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Avaliação E. Educação Professor

Ficha de Leitura 1

Relato de viagem
Lê o seguinte texto, de Gonçalo Cadilhe.

Por este reino acima por Gonçalo Cadilhe

lguns quilómetros depois de Ata-


laia, caminho em pleno bosque
por um atalho bem assinalado.
Na distância, ouço o rumor
5 inconfundível de automóveis em
alta velocidade sustentada. Terá de ser uma
autoestrada e de facto, segundo as minhas
notas, em breve irei passar por cima da A23,
numa dessas pontes que cruzam o céu das
10 chamadas vias rápidas com regularidade
geométrica. Em italiano chamam- O que hoje nos parece natural seria
-se cavalcavia, cavalgar, galgar a estrada. Poé- inimaginável, demasiada ficção, em figuras que
tico. O dia está a nascer, mas já há um consi- nos habituámos a considerar como parte do
derável fluxo de trânsito na A23. Fico alguns 40 nosso tempo, personagens cujas obras,
15 minutos «em cima da sela» da autoestrada, a pensamentos e ações criaram a nossa ideia de
pensar na diferença de estatuto entre quem modernidade. Quando Gauguin emigrou para o
caminha por cima a um ritmo lento e paciente, Taiti, 19 quilómetros por hora era o recorde
e quem passa em baixo a uma velocidade absoluto de velocidade de um carro – um
forçada e com os minutos contados, 45 objeto que Darwin e Pasteur nunca chegaram a
20 deslocando-se ironicamente na posição mais ver e Eça de Queirós, mesmo vivendo nesses
imóvel que o ser humano conhece: a posição anos na cidade que então se encontrava no
sentada. centro do mundo, Paris, provávelmente tam-
Hoje pensamos que uma média de 100 quiló- bém não.
metros por hora numa autoestrada seja uma média 50 Assim, a velocidade que eu considero hoje
25 abaixo da média, logo, pouco natural, e até chega- habitual e a partir da qual faço as contas às
mos a considerá-la uma velocidade perigosa, pela distâncias que me separam dos meus destinos
imprevisibilidade que a sua «lentidão» apresenta foi absolutamente inédita durante a maior parte
em relação à maioria das deslocações verificadas da História da humanidade e só em tempos
nessas artérias. Mas um pouco de bom senso 55 recentes adquirida – pelas três ou quatro
30 permite-nos ver o risco absurdo desta situação: gerações que me precederam. Paradoxalmente, a
são poucas as probabilidades de se sair ileso de velocidade que desde sempre marcou o tempo
um acidente a 100 quilómetros por hora. E os da viagem, ou seja, o ritmo da caminhada,
acidentes acontecem por definição quando não aparece-me agora como uma revelação, uma
estamos a contar com eles. 60 epifania e um segredo que não partilho com os
35 Também, em termos de evolução da loco- condutores que desaparecem do meu campo de
moção humana na História, foi só recentemen- visão como relâmpagos, engolidos sob a ponte
te, há cerca de três ou quatro gerações, que a pedonal da autoestrada.
nossa espécie conseguiu aceder a estas
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velocidades.
Mas, para lá da velocidade, há outras dife- O que pensarão por sua vez os condutores
renças interessantes no contacto com o ter- que notam este vulto de mochila às costas e
65 ritório e na perceção que temos dele. Para 75 bastão no punho a caminhar por cima da
começar, a quantidade de detalhes que a vista cabeça deles? Que sou lento, que não sei o que
consegue captar quando se viaja à velocidade fazer à vida, que o meu esforço é inglório e que
do corpo humano. E depois, e sobretudo, uma já devia ter idade para ter juízo. A maioria,
diferença acústica. Com o motor a funcionar, sim. Talvez um ou outro, ao erguer o olhar para
70 nunca um condutor a bordo de um automóvel 80 a ponte, imagine que, lá em cima, a «cavalgar»
poderá jamais apropriar-se do som que emite a a autoestrada, eu me sinta mais perto do céu.
paisagem que atravessa. Gonçalo Cadilhe, Por este reino acima –
No primeiro trekking da História de Portugal,
Lisboa, Clube do Autor, 2020 (com adaptações).

1. Através da expressão «Fico alguns minutos “em cima da sela” da autoestrada» (linhas 13-14),
o autor demonstra que

A. passou pela autoestrada a cavalgar.


B. parou, por alguns minutos, numa das pontes pedonais da A23.
C. caminhava a um ritmo lento e paciente.
D. abarcava, com o seu olhar, toda a autoestrada.

2. Na perspetiva de Gonçalo Cadilhe, é perigoso circular a 100 quilómetros por hora numa
autoestrada porque

A. os outros veículos não esperam que nos desloquemos tão lentamente.


é muito provável que um indivíduo que se desloque a esta velocidade escape
B.
incólume a um acidente.
o facto de nos deslocarmos a esta velocidade aumenta a possibilidade de termos
C.
um acidente.
D. esta velocidade nos impede de ver atempadamente eventuais obstáculos.

3. O paradoxo a que o autor se refere no quarto parágrafo consiste no facto de

haver um enorme contraste entre a velocidade a que ele caminhava e a dos


A.
veículos que percorriam a A23.
apenas as três ou quatro gerações que o precederam terem tido acesso à
B.
velocidade que atualmente é considerada habitual.
C. os condutores que observa não terem acesso ao seu segredo.
apenas agora se ter apercebido do caráter essencial da velocidade que marcou as
D.
viagens desde tempos primordiais: o ritmo da caminhada.

4. No último parágrafo, Gonçalo Cadilhe coloca a hipótese de

todos os que o observam considerarem que o seu esforço é inútil e demonstra


A.
que não tem objetivos na vida.
B. a maioria dos condutores manifestarem inveja em relação à sua liberdade.
algumas das pessoas que o observam julgarem que ele se encontra mais perto de
C.
uma condição de plenitude.

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D. a maioria dos condutores não se dignar sequer olhar para ele.

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