À minha madrinha, Elaine, ofereço estas palavras. Que este livro possa ser um tributo simbólico à sua incrível jornada como mulher e à sua dedicação inabalável ao outro como assistente social. Saudades, dinda.
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Nem todo viandante anda estradas, há mundos submersos, que só o silêncio da poesia penetra.
Conceição Evaristo
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1.
Quando o que é de dentro transborda, leva mato, galho, lama.
Escorre abrindo sulco em terra dura, arrasta rocha de tone- lada morro abaixo. A enxurrada interna derruba com força, dá caldo daqueles de sensação ruim no nariz. E a gente tenta ajeitar as roupas desarrumadas pelo corpo que já não cobrem mais nada. Uma cena tão ridícula quanto se afogar no raso do mar. Na água em que os velhos mijam, lugar em que as crianças pequenas ainda dão pé. A chuva de dentro quando vem bate na cara e leva o corpo ao chão. A gente deságua, desalma, desaba. Arrastados, mas sobreviventes ao alagamento, talvez possamos conhecer o significado daquilo que alguns chamam por força, outros por fé. E se os olhos transbordarem frente ao espelho, então nos sentiremos vivos. E raros.
Modorra e suor escorrido entre as tetas, chuva pingo grosso
vinda no horizonte e calor de trinta e nove. Protegida pela janela do ônibus, temi o céu chumbado que chegava à cida- de. Uma massa colossal iniciou-se no alto dos prédios mais distantes e cresceu sem fim na vista. Nuvem. Cumulonimbus. Me lembro de revisar esse conteúdo para alguma prova de Geografia do guri. E quem se importa com nome de nuvem, mãe? Se o tempo feio assustava, eu deixava o ar entrar pelo na- riz devagar e profundo. A transpiração excessiva, o barulho de motores, as pessoas-máquina. Necessário seria respirar e inspirar em intervalos longos e pausados, mas a tempestade
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de dentro do peito já avançava por cima de mim. E era água
grande. O ônibus no engarrafamento e da janela apenas carros carros carros e a formação feia da tormenta que não demoraria a tombar. Uma avenida de muitas pistas entrecortada pelo ar- roio chamado Dilúvio. E com a tempestade quase caída logo ali, a perspectiva de um derramamento bíblico a castigar a humanidade de Porto Alegre era já fato consumado. Se seria punição ou alívio ao calor de final de janeiro, só quando o vento iniciasse seu gemido se poderia dizer. Enquanto o rebuliço de raios ao longe tomava o céu e causa- va agitação no coletivo lotado, um homem espalhava-se com pernas e ombros e me obrigava a escapar de sua presença. Na fuga, o lado direito do meu corpo de quase noventa quilos fundiu-se à lateral metálica do ônibus. Diminuída das minhas proporções, reduzi-me a pouco mais de dois palmos feito molusco quando tocado contraindo-se em busca do interior da concha. Olhos fechados, inspirar e expirar em ritmo lento como o psiquiatra ensinou.
Com licença, senhor, eu educada poderia ter dito. Ou, quem
sabe, utilizado até uma abordagem mais direta impostando a voz até que soasse como gostaria. Mas fingir-se de morta é instinto animal daqueles herdado pelo processo de evolução quando a presa precisa fugir do predador. Chama-se tanatose segundo os livros de biologia. E, pela sobrevivência, a orien- tação do corpo é apenas retomar as funções vitais quando se percebe que não há mais perigo. Há anos não dirijo. Em tempos de carro próprio, era im- pensável estar metida no meio de tanta gente a balançar de
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maneira sincronizada aos buracos no asfalto. Do ar-condicio-
nado, mãos ao volante, observava homens e mulheres no es- forço diário e comovia-me. Consciência social essa esquecida num refrão da rádio fm. Mas a vida mudou, era eu, agora, a criatura de aquário superlotado observada pelos motoristas com caras de banho recém tomado.
Quando terminada a entrevista de emprego, eu sabia já ter
perdido a vaga. Talvez por não ser tão bonita como a foto do currículo apresentava ou quem sabe avaliaram minhas rou- pas sociais desnecessárias à pouca formalidade da startup inovadora e um quanto mais justas do que deveriam no qua- dril e nos peitos. Podem ter reparado na sudorese exagerada e alguns tremores no canto da boca disfarçados pelas mãos. Logo de início, bom dia, como vai, a recrutadora focou algum ponto sobre a minha testa e ali ficou. Não me olhava, e, du- rante os vinte e poucos minutos passados, me fez procurar vestígio do ponto invisível como se eu tivesse sujeira presa entre as sobrancelhas e a linha que marca o início dos cabe- los. Algum pedaço de comida do café da manhã engolido com pressa ou farelo da minha dignidade profissional deixada de lado nos muitos anos de desemprego como Assistente Social. Poderia até ser cacoete da mulher ou uma daquelas estra- tégias de recrutamento, armadilhas psicológicas facilmen- te aplicadas em uma profissional sem o perfil desbravador, curioso, pró-ativo necessário à instituição. Talvez tenham me dispensado de vez quando viram meu ce- lular com mais de cinco anos de uso e tela rachada. Foi meu filho, sorri em busca de uma leveza simpática ou da cumpli- cidade que só as mães são capazes de ter entre si. Reparei na
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anotação muito ligeira feita no computador pela mulher que
de início pensei ser recém-saída da adolescência, mas que logo percebi apenas ser frequentadora assídua de academia e usuária de botox.
Da janela do coletivo, Cumulonimbus seguia sua marcha de
encontro a Porto Alegre. Já era possível ver sua elevação ver- ticalizada em relação ao céu. Uma torre gigantesca de algo- dão empilhado que, para as senhoras em discussão no banco da frente, mais parecia um cogumelo. Para mim, era como uma bigorna prestes a desabar da troposfera sobre a cidade, ainda que não soubesse da atividade intensa em seu centro, de suas correntes de vento ascendentes poderosas. Mas, para além dos formatos infantis que aprendemos a dar às nuvens quando somos crianças, a olhávamos com respeito e cautela que só a chegada de uma tempestade pode oferecer. Se não escapasse do toró na descida da parada, pelo menos a chuva lavaria toda a sujeira misteriosa da minha cabeça e a presença exigente do homem e suas pernas, pelos e cotove- los no banco compartilhado.
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2.
Ensaiei uma corrida pesada e lenta de paquiderme da parada
de ônibus até o portão do prédio sem ainda me molhar. O céu mantinha-se firme em sua assustadora massa preta com au- sência de ventania como em um filme desses sobre o fim do mundo que meu pai adora ver de madrugada na TV. Sem se mover o ar, o calor do asfalto seria capaz de matar um animal pequeno. Procurando as chaves de casa na bolsa, uma voz de mulher me pediu um troco. Era Cláudia e a cadela grande e gorda, ladeando suas pernas em proteção. Era pra comprar pinga mes- mo, senhora, não precisava mentir, em nome do Senhor Jesus. Se fossem menos sujas, as roupas dela fariam um sentido à moda do ano. Usava uma saia de flores um dia já muito boni- ta e um par de sandálias vermelhas maltratadas, mas ainda novas. Os cabelos estavam crescidos em raiz preta deixan- do mechas louras nascerem a partir dos ombros. Cláudia era uma das tantas a marchar madrugadas nas ruas do centro de Porto Alegre e em centros e periferias de tantas outras cidades do Brasil. Desconfigurada, parecia criança pedindo sobremesa depois do almoço enquanto acariciava com a pon- ta dos dedos dos pés a barriga da cadela imensa agora deitada com as patas para o ar. – Só uma moedinha, tia. Não é pra droga, é pra cachaça, por Aquele que nos amou. A garrafa plástica vazia bailava entre as mãos. Mas o bura- co deixado pelos dentes ausentes e a magreza de quem não come e muito menos dorme desmentiram na hora o tom
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infantil e a boca de choro. Soldada da pedra de crack, conti-
nuou a sua luta pelo trocado. No grupo de mensagens dos vizinhos da rua, já se falava sobre Cláudia há algum tempo. Uns tinham pena, já haviam tenta- do dar um colchonete que ela jogou no contêiner de lixo, um desaforo, outros achavam ser castigo de Deus. Melhor não era dar comida e roupa que logo ia embora. Os mais huma- nizados ainda questionavam o que fazer com a cadela, sem- pre muito dócil com crianças e que havia parido filhotes no último mês. Uma única unanimidade: todos só queriam le- var seus cachorrinhos para cagar sem precisar cruzar com Cláudia pedindo esmola por todas as esquinas. Eu até procurei com um movimento rápido na bolsa algum troco do ônibus, mas a passagem andava tão cara que pouco sobrava de nota de dez. E aquela presença malhada como um enorme bezerro me fazia mais e mais ansiosa por subir os dois lances de escada, tirar a roupa desconfortável das viri- lhas e tomar um ansiolítico. E, quanto mais me demorava do lado de fora do portão, mais me encarava o bicho com o olho sem branco. – Só uma moedinha, tia! A ele, glória e poder para todo o sempre! Amém!
E na forma como ela gemeu o amém, a memória voltou a
buscar Cláudia muitos anos antes em uma ficha de registro da instituição de atendimento a menores. Àquela época, ela tinha dezesseis anos e não juntava as pupilas à frente, orbi- tavam cada qual em busca de uma orelha diferente. Mesmo na três por quatro grampeada no papel timbrado, dançava o olhar meio envesgalhado para fora do foco. Não fossem as
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vistas nervosas de Cláudia, eu não conseguiria encontrar al-
guma lembrança nas suas feições totalmente diferentes da época de adolescente. No período em que eu trabalhava como estagiária do lugar, Cláudia foi recolhida pela Brigada Militar por atear fogo em uma pilha de colchões na casa dos tios com quem morava. A labareda acabou por se alastrar a alguns barracos vizinhos lá na Vila Nazaré, perto do aeroporto. Me lembro bem do dia de sua chegada, da situação da sua voz quase rouca pela in- toxicação de fumaça. Falava tão baixo, tive que praticamente a abraçar para ouvir a sua história. Se desse jeito nos col- chões, tudo ia acabar, o fogo consome o enxofre dos pecadores. Não teria que se deitar à força ao lado do tio quando a tia saía para o trabalho ou para o culto. Então tacou fogo. Em tudo. Agachada junto à cerca rezava alto o Pai-Nosso com uma bí- blia embaixo do braço e a outra apontada aos céus. Os vizi- nhos até disseram que a menina era especial, mas a Brigada Militar a levou por incêndio criminoso. Ficou uns dias na ins- tituição, mas saiu quando localizamos uma avó no interior que ela abraçou forte e pediu canjica para jantar.
Achei uma nota de dois reais que Cláudia resgatou de meus
dedos sem olhar para cima. Nem obrigada nem de nada, arrastou a cadela pela coleira improvisada com um lençol, saltitando as duas no asfalto quente assim como fazem as crianças.