Você está na página 1de 2

ESR@D CAMÕES 2022/23 PORTUGUÊS 10º ano MÓDULO 3

NARRATIVA DE VIAGENS
Como pronunciar “cabo Agulhas”

A pergunta era se eu não sentia orgulho


quando chegava ao cabo da Boa Esperança.
Orgulho de ser português.
Hesitei. Vou ser franco ou não? Dou uma
5 resposta de circunstância e vaga, ou entro na
questão a fundo? Viajar por muito tempo tem
esta consequência: adquire-se um certo
relativismo.
Fica difícil aceitar os dogmas e os mitos pro-
10 pagados na pátria ao longo de gerações. e que marca, esse sim, o final do continente, o
Visitamos outros países e ficamos a saber que cabo Agulhas. Não é impressionante.
os nossos dogmas e mitos valem tanto como os Não tem uma falésia a pique sobre o mar,
deles. nem um miradouro preparado para rasgar o
Esse formidável promontório, no fundo de 45 infinito nem sequer um posto de turismo com
15 África, é um ponto de referência impressionante os gadgets e souvenirs da ocasião, apenas um
quer para os que o alcançam por terra quer para os acidente de relevo lacónico e definitivo, no
que o contornam por mar. Aliás, recordo a minha litoral. Extraordinária, pelo contrário, é a
desilusão quando o visitei pela primeira vez, por estrada de aproximação ao cabo Agulhas, que
encontrar um dia de mar calmo e translúcido, de 50 atravessa dezenas de quilómetros de terra
20 céu cristalino e brisa suave, (…) nada fazia supor ser desolada e premonitória, como se nenhuma
ali o lugar do mito do Adamastor. Mas em visitas outra paisagem fosse digna de anunciar esse
seguintes, as coisas cósmicas alinharam-se de iminente fim de mundo que é o cabo Agulhas.
maneira a poder assistir a tempestades brutais de Uma placa rasa informa que, neste ponto,
mar e vento sobre o cabo que por nós foi pela 55 se encontram os dois oceanos: Atlântico e
25 primeira vez dobrado. Índico. As rochas são recortadas e pontiagudas,
A pergunta era se eu sentia orgulho. De ser vagamente como agulhas, e pareceu-me estar
português no cabo da Boa Esperança. explicada a razão do nome do cabo. Mas não
Não. Passaram muitos séculos. O que eu não era nada disso.
consigo deixar de sentir é uma perplexidade 60 Os navegadores portugueses descobriram
30 incomodada. Onde foram parar esses homens que o norte geográfico, aquele indicado pela
que estavam na vanguarda do seu tempo? Onde Estrela Polar, e o norte magnético, indicado
foram parar o arrojo e a antevidência da raça que pelas agulhas das bússolas, coincidiam na
soube dar novos mundos ao mundo? O meu passagem deste cabo. Daí o nome Agulhas.
incómodo é ainda maior, se viro as costas ao 65 Ao contrário do cabo da Boa Esperança,
35 cabo e regresso cujo nome foi traduzido em todas as línguas, o
à cidade, talvez a mais cenográfica e apetecível cabo Agulhas mantém a grafia original do
de todas as cidades fora da Europa, e penso que batismo português. É esse, talvez, o meu
podia ser uma cidade de ascendência portuguesa, motivo de orgulho, não pelo que fomos e
mas que simplesmente deixámos que os 70 deixámos de ser, mas pelo que encontrámos e
40 holandeses ficassem com ela. A Cidade do Cabo, demos a conhecer. E deixámos nomeado.
Cape Town, Neste caso, nada de “cape Needles”, antes,
a “Taverna dos Mares”. qualquer coisa como “cape Agâolas”.
Na realidade, para contornar África, não basta
dobrar o cape of Good Hope, há outro mais a sul

Gonçalo Cadilhe, “Qualquer coisa nos lugares”, in Visão, edição online, 19 de junho de 2013 (consultado em maio de 2017).
ESR@D CAMÕES 2022/23 PORTUGUÊS 10º ano MÓDULO 3
NARRATIVA DE VIAGENS

1. Viajar durante muito tempo tem consequências como


 (A) o esquecimento de locais que deveriam ficar na memória.
 (B) a relativização da importância de certos acontecimentos.
 (C) a perceção de que afinal valeu a pena fazer aquela viagem.
 (D) a valorização da terra ou do país que deixamos para trás.
2. Considerando o conteúdo das linhas 13 a 23, o viajante terá visto
 (A) o gigante Adamastor no local visitado.
 (B) o promontório como um local de visita obrigatória.
 (C) situações climáticas e atmosféricas distintas.
 (D) vários portugueses a visitar o cabo da Boa Esperança.
3. Uma certa revolta apoderou-se do viajante quando ele
 (A) percebeu que o promontório nada tinha de perigoso.
 (B) passou pela cidade do Cabo e se consciencializou da sua beleza.
 (C) refletiu acerca da perda da cidade do Cabo para os ingleses.
 (D) interiorizou a falta de iniciativa dos portugueses.
4. O "fim de mundo", segundo o autor, poderia associar-se
 (A) ao cabo da Boa Esperança.  (C) à localização da cidade do Cabo.
 (B) ao cabo Agulhas.  (D) à região envolvente do cabo Agulhas.
5. Justifique, com base em elementos textuais, a descrença do autor nos mitos e nos dogmas.

6. O autor revela a sua perplexidade relativamente à situação dos portugueses.


Comprove de que modo ele a manifesta.

7. Indique o único motivo de orgulho de ser português registado por este viajante.

Adaptado de NOVOS PERCURSOS PROFISSIONAIS • PORTUGUÊS 1 • GUIA DO PROFESSOR • ASA

Você também pode gostar