensão capaz de experimentá-la, não como
unidade, mas como não-idêntico? O que poderia apresentar a fragilidade e capacidade
desvinculatória do pensamento, numa forma não relatável, mas que tem a habilidade de fazer
emergir uma outra possibilidade destituidora da lógica simplista do capital, sem elaborar, para
tanto categorias e definições de fora?
Poderíamos tomar como exemplo o que Benjamin (2011, p.192, grifos nossos) diz
em uma de suas “Imagens de pensamento”, esse dedicado à San Gimignano, cidade toscana
da Itália, cujo início é: “Achar palavras para aquilo que se tem diante dos olhos – quão difícil
pode ser! Porém, quando elas chegam, batem contra o real com pequenos martelinhos até
que, como de uma chapa de cobre, dele tenham extraído a imagem”. A imagem aqui não é
meramente uma imagem (da arte, por exemplo), mas aquilo que se extraí por impressão (por
implicação) da matéria batida pelas palavras difíceis de encontrar. Tai imagem na surge de
pronto. É preciso o risco contra o real. Todo o pensamento está tomado, pelas palavras, pelo
silêncio, pelo “zumbido dos grilos e gritos das crianças”, pelo passado que se contraí nos
vestígios e nos “restos dos velhos adornos” e nas muitas aberturas onde “tremulam agora
panos de linho sujos”, das experiências monótonas, do levantar do Sol, das afinidades
possíveis (idem, p.193). Como num trabalho de atenção, que implica o distanciamento e a
aproximação mais tenaz, o filósofo nada relata (nada informa), mas expõe, inclusive nos
mistérios indecifráveis, nos quais não consegue penetrar: “a muralha, à qual estou apoiado,
divide o segredo da oliveira, cuja copa se abre para o céu com milhares de brechas, como uma
coroa dura e quebradiça” (ibidem, p.194). O pensamento que expõe tal imagem está
desvinculada dos objetos, na medida em que imerge neles para partir deles e algo saber. A
imagem aqui não é, no entanto, um mero fim do pensamento que as cria. Ela surge como uma
espécie de paradigma, um modelo multilateral que expõe de dentro o que não pode ser
reduzido à identidade, fazendo justiça ao não-idêntico, na mesma medida em que salva a
complexidade dos fenômenos e das ideias. Se elas não se tornam, na concepção de Adorno, a
forma mais forte de uma dialética negativa, porque aparecem enquanto estão em suspensão,
podem, porém, mostrarem-se como “grãos que, há séculos, estão hermeticamente
armazenados nas câmaras das pirâmides e que, até o dia de hoje, conservam seu poder de
germinação” (ibidem, p.263).
Referências
BENJAMIN, Walter. “Imagens de pensamento”, em: Obras escolhidas II: Rua de mão
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