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Miolo - Falso Lago.

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Porto Alegre • 1ª edição • 2023

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À minha madrinha, Elaine, ofereço estas palavras. Que este
livro possa ser um tributo simbólico à sua incrível jornada
como mulher e à sua dedicação inabalável ao outro como
assistente social. Saudades, dinda.

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Nem todo viandante
anda estradas,
há mundos submersos,
que só o silêncio
da poesia penetra.

Conceição Evaristo

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FALSO LAGO

1.

Quando o que é de dentro transborda, leva mato, galho, lama.


Escorre abrindo sulco em terra dura, arrasta rocha de tone-
lada morro abaixo. A enxurrada interna derruba com força,
dá caldo daqueles de sensação ruim no nariz. E a gente tenta
ajeitar as roupas desarrumadas pelo corpo que já não cobrem
mais nada. Uma cena tão ridícula quanto se afogar no raso
do mar. Na água em que os velhos mijam, lugar em que as
crianças pequenas ainda dão pé.
A chuva de dentro quando vem bate na cara e leva o corpo
ao chão. A gente deságua, desalma, desaba. Arrastados, mas
sobreviventes ao alagamento, talvez possamos conhecer o
significado daquilo que alguns chamam por força, outros por
fé. E se os olhos transbordarem frente ao espelho, então nos
sentiremos vivos. E raros.

Modorra e suor escorrido entre as tetas, chuva pingo grosso


vinda no horizonte e calor de trinta e nove. Protegida pela
janela do ônibus, temi o céu chumbado que chegava à cida-
de. Uma massa colossal iniciou-se no alto dos prédios mais
distantes e cresceu sem fim na vista. Nuvem. Cumulonimbus.
Me lembro de revisar esse conteúdo para alguma prova de
Geografia do guri. E quem se importa com nome de nuvem, mãe?
Se o tempo feio assustava, eu deixava o ar entrar pelo na-
riz devagar e profundo. A transpiração excessiva, o barulho
de motores, as pessoas-máquina. Necessário seria respirar e
inspirar em intervalos longos e pausados, mas a tempestade

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Carolina Panta

de dentro do peito já avançava por cima de mim. E era água


grande.
O ônibus no engarrafamento e da janela apenas carros carros
carros e a formação feia da tormenta que não demoraria a
tombar. Uma avenida de muitas pistas entrecortada pelo ar-
roio chamado Dilúvio. E com a tempestade quase caída logo
ali, a perspectiva de um derramamento bíblico a castigar a
humanidade de Porto Alegre era já fato consumado. Se seria
punição ou alívio ao calor de final de janeiro, só quando o
vento iniciasse seu gemido se poderia dizer.
Enquanto o rebuliço de raios ao longe tomava o céu e causa-
va agitação no coletivo lotado, um homem espalhava-se com
pernas e ombros e me obrigava a escapar de sua presença.
Na fuga, o lado direito do meu corpo de quase noventa quilos
fundiu-se à lateral metálica do ônibus. Diminuída das minhas
proporções, reduzi-me a pouco mais de dois palmos feito
molusco quando tocado contraindo-se em busca do interior
da concha. Olhos fechados, inspirar e expirar em ritmo lento
como o psiquiatra ensinou.

Com licença, senhor, eu educada poderia ter dito. Ou, quem


sabe, utilizado até uma abordagem mais direta impostando
a voz até que soasse como gostaria. Mas fingir-se de morta é
instinto animal daqueles herdado pelo processo de evolução
quando a presa precisa fugir do predador. Chama-se tanatose
segundo os livros de biologia. E, pela sobrevivência, a orien-
tação do corpo é apenas retomar as funções vitais quando se
percebe que não há mais perigo.
Há anos não dirijo. Em tempos de carro próprio, era im-
pensável estar metida no meio de tanta gente a balançar de

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maneira sincronizada aos buracos no asfalto. Do ar-condicio-


nado, mãos ao volante, observava homens e mulheres no es-
forço diário e comovia-me. Consciência social essa esquecida
num refrão da rádio fm. Mas a vida mudou, era eu, agora, a
criatura de aquário superlotado observada pelos motoristas
com caras de banho recém tomado.

Quando terminada a entrevista de emprego, eu sabia já ter


perdido a vaga. Talvez por não ser tão bonita como a foto do
currículo apresentava ou quem sabe avaliaram minhas rou-
pas sociais desnecessárias à pouca formalidade da startup
inovadora e um quanto mais justas do que deveriam no qua-
dril e nos peitos. Podem ter reparado na sudorese exagerada
e alguns tremores no canto da boca disfarçados pelas mãos.
Logo de início, bom dia, como vai, a recrutadora focou algum
ponto sobre a minha testa e ali ficou. Não me olhava, e, du-
rante os vinte e poucos minutos passados, me fez procurar
vestígio do ponto invisível como se eu tivesse sujeira presa
entre as sobrancelhas e a linha que marca o início dos cabe-
los. Algum pedaço de comida do café da manhã engolido com
pressa ou farelo da minha dignidade profissional deixada de
lado nos muitos anos de desemprego como Assistente Social.
Poderia até ser cacoete da mulher ou uma daquelas estra-
tégias de recrutamento, armadilhas psicológicas facilmen-
te aplicadas em uma profissional sem o perfil desbravador,
curioso, pró-ativo necessário à instituição.
Talvez tenham me dispensado de vez quando viram meu ce-
lular com mais de cinco anos de uso e tela rachada. Foi meu
filho, sorri em busca de uma leveza simpática ou da cumpli-
cidade que só as mães são capazes de ter entre si. Reparei na

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anotação muito ligeira feita no computador pela mulher que


de início pensei ser recém-saída da adolescência, mas que
logo percebi apenas ser frequentadora assídua de academia
e usuária de botox.

Da janela do coletivo, Cumulonimbus seguia sua marcha de


encontro a Porto Alegre. Já era possível ver sua elevação ver-
ticalizada em relação ao céu. Uma torre gigantesca de algo-
dão empilhado que, para as senhoras em discussão no banco
da frente, mais parecia um cogumelo. Para mim, era como
uma bigorna prestes a desabar da troposfera sobre a cidade,
ainda que não soubesse da atividade intensa em seu centro,
de suas correntes de vento ascendentes poderosas. Mas, para
além dos formatos infantis que aprendemos a dar às nuvens
quando somos crianças, a olhávamos com respeito e cautela
que só a chegada de uma tempestade pode oferecer.
Se não escapasse do toró na descida da parada, pelo menos a
chuva lavaria toda a sujeira misteriosa da minha cabeça e a
presença exigente do homem e suas pernas, pelos e cotove-
los no banco compartilhado.

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2.

Ensaiei uma corrida pesada e lenta de paquiderme da parada


de ônibus até o portão do prédio sem ainda me molhar. O céu
mantinha-se firme em sua assustadora massa preta com au-
sência de ventania como em um filme desses sobre o fim do
mundo que meu pai adora ver de madrugada na TV. Sem se
mover o ar, o calor do asfalto seria capaz de matar um animal
pequeno.
Procurando as chaves de casa na bolsa, uma voz de mulher
me pediu um troco. Era Cláudia e a cadela grande e gorda,
ladeando suas pernas em proteção. Era pra comprar pinga mes-
mo, senhora, não precisava mentir, em nome do Senhor Jesus.
Se fossem menos sujas, as roupas dela fariam um sentido à
moda do ano. Usava uma saia de flores um dia já muito boni-
ta e um par de sandálias vermelhas maltratadas, mas ainda
novas. Os cabelos estavam crescidos em raiz preta deixan-
do mechas louras nascerem a partir dos ombros. Cláudia era
uma das tantas a marchar madrugadas nas ruas do centro
de Porto Alegre e em centros e periferias de tantas outras
cidades do Brasil. Desconfigurada, parecia criança pedindo
sobremesa depois do almoço enquanto acariciava com a pon-
ta dos dedos dos pés a barriga da cadela imensa agora deitada
com as patas para o ar.
– Só uma moedinha, tia. Não é pra droga, é pra cachaça, por
Aquele que nos amou.
A garrafa plástica vazia bailava entre as mãos. Mas o bura-
co deixado pelos dentes ausentes e a magreza de quem não
come e muito menos dorme desmentiram na hora o tom

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infantil e a boca de choro. Soldada da pedra de crack, conti-


nuou a sua luta pelo trocado.
No grupo de mensagens dos vizinhos da rua, já se falava sobre
Cláudia há algum tempo. Uns tinham pena, já haviam tenta-
do dar um colchonete que ela jogou no contêiner de lixo, um
desaforo, outros achavam ser castigo de Deus. Melhor não
era dar comida e roupa que logo ia embora. Os mais huma-
nizados ainda questionavam o que fazer com a cadela, sem-
pre muito dócil com crianças e que havia parido filhotes no
último mês. Uma única unanimidade: todos só queriam le-
var seus cachorrinhos para cagar sem precisar cruzar com
Cláudia pedindo esmola por todas as esquinas.
Eu até procurei com um movimento rápido na bolsa algum
troco do ônibus, mas a passagem andava tão cara que pouco
sobrava de nota de dez. E aquela presença malhada como um
enorme bezerro me fazia mais e mais ansiosa por subir os
dois lances de escada, tirar a roupa desconfortável das viri-
lhas e tomar um ansiolítico. E, quanto mais me demorava do
lado de fora do portão, mais me encarava o bicho com o olho
sem branco.
– Só uma moedinha, tia! A ele, glória e poder para todo o
sempre! Amém!

E na forma como ela gemeu o amém, a memória voltou a


buscar Cláudia muitos anos antes em uma ficha de registro
da instituição de atendimento a menores. Àquela época, ela
tinha dezesseis anos e não juntava as pupilas à frente, orbi-
tavam cada qual em busca de uma orelha diferente. Mesmo
na três por quatro grampeada no papel timbrado, dançava
o olhar meio envesgalhado para fora do foco. Não fossem as

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vistas nervosas de Cláudia, eu não conseguiria encontrar al-


guma lembrança nas suas feições totalmente diferentes da
época de adolescente.
No período em que eu trabalhava como estagiária do lugar,
Cláudia foi recolhida pela Brigada Militar por atear fogo em
uma pilha de colchões na casa dos tios com quem morava. A
labareda acabou por se alastrar a alguns barracos vizinhos lá
na Vila Nazaré, perto do aeroporto. Me lembro bem do dia
de sua chegada, da situação da sua voz quase rouca pela in-
toxicação de fumaça. Falava tão baixo, tive que praticamente
a abraçar para ouvir a sua história. Se desse jeito nos col-
chões, tudo ia acabar, o fogo consome o enxofre dos pecadores.
Não teria que se deitar à força ao lado do tio quando a tia saía
para o trabalho ou para o culto. Então tacou fogo. Em tudo.
Agachada junto à cerca rezava alto o Pai-Nosso com uma bí-
blia embaixo do braço e a outra apontada aos céus. Os vizi-
nhos até disseram que a menina era especial, mas a Brigada
Militar a levou por incêndio criminoso. Ficou uns dias na ins-
tituição, mas saiu quando localizamos uma avó no interior
que ela abraçou forte e pediu canjica para jantar.

Achei uma nota de dois reais que Cláudia resgatou de meus


dedos sem olhar para cima. Nem obrigada nem de nada,
arrastou a cadela pela coleira improvisada com um lençol,
saltitando as duas no asfalto quente assim como fazem as
crianças.

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