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MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia

ISSN 2318-0811
Volume IV, Número 1 (Edição 7) Janeiro-Junho 2016: 5-16

Editorial

Menos Marx, Mais Mises: Um Novo Paradigma de


Conhecimento e de Ação para o Brasil

Alex Catharino*

A
criação do periódico acadêmico aulas, abrangendo as áreas de Filosofia, Direi-
MISES: Revista Interdisciplinar de to, Ciência Política e Economia, implementado
Filosofia, Direito e Economia pelo em 2016 no Centro Universitário Ítalo Brasilei-
Instituto Ludwig von Mises Brasil (IMB) foi ro (UniÍtalo) –, a MISES: Revista Interdisciplinar
um fator importante para ampliar o trabalho de Filosofia, Direito e Economia é um dos princi-
desta instituição junto aos professores e pais projetos acadêmicos do IMB.
estudantes universitários em nosso país. O presente editorial é o último que assi-
O pensamento da Escola Austríaca ainda é narei como gerente editorial da MISES: Revista
pouco conhecido na maioria das instituições Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia.
de ensino superior brasileiras. No entanto, a Por conta deste fato, adotarei uma narrativa
cada dia, mais pessoas buscam contato com as mais retrospectiva, distinta do estilo dos edito-
ideias dos chamados autores austríacos. riais das seis edições anteriores, que possuem
Juntamente com a Conferência de Esco- um caráter mais programático, com o objetivo
la Austríaca – realizada a cada dois anos, reu- de esclarecer algumas questões medulares do
nindo especialistas de todo o mundo e com a pensamento da Escola Austríaca e de apre-
quinta edição prevista para maio de 2017 – e sentar diretrizes teóricas que devem nortear
com a Pós-Graduação em Escola Austríaca – a linha editorial da publicação. No entanto, a
um curso lato sensu, com carga de 400 horas de nossa anamnese não se omitirá em veicular

*
Alex Catharino nasceu em 4 de julho de 1974 na cidade do Rio de Janeiro. É editor responsável da LVM Editora,
vice-presidente executivo do Centro Interdisciplinar de Ética e Economia Personalista (CIEEP), gerente editorial
do periódico COMMUNIO: Revista Internacional de Teologia e Cultura e pesquisador do Russell Kirk Center for
Cultural Renewal, em Mecosta, Michigan, EUA. Cursou a graduação em História na Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ) e fez estudos em diferentes áreas de conhecimento em instituições no Brasil e no exterior.
Foi pesquisador do Laboratório de História Antiga (LHIA) da UFRJ, coordenador de programas acadêmicos e
culturais do Instituto Liberal do Rio de Janeiro (IL-RJ), visiting fellow da Atlas Economic Research Foundation, em
Washington, D.C., pesquisador afiliado do Acton Institute for the Study of Religion and Liberty, em Grand Rapids,
Michigan. Foi gerente editorial, entre janeiro de 2013 e maio de 2016, do periódico MISES: Revista Interdisciplinar
de Filosofia, Direito e Economia. É autor do livro Russell Kirk: O Peregrino na Terra Desolada (É Realizações, 2015), de
inúmeros artigos em periódicos acadêmicos e de capítulos, prefácios e o posfácios em obras de outros autores.
Atualmente, está organizando a edição crítica das obras completas de Ludwig von Mises em português.
E-mail: alex@mises.org.br
EDITORIAL
6 Menos Marx, Mais Mises: Um Novo Paradigma de Conhecimento e de Ação para o Brasil

reflexões sobre a recente popularização das fisiocrata Anne Robert Jacques Turgot (1727-
ideias da Escola Austríaca, bem como algumas 1781), bem como análises de especialistas na-
propostas para o futuro do periódico. cionais sobre os pensadores brasileiros José da
Lançada no ano de 2013, a MISES: Re- Silva Lisboa (1756-1835) – o Visconde de Cairu
vista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Econo- –, Joaquim Nabuco (1849-1910), Francisco José
mia manteve, desde o início, a periodicidade de Oliveira Viana (1883-1951), Mario Vieira de
semestral. Ao longo de sete edições, tivemos Mello (1912-2006) e José Guilherme Merquior
a grande honra de publicar alguns ensaios, (1941-1991).
nunca antes lançados em língua portuguesa, Por um lado, a ideia de criar um perió-
de Carl Menger (1840-1921), de Eugen von dico científico dedicado ao pensamento da
Böhm-Bawerk (1851-1914), de Ludwig von Escola Austríaca foi sonho há muito tempo
Mises (1881-1973), de Friedrich August von almejado pelo professor Ubiratan Jorge Iorio,
Hayek (1899-1992) e de Murray N. Rothbard que durante anos foi o único acadêmico bra-
(1926-1995), os mais proeminentes autores sileiro a abordar a temática de modo sistemá-
clássicos dessa escola de pensamento econô- tico, lecionando disciplinas no Departamento
mico. O periódico veiculou trabalhos de re- de Economia da Universidade do Estado do
nomados autores contemporâneos nacionais Rio de Janeiro (UERJ), além de ter publicado o
e estrangeiros associados à tradição austríaca, trabalho pioneiro Economia e Liberdade: A Esco-
com destaque para os nomes de Israel M. Kir- la Austríaca e a Economia Brasileira1, a primeira
zner, Hans-Hermann Hoppe, Peter J. Boettke, análise ampla em língua portuguesa sobre o
Joseph T. Salerno, Richard M. Ebeling, Ma- assunto, bem como outros livros dedicados
rio J. Rizzo, Walter E. Block, Jesús Huerta De ao pensamento desta corrente econômica2.
Soto, Gabriel J. Zanotti, Ubiratan Jorge Iorio, Por outro lado, a proposta vinha de encontro
José Manuel Moreira, Antony Muller, Fabio ao projeto de Helio Beltrão3 de ampliar o tra-
Barbieri e Adriano Gianturco, dentre outros. balho do IMB junto ao público acadêmico. A
Publicamos também artigos e resenhas de li- nossa missão, como gerente editorial, foi tor-
vros de jovens pesquisadores do Brasil e do nar possível esses dois anseios.
exterior.
O compromisso com a transdisciplinari- 1
A obra foi lançada originalmente em 1994 pelo
dade, defendida pelos autores da Escola Aus-
Instituto Liberal de São Paulo (IL-SP) e posteriormente
tríaca, permitiu que o periódico abarcasse te- reeditada como: IORIO, Ubiratan Jorge. Economia
mas variados nas áreas de Filosofia, de Direito, e Liberdade: A Escola Austríaca e a Realidade
de Relações Internacionais, de Ciência Política, Brasileira. Pref. Roberto Campos. Rio de Janeiro:
de Sociologia, de Economia e de Literatura. A Forense Universitária, 2ª ed., 1997.
publicação não se limitou à veiculação de tra- 2
Os outros livros do autor sobre a temática são os
balhos da lavra apenas de autores relacionados seguintes: IORIO, Ubiratan Jorge. Ação, Tempo e
à tradição austríaca, visto que foram incluídas, Conhecimento: A Escola Austríaca de Economia.
em todas as edições da revista, traduções de Pref. Helio Beltrão. São Paulo: Instituto Ludwig von
Mises Brasil, 2011; Idem. Dez Lições Fundamentais
material nunca lançado antes em português, de Economia Austríaca. São Paulo: Instituto Ludwig
escrito tanto por acadêmicos contemporâneos, von Mises Brasil, 2013; Idem. Dos ProtoAustríacos a
como os prêmios Nobel de Economia norte-a- Menger: Uma breve história das origens da Escola
mericanos James M. Buchanan (1919-2013) e Austríaca de Economia. Pref. Fabio Barbieri; posf.
Vernon L. Smith ou os economistas brasileiros José Manuel Moreira. São Paulo: Instituto Ludwig von
Mises Brasil, 2015.
Adolfo Sachsida e Gustavo Franco, quanto pe-
los medievais Rufino de Bolonha (Século XII) e 3
Lembramos que o fundador e presidente do IMB
Johannes Duns Scotus (1266-1308), pelos esco- é co-autor do seguinte trabalho: BELTRÃO, Helio;
CONSTANTINO, Rodrigo & LENHART, Wagner.
lásticos tardios ibéricos Juan de Mariana (1536- O Poder das Ideias: A Vida, a Obra e as Lições de
1627) e Francisco Suárez (1548-1617), e pelo Ludwig von Mises. Porto Alegre: IEE.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Alex Catharino 7

Ao refletir sobre tudo o que foi feito nos cada vez mais adeptos4. Nosso editorial na
últimos anos, temos uma grande sensação de segunda edição tratou do modo como a ideo-
gratidão, principalmente devido ao trabalho logia do cientificismo faz que seja exacerbado,
com uma excelente equipe. Além do gerente por pesquisadores das áreas de Economia e
editorial, o projeto contava, em um primeiro das demais ciências sociais, um tipo de meto-
momento, apenas com Ubiratan Jorge Iorio dologia científica positivista, completamente
na função de editor responsável e Helio Bel- oposta ao realismo adotado pela Escola Aus-
trão como presidente do Conselho Editorial, tríaca, além de termos abordado a maneira
que reunia os nomes de alguns professores como os autores austríacos conseguem, a par-
veiculados a instituições de ensino ou de tir de uma análise fundada na lógica, conciliar
pesquisa nacionais e estrangeiras. Gradativa- a tradição com a inovação5.
mente, não apenas o Conselho Editorial agre- Dando continuidade aos dois editoriais
gou mais pessoas, mas, também, a própria anteriores, o professor Fabio Barbieri ressal-
equipe editorial cresceu. No segundo ano, os tou, no editorial da terceira edição, a necessi-
professores Fabio Barbieri e José Manuel Mo- dade dos autores filiados à tradição austríaca
reira assumiram a função de Editor Adjunto de adotarem diante do mercado de ideias uma
e, no terceiro ano, Claudio A. Téllez-Zepeda atitude científica pluralista e falibilista, crian-
se tornou nosso assistente editorial e agora do pontes para o diálogo com outras corren-
nos sucederá em nosso cargo. Os três profes- tes6. Na quarta edição, na qual foi incluída uma
sores, desde o começo, foram membros ativos seção especial em homenagem aos quarenta
do Conselho Acadêmico do periódico. anos do Prêmio Nobel de F. A. Hayek, conce-
Graças aos esforços de todos os envol- dido em 1974, o professor José Manuel Morei-
vidos no projeto, conseguimos produzir um ra utilizou as diferenças entre as perspectivas
periódico com elevada qualidade acadêmica, do economista austríaco homenageado e a de
com boa apresentação gráfica e com impres- John Maynard Keynes (1883-1946), não se li-
sionante sucesso comercial, tendo cada uma mitando apenas aos contrastes de visões eco-
das seis edições anteriores vendido uma mé- nômicas, para enfatizar as relações entre Eco-
dia de 1.000 (mil) exemplares. No entanto, re- nomia e Civilização, a partir de uma reflexão
conhecemos algumas falhas em nossa gestão, econômica e filosófica sobre meios e fins, que
que poderão ser corrigidas pelo novo gerente ressalta o papel ético da defesa da liberdade in-
editorial. Em grande parte, o caminho para dividual e do livre-mercado que caracteriza o
a correção dos erros não deve ser um desvio pensamento da Escola Austríaca7.
da rota traçada até o momento, mas uma pro-
funda retomada das reflexões propositivas
apresentadas nos editoriais das seis edições 4
IORIO, Ubiratan Jorge. A Escola Austríaca na
anteriores. Cabe, aqui, rememorar parte das Vanguarda. MISES: Revista Interdisciplinar de
Filosofia, Direito e Economia, Vol. I, No. 1 (jan.-jun.
análises elaboradas nestes profundos ensaios.
2013): 5-18.
O editorial do professor Ubiratan Jorge
Iorio, além de apresentar a missão do perió-
5
CATHARINO, Alex. A Escola Austríaca entre a
Tradição e a Inovação. MISES: Revista Interdisciplinar
dico e ressaltar o modo como este se integra
de Filosofia, Direito e Economia, Vol. I, No. 2 (jul.-dez.
nos objetivos do IMB, ressaltou as linhas ge- 2013): 305-23.
rais do pensamento da Escola Austríaca e en-
fatizou o modo como esta responde de modo
6
BARBIERI, Fabio. A Escola Austríaca e o Mercado das
Ideias. MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia,
mais apropriado que as demais correntes de Direito e Economia, Vol. II, No. 1 (jan.-jun. 2014): 5-17.
pensamento econômico a alguns problemas
atuais, justificando o motivo pelo qual o pen-
7
MOREIRA, José Manuel. Pelos 40 anos do Nobel
de Hayek – Economia e Civilização. Meios e Fins.
samento dos economistas austríacos ganha MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito
e Economia, Vol. II, No. 2 (jul.-dez. 2014): 319-37.
EDITORIAL
8 Menos Marx, Mais Mises: Um Novo Paradigma de Conhecimento e de Ação para o Brasil

Escrito pelo professor Claudio A. Tél- melhor sempre é assombrada pelos espectros
lez-Zepeda, o editorial da quinta edição dis- da ideologia. No entanto, o sonho de uma
cutiu a relevância da Escola Austríaca como “ciência neutra” é tão perigoso quanto os ex-
empreendimento cientifico, apontando ques- cessos ideológicos de uma “ciência engajada”.
tões fundamentais que necessitam ser desbra- É necessário um justo meio entre as posturas
vadas pelas novas gerações de pesquisadores, de isenção e de militância. Um dos remédios
além de lançar o desafio da necessidade de para essas posições extremadas é o confronto
um maior diálogo acadêmico com outras es- de ideias.
colas de pensamento econômico, bem como Uma das grandes lições do economis-
a importância de apresentar, na forma de in- ta austríaco Ludwig von Mises (1881-1973)
vestigações empíricas, alguns dos postulados que merece atenção especial é a noção de que
teóricos defendidos pelos economistas aus- “ideias, somente ideias, podem iluminar a escuri-
tríacos8. Por fim, no editorial da sexta edição, dão”10. As nossas mazelas culturais, políticas e
o professor Ubiratan Jorge Iorio retoma os as- econômicas são caudatárias, em grande parte,
pectos medulares da Escola Austríaca, apre- de ideias nefastas produzidas por intelectuais
sentando-os de forma mais detida que em seu falecidos há décadas, cujas teorias são o sex-
primeiro editorial, ao enfatizar a “tríade bási- tante dos tecnocratas que buscam modificar
ca” ou “núcleo fundamental” desta corrente, artificialmente a realidade. Todavia, a supe-
formado pelos conceitos de “ação”, “tempo ração dos erros disseminados por concepções
dinâmico” e “conhecimento limitado”, para distorcidas acerca da natureza humana e da
em seguida discutir as noções de “utilidade sociedade demanda que as boas ideias sejam
marginal”, “subjetivismo” e “ordens espontâ- propaladas. Lembramos aqui a sentença, er-
neas”, que constituem os elementos de pro- roneamente atribuída a Karl Marx (1818-1883)
pagação dessa tradição de pensamento eco- e proferida por Auguste Comte (1798-1857),
nômico, permitindo discorrer sobre as impli- segundo a qual “os vivos são sempre, e cada vez
cações destes nos campos da Epistemologia e mais, governados necessariamente pelos mortos”11.
da Filosofia Política, para expor as principais Um crescente número de brasileiros
contribuições teóricas dos austríacos e, por começou a despertar para a importância das
fim, concluir ressaltando a relação entre os as- ideias de determinados autores falecidos, mas
pectos tanto científicos quanto humanísticos que ainda governam os rumos de nossa vida.
que envolvem a temática9. Esta impressionante tomada de consciência
Sabemos que nenhum cientista desen- pode ser exemplificada, dentre outros fatores,
volve suas investigações apenas por dile- por intermédio da popularização do bordão
tantismo. O fundamento na chamada razão “Menos Marx, Mais Mises”, estampado em
instrumental acarretou no fato de uma das adesivos, camisetas, balões e cartazes que se
principais características da ciência moderna tornaram populares nas diversas manifesta-
ser a busca por resultados práticos, que pos- ções contra a desastrosa administração do go-
sibilitem ao conhecimento teórico modificar verno federal exercida pelo Partido dos Tra-
a realidade concreta. A busca por um mundo balhadores (PT). Mesmo que não exista uma
consciência plena dos significados mais pro-
fundos das ideias por detrás do jargão “Me-
8
TÉLLEZ-ZEPEDA, Claudio A. A Escola Austríaca
como Empreendimento Científico. MISES: Revista
Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia, Vol. 10
MISES, Ludwig von. As Seis Lições. Pref. Margit von
III, No. 1 (jan.-jun. 2015): 5-12. Mises; trad. Maria Luiza X. De A. Borges. São Paulo:
Instituto Ludwig von Mises, 7ª ed., 2009. p. 101.
9
IORIO, Ubiratan Jorge. Ação, Tempo e Conhecimento:
Escola Austríaca, Ciência e Humanismo. MISES: 11
COMTE, Auguste. Teoria da Humanidade. In:
Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Catecismo Positivista. Trad. Miguel Lemos. São Paulo:
Economia, Vol. III, No. 2 (jul.-dez. 2015): 317-326. Abril Cultural, 1978. p. 152.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Alex Catharino 9

nos Marx, Mais Mises” por parcela daqueles escritas em 1845 e publicadas postumamen-
que o utilizam, este é um contraponto entre te, em 1888, por Friedrich Engels (1820-1895),
duas visões de mundo antagônicas que me- o próprio Karl Marx afirma que “os filósofos
rece ser explorado politicamente de maneira apenas interpretaram o mundo de diferentes ma-
mais efetiva em nosso país. neiras; porém, o que importa é transformá-lo”14. O
Tal antítese entre os dois pensadores é, marxismo é um sistema filosófico que, de fato,
acima de tudo, uma representação do con- transformou o mundo, mas não em um lugar
flito existente entre duas visões de mundo melhor como prometido por seu criador, tal
distintas e incompatíveis. O antagonismo ex- como podemos constatar em inúmeros rela-
presso no lema “Menos Marx, Mais Mises” tos históricos, dentre os quais destacamos o
não é apenas a distinção entre dois modelos volumoso Le Livre noir du communisme15 [O Li-
econômicos, pois manifesta uma luta entre vro Negro do Comunismo]. No livro O Marxismo
as diferentes formas de coletivismo interven- Ocidental, lançado originalmente em inglês
cionista e o individualismo liberal. As conse- no ano de 1986, uma explicação para o inter-
quências práticas da adoção das ideias de um mitente fascínio dos intelectuais pelas ideias
desses autores em detrimento do pensamento marxistas foi apresentada pelo já mencionado
do outro influenciarão diretamente, de modo José Guilherme Merquior, fundamentado nas
negativo ou positivo, as vidas cotidianas de análises de Raymond Aron (1905-1983) e de
milhões de seres humanos principalmente na Ernest Gellner (1925-1995), com as seguintes
economia, mas, também, na política e na cul- palavras:
tura. Em nosso próprio século, a verdade socio-
O objetivo principal do comunismo lógica do marxismo político desmentiu as
marxista é “a derrubada violenta de toda a ordem crenças do marxismo teórico em mais de
social até aqui vigente”12 como meio de alcançar um sentido. [...] O comunismo, longe de ser,
como ele próprio acreditava, uma solução
a promessa utópica de criar para o proletaria-
para os males da industrialização, acabou
do uma sociedade igualitária sem classes so- por ser fornecer um potente veículo à indus-
ciais. Tal como explicitado por Antonio Paim trialização forçada e à acumulação primiti-
no livro Marxismo e Descendência13, o projeto va. [...] O marxismo faz, sob alguns regimes
marxista não é exclusivamente uma teoria nacionalistas ansiosos por construir uma in-
econômica ou uma proposta ideológica, mas dustrialização imitativa, o que, no passado a
um amplo sistema filosófico que, amparado ética protestante e seus equivalentes fizeram
em uma visão economicista da realidade, ofe- por um capitalismo endógeno e espontâneo.
rece doutrinas acerca do Estado, da sociedade Entretanto, hoje em dia, o marxismo não
e do pensamento. É característica intrínseca é apenas um credo reacendido, de tempos
ao marxismo, tanto como teoria quanto na em tempos, em ex-colônias não-industriais,
pelo sentimento de elites não ex-coloniais
prática, a busca pela hegemonia, rechaçando
modernizadoras. É também, no seio do
ou, até mesmo, eliminando por intermédio do mundo industrialmente avançado, o idio-
uso da violência, qualquer divergência teórica
ou política.
Na décima primeira das onze breves 14
MARX, Karl. Marx sobre Feuerbach. In: MARX, Karl
teses sobre Ludwig Feuerbach (1804-1872), & ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: Crítica da
mais recente filosofia alemã em seus representantes
Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão
12
MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto em seus diferentes profetas (1845-1846). Apres. Emir
do Partido Comunista. Org. e intr. Marco Aurélio Sader; trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano
Nogueira; Trad. Marco Aurélio Nogueira e Leandro Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007. p. 539.
Konder. Petrópolis, Vozes, 15ª ed., 2010. p. 99. 15
COURTOIS, Stéphane et al. O Livro Negro do
13
PAIM, Antonio. Marxismo e Descendência. Comunismo: Crimes, Terror e Repressão. Trad. Caio
Campinas: VIDE Editorial, 2009. Meira. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999.
EDITORIAL
10 Menos Marx, Mais Mises: Um Novo Paradigma de Conhecimento e de Ação para o Brasil

ma ideológico favorito de uma intelligentsia Paul Singer, não existe no Brasil uma sólida
em profundo desacordo com a civilização tradição intelectual marxista. Esta questão foi
moderna. E o marxismo ocidental é a forma discutida por um ex-comunista, que nos tem-
principal dessa linguagem ideológica16. pos de militância estudou Filosofia na União
Soviética. Trata-se de um dos pioneiros e o
Insistimos que a defesa da sentença mais respeitado especialista na história do
“Menos Marx, Mais Mises” não deve ser in- pensamento brasileiro, o já citado Antonio
terpretada, de modo algum, como um clamor Paim, em sua clássica obra História das Ideias
por “Nenhum Marx, Apenas Mises”, nem Filosóficas no Brasil, na qual afirmou que:
servir como justificativa para que o pensa- No Brasil, o estudioso do fenômeno depa-
mento marxista não seja estudado ou sofra ra-se com uma situação deveras curiosa: o
algum tipo de censura que o proíba. Uma vi- marxismo jamais despertou qualquer movi-
são hegemônica não deve ser combatida com mento teórico de envergadura, nem antes,
a implementação de outra, mas enfrentada nem depois da formação do partido político
por intermédio do debate livre e pluralista. O que pretendeu encarná-lo. Nunca ouve uma
marxismo não pode ser descartado como um difusão sistemática dessa doutrina, tendo
todo. Adotar uma postura antimarxista radi- sido elaborada uma tradução brasileira de
O Capital somente em fins da década de ses-
cal, negligenciando as importantes contribui-
senta. Observa-se, na verdade, um grande
ções filosóficas, políticas e econômicas de Karl desinteresse pela teoria, entre aqueles que
Marx para o pensamento ocidental, seria um se dizem marxistas, a par de uma defesa in-
erro completamente inapropriado e injustifi- transigente das posições políticas trazidas à
cável. No plano intelectual, o jargão “Menos luz sob esse rótulo. A maioria dos chamados
Marx, Mais Mises” deve servir apenas como engajados não sabe nem mesmo precisar o
um convite para que os dogmas ideológicos conteúdo de certos conceitos que emprega.
marxistas sejam abandonados, permitindo Essa constatação exige, por certo, ser medi-
que novas ideias circulem. tada.
A aparente hegemonia intelectual do Duas evidências simultâneas, à primeira
discurso marxista, tanto nas universidades vista contraditórias, parecem igualmen-
te válidas: nunca houve no Brasil nenhum
quanto nos meios de comunicação, mui-
movimento teórico marxista, digno deste
tas vezes é associada, também, à difusão do nome, ao mesmo tempo que se fala numa
pensamento de determinados autores. Nas grande popularidade das ideias marxistas.
últimas quatro décadas os intelectuais brasi- A popularidade existe e é incontestável. A
leiros foram influenciados, em maior ou me- dificuldade reside em precisar exatamente
nor grau, pelos escritos de Antonio Gramsci em que consistem tais ideias desde que ine-
(1891-1937), de Herbert Marcuse (1898-1979), xiste o movimento teórico. Seria demasiado
de Jean-Paul Sartre (1905-1980), de Louis simplório recorrer à hipótese explicativa de
Althusser (1918-1990), de Michel Foucault que essa influência decorreria do movimen-
(1926-1984) e de Jürgen Habermas, dentre to político que se processa sob essa bandei-
outros. No entanto, excluindo o historiador ra17.
Caio Prado Júnior (1907-1990) e o filósofo José
Arthur Giannotti, bem como, em menor grau, De acordo com esta análise, constata-se
os historiadores Nelson Werneck Sodré (1911- a existência de uma paradoxal bifurcação, por
1999) e Edgard Carone (1923-2003), o filósofo intermédio da qual temos, de um lado, uma
Leandro Konder (1936-2014) e o economista diminuta relevância teórica da filosofia e da
economia marxista, ao passo que, por outro
lado, existe uma forte atuação política e uma
16
MERQUIOR, José Guilherme. O Marxismo
Ocidental. Trad. Raul de Sá Barbosa. Rio de Janeiro: 17
PAIM, Antonio. História das Ideias Filosóficas no
Nova Fronteira, 1987. p. 90. Brasil. Londrina: Editora UEL, 5ª ed., 1997. p. 625-26.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Alex Catharino 11

grande influência cultural de tais ideias. Ao (UB)20, atual Universidade Federal do Rio de
tratar de questões teóricas, a maioria dos pen- Janeiro (UFRJ). O trabalho deste professor foi
sadores nacionais associados ao marxismo, retomado e refinados pelos escritos teóricos
principalmente devido à militância política de João Cruz Costa (1904-1978)21, professor
esquerdista, não deve ser, de fato, considera- catedrático e chefe do Departamento de Fi-
da como legítimos marxistas no sentido mais losofia da Universidade de São Paulo (USP),
estrito do termo, tal como é possível constatar, tendo sido o orientador da tese de livre do-
por exemplo, nos escritos de Sérgio Buarque cência Alienação do Trabalho Objetivo, defendi-
de Holanda (1902-1982), de Alberto Guerreiro da em 1965, pelo já mencionado José Arthur
Ramos (1915-1982), de Florestan Fernandes Giannotti.
(1920-1995), de Celso Furtado (1920-2004), de Qualquer pessoa familiarizada com os
Octavio Ianni (1926-2004), de Antonio Candi- alicerces teóricos do marxismo sabe que exis-
do e de Fernando Henrique Cardoso, cujas in- te nele uma profunda influência da filosofia
fluências dominantes nos trabalhos acadêmi- idealista de Georg Wilhelm Friedrich Hegel
cos são oriundas, dentre outras fontes teóricas (1770-1831) e da economia clássica de Da-
ou metodológicas, de ideias historicistas, we- vid Ricardo (1772-1823). Alguns estudiosos
berianas, funcionalistas, keynesianas, estrutu- mais atentos ressaltaram que, nas concepções
ralistas ou pós-modernas. marxistas, há inúmeros elementos oriundos
Tal como expresso por Antonio Paim, a do romantismo igualitarista de Jean-Jacques
“exagerada expressão cultural” da vulgata mar- Rousseau (1712-1778) e do utilitarismo de Je-
xista no Brasil “decorreria de uma feliz combina- remy Bentham (1748-1832). Diversas outras
ção entre algumas de suas teses e a tradição po- influências, muitas delas conflitantes entre si,
sitivista”18. A partir desta hipótese, segundo a costumam ser, também, apontadas como par-
qual o marxismo brasileiro seria uma verten- te do escopo teórico do pensamento de Karl
te peculiar basicamente positivista, não seria Marx. Ainda assim, não é comum a maioria
mero artifício retórico proclamar que, dentre dos analistas enfatizar o papel essencial dos
os inúmeros mortos que ainda guiam a men- fundamentos positivistas nesta doutrina.
talidade brasileira, o espectro de Auguste Uma percepção aguçada dos funda-
Comte continua a ser uma figura que assom- mentos comtianos na filosofia de Karl Marx
bra nosso país, não apenas no lema “Ordem e pode ser encontrada em trabalhos de dois dos
Progresso” na bandeira nacional. principais autores da Escola Austríaca. Lan-
Existe um fato pouco lembrado em nossa çado pela primeira vez em 1952, o livro The
história intelectual que merece ser acentuado. Counter-Revolution of Science22 [A Contra-Re-
Foi por intermédio do positivismo comtiano volução da Ciência], do economista austríaco
que Leônidas de Rezende (1889-1950) intro- F. A. Hayek (1899-1992), apresenta de modo
duziu o pensamento filosófico e econômico detalhado tal relação em diversas passagens
marxista no Brasil, tanto com a obra A Forma- da obra, explicitando que o marxismo é uma
ção do Capital e seu Desenvolvimento19, de 1932, das muitas variantes da ideologia cientificis-
quanto por intermédio da militância ideoló- ta. Na quarta seção de “Positivism and the
gica e pela atuação, durante quase duas déca- Crisis of Western Civilization” [Positivismo e
das, no magistério como catedrático do curso a Crise da Civilização Ocidental], último ca-
de Economia Política na Faculdade Nacional
de Direito (FND) da Universidade do Brasil 20
PAIM. História das Ideias Filosóficas no Brasil. Op.
cit., p. 627-38.
18
Idem. Ibidem., p. 626. 21
Idem. Ibidem., p. 638-45.
19
REZENDE, Leônidas de. A Formação do Capital e 22
HAYEK, F. A. The Counter-Revolution of Science:
seu Desenvolvimento. Intr. Antonio Paim. Brasília: Studies on the Abuse of Reason. Indianapolis: Liberty
Senado Federal, 2011. Fund, 1979.
EDITORIAL
12 Menos Marx, Mais Mises: Um Novo Paradigma de Conhecimento e de Ação para o Brasil

pítulo de The Ultimate Foundation of Economic base nas quais pretende validar suas afir-
Science23 [Os Fundamentos Últimos da Ciência mações. É um erro considerar a física como
Econômica], publicado originalmente em 1962, um modelo e um padrão para a pesquisa
Ludwig von Mises demonstrou que o cientifi- econômica. Mas as pessoas comprometidas
com esta falácia deviam ter aprendido pelo
cismo marxista é um mero suporte epistemo-
menos uma coisa: nenhum físico jamais
lógico para o totalitarismo.
acreditou que o esclarecimento de algumas
Em nosso editorial para segunda edição condições e suposições de um teorema da
da MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia física esteja fora do campo de interesse da
Direito e Economia, sustentamos que a grande pesquisa da física. A questão central que a
linha divisória entre o pensamento da Escola economia tem obrigação de responder é so-
Austríaca e o de outras correntes econômicas bre a relação entre suas afirmações e a reali-
fica evidente ao analisarmos a questão do mé- dade da ação humana, cuja compreensão é o
todo das ciências sociais24. No campo da Eco- objeto dos estudos da economia26.
nomia, o vício positivista é uma característi-
ca essencial tanto do Materialismo Dialético É neste sentido que o lema “Menos
marxista e das análises da Escola Historicista Marx, Mais Mises” também poderá ser adota-
Alemã, quanto das análises da maioria dos do para descrever de modo sintético a neces-
economistas do chamado mainstream econo- sidade de uma ruptura com a nefasta tradição
mics, incluindo todos os keynesianos e, até intelectual cientificista brasileira27. Associadas
mesmo, autores da Escola de Chicago, como à nossa herança patrimonialista, em última
Milton Friedman (1912-2006), George Stigler instância, os ideais do cientificismo foram o
(1911-1991) e Gary S. Becker (1930-2004). sustentáculo, na esfera política, de diversas
Segundo a percepção de Antonio Paim, práticas intervencionistas desastrosas adota-
em O Liberalismo Contemporâneo, um dos das pelo despotismo esclarecido pombalino,
grandes méritos dos pensadores da Escola pelo castilhismo, pelo tenentismo, pelo cor-
Austríaca “consiste em ter levado para o terreno porativismo e pelo varguismo, que de modos
da investigação econômica a crítica que começa a distintos influenciaram o janguismo, o desen-
ser desenvolvida ao positivismo”25. Desde os pri- volvimentismo do regime militar, o brizolis-
mórdios até os nossos dias, os economistas mo e o lulopetismo. Mais do que na agenda
austríacos rejeitam a transposição do méto- teórica de um suposto marxismo cultural, é
do científico elaborado por Sir Isaac Newton nesses movimentos históricos que devemos
(1642-1727) para a análise de fenômenos na- encontrar as principais causas de nossas ma-
turais como fundamento epistemológico no zelas culturais, políticas e econômicas.
estudo da ação humana. Na obra Human Ac- A divulgação do pensamento misesiano
tion [Ação Humana], de 1949, o próprio Mises para um público mais amplo no Brasil tem
afirmou que: como principal instrumento o trabalho desen-
O primeiro dever de qualquer investigação volvido pelo Instituto Ludwig von Mises Bra-
científica é descrever exaustivamente e de- sil (IMB), instituição sem fins lucrativos cria-
finir todas as condições e suposições, com da por Helio Beltrão no ano de 2007. A missão

23
MISES, Ludwig von. Positivism and the Crisis of
26
MISES, Ludwig von. Ação Humana: Um Tratado
Western Civilization. In: The Ultimate Foundation de Economia. Trad. Donald Stewart Jr. São Paulo:
of Economic Science. Ed. Bettina Bien Greaves. Instituto Ludwig von Mises Brasil, 3ª Ed., 2010. p. 29.
Indianapolis: Liberty Fund, 2ª ed., 2006. p. 113-20. 27
Desde a matriz positivista até as recentes variantes
24
CATHARINO. A Escola Austríaca entre a Tradição e marxistas, o cientificismo em nosso país é analisado
a Inovação. Op. cit., p. 316-22. em: PAIM, Antonio. A Escola Cientificista Brasileira
– Estudos Complementares à História das Ideias
PAIM, Antonio. O Liberalismo Contemporâneo. Rio
25
Filosóficas no Brasil: Volume VI. Londrina: CEFIL,
de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1995. p. 76. 2002.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Alex Catharino 13

de propagar, em nosso país, o pensamento quela ideologia”29, o pensador brasileiro discor-


da Escola Austríaca é desenvolvido pelo IMB dou de alguns pontos específicos defendidos
por intermédio da veiculação de artigos diá- no livro Die Gemeinwirtschaft: Untersuchungen
rios, de um podcast semanal em uma página über den Sozialismus30 [A Economia Coletiva: Es-
na internet, da organização de conferências e tudos sobre o Socialismo], de 1922, ao qual teve
da promoção de cursos – incluindo uma pós- acesso na tradução francesa de 1938, lançada
-graduação lato sensu –, do lançamento de li- com o título Le Socialisme: Étude économique et
vros e, também, da publicação do periódico sociologique31 [O Socialismo: Estudo Econômico e
acadêmico MISES: Revista Interdisciplinar de Sociológico]. A rejeição a determinados pontos
Filosofia, Direito e Economia. do pensamento misesiano se deu por conta de
Cabe lembrar que a popularização da Oliveira Vianna ter compreendido o risco que
Escola Austríaca no ambiente brasileiro, nas a propagação de tais ideias representava para
últimas três décadas, está diretamente liga- as próprias teorias defensoras do corporati-
da ao trabalho pioneiro do Instituto Liberal vismo, que foram um dos principais funda-
(IL), fundado em 1983 por Donald Stewart Jr. mentos das políticas do Estado Novo implan-
(1931-1999). No entanto, antes da propagação tado por Getúlio Vargas (1882-1954)32.
de alguns livros de economistas austríacos em Sabemos por diferentes fontes que o
português pelo IL e pelo IMB, o pensamento pensamento misesiano foi uma importante
misesiano já era conhecido por eminentes inte- influência nos trabalhos do engenheiro e eco-
lectuais brasileiros. Faz-se necessária uma in- nomista carioca Eugênio Gudin (1886-1986)33,
vestigação mais profunda e sistemática acerca que ocupou, entre 25 de agosto de 1954 e 12
da difusão das ideias da Escola Austríaca de de abril de 1955, o cargo de ministro da Fa-
Economia no Brasil. Mesmo fundamentados zenda no governo do presidente João Fernan-
em pesquisas esparsas, tentaremos explicitar des Café Filho (1889-1970). De acordo com o
a recepção dos escritos de Ludwig von Mises embaixador José Osvaldo de Meira Penna, o
em nosso país entre o final da década de 1930 ex-ministro “foi o primeiro membro brasileiro
e o início da década de 1970.
O primeiro autor brasileiro a citar Lud- 29
Idem. Ibidem., p. 120.
wig von Mises provavelmente tenha sido o ju-
rista, historiador e sociólogo fluminense Fran- 30
Traduzido para o inglês em 1936, o livro se encontra
cisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), em disponível atualmente nesse idioma na seguinte
edição: MISES, Ludwig von. Socialism: An Economic
um artigo lançado em março de 193928. Mesmo
and Sociological Analysis. Pref. F. A. Hayek; trad. J.
tendo reconhecido o “espírito realista, objetivo, Kahane. Indianapolis: Liberty Fund, 1992.
prático” do economista austríaco e concordado 31
MISES, Ludwig von. Le Socialisme: Étude
com inúmeras críticas apresentadas ao socia-
économique et sociologique. Pref. François Perroux;
lismo marxista, às quais classificou como “de trad. Paul Bastier. Paris: Éditions M. Th. Génin /
incomparável lucidez, objetiva e cientificamente Librarie de Médicis, 1938.
conduzida”, argumentando que poucos auto- 32
Para mais informações sobre o pensamento de
res teriam sido tão “poderosos na argumentação, Oliveira Vianna a leitura de Mises empreendida pelo
assim insinuantes e persuasivos na análise, assim autor, ver o seguinte estudo: LYNCH, Christian Edward
conhecedores dos inúmeros pontos vulneráveis da- Cyril. Um Democrata Cristão contra o Neoliberalismo:
A Crítica de Oliveira Viana a O Socialismo de Mises.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito
28
Publicado originalmente na Revista Forense, o artigo e Economia, Vol. I, No. 2 (jul.-dez. 2013): 525-38.
cujo título é “O juiz Brandeis e o seu americanismo”
foi incluído postumamente na seguinte coletânea de 33
Uma visão geral da vida e da obra do economista
escritos do autor: VIANNA, Francisco José de Oliveira. brasileiro, com diversas referências à influência
Problemas de Organização, Problemas de Direção. da Escola Austríaca, é apresentada em: BORGES,
Intr. Hermes Lima. Rio de Janeiro: Editora Record, Maria Angélica. Eugênio Gudin: Capitalismo e
1974. Neoliberalismo. São Paulo: EDUC, 1996.
EDITORIAL
14 Menos Marx, Mais Mises: Um Novo Paradigma de Conhecimento e de Ação para o Brasil

da Mont Pèlerin e, nos anos 40, já começara a for- em uma passagem do livro Interpretação da
mar economistas liberais num meio tão salobro”34. Realidade Brasileira, lançado pela primeira vez
Os principais discípulos desse pioneiro dos em 1969, criticou severamente o grave pro-
estudos econômicos nos Brasil, sem dúvidas, blema do intervencionismo estatal brasileiro,
foram Otávio Gouveia de Bulhões (1906-1990), ao denunciar as práticas intervencionistas ex-
ministro da Fazenda entre 4 de abril de 1964 pressas na legislação trabalhista, na estrutu-
e 16 de março de 1967, e, em menor grau, Ro- ra sindical e na dependência dos produtores
berto Campos (1917-2000), ministro do Plane- agrícolas e dos empresários em relação ao
jamento e Coordenação Econômica entre 13 de protecionismo e aos programas governamen-
abril de 1964 e 15 de março de 1967. No livro tais, além de atestar que “uma das consequên-
Princípios de Economia Monetária35, lançado ori- cias desta situação de reconhecimento expresso,
ginalmente em 1943, uma das principais refe- por parte do povo, da legitimidade e da prioridade
rências do autor nas críticas que desenvolve às da ação oficial está na fé que o brasileiro médio de-
teorias de John Maynard Keynes é Ludwig von posita no ‘governo’”38.
Mises, além de citar o economista austríaco em Nas palavras de Marcus Boeira, “a leitu-
outros trabalhos. A importância do economista ra de Mises levou João Camilo, como ele mesmo re-
liberal foi ressaltada por Roberto Campos, em conhece, a constatar que um dirigente de empresa
sua autobiografia, com as seguintes palavras: que recorresse ao governo estaria cometendo suicí-
As ideias de liberalismo econômico, anties- dio ideológico total”39. Apesar de não coincidi-
tatismo e economia de mercado refletiam a rem totalmente, tanto a visão camiliana apre-
influência dos liberais austríacos, sobretudo sentada no livro A Libertação do Liberalismo40,
Friedrich Hayek e Ludwig von Mises, cujas publicado em 1949, quanto o pensamento mi-
doutrinas me haviam sido pregadas pelo ve- sesiano “fundam-se em uma estrutura comum: a
lho mestre Eugênio Gudin, anos atrás36. de que a ação humana baseia-se necessariamente
na razão para produzir resultado”, constatando
O filósofo e historiador mineiro João Ca- que, mesmo partindo de bases teóricas distin-
milo de Oliveira Torres (1916-1973), provavel- tas, no caso de um aristotélica e do outro kan-
mente o mais importante intelectual conser- tiana, utilitarista e fenomenológica, ambos os
vador brasileiro do século XX, foi outro autor autores comungam de uma visão praxiológi-
em nosso país influenciado por Ludwig von ca semelhante porque acreditam que “a ação é
Mises37. Amparado no pensamento misesiano, o objeto próprio do florescimento social”41.
Encontramos a primeira análise sistemá-
34
MEIRA PENNA, José Osvaldo de. O Espírito das tica elaborada por um autor brasileiro acerca
Revoluções: Da Revolução Gloriosa à Revolução de uma obra de Ludwig von Mises no livro
Liberal. Pref. Antonio Paim. Campinas: VIDE Editorial, Introdução à Filosofia Liberal, lançado em 1971
2a ed., 2016. p. 474-75. pelo filósofo e educador paulista Roque Spen-
35
GUDIN, Eugênio. Princípios de Economia cer Maciel de Barros (1927-1999), no qual foi
Monetária. Rio de Janeiro: Agir, 2ª ed., 1947.
36
CAMPOS, Roberto. A Lanterna na Popa: Memórias.
38
TORRES, João Camilo de Oliveira. Interpretação da
Rio de Janeiro: Topbooks, 2ª ed. rev., 1994. 2v. Vol. II, Realidade Brasileira: Introdução à História das Ideias
p. 1054. Políticas no Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 2ª
ed., 1973. p. 26.
37
Uma análise geral do pensamento de João Camilo de
Oliveira Torres, ressaltando a influência do pensamento
39
BOEIRA. O Liberalismo Constitucional e o Império
misesiano, é apresentada em: BOEIRA, Marcus. O Brasileiro. Op. cit., p. 190.
Liberalismo Constitucional e o Império Brasileiro: 40
TORRES, João Camilo de Oliveira. A Libertação do
Uma Análise de Conjunto da Obra de João Camilo de Liberalismo. Rio de Janeiro: Casa do Estudante, 1949.
Oliveira Torres. MISES: Revista Interdisciplinar de
Filosofia, Direito e Cultura, Vol. II, No. 1 (jan.-jun. 41
BOEIRA. O Liberalismo Constitucional e o Império
2014): 183-96. Brasileiro. Op. cit., p. 195.
MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia, Direito e Economia
Alex Catharino 15

abordada, em uma longa seção de dezesseis à mesma época em que Leônidas de Rezen-
páginas no quinto capítulo, a crítica misesiana de introduziu o marxismo na academia e que
ao socialismo42, a partir da leitura acurada da Roberto Simonsen começou a defender as po-
edição francesa do livro Die Gemeinwirtscha- líticas desenvolvimentistas keynesianas.
ft [A Economia Coletiva], que, como já ressal- Diante desta listagem não extensiva,
tamos aqui, fora discutido parcialmente por abrangendo pensadores brasileiros de dife-
Oliveira Vianna no final da década de 1930. rentes áreas, desde o final da década de 1930
“Numa época de completo fechamento político”, até os nossos dias, fica evidente que a influên-
durante o regime militar, esta obra de Roque cia do economista austríaco não é um modis-
Spencer desempenhou um papel fundamen- mo intelectual passageiro, que pode ser re-
tal “no sentido de preservar a alternativa liberal, sumido pelo contemporâneo jargão popular
no horizonte de nossas possibilidades”, visto que, “Menos Marx, Mais Mises”. Reconhecemos
como notou Antonio Paim, o filósofo paulista que os dois pensadores não fazem atualmen-
“foi talvez o único que”, em sua geração, “nunca te parte da chamada ortodoxia econômica,
se deixou atrair por soluções autoritárias, man- dominada pelos modelos neoclássicos. No
tendo-se fiel à opção liberal da juventude”43. Ao entanto, acreditamos que a oposição entre
abordar os principais temas do pensamento ambos não deve ser reduzida meramente a
liberal, em suas das diferentes vertentes clás- uma disputa, oriunda da Guerra Fria, entre os
sica, romântica, cientificista e moderna, bem sistemas comunista e capitalista, voltada ex-
como ao discutir problemas fundamentais clusivamente para as questões econômicas.
desta corrente, além de citar diversas vezes Em tal perspectiva simplificadora expos-
as contribuições de Ludwig von Mises e de F. ta pelo bordão, Ludwig von Mises representa,
A. Hayek, o livro Introdução à Filosofia Liberal, por um lado, tanto no plano prático a defesa
como notou José Osvaldo de Meira Penna, in- da liberdade individual, da descentralização
troduziu, de fato, “a nova fase do liberalismo em política e do liberalismo econômico, quanto
nossa terra”44. na esfera teórica, uma reconciliação com a
Tal como já afirmamos no presente en- longeva tradição liberal, que em nosso país
saio, é necessário o desenvolvimento de uma se manifestou desde o início do século XIX.
pesquisa mais extensa sobre a difusão do pen- Por outro lado, nesta visão reducionista, Karl
samento da Escola Austríaca de Economia no Marx se tornou a encarnação das diferentes
Brasil, de modo geral, e, particularmente, das formas de controle social, de intervencionismo
ideias misesianas em nosso país. O trabalho político e de planejamento econômico, repre-
desenvolvido pelo IL e pelo IMB, nesse sen- sentando as diferentes formas de socialismo,
tido, deveria ser visto como a parte contem- mas também o patrimonialismo que domina
porânea e mais efetiva de uma longa tradição nossas instituições desde o período colonial,
econômica que remonta a quase um século, o elitismo tecnocrático dos positivistas, o cor-
tendo sido iniciada por Eugênio Gudin quase porativismo e o trabalhismo varguistas, e, fi-
nalmente, o desenvolvimentismo keynesiano
do período democrático nas décadas de 1950
42
BARROS, Roque Spencer Maciel de. Introdução
e 1960, bem como do regime militar e da cha-
à Filosofia Liberal. Pref. Ruy Mesquita. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo / Editorial mada Nova República. Desse modo, “Menos
Grijalbo, 1971. p. 261-76. Marx”, também, significa “Menos Comte” e
“Menos Keynes”. Assim, poderíamos reescre-
PAIM, Antonio. A Filosofia Brasileira Contemporânea
43

– Estudos Complementares à História das Ideias ver o lema como “Menos Intervencionismo,
Filosóficas no Brasil: Volume VII. Londrina: CEFIL, Mais Liberdade” ou “Menos Socialismo, Mais
2000. p. 242. Liberalismo”.
44
MEIRA PENNA. O Espírito das Revoluções. Op. cit.,
Como demonstraram Ubiratan Borges
p. 475. de Macedo (1927-2007), no capítulo “Libera-
EDITORIAL
16 Menos Marx, Mais Mises: Um Novo Paradigma de Conhecimento e de Ação para o Brasil

lismo no Brasil” de Liberalismo e Justiça Social45, tuais, tecnológicas e terapêuticas dos últi-
João de Scantimburgo (1915-2013), em His- mos séculos. Cabe aos homens decidirem
tória do Liberalismo no Brasil46, Antonio Paim, se preferem usar adequadamente esse rico
em História do Liberalismo Brasileiro47 e José acervo de conhecimento que lhes foi legado
ou se preferem deixá-lo de lado. Mas, se não
Osvaldo de Meira Penna, no capítulo “O Li-
conseguirem usá-lo da melhor maneira pos-
beralismo no Brasil e suas Três Vertentes: Do
sível ou se menosprezarem os seus ensina-
Império à Nova República” de O Espírito das mentos e as suas advertências, não estarão
Revoluções: Da Revolução Gloriosa à Revolução invalidando a ciência econômica; estarão
Liberal48, existe uma longeva e sólida tradição aniquilando a sociedade e a raça humana50.
liberal em nosso país. Desde os primórdios,
no século XIX “os liberais brasileiros proclamam Na desafiadora cruzada em defesa da
ser imprescindível bem conhecer a doutrina liberal liberdade, o papel de um periódico acadêmi-
elaborada no exterior, ao mesmo tempo que reco- co como a MISES: Revista Interdisciplinar de
nhecem ser necessário aplica-la de maneira criativa Filosofia, Direito e Economia é primordial. Foi
às condições locais”49. uma honra imensa fazer parte dessa equipe
Os inúmeros brasileiros, sejam libertá- nos últimos anos. Somos extremamente gra-
rios ou conservadores, que, em nossos dias, tos, principalmente aos amigos Ubiratan Jor-
buscam se orientar pelo liberalismo misesia- ge Iorio, Helio Beltrão, Fabio Barbieri, José
no tanto nas análises teóricas dos problemas Manuel Moreira e Claudio A. Téllez-Zepeda
nacionais quanto na atuação política visando por todo o apoio que recebemos. Acreditamos
soluções concretas, estão mantendo uma dis- que o novo gerente editorial conseguirá exe-
posição semelhante à de muitos eminentes li- cutar a importante missão da revista, além de
berais e conservadores de nossa história. Mais ampliar a penetração dela no debate acadêmi-
do que a defesa do bem-estar material propi- co. De nossa parte, continuaremos a oferecer
ciado pelo livre-mercado, o que está em jogo colaborações para esse importante trabalho,
na batalha contra o marxismo e outras formas mas apenas na função de membro do Conse-
de intervencionismo estatal é a própria sobre- lho Editorial e, principalmente, submetendo
vivência de nossa civilização. Essa importan- artigos e resenhas. Enfrentaremos nos próxi-
te questão foi abordada pelo próprio Ludwig mos anos um grande desafio, que é a publica-
von Mises, que encerrou o tratado Ação Hu- ção, em língua portuguesa, das obras comple-
mana com as seguintes palavras: tas de Ludwig von Mises, em edições críticas,
O conhecimento acumulado pela ciência pela LVM Editora, bem como os trabalhos de
econômica é um elemento essencial da ci- outros importantes autores. O período em que
vilização humana; é a base sobre a qual se
exercemos o cargo que agora entregamos foi
assentam o industrialismo moderno, bem
como todas as conquistas morais, intelec-
uma experiencia fundamental, que colabora-
rá muito com a nossa próxima jornada. Com
alegria e esperança, agradecemos a todos os
MACEDO, Ubiratan Borges de. Liberalismo e Justiça
45

Social. São Paulo: IBRASA, 1995. p. 117-28. que fizeram parte de nossa vida nos anos em
que desempenhei o cargo de gerente editorial
46
SCATIMBURGO, João de. História do Liberalismo da MISES: Revista Interdisciplinar de Filosofia,
no Brasil. Pref. José Osvaldo de Meira Penna. São
Paulo: LTr, 1996.
Direito e Economia.
47
PAIM, Antonio. História do Liberalismo Brasileiro.
São Paulo: Mandarim, 1998.
48
MEIRA PENNA. O Espírito das Revoluções. Op. cit.,
p. 441-96.
49
PAIM. História do Liberalismo Brasileiro. Op. cit.,
p. 245. 50
MISES. Ação Humana. Op. cit., p. 999.

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